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www.letras.ufscar.br/linguasagem 1 GENEALOGIAS POLÍTICAS DOS TEMPOS MODERNOS: O MONSTRO E O TODO SOCIAL (*) Por JACQUES GUILHAUMOU CNRS/ENS-LSH Lyon Tradução Roberto Leiser Baronas e Renata Carreon INTRODUÇÃO O discurso sociológico confere ao problema da coesão social uma posição central na sua reflexão atual sobre a sociedade. Mais que isso, André Donzel 1 precisa como a proposição deste tema se converteu em um desafio a nível político desde que a partir do final dos anos noventa, a Comissão Européia considerou-o uma de suas preocupações principais em matéria de políticas públicas. Desta forma, discute, com nossa colaboração, como um enfoque genealógico da noção-conceito de ordem social, intimamente vinculado à reflexão histórica sobre “a coesão das partes” dentro do Todo nos Tempos Modernos, pode esclarecer sob um aspecto particular uma preocupação tão importante das ciências sociais. Nosso objetivo neste artigo consiste então em propor, como contexto, este enfoque genealógico dentro de um questionamento sobre a forma em que o discurso político chega a estabelecer uma divisão entre as figuras humanas e as figuras monstruosas no seio de uma reflexão própria sobre a ordem social e política. Assim, Alain Brossat, em sua obra Le Corps de l’ennemi: hyperviolence et démocratie 2 pergunta-se se o observador da sociedade atual dispõe realmente dos meios para entender a volta periódica da barbárie nas sociedades atuais. Pode realmente prescindir- se da figura do monstro na política? Esta é a questão que desejamos abordar do ponto de vista da genealogia histórica dos conceitos, associando em um mesmo percurso analítico os conceitos de coesão (social) / ordem (social) e os que representam o de monstro(s) ao longo dos Tempos Modernos (séculos XVI a XVIII). Como historiador do discurso político, inscrito num viés ao mesmo tempo histórico e lingüístico, propomos dar um sentido global a este trajeto “híbrido”, com duas cabeças, se assim se pode dizer. Desde o enfoque restritivo até o mais amplo, trata- se em primeiro lugar de reconstituir a genealogia do “monstro na política” – expressão criada no século XVIII – por meio de alguns dos grandes inventores da “ciência política” que vão de Maquiavel a Sieyès, destacando ao mesmo tempo a presença inicial 1 La cohesión sociale et territoriale en Europe, estudo realizado para o DATAR sob a direção de ANDRÉ DONZEL, e com a colaboração de JOSÉ DA SILVA, JACQUES GUILHAUMOU e JULIETTE ROUCHIER, LAMES, MMSH, Aix-en- Provence, 2002, 89 páginas. Texto inédito em francês. Agradecemos vivamente ao Professor Jacques Guilhaumou por gentilmente autorizar a tradução e a publicação deste texto em português. 2 Paris, La Fabrique, 1998.

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GENEALOGIAS POLÍTICAS DOS TEMPOS MODERNOS: O MONSTRO E O TODO SOCIAL (*)

Por JACQUES GUILHAUMOU

CNRS/ENS-LSH Lyon Tradução Roberto Leiser Baronas e Renata Carreon

INTRODUÇÃO

O discurso sociológico confere ao problema da coesão social uma posição central na sua reflexão atual sobre a sociedade. Mais que isso, André Donzel1 precisa como a proposição deste tema se converteu em um desafio a nível político desde que a partir do final dos anos noventa, a Comissão Européia considerou-o uma de suas preocupações principais em matéria de políticas públicas. Desta forma, discute, com nossa colaboração, como um enfoque genealógico da noção-conceito de ordem social, intimamente vinculado à reflexão histórica sobre “a coesão das partes” dentro do Todo nos Tempos Modernos, pode esclarecer sob um aspecto particular uma preocupação tão importante das ciências sociais.

Nosso objetivo neste artigo consiste então em propor, como contexto, este enfoque genealógico dentro de um questionamento sobre a forma em que o discurso político chega a estabelecer uma divisão entre as figuras humanas e as figuras monstruosas no seio de uma reflexão própria sobre a ordem social e política. Assim, Alain Brossat, em sua obra Le Corps de l’ennemi: hyperviolence et démocratie2 pergunta-se se o observador da sociedade atual dispõe realmente dos meios para entender a volta periódica da barbárie nas sociedades atuais. Pode realmente prescindir-se da figura do monstro na política? Esta é a questão que desejamos abordar do ponto de vista da genealogia histórica dos conceitos, associando em um mesmo percurso analítico os conceitos de coesão (social) / ordem (social) e os que representam o de monstro(s) ao longo dos Tempos Modernos (séculos XVI a XVIII).

Como historiador do discurso político, inscrito num viés ao mesmo tempo histórico e lingüístico, propomos dar um sentido global a este trajeto “híbrido”, com duas cabeças, se assim se pode dizer. Desde o enfoque restritivo até o mais amplo, trata-se em primeiro lugar de reconstituir a genealogia do “monstro na política” – expressão criada no século XVIII – por meio de alguns dos grandes inventores da “ciência política” que vão de Maquiavel a Sieyès, destacando ao mesmo tempo a presença inicial 1La cohesión sociale et territoriale en Europe, estudo realizado para o DATAR sob a direção de ANDRÉ DONZEL, e com a colaboração de JOSÉ DA SILVA, JACQUES GUILHAUMOU e JULIETTE ROUCHIER, LAMES, MMSH, Aix-en- Provence, 2002, 89 páginas. Texto inédito em francês. Agradecemos vivamente ao Professor Jacques Guilhaumou por gentilmente autorizar a tradução e a publicação deste texto em português. 2 Paris, La Fabrique, 1998.

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e positiva dos monstros na Cidade de Deus de Santo Agostinho. Todavia, baseando-se num ponto de vista mais amplo, nosso objetivo consiste em associá-lo, em forma de contexto, à genealogia da noção-conceito de ordem social.

Adotando uma perspectiva histórica dos conceitos3, consideramos que a compreensão dos feitos históricos requer um conhecimento preciso de seus espaços discursivos de conceituação, todavia, sem por isso reduzir os feitos a pensamentos4. Mais que isso, os principais autores do pensamento político moderno não se limitam a conceituar em um contexto histórico determinado: quando dizem o que dizem, são ativos5. Parece-nos importante circunscrever, assim, o que tal ou qual autor faz escrevendo como o fez e, por tanto, a partir de uma consideração conjunta, precisar em que medida os conceitos de monstro e de coesão (ordem), depois de terem sido argumentos da providência divina, adquiriram um forte potencial normativo que lhes permitiu converter-se em argumentos da ação humana.

Finalmente pontuemos que uma das características principais desta investigação se deve também a que se levou principalmente a partir de recursos disponíveis na Internet. Por um lado, o banco de dados numéricos da Bibliothèque Nacionale de France (BNF), Gallica, põe a nossa disposição em forma de imagem uma parte essencial dos grandes textos políticos do período moderno. Por outro lado, é possível cruzar estes dados para parte destas obras com buscas ao texto completo na base Frantext6. Por último, a atualidade do tema do monstro suscitou a publicação recente de distintos trabalhos, que, passando por trabalhos acadêmicos, vão desde artigos até exposições7.

I: A CIDADE E SEUS MONSTROS: DE SANTO AGOSTINHO A MAQUIAVEL

1. A herança medieval

Durante o período medieval, a Cidade de Deus domina por completo a cidade terrestre nas crenças dos homens. Existe, logicamente, uma ordem das coisas, em particular para o mundo material, mas sua coesão própria está incluída in fine na intervenção divina. Não obstante, a idéia de coesão se associa imediatamente a uma comunidade de sentimentos e crenças. No pensamento medieval, a ordem divina domina um mundo moldado pela perfeição de Deus; sob o controle da Igreja, 3 Ver nossa publicação Discours et événement. L’histoire langagière des concepts. Tradução brasileira Lingüística e história: análise de percursos de acontecimentos discursivos. (Coordenação da tradução Roberto Leiser Baronas e Fábio César Montanheiro). Pedro & João Editores, São Carlos, SP, 2009. E, de maneira mais específica, sobre as noções-conceitos, JACQUES GUILHAUMOU e RAYMONDE MONNIER (Eds.), Des notions-concepts em révolution, Paris, Societé dês études robespierriste, 2003. 4 REINHART KOSELLECK, L’expérience de l’histoire, Paris, Gallimard/Le Seuil, 1997. 5 QUENTIN SKINNER, Visões da política:sobre o método histórico. Cambridge, CUP, 2002. 6 Esta base tem associado o conteúdo na íntegra da Encyclopédie. 7 Como exemplo, o livro-exposição sobre Les Monstres à la Renaissance et à l’âge Classique, que pode ser “folheado”, desde janeiro de 2004, no site: http://www.bium.univparis5/ histmed/expos.htm

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corresponde então ao rei personificar essa soberania sem que haja divisão. Assim, a Igreja exorta ao rei dirigir, quer dizer “atuar com retidão”, e personificar o poder na medida mesmo em que ele se constitui na imagem da soberania e da harmonia da ordem divina. O povo da cidade terrestre não pode fazer o que quer, mas pode “ficar bem” se aceitar o jugo da potência temporal8. Onde se situam os monstros nesse conjunto?

Contemplando um mosaico do porto de Cartago que representa monstros de gênero humano ou com aparência humana, Santo Agostinho considera-os como “seres animados, racionais, mortais” à semelhança das “espécies monstruosas de homens” resultantes da descendência de Noé. Assim, a existência dos monstros não é de nenhum modo contraditória com a ordem divina. Ao contrário, a presença destes monstros certifica a unidade do todo na Cidade de Deus:

“Deus, criador de todas as coisas, sabe bem onde e quando é ou foi necessário que uma coisa seja criada; conhece através de que semelhanças, de que contrastes se dispõe a beleza do universo. Portanto, ao que não pode considerar o conjunto lhe choca a aparente deformidade de uma parte, da que ignora o acordo e a relação com o todo9”.

