gênero e cultos afro-brasileiros

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Gênero e Cultos afro-brasileiros: uma revisão teórica sobre a homossexualidade Rodrigo Pereira 1 Resumo: O artigo realiza uma revisão teórica referente à homossexualidade e como este foi trabalhado pelas ciências sociais dentro dos estudos de cultos de raízes africanas no Brasil. Objetiva-se destacar as principais posições, argumentos e análise empreendida pela seleção de autores adotada, proporcionando assim um “campo situado” sobre a homossexualidade, o gênero e o candomblé. Palavras chaves: Gênero; Cultos afro-brasileiros; Homossexualidade. 1. Introdução Os estudos de gênero e de religião configuram-se como um tema sempre presente no desenvolvimento das ciências sociais, em especial da antropologia e da sociologia. Desde Durkheim (1996), Malinowski (1978), Clatres (1990), Lévi-Strauss (1993 e 1996), para citar alguns clássicos, e mais recentemente no Brasil com Pereira (1979), Fry (1982), Birman (1995), Prandi (1996), Corrêa (2000), Bastide (2001), Maggie (2001), Landes (2002), Santos (2008) e Contins (2009), entre outros. Todos estes estudos demarcam a importância da relação entre gênero e religião e como esta interseção aparece como um foco extremamente fértil para análises e modelos. O presente texto parte de uma seleção de autores que trabalharam com a relação entre a homossexualidade e os cultos afro-brasileiros. O objetivo desta seleção é mapear como esta relação tem sido trabalhada e que importância ela tem no campo de estudo de gênero e religião. Assim, foram selecionadas as obras dos seguintes autores: Fry (Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira, 1982), Birman (Fazendo estilo criando gênero: estudo sobre a construção religiosa da possessão e da diferença de gênero em terreiros de umbanda, 1995), Bastide (O candomblé da Bahia, 2001), Maggie (Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito, 2001) e Landes (A cidade das mulheres, 2002). 1 Bacharel em Ciências Sociais, mestrando em Ciências Sociais (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e mestrando em Arqueologia (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pesquisador na área de cultura e religiões afro-brasileiras.

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Gênero e Cultos Afro-brasileiros

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  • Gnero e Cultos afro-brasileiros: uma reviso terica sobre a

    homossexualidade

    Rodrigo Pereira1

    Resumo: O artigo realiza uma reviso terica referente homossexualidade e como este

    foi trabalhado pelas cincias sociais dentro dos estudos de cultos de razes africanas no

    Brasil. Objetiva-se destacar as principais posies, argumentos e anlise empreendida

    pela seleo de autores adotada, proporcionando assim um campo situado sobre a

    homossexualidade, o gnero e o candombl.

    Palavras chaves: Gnero; Cultos afro-brasileiros; Homossexualidade.

    1. Introduo

    Os estudos de gnero e de religio configuram-se como um tema sempre presente

    no desenvolvimento das cincias sociais, em especial da antropologia e da sociologia.

    Desde Durkheim (1996), Malinowski (1978), Clatres (1990), Lvi-Strauss (1993 e

    1996), para citar alguns clssicos, e mais recentemente no Brasil com Pereira (1979),

    Fry (1982), Birman (1995), Prandi (1996), Corra (2000), Bastide (2001), Maggie

    (2001), Landes (2002), Santos (2008) e Contins (2009), entre outros. Todos estes

    estudos demarcam a importncia da relao entre gnero e religio e como esta

    interseo aparece como um foco extremamente frtil para anlises e modelos.

    O presente texto parte de uma seleo de autores que trabalharam com a relao

    entre a homossexualidade e os cultos afro-brasileiros. O objetivo desta seleo mapear

    como esta relao tem sido trabalhada e que importncia ela tem no campo de estudo de

    gnero e religio.

    Assim, foram selecionadas as obras dos seguintes autores: Fry (Para ingls ver:

    identidade e poltica na cultura brasileira, 1982), Birman (Fazendo estilo criando

    gnero: estudo sobre a construo religiosa da possesso e da diferena de gnero em

    terreiros de umbanda, 1995), Bastide (O candombl da Bahia, 2001), Maggie (Guerra

    de orix: um estudo de ritual e conflito, 2001) e Landes (A cidade das mulheres, 2002).

    1 Bacharel em Cincias Sociais, mestrando em Cincias Sociais (Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro) e mestrando em Arqueologia (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pesquisador na rea de

    cultura e religies afro-brasileiras.

  • O recorte na seleo liga-se ao contedo da j referida ligao entre gnero e religio,

    mas tende a explanar o tema homossexualidade. Sabe-se que todo recorte pode ser

    arbitrrio ou excludente. Porm, a amostragem possibilita no apenas um sobrevo

    sobre as principais correntes tericas e analticas (utilizando um termo da prpria

    Birman, 2005), mas tambm sobre pesquisadores que tm se destacado nesta rea.

    Desta forma, o decorrer do texto e da analise dos autores objetivar criar

    comparaes, antteses, complementaes e revises entre os textos, mas tambm uma

    tentativa de sntese na compreenso da homossexualidade e dos estudos de religio a ele

    relacionados.

    Um ltimo fato deve ser deixado claro: o presente artigo no utilizar nenhum

    dado obtido por entrevistas ou em alguma casa/terreiro de candombl e umbanda. Essa

    adoo baseia-se na neutralidade frente aos pontos de vistas divergente de muitos pais e

    mes de santo sobre o tema, bem como o compromisso tico de no expor (mesmo que

    em pseudnimos) pessoas, situaes e acontecimentos. Zela-se, portanto, pela

    neutralidade acadmica e no vinculao a determinada leitura ou postura especfica de

    alguma casa/terreiro de candombl ou nao.

    2. O homossexualismo nas cosmologias afro-brasileiras

    A sexualidade uma manifestao latente nos cultos afro-brasileiros. Seja por

    meio de representaes, como as flicas ligadas a exu (Conduru, 2007; Boyer, 2007)

    seja pela sexualidade inconfessa relacionada Pomba-gira (Prandi, 1996), o fato que

    tais cultos tm no sexo e em suas representaes masculinas e femininas no um tabu,

    mas antes uma expresso das cosmologias, da vida dos deuses2 e da vida humana.

