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Folia de Reis: o protagonismo da mulher no espaço a ela sempre negado Andiara Barbosa Neder 1 Articular gênero, cultura e religião foi o que motivou a construção deste artigo. Discutir como se dão as relações de gênero no interior da Folia de Reis como uma expressão cultural religiosa de caráter androcêntrico, se mostra como um desafio interdisciplinar, que requer o diálogo entre os três elementos supracitados. Gênero, enquanto categoria analítica, apresenta grande transversalidade, permitindo o diálogo com outras áreas de saber. Neste artigo “gênero deixa de ser percebido como ‘tema’ e ganha o status de uma perspectiva de análise que perpassa quaisquer temas, possibilitando outros olhares para as ‘realidades’ sociais” (BELELLI, 2013, p. 638). Dessa forma, na análise engendrada neste estudo, o gênero transitará no contexto religioso e cultural da Folia de Reis e buscará refletir acerca da importância das mulheres nesse contexto, percebendo-o como um espaço de permanências e transformações. 1 Folia de Reis Neste momento, para situar o leitor, é necessário de antemão apresentar a manifestação religiosa e cultural que será pesquisada e suas características centrais e rituais principais. A Folia de Reis se caracteriza pela visita às casas de devotos entre os dias 25 ou 31 de dezembro a 6 de janeiro. A jornada ou giro é entendido como o caminho percorrido pelos foliões até chegar à casa dos devotos durante esses dias. A narrativa mítico-cosmológica que dá sentido ao giro é a caminhada dos Magos, guiados pela estrela, até chegar ao Menino Jesus, descrita no Evangelho Segundo Mateus 2, 1-23. Giovannini (2005, p. 15) descreve a jornada da festa da seguinte forma: Os devotos caminham durante seis noites, de casa em casa, fazendo à semelhança dos Reis, como se estivessem seguindo a estrela guia, aquela 1 Doutoranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientanda do Prof. Dr. Volney J. Berkenbrock.

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Folia de Reis: o protagonismo da mulher no espaço a ela sempre negado

Andiara Barbosa Neder1

Articular gênero, cultura e religião foi o que motivou a construção deste artigo.

Discutir como se dão as relações de gênero no interior da Folia de Reis como uma

expressão cultural religiosa de caráter androcêntrico, se mostra como um desafio

interdisciplinar, que requer o diálogo entre os três elementos supracitados. Gênero,

enquanto categoria analítica, apresenta grande transversalidade, permitindo o diálogo

com outras áreas de saber. Neste artigo “gênero deixa de ser percebido como ‘tema’

e ganha o status de uma perspectiva de análise que perpassa quaisquer temas,

possibilitando outros olhares para as ‘realidades’ sociais” (BELELLI, 2013, p. 638).

Dessa forma, na análise engendrada neste estudo, o gênero transitará no contexto

religioso e cultural da Folia de Reis e buscará refletir acerca da importância das

mulheres nesse contexto, percebendo-o como um espaço de permanências e

transformações.

1 Folia de Reis

Neste momento, para situar o leitor, é necessário de antemão apresentar a

manifestação religiosa e cultural que será pesquisada e suas características centrais

e rituais principais. A Folia de Reis se caracteriza pela visita às casas de devotos entre

os dias 25 ou 31 de dezembro a 6 de janeiro. A jornada ou giro é entendido como o

caminho percorrido pelos foliões até chegar à casa dos devotos durante esses dias.

A narrativa mítico-cosmológica que dá sentido ao giro é a caminhada dos Magos,

guiados pela estrela, até chegar ao Menino Jesus, descrita no Evangelho Segundo

Mateus 2, 1-23. Giovannini (2005, p. 15) descreve a jornada da festa da seguinte

forma:

Os devotos caminham durante seis noites, de casa em casa, fazendo à

semelhança dos Reis, como se estivessem seguindo a estrela guia, aquela

1 Doutoranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientanda do Prof. Dr. Volney J. Berkenbrock.

que brilhava no céu, iluminando o caminho em direção à Belém, onde se

encontrava o recém-nascido na manjedoura, junto com sua mãe Nossa

Senhora e seu pai São José.