Na etimologia da palavra monstro, o latim monstrum nos remete à sua parte adivinhadora, não redutível aos efeitos da superstição, da imaginação em homens incapazes de compreender o todo, a diferença de Deus. O que é concretamente esta articulação entre o monstro e o todo? Santo Agostinho, depois de ter definido ao povo como “a agrupação de uma multidão razoável em uma comunidade harmoniosa em torno de objetos amados”, precisa, com a ajuda da palavra do apóstolo, que “é pelo corpo de Cristo como todo o corpo é armado e unido pelo laço de toda classe de ajudas, segundo a medida e a operação de cada parte”10. A “coesão das partes” – expressão central na genealogia da categoria “terminal” da ordem social – não está incluída aqui no trabalho do espírito humano, simples ornamento da vida terrestre. Depende da espiritualidade que emana do corpo humano, pelo tanto de reconhecimento do amor de Deus, de sua bondade e da providência no seio de uma organização emanada da presciência divina, como o homem pode esbanjar toda classe de ajudas recíprocas aos outros homens, e em consequência da desdita. Pelo contrário, se o homem aceita a submissão divina, e seu corolário do poder do Estado, ele participa da harmonia de uma ordem onde cada coisa é por sua vez distinta e está disposta em seu próprio lugar. Não há nada fora da ordem, e a ordem é esta porque Deus dirige todas as coisas, quer dizer, a ordem do universal. No entanto, “seguir a ordem das coisas, e ater-se a ela, é inerente de todo ser. Mas ver e revelar a ordem do universal que contém e rege este mundo é tão difícil quanto raro”11. É tão natural para cada ser vivo seguir a ordem das coisas, como é 8 Ver SENELLART, Michel. As artes de governar: do regime medieval ao conceito de governo. São Paulo: 34, 2006. 9 Esta citação está extraída de uma cláusula sobre os seres monstruosos no Livro XVI, VI- VIII de Cidade de Deus, Edition de la Pléiade, Oeuvres II, París, Gallimard, 2000, págs. 660-663. Remetemo-nos também ao comentário deste texto por Virginie Mayet em seu trabalho final disponível na web sob o título Saint-Augustin et la superstition dans la Cité de Dieu. 10 Ver as páginas 888 e 1018 do volume II das Oeuvres, ibid. 11 Oeuvres, volume I, op. cit., p. 117.

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sobrenatural elevar-se à compreensão da ordem universal. A maioria dos homens é incapaz de controlar por eles mesmos as circunstâncias12, ficam, então, à mercê da fortuna, quer dizer, mais produto da casualidade que de sua capacidade para beneficiar-se da providência divina.

Deste modo, viver em sociedade supõe expor-se a mudanças incontroláveis: a boa fortuna, associando-se à virtude podia conduzir ao êxito, mas sempre em um clima de perpétua incerteza. A implicação dos homens unicamente nos assuntos da Cidade terrestre não permitia alcançar, através de fins específicos, sua própria coesão. O mundo terrestre permanecia regido por fins espirituais; assim, se coloca sob os auspícios do corpo do rei na mesma medida que emancipação do corpo divino. A coerência do instante só existiria na eternidade, o que nos devolve à providência divina. Deus vê simultaneamente todos os momentos da ação humana e devolve sua imagem em uma temporalidade circular, apocalíptica e messiânica. Ao mesmo tempo, o homem não podia senão profetizar o que percebe sua ação através de Deus, quer dizer, os raros sinais que Deus lhe transmite. Ali onde não pode existir história coerente da ação humana, a profecia substitui tal vazio graças à ação pública baseada na crença na providência13.

O tempo, incluído o das “raças monstruosas” nascidas dos filhos de Noé, estava organizado em torno das ações realizadas em seu seio por um agente eterno, Deus. Atuar na política tornava-se completamente imprevisível e dependia bastante da sorte, da fortuna. Constitui uma contribuição do pensamento político florentino do Renascimento, e muito especialmente de Maquiavel, ter introduzido uma ruptura com este modelo medieval da coesão social sob os auspícios da ordem divina.

2. Uma nova “maneira de fazer” (Maquiavel) e seu limite, a fúria popular

Com O Príncipe, escrito em 151314, destaca-se “a larga experiência das coisas modernas” com a finalidade de assinalar a necessidade da preeminência do sujeito político frente ao “pobre-coitado cujas ações divergem com relação ao tempo e à ordem das coisas”. A arte da Cidade, propícia à ação cívica, cai sob a dependência da arte do Estado, o único apto para assegurar a conservação da Cidade e, portanto, a manutenção de sua coesão pela tomada de consciência da irremissibilidade do conflito, da guerra.

Dessa forma, um modelo de ideal cívico da personalidade humana fez sua aparição nas cidades italianas até o final da Idade Média em forma de um humanismo cívico que permite ao cidadão atuar segundo os preceitos da vida ativa/ vita activa e do viver juntos/ vivere civile. Maquiavel se esforça então para descrever a coerência do atuar

12 “A vida humana, inconstante, sob o efeito de desordens sempre novas, marcha e vacila”, ibid. 13 Cf. J. G. A. POCOCK, Le moment machiavélien, París, PUF, 1997. 14 Ver a excelente tradução e o comentário original de Jean-Louis Fournel e Jean-Claude Zancarini em sua edição de PUF, Paris, 2000.

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humano mais além do feito de que estes princípios permitam pacificar a cidade terrestre dando-lhe finais próprios, quer dizer, uma coesão cívica inédita. O autor de O Príncipe considera que antes existia um mundo onde dominavam as relações de força: o próprio movimento faz assim sua aparição, mas na modalidade do conflito, da guerra. Desta maneira, ele inaugura a corrente de pensamento que considera ainda hoje que o conflito é um fator de coesão social, que “a civilização do conflito” permite por si mesma “a coesão do todo coletivo”, visto que o conflito é “fator de socialização, inclusão e coesão social”15. Configura-se, então, a primeira figura de um sujeito político autônomo, o Príncipe: por sua “maneira de fazer”, é capaz de dar um sentido às circunstâncias por uma relação privilegiada em tempo presente.

Ao afirmar desta maneira a importância da arte do Estado, Maquiavel inscreve a palavra stato, que designa então o âmbito sobre o qual se exerce a soberania do Príncipe, no coração da arte de dominar por contraste com o governo da Cidade tomado nas rendas do humanismo cívico. Certamente, esta oposição entre dominar e governar não deriva já da dissociação entre a cidade divina e a cidade terrestre, mas se reforça, na medida em que o controle dos finais humanos escapa da influência dos cidadãos. Se o cidadão controla a Cidade com seus meios próprios, é ao Príncipe que se incumbe novamente o controle da finalidade humana com ajuda de uma arte política que lhe confere um poder de predição, portanto, de controle sobre as circunstâncias, o que lhe dá o direito a condicionar a moral cívica e a necessidade. Assim, virtu do Príncipe, sua potência criativa, é de uma extrema novidade na medida em que libera a ação política de qualquer modelo pré-estabelecido e impõe a consciência moderna da temporalidade radical das ações humanas16.

No entanto, se essa potência criativa do Príncipe libera a ação política de qualquer modelo pré-estabelecido, se permite introduzir uma gestão relativamente pacificada do conflito, não pode senão gerar um elemento monstruoso que se inscreve no mesmo de maneira irremediável: a fúria popular.

Desta maneira, desde o Pré-Humanismo esta figura monstruosa está representada o mais próxima possível da Paz, que simboliza assim o triunfo sobre as forças da discórdia. Desse modo, é sua representação no ciclo de afrescos pintados por Ambrogio Lorenzetti entre 1337 e 1340 na Sala dos Novos do Palazzo Público de Siena. No centro do afresco domina uma figura que tem como título a inscrição PAX, símbolo “de uma força vitoriosa em repouso, depois de uma batalha travada contra os mais obscuros inimigos”. Assim, “a seu lado, mais perto ainda da figura da Tirania se encontra uma besta negra, híbrida, chamada FUROR. Certamente deveríamos reconhecer nela a representação da multidão brutal, tanto quanto a que tem como arma uma pedra como

15 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. Ed. Troian: São Paulo 16 Cf. MICHEL SENELLART, As artes de governar..., op. cit., págs. 212 e ss.

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na descrição dos Breves de Siena advertindo à polícia da Cidade do que se pode temer da multidão”17

Em sua História de Florença, Maquiavel relata deste modo um destes furores que estorva ao povão um dia inteiro e uma noite inteira, sem que os Senhores possam reduzi-la pela força18. Como um monstro, a gentalha lança “gritos tão grandes e tão horríveis” que os Senhores são tomados pelo terror da mesma forma que um animal monstruoso, despedaça a um homem pendurado por um pé! Será necessário que um cardador chamado Michel de Lando, coberto com farrapos e portador do estandarte da justiça, se faça reconhecer pelos Senhores como porta-voz do povão, convertendo-se, assim, em Senhor, posto que pacifica o povão pela força depois de ter obtido “a reforma de república”, para que as desordens cessem. Este é o problema obtido pela caracterização originária, uma vez que a ordem humana é autônoma, o excluído do poder político renasce como monstro sem cessar.

II. MECANIZAÇÃO E MODERNIZAÇÃO HUMANA DO MONSTRO NA SOCIEDADE SOB OS AUSPÍCIOS DO ARTIFÍCIO POLÍTICO

A resposta do século XVII europeu, fortemente dominado pelas guerras tanto civis quanto exteriores, à instabilidade introduzida pela “legitimidade” popular e suas manifestações monstruosas nos orienta para uma reflexão sobre o alcance e os limites da soberania estatal desde Bodino a Hobbes19. Soberania moderna e, portanto, carente de pensamento medieval, de onde a figura do monstro ocupa um lugar crescente, até o ponto de confundir-se com o próprio homem sob a pluma de Pascal.