    Contudo, o tema homossexualidade um tema controverso e, em muitos casos,

    contraditrio em muitas casas. De forma geral, no h uma proibio a

    homossexualidade nas cosmologias afro-brasileiras. Nestas h duas possveis origens

    mitolgicas da homossexualidade: uma ligada divindade chamada Logum Ed, filho

    dos orixs Oxum ligada a gua doce e ao Rio Nger na frica e Od, tambm

    2 Basta, por exemplo, citar o mito relacionado Iemanj, filha de Nan, a primeira e mais velha orix

    feminina. Conforme recolhido por Prandi (2001), Iemanj teria sido estuprada por seu prprio filho,

    Orung (filho de Iemanj com e seu irmo Aganju) e desta relao incestuosa entre me e filho teriam

    nascido os demais orixs do panteo: Dad, Xang, Ogum, Oloss, Oi, Oxum, Ob, Oc, Od, Oqu,

    Aj Xalug, Xapan, Orum, Oxu e Exu. A partir desta histria, de duas relaes incestuosas, pode-se

    perceber como as vidas e cotidianos dos deuses (orixs) so quase idnticos vida humana, principalmente quanto sexualidade, proibies e atitudes.

  • chamado de Oxossi orix ligado caa e as matas e, outra ligada a relao de

    Od/Oxossi com Ossaim (orix masculino ligado s folhas, cura e aos remdios).

    Prandi (2001) relata os mitos relacionados Logum Ed, que possui sua essncia

    dividida entre as matas e a gua doce, no podendo ser separada. Para que um possvel

    conflito pela criao no se iniciasse, Oxum e Od/Oxossi consentiram que cada um

    cuidaria por 6 (seis) meses do filho, ficando Logum Ed associado s matas e a gua

    doce, sendo um orix masculino. Conforme Prandi (2001, p. 137) um fato chama a

    ateno para este orix: O filho ficaria metade do ano nas matas de Oxossi e a outra

    metade com Oxum no rio. Com isso, Logum se tornou uma criana de personalidade

    dupla: cresceu metade homem, metade mulher. Esta peculiaridade que possui

    relevncia para este artigo.

    Muitas casas de cultos afro-brasileiros imputam aos filhos de santo homem deste

    orix um carter homossexual devido a esta dubiedade de essncia (masculina e

    feminina). Assim, negam a masculinidade de Logum e o indicam como um orix

    andrgeno. Como os filhos de santo possuem muitas das caractersticas que seus orixs

    guias, os filhos de Logum Ed tendem a expressar essa androgenia via

    homossexualidade.

    No h consenso sobre que viso de Logum Ed est certa se a que o apenas

    masculiniza ou a que o andogeniza , o fato que este orix o nico que rene em si

    mesmo em seu corpo e em sua prpria essncia uma possvel ligao ou origem da

    homossexualidade3.

    A segunda lenda/mitologia refere-se ao rapto que Ossaim fez a Od/Oxossi

    quando este foi caar nas matas. Conforme Prandi (2001, p. 120): [...] Um dia ele

    [Oxossi] encontrou Ossaim, que lhe deu de beber um preparado. Oxossi perdeu a

    3 O presente artigo est ciente de como essas histrias podem ser usadas pelas casas, pais e mes de santo

    como legitimadores ou denunciadores da homossexualidade e da expresso sui generis ligadas aos

    homossexuais e aos filhos deste orix. Contudo, como o objetivo do artigo no este debate, no

    levaremos a frente esta discusso de qual essncia certa teria Logum Ed. Apenas nos interessa a

    possibilidade de que um mito explique, em parte, a existncia de homossexuais. Outro ponto a ser

    destacado que no existe nenhuma lenda equivalente para explicar o lesbianismo. Beniste (1997) aponta

    somente que homens com orixs femininos tendem a desenvolverem a impotncia sexual e um

    efeminismo em suas expresses, enquanto que mulheres com orixs masculinos tendem a se masculinizar

    na voz, nos gestos e na expresso de seu corpo cabelos curtos e uso de calas.

  • memria. Ossaim banhou o caador com abs4 misteriosos e ele ficou no mato morando

    com Ossaim. A relao entre as duas divindades s teria se encerrado com a

    interveno do irmo de Od/Oxossi, Ogum e de sua me Iemanj. Apesar de no

    aprofundar na relao que teria havido entre Ossaim e Od/Oxossi, vrias casas e

    membros dos cultos afro-brasileiros imputam a esta relao um carter homossexual,

    tendo em vista que ambos os orixs so masculinos.

    Outra relao que pode, potencialmente, envolver relaes de homossexualidade

    a incorporao da pomba-gira, considerada um exu mulher (Prandi, 1996). Descrita por

    Contins (2009) como essencialmente violentas e sexuais, com um carter inconfesso

    de resistncia feminina a imagem pietista de Maria e da Igreja Catlica (Prandi, 1996), a

    pomba-gira incorpora-se tanto em homens como em mulheres. Nesse sentido, seu

    arqutipo ligado a uma extrema feminilidade unida a traos de baixa moral e de

    exarcebao da sexualidade. Contudo, nem Prandi (1996) nem Contins (2009) fazem

    quaisquer relaes de cunho homossexual a cavalos/mdiuns masculinos que recebem

    tal entidade. H um senso comum entre os vrios adeptos do culto a pomba-gira de uma

    possvel efeminilizao do mdium masculino que trabalha com esta entidade.

    Contudo, a diversidade de posies e a falta de uma bibliografia que analise este fato

    impedem que esse artigo possa inferir quaisquer posicionamentos sobre a veracidade

    disso.

    Citamos, porm, a possibilidade desta incorporao da pomba-gira em homens ser

    mais um foco de ligao e explicao cosmolgica entre as religies afro-brasileiras e o

    homossexualismo. Contudo, no h qualquer dado, relato ou entrevista que permita

    maiores correlaes.

    3. Ruth Landes e A cidade das mulheres (2002)

    A pesquisa realizada por Landes na dcada de 1930 na Bahia e no Rio de Janeiro

    so de extrema importncia para a compreenso da relao entre homossexualidade e

    religies afro-brasileiras. Num contexto de Estado Novo e ps Semana de Arte Moderna

    de 1922, quando a ideia de estado-nao/nacionalismo no Brasil vinha se

    desenvolvendo, Landes afirma a proeminncia das mes de santo nos candombls da

    4 Conforme Cacciatore (1988) abs so lquidos feitos com folhas sagradas maceradas em gua.

  • Bahia e assinala o surgimento de homossexuais passivos5 no comando do que ela

    denominou de candombl de caboclo (uma forma menor, mais simples e prxima a

    atual umbanda de culto a ancestralidade)6, surgido no prprio seio do candombl

    baiano, mas que se separou em seguida.