A manifestação é composta pela caminhada até a casa do devoto, seguida pelo

ritual da chegada, no qual entoam versos anunciando a presença da Folia e pedindo

aos donos da casa que acendam a luz da varanda ou do terreiro demonstrando assim

que aceitam a visita. Aberta a porta, o dono da casa recebe a Bandeira2 em suas mãos

e é chegada a hora da Profecia que conta a história dos Reis Magos e o nascimento

de Jesus. As profecias são “os versos mais importantes, aqueles que falam da viagem

dos Reis e do nascimento do Menino. São versos tradicionais cantados somente

dentro de casa, igreja ou cruzeiro. Chamados de profecias, versos de Reis ou trechos

de Reis” (GIOVANNINNI, 2005, p. 21). Logo, o devoto caminha com a Bandeira pelos

cômodos da casa para que ela confira a sua bênção aquele lar, e guardam-na em um

quarto junto com os instrumentos para que os foliões possam fazer um lanche

oferecido pelo anfitrião (GIOVANNINNI, 2005, p. 21). Mais tarde é a vez da Chula do

Palhaço, entendida como a performance interativa deste brincante com a plateia,

através de versos e danças. É o momento mais esperado pela assistência3. A Folia

só cessa a sua jornada no dia 6 de janeiro, dia dos Santos Reis, com o Ritual da

Entrega da Bandeira. 4

2 O catolicismo e os papéis de gênero

2 Bandeira é o objeto sagrado da Folia. É um estandarte composto pela imagem dos três Reis Magos, coberta por densa camada de fitas e sobre tudo um tule protetor. A Bandeira é sempre ricamente enfeitada com adornos de todo tipo: além das fitas observa-se a presença de flores artificiais, terços, correntinhas de enfeitar árvore de natal, festão, e o que mais julgarem merecer estar junto ao mastro da Bandeira. 3 Plateia que assiste a performance do palhaço, oferecendo-lhe dinheiro em troca de seus gracejos e piadas. Está sempre em interação com o mascarado. 4 Ritual entendido como o encerramento da jornada da Folia naquele ano, geralmente realizado no dia 6 de janeiro, dia de Reis, de acordo com o calendário da Igreja Católica. Geralmente (mas não necessariamente) se entrega a bandeira na casa do dono da Folia e este oferece uma festa para recebê-la de volta. Neste ritual o palhaço se arrepende de todo mal, se considerado Herodes ou um de seus soldados. Vai de joelhos ou mesmo arrastando até a bandeira se despindo da farda e da máscara. Quanto mais emocionado está o palhaço neste ritual, maior a ênfase no seu arrependimento. Alguns encenam o pranto, outros de fato choram neste momento. Quando alcançam a Bandeira pedem a sua bênção de joelhos e beijam o símbolo ritual sagrado, em sinal de respeito, adoração e fé.

Ao analisar o fenômeno religioso é preciso compreendê-lo enquanto uma

construção sociocultural, “situada, limitada e orientada socialmente, influenciando e

sendo influenciada pelo meio que a gestou” (SOUZA, 2004, p.1). Dessa forma, é

preciso compreender que esse sistema sócio cultural construído não só é

permanentemente remodelado e ressignificado como também remodela e redefine as

sociedades em que se insere. Mesmo nos contextos mais secularizados, as religiões

ainda se manifestam como instituições produtoras de sentido, e ainda exercem

influência no cotidiano das pessoas, se mostrando eficazes na construção e

redefinição das identidades de gênero (SOUZA, 2004, p.2).

Dessa forma, é válido ressaltar o papel da Igreja Católica como propagadora e

mantenedora de uma cultura patriarcal. Historicamente a Igreja Católica se define no

Ocidente como um dos pilares que sustenta as relações hierarquizadas entre os

sexos, sempre ativa no processo de naturalização de formas assimétricas que

permeiam as relações de poder que tocam os papéis de gênero (LOPES et al., 2011,

p. 333). Aliás, “desde o triunfo do cristianismo no Império Romano, a cultura patriarcal

judaico-cristã modelou os papéis sociais de homens e mulheres, santificando a

opressão masculina e a inferiorização feminina” (BELLOTTI, 2007, p. 1).

Na região da Zona da Mata de Minas Gerais, especificamente no pequeno

município de Leopoldina, onde essa cultura patriarcal judaico-cristã se reproduz e a

sua força no imaginário da população mantém a desigualdade entre os gêneros, a

Folia de Reis é uma manifestação popular bastante expressiva. Nesta localidade a

religiosidade católica se mostra muito forte, a cultura e os saberes populares se

propagam a partir da tradição oral e se remodelam e ressignificam através do tempo.

