“gênero líquido”: o desafio da representação de gênero na...

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) “Gênero Líquido”: o Desafio da Representação de Gênero na Publicidade 1 Daniele Pessoa Pereira da Silva 2 Milton Coutinho dos Santos 3 Pontifícia Universidade Católica do Paraná Resumo O presente artigo pretende analisar o uso de estereótipos, ou a quebra destes, nas representações de gênero na publicidade. Para isso, apresenta uma abordagem geral sobre a comunicação na sociedade atual sob a ótica das relações comerciais entre a marca e seu público-alvo. Neste contexto, utiliza embasamento teórico de estudos do comportamento do consumidor, psicologia social e da sociologia para analisar a construção de sentido na publicidade. Apresenta algumas tendências de mercado e exemplifica com alguns casos de mensagens veiculadas que geraram polêmicas, reclamações e fizeram com que a marca fosse protagonista de crises em mídias sociais. Palavras-chave: sociedade; comunicação; publicidade; estereótipo; gênero. Introdução A humanidade evoluiu por meio de transformações sociais, econômicas e culturais, que alteraram significativamente o seu modo de vida. Atualmente, diversas mudanças podem ser observadas, hábitos que surgem e desaparecem, regras de convivência que são modificadas, grupos sociais que mudam de status com o passar 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 02: COMUNICAÇÃO, CONSUMO e IDENTIDADE: materialidades, atribuição de sentidos e representações midiáticas, do 5º Encontro de GTs- Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestre em Comunicação e Linguagens, professora da Escola de Comunicação e Artes, Curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected] 3 Aluno do Curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. [email protected]

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PPGCOM  ESPM  //  SÃO  PAULO  //  COMUNICON  2015  (5  a  7  de  outubro  2015)  

“Gênero Líquido”: o Desafio da Representação de Gênero na Publicidade1

Daniele Pessoa Pereira da Silva 2

Milton Coutinho dos Santos3

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Resumo

O presente artigo pretende analisar o uso de estereótipos, ou a quebra destes, nas representações de gênero na publicidade. Para isso, apresenta uma abordagem geral sobre a comunicação na sociedade atual sob a ótica das relações comerciais entre a marca e seu público-alvo. Neste contexto, utiliza embasamento teórico de estudos do comportamento do consumidor, psicologia social e da sociologia para analisar a construção de sentido na publicidade. Apresenta algumas tendências de mercado e exemplifica com alguns casos de mensagens veiculadas que geraram polêmicas, reclamações e fizeram com que a marca fosse protagonista de crises em mídias sociais.

Palavras-chave: sociedade; comunicação; publicidade; estereótipo; gênero.

Introdução

A humanidade evoluiu por meio de transformações sociais, econômicas e

culturais, que alteraram significativamente o seu modo de vida. Atualmente, diversas

mudanças podem ser observadas, hábitos que surgem e desaparecem, regras de

convivência que são modificadas, grupos sociais que mudam de status com o passar

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 02: COMUNICAÇÃO, CONSUMO e IDENTIDADE: materialidades, atribuição de sentidos e representações midiáticas, do 5º Encontro de GTs- Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestre em Comunicação e Linguagens, professora da Escola de Comunicação e Artes, Curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected] 3  Aluno do Curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. [email protected]

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dos anos. Todos estes fatores evidenciam a natureza mutante do ser humano como

afirma Zygmunt Bauman: ‘A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo.’ (BAUMAN, 2009, p.7)

É perceptível que no cenário social atual – sociedade heterogênea e em

constante transformação – os desafios e incertezas marcam de forma acentuada o

panorama econômico. Soma-se a isso a globalização do mercado, que provocou o

acirramento da concorrência, compondo um contexto em que as diversas marcas

coexistem e disputam espaço pela sobrevivência, que depende diretamente da

capacidade de se adequar às mudanças.

Em vista desta colocação, é notável a importância da comunicação para que as

marcas alcancem seus objetivos comerciais e perpetuem a sua existência. A

comunicação está a favor das marcas, ajudando-as a construir uma imagem sólida e

atrativa, que visa gerar resultados comerciais. Segundo Kotler e Keller: “O marketing moderno exige mais do que desenvolver um bom produto a um preço atraente e torná-lo acessível. As empresas precisam também se comunicar com as partes interessadas atuais e potenciais e com o público em geral. Para a maioria das empresas, o problema não é comunicar, e sim o que dizer, como dizer, para quem dizer e com que frequência dizer.” (KOTLER & KELLER, 2006, p.532)

Para tanto, as mais diversas marcas se expressam, conversam com seus

públicos, posicionam-se e reinventam-se, almejando aumentar a participação de

mercado (market share), ou ser uma das mais lembradas pelo público (top of mind),

conseguir a fidelidade dos consumidores e o consequente aumento de lucratividade

para empresa – ponto crucial para os executivos e empresários. Kotler & Keller

complementam este ponto dizendo que: “A comunicação de marketing é o meio pelo qual as empresas buscam informar, persuadir e lembrar os consumidores – direta ou indiretamente –

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sobre os produtos e marcas que comercializam. Num certo sentido, a comunicação de marketing representa a ‘voz’ da marca e é o meio pelo qual ela estabelece um diálogo e constrói relacionamentos com os consumidores.” (KOTLER & KELLER, 2006, p.532)

Um programa de comunicação integrada de marketing (CIM) normalmente é

composto por um mix de comunicação que apresenta, segundo Philip Kotler, seis

formas essenciais de comunicação: Publicidade e Propaganda, Promoção de Vendas,

Eventos e Experiências, Relações Públicas e Assessoria de Imprensa, Marketing

Direto e Venda Pessoal. Dentre estas diferentes ferramentas de comunicação, que

podem ser utilizadas pelas marcas como estratégia para alcançar os objetivos

desejados, fica evidente, pela porcentagem da verba dos anunciantes destinadas a ela,

que a Publicidade é uma das ferramentas mais requisitadas e poderosas.

Segundo Sant’Anna (SANT’ANNA, 2005, p.76), “A publicidade é uma

técnica de comunicação de massa, paga com a finalidade precípua de fornecer

informações, desenvolver atitudes e provocar ações benéficas para os anunciantes,

geralmente para vender produtos ou serviços.” As agências de publicidade, mais

especificamente em seus departamentos de criação, produzem um discurso para

atingir um determinado público-alvo adequado àquela marca, produto ou serviço que

será divulgado por meio de canais específicos de comunicação que apresentam

diferentes características e particularidades (mídia).

No intuito de persuadir o público-alvo (target) e levá-lo à ação de compra,

nota-se que as mensagens publicitárias criadas e veiculadas pelas agências de

comunicação utilizam-se de diversos recursos: texto (verbal), argumentação (provas),

imagens (visual), músicas (som), cores, ilustrações, etc.

Nesta tarefa de construção de sentido, por meio deste discurso publicitário

(linguagem da sedução), há uma etapa anterior considerada primordial para o sucesso

de qualquer campanha publicitária, que é a análise do público-alvo a que a mensagem

se destina, ou seja, estudo do receptor daquela mensagem, conforme afirma Hoff e

Gabrielli em seu livro sobre redação publicitária:

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“Para vender, a publicidade precisa convencer, ou seja, envolver, sensibilizar e até seduzir o consumidor a fim de levá-lo à compra. Por ser uma mensagem dirigida para grupos específicos – público-alvo, para os profissionais de comunicação – dos quais estudamos o comportamento, as expectativas, as necessidades e tendências, é possível construir mensagens adequadas à visão de mundo do público-alvo e, por consequência, bastante persuasivas. (HOFF, 2004, p.2)

Um dos pontos mais importantes que pode ser observado é que estas

mensagens são construídas para um público específico, delimitado e estudado antes

dela ser redigida, ou seja, há um estudo preliminar dos indivíduos que compõem o

target definido para uma campanha publicitária. Segundo Rafael Sampaio, as

informações que a agência deve ter sobre o público-alvo são as seguintes: Ocupação/profissão, posição social e cultural, nível de escolaridade, localização (onde moram, trabalham, passeiam etc), grupos de idade, gênero/sexo, nível de renda, segmentação psicodemográfica, decisores de compra (formais e informais), influenciadores de compra (dentro da casa/empresa e fora da casa/empresa), necessidade do produto serviço, atitudes do consumidor (para com o produto e seus concorrentes), hábitos de compra/uso, frequência de compra/uso e principais razões de compra/uso.” (SAMPAIO, 2003, p.289)