    H na obra de Landes uma descrio da luta em torno dos significados e dos

    papeis nos cultos afro-brasileiros. Para Landes era predominante a presena e liderana

    feminina nos cultos nags baianos, enquanto que o surgimento de homossexuais passivo

    nos candombls caboclos estaria ligado a uma busca intencional destes homens por

    status social e dinheiro na sociedade soteropolitana. Numa sociedade onde eles eram

    estigmatizados, desprezados e sofriam sanes dos prprios homossexuais ativos, o

    novo culto configurava-se como outro espao, que no o da rua e da prostituio, para

    as suas vidas.

    Assim, o campo dos cultos baianos estaria dividido entre o matriarcado nag

    versus uma homossexualidade ritual adota por homossexuais passivos e utilizada como

    agencia destes homens em busca de legitimao de sua existncia, poder e relevncia

    para os cultos afro-brasileiros. Desta forma, ao indicar que tanto o nmero das mes de

    santo, como os de gays passivos liderando candombls de caboclo, Landes consegue

    descrever um campo em mutao. Ou seja, como uma sexualidade mais prxima a

    feminina era acionada intencionalmente, e em ambos os lados, para a legitimao de

    poder e status.

    Objetivando sair das tradicionais leituras machistas da sociedade brasileira e

    africanas, Landes tende a se posicionar a favor das mes de santo e de sua liderana nos

    cultos afro-brasileiros. Dando s mes de santo o poder do matriarcado, Landes nega

    veementemente a possibilidade de um machismo dominante. Durante sua obra trs

    pontos merecem destaque e referncia: a anlise do status da mulher na sociedade

    brasileira, o lugar da frica na interpretao da cultura negra no Novo Mundo e a

    5 Por homossexual passivo entende-se aquele que, tendo uma performance mais efeminizada, prefere ser penetrado durante a relao social. Assemelhando-se em muito com a condio feminina de submisso na

    relao sexual e de poder com os homens. Por homossexual ativo entende-se o individuo que prefere o

    ato de penetrar outro indivduo, tendo muitas vezes uma atitude mais masculinizada. A terminologia

    atualmente no tem esse valor estrito, variando tanto as preferncias sexuais, como o comportamento e

    expresso da subjetividade dentro do grupo homossexual masculino. 6 [...] Caboclo refere-se aos ndios do Brasil e esses cultos veneram espritos indgenas que acrescentam ao rol das divindades africanas. Segundo os altos padres da tradio ioruba, os caboclos so blasfemos

    porque so ignorantes e indisciplinados, porque inventaram novos deuses vontade e porque admitem

    homens aos mistrios [...] (LANDES, 2002, p. 77)

  • relao entre homossexuais masculinos e religiosidade afro-brasileira. Assim, na

    prpria sociedade brasileira que Landes ir buscar as respostas para este aumento

    gradual de mulheres e de homossexuais frente aos cultos afros.

    No contexto de sua pesquisa, Landes tenta se eximir dos debates sobre as

    sobrevivncias negras no Brasil e a influencia da frica nas manifestaes e

    permanncias dos cultos (Rodrigues, 1977), buscando na prpria cultura brasileira (e

    baiana) as respostas para o status da frica no Brasil e o movimento por ela analisado.

    Ao usar o termo passivo, referindo-se ao papel sexual do homem numa relao homo

    ertica, Landes abria moral e s tradies brasileiras uma parcela que, se no negada,

    sempre foi estigmatizada e perseguida. Mesmo sendo contra os candombls de caboclo

    e se atendo a descrever o matriarcado nag, Landes abre espao para a descrio do

    homossexualismo, sua ritualizao para os cultos afro-brasileiros e, sobretudo, dando

    existncia (enquanto pesquisa) a uma parcela da sociedade baiana e brasileira7. Assim,

    valido ressaltar ainda que os estudos de Landes afirmavam a preexistncia do

    homossexualismo em tais lderes de candombl caboclo e no que houvera uma unio

    entre ambio e religio concretizada nos pais de santo.

    Dentro das descries de suas conversas com vrias pessoas em Salvador, um

    relato de Martiniano Eliseu do Bonfim (grande lder no candombl e defensor do culto

    puro em Salvador) traz tona no apenas a separao de papis que existia entre

    homens e mulheres no candombl nag, mas tambm como os candombls caboclos

    estariam destoando do culto original: [...] e os novos templos de nao de caboclo...

    Meu Deus, esto acabando com tudo, esto jogando fora as nossas tradies! E

    permitem que homens dancem para os deuses (LANDES, 2002, p. 70). A partir desta

    afirmao fica claro que para o candombl nag baiano cabiam as mulheres as danas

    para os orixs e junto a eles nos terreiros, e no cabia aos homens essa prtica. Ao

    presenciar homens danando nos candombls de caboclo, Martiniano sinaliza um dos

    primeiro erros ritual presentes ali.

    7 Para este artigo a posio fixada por Landes de extrema valia, pois baseia e liga, teoricamente, os

    prximos autores analisados. Assim, Fry (1982) estabelecer uma relao entre os poderes mgicos dos

    pais de santo e a sua sexualidade, desviante para a sociedade, mas constitudo a partir da soma de

    elementos masculinos e femininos dentro dos contextos de poder, status e de seu prprio gnero uma

    possvel terceira margem (se assumirmos a perspectiva literria de Rosa, 1988) nos cultos afro-

    brasileiros. J Birman (1995) concentra-se, assim como Landes, em desvendar o que o gnero nos

    candombls do Rio de Janeiro, tendo como base a associao entre a feminilidade e a possesso.

  • Em todo o seu livro Landes descreve com as atividades dentro de um

    barraco/terreiro de candombl so bem delimitadas: cabe s mulheres rodantes8 o

    transe/possesso do orix, bem como as ekdis o cuidado com o orix e a casa durante

    as festas. Caberiam aos homens, na funo de ogs, liderar os cantos, os sacrifcios e a

    proteo e a manuteno da casa9.

    Nesse sentido, pode-se afirmar que Landes realiza uma diviso social das funes

    e do gnero: cabem as mulheres a liderana das casas, as danas e o recebimento dos

    orixs, enquanto que aos homens cabe o canto, os instrumentos e a

    proteo/manuteno da casa. A partir deste mundo bi partido que o elemento

    homossexual destoa.