A permanência do folguedo se deve também à sua dinâmica de adaptação diante da

modernidade. Portanto, as mudanças na prática da Folia, como a inserção feminina

na festa outrora exclusivamente masculina, não devem ser encaradas de maneira

negativa ou como perda de uma tradição e sim como um esforço natural no sentido

de continuidade e permanência da tradição nos dias atuais. Giovannini (2005, p. 17)

explicita essa questão na seguinte passagem:

As folias de Reis da Zona da Mata de Minas Gerais têm suas raízes na zona

rural do princípio do século XIX, no início da colonização da região, e por

isso seu ritual tradicional se refere a uma realidade diferente da realidade

urbana do século XXI. Mas os rituais se modificam e se adaptam às novas

circunstâncias, o que evidencia sua insistência em permanecer diante da

vida contemporânea, revelando sua capacidade dinâmica de adaptação. Por

isso, as eventuais mudanças na tradição não devem ser encaradas como

negativas, pelo contrário, fazem parte da história, são sinais da criatividade

da cultura popular.

O contexto no qual se desenvolve inicialmente a Folia de Reis em Leopoldina,

século XIX, é caracterizado por uma realidade essencialmente agrária. De acordo com

o site oficial do município, em 1883 chegou apresentar o segundo maior número de

escravos da província de Minas Gerais. O que pode esclarecer a presença de traços

culturais africanos junto às manifestações populares em Leopoldina, como na Folia

de Reis, na qual essa influência se mostra efetiva. Dessa forma, a religiosidade de

matriz africana aparece diluída na crença, na fala e na performance desses foliões e

devotos. Ao mesmo tempo em que essas pessoas se apresentam como católicas, em

outros momentos em suas palavras revelam traços de religiosidade africana, como

por exemplo, quando citam a figura do pai de santo, objetos como o cordão de sete

guias, e os terreiros no pedido de proteção.

Essa dinâmica cultural torna-se evidente quando explicita que “hoje um devoto

dos Santos Reis se vê e/ou se legitima como católico, mesmo investindo na prática

de diversos trânsitos religiosos” (MENDES, 2007, p. 39). Portanto, é possível perceber

a dinâmica cultural que permeia o universo religioso da Folia e que faz parte do

processo pelo qual se consolidou a religião católica no Brasil:

Pensando na dinâmica cultural que o Brasil vivenciou e ainda vive de

maneira muito pulsante, é que percorremos algumas páginas da

historiografia sobre a forma encontrada pelos brasileiros de praticar sua

religião de modo tão original, e da instituição religiosa de lidar com esse

fenômeno (MENDES, 2007, p. 36).

Mendes (2007) prossegue mostrando que essa realidade não fez com que

essas pessoas se julgassem menos católicos, tampouco se entendessem como

praticantes ou criadores de uma nova religião. O catolicismo no Brasil se ressignificou

e se adaptou. Esses processos são contínuos e persistentes, e podem ser percebidos

nos rituais da Folia de Reis, que se remodelam, mas sempre guardam e preservam

algo que julgam de fundamental relevância. Como bem explicita Mendes (2007, p.30):

“há sempre algo que permanece. Este algo é o responsável pela tradicionalidade, pois

no contato com os sujeitos, entendemos que, sem a tradição muito da identidade

cultural religiosa pode se exaurir”.

A Folia de Reis, apresentando essa mescla de crenças, própria do Catolicismo

Santorial5 ao qual pertence, tende a articular influências de diversas crenças e

religiosidades, difusas em sua manifestação. As contribuições admitidas nesse

contexto influenciam a dinâmica dos giros de alguns grupos, como os locais a serem

visitados e/ou reverenciados, e também as crenças e atitudes de seus componentes.

Dessa maneira, seria relevante questionar se tais influxos também não seriam

capazes, de algum modo, influenciar na percepção dos foliões sobre a presença

feminina nos giros. Para compreender como isso poderia ocorrer, faz-se necessário

antes clarificar a ideia acerca do papel de filhas, esposas, vizinhas, comadres e tantas

outras figuras femininas muitas vezes esquecidas ou invisibilizadas nesse contexto

androcêntrico da Folia de Reis.