1. O Leviatã de Hobbes e a personalização do monstro

No último terço do século XVI, o contexto das guerras religiosas resulta especialmente favorável à teorização de uma potência soberana sem divisão. É o caso do pensador monárquico Juan Bodino, em A República (1576), que introduz o princípio de soberania absoluta para deslegitimar qualquer ato de resistência frente ao poder real20. Concretamente, ninguém pode privar ao Príncipe de sua liberdade de ação, sobretudo em matéria legislativa: dispõe, com efeito, de um poder inovador, quer dizer, ele mesmo é criador das normas as quais submete aos cidadãos e restringe a si mesmo;

17 Segundo o comentário “filosófico” destes afrescos feito por QUENTIN SKINNER em L’artiste en philosophie politique. Ambroglio Lorenzetti et le Bon Gouvernement, Paris, Editions Raison d’agir, 2003, pág. 78. 18 História de Florença, Livro III, págs. 257 e ss. da edição em francês de OEuvres de Maquiavel publicadas em 1793, tomo 4. 19 OLIVIER BÉAUD, La puissance de l’Etat, Paris, PUF, 1994. 20 Dentro de certos limites que SKINNER, Quentin. Fundamentos do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

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não recebe as normas de uma potência divina. Assim, a potência do Príncipe não tem nada de arbitrário, obedece a normas; mas deve exibir-se, para o bem comum, sob a forma da soberania absoluta. O Príncipe não pode desprender-se de seu direito de fazer a lei para todos, sem receber ordens de ninguém, por exemplo, em favor de uma assembléia soberana, posto que poria em perigo a existência da comunidade inteira21. O historiador pode concluir então que:

“O objeto da análise de Juan Bodino é o Estado considerado como um corpo social hic e nunc, mas já sujeito a certas normas necessárias para sua vitalidade e sua moralidade, ‘República é o governo reto de um conjunto de comunidades do que lhes é comum com o poder soberano’22.”

Aí se anuncia o surgimento de uma figura dominadora, o monarca como única garantia da ordem, uma autoridade indivisível sob a forma da soberania.

No contexto ainda mais favorável da Revolução Inglesa do século XVII, Hobbes introduziu, então, depois de Maquiavel, uma segunda ruptura com a ordem divina ao acentuar a soberania da ordem política pela aparição de uma força externa à sociedade, uma força com caráter absoluto uma vez adquirido o consentimento dos cidadãos e emitido o princípio segundo o qual a lei civil não obriga de modo algum ao soberano.

Desde De cive (O Cidadão), publicado em 1642, até Leviatã (1651), Hobbes preconiza primeiro uma “ciência das virtudes” que permita caracterizar o ato virtuoso por sua capacidade para conservar a paz, associando-o ao mesmo tempo a uma arte política que procede de uma força retórica apta para implicar ao cidadão em uma atitude ativa a respeito das virtudes, quer dizer, a fazer-lhe abandonar seus interesses pessoais ante a necessidade de uma comunidade das crenças23. Por isso Hobbes em primeiro lugar faz com que as virtudes políticas ascendam à categoria de “ciência civil”, e logo define uma verdadeira “ciência política” em torno de um artifício político que garante a coesão do Estado, de um ente da soberania política, o Leviatã. Assim, ao definir um programa de ações no que a arte política procede certamente da reflexão dos cidadãos, mas para conseguir o consentimento à coação imposta por um Monarca absoluto, único meio para chegar à paz em um mundo em guerra perpétua, o artifício da política, sob a figura do monstro e ao sumo longe de toda natureza divina providencial, introduz uma perfeição progressiva, contra um modelo cíclico da grandeza e decadência das civilizações.

Com efeito, a figura de Leviatã não é outra senão aquela de um monstro marinho, figura mítica do livro de Jó. Aqui, como mostra corretamente Antônio Negri, “o monstro volta a entrar parcialmente no discurso filosófico, converte-se em uma

21 Ver JEAN-FABIEN SPITZ, Bodin et la souveraineté, Paris, PUF, 1998. 22 FANNY COSANDEY, ROBERT DESCIMON, L’absolutisme en France. Histoire et historiographie, Paris, Seuil, 2002. 23 SKINNER, Q. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. São Paulo: Editora da UNESP/Cambridge University Press, 1999.

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metáfora no campo político, uma metáfora da transcendência do poder”24. Ao tornar-se o monstro razoável pelo artifício, ao transformá-lo em um instrumento eficaz, pôde esta filosofia moderna do Estado realmente apagar a “monstruosidade natural” da multidão em rebelião, em guerra civil que o próprio Hobbes situa do lado de outro monstro bíblico, neste caso um animal terrestre gigante, Béhémot?25 O certo é que Hobbes introduz, na linha de interpretação schmidtiana, uma personalização da figura “monstruosa” da autoridade soberana que se deve a que sua vontade não está de nenhuma maneira submetida à ordem estabelecida26. Ainda que unicamente se trate do soberano, sempre será um sujeito autônomo que toma decisões fora de qualquer obrigação normativa subjacente. Trata-se efetivamente de terminar de maneira radical com toda forma de desordem pela promoção de um mecanismo de aspecto monstruoso no sentido positivo e, portanto, eficaz em sua própria artificialidade.

2. Pascal e a monstruosa contingência do homem

Como reação a uma maneira radical de converter a figura do Monarca

absolutamente contra a multidão, desejando refutar uma grandeza tão aparentemente visível dos reis, Pascal assinala a distância infinita entre “os grandes” e os que buscam o espírito de caridade. Moderniza a herança de Santo Agostinho, associando uma reflexão inovadora sobre a nova matéria das ciências que singulariza o sujeito humano, tornando-o ao mesmo tempo muito instável, se assim se pode dizer. Primeiro deve-se considerar que Deus não tem já nenhuma relação com o homem, e que o mundo humano é pura contingência. Assim, a ordem já não consiste mais na “digressão sobre cada ponto que tem relação com o final, para mostrá-lo sempre”27. Deste modo, afasta a idéia de uma ordem única de inteligibilidade: as ordens são heterogêneas, incomensuráveis, sem continuidade, situadas a uma distância infinita umas das outras, e inclusive colocadas em alguns lugares ou outros segundo suas próprias verdades. Na ausência de toda coerência do presente, não fica nada, atrás do resplendor das grandezas, da arte dos reis. Posteriormente, deduz disto que o objeto do conhecimento do homem não está vinculado ao mundo natural. Com isto, a verdade varia segundo o 24 «Le monstre politique. La vie nue en puissance», L’Homme et la Société, n.º 150-151, octobre 2003 - mars 2004, pág. 138. Tradução ao francês de um artigo da obra, Desiderio del mostro. Dal circo al laboratorio alla politica, ANTONIO NEGRI, CHARLES T. WOLFE (a cura di), Manifestolibri, Roma, 2001. 25 Não nos esqueçamos, com efeito, que Hobbes intitula Béhémoth seu livro sobre a história filosófica da guerra civil inglesa, publicado em 1679, pelo que representa o lado espantoso da guerra civil através da figura de um monstro bíblico terrestre. Dominique Weber discute a esse respeito, que “a personificação da guerra civil pelo monstro bíblico terrestre Béhémoth, indicando talvez o que para Hobbes constitui uma necessidade de primeira ordem> atrair, para dizer assim, aos puritanos para a terra, quer dizer, ao controle da soberania estatal absoluta”, em Hobbes, les pirates et les corsaires? Le “Léviathan échoué’ selon Carl Schmitt, Astérion, nº2, 2004. Este confronto entre as figuras monstruosas de Béhémoth e Leviatã inspirou a Guy Dhoquois, em seu livro sobre a Duplicité de l’Histoire, le Béhémot (Paris, L’Harmattan, 2000), até o ponto que faz dela o símbolo a vez da luta infinita e da busca do conjunto, do movimento permanente e da totalização orgânica sob a imagem marxista dos “contrários reais”. 26 Seguimos aqui o comentário de EMMANUEL TUCHSHERER, em Le Léviathan dans La doctrine de l’Etat de Thomas Hobbes: sens et échec du décisionnisme politique, Astérion, n.º 2, Revue électronique du laboratoire Triangle (ENS/LSH Lyon). 27 Pensées, n.º 280, Paris, Gallimard, 1977, volume I, p. 204.

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ponto de vista, e tudo é assunto de vínculos, de relações, de combinações sobre a base de contrários. Liberado da experiência, o azar fica instalado no centro do pensamento humano e de suas produções de saber28.

No final das contas, o indivíduo – “membro separado”, composto de espírito e matérias, portanto parte de um conjunto incógnito -“crê ser um todo”, mas se perde por sua incerteza sobre seu ser, por sua incapacidade de ver a finalidade de seu ser sobrenatural. Assim, “todos os corpos juntos, e todos os espíritos juntos e toda sua produção não valem o menor movimento de caridade”29, não podem competir em imaginação com a simples suposição de “um corpo cheio de membros pensantes”30, portanto unidos na felicidade. Pascal conclui que em seu defeito de perceber sua finalidade, portanto, de compreender seu lugar no universo31, o homem vive na ilusão de sua unidade. Podemos assim compreender o que supõe a sua maneira própria de caracterizar ao homem mesmo como um “monstro incompreensível” em duas célebres passagens das Pensées:

—“Se ele se elogia, eu lhe rebaixo; / se ele se rebaixa, eu lhe elogio/ e contradigo-lhe sempre / até que compreenda/ que é um monstro incompreensível” (fragmento 121)

— Que quimera é afinal o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que sujeito de contradição, que prodígio? Juiz de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro, glória e repúdio do universo” (fragmento 122)

Anne Longuet-Marx destaca, dentro de uma reflexão em torno da invenção do humano32 a partir da figura do monstro, que o enfoque pascaliano desde o ponto de vista do monstro suscita um rodeio reflexivo que nos faz compreender melhor o que supõe para a fábrica humana, até na produção do conhecimento, por seu deslocamento ao limite. Se a potência da perspectiva humana gera por si mesma o caráter monstruoso do homem, sem fazer intervir nenhuma metáfora ou uma exterioridade específica, tal reforço humano, destacado nas citações anteriores, cega ao homem, o destrói. Mas, ao mesmo tempo, é o homem-monstro quem, etimologicamente falando33, mostra, põe sob os olhos dos outros humanos sua parte momentaneamente inefável. Assim, o mundo se abre ao conhecimento não do que é, senão do que deve ser no horizonte da fábrica do humano, pelo acesso À infinidade das combinações por causa da potência do pensamento humano, certamente a risco de engendrar monstros de imaginação tanto por 28 Ver CATHERINE CHEVALLEY, Pascal. Contingence et probabilités, Paris, PUF, 1995. 29 Pensées, op. cit., n.º 290, pág. 208. 30 Ibid., n.º 351, pág. 226. 31 “Nossos membros não sentem de nenhuma maneira a felicidade de sua união”, Ibid., n.º 341, pág. 224 32 Disponível no site: http://philagora.fr 33 Recordemos que do ponto de vista etimológico, monstrum vem do verbo monere que tem três sentidos: fazer pensar em algo/ informar, comprometer, exortar/ dar inspiração, iluminar, instruir. Assim, no nível do resultado, a opinião do monstro sobre o homem nos situa no âmbito dos verbos executivos, utilizados “quando se formula um juízo (favorável ou não) sobre uma conduta ou sobre sua justificação”. Trata-se de um juízo sobre o que deveria ser mais do que é AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer: Palavras e ações. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda, l990.