    No texto de Landes fica claro o no preconceito dela ao homossexual, mas a clara

    acusao de exercer uma funo destinada s mulheres (seres sagrados e intermedirios

    dos deuses). Na diviso observada por Landes no cabe ao homem vestir-se e agir

    como uma mulher usar saias, espichar os cabelos e ter trejeitos femininos, pois

    contra sua natureza (LANDES, 2002, p. 76). Os homossexuais estariam, portanto,

    num limiar entre o masculino e o feminino, retirando de ambos as melhores partes e

    inserindo-as no candombl de caboclo. Neste sentido, no que este tipo de culto no

    tenha valia, mas ele no est de acordo com a diviso de gnero percebida por Landes

    em Salvador e nas casas nag. Apesar de serem homens, a homossexualidade permitiria

    nesse sentido uma efeminizao necessria ao culto.

    Se somarmos a isso a constatao de Landes que homens que tenham o dom

    medinico perdem a virilidade, tem-se uma resposta, dada pela prpria cosmologia

    nag, ao fato de que o candombl de caboclo onde os homens recebem os orixs,

    danam, se vestem como mulheres e coordenam os cantos e os instrumentos existe

    8 Por rodante, termo nativo do candombl, entende-se aquele que tem o dom medinico de receber o orix

    em seu corpo. Durante as festas, aps determinadas msicas que levam ao transe, o orix toma o corpo da

    pessoa e o utiliza para danar, atender as pessoas e abeno-las. Na umbanda utiliza-se o termo cavalo com o mesmo valor que o candombl. Maggie (2001) identifica este momento de possesso como sendo trabalhar no santo. 9 Por ekdi entendem-se aquelas mulheres que, no tendo o dom de entrar em transe/receber o orix, so

    imbudas de cuidar do rodante, das roupas do orix, enxugar o suor e auxiliar o orix a se desprender de

    seu mdium. No um cargo de menor importncia nas casas de candombl, pois estas zelam pelo

    terreiro e pelos seus bens durante as festas. Ogs so homens que, por no terem o dom

    medinico/possesso (no so rodantes), so responsveis pela conduo dos cantos e pela organizao e realizao das matanas. Tambm se responsabilizam pela proteo casa e seu custeio e, em casas

    direcionadas ao culto de eguns (cf. Cacciatore, 1998, p. 108, espritos, almas dos mortos que voltam Terra em determinadas cerimnias rituais [...]), somente eles podem lidar com tais entidades.

  • uma primazia de homossexuais passivos. Poderia-se concluir, portanto, que a prpria

    condio em que o homem se coloca que o torna homossexual.

    O texto de Landes d indcios que a populao com menor renda e com pouco

    acesso s casas tradicionais logo passaram a se utilizar dos servios destes pais de santo.

    Assim, fica claro que tanto abriu-se uma brecha/nicho de mercado, quanto a prpria

    viso do matriarcado nag, intocvel, poderoso e tradicional, dava indcios de estar em

    crise.

    O que fica claro nas concluses de Landes a situao liminar em que os

    homossexuais passivos esto: no tm a fora da tradio do matriarcado das mes de

    santo nags, no esto em casa tradicionais e com relevante peso na sociedade baiana e

    exercem atividades que agregam o arqutipo masculino e feminino da humanidade.

    Contudo, via as suas casas de candombl caboclo que conseguem legitimar suas

    aes, seus postos e conseguir uma forma de renda. A casa e a agncia que esta move

    permitem a este grupo social uma rpida ascenso e notoriedade dentro dos cultos afro-

    brasileiros, bem como uma expresso aberta de sua homossexualidade e de sua situao

    passiva frente aos homossexuais ativos, obtendo assim, como resultado final, uma

    compensao pelo status passivo e homossexual na sociedade baiana.

    4. Roger Bastide e O candombl da Bahia (2001)

    Bastide tem uma leitura da cultura e da religio africana (entenda-se culto nag)

    como sendo mais pura e menos contaminada que a umbanda. H a busca de uma

    antropologia africana na cultura nag/ioruba, sendo este postulado uma das crticas

    feitas a Bastide.

    Em sua obra O candombl da Bahia (2001) Bastide busca deliberadamente

    encontrar uma frica, ou a ideia de frica, dentro do Brasil, dando nfase na cultura em

    detrimento questo racial (como foi feito por Rodrigues, 1977). Sua obra, assim

    estabelecida, passa a expressar um tom potico ao descrever os smbolos e as

    representaes de espiritualidade dos cultos de candombl nag:

    Produzida a crise de possesso, as equedes, encarregadas de velas pelos filhos e filhas de santo, retiram-lhe o casaco se se trata de um homem, ou, em se tratando de

    uma mulher, o xale que a poderia estrangular no caso de convulses, e , antes de mais nada, os sapatos. O gesto altamente simblico: trata-se de despojar o

    individuo de sua personalidade brasileira para que retorne condio de africano. Os

    sapatos tiveram importncia capital na vida do negro americano. Forma o sinal de

    sua libertao; quando um escravo era alforriado, seu primeiro cuidado era comprar

  • um par de sapatos para igualar-se ao branco, embora muitas vezes no os calasse,

    pois seus ps, habituados a andar nus, no os suportavam. Trazia-lhes, porm,

    suspensos no pescoo pelo amarilho, ou levava-os na mo; em casa, colocava-os

    bem vista sobre um mvel, em lugar de honra. Quando o orix baixa, o negro

    recolocado na condio de africano, de participante da vida tribal de seus pais; ento

    pisar com seus ps nus a terra que tambm uma deusa [...] (BASTIDE, 2001, p. 36-37).

    Sabendo de sua atrao por diversas reas, entre elas, a psicanlise, pode-se dizer

    que na descrio dos rituais, Bastide faz uma correspondncia entre as fronteiras entre o

    mundo material e o espiritual/sobrenatural, corpo e alma, coletivo e individual,

    natureza e cultura, o cu e a terra e consciente e inconsciente (Bastide, 2001).

    Contudo, o que mais nos interessa para este artigo a posio de exceo que este

    autor tem sobre o fenmeno de homossexuais no candombl. Ele classifica a

    homossexualidade passivo (tal como utilizada por Landes, 2002) como incomum nas

    casas da Bahia e sendo um fenmeno de cunho patolgico, sendo, portanto, descartveis

    tais situaes.