O papel da mulher na Folia é central, apesar de raras vezes elas participarem

do cortejo. Isso porque a Folia de Reis, em Leopoldina, é uma tradição que remonta

ao século XIX. A Folia da Serra, conhecida como a mais antiga da cidade, iniciou suas

atividades em 1816. Os foliões apontam que nessa época as mulheres não podiam

sair pela noite, não era correto tampouco usual. Além disso, no mito bíblico que dá

origem à Folia, não há Mago do sexo feminino, também não consta que esses

personagens tenham sido acompanhados por suas esposas ou outras mulheres.

Sendo os foliões a representação desses Magos, não há de acordo com a tradição,

espaço para as mulheres na jornada. Portanto, elas sempre participaram com a sua

devoção e dedicação, mas excluídas do cortejo.

5 Religião híbrida e plástica, que admite a influência de crenças e religiosidades outras. Caracteriza-se pela relevância do leigo e pelas festas dedicadas aos santos, nas quais sagrado e profano se misturam e convivem em um mesmo espaço e tempo.

Entretanto, as mulheres se configuram como peças chaves na manutenção da

tradição. São elas as responsáveis por tecer uma forte rede de relações e que se auto

renova a cada ano. Muitas vezes a mulher é que faz a promessa para os Santos Reis

em um momento de aflição, já que, como afirma Birman (1996), são consideradas

mais assíduas em rituais religiosos e mais atuantes em suas práticas. Quando se

alcança a graça, ela paga a promessa oferecendo um farto almoço ou jantar à Folia

que levou seu pedido aos Santos. Às vezes, promete oferecer o jantar por sete anos

seguidos, mas acaba adquirindo tal compromisso por toda a vida como forma de

gratidão. Assim, as figuras femininas da comunidade na qual se insere a Folia de Reis

são as promotoras da festa, pois são elas que reafirmam e intensificam a demanda

de antigas e novas visitas a cada ano.

Quando a Entrega da Bandeira6 se realiza na Igreja da comunidade, as

mulheres estão sempre à frente do movimento, preparando, limpando, ornamentando

o espaço à espera dos foliões. E durante a festa, enquanto a Folia toca para os fiéis

no interior da Igreja elas preparam o almoço na cozinha. Como acontece todos os

anos na Igreja da Serra dos Barbosas, localidade da zona rural de Leopoldina.

Não é dado recente que a “presença feminina se destaca na manutenção dos

costumes simples, porém marcantes quanto à identidade religiosa da população

(BARBOSA, 2011, p. 49)”. Desde a romanização as mulheres começam a ser

inseridas de maneira mais ativa no contexto da Igreja, justamente para mantê-las

dentro de uma perspectiva conservadora e longe das aspirações liberais que

começavam a circular (BARBOSA, 2011, p. 46).

Manifesta-se como uma ideia corrente na Ciência da Religião de que as

mulheres representam a maioria nas igrejas ou cultos religiosos. Birman (1996, p. 207)

assevera que há uma predominância nítida de mulheres nos assuntos religiosos.

Observa que em função de “uma clássica divisão de trabalho entre os sexos, caberia,

pois, às mulheres as lides religiosas e o trabalho doméstico bem como o cuidado das

relações familiares” (BIRMAN, 1996, p. 207). Divisão essa legitimada pela Igreja

6 Um dos rituais de maior relevância para a Folia de Reis. Ritual solene realizado no último dia de giro da Folia, em que se faz uma grande festa para finalizar a atividade do grupo naquele ano.

Católica, que através da ratificação de uma cultura patriarcal judaico-cristã, sacralizou

a dominação masculina e justificou a submissão feminina.

Porém, essas atribuições religiosas que ficaram a cargo da mulher não significa

ter autoridade ou liderança nesse contexto. Desde a seleção dos textos canônicos

que compõem o Novo Testamento da Bíblia que temos acesso hoje, já se percebe a

intenção de minar toda e qualquer possibilidade de se propor que uma mulher pudesse

ocupar uma posição de liderança apostólica. De acordo com King (1998), foi a partir

dessa ideia que se excluiu o Evangelho de Maria de Mágdala da lista dos textos

oficiais. A preferida de Jesus por sua maturidade espiritual, a discípula devotada,

profetisa, mestra, líder foi “confundida” com a prostituta arrependida no século II

(KING, 1998, p. 40). King (1998, p. 41) contribui afirmando que tal “confusão” não foi

mero erro interpretativo, foi uma estratégia de cunho patriarcal para definir papéis de

gênero e solapar a liderança e importância de mulheres na teologia oficial da Igreja.