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defeito como por excesso de pensamento. O século das Luzes não se esquecerá desta lição pascaliana, muito pelo contrário.

III. O MONSTRO NA ORDEM SOCIAL DO SÉCULO XVIII34

O trabalho do século das Luzes é difícil e grandioso pela insistência sobre o peso da experiência dentro do conhecimento, portanto, pela conexão entre a realidade e os conceitos, trata-se na insistência de devolver permanentemente ao pensamento humano sua ancoragem material. Mas, ao mesmo tempo, convém manter a criatividade do homem garantindo sua abertura à infinidade do possível. De uma forte conceituação da autonomia do indivíduo, do reconhecimento da existência do eu, depende agora uma construção da coesão da ordem social, ativada pelo próprio homem.

Assim, o século XVIII caracteriza-se por uma ruptura radical a respeito da visão humana do tempo, da história e da sociedade35. Esta ruptura permite a formação de uma configuração conceitual, em torno da ordem social e arte social, pela tomada de consciência da dimensão sociológica das realidades humanas, favorável à aparição mais tardia da expressão “coesão social”. Se o debate científico em torno da origem dos monstros opõe sempre aos partidários da infinita liberdade de Deus, que integram o monstro no espaço da revelação do gesto divino, e aos, cada vez mais numerosos, que se limitam a perceber nos monstros simples erros da natureza36, a apreensão do monstro humano coloca-se claramente do lado de uma ordem social em ruptura com a ordem divina.

1. A “nova ciência” das circunstâncias (Montesquieu): a coerência prática dos princípios contra a desordem dos monstros

Ao afirmar, desde o começo do primeiro livro do Espírito das leis (1748) que “as leis em sua mais ampla significação são as relações necessárias que se derivam da natureza das coisas”, Montesquieu utiliza a via de uma “nova ciência” pautada em seu próprio objeto37. Ciência política procede da relação entre a natureza do Governo, “o que lhe faz ser tal” e seu princípio, “o que lhe faz atual”. Assim, a figura do sujeito 34 A amplitude das obras do século XVIII registradas na base Frantext nos permitiu encontrar, com uma simples consulta sobre os usos monstro/monstros, uma grande parte das referências que seguem. Por esta razão, limitamo-nos a dar a obra de referência, sem outra precisão, quando se trata somente da expressão de tal ou qual autor, a quem se pode facilmente encontrar com uma consulta no Frantext. 35 A referência mais importante na matéria é a obra de REINHART KOSELLECK, em particular seu trabalho KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. 36 PATRICK TORT, L’ordre des monstres, Paris, Syllepse, 1997. 37 Ver ALTHUSSER, L. Montesquieu: a política e a história. São Paulo: Presença, 1972.

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político se toma em primeiro lugar na dimensão cosmológica das relações necessárias que derivam da natureza das coisas e permitem aos homens unirem-se a uma espécie de presciência da “corrente dos Seres” de Deus aos seres humanos. Certamente é também e sobretudo o produto de uma dinâmica de vida como conseqüência de ações e paixões. Mas o homem, quando inventa legalidades extras, permanece um ponto de menor necessidade ante as leis do mundo material38. Então, o princípio concebido unicamente como modo de subjetivismo se impõe como princípio de Governo à natureza das coisas na medida em que personifica “as paixões humanas que lhe põem em movimento”39. Afinal “a força do princípio faz tudo”40.

Bertrand Binoche precisa então que:

“O princípio é a dobra que define a interioridade individual, a percepção emocional que o indivíduo terá de si mesmo, de seus compatriotas, do Estado. Em definitivo, pelo princípio de governo, enuncia-se como o governado deve estar apaixonadamente determinado para que o governo possa influir sobre ele e possa assim governar efetivamente de acordo com sua natureza” 41.

Tal dobra tende a introduzir, segundo a linha pascaliana, uma perspectiva humana de modo algum pré-estabelecida, uma opinião portanto que tende a favorecer novas combinações, múltiplas experimentações? Montesquieu aproxima-se também a Leibniz a quem considera a individualização como a re-dobra do indivíduo sobre si mesmo contra o mundo, na ordem das coisas, ou mais exatamente incluindo em si mesmo o mundo ad infinitum? 42.A perspectiva nominalista sobre a ordem social, que foi dominante no final do século XVIII43 começa a esboçar-se.

O certo é que em Montesquieu o exemplo mais significativo é o da virtude como princípio de governo, segundo o exemplo da Roma republicana. Georges Benrekassa pode assim afirmar que a virtude política “é uma coesão máxima da sociabilidade, que se qualifica, por sua vez, como a integração e a participação no ideal coletivo, e como um sistema que pode ser conflituoso, garantindo por isso mesmo um espaço para a individualidade”44

Montesquieu chama permanentemente a atenção do leitor sobre a formação de uma “nova ciência” que define a natureza das coisas, a sua própria coerência, como uma conjugação variável de princípios regulada por relações necessárias.Trata-se então de ajustar as circunstâncias, quer dizer, o conteúdo da experiência, à natureza das coisas, delimitando, através da abstração do espírito, princípios subjetivos, e em primeiro lugar,

38 Seguimos aqui o excelente comentário de BERTRAND BINOCHE em sua Introduction à De l’Esprit des Lois de Montesquieu, Paris, PUF, 1998. 39 L’Esprit des Lois, livre III, chapitre premier. 40 Ibíd., livre VIII, chapitre XI. 41 Introduction, op. cit., pág. 108. 42 DELEUZE, Gilles. A Dobra: Leibniz e o Barroco.Campinas - SP: Papirus Editora. 43 LAURENCE KAUFMANN y JACQUES GUILHAUMOU (eds.), L’invention de la société. Nominalisme politique et science sociale au XVIIIème siècle, Paris, Editions de l’EHESS, 2003. 44 La politique et sa mémoire. La politique et l’historique dans la pensée des Lumières, Paris, Payot, 1983, pág. 304.

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a virtude e a honra, que cobram valor de componentes da natureza das coisas. A coesão das leis da sociedade pode proceder, então, da adequação das coisas ao que devem ser de acordo com os princípios, e não ao que são. Montesquieu promove assim a amplitude humana para combinar os elementos na busca da unidade do governo, pelo mero feito de seu movimento específico resultante do confronto entre sua natureza própria que lhe faz ser e seu princípio que lhe faz atuar. Deste modo, o reconhecimento da pluralidade dos princípios dá conta da natureza variável das coisas.

Considerando o valor do potencial heurístico de uma combinação de base tipológica – os Governos republicano, monárquico e despótico - , Montesquieu inventa uma política prática no seio de uma desordem aparente, provando a eficácia dos princípios. Se, nesta desordem, retém algumas figuras de monstros, seja nas sociedades históricas, à semelhança da Sociedade romana na qual mais de um imperador era um monstro (Considerações sobre as causas da grandeza dos Romanos e da sua decadência 1748), ou nas sociedades contemporâneas, à semelhança de alguns magistrados45 é, com certeza, o critério prático da moral dos princípios sobre o que ele se apóia para estabelecer, por exemplo, a distinção entre os imperadores virtuosos e os imperadores déspotas:

“E o que me afetou mais foi ver que esta moral prática e que três ou quatro imperadores que tiveram esta moral foram uns príncipes admiráveis, ao mesmo tempo que os que não a tinham foram uns monstros” (Correspondance, 1716 – 1755).

2. O movimento das Luzes distante dos monstros

Os filósofos das Luzes vão mais além: fazem da experiência humana, portanto, da natureza humana, a matéria principal de sua reflexão, introduzindo assim continuidade entre a ordem natural e a ordem humana, apesar do necessário umbral da convenção social. Tendem assim a distanciar-se sem abandonar completamente, da idéia de uma “corrente dos Seres” que introduz uma continuidade entre o divino, o animal e o humano, portanto, entre o monstruoso e o humano. “A grande cadeia que vincula todas as coisas” é o feito, sobretudo da conexão entre o indivíduo e os seres que lhe são externos, ou seja, fruto de uma “corrente ininterrupta de experiências” e de raciocínios46. Desta maneira, os filósofos das Luzes preparam a chegada do indivíduo empírico47. É dentro desta configuração nominalista que vamos encontrar este par conceitual coesão/monstro (social) com sua formulação última na expressão de

45 Assim, supondo em um magistrado sua virtude essencial, que é a justiça, uma qualidade sem a qual ele não é mais que um monstro na sociedade e com a qual pode resultar um mau cidadão” Discours de rentrée au Parlement de Bordeaux, 1725. (Grifo nosso) 46 DIDEROT, Denis. Da interpretação da natureza e outros escritos. Trad. Magnólia Costa Santos. São Paulo: Iluminuras, 1989. 47 LAURENCE KAUFMANN y JACQUES GUILHAUMOU (eds.), L’invention de la société. Nominalisme politique et science sociale au XVIIIème siècle, op. cit.

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“monstro na ordem social”. Para mais clareza, vamos abordar em primeiro lugar o ocorrido da temática histórica da coesão social.

a) Da coesão social

No caminho da formulação da “coesão social”, a entrada “coesão” da Encyclopédie se atém ao âmbito da física, com a seguinte definição: “força pela qual as partículas primitivas que constituem todos os corpos ligam-se umas às outras, para formar as partes sensíveis destes corpos”48. Por outro lado, o conceito de coesão só se emprega sobre “a maior ou menor facilidade que têm as distintas partes para unir-se, em seu diferente grau de coesão, a sua heterogeneidade” ao referir-se ao pólipo. Este termo não é ainda de uso comum em meados do século XVIII.

Desse modo convém voltarmos até as brilhantes antecipações que Diderot expôs em suas obras pessoais. Tomando nota, em particular depois de ler a obra Considérations sur les corps organisés (1762) do filósofo naturalista Charles Bonnet, do mistério considerado como insondável “da mecânica da assimilação” no fenômeno da geração dos corpos organizados, Diderot aponta que “antes da assimilação, havia duas moléculas – trata-se de gotas de mercúrio - , depois da assimilação, não havia mais que uma”. Deduz, plasmando-se em páginas assombrosas por sua concisão no Rêve de D’Alembert (1768) que “o contato entre duas moléculas homogêneas, perfeitamente homogêneas, forma a continuidade...e é o caso da união da coesão, da combinação, da identidade mais completa que se possa imaginar”, daí se explica “a ação e a reação habituais49.

O certo é que, do ponto de vista orgânico, trata-se, como já assinalava Charles Bonnet em La contemplation de la nature (1764), de prestar atenção ao “corpo organizado”, ficando claro que “cada ser na corrente universal dos seres tem sua própria atividade”. O corpo humano aparece então como “a organização mais perfeita”, na medida em que “é a que mais efeitos produz com um número igual ou menor de partes dissimilares”. O que o singulariza melhor, é a reflexão, quer dizer, “a faculdade de generalizar suas idéias, ou de abstrair de um tema o que tem de comum com outros, e de expressá-lo por meio de signos arbitrários50. A busca da coesão através da unidade dos elementos procede então da busca de um terceiro comum e não de um simples mecanismo de assimilação. É certo que a assimilação, pela incorporação do ar, das moléculas alimentícias ou de outras coisas segue enquanto um mecanismo, mas sem impregnação original e um tanto escondido. Com efeito, tal mecanismo de assimilação permanece sob a dependência de uma estrutura orgânica que é a que o determina, dependendo da combinação das fibras do corpo: são estes elementos os que produzem em última instância a assimilação.

48 L’Encyclopédie forma parte da recopilação do I.L.F. consultável na web. 49 Le Rêve de d’Alembert, OEuvres de Diderot, tomo I, Paris, Laffont, 1994, pág. 626. 50 Contemplation de la nature, 1764, capítulo 4 da segunda parte.

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Ao deslocar o propósito de uma contigüidade de execução mecânica até a coesão como resultado do movimento orgânico, Diderot e Bonnet rejeitam a explicação mecânica corrente que Fontenelle resumia em 1742 nos seguintes termos: “a máquina do universo não é similar a um ser animado, é similar a um relógio e [...] todos os movimentos variados dependem em seu seio de uma simples força material ativa, do mesmo modo como todos os movimentos do relógio se submetem ao simples pêndulo”51. Diderot ressalta assim que a organização de um corpo não pode reduzir-se a uma simples associação de partes aptas para gerar mecanicamente novas propriedades. Ao rejeitar o mecanismo vulgar, relativo às gerações espontâneas, Diderot considera a única existência da matéria sobre a base de sua sensibilidade universal produtora de movimento, portanto, segundo sua capacidade de transformar-se, de metamorfosear-se em matéria mesma da vida, uma força própria com a ação e a reação que resultam disso. Diderot enuncia então hipóteses que se comprovarão na concepção e realização futuras da ordem social, e muito especialmente a existência da matéria homogênea dentro do eu tomado como um todo: “minha unidade, meu eu [...] Eu sou eu, sempre fui eu, e não serei jamais outro”, “somente há um único grande indivíduo, é o todo [...]. As espécies não são mais que tendências de um fim comum que lhes é próprio. E a vida? A vida, uma sucessão de ações e reações”52. Entramos assim no jogo da ação e da reação que suscita reciprocidade, oposições, choques, e não equilíbrio, entre as distintas partes tanto do universo como dos corpos e da sociedade53. Diderot tira algumas conseqüências a respeito da interioridade do monstro na vida, que apresentaremos mais para frente.

Devemos assinalar que Rousseau condena tal materialismo: se é justo considerar o ser como “rigorosamente um”, não deve sua unidade ao encaixe das partes, senão a uma unidade que transcende à materialidade dos corpos, neste caso a consciência de si mesmo, quer dizer, a tomada de consciência de sua individualidade sobre a base do amor a si mesmo e sob o signo da liberdade54. Então, o próprio homem deve atribuir-se à matéria de seu próprio ocorrido, por aí incluso chega à felicidade. Neste sentido, Rousseau escreve no Emile: “Aspiro ao momento em que, liberado dos obstáculos do corpo, serei sem contradição e somente necessitarei do meu eu para ser feliz”55. Neste caminho, o eu indivisível é imediatamente o eu comum: dele se deduz uma unidade comum, refere-se ao que une imediatamente cada indivíduo ao todo, e não à colocada em marcha de relações inter-individuais de reciprocidade. No Contrato Social (1762), Rousseau inverte este eu comum na força mesma da associação que vincula aos contratantes. Deste modo, o pacto social cria a comunidade: “este ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto votos tem a assembléia, o qual recebe por este mesmo ato de unidade, seu eu comum, sua vida e sua

51 Oeuvres, Paris, 1742, tomo 2, pág. 20. 52 Le Rêve de d’Alembert op. cit., págs. 636-637. 53STAROBINSKI, Jean. Ação e Reação, vida e aventuras de um casal. [Por: Simone Perelson]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 54 Ver LUC VINCENTI, Jean-Jacques Rousseau. L’individu et la république, Paris. Kimé, 2001 55 Obras completas, tomo IV, Paris, Gallimard, 1969, págs. 604-605.

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vontade”56. Do “vínculo social” ao “nu social”, Rousseau teoriza sobre a legitimidade individual na instituição de uma nova comunidade política, sem por ele recorrer à relação com o outro, na medida em que o eu do indivíduo é de princípio a parte e o todo. Não há necessidade de pretender alcançar uma coesão social. Tudo isso é uma questão de reconhecimento pelo eu da identidade social como sua própria identidade. A este respeito, como veremos, o monstro em Rousseau é completamente distinto dos “seres fantásticos”, não é mais que a expressão do “horror do gênero humano” (Rousseau junge de Jean-Jacques, 1776) ao ser especialmente o resultado de uma falta de amor por si mesmo.

No entanto, a referência, já antiga, à “coesão das partes” está muito presente nos filósofos do Iluminismo, e muito especialmente no Diderot materialista. Neste sentido, Diderot utiliza esta expressão quando discorre sobre as “leis gerais da comunicação e do movimento” dos corpos simples, portanto, da matéria mesma57. Movidas por uma única força, as partes destes corpos, ainda que dispersas no tempo e no espaço, podem unificar-se a todo momento se têm “uma ação sensível umas com as outras por suas atrações recíprocas”, portanto, se se comunicam entre elas, à semelhança do universo humano, de onde os homens desenvolvem “uma ação recíproca uns sobre os outros”. No entanto, o tema da “coesão das partes” situa-se aqui melhor do lado da matéria homogênea e seu vínculo com as leis da natureza, e, consequentemente, da maneira que a natureza tem de “coesionar-se”58 pelo mero feito de assimilar, unir por graus. Pelo contrário, quando consideramos “a combinação dos elementos”, encontramo-nos, então, no âmbito da arte. Trata-se de “uma infinidade de maneiras diferentes possíveis” de combinar matérias essencialmente heterogêneas, e se assim descobrir feitos desconhecidos59, com o risco obviamente de apressar-se demais, e, conseqüentemente, de fracassar.

Da “coesão das partes” à combinação dos elementos”, da natureza à arte, o filósofo geômetra faz sua então uma colocação analítica essencialmente unitária, que insiste na identidade, por analogia, da ordem das idéias e das palavras estabelecidas pelo trabalho do espírito humano, e mais amplamente pela vida humana composta de paixões e ações. Tendo assim em conta a observação da complexidade da experiência humana, a coesão dos corpos já não se percebe de maneira mecanicista, conecta-se a uma concepção da vida que se desenvolve segundo funções determinadas, portanto, com ajuda de combinações múltiplas. Mais ainda, refere-se ao mesmo “estado das partes” estudado pelo físico – naturalista, químico e geômetra inclusive – que as novas investigações sobre a identidade do Estado. Abre-se, portanto, um extenso campo de reflexão sobre “o desenvolvimento do todo orgânico” (Bonnet), tanto do corpo quanto do Estado.

56 Obras completas, tomo III, id., pág. 361 57 Pensées sur l’interprétation de la nature, Oeuvres, op. cit., pág. 576. 58 Parece que esse verbo não existia até então. Atribui-se sua invenção às palavras de Napoleão no Mémorial de Saint-Hélène 59 Pensées sur l’interprétation de L’ nature, Oeuvres, op. cit., pág. 596.

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Paralelamente, a insistência sobre a novidade da palavra social na L’Encyclopédie – sob a seguinte definição: “palavra recentemente introduzida na língua para designar a um homem útil na sociedade, consubstancial ao comércio dos homens” – designa um âmbito das virtudes sociais de onde desprega-se a coesão da ordem social pela mediação da “arte social”. Então, produz-se um extenso paradigma da “matéria social” estendido, pela “combinação social” e sobre a base da “necessidade social”, até que “a união social” do “corpo social” cuja “felicidade social” constitui a finalidade. É adiante no campo de experiência do atuar humano em sociedade onde se definem as categorias orgânicas de análise da sociedade, e não na simples homologia com a mecânica natural. Trata-se da busca da coesão das partes do “corpo social”, seja sob sua forma humana, ou sob sua forma metafórica, pela mediação de uma “arte social”, resultado da nova “ciência social”, que garante por si mesma a legitimidade da nova “ordem social”.

Uma vez que a “arte social” está baseada em experiências e racionalidades, os homens do século das Luzes dão então sua perfectibilidade consubstancial ao indivíduo empírico como horizonte de seu atuar, e unem a ele um progresso da história e da civilização humanas. Condorcet apresenta assim, ao final do trajeto, um Quadro dos progressos do espírito humano que assinala finalmente a capacidade do homem para controlar o presente e o futuro de maneira racional60.

Estes homens ilustres interessam-se pelo desdobramento da ação no campo da experiência humana segundo uma finalidade própria, a felicidade. Abrem a espera dos homens a uma história emancipativa, o que Voltaire chama o primeiro “a filosofia da história”61. Criam uma nova arte de governar com a finalidade de racionalizar a desordem, mas sem pressupor uma ordem essencial, divina, portanto, dominante. Assim, na configuração da passagem da ordem natural à ordem política, mediante “a ordem social”, os autores do século XVIII começam por uma reflexão sobre o equilíbrio dos poderes em nome dos princípios (Montesquieu), verdadeiras molas da ação, e terminam por uma análise da unidade de ação entre o poder legislativo e o poder executivo de acordo com o poder constituinte da nação (Sieyès). Assim se coloca um contexto favorável ao desdobramento de um trajeto do “monstro na sociedade” (Montesquieu), destruidor dos princípios, em “monstro na política” (Sieyès), partidário dos retrógrados poderes ilimitados, passando pelo abandono de um enfoque mecanicista do monstro.

b) Do “monstro na sociedade” ao “monstro na política”

- A exclusão do monstro da organização da sociedade

60 Ver KEITH M. BAKER, Condorcet. Raison et politique, Paris, Hermann, 1988. 61 BERTRAND BINOCHE precisa o contexto da aparição desta expressão em Les trois sources des philosophies de l’histoire (1764-1798), Paris, PUF, 1994.

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O tema histórico do “monstro na sociedade” está onipresente no século das Luzes, do artigo crueldade na Encyclopédie até a Linguet ambos nos apresentam, um Tibério e Calígula, outro Calígula, Nero e Heliogábale como “monstros sanguinários nascidos para inspirar o horror” (Encyclopédie), e de “os monstros cujos nomes se converteram em uma cruel injúria para os mais cruéis tiranos” (Histoire impartiale des Jésuites, 1768).

Para dizer a verdade, os homens do Iluminismo insistiram em geral nos “monstros do espírito” (Montesquieu), quer dizer, os resultantes de um excesso de prejuízos e imaginação62. Eles não gostam dos heróis, nem os monstros que estes heróis perseguem. Comentando um quadro do Salão de 1767, Diderot exclama: “Deixemos aqui estes monstros simbólicos” e não vê em sua representação mais do que um “espetáculo repugnante”. Quanto a Rousseau, declara guerra, em A Nova Heloísa (1761) aos “monstros da imaginação” que nos desviam da natureza e a estende igualmente a “estes monstros abomináveis” que povoam as obras teatrais em sua famosa Lettre sur les spectacles (1758). Conclui a esse respeito que “ao mostrar sem cessar monstros ali onde não há, a imaginação nos extenua no combate contra nossas quimeras” e cria uma multidão de “monstros de inferno” à semelhança de prejuízos (A Nova Heloísa).

Ficam os monstros em sociedade no sentido mais atual. Segundo Rousseau, trata-se de homens sem moral (Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Dsegualdade entre os homens, 1755), de “pessoas fuxiqueiras, desocupadas, sem religião”, presentes, sobretudo nas cidades (Lettre sur spectacles). O monstro na sociedade é identificado então pela manifestação de “um profundo menosprezo por si mesmo” (A nova Heloísa): é “um monstro entre seus semelhantes” certamente por falta de sociabilidade, mas sobretudo pelo fato de que “não sente nada, não agradece nada” (Rousseau junge de Jean-Jacques). Rousseau chega desta maneira a multiplicar expressões destinadas a converter-se em usuais como “monstro de maldade”, “monstro de ingratidão”, “monstro que provoca horror”, etc. Porém, o mais importante está na extrema personalização do homem visto como um monstro, como já fizera Pascal. Ao exemplo da estátua de Glaucus, desfigurada pelo tempo ao ponto de assemelhar-se a um animal selvagem e não a um Deus – imagem platônica retraída em uma visão calvinista do homem63 - “a alma humana alterada na sociedade por mil causas que renascem sem cessar [...] mudou, para dizer assim, de aparência até o ponto de ser quase irreconhecível”64 por não dizer disforme, portanto, monstruosa. Rousseau não é então inevitável vítima desta alteração? Assim, vem a incluir-se certamente por distanciamento, quer dizer, a partir do retrato que seus inimigos elaboram de sua observação: “ouvi muito censurar a J.J, como acaba de fazer, 62 Certamente distinguem o monstro resultante de observações científicas do monstro devido à superstição. 63 STAROBINSKI, J, Rousseau: A Transparência e o Obstáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. e seguintes precisa o que representa para Rousseau esta irremediável deformação da forma humana original. 64 Prefácio do Discours sur l’inégalité, OEuvres, Tomo III, Paris, Gallimard, 1964, pág. 122. Starobinski afirma que Rousseau considera que certamente algo mudou em seu espírito, mas que este se mantém fiel a si mesmo, portanto, fora de qualquer alteração. Unicamente os outros desconfiguraram sua imagem e suas obras para converter-lhe em um monstro, ibid.

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um excesso de sensibilidade, e extrair disso a evidente conseqüência de que era um monstro65. Para dizer a verdade, tema recorrente em seus escritos66.

Não obstante, esta localização do monstro sobre as margens do eu induz a uma total exterioridade do monstro artificialmente fabricado, tal e como ocorre com este outro retrato que Rousseau dá de si mesmo a partir de outras observações de seus detratores:

“Me apresentaram, a seu gosto, como um ser que nunca existiu, um monstro fora da natureza, fora da verossimilhança, fora da possibilidade, e composto por partes inconciliáveis que se excluem mutuamente”67

Certamente, Robinet, precisa, em De Le Nature (1761), que os monstros existem “pelo excesso ou o desfecho de algumas partes”, sem por isso ser estranhos à natureza, na medida em que esta última tem desvios que não questionam sua dimensão normativa. Assim, “a Natureza faz tudo no seu curso rotineiro e regulado, ou em seus desvios” precisa Discours préliminaire de l’Encyclopédie68. Mas, quanto ao monstro na sociedade, o excesso monstruoso, por sua vez excesso de prejuízos, de imaginação, ou defeito de sociabilidade destrói as virtudes de uma sociedade, a bondade natural que as unifica, portanto, seu conjunto harmonioso. A transposição da figura do monstro da natureza ao artifício, em primeiro lugar social, logo político, aparece comumentemente como testemunho, mas é denunciada como improdutiva na reflexão. O vínculo, no Todo, entre o monstruoso, remetido aos prejuízos, e o humano de caráter racional, não é já concebível. Isso está relacionado à definição organicista do monstro que se precisa ao lado de uma ordem social percebida como um “corpo organizado”? O ponto de vista orgânico do monstro foi desenvolvido, como vimos, pelo naturalista Charles Bonnet. Mas este posicionamento limite cobra, com Diderot e sob forma hiper-organicista, um cariz um tanto diferente. Continuando de sua parte geral, Charles Bonnet dedica à questão dos monstros todo o capítulo III da primeira parte de sua obra Considérations sur les corps organisés (1762), intitulada “Da geração dos corpos organizados: dos Monstros e as Mulas em geral”. Trata-se de pôr de manifesto que a análise do desenvolvimento de um “todo orgânico” obriga a definir o monstro como um elemento que perturba basicamente o ato de geração consubstancial ao “corpo organizado”, e não pode em nenhum caso ter normas próprias. Charles Bonnet define o monstro da seguinte forma:

“Chama-se monstro a toda produção organizada, na qual a conformação, o acordo ou o número de algumas das partes não seguem as regras rotineiras”69.

65 Rousseau junge de Jean-Jacques. Diálogos (1776), Paris, A. COLIN, 1962, pág. 148. Esta obra foi escrita em um momento em que Rousseau se considerava vítima de um complô, de uma organização monstruosa fabricada especialmente contra ele. 66 Neste sentido, escreve no começo do primeiro passeio em Rêveries du promeneur solitaire: “Podia, em minha sensatez, supor que um dia eu, o homem que eu era, o mesmo que todavia sou, seria tido sem sombra de dúvida por um monstro, um envenenador, um assassino, que terminaria convertendo-se no horror da raça humana, no joguete da canalha? Oeuvres, tomo 1, París, Gallimard, 1959, pág. 996. 67 Ibíd., pág. 98. 68 Ver mais adiante as posições “contraditórias” de BONNET e DIDEROT. 69 Paris, reedição Fayard, 1985, pág. 30.

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Retoma-o na Contemplation de la Nature no tocante ao debate sobre a formação dos monstros, e propõe uma definição adjacente:

“Toda produção orgânica que tem mais ou menos partes que inclui a espécie, ou que a conforma diferentemente, é um monstro”70.

Ao afastar a observação sobre a coesão dos “seres organizados” de uma visão mecânica da disposição dos elementos que constituem a uma concepção orgânica do movimento dos corpos, onde a estrutura de fibras que constituem este corpo contém as condições que determina por si mesma a assimilação de elementos em seu seio, portanto, seu desenvolvimento recíproco, Charles Bonnet, pela incapacidade do monstro natural para engendrar, exclui a existência de uma espécie monstruosa no seio do todo orgânico.

Toma Diderot o relevo do naturalista afirmando, nas Da interpretação na natureza e outros escritos, que o homem não é uma máquina”, que a coesão dos corpos depende da concepção da vida que se desenvolve segundo funções determinadas, portanto, com ajuda de combinações múltiplas e complexas, mas sempre reguladas? Parece melhor, em uma primeira aproximação, dizer o contrário ao considerar a monstruosidade, com seus desvios, como um princípio criador, de uma matéria ativa, portanto, sempre em transformação71. No entanto, definindo o monstro, em seus Elementos da fisiologia (1778) como “um ser cuja duração é incompatível com a ordem subsistente72, Diderot, tende a considerar que a natureza do monstro detém-se às portas da ordem social, que requer por sua vez um estado estável e um dever-ser?

Dessa forma, entre os pensadores materialistas, corresponde ao barão D’Holbach aclarar o melhor possível o que foi do “monstro na ordem social”, sua realidade e seus limites. Quanto ao “monstro natural”, D’Holbach precisa primeiro, no O sistema da natureza (1781) que é ordem na natureza, portanto, que “a ordem e a desordem da natureza não existem em absoluto”. E acrescenta:

“Tudo está na ordem de uma natureza cujas partes não podem nunca separar-se de regras certas e necessárias que se derivam da essência que receberam [...] do que se segue então que não pode haver nem monstros, nem prodígios, nem maravilhas, nem

70 Capítulo 12 da sétima parte, p. 288. 71 Cf. os artigos disponíveis na Web de MAY SPANGLER, “L’hermaphrodisme monstrueux de Diderot”, Études françaises, v. 39, n.º 2, 2003, págs. 109-121, y JULIE MARTINEAU, “Le paradoxe de l’automate: de Diderot a la cybernétique. Lecture de la trilogie du Rêve de d’Alembert”, que escreve: “Diderot interessa-se pelo monstro de forma privilegiada; é ele quem o reintegra dentro do universo das ciências, na medicina mais provavelmente, como significativo, revelador do caráter permanente das espécies – já que logicamente, paradoxalmente, o que concerne a uma minoria não interessa a ninguém”. 72 Certamente, Diderot escreve em um primeiro momento que “se denominam seres contraditórios aqueles cuja organização não se acomoda ao resto do universo. A natureza cega quem os produz, que os extermina”, sem, portanto, qualificá-los a princípio como seres monstruosos. Todavia, acrescenta mais adiante: “o monstro nasce e morre: o indivíduo é exterminado em menos de cinco anos”, », Oeuvres, op. cit., p. 1261, 1276. O tema do monstro em Diderot se revela, portanto, muito complexo. O autor fala inclusive de “monstro genial” em seu artigo gênio da Enciclopédia!

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milagres na natureza. O que chamamos monstros são combinações com as quais não se familiarizam nossos olhos, e que não são efeitos menos necessários”73.

No entanto, se os monstros que cremos perceber na natureza não são mais que o produto de nossa falta de conhecimentos, a sociedade, por sua vez, está bem cheia de “monstros de crueldade e desumanidade”, na medida mesmo em que precisa seu amigo Helvétius “o terreno do despotismo é fértil tanto em misérias quanto em monstros” (De L’Homme, 1771). Peculiar ao “monstro na ordem social” é a falta de moral e por gosto da luxúria, uma propensão a exercer crueldades sobre os cidadãos (La Morale Universalle, 1776). O monstro não tem mais lugar em um sistema social (1773) no qual “tudo está vinculado” se não é para personificar o que o nega é sua própria essência, o despotismo. Ali onde os cidadãos podem exercer seu “direito a ser livres”, portanto, contribuir para a formação da “ordem política”, os monstros são pura exterioridade. No final deste trajeto, a dissociação entre a figura do cidadão livre e o déspota monstruoso é corrente. — O monstro na política, uma figura progressivamente antiquada na nova ordem das coisas. A aparição, na Revolução Francesa, da expressão “monstro na política”, tanto sob a pena de parlamentares quanto de Sieyès e Robespierre, e de outros escritores patriotas74, assinala o caráter absoluto de exterioridade com relação à instauração da ordem política. Para ressaltar bem esta decisiva evolução, vamos descrever o trajeto que leva dos filósofos a Sieyès, da nova “economia política” à nova “ciência política”, a uma exteriorização crescente da figura do monstro na política. Vamos encontrar aqui nossa reflexão conjunta sobre as noções de ordem e de monstro. Do lado dos economistas, principalmente os fisiocratas, de Quesnay a Mirabeau, inventores de “uma ciência nova” da economia política75, a ordem das coisas procede da física social, que lhe dá as utilidades econômicas e a divisão de classes na sociedade moderna. A este respeito, o homem não se compreende já principalmente em sua essência de ser livre, que funda a política moderna, senão melhor só em sua liberdade social, quer dizer, segundo a separação “natural” entre proprietários e não-proprietários, inclusive amos e escravos nas colônias. A unidade da sociedade, portanto sua coesão, tem como fundamento a divisão do trabalho. A dominação política passa a um segundo plano, assenta-se sobre um despotismo legal, como simples garantia do governo social dos homens segundo suas necessidades, seus interesses e suas capacidades sociais. Esta corrente de pensamento se reinterpretará de maneira positiva no século XIX sob a forma do “puro” liberalismo econômico, e tenderá assim a dissociar a liberdade de atuar resultante da vontade humana dos mecanismos quase automáticos da coesão social, ao mesmo tempo em que os fisiocratas mantêm uma liberdade de inteligência, certamente fundada sobre o conhecimento das leis da ordem natural, entre liberdade e vontade. Esta é a razão pela qual os fisiocratas distanciaram-se, apesar de suas opções mecanicistas, de qualquer figura monstruosa, inclusive sob a forma de um artifício

73 Primeira parte, capítulo 5, reedição Fayard, 1990, pág. 93. 74 Entre o valor inferior (Voltaire) e o valor superior (Chateaubriand) sobre o uso do termo “monstro político”, Frantext oferece três resultados na busca pela expressão “monstro na política”, estas fechadas exclusivamente na Revolução Francesa. 75 Ver PHILIPPE STEINER, A «science nouvelle» de l’économie politique, Paris, PUF, 1998.

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político. Mirabeau, no L’Ami des hommes (1755), pergunta-se: “Por que imaginar os monstros onde talvez eles não estejam?”. Não dúvida em afirmar em sua correspondência: “Luto aqui contra monstros quiméricos”, acaba por aproximar-se dos que se consideram mais débeis, “cuja branda virtude, sujeita aos prejuízos, acode deliberadamente aos monstros para combatê-los” (Le Libertin de qualité, 1768). Se os fisiocratas consideram que o “Estado governante” é dominador, para não dizer despótico no sentido legal, na medida em que proporciona os meios de gozar, em forma de virtudes sociais, eles não associam-no, ao menos no nosso conhecimento, a nenhuma figura artificial de monstro. Trata-se, com efeito, de instaurar a coesão da ordem social na prática das virtudes, “instituída segundo a evidência de sua necessidade absoluta” (Lemercier de La Rivière), o que equivale a prefigurar a necessidade absoluta de um mundo racionalmente dominado pelos proprietários. A liberdade humana perde assim sua precedência ontológica sobre a nova ciência do estado social, fica reduzida à liberdade de propriedade. E, na mesma corrente de pensamento, a comunidade das crenças já não procede mais da constatação evidente das novas relações sociais. A partir de então, a coesão social é um assunto de controle social, remete a termos da época como civilizar/legislar, e associa-se ao neologismo de civilização para designar o recurso de uma sociedade de novo reduzida a um mecanismo simples. Não há lugar para a figura do “bom monstro”, por mais artificial que seja. Mably, um dos principais adversários dos fisiocratas, arremete então contra a “pobre política” que sustenta esta “nova ciência econômica”, e opõe-lhe uma “ciência moral”76. Com efeito, o critério exclusivo da propriedade da terra, e sua conseqüente divisão da sociedade em duas classes, os pobres e os ricos, tende a desvirtuar “as relações que devem unir aos cidadãos de um mesmo estado”, e o que é mais importante, ignora “as qualidades sociais”, surgidas da natureza, suscetíveis de aproximar aos homens. De Des droits et des devoirs du citoyen (1758) a De la législation (1770), passando pelas Doutes proposés aux économistes sur l’ordre natural et essentiel des sociétés (1776), Mably promove, contra o despotismo da evidência dos fisiocratas e com o apoio das aptidões sociais do homem, uma figura do legislador empírico. Este legislador, que não tem nada de divino, é apto para concretizar uma arte da política definida como “a arte de governar segundo princípios fixos”, quer dizer, sobre a base das qualidades sociais que comprometem imediatamente aos homens em ajudas recíprocas e intercâmbios mútuos. Seu objetivo é abrir a via da felicidade ao homem preparado-lhe nas virtudes sociais, e mais especialmente no sentimento da igualdade. Confere assim aos cidadãos um mesmo governo, um mesmo interesse sobre a base mesma da razão, das mesmas necessidades e logicamente das mesmas qualidades sociais, e permite assim a existência “de um único estado cujos recursos e movimentos serão regulares”. A ambigüidade da política dilui-se pelo fato de que cada cidadão pode designar a mesma coisa, definir o mesmo objetivo. Esta primazia outorgada a cada um com respeito a si mesmo não leva realmente em conta o papel do indivíduo e de sua reflexividade própria na formação da coesão social, mas assinala bem a primazia de uma política baseada na liberdade e na igualdade.

Neste sentido, a expressão “monstro na política” certifica-se em Mably, para ser muito rapidamente devolvida ao passado antiquado da vassalagem:

“A monarquia francesa não podia sair de suas desordens enquanto os reis tivessem vassalos tão potentes, era um corpo mal construído, ou melhor, um monstro na política, em que cada parte estava desunida do todo, e devia inclusive encontrar uma vantagem

76 Ver Mably. La politique comme science morale, F. GAUTHIER et alii eds., Bari, Palomar, 1997.

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particular na debilidade e na ruína dos demais” (Parallèle des Romains et des Français par rapport au gouvernement, 1740).

Mably refere-se finalmente aos políticos liberais, e mais especialmente aos parlamentares da Revolução Francesa, por inventar uma “nova ciência política”, capaz de conceber e realizar uma nação unida e livre ao redor da figura do indivíduo-nação. Sobre a base de uma liberdade individual estendida até a atividade política livre, o indivíduo que atua em nome de seus direitos constitui permanentemente a unidade social, referente a uma sociedade que dispõe de meios próprios para regular sua finalidade, portanto, sua coesão. Em qualquer momento, no processo de regeneração política promovida pelos acontecimentos revolucionários, a expressão da liberdade precede à formulação da nova ciência da sociedade. Neste processo estabelece-se um vínculo entre a assimilação social, a sociabilidade situada na base da nova coerência social, e o todo social resultante do caráter social baseado na “unidade de ação” dos cidadãos de uma nação livre. Somente o Estado de Direito, quer dizer, aquele regulado pelos direitos humanos e do cidadão, sensivelmente, a nação livre, pode legitimar a plena e completa liberdade humana. Inclusive dispondo de uma determinada liberdade social, o homem não é livre se está sob coação (monárquica, por exemplo); se quer ser livre, deve ser ele mesmo seu próprio soberano, portanto, viver e atuar na república77. Assim, a relação entre dominar e governar desloca-se até a noção de governo representativo, com a figura do legislador – garantia da soberania da nação, do poder constituinte de ação dos cidadãos – em seu centro. O sistema representativo da unidade organizada, inventado pelos franceses e por seu gênio político, permite a manutenção da coesão social pela unidade de ação.

Neste novo dispositivo da colocação em prática da ordem social, Sieyès ocupa um lugar central78. Em primeiro lugar, considera a física social dos fisiocratas como uma verdadeira regressão. Assim, desafia a nova teologia dos fisiocratas que, negando-se a considerar a ordem como obra do homem, reorientando-a enquanto uma necessidade óbvia, ou inclusive de essência divina sob a expressão de “ordem natural e essencial das sociedades políticas”79. A esta definição, Sieyès contrapõe a “ordem essencial e necessária das verdades sociais que, certamente, mantém a idéia de continuidade entre a ordem natural e a ordem social, mas a fórmula sobre a base de uma ordem humana, portanto, consubstancial a cada um – “segundo seu interesse particular”, escreve – o que equivale a fundar a sociedade sobre a liberdade metafísica do homem, e sua expressão imediata, a liberdade individual, até sua extensão à reciprocidade, sob a forma da igualdade de direitos.

Sieyès interessa-se, assim, pela “relação de ordem” entre os homens, que está incluída em suas maneiras de ser, de atuar e de pensar, portanto, suas crenças, constitutivas das novas verdades sociais, e não da evidência. Considera então que “a 77 Ver SKINNER,Q. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Editora UNESP, 1998. 78 Ver JACQUES GUILHAUMOU, Sièyes et l’ordre de la langue. L’invention de la politique moderne, Paris, Kimé, 2002. 79 Título da obra do fisiocrata Lemercier de La Rivière publicada em 1767.

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ordem social supõe necessariamente unidade de objetivo e comunhão de meios”, portanto, que sua existência remete não só à existência de uma Nação Livre, onde pode existir a liberdade individual sem coação, mas também ao controle da finalidade da arte social por parte do legislador. Conseqüentemente, impõe-se durante um tempo a arte social, associada significativamente, mas de maneira efêmera, ao termo sociologia nos anos 1780: sua aplicação permite obter a perpetuidade das relações sociais que certamente dispõem de seus mecanismos próprios, portanto, necessários para a coesão social, mas que estão incluídos organicamente no corpo humano articulado à liberdade. A coesão orgânica da ordem política inclui a coesão mecânica do corpo social.

Neste sentido, Sieyès afirmou, em seu Discours sur le veto royal de 7 de setembro de 178980, que o desaparecimento de toda ordem separada, portanto, de uma ordem que se queria fora do comum, é a própria Revolução, e situa assim o “monstro na política” em um tempo antiquado:

“Sem dúvida, nenhuma classe de Cidadãos espera conservar em seu favor uma representação parcial, separada e desigual. Seria um monstro na política; este foi abatido para sempre”81.

Seguidor da metáfora organicista em sua maneira de apresentar o sistema político à semelhança de um corpo humano organizado82, Sieyès utiliza-o preferencialmente sobre a metáfora mecanicista para assinalar bem o potencial de ruptura contido em sua concepção do corpo político baseado na “unidade de ação”. Somente encontrará “o monstro na política” ao fim da experiência no ano II da “única ação” da que resulta o uso aberrante dos poderes ilimitados em seu sistema representativo83. Grande adepto da arte social como arte das combinações84, Sieyès desfaz deste qualquer produção monstruosa, já que também está no âmbito do artifício político que tanto aprecia. A figura do monstro abandonou definitivamente o discurso da filosofia política. Com efeito, durante a Revolução Francesa, não continua presente sob um registro metafórico, à semelhança deste monstro aristocrático, Iscariote, cuja existência anagramática85

80 É certo que de forma suspensiva, a instauração do veto real suscita o emprego por parte dos patriotas contrários ao poder executivo do rei da expressão “veto monstruoso”. Robespierre, em seu discurso não pronunciado sobre o veto real, é um dos responsáveis por este deslizamento semântico. Com efeito, escreve: “Aquele que diga que um homem tem o direito de opor-se à Lei, está dizendo que a vontade de um só está por cima da vontade de todos. Diz que a nação não é nada, e que um só homem é tudo. Se acrescenta que este direito pertence a aquele que ostenta o Poder executivo, está dizendo que o homem instituído pela Nação para fazer executar as vontades da Nação tem o direito de contradizer e de encadear as vontades da Nação; criou um monstro inconcessível da moral e da política, e este monstro não é outro que o veto real” (Discours, volume 6, Paris, PUF, pág. 87). 81 Oeuvres, Paris, reimpressão Edhis 1989, tomo 2, documento 12, pág. 6. 82 Ver o capítulo sobre «Sieyès, docteur du cops politique» en ANTOINE DE BAECQUE, Le corps de l’histoire. Métaphores et politique (1770-1800), Paris, Calmann-Lévy, 1993. 83 Ver em especial sua intervenção Sur le projet de Constitution del 20 de julho de 1795, OEuvres, Ibíd., tomo 3, documento 40, pág. 6. 84 Ver em relação com este ponto nossa obra Sieyès et l’ordre de la langue. L’invention de la politique moderne, Paris, Kimé, 2002. 85 Em La langue politique et la Révolution française, Paris, Méridiens/Klincksieck, 1989, pág. 55.

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havíamos indicado, e que Antoine de Baecque restituiu dentro do conjunto de “monstros de uma aristocracia fantástica”86.

Tal afastamento da figura do monstro no pensamento político deixa lugar a sua representação autêntica, portanto, mais além das metáforas negativas do que na interioridade da consciência87. O surgimento da representação do monstro na obra do pintor Goya, a partir dos anos 1790, é exemplar sobre este tema. Ademais, além do impacto dos acontecimentos (uma monarquia decadente, a guerra), é também o monstro que lhe habita, esta parte infeliz de si mesmo que representa em seu mundo de formas alucinantes e de criaturas monstruosas. Assim, enfrenta-se permanentemente a seu duplo monstruoso, à matilha dos monstros que deve enfrentar a humanidade dentro mesmo da consciência de todo indivíduo lúcido.

***

Em uma recente obra coletiva intitulada Monstrous Bodies. Monstrosities in Early Modern France88, os distintos autores puseram em manifesto que adiante será impossível ater-se unicamente ao processo de racionalização progressiva da figura do monstro em sociedade durante os Tempos modernos, nos fins de sua “limitação final” na ordem da ciência na época das Luzes.

Nossa proposta genealógica procede da mesma constatação. A este respeito, consideramos que a ausência de operatividade da figura do monstro na nova ordem política estabelecida na estrela das Luzes não nos impede, no entanto, a dar um significado particular à figura do monstro na dinâmica do todo social durante os Tempos Modernos. Ao mesclar, em uma mesma genealogia política, a noção de ordem social e a designação de monstro(s), quisemos apontar uma pequena luz sobre a gênese histórica do conceito de coesão social. Assim, tudo indica que com as Luzes “a exclusão final” da figura do monstro na compreensão da nova ordem das coisas, não deve fazer com que esqueçamos que a figura do monstro desempenhou um papel central na formulação inicial do espaço da cidade e, sobretudo, na delimitação do artifício político. O complexo caminho seguido por esta figura do monstro durante os Tempos Modernos, e muito especialmente a respeito da invenção progressiva da sociedade, deixa-nos uma dupla herança intelectual, tanto do lado do humanismo cívico como do surgimento das instituições políticas. Ao citar um grande número de importantes autores europeus, mas sobretudo franceses, quisemos propor um caminho discursivo, de um autor a outro, sob os auspícios de uma invenção do humano formulada por Pascal nos fins da aspiração ao infinito na ordem social.

86 Le corps de l’histoire, op. cit., p. 195 e subsequentes. 87 Sobre esta «virada interior» na concepção do eu, ver Jan Goldstein, The post-revolutionary self. Politics and Psyche in France, 1750-1850, Harvard University Press, 2005. 88 Dirigida por LAURA LUNGER KNOPPERS y JOAN B. LANDES, Ithaca, Cornell University Press, 2004.