    Portanto, em Bastide, a homossexualidade vista como algo secundrio e sem

    importncia, no havendo como fazer maiores leituras ou concluses devido mnima

    relevncia que isto tem para o autor. Talvez se aproximando mais de Landes (2002),

    Bastide pense num matriarcado nag como smbolo ideal de pureza africana no Brasil e

    no em raros casos de homossexualidade pblica.

    5. Peter Fry e Para ingls ver: identidade e poltica na cultura brasileira (1982)

    Ao realizar seus estudos em Belm (Par), buscando uma melhor compreenso da

    percepo de homossexuais e os cultos afro-brasileiros, Fry lana luz sobre a relao

    entre o mdium e a entidade, destacando a separao da vida secular da pessoa e a sua

    vida dedicada ao culto, a entidade no teria motivos para se intrometer na vida pessoas

    de seu mdium se este cumprisse com suas obrigaes rituais e com a casa/terreiro10

    .

    Assim, Fry parte de informaes de campo que expressam a no ligao entre a vida

    pessoal e a vida de culto dentro dos terreiros para compreender ambas as esferas de

    sociabilidade e poder. Ao separar estas duas vidas/ethos, Fry percebe como uma

    culpabilidade pelo fato de se ser homossexual tende a sumir nos debates sobre aceitao

    10 [...] As nicas restries que o culto impe sobre a sexualidade so as atividades sexuais antes e depois dos rituais e no o tipo de atividade sexual, nem o sexo das pessoas envolvidas [...] (FRY, 1982. p. 70) [grifo do autor]

  • ou reprovao e tendo, contudo, a ser valorizada e utilizada em benefcio prprio por

    alguns pais de santo.

    Fry destaca que o erro de Landes (2002) teria sido inferir aos homossexuais uma

    categoria psicologizante de ativos e passivos sexualmente falando, sem ouvir o

    prprio grupo sobre sua auto-identificao. Landes (2002) teria falhado ao prever ou

    atrelar que homossexuais passivos aos cultos de candombls de caboclo.

    Ao buscar explicaes sobre a conduta de homossexuais serem to extravagantes

    nos rituais afro-brasileiros, Fry destaca como o espao de culto danas e roupas

    pode funcionar: 1) espao de sociabilidade entre homossexuais11

    , 2) espao para a

    promoo de sua imagem (em busca de possveis parceiros) e 3) local de liberao dos

    traos de personalidade mais efeminizados no culto (ligados, por exemplo, a mdiuns

    que preferiam incorporar apenas entidades femininas para dar vazo sua sexualidade

    e condutas reprimidas socialmente). No h, porm, nenhuma comprovao, conforme

    Fry, que tais indivduos desejassem ser mulheres.

    Tal como Landes (2002), Fry v apenas uma suposta ligao/tendncia dos

    homossexuais com entidades femininas como uma possvel causa religiosa para a

    presena homossexual. Esse fato ficou apenas em especulaes entre seus entrevistados

    na pesquisa. Contudo, essas mesmas entrevistas sinalizam como os terreiros agiam

    como um espao de liberdade e de oportunidade pra determinados homossexuais: ao se

    decidirem por desenvolver a mediunidade, tais pessoas encontravam nessas casas um

    refgio contra o preconceito e a desaprovao familiar sobre sua sexualidade.

    As religies afro-brasileiras, desta forma, possuiriam um carter proftico (Fry,

    1982, p. 74): um local de afirmao e espao dos homossexuais assumidos onde se

    pode, abertamente, acusar aqueles que no assumem tal condio ou no partilham dela.

    A progresso no culto e na casa seria uma concretizao religiosa deste status liminar

    dos homossexuais entre as caractersticas masculinas e femininas numa s pessoa.

    Ao observar os pais de santo homossexuais, Fry conclui que h uma clara ligao

    entre a sexualidade destes, o uso de seus poderes mgico-religiosos e a sua afirmao

    como um gnero masculino-feminino manipulados para seu prprio bem e interesse

    11 Fry (1982) utiliza o termo bicha para referir-se ao homossexual assumido socialmente. O presente artigo, a fim de manter a unidade textual, manter o uso do termo homossexual em seu desenvolvimento,

    mas sendo sinnimo do termo bicha adotado pela perspectiva de Fry (1982).

  • (uma terceira margem como indica a obra de Rosa, 1988). A instrumentalizao

    destes trs pontos gera no apenas uma aceitao social, mas como percebe Landes

    (2002), gera um status e um campo de influencia e de poder em torno da figura do pai

    de santo. Tal instrumentalizao masculino-feminina invocada ainda por estes pais

    e filhos de santo como fonte dos poderes mgicos destes homossexuais.

    Novamente percebe-se como a imbricao entre gnero e religies afro-brasileiras

    acionada para legitimar um espao de aceitao aos homossexuais. Assim, a religio

    passaria a normalizar uma posio antes excluda e criticada pela sociedade. Se

    somarmos a isso a circulao de bens, dinheiro e favores entre os pais de santo, os seus

    filhos e os seus clientes pode-se perceber que esta circulao de ddivas (para

    pensarmos conforme Mauss, 2001) acabar reforando e retoalimentando os laos entre

    estas pessoas e solidificando uma imagem de prestgio, status e aceitao social da

    homossexualidade.

    Conclusivamente pode-se dizer que Fry utiliza trs argumentos para proceder com

    esta anlise: Os homossexuais so atrados para estes cultos por serem um espao de

    homossexualidade; Os espaos dos cultos so considerados desviantes e/ou marginais

    na sociedade, tanto quanto a homossexualidade, da a busca por um local adequado ao

    desvio homossexual; Estar a margem ou ser desviante permite ao indivduo uma

    liberdade de ao fora das regras de moral, pureza e costumes vigentes o estar fora

    permite aos sujeitos um campo de ampla ao.

    6. Patrcia Birman e Fazendo estilo criando gnero: estudo sobre a construo

    religiosa da possesso e da diferena de gnero em terreiros de umbanda (1995)

    Birman defende que os gneros produzidos nos terreiros so inerentes e

    especficos quelas realidades, no havendo como utilizar categorias externas

    homossexuais, heterossexuais, ativos, passivos e bichas para rotular e

    compreender as relaes de classificao ali presentes.

    Birman desloca o eixo de explicao para o grupo, de forma que este possa

    expressar a si mesmo e s suas caractersticas. Neste sentido, at mesmo a generalizao

    cultos afro-brasileiros seria falha, pois a autora percebe diferenas entre o candombl

    e a umbanda.