As mulheres nunca foram atores marginais na formação do Cristianismo, sua

marginalidade foi produzida. “O cânon e a ‘ortodoxia’ foram inventados, em parte, para

excluir as mulheres de posições de liderança e autoridade” (KING, 1998, p. 47).

Percebe-se que o Novo Testamento não é neutro, “é tendencioso em favor dos que

têm posição social mais elevada, sobretudo homens instruídos e letrados, que

defendiam um ideal patriarcal que incluía a subordinação da mulher” (DEWEY, 1998,

p.37). Dessa forma, segundo Dewey(1998), as histórias relacionadas às mulheres que

entraram no cânon foram distorcidas e banalizadas. Por isso que Fiorenza (1998, p.7)

assevera que autoridade canônica tem gênero: “os textos e tradições são não apenas

androcêntricos mas também kyriocêntricos, ou seja, articulados no interesse dos

homens da elite, brancos, ocidentais e instruídos. O gênero como instrumento de

dominação é sempre tingido de raça, classe, cultura, idade e colonialismo”.

Dessa forma, as religiões auxiliam na tarefa de estruturar consciências, moldar

subjetividades, exigir a conformidade e submissão por parte das mulheres, que

acabam se tornando ao mesmo tempo receptora e veículo de transmissão dessa

cultura patriarcal construída no seio de sua sociedade e legitimada pela Igreja

(STEPHENS, 2002, p.123). Porém, o cenário parece que começa a mudar um pouco.

Mesmo que seja paulatinamente pela margem, como por via da Folia, uma

manifestação de cunho popular dentro do catolicismo, as mulheres começam a

assumir posições a elas sempre negadas, posições de liderança e autoridade nos

grupos. Como na Folia da Maú.

3 Folia da Maú

O Grupo Folclórico Estrela do Oriente, liderado por Maú e por isso identificado

como Folia da Maú, tem sua origem na periferia da cidade, no bairro Nova Leopoldina

e se mostra como o elo entre o catolicismo e a religiosidade de matriz africana de

forma efetiva. Maú e seus familiares que tocam na Folia são umbandistas.

Geralmente, na madrugada do dia 19 para o dia 20 de janeiro, cantam no centro de

Umbanda ao lado de sua casa, dirigido atualmente por um dos foliões. A tradição se

redefine de acordo com a realidade dos participantes. Sendo eles umbandistas e

devotos de São Sebastião, padroeiro da cidade de Leopoldina, entregam a Bandeira

não no dia de Santos Reis como manda a tradição, mas continuam a jornada até no

dia de São Sebastião. Os hibridismos são recorrentes e inúmeros nesse universo, o

que se clarifica na figura de um dos palhaços da Folia da Maú. Sua vestimenta,

conhecida como farda, traz nas costas a cruz, e na capa sobrepondo o símbolo cristão,

o símbolo de Exu.

Figura 1: Farda completa do palhaço da Folia da Maú.

Arquivo pessoal.

Na Folia da Maú a presença feminina é eminente, nela os papéis das mulheres

são definidos em seus ritos. A tradição aponta que as mulheres não deveriam fazer

parte do grupo de Folia, embora sempre marcassem sua presença, em funções de

suporte ao ritual. Todavia, jamais saíam em jornada com os homens. Maú vem

modificando essa tradição, sendo ela não uma integrante qualquer, mas a dona da

Folia há 20 anos. Até mesmo Raíssa, sua neta de apenas quatro anos, recebeu o

uniforme e entrou para o grupo na função de Coroação e Descoroação7. Além disso,

na Folia da Maú outras mulheres estão inseridas no ritual da Entrega da Bandeira,

mais especificamente no momento da Comunhão.

Nesse momento específico, entram três mulheres devidamente vestidas com o

uniforme branco do grupo e cada uma pega um elemento presente na mesa central:

uma oferece o vinho e a água, outra o pão, e a terceira se encarrega de entregar o

peixe. Passam por todos os foliões, dando-lhes de beber a água e o vinho, e de comer

um pedacinho de pão e peixe. Um copo de vinho, apenas um de água, três peixes e

poucos pães, é o necessário para todos receberem a comunhão. Isso representa o

milagre da multiplicação de Jesus. As mulheres que oferecem a comunhão aparecem

como figuras de fundamental relevância no ritual.

Já o trabalho que desempenham nos bastidores da festa, também não passa

despercebido, recebendo o carinho e gratidão dos foliões que cantando agradecem o

empenho de todas as cozinheiras e colaboradoras. Dessa forma, a dedicação das

mulheres é reconhecida e valorizada pelo grupo liderado por Maú.