Pode-se perceber que este estudo de público-alvo contempla informações

sobre os consumidores e procura analisar o mercado quanto aos fatores que

influenciam a decisão de compra e consumo que, segundo Christiane Gade (GADE,

1998, p.5) são: culturais, sociais, pessoais e psicológicos.

A publicidade almeja vender produtos, serviços e ideias por meio da criação

de uma identificação do público com a marca anunciante. Pode-se perceber que, para

que isto ocorra, é necessário que haja o compartilhamento do mesmo sistema de

valores, crenças ou ainda uma projeção do imaginário deste público numa peça

publicitária que recria situações almejadas, despertando sentimentos envolventes

neste receptor.

Os processos publicitários que levam mais em conta as crenças e vivências do

consumidor do que as características técnicas do produto tendem a ser mais eficientes.

Segundo afirma Figueiredo:

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“A persuasão se dá quando localizamos primeiramente os valores do consumidor e depois os associamos às características do produto que estamos anunciando. O segredo é criar um elo entre os valores do consumidor e as características ou valores expressos pela comunicação do produto. A ligação entre produto e consumidor fica mais forte, e a possibilidade da aquisição do produto pelo consumidor aumenta, já que este o considera um “igual” e que as pessoas têm a natural tendência de se aproximar de seus semelhantes. (FIGUEIREDO, 2005, p.54)

Observa-se que na maioria das sociedades atuais já́ não existem mais sistemas

de valores completamente fechados, assegurados, fixos, obrigatórios, absolutos, que

abarcam todas as esferas da vida. Ao contrário, pode-se notar uma sociedade em

transformação com uma construção de valores muito mais subjetiva e inerente ao

grupo social, cultural e intelectual ao qual o indivíduo pertence. Segundo Bauman

(BAUMAN, 2009, p.16) “A vida líquida é uma vida de consumo. Ela projeta o

mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como objetos de consumo,

ou seja, objetos que perdem a utilidade (e portanto o viço, a atração, o poder de

sedução e o valor) enquanto são usados.” Nesta sociedade em constante mudança,

Gade afirma que (GADE, 1998, p.206) “Os valores culturais transmitidos de uma

geração a outra evidentemente sofrem modificações, assim como as próprias pessoas

se modificam.”

Pode-se dizer que, entre os indivíduos, a maioria das relações de amizade se

constrói a partir de similaridades, ou seja, as pessoas buscam outras com as quais

possuam “coisas” (interesses) em comum: mesmos gostos, valores, desejos, sonhos,

crenças, visões de mundo, ideologias etc. Observando uma turma de amigos, a forma

de falar, as gírias pronunciadas, a escolha de palavras e a consonância no discurso são

fatores que evidenciam uma proximidade e uma afeição natural entre seus membros.

Se as pessoas tendem a procurar apoio em pessoas iguais a si mesmo, uma peça

publicitária cujo discurso apresenta uma visão de mundo similar àquela manifestada

pelo consumidor será agradável aos seus olhos e ao seu coração. Figueiredo afirma

que:

“Se determinada peça de comunicação mostrar o consumidor como ele acredita que é ou gostaria de ser, tenderá a aproximar ao máximo sua visão

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daquela apresentada pela peça. Como a peça contém necessariamente o produto ou serviço anunciado, a tendência natural do indivíduo será adquirir o produto para ‘completar o quadro’.” (FIGUEIREDO, 2005, p.59)

Para reforçar este processo, a publicidade recorre ao uso de estereótipos, um

recurso que facilita com que o consumidor, por meio da sua percepção, reconheça ou

identifique os indivíduos através de uma ideia padronizada que está na sua mente. No

plano etimológico, o termo estereótipo é formado por duas palavras gregas, stereos,

que significa rígido, e túpos, que significa traço. No plano histórico, segundo Pereira,

a palavra: “origina-se do jargão tipográfico, referindo-se a um molde metálico utilizado nas oficinas tipográficas, que se destacava pela possibilidade de produzir uma mesma impressão milhares de vezes, sem precisar ser substituído, surgindo daí, por analogia, o adjetivo estereótipo, indicando algo que poderia ser repetido mecanicamente. Por essa via, o termo chegou às ciências sociais e tem sido utilizado para fazer referência à imagem por demais generalizada que se possui de um grupo ou dos indivíduos que pertencem a um grupo.” (PEREIRA, 2001, p.43)

Ao assistir televisão, uma atividade rotineira para maioria da população

brasileira, pode-se notar fortemente a presença de estereótipos tanto na parte

comercial (publicidade) como na parte editorial: novelas, filmes, séries e outros

programas exibidos na grade de programação de cada emissora. Analisando o

mercado, palco da disputa pela atenção do consumidor, neste jogo da sedução, as

marcas desenvolvem e colocam em prática todos os seus recursos para serem notadas,

lembradas e consumidas é justificado o uso dos estereótipos em um sentido mais

estrito conforme afirma Pereira: “sabe-se que os estereótipos influenciam os processos atencionais, especialmente por afetar a atenção seletiva do percebedor, dirigindo-a para alguns aspectos particulares da informação disponível, ignorando, portanto, os elementos considerados irrelevantes à situação e reduzindo a complexidade informacional, evitando assim a necessidade de um processamento mais profundo da informação. (...) Além disso, os estereótipos também afetam a maneira pela qual a informação é organizada e representada na memória, sobretudo ao permitir uma melhor memorização dos conteúdos que confirmam estereótipos, dado que eles podem ser mais facilmente assimilados dentro dos esquemas mentais disponíveis. (PEREIRA, 2002, p.115-116)

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Após esta colocação, pode-se notar que há vários motivos que explicam o uso

dos estereótipos nas mensagens publicitárias veiculadas. Além disso, atualmente há

diversas campanhas e peças publicitárias que ao promoverem a quebra de estereótipos

e/ou abordarem questões de gênero, fugindo da forma conservadora e hegemônica

comumente usada, causam diversas polêmicas e sofrem duras críticas, algumas

chegando a ter representações no Conar – Conselho Nacional de

Autorregulamentação Publicitária.

Quando uma campanha publicitária gera uma polêmica e é alvo de ataques e

reprimendas em uma determinada cidade, região ou país fica evidente uma tendência

que pode ser caracterizada, de acordo com Pereira, como influência contextual e

representa uma perspectiva a ser considerada quando se procura determinar a maneira

pela qual os grupos se percebem mutuamente:

No caso das influências contextuais, podemos nos referir a fatores como o grau de compartilhamento das crenças compartilhadas a respeito de um grupo, aos efeitos dos meios de comunicação de massa, que geram não só esquemas a respeito dos grupos alvo dos estereótipos como também induzem repertórios ou pautas comportamentais a serem adotadas quando do encontro com membros do grupo externo, assim como as influências contextuais mais amplas, tais como, por exemplo, o efeito do tamanho da cidade em que o julgador reside. (PEREIRA, 2002, p.185)

É visto que até o tamanho da cidade onde o consumidor reside influencia na

sua visão de mundo e na sua maneira de agir, por isso algumas campanhas inovadoras

são mais aceitas em um estado do que em outros. As polêmicas online são

despertadas, muitas vezes, por uma minoria, que se for considerada dentro de um

contexto nacional, nem chega a ser representativa, mas faz algum barulho, gerando

repercussão. Isto se deve à possibilidade que a internet oferece de atingir uma grande

quantidade de pessoas. A ampliação se dá pela facilidade de uso deste canal de via de

mão dupla por qualquer anônimo revoltado, inconformado ou aspirante a comediante.

A Mintel – uma das maiores agências de inteligência de mercado do mundo –

publicou em seu relatório intitulado “Tendências de Consumo 2015”, que as questões

de gênero estão em pauta neste ano e impactarão o consumo no país: “As pessoas

estão questionando as noções tradicionais de gênero, rejeitando limitações de

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estereótipos e abraçando a liberdade para serem elas mesmas e fazerem o que

quiserem.” Outro fator interessante que este relatório apresenta refere-se à reação do

público mediante este novo posicionamento das marcas: “As vozes da internet irão

chamar a atenção para a maneira com que as marcas posicionam questões de gênero

em suas comunicações, examinando minuciosamente exemplos estereotipados.”

Algumas marcas conhecidas foram alvo de ataques e ameaças de boicote pela

sociedade devido a forma como se posicionaram em uma peça publicitária,

evidenciando determinados valores que a sociedade ainda questiona ou não aceita,

quebrando estereótipos ou ainda atualizando a forma de representação de gênero. Um

exemplo disso foi a campanha de Dia dos Namorados do Boticário – lançada dia 24

de maio – que mostrou diferentes tipos de casais, heterossexuais e homossexuais,

trocando presentes. O comercial veiculado em rede nacional virou alvo de protestos e

a marca sofreu ameaças de boicote nas redes sociais sendo até denunciada no Conar.

As reclamações dos consumidores relatavam que a peça era "desrespeitosa à

sociedade e à família". O Boticário esclareceu que acredita na beleza das relações

presente em toda sua comunicação. Por meio de sua assessoria de imprensa explicou

que “A proposta da campanha ‘Casais’ é abordar, com respeito e sensibilidade, a

ressonância atual sobre as mais diferentes formas de amor – independentemente de

idade, raça, gênero ou orientação sexual – representadas pelo prazer em presentear a

pessoa amada no Dia dos Namorados. O Boticário reitera, ainda, que valoriza a

tolerância e respeita a diversidade de escolhas e pontos de vista.”

O Conar absolveu O Boticário por unanimidade na votação e o relator do

processo destacou em seu voto que o comercial mostrou apenas aspectos da realidade

contemporânea. "Não contem com a publicidade para omitir a realidade", escreveu.

Em relação aos questionamentos de consumidores sobre como explicar às crianças as

cenas exibidas pela campanha, o relator ressaltou que "está é uma missão, ainda que

muito árdua, da família" e não da publicidade.

Algumas peças publicitárias podem ser mal vistas por determinados grupos

sociais por promoverem a quebra de uma visão estereotipada e estes acabam julgando

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mal a marca por ela se posicionar de uma forma diferente da então vigente e aceita

pela grande massa como “certa” ou “ideal”; outras marcas podem ser consideradas

“antiquadas” no contexto social atual justamente por representarem o

conservadorismo mostrando noções tradicionais.

Segundo Pereira (PEREIRA, 2002, p.51), “Tradicionalmente os estereótipos

são considerados sempre sob a perspectiva daquele que percebe, mas eles também

podem, e devem, serem avaliados segundo a perspectiva daqueles que são percebidos

de forma estereotipada.” Isto coloca em pauta formas diferentes de ver o mundo que

geram opiniões divergentes e evidenciam relações sociais que muitas vezes não são e

não representam a visão de uma maioria hegemônica. Mas cabe aqui lembrar que o

fator central, na estratégia de comunicação de uma marca, é conciliar a visão de

mundo da marca anunciante com a visão de mundo do consumidor a ser atingido pela

publicidade. Para Pereira, os estereótipos podem ser caracterizados como: “artefatos humanos socialmente construídos, transmitidos de geração em geração, não apenas através de contatos diretos entre os diversos agentes sociais, mas também criados e reforçados pelos meios de comunicação, que são capazes de alterar as impressões sobre os grupos em vários sentidos.” (PEREIRA, 2002, p. 157).

As pessoas quase sempre se adaptam às expectativas de sua cultura quanto ao

modo como os indivíduos de um determinado gênero devem agir, se vestir ou falar.

Naturalmente, estas orientações mudam com o passar do tempo e diferem

radicalmente de uma sociedade para outra. É papel da publicidade identificar, estudar

e analisar estes fatores para que, por meio do seu discurso, ela consiga promover uma

consonância entre o que a marca e o seu público pensam. Por esta razão, os redatores

se empenham em expressar nos anúncios todo um universo cognitivo e afetivo

baseado na experiência do público-alvo.

Segundo Solomon, a identidade de papel de gênero é um estado mental e

físico, ele afirma que: “O gênero biológico de uma pessoa (ou seja, masculino ou feminino) não determina totalmente se ela exibirá traços sexualmente tipificados, características que, de modo estereotipado, associamos a um gênero ou a outro. Os sentimentos subjetivos do consumidor a respeito de sua sexualidade

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também são cruciais. Diferentemente do sexo biológico, a masculinidade e a feminilidade não são características determinadas biologicamente. Um comportamento considerado masculino em uma cultura pode não ser visto como tal em outra.” (SOLOMON, 2011, p.207)

Segundo estudos de uma das maiores empresas de pesquisa de tendências em

consumo, comportamento e inovação do Brasil – BOX 1824 – cada vez mais a

identidade de gênero e a orientação sexual passam a ser questionadas como

construções sociais, e não apenas como determinação biológica, sugerindo um novo

prisma e uma busca por espaço e empatia a estes novos códigos. Os estudos

desenvolvidos buscam entender como a liberdade de gênero e a sexualidade vão

impactar o futuro e preveem uma consciência que vai muito além do rosa e do azul.

Conforme afirma Solomon (SOLOMON, 2011, p.205), “a identidade sexual é um

componente importante do autoconceito do consumidor.” E este mesmo autor

complementa que não está claro até que ponto as diferenças de gênero são inatas e até

que ponto são culturalmente moldadas – mas certamente elas são evidentes em muitas

situações de consumo.

Pode-se citar aqui o problema enfrentado pela marca Risqué no lançamento

(23/03) de sua nova coleção outono/inverno 2015 de esmaltes denominada “Homens

que amamos”. Cada nova cor relatava um comportamento adotado pelos homens tais

como: "Zeca chamou pra sair", "Fê mandou mensagem", "João disse eu te amo", "Léo

mandou flores", "Guto fez o pedido" e "André fez o jantar".

Com esta campanha que, segundo a marca, é um “tributo aos pequenos gestos

diários dos homens”, a Risqué foi acusada de machismo nas redes sociais, virou

motivo de piadas no Twitter, sendo o assunto mais comentado (trending topics) no dia

do lançamento e ganhou até uma hashtag para enfatizar os protestos #homensrisque.

As consumidoras, de um modo geral, não gostaram e as reclamações se dividiram

entre sugerir “com um forte apelo irônico” novos nomes para os esmaltes e acusar a

campanha de sexista e machista. Por exemplo: "Antônio acha que lugar de mulher é

na cozinha", "Beto não contrata mulher porque acha que maternidade é desperdício",

entre outras.

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Enfrentando muitas críticas online, a marca demorou para entender o que

estava acontecendo. Que fenômeno era aquele que poderia ser observado na redes

sociais? Uma marca voltada ao público feminino que não entende seus anseios e não

compartilha os mesmos valores do seu público? Mesmo conhecendo tudo que envolve

este processo de pesquisar o comportamento do consumidor e adequar o discurso da

marca a ele, após estas colocações, pode-se notar o grau de dificuldade que as marcas

enfrentam na tarefa de criar discursos publicitários utilizando as representações de

gênero e visando atingir o público-alvo, esperando uma determinada atitude/reação e

consequente comportamento deste consumidor. Os papéis sociais representados por

homens e mulheres são diferentes nas diversas sociedades e são influenciados pelos

graus de evolução destas sociedades e de seus membros, pela fase de vida da pessoa e

também pela situação ou contexto vivido.

Para tornar tudo mais desafiador, Solomon (SOLOMON, 2011, p.210)

complementa que “os papéis sexuais evoluem sem parar – em uma sociedade

complexa como a nossa, encontramos com frequência mensagens contraditórias sobre

o comportamento “apropriado” e podemos nos encontrar assumindo uma face

diferente conforme saltamos de uma situação para outra.” Por exemplo, como mãe as

mulheres adotam um comportamento altamente feminino, como empresária elas

exercem um papel masculino e com um amigo elas podem adotar os dois papéis ao

mesmo tempo.

Uma prova de que o mercado publicitário está atento a todos estes fatores que

envolvem o público consumidor foi a inovação proposta este ano no Festival

Internacional de Cannes – o maior festival de publicidade do mundo – uma área

estreante, o Glass Lion, a nova categoria tem o conceito “The Lion for Change”, o

objetivo é destacar trabalhos que desafiem o preconceito de gênero e andem na

contramão das imagens estereotipadas de homens e mulheres.

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Considerações finais Em uma sociedade em transição, a publicidade não consegue negar as

mudanças, pois trabalha com a significação por meio da representação social.

Segundo o discurso do relator do Conar no processo da marca O Boticário, “a

publicidade não pode negar a realidade”. A publicidade não pensa em “desrespeitar à

sociedade e à família”, como ela já foi acusada, ela estuda o consumidor para

entender suas necessidades, seus desejos, hábitos, estilos de vida etc.

Uma das maiores estratégias da publicidade é estudar o comportamento das

pessoas para que a mensagem criada seja representativa e conjugue os mesmos

valores e visão de mundo deste público consumidor, para que desta forma a

comunicação consiga influenciá-lo a favor da marca. Usar estereótipos ou contestá-los

não são um fim em si mesmo para publicidade. Ao contrário, tal uso faz parte da

estratégia de marketing e vendas das marcas para persuadir, convencer o público-alvo,

levá-lo à ação de compra e gerar resultados para a marca, ou seja, é tão somente um

recurso retórico.

Conforme elucidado, pode-se concluir que a construção e reprodução das

identidades de gênero é um assunto naturalmente polêmico tendo em vista as

diferentes opiniões dos grupos sociais e do preconceito existente e exercido muitas

vezes em forma de discriminação social. Algumas marcas decidiram parar de suavizar

e optaram por se posicionar frente a estas questões ou abordá-las em sua comunicação

de uma forma aberta e direta, o que é sabido, não agradaria a todos.

Esta postura é reflexo do que se observa na sociedade pós-moderna e as

previsões apontam o aumento da incidência destas questões. Este complexo processo

de significação que envolve as marcas, por meio da publicidade, no qual a diversidade

ganha voz, causam estranhamento à sociedade acostumada com a negação deste

movimento ou suavização da sua existência.

Nos embates entre o velho e o novo são observados discursos nos quais os

sentidos se rearticulam, se opõem, produzindo deslocamentos e deslizamentos nas

representações dos papéis e nos estereótipos de gênero. Isto tudo coloca as marcas no

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divã, momento em que a reflexão se faz necessária. Os prós e contras devem ser

analisados e ponderados antes de decidir que posicionamento será adotado frente a

estas questões polêmicas. A cultura midiática suscita inúmeras perguntas, que

constituem desafios para se pensar as questões de gênero, os papéis sociais assumidos

por homens e mulheres: o “como devo agir”. Referências BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. BOX 1824. O ampliamento do conceito de gênero. Disponível em: https://medium.com/@box1824/o-ampliamento-do-conceito-de-genero-a4c969607d52. Acesso em: 10 de maio de 2015. CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Editora Ática, 1998. FIGUEIREDO, Celso. Redação publicitária: sedução pela palavra. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. GADE, Christiane. Psicologia do consumidor e da Propaganda. São Paulo: EPU, 1998. HOFF, Tânia; LOURDES, Gabrielli. Redação publicitária. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. KOTLER, Philip; KELLER, Kevin Lane. Administração de Marketing. 12º Ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006. MINTEL. Relatório Tendências de Consumo 2015. Disponível em: http://brasil.mintel.com/tendencias-de-consumo-2015/. Acesso em: 20 de maio de 2015. PEREIRA, Marcos Emanoel. Psicologia social dos estereótipos. São Paulo: E.P.U., 2002. SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z. Rio de Janeiro: Campus, 2003. SANT´ANNA, Armando. Propaganda: teoria, técnica e prática. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. SOLOMON, Michael R. O comportamento do consumidor: comprando, possuindo e sendo. Porto Alegre: Bookman, 2011.