    Assim, na possesso e na arquetipia que esta traz ao sujeito que Birman encontra

    o marco divisor do gnero no candombl. Os homens que recebem o santo

  • (denominados de ads) passam a operar num mundo eminentemente feminino, sendo

    esperado deles toda uma performance roupas e danas com extremo requinte e

    perfeio, diferentemente das yas (mulheres que recebem o santo) e que representam

    uma feminilidade natural. Assim, espera-se dos ads uma efeminizao quase

    obrigatria (o que aproxima Birman de Landes, 2002, com a homossexualidade

    ritualizada).

    A tese defendida por Birman que estes ads tendem a buscar maior status na

    casa, trilhando o caminho como pais de santo ou como ogs. O status e o prestgio

    seriam o objeto final e, de certa forma, a compensao por abdicaes durante os anos

    de preparao e dedicao ao santo. Esta perspectiva no deixa de ser correlata s

    observadas por Fry (1982), por Landes (2002) e por Maggie (2001) em contextos de

    conflitos e disputas por legitimidade dentro dos grupos.

    Birman pergunta se o candombl e a umbanda so religies to diferentes a ponto

    de o candombl possuir maiores acusaes sobre a homossexualidade que a umbanda. A

    questo : a natureza do culto to diferenciada a ponto de aceitar mais ou menos esta

    sexualidade? A autora conclui que sim e que isto deve ser bem explorado (Birman,

    1995, p. 14).

    Assim, fica claro a necessidade de se observar como o mundo do sagrado toca o

    mundo profano e como estes momentos tendem a ser diferenciais tanto no culto, quanto

    na observncia da homossexualidade. Nesse sentido que Birman pode afirmar a

    presena de um ethos no candombl que liga as prticas mundanas a um conjunto de

    prticas referentes ao orix. Esse ethos, identificado por ela como masculino, opera no

    sentido em que

    [...] trata-se de valorizar uma esttica de difcil acesso assumindo, por vezes, sem qualquer constrangimento, a mxima explorao possvel em termos de riqueza e

    luxo e do seu candombl, da aparncia do seu santo. [...] A tradio, enquanto ethos masculino, no admite nada alm de uma maliciosa explorao de valor da diferena e o desprezo manifesto por todos que, diferentemente dessa vanguarda mundana, se pegam a atribuir tradio vnculos com certos valores morais, com certas exigncias que escapolem da nica verdadeiramente fundamental para a

    manuteno de suas identidades. (BIRMAN, 1995, p. 53) [grifos da autora]

    Assim, adequar-se a seu santo adequar-se a uma vida especfica, mesmo se esta

    possuir um tom alternativo ou libertrio sexualmente falando. De qualquer forma,

    elementos da tradio negra africana sero acionados para compor este ethos. Na

    umbanda, diferentemente,

    O que estabelecido como valores moralmente corretos compreendido como sendo a realizao de que o significante tradio exige. A fidelidade ao modo como as pessoas so feitas corresponde a um determinado contedo que aquele

  • conhecido por seus guias e de acordo tambm com responsabilidade que as pessoas

    moralmente corretas detm diante da vida [...] (BIRMAN, 1995, p. 56).

    Neste sentido, o ethos umbandista teria, para Birman, um carter mais feminino

    em sua composio ligado a manuteno de uma tradio imutvel. Frente a estes dois

    ethos possvel traar um senso que os terreiros de candombl [...] so lugares em que

    h uma particular concentrao de indivduos que so referidos como bichas ou como

    dito nos textos acadmicos, homossexuais [...] (BIRMAN, 1995, p. 58).

    A autora levantar a hiptese de que o prprio candombl tenha permitido a

    criao de modos de viver, que desejos existissem e se apresentassem como reais. O que

    se coloca em questo, portanto, como a instituio candombl permite que desejos e

    pulses de certo grupo social (homossexual) fossem reconhecidos como verdadeiros e

    pudessem buscar formas de concretizao a possesso, o uso de roupas e adereos,

    danas e trejeitos?

    Partindo disto, torna-se nulo o argumento de homossexuais passivos utilizados

    por Landes (2002). No se toma uma preferncia de ao sexual, mas sim um grupo

    todo, que tende a se expressar pelos meios da organizao do culto aos orixs. No h

    como aceitar, conforme props Landes (2002) uma suposio neutralizadora

    (BIRMAN, 1995, p. 73). Assim,

    [...] toda a discusso entre Landes e os outros autores pode ser compreendida como uma tentativa subreptcia de colocar na mesa de negociaes algumas percepes

    dos gneros, apontando, por esse mtodo, as inmeras (e quase impossveis de ser

    serem escondidas) dvidas a respeito das classificaes utilizadas pelos

    pesquisadores [...] (BIRMAN, 1995, p. 73-74).

    O que, portanto, deve-se concluir nos estudos de Birman como a possesso est

    associada feminilidade. Para chegar a este ponto, a autora recorre prpria

    cosmologia do candombl: a possesso e a feitura da cabea podem causar problemas

    masculinidade, pois o uso de determinadas folhas, como a catioba que possui

    caractersticas andrgenas em sua anatomia, podem alterar o estado da masculinidade.

    A leitura uma interpretao de uma magia por contato (Fraser, 1982) e,

    portanto, torna-se possvel que a feitura de uma cabea possa alterar, no contato com o

    ax12

    da folha em questo, a natureza biolgica do homem. Assim, com a prtica da

    possesso, a masculinidade estaria seriamente prejudicada.

    12 Conforme Cacciatore (1988, p. 56) o ax a fora dinmica as divindades, poder de realizao, vitalidade que se individualiza em determinados objetos, como plantas, smbolos metlicos, pedras e

    outros que constituem segredo [...].

  • Para amarrar este argumento, Birman recorreu sua bibliografia a respeito dos

    cultos afro-brasileiros (Birman, 1995, p. 88) e como elas indicam uma relao

    obrigatoriamente feminina na possesso, e como isto est ligado a um conceito de

    maternidade (feminino, portanto). Tambm a partir da analise bibliografia realizada por

    ela pode-se concluir que o og, dentro do contexto do candombl, representa o lado

    masculino do culto custear, proteger e manter, tal como um pai/figura masculina o faz.