Neste ritual é também a Maú a pessoa designada a manipular o objeto sagrado

da Folia e oferecer a Bênção da Bandeira a cada participante no momento de sua

descoroação. Observa-se a mulher então na importante função de mediadora entre o

plano espiritual e os homens. Dessa forma, a religião se tornou um campo dentro do

qual é permitido à mulher se articular. Porém, uma maior visibilidade pode ser

observada nas religiões de matriz africana. Na tradição afro-católica, em que há uma

associação do feminino com as esferas sagradas, há uma valorização das mulheres

enquanto mediadoras, nas figuras de santas, de entidades femininas e até das mães

de santo (BIRMAN, 1996, p. 208). Birman (1996, p. 201) ratifica que por considerarem

7 Coroação é o ritual realizado no primeiro dia de giro, na noite do dia 24 de dezembro, no qual os foliões recebem as coroas e a partir daí são “sacralizados” e considerados representantes legítimos dos Reis Magos. No último dia, é realizada a Descoroação, na qual são retiradas dos foliões as coroas, assim eles voltam à sua condição profana. Em ambos os rituais os foliões recebem a bênção da Bandeira para a sua proteção.

que a mulher possui uma relação preferencial com o sobrenatural, há “um lugar social

diferente atribuído às mulheres e a outras figuras do feminino nas sociedades

marcadas por essas tradições”. Por essa razão, talvez, as Folias que se inserem em

contextos sociais em que a presença da Umbanda8 se faz marcante e os foliões se

definem majoritariamente como seguidores dessa religião, possivelmente tenham

uma maior abertura em relação não só à participação feminina nos giros, mas também

a aceitar ter uma mulher como figura de liderança à frente do grupo.

Destarte, a Folia da Maú segue legitimando a existência, continuidade e

remodelagem dessa tradição, e auxilia a compreensão e interpretação das relações

de gênero existentes no interior dessa manifestação popular. Além de salientar a

importância invisibilizada da mulher como mantenedora e propositora da festa, as

ressignificações e permanências do contexto devocional da Folia de Reis.

Conclusão

A partir dessa breve reflexão foi possível compreender como o universo da

Folia de Reis se mostra mais permeável às mudanças do que parece. Mesmo muito

ligado às tradições e delas representante, as Folias de Reis tendem a se ressignificar

acompanhando as mudanças que ocorrem nas sociedades em que estão inseridas.

Porém, nem todos os grupos de Folias se mostram tão abertos às transformações,

que por eles podem ser interpretadas como um distanciamento da tradição, tão cara

aos foliões.

Uma figura feminina atuante no seio de um grupo majoritariamente masculino,

em alguns contextos pode se mostrar perturbador, e em outros, natural. Os costumes

“proíbem”, mas as condições acenam positivamente às incursões femininas nesse

contexto. Pelo o que já afirmado anteriormente, pode-se concluir que são as mulheres

as mantenedoras da tradição que alguns grupos julgam perder pela presença das

mesmas. Elas fortalecem o campo de atuação das Folias, fazendo questão da visita

em seu lar, seja como pagamento de promessas ou por simples devoção. Elas que

8 Cito aqui somente a Umbanda porque em Leopoldina é a religião de matriz africana que apresenta maior vigor e se mostra mais expressiva.

preparam a festa, a comida, as roupas e tudo o que estrutura o ritual fisicamente e

“espiritualmente”. A fé e a confiança nos santos, que se encontra na essência da festa,

não estão presentes só nos foliões, mas também em toda a rede de relações

estabelecida pela Folia e que é representada majoritariamente por mulheres.

Portanto, Folia de Reis pode parecer uma manifestação androcêntrica,

entretanto depende da atividade e devoção feminina que nutre a realização anual da

festa, e não se furta de, por vezes, ser liderada por uma mulher relevante, atuante e

respeitável em sua comunidade. Como Maú, que articula essa rede de relações de

vizinhança e de fé indispensável à dinâmica da Folia de Reis. Independente do grau

de atuação e função da figura feminina no grupo, vale observar como a ação dessas

mulheres se torna a base da manifestação e que sem elas, provavelmente a festa

perderia seu vigor, seu tônus e sua aderência em quaisquer contextos em que se

insira.

Referências

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Revista Concilium, n. 3, fasc. 276, Petrópolis, p.5-9, 1998.

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