gênesis · ela se lem-brava de dias mais brilhantes, ... de repente, anax sentiu-se vagarosa e...

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gênesis

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Gênesis

bernard beckett

tradução de braulio tavares

A

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Copyright © 2006 Bernard BeckettPublicado inicialmente na Nova Zelândia por Longacre PressPublicado em seguida por Text Publishing Co., AustráliaPrimeira edição na Grã-Bretanha publicada em 2009 por Quercus Publishing PLC

título original

Genesis

preparação

Anna Távora

revisão

Liciane CorrêaUmberto Figueiredo

diagramação

Ilustrarte Design e Produção Editorial

capa

retina 78

imagem da capa

Tara Moore/Getty Images

[2009]

Todos os direitos desta edição reservados à

editora intrínseca ltda.

Rua dos Oitis, 5022451-050 — GáveaRio de Janeiro — RJTel. / Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

B834g Beckett, Bernard, 1968-Gênesis / Bernard Beckett ; tradução Braulio

Tavares. – Rio de Janeiro : Intrínseca, 2009.

Tradução de: GenesisISBN 978-85-98078-57-1

1. Romance neozelandês (Inglês). I. Tavares, Braulio, 1950-. II. Título.

09-3182. cdd: 828.99333cdu: 821.111(931)-3

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“Será a alma mais que a soma de suas partes?”Douglas Hofstadter, The Mind’s I

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primeira hora

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Anax avançou pelo longo corredor. O único som era o silvo discreto do fi ltro de ar no teto. A intensidade da luz tinha sido reduzida, de acordo com os novos regulamentos. Ela se lem-brava de dias mais brilhantes, mas nunca falava a respeito. Pen-sar na luminosidade como uma qualidade do passado era um dos Grandes Enganos.

Anax chegou ao fi m do corredor e virou à esquerda. Olhou as horas. Eles deviam estar observando sua chegada — ou pelo menos fora isso que ouvira dizer. A porta deslizou para o lado, silenciosa e macia, como tudo ali na zona da Academia.

“Anaximandra?”Ela assentiu com um gesto da cabeça.A banca era composta de três Examinadores, como ditava o

regulamento. Ela sentiu grande alívio. Os detalhes dos exames eram mantidos em segredo, razão pela qual os boatos fervilha-vam entre os candidatos. “A imaginação é a fi lha bastarda do

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tempo e da ignorância”, costumava dizer seu tutor, Péricles, que sempre completava: “Não que eu tenha qualquer objeção a bastardos.”

Anax adorava seu tutor. Nunca o decepcionaria. A porta se fechou às suas costas.

Os Examinadores estavam sentados atrás de uma mesa alta, cujo tampo era de madeira escura e reluzente.

“Fique à vontade” disse o Examinador do meio. Era o mais alto dos três, tão alto e corpulento como Anax jamais vira. Comparados a ele, os outros dois pareciam velhos e frágeis, mas ela sentia o peso de seus olhos, atentos e penetrantes, so-bre si. Anax tentaria não ter ideias preconcebidas naquele dia. A superfície da mesa diante deles estava vazia. Anax sabia que a entrevista estava sendo gravada.

examinador: Seu exame terá a duração de quatro horas. Você pode pedir esclarecimentos, caso tenha problema com alguma das perguntas, mas isso será levado em conta na avaliação fi -nal. Entende?

anaximandra: Sim.

examinador: Quer fazer alguma pergunta antes de começarmos?

anaximandra: Gostaria de saber as respostas.

examinador: Sinto muito, não entendi...

anaximandra: Estava brincando.

examinador: Ah, sim.

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Uma ideia ruim. Tinha produzido apenas um mínimo de rea-ção nos Examinadores. Anax se perguntou se deveria pedir des-culpas, mas o instante de mal-estar logo passou.

examinador: Anaximandra, seu exame começa agora. Quatro horas sobre o tema escolhido por você. A vida e a época de Adam Forde, 2058–2077. Adam Forde nasceu no sétimo ano de existência da República de Platão. Pode nos explicar as cir-cunstâncias políticas que levaram à criação da República?

Seria um truque? A proposta de Anax estabelecia com clareza que sua área de especialização cobria apenas os anos da vida de Adam. A proposta tinha sido aceita pelo comitê sem uma emenda sequer. Ela sabia algo sobre o cenário político, é claro, qualquer pessoa sabia, mas não era essa sua área de especializa-ção. Tudo o que ela poderia fazer ali seria recitar informações básicas, que qualquer estudante conhecia. Aquilo não era um bom começo. Devia contestar? Será que aquilo era um teste para ver sua reação? Anax olhou para os Examinadores em bus-ca de alguma pista, mas eles estavam sentados impassíveis, e seus rostos nada revelavam.

examinador: Anaximandra, entendeu a pergunta?

anaximandra: Claro que sim. É que... bem, não importa.

Ela tentou afastar as preocupações de sua mente. Cinco horas. Tempo bastante para mostrar o quanto sabia.

anaximandra: Esta história começa no fi nal da terceira década do novo milênio. Como em qualquer outra época, não havia

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escassez de profetas do Apocalipse. As primeiras experiências de engenharia genética tinham amedrontado grandes setores da comunidade internacional. A economia ainda se baseava no petróleo, e havia um consenso crescente de que uma catástrofe se aproximava.

A região conhecida na época como Oriente Médio continua-va a ser uma área de turbulência política, e os Estados Unidos — usarei os nomes empregados na época por uma questão de consistência — tinham se envolvido numa guerra que, para muitos, era impossível de ganhar, uma guerra com uma cultu-ra que eles eram incapazes de compreender. O país apregoava que sua ação se dava no interesse da democracia, mas esta defi -nição era simplista e idiossincrática, e não tinha boa aceitação fora do país.

O fundamentalismo crescia de ambos os lados nessa divi-são, e os primeiros incidentes claros do Terrorismo Ocidental na Arábia Saudita em 2032 foram vistos por muitos como a faísca que deu início a um incêndio que jamais se apagaria. A Europa foi acusada de ter perdido sua bússola moral, e os quebra-quebras por independência, em 2047, foram vistos como mais uma prova de sua decadência política. A China adquiria proeminência internacional cada vez maior, exer-cendo o que chamava de diplomacia ativa, levando muitos a temer pela defl agração de mais um confl ito global. O cres-cimento econômico ameaçava o meio ambiente. A biodiver-sidade reduziu-se a índices sem precedentes, e os últimos oponentes ao Modelo para a Mudança Climática Acelera-da foram convertidos à causa pelas tempestades de areia de 2041. Resumindo, o mundo enfrentava inúmeros desafi os, e o discurso público estava dominado por uma sensação de ameaça e pessimismo.

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Hoje, naturalmente, com o benefício de um olhar retros-pectivo, é fácil perceber o que se passava, mas do nosso ponto de vista atual fi ca bem claro que a única coisa que a população tinha a temer era o próprio medo. O verdadeiro perigo que a humanidade enfrentava naquele momento era o enfraqueci-mento de seu próprio espírito.

examinador: Defi na espírito.

A voz do Examinador era cuidadosamente modulada, um tipo de efeito que podia ser obtido usando-se fi ltros bem baratos. Só que aos ouvidos de Anax não se tratava de tecnologia: era controle, puro e simples.

Cada pausa, cada vislumbre de incerteza: os Examinadores observavam tudo. Certamente era assim que eles decidiam. De repente, Anax sentiu-se vagarosa e inexpressiva. Ainda podia ouvir as últimas palavras de Péricles: “Eles querem ver de que modo você responde aos desafi os. Não hesite. Vá falando e aos poucos conseguirá ser compreendida. Confi e nas palavras.” E naquela hora isso havia lhe parecido muito, muito simples! Agora, seu rosto se contraía e ela precisava forçar o caminho por entre as palavras, procurando-as como quem procura um amigo no meio de uma multidão, sentindo que o pânico pode-ria estar à sua espera no próximo instante.

anaximandra: Por espírito quero dizer algo sobre o estado de ânimo predominante naquele tempo. O espírito humano é sua capacidade de enfrentar a incerteza do futuro com curiosidade e otimismo. É a crença de que os problemas podem ser resol-vidos, os confl itos podem ser solucionados. É uma espécie de confi ança. E é algo frágil, que pode ser obscurecido pelo medo

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e pela superstição. Por volta do ano de 2050, quando o confl ito começou, o mundo tinha mergulhado em tempos cheios de medo e superstições.

examinador: Fale mais a respeito dessas superstições.

anaximandra: A superstição é a necessidade de ver o mundo em termos de simples relações de causa e efeito. Como já dis-se, o fundamentalismo religioso estava em ascensão, mas não é a esse tipo de superstição que estou me referindo. A supers-tição que predominava naquele tempo era a crença em causas simples.

Mesmo o mais banal dos eventos está preso a um feixe complexo de permutas e possibilidades, mas a mente humana se debate no meio dessa complexidade. Em tempos de crise, quando as crenças religiosas básicas fi cam enfraquecidas, surge o culto à conspiração. Foi assim naquela época. Incapazes de atribuir suas desgraças ao acaso, incapazes de aceitar sua irre-levância em meio ao grande sistema, as pessoas começaram a procurar por monstros infi ltrados em seu meio.

Quanto mais a mídia cultivava esses medos, mais as pessoas perdiam a capacidade de confi ar umas nas outras. Para cada nova desgraça que surgia, a mídia produzia uma explicação— que sempre tinha um rosto e um nome. As pessoas começaram a desconfi ar de seus vizinhos mais próximos. Fosse em termos de indivíduos, comunidades ou de nações, elas viviam à pro-cura de sinais de más intenções nas outras — e onde quer que procurassem, encontravam, pois isso é o que sempre ocorre em tais casos.

Esse era o grande desafi o que as pessoas enfrentavam na-quela época. O desafi o de confi ar umas nas outras. E elas não

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foram capazes de vencer esse desafi o. É a isso que me refi ro quando digo que elas depararam com um enfraquecimento do próprio espírito.

examinador: Obrigado por seu esclarecimento. Agora, por fa-vor, vamos voltar à descrição histórica daquela época. Como foi estabelecida a República?

Como Péricles havia previsto, Anax foi se deixando conduzir pelo som da própria voz. Era isso que a tornava uma boa candi-data. Seus pensamentos acompanhavam suas palavras, ou pelo menos era essa a explicação dele. “Cada pessoa é diferente, e seu talento é esse.” Assim, embora a história que estivesse contando fosse já desgastada, abandonada havia muito tempo, examinada em excesso, Anax começou a revesti-la de novas palavras, ga-nhando mais confi ança a cada camada que acrescentava.

anaximandra: O primeiro tiro da Última Guerra foi disparado por um mal-entendido. Aconteceu em 7 de agosto de 2050. A aliança sino-japonesa passara dezoito meses tentando mon-tar uma coalizão para supervisionar um projeto de espalhar partículas de sulfato na atmosfera, na esperança de reduzir a re-tenção de calor produzida pelo carbono. O fato de a coalizão não ter alcançado seu objetivo deveu-se, em grande parte, à desconfi ança à qual já me referi. Os Estados Unidos bloquea-ram essa iniciativa, acreditando que ela fazia parte de um pla-no mais amplo, para estabelecer uma nova ordem mundial, e a China, por sua vez, achou que os Estados Unidos estivessem acelerando a mudança climática de propósito, a fi m de dese-quilibrar sua economia. Como era previsível, a China desen-volveu um plano para uma ação secreta unilateral.

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O avião que foi derrubado no espaço aéreo norte-americano sobre o Pacífi co estava participando da primeira fase do projeto de pulverização de sulfato, embora, como todos nós sabemos, os Estados Unidos nunca tenham se afastado de sua posição inicial: a de que era um avião militar em missão hostil.

examinador: É melhor presumir que não sabemos nada.

Anax desculpou-se com um movimento da cabeça, enquanto sentia as faces se avermelharem de constrangimento. Esperou por um sinal para que continuasse, mas ele não veio. Em qual-quer outra circunstância ela teria reagido à rudeza dos Exami-nadores.

anaximandra: A base do poder de Platão veio de seus interesses econômicos globais. Ele construiu sua fortuna inicial por meio da tecnologia do hidrogênio e a aumentou com investimentos bem-sucedidos na indústria da limpeza biológica. Valendo-se de sua fortuna e de seus contatos, Platão estava numa posição melhor que a maioria das pessoas para prever qual seria o des-fecho mais provável de um confl ito entre as superpotências. Sendo um homem prudente, ele passou a transferir todo seu dinheiro para um grupo de ilhas na parte inferior do globo, conhecido como Aotearoa. Quando a guerra foi declarada, aparentemente ele e seus sócios detinham setenta por cento da economia das ilhas e já a estavam projetando com um nível de autossufi ciência baseada na tecnologia. À medida que pio-rava a situação internacional, Platão descobriu que não teria difi culdade de convencer as pessoas de seu país adotivo da ne-cessidade de um sistema de defesa mais efi caz. No que depois foi considerada a mais impressionante obra de engenharia do

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século XXI, a Grande Cerca Marítima da República foi con-cluída em 2051, no décimo primeiro mês da Última Guerra.

Quando a primeira peste começou a se alastrar, no fi m de 2052, a República já estava isolada do mundo. Platão foi reve-renciado como o salvador de Aotearoa e, à medida que os relatos sobre a situação externa se tornavam cada vez mais pessimistas, fi cou conhecido como o salvador da própria raça humana. Quan-do a última transmissão vinda do exterior da ilha foi captada, em junho de 2053, já se considerava, no interior da República, que aquela era a última região habitável da Terra.

Naturalmente, a vinda de refugiados era previsível, e todos que chegaram foram liquidados. Aviões que se aproximavam eram derrubados sem nenhuma tentativa de contato, e, nos primeiros tempos, as pessoas se reuniam no alto das falésias para ver o espetáculo dos navios fantasmas explodindo à me-dida que entravam na zona minada. Com o passar do tempo, as explosões se tornaram menos frequentes, e os canhões laser passaram a ter cada vez menos alvos. Foi então que o povo se voltou para Platão e lhe pediu que os conduzisse para o futuro, para tempos melhores.

examinador: Um bom resumo, Anaximandra. Essa, portanto, é a República onde nasceu o objeto de sua pesquisa, Adam Forde. Antes de nos voltarmos para a vida extraordinária que ele teve, pode nos contar um pouco sobre a República cons-truída por Platão?

anaximandra: Os historiadores dizem que a República pode ser mais bem compreendida por meio de seu lema: “Para a frente rumo ao passado.” Platão — ou talvez devêssemos dizer seus consultores, pois hoje muitos acreditam que foi Helena a prin-

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cipal responsável pela arquitetura da ordem social da República — pregava um novo estilo de conservadorismo. Ele afi rmou perante o povo que a Queda havia ocorrido porque as pessoas tinham se desviado de seu caminho natural. Tinham aderido à mudança sem ter uma visão crítica da mesma, esquecendo a lei mais fundamental da ciência: que mudança signifi ca deterio-ração. Platão disse ao povo da República que eles só poderiam retornar ao estado de glória das antigas civilizações se criassem uma sociedade baseada na estabilidade e na ordem.

Platão identifi cou o que passou a chamar de cinco gran-des ameaças à ordem: a impureza de nascimento, a impureza de pensamento, a indulgência com o indivíduo, o comércio e os forasteiros. As soluções que propunha eram radicais, mas as pessoas estavam amedrontadas e se apegaram às muitas pro-messas que ele fez. “O Estado salvou vocês”, dizia ele, “e agora precisam se esforçar para salvá-lo.”

As pessoas estavam divididas em quatro classes, baseadas na interpretação de seus genomas: trabalhadores, soldados, técni-cos e fi lósofos. As crianças eram separadas dos pais ao nascer, e sua origem biológica jamais lhes era revelada. Ao fi m do pri-meiro ano de vida, cada criança era submetida a testes e, de acordo com os resultados, era destinada a uma das quatro cate-gorias ou sacrifi cada.

Todas as crianças eram submetidas a uma educação rigoro-sa, tanto física quanto intelectual. Luta livre e ginástica eram obrigatórias, bem como matemática e genética. Durante o ve-rão elas estudavam nuas, a fi m de reduzir seu anseio por indi-vidualidade.

Os melhores atletas podiam avançar da classe trabalhadora para a classe dos soldados, mesmo que seus genomas não pre-vissem, assim como as crianças de mente mais vivaz tinham a

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chance de serem promovidas para a classe dos técnicos, mas jamais além daí. A classe dos fi lósofos era reservada para uns poucos privilegiados.

Homens e mulheres viviam separadamente, comendo e dormindo no interior de suas respectivas comunidades. O ro-mance era permitido, e quando os casais recebiam autorização do Departamento de Variedade Genética, eram estimulados a casar. Mas, mesmo depois do casamento, continuavam a viver no interior de seus grupos e tinham que trabalhar para adquirir o direito de passar algum tempo juntos.

Acho que este é um resumo satisfatório dos aspectos princi-pais da República em sua primeira fase.

Anax percebeu que não haveria sinais de aprovação dos mem-bros da banca, mas, ainda assim, não pôde deixar de erguer os olhos para eles, como uma criança em sua primeira semana escolar que observa com expectativa o professor à espera, se não de um incentivo, pelo menos de uma reação qualquer. Mas aquilo não era uma escola. Era A Academia.

examinador: Quem é seu tutor, Anaximandra?

anaximandra: Péricles. Na maior parte do tempo. Tive algu-ma ajuda na escola, claro, e também fi z muitas pesquisas inde-pendentes, mas...

examinador: Péricles.

O Examinador pronunciou o nome como se este tivesse sobre ele um poder especial. Anax não conseguiu perceber se aquilo era bom ou ruim. Esperou a próxima pergunta, torcendo para

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que chegassem logo aos assuntos nos quais se sentia mais con-fi ante: a época e a vida excepcionais de Adam Forde.

examinador: Em sua opinião, Platão teve sucesso em alcançar seus objetivos?

anaximandra: Isso vai depender do que o senhor considera como objetivos dele. Se o que procurava era adquirir poder e projetar a própria imagem, o que na minha opinião é uma avaliação equilibrada de suas motivações, então, pelo menos enquanto viveu, ele foi capaz de exercer uma infl uência con-siderável. No entanto, se nos perguntarmos se ele foi bem-su-cedido na criação de um Estado ideal, no qual as pessoas e a sociedade pudessem desenvolver todo seu potencial, então é mais difícil saber. Talvez a História pudesse ter avaliado mais facilmente a contribuição de Platão se Adam Forde nunca ti-vesse nascido.

O simples fato de pronunciar aquele nome a descontraiu. Por três longos anos Adam nunca havia se afastado de sua mente. Adam morreu muitos anos antes do nascimento de Anax, mas ela sentia que o conhecia tão bem quanto a qual-quer outra pessoa. Tinha estudado inúmeros registros, baixa-do inúmeros documentos, porém o mais importante é que ela tinha aquilo que Péricles chamava de “o instinto”. Se não impressionasse os Examinadores naquele momento, não teria outra chance. E então... bem, ela não queria pensar nessa hipótese. Tinha prometido a Péricles que nem pensa-ria nisso.

examinador: Sim, Adam.

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Anax ainda estava para conhecer alguém que pronunciasse o nome de Adam sem uma pausa diante de sua relevância. Os novos pensadores estavam tentando diminuir sua importância histórica agora. “Não há nada de especial sobre o fósforo que acende um fogo”, diziam eles, “a não ser que foi ele o fósforo que acendeu o fogo.” Mas esses pensadores também faziam uma pausa ao pronunciar aquele nome.

examinador: Anaximandra, quero que primeiro nos fale algo sobre as circunstâncias do início da vida de Adam. Quem eram seus pais, como foram seus primeiros anos de vida. Todos sabem o que ocorreu na noite em que estava em serviço de guarda, qualquer jovem pode nos contar essa história palavra por palavra, mas a vida de Adam não começou naquela noite. Diga-nos, na sua visão, como ele chegou lá.

anaximandra: Adam nasceu em 2058. Durante seu primeiro ano de vida, foi criado na creche Tana. Reza a lenda que sua mãe inventou um modo de marcar seu bebê e depois conse-guiu ser transferida para trabalhar naquela creche, de modo que pudesse cuidar dele, mas é quase certo que isso seja apenas uma invenção. É, mais uma vez, o mito da causalidade. Para aqueles que realmente querem entender o que fez de Adam a pessoa que ele foi, a resposta “tudo, e por isso mesmo nada” não é uma resposta fácil.

O que sabemos é que Adam nasceu na classe dos fi lósofos. Com 1 ano de idade, passou pelos testes fi siológicos de praxe, e a leitura de seu genoma foi feita. Sua capacidade para o aprendi-zado foi confi rmada, mas em seu registro foi anotada uma adver-tência. Havia pelo menos dois fatores genéticos que indicavam uma possível imprevisibilidade em seu comportamento. Na ver-

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dade, o famoso Memorando Clark sugeria que fosse considerada a possibilidade de que ele viesse a ser sacrifi cado. Em circunstân-cias normais, ele teria sido submetido a novos testes dois meses mais tarde. Mas 2059 foi o período do segundo grande pânico devido às epidemias, e quando Clark morreu, tudo o que ela possuía foi destruído por precaução, de modo que a indicação de novos testes nunca chegou a ser anexada ao arquivo. Quan-do o erro foi descoberto, Adam já tinha prestado seus primeiros exames de verbalização, e sua eliminação não podia mais ser levada em conta. Em toda a confusão que cercou seus arquivos as advertências anteriores foram desprezadas e essa informação nunca foi transmitida para os conselhos escolares.

examinador: Então ele foi admitido imediatamente no grupo dos fi lósofos?

anaximandra: Sim. Os registros mostram que ele foi um estu-dioso de primeira linha, que logo causou boa impressão, prin-cipalmente em matemática e lógica. Também se destacou em luta livre, e aos 13 anos representou sua cidade num torneio anual. Nessa ocasião, percebemos a primeira manifestação do individualismo que inevitavelmente acabaria por conduzi-lo a seu papel histórico.

Nesse torneio, ele conheceu uma garota chamada Re-bekah, também lutadora, e decidiu que os dois deviam se tornar amigos. O fato de não viverem na mesma cidade, ou sequer na mesma ilha, não o desanimou. Na última noite do torneio, Adam se escondeu entre a bagagem da equipe de Rebekah e assim conseguiu viajar setecentos quilômetros para o sul de sua zona de habitação. Além disso, com a ajuda de Rebekah, evitou ser descoberto durante três dias, até que

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um cozinheiro o encontrou na despensa da comunidade em que a garota vivia.

Adam foi enviado para casa com uma bola preta assinalada contra ele, e pode-se dizer que um padrão se estabeleceu. Ele havia demonstrado ser combativo e impulsivo, não ter medo de censura e se sentir atraído pela companhia feminina. Em geral, uma transgressão dessa natureza faria com que a criança fosse automaticamente transferida para a classe trabalhadora, mas sua professora apresentou um apelo especial, intercedendo por ele e mostrando o que ela considerava ser seu potencial. Abriu-se uma concessão, e ele foi transferido para uma academia militar de elite, a dos Guardas Republicanos. E em consequência dessa decisão, pode-se dizer, a História mudou para sempre.

examinador: Se pudéssemos acreditar em causas simples...

Mais uma vez Anax enrubesceu diante de um erro tão básico. Ela ouvira um boato de que a nenhum candidato era permi-tido cometer mais de dois erros desse tipo. Mas, afi nal, eram muitos os boatos que ouvira. Anax não tinha tempo para fi car preocupada com isso. Tinha se deixado arrebatar pela história que contava; Péricles já a advertira de que isso poderia aconte-cer. Resolveu dosar seus comentários.

anaximandra: E é claro que não podemos acreditar nisso. Sin-to muito.

Nenhum dos Examinadores pareceu ouvir suas desculpas. Anax se perguntou o que seria necessário para extrair deles al-guma reação. Será que eles também eram daquele jeito quan-do estavam em casa?

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examinador: Fale algo sobre as circunstâncias da prisão de Adam.

anaximandra: Nessa época Adam já tinha 17 anos. O ano era 2075. Ele havia se formado com distinção na academia militar, onde continuava a alimentar seu amor pelas atividades físicas.

Os senhores me pediram para falar da prisão, de modo que vou apenas registrar, de passagem, que ao se formar ele já tinha acumulado quatro bolas pretas em seu currículo escolar, razão pela qual sua primeira missão foi na torre de vigilância na costa sul da Ilha Norte. Naquela época, era raro avistarem navios fantasmas, e a opinião geral era de que não havia mais perigo de desembarques de refugiados.

A agitação para valer era ao norte, onde, nos últimos tem-pos, tinham ocorrido três observações, não confi rmadas, de um novo tipo de aeronave. Sentinelas haviam percebido um obje-to semelhante a um pequeno dirigível fl utuando baixo sobre o horizonte na hora do crepúsculo, e embora os meios de comu-nicação na República fossem rigidamente controlados, logo os boatos se espalharam. Por medida de precaução, os soldados mais capazes foram transferidos para o norte, e intensifi caram-se os treinamentos com canhões laser e caças de combate. Por ou-tro lado, soldados como Adam, recém-saídos da escola e com um currículo problemático, foram designados para os postos de observação remotos, espalhados ao longo do litoral sul.

Adam estava nessa função havia exatos sete meses, sem qualquer incidente. Em seu julgamento, ele afi rmou que se sentia absolutamente entediado pela experiência, o que prova-velmente não foi um exagero.

As sentinelas trabalhavam em duplas, obedecendo uma ro-tina traçada e monitorada com rigor. Cada torre consistia em

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uma pequena cabine de observação montada no alto de uma estrutura de metal, circundada por cercas eletrifi cadas e à qual se tinha acesso por uma única escada.

As cabines propriamente ditas eram pequenas e mal tinham espaço para os dois homens se mexerem. O trabalho ali era simples: monitorar a longa linha ininterrupta da Grande Cerca Marítima, uma enorme cerca de metal reticulado, erigida apro-ximadamente cinquenta metros após a linha da maré vazante e que se elevava trinta metros acima do nível do mar. Tinha lâminas de metal no topo e era protegida por minas fl utuantes. Se algum objeto ou pessoa fosse visto aproximando-se dela, as sentinelas tinham ordens precisas sobre como proceder.

Se fosse uma embarcação de tamanho signifi cativo, o que era improvável, uma vez que a maioria delas era detida pelas minas guiadas por satélite instaladas nas linhas de defesa mais afastadas, as sentinelas deviam fazer soar o alarme. Em cinco minutos, helicópteros com armas laser chegariam ao local e sobrevoariam o alvo, e qualquer doença que ele pudesse estar conduzindo seria vaporizada.

Com embarcações menores, que de vez em quando fl utua-vam até as proximidades da cerca, em geral com não mais do que dois ou três tripulantes esqueléticos a bordo, a intervenção das sentinelas era mais direta: deveriam avisar à estação sobre o barco que se aproximava, e então uma delas desceria da torre e destruiria o barco utilizando um canhão laser de tamanho compacto, acionado por um código aleatório que ambos me-morizavam todas as manhãs.

A segunda sentinela permaneceria em seu posto na torre, com a arma apontada para o colega. As instruções eram ine-quívocas. Caso a primeira sentinela mostrasse qualquer sinal de hesitação no cumprimento de suas instruções, deveria ser

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abatida imediatamente, sem questionamentos nem investiga-ções. Entre os militares comentava-se abertamente que muitas rivalidades entre sentinelas tinham sido resolvidas dessa forma, e apenas alguém muito imprudente correria o risco de discutir com um parceiro de guarda.

examinador: E qual era a natureza da relação entre Adam e seu parceiro de guarda?

anaximandra: Todas as conversas entre as sentinelas eram gra-vadas e monitoradas, de modo que podemos ter uma ideia da dinâmica entre Adam e seu parceiro, Joseph. Devo acrescen-tar que também cabia às sentinelas a execução de numerosas rotinas ao computador durante seus turnos de vigia, a fi m de que se mantivessem em estado de alerta. Por exemplo, elas podiam ter que corrigir imagens de computador alteradas da paisagem à sua frente ou memorizar e repetir conjuntos de instruções e de procedimentos gerados pela máquina. Digo-lhes isto porque, se me permitem, eu gostaria de reproduzir um diálogo travado entre Joseph e Adam na véspera do inci-dente inicial.

examinador: Sim, se isso a ajuda a responder à pergunta.

Anax fez uma pausa. Péricles havia lhe assegurado que aqui-lo era uma boa ideia, embora esse tipo de memorização fosse apenas um truque banal e muitos dos manuais preparatórios para o exame tivessem advertências contra tal desperdício de tempo. Será que eles estavam tentando preveni-la? Melhor não fi car imaginando. Seguiria o conselho de Péricles. Ele fi caria orgulhoso.

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anaximandra: Este diálogo foi gravado às 18h40, depois de transcorridas duas das oito horas que deveria durar o turno.

J — Está vendo alguma coisa?A — Sim.J — O quê?A (Elevando a voz.) — Um navio, maior que uma

montanha, vindo na direção da cerca. Está se ele-vando das águas! Meu Deus, ele pode voar! Vamos ter que enfrentar um navio voador, com canhões apontados para nossa cabeça! Meu Deus, vamos morrer!

J — O.k., só perguntei. Você sabe que eles gravam nossas conversas, certo?

A — Ninguém escuta isso.J — Como você sabe?A — Você acha que se tivesse alguém escutando as

bobagens que eu digo já não teriam tomado algu-ma providência?

J — Olhe, seu botão está piscando.A — Eu sei.J — Você tem que apertar o amarelo agora e depois

o laranja.A — Eu sei. Estou esperando.J — Faça isso logo, antes que fi que difícil lembrar.A — Laranja, depois azul, depois verde e agora… espe-

re um pouco… laranja duas vezes. Acho que vai dar certo.

J (Agitado.) — Aperte o botão, cara.A — Aperte você.J — Não posso. São os seus botões.

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A — Quem vai saber?J — Eu.A — Vá em frente.J — Não lembro mais. (Ouve-se o ruído de um alar-

me.) É o alarme de dez segundos! Adam, isso não está certo. Nós dois seremos punidos. Você sabe como são as regras.

A — Ninguém vai nos punir.J — Aperte os botões.A — O.k., O.k. (Muito lentamente, provocando.)

Eu estou apertando os botões. Amarelo, laranja, azul, verde, laranja, laranja, verde, amarelo... e o último foi vermelho, foi verde, você viu?

J — Eu juro que atiro em você.A — Vermelho. (O alarme para.) Está vendo? Ne-

nhum problema.J — Por que você sempre faz isso?A — Tédio. Ajuda a me manter alerta. (Um longo

silêncio. Ruído de dedos digitando no teclado.)J — Acha que ainda há algo lá fora?A — Há quanto tempo você trabalha aqui?J — Cinco anos.A — Já atirou em quantos?J — Três ou quatro. Mas eram barcos desgarrados.

Você sabe...A — Ouvi dizer que foram avistados aviões ao norte

pouco tempo atrás.J — Achei que isso fosse apenas um boato.A — Tudo é apenas um boato.J — Pensando bem, quanto tempo já se passou des-

de a peste? Os que fi caram devem ter algum tipo

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de imunidade, certo? Talvez estejam reconstruin-do tudo. Faz sentido.

A — Ou talvez apenas demorem a morrer.J — Os últimos que eu vi não pareciam muito doentes.A — Você sabe que eles gravam estas conversas,

não?J (Preocupado.) — Você disse que eles gravam mas

não escutam.A — A menos que algo aconteça.J — O que, por exemplo?A — Eu poderia fi car louco e atirar em você.J — Então, para mim, não faz diferença se estão es-

cutando ou não.A — Então não precisa se preocupar.J — Você acha que os que vivem lá fora estão re-

construindo?A — Você já se perguntou por que será que as pessoas

em quem nós atiramos nunca atiram de volta? Acho que a guerra e a peste acabaram com mil anos de progresso. Acho que esses novos aviões que têm sido avistados não passam de balões. Acho que isso é tudo o que eles conseguem construir.

J — Sabe o que eu queria neste exato momento?A — O quê?J — Tomar uma Coca.A — Eu não ligo muito para isso.J — Como não? Você deve ter tomado Coca nas ce-

rimônias. Deve ter provado.A — É só uma bebida.J — Sabia que eles quase perderam a receita? Foi só

na última hora, antes que todas as conexões caíssem,

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que alguém se lembrou de salvá-la. Todo mundo achava que alguma outra pessoa sabia a tal receita.

A — Você é muito ingênuo. É só uma bebida.J — Não é apenas uma bebida… E você, o que que-

ria agora?A — Uma mulher.J — Uma mulher?A — Sim, aqui mesmo, agora. Você poderia fi car olhan-

do. Você vê sua mulher com frequência?J — Você sabe que não podemos falar sobre isso.A — Não podemos falar sobre uma porção de as-

suntos, Joseph. Sabe de uma coisa? Aposto que eu passo mais tempo com mulheres do que você… e nem sou casado.

J — Isso é só papo.A — Isso, Joseph, é isso mesmo. Só papo.

E aqui terminava o fragmento da gravação.

examinador: E na sua opinião o que isso demonstra?

anaximandra: Demonstra algo sobre o caráter dele.

examinador: Algo admirável?

anaximandra: Algo importante.

examinador: Por que isso seria algo além de conversa fi ada? Dois homens entediados tentando fazer o tempo passar?

anaximandra: O diálogo revela personalidade.

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examinador: Explique-se.

anaximandra: Adam é o guarda mais jovem. Joseph está cinco anos à sua frente, e tem mais experiência. No entanto, ouvindo a conversa entre os dois, pensaríamos que é o contrário. Acho que Adam é uma pessoa que assume uma posição de superio-ridade em qualquer situação. É importante notar esse fato. Faz parte do problema.

examinador: Diga-nos o que aconteceu em seguida.

anaximandra: No dia seguinte ocorreu a visão. De acordo com os registros, Joseph e Adam começaram o turno às 15h30. O dia estava quente e luminoso. O mar estava calmo. A torre de observação onde eles trabalhavam fi cava situada sobre uma falésia, e sua visão cobria o estreito que separava aquela costa da Ilha Sul. A região que lhes cabia vigiar tinha um raio de cer-ca de dez milhas náuticas. Num dia como aquele, eles podiam enxergar a próxima torre de vigilância, ao norte, sem uso de binóculos. De acordo com o registro, Joseph estava de vigia en-quanto Adam monitorava o equipamento, embora tenha sido Adam o primeiro a avistar algo.

A — Bem, lá vamos nós, tem algo na água.J — O que deu em você agora?A — Ponha os olhos para funcionar, parceiro. Está

vendo?J — Vendo o quê?A — Eles testaram seus olhos antes de mandá-lo para

cá?J — Meus olhos estão bem.

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A — Então o problema deve ser no cérebro.J — O.k., estou vendo agora. (Elevando a voz.) Es-

tou vendo!A — O.k., calma.J — Soe o alarme!A — É muito pequeno.J — Não sei.A — Olhe no monitor, idiota.J — Sabe que isto aqui tem munição de verdade,

não sabe?A — Sabia que ameaçar um colega soldado é trai-

ção?J — Eles me perdoariam.A — Não. É um barco pequeno. Seria muita sorte se

houvesse mais de dois ou três lá dentro. Ainda bem que você não desperdiçou suas balas comigo.

J — É sua vez. Verifi que a lista.A — Melhor ainda.

Os olhos dos dois homens moviam-se da tela do monitor para a cena à frente deles, indo e voltando. A imagem cristalizou-se. Era mesmo um barco pequeno, como o scanner havia indi-cado. Uma linha de comunicação com a torre mais ao norte começou a chiar e ouviu-se uma voz.

T — Ei, caras, estão vendo isso?J — Claro, Ruth, está na mira.T — Vão pegá-los. A — É apenas um.J — Melhor ter cuidado. Talvez haja outros escondi-

dos.

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A — Quando foi que você ouviu falar de algum de-les se escondendo?

J — Pode acontecer. Estou lhe dizendo. Está com suas armas? Pode ir. Dou cobertura.

A — Espere um segundo.J — Você tem que ir agora.A — Só quero ver melhor o que vou ter de encarar.J — Eu lhe direi se acontecer alguma surpresa.A — Só um segundo.

Adam fi cou olhando para o monitor. Isso era contra o regu-lamento. O atirador designado tinha de deixar a torre antes de identifi car a vítima. Quando ele chegava a ver com o que estava lidando precisava saber que haveria uma arma aponta-da para sua cabeça. Isso fazia sentido. Por melhor que fosse o treinamento, sempre havia uma chance de um soldado hesitar antes de atirar numa vítima indefesa. E em tempo de epidemia o Estado não podia correr riscos.

J (A mão descendo até o coldre.) — Você sabe quais são as minhas ordens.

A — Ah, meu Deus, olhe, é uma garota. Apenas uma garotinha. De onde diabos ela pode ter vindo?!

Os dois olharam para a tela. Era realmente um bote minús-culo. Era difícil acreditar que de fato tivesse cruzado todo o mar que os separava da terra mais próxima. Adam olhou nos olhos dela. Foi assim que se explicou no tribunal. Eram olhos grandes e amedrontados, olhando, sem compreender, para a enorme barreira metálica que se elevava das águas do oceano. A vela triangular improvisada do bote estava dilacerada, im-

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prestável. A pequena embarcação oscilava, passando perigosa-mente perto das minas fl utuantes.

J (A voz trêmula.) — Cara, por favor, vá logo! Não quero ter que atirar em você.

A — Joseph, tem uma coisa que eu deveria ter lhe dito.

J — O que é?A — Eu nunca fi z isso antes.J — Mas eu vi seu dossiê.A — Eu o falsifi quei.J — Como?A — É melhor você nem saber.J — Está bem, então é sua primeira vez. Não se preo-

cupe. Não é tão difícil assim. É como no treina-mento. Depois que você a tiver na mira, não preci-sa fi car olhando.

A — Eu não acho que vá conseguir.J — E eu não acho que você tenha escolha.A — É só uma menina.J — Vou atirar em você se for preciso.A — Me deixe olhar.J — Do que diabos você está falando?A — Você faz e eu fi co olhando. Não sei como expli-

car, mas acho que é mais fácil assim. Se eu olhar desta vez, vou poder fazer na próxima. Sei que vou. Vamos, você sabe que é mais simples do que atirar em mim.

Joseph concordou. Era mais fácil atirar naquela estranha, se-mimorta e possivelmente portadora da peste, do que manter o

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sangue frio e matar um colega dentro daquela cabine. E era a única opção. Adam sabia disso. Ele disse no tribunal que sabia que iria acontecer assim. A mídia explorou muito a frieza de seus cálculos.

examinador: É assim que você pensa? Que ele manteve o san-gue frio?

Finalmente uma pergunta que Anaximandra podia perfeita-mente responder. Era essa sua especialidade.

anaximandra: Há duas maneiras de interpretar os fatos que se sucederam, embora o próprio Adam insistisse em que a versão apresentada por ele no momento em que foi preso encerrava o assunto.

Ele fi cou sentado na cabine, apontando a arma para o posto de tiro, como rezava o manual. Viu Joseph chegar à arma laser e apontá-la para o bote. Ele nunca tinha visto uma execução, e embora parte dele quisesse virar o rosto, não po-dia negar a estranha fascinação que sentia. Fixou sua atenção em Joseph, viu quando ele digitou o código de segurança e preparou o canhão para o disparo. Obedecendo às instruções do manual, vigiou o barco pelo monitor, para se assegurar de que sua tripulante não constituía uma ameaça para o colega. Foi assim que viu novamente seus olhos, e dessa vez não pôde afastar o olhar. Ela teria uns 16 anos, um ano mais nova que ele, mas envelhecida depois de uma travessia de três meses no mar; sem comida, sem água, magra e à beira da morte.

Adam deu um zoom, focalizando o rosto da garota. Os re-gistros de segurança confi rmam isso. Ele viu sua expressão: confusa, sem entender direito o que estava acontecendo e mal

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percebendo a presença daquela imensa barreira, o término fa-tal de sua viagem.

Adam disse que tudo lhe chegou num fl ash; uma certeza repentina. Disse às autoridades que não tomou a decisão de atirar; em vez disso, tudo o que percebeu foi o disparo de seu fuzil ecoando nas paredes do pequeno abrigo. Ele olhou para o posto de tiro e viu seu colega tombar para a frente, com um buraco fumegante na parte de trás do crânio.

Imediatamente a linha com o centro de controle foi ativada. Àquela altura ele começou a entrar em pânico.

“Disparo de arma de fogo captado. Contato urgente. Con-tato urgente.”

“Aqui é Adam. Joseph foi abatido. Temos um bote junto à cerca. Há uma menina a bordo. Joseph hesitou, senhor.”

“Tem certeza de que há um único passageiro?”“Sim, senhor.”“Precisa fi nalizar isso, Adam.”“Eu sei, senhor.”“Entre em contato quando terminar. Enviaremos um substi-

tuto. Parabéns, Adam. A República agradece.”“Obrigado, senhor.”Adam sabia que estava correndo contra o tempo. Eles esta-

riam esperando para captar os sinais da descarga do laser.Ele correu para fora, passou pelo corpo caído do colega e

desceu aos tropeções a trilha estreita até chegar à praia. Pôde ver o barco, ainda à deriva, correndo o risco de esbarrar em uma das minas. Acenou para chamar a atenção da garota, sem saber se ela podia ouvi-lo ou se ao menos falavam a mesma língua.

“Você sabe nadar?,” gritou. “Sabe nadar?”Ela o viu, mas não respondeu. Estavam muito distantes para

que ele pudesse discernir a expressão de seu rosto.

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“Precisa sair do barco! Nade para lá! Nade para o norte!,” gritou ele, apontando. “Vou me encontrar com você lá. Há um lugar por onde pode passar, um portão pequeno. Espere junto ao portão. Cui-dado para não tocar nessas boias. Está me entendendo? Tenho que destruir seu barco. Por favor, se estiver me entendendo, acene.”

Ele olhou, esperando ansiosamente por uma resposta. Nada. Voltou a acenar. Ela acenou de volta, um gesto tímido, con-tido. Torcendo em desespero para que ela o tivesse escutado, Adam correu de volta para o canhão. O laser continuava prepa-rado para atirar. Ele empurrou o corpo de Joseph para o lado e checou a mira. Não avistou mais a menina. Ela entendera seu recado ou apenas se deixara cair de exaustão? Não havia como saber. Ele disparou. Viu de longe as águas borbulhando e ou-viu o silvo do vapor no instante em que o bote foi destruído.

Chamou a torre vizinha. Falou com uma voz surda, trê-mula.

“Aqui é Adam, torre 621N. Tarefa cumprida. Barco destruído.”“Parabéns, Adam. O substituto estará aí em dez minutos.

Fique onde está. Cuidaremos do corpo.”“Obrigado, senhor.”Mas Adam não permaneceu onde estava. Ao longo da cerca

de metal havia alguns pequenos portões de serviço, que eram controlados a distância e só podiam ser abertos com a digitação simultânea de duas senhas: uma pelo técnico encarregado de executar algum serviço e a outra por quem estivesse de plantão na sala de controle do quartel-general.

Adam sabia que o sistema podia ser burlado, embora, a prin-cípio, tenha insistido em que foi um simples caso de portão defeituoso. Houve muita controvérsia quanto ao modo como ele teria conseguido tal informação, mas vale a pena lembrar que Adam era curioso e esperto, e não acho difícil acreditar que

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durante sua fase de treinamento ele tenha tido acesso a alguma informação indisponível para um soldado comum.

Outras pessoas notaram a popularidade de Adam com as mulheres, e numa sociedade em que todos os relacionamen-tos aconteciam meio às escondidas, é completamente possível que ele tenha se valido disso para conseguir o que desejava. Alguns historiadores mais imaginativos observaram que Re-bekah, sua amiga dos tempos da luta livre, se tornara especia-lista em segurança eletrônica. Houve especulações de que os dois mantinham contato, embora nenhuma prova tenha sido apresentada.

Qualquer que tenha sido o método utilizado, o fato é que Adam conseguiu abrir o portão. Ele correu ao longo da praia coberta de cascalho e nadou até a cerca. Não foi uma tarefa fácil. Mesmo que o mar estivesse mais calmo que o normal naquele dia, os portões fi cavam nos trechos menos acessíveis da cerca.

Depois, Adam declarou que chegou a pensar que tivesse chegado tarde demais. A garota estava agarrada do lado externo da cerca, mas o corpo estava dentro d’água e a cabeça pendia. Ele disse que no momento em que ela ergueu o rosto seus olhos se encontraram através da grade. Ele descreveu como conseguiu puxá-la pelo portão e depois a rebocou a nado de volta à praia. Ela não falou coisa alguma, mas àquela altura, uma vez que ela havia abandonado o barco, Adam sabia que era capaz de compreender o que ele dizia.

Ele a levou para uma pequena caverna na base da falésia, onde ela poderia fi car escondida em segurança. Deu-lhe uma ração em barra que carregava no cinto e prometeu voltar. Ela se recostou nas pedras, e antes de fechar os olhos sorriu para ele. Ou pelo menos foi assim que ele narrou os fatos.

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Quando o soldado substituto chegou, ele estava junto ao posto de tiro, molhado até os ossos, curvado sobre o cadáver do companheiro, gemendo alto. O nome do substituto era Na-thaniel, um homem de bom coração, já prestes a dar baixa do serviço militar, que concluiu que o jovem soldado tivera uma crise nervosa por ter sido obrigado a cumprir as ordens recebi-das, de modo que concordou em fazer segredo quanto ao que vira. Adam agradeceu e cumpriu seu turno de vigia até o fi m.

Naquela noite, ele retornou à caverna, dessa vez levando água, comida e cobertores. Durante todo o dia seguinte cui-dou da fugitiva, até que recuperasse as forças, conseguisse se sentar e, num inglês claudicante, contasse a ele a história de seu passado.

examinador: Você disse antes que há duas versões dessa histó-ria. Conte-nos um pouco sobre a segunda.

anaximandra: Desde o começo, os investigadores desconfi a-ram da versão de Adam. Seu conhecimento detalhado do fun-cionamento do portão na cerca e do terreno abaixo da falésia, a plausibilidade da história que ele contou ao guarda substituto, o modo como conseguiu manipular Joseph... Houve quem su-gerisse que toda a ação tinha sido cuidadosamente premeditada e que a chegada da fugitiva estivesse combinada. No choque que se seguiu à descoberta de que o perímetro de segurança fi nalmente fora violado, as teorias mais complicadas e mais pa-ranoicas começaram a brotar.

examinador: Mas você as descarta?

anaximandra: Sim.

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examinador: Por quê?

anaximandra: A História já nos provou a inutilidade das teo-rias conspiratórias. A complexidade gera o erro, e é no erro que nossos preconceitos se alimentam.

examinador: Você fala como Péricles.

anaximandra: As palavras podem ser dele, mas os sentimentos são meus. No caso de Adam, acho melhor acreditarmos na his-tória que ele contou. Uma reação simples e humana diante de uma situação que se desdobrou de maneira imprevista. As teorias da conspiração nos levariam a crer que tudo aquilo não poderia ter ocorrido de outra forma. Que todo o evento foi previsto e controlado. Mas o barco era pequeno e tinha um único mastro, muito frágil. Como ele atingiu a torre certa no período previsto? E como foi possível transmitir todas as informações necessárias para que essa façanha fosse realizada? Ninguém sugeriu uma resposta razoável para isso. Embora a reação do controle central diante dos acontecimentos fosse toda baseada em procedimen-tos-padrão, havia muito espaço para ações imprevistas. O tempo de chegada de um guarda substituto, por exemplo, dependia do número de reservas disponíveis. No caso, levou quinze minutos, mas em outro momento poderia ter levado apenas dois, bem como uma hora. Se Adam tivesse tido a chance de planejar toda a operação, ele teria providenciado roupas, remédios e comida para o dia da chegada da garota, mas nós sabemos que, entre outros motivos, foi o fato de ter comprado tudo isso às pressas, no dia seguinte, que começou a despertar suspeitas sobre ele. Não, eu acredito que tudo tenha ocorrido conforme ele nos contou. Ele apenas olhou nos olhos dela e decidiu que precisava agir.

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examinador: E era assim?

anaximandra: Era o quê?

examinador: Ele precisava ter agido?

anaximandra: Acho que sobre isso cada indivíduo tem que for-mar sua própria opinião.

examinador: Surge uma fugitiva que vem de uma região na qual grassou a peste mais devastadora da História da hu-manidade. Há instruções específi cas sobre como lidar com um fato como esse. E num impulso emocional Adam decide matar seu amigo e arriscar a segurança de uma comunidade inteira. Pode nos esclarecer, por favor, por que você julga que há mais de uma interpretação para o comportamento dele?

Anax hesitou. Não estava preparada para essa linha de ques-tionamento. Sua especialização era na