    Assim, a feitura e a possesso so fcies femininas das mes de santo que so

    complementadas pelo lado masculino dos ogs. Dessa forma, obtm-se o que Birman

    identifica como uma famlia-de-santo, ou seja, uma organizao complementar e vital

    de duas partes interdependentes que, em conjunto, tornam o terreno funcional.

    Faz-se necessrio, portanto, entender como vista a homossexualidade dentro dos

    terreiros de candombl. Birman destaca a competncia em incorporar o santo como

    uma caracterstica amplamente difundida e altamente competitiva nos terreiros. Quem

    incorpora com melhor competncia, com um arqutipo bem prximo ao do orix e

    tem as melhores roupas e movimentos, tende a ser invejado pelos que no viram no

    santo (ogs e ekedis) e pelos demais rodantes da casa.

    nessa competncia que Birman percebe que se insere a mudana de gnero nos

    homens. A competncia liga-se ao princpio feminino da incorporao e da feitura,

    passando a ser balizada pela feminilidade. Desta forma, quanto mais explcita for a

    identidade de gnero do filho de santo na assuno de aspectos femininos, ou seja,

    quanto mais exibido, mais ele tender a no ser visto do lado dos homens e ser

    colocado do lado das bichas, tendo menos respeitabilidade [...] (BIRMAN, 1995, p.

    103). Portanto, a possesso masculina transitaria num espao que requer extrema

    performance/empenho para lidar e para expressar um principio que no seu, mas que

    se torna seu constituinte.

    Birman deixa claro, ento, a diferena entre filhos de santo que seriam

    constantemente inquiridos e vigiados quanto a essa efeminizao e os ads que se

    reconhecem como homossexuais e reivindicam para si o prprio termo ad13

    que tem

    valor de bicha.

    A possesso, portanto, d ao ad uma forma de sublinhar e dar notoriedade a estas

    identidades, explorando claramente os elementos femininos da possesso. Assim, trata-

    13 Conforme Cacciatore (1988, p. 38) ad um diadema de metal ou seda e bordados, com franjas de vidrilhos, arrematado atrs por um lao de oj de cabea. Paramento usados pelos orixs Oxum, Yemanj,

    Ians e Nan quando, incorporados, vm danar em festa pblica no terreiro. um feito de metal ou cores

    especiais do orix, sendo uma reminiscncia das coroas dos reis iorunabas.

  • se de uma apropriao consciente, voluntria e altamente rentvel de traos femininos.

    Num certo sentido poderamos dizer que a utilizao destes traos femininos exarceba o

    que seja a feminilidade e coloca o ad em uma situao de destaque no grupo. As

    possveis perdas ou constrangimentos relacionados homossexualidade so apagados

    ou diminudos frente a uma boa performance e apropriao do principio feminino

    fundante do candombl.

    Conclui-se, ento, que em Birman essa associao entre possesso e feminilidade

    nos ads tende sempre a ser acionada como fonte de legitimao, carisma e poder junto

    aos demais membros da casa, sendo a feminilidade instrumentalizada no mbito

    sagrado, mas exarcebada/demonstrada em momentos profanos dos homens. Em ambas

    as instncias da vida humana, interesses de status esto acionados e operantes.

    7. Yvonne Maggie e Guerra de orix: um estudo de ritual e conflito (2001)

    Centrando seu estudo num conflito entre membros e entidades de um terreiro de

    umbanda na zona norte do Rio de Janeiro, Maggie tem neste conflito a fonte de sua

    etnografia e das analises que fez sobre o surgimento, o desenvolvimento e o termino

    deste local de culto afro-brasileiro. A sua obra no refere-se, diretamente, ao

    homossexualismo, mas ao relatar a trajetria de vida e das entidades recebidas por

    Mrio (o presidente do terreiro e seu aluno de graduao em cincias sociais), temos

    uma indicao da imbricao entre o gnero da entidade e o gnero de Mrio.

    A relevncia desta obra, portanto, est nesta imbricao e nas consequncias dessa

    na vida de Mrio. No h uma referncia clara a uma possvel homossexualidade em

    Mrio, mas os processos de efeminilizao trazem uma srie de informaes de como

    a conduta deste cavalo foi modificada por sua pomba-gira. Interessa-nos, portanto,

    perceber como a entidade utiliza o seu cavalo como agncia de promoo de sua

    identidade, desejos e aes e como estas tem um reflexo negativo na auto-percepo de

    Mrio sobre sua masculinidade e, consequentemente, sobre seu prprio gnero e sobre o

    novo gnero desenvolvido com a entidade.

    Tal como Landes (2002), Maggie tambm observa uma diviso de tarefas e de

    prescries pelo gnero: a hierarquia espiritual e a hierarquia material. Contudo, tais

    papis so menos fixos que no caso dos candombls nags da Bahia. O que nos

    interessa, porm, que Mrio ocupava o cargo de presidente do terreiro e como tal,

  • [...] zelava pelos problemas que surgissem na casa, como pagamento de contas,

    arrumao, consertos de pequenas coisas quebradas etc. Tinha tambm de arrecadar

    dinheiro para o pagamento do aluguel, e era o locatrio da casa (MAGGIE, 2001, p.

    28). Portanto, pode-se supor que, nesse cargo, a cobrana por seriedade para com Mrio

    seria extrema e uma transformao/adaptao de sua imagem mais prxima de

    Pomba-gira poderia ser prejudicial (fato que tem menor importncia se considerado o

    conjunto total de conflitos que resultaram no fim da casa)14

    .

    Maggie descreve como era comum ao grupo receber entidades masculinas e

    femininas, tanto orixs como entidades (exus, pretos-velhos, caboclos, pombas-giras,

    ciganas, entre outros). Mrio aparece no inicio da pesquisa recebendo mais

    corriqueiramente seu boiadeiro, que ele mesmo ligava a uma expresso de sua

    subjetividade que no conseguia trabalhar, mas que era acionada pelo boiadeiro:

    Como sou um indivduo de grande sensibilidade, quase uma sensibilidade feminina, acho que interiormente tenho uma fora bem mscula. Ento ele se

    exterioriza atravs do boiadeiro. Como acho que no consegui exteriorizar essa fora

    mscula por causa de vrios processos de condicionamento, ento ela se exterioriza

    atravs do boiadeiro e me sinto melhor com o boiadeiro [...] (MAGGIE, 2001, p. 90)

    Com o transcorrer da pesquisa e do desenvolvimento do terreiro, o prprio Mrio

    comeou a destacar a presena constante de pomba-gira e como ela, com o

    desenvolvimento do conflito, passava a ter maior importncia como entidade e para a

    situao conflituosa da casa. O prprio Mrio, quando questionado sobre ela, relatava o

    processo de efeminizao que a pomba-gira exigia dele, e que aos seus olhos e aos

    dos membros da casa, poderia lhe trazer problemas quanto sua liderana e a como

    seria visto: automaticamente, se ela feminina eu fico efeminado e o problema

    justamente esse. Que a maioria das pessoas nunca vo me ver como homem. Vo me

    ver como efeminado depois que ela for embora... e causa uma srie de transtornos [...]

    (MAGGIE, 2001, p. 91).

    O que pode ser percebido no estudo de Maggie que o plano material acaba

    sendo um reflexo do plano espiritual. Assim, se a pomba-gira extremamente feminina

    (como a de Mrio se tornou), logo seu cavalo/mdium se tornar to feminino quanto

    14 Pode-se somar a isso o fato de ser estudante de cincias sociais e aluno de Maggie. A prpria autora

    relata situaes em que o papel de estudante e seu aluno foram acionados na busca por legitimidade

    dentro do grupo.

  • ela. Assim, as imagens tendem a se fundirem numa nica representao arquetpica e de

    status no grupo.

    No caso analisado por Maggie, o lado composto por Mrio ganhou a disputa

    contra o pai de santo. Observando como o prprio discurso de Mrio indicava uma fora

    maior em pomba-gira e no arqutipo que ela traz consigo, fica fcil perceber como esses

    traos efeminados, que poderiam ser ligados a homossexualidade, foram acionados no

    intuito de ganhar espao, status e poder dentro do conflito instaurado. Longe de ser uma

    manifestao pejorativa, como eram os homossexuais passivos em Landes (2002), o que

    se percebe a valorizao destes traos, ou um reforo do arqutipo da entidade

    feminina, na busca por legitimao e por poder no desenrolar dos fatos.

    Aqui, portanto, tais traos que tambm tendem a ser ritualizados e somados

    conforme o desenvolvimento da entidade so valorizados pela pessoa e pelo grupo,

    sendo, portanto, meio de expresso no apenas do religioso, mas da agncia do sujeito.

    8. Concluses

    Aps esta reviso dos autores e de como cada um deles trabalha com a

    homossexualidade em cultos afro-brasileiros cabe perguntar, ento, como este tema tem

    aparecido na literatura de gnero e religio? De que forma a cultura afro-brasileira e as

    suas atualidades, por exemplo, os conceitos de dispora negra (Heywood, 2009), de

    histria tnica e religiosa (Pars, 2007), de identidade territorial (Nascimento, 2010),

    tm sido influenciados ou influenciam a percepo da homossexualidade?

    Caberia a produo de outro artigo para dar conta de todas essas questes.

    Contudo, algumas concluses podem ser descritas, tendo como base a percepo que, a

    partir da bibliografia escolhida e analisada aqui, os autores mantm um nvel de

    correlao e de continuidade entre as suas ideias e os seus textos.

    Inicialmente, a homossexualidade aparece como um meio de agncia desses

    sujeitos. Aquela e suas caractersticas tm sido acionadas no intuito de legitimar

    espaos, status social, carisma e influncia sobre os demais membros das casas/terreiros

    e sobre a sociedade em geral.

    Toda a bibliografia analisada foi unnime em destacar o tom de reprovao social

    da homossexualidade. Nesse sentido, o culto, a preparao e a performance dos

  • homossexuais tendem a atuar como mediadores dessa reprovao e como meio de

    reinsero ou aceitao dessas pessoas na sociedade.

    Assim, a religio passa a ter uma caracterstica integradora e aditiva sobre essa

    classe social historicamente negada, excluda e violentada, fsica e ideologicamente,

    pelo senso comum. Tal fato passou despercebido a Bastide (2001) ou no era o foco de

    sua leitura potica do candombl baiano.

    A anlise tambm permitiu perceber de que forma esse grupo trata as fronteiras

    entre o masculino e o feminino como sendo mais fluidas e como no sendo to fixas. A

    utilizao de traos mais ou menos masculinizados ou feminilizados acionada no

    apenas no mbito do sagrado, mas tambm, no mbito do profano para, novamente,

    direcionarem uma mudana no status do sujeito. Basta, por exemplo, atermos as

    observaes de Landes (2002) de como a direo de uma casa de candombl de caboclo

    permitia aos homossexuais uma renda maior e um trnsito social em classes acima as

    das suas. Esse um fato que no ocorreria se eles se mantivessem na prostituio e na

    prtica de pequenos roubos.

    Tambm Fry (1982) destaca a imerso nos cultos afros como sendo uma soluo

    para os problemas de moradia, de alimentao e de proteo para muitos homossexuais,

    tendo em vista a sua no aceitao familiar. O terreiro, assim, aparecia como uma

    possibilidade de independncia atrelada ao desenvolvimento medinico.

    Se observarmos o caso estudado por Maggie (2001), veremos como a religio tem

    a capacidade de movimentao de pessoas na autoajuda, na fundao de um local de

    culto e na obteno e na manuteno da renda para os prprios membros da casa.

    Mesmo com a descrio do conflito entre Mrio e seu pai de santo, possvel perceber

    como um grupo de pessoas se mobilizou para a efetivao de um local de culto e de

    renda.

    Ainda em Maggie (2001) fica relativamente claro observar como a religio pode

    moldar a forma com que os homens, para nos atermos ao tema estudado, sofrem uma

    manipulao e uma ressocializao com a entrada em cultos afros. Em Birman (1995) e

    em Fry (1982), percebemos mais claramente a fora que as religies afro-brasileiras tm

    de darem conta da forma e da existncia de um grupo social, bem como de criarem

  • meios em suas cosmologias de abarcarem essas diferenas e de as trabalharem, mesmo

    que numa perspectiva de conflito (Turner, 1964), essa integralizao.

    Assim, reforamos, conclusivamente, o carter agencial que essas religies

    exercem sobre os sujeitos, podendo as possibilidades de ganho serem maiores e, assim,

    compensadoras de um ato de auto indicao/identificao de homossexualidade. Talvez

    isso aponte para dados no confirmados do aumento atual do nmero de homossexuais

    em religies com essas matrizes e possa explicar a busca dessa classe social por locais

    de culto, seja por filiao, pela feitura da cabea, pela iniciao na gira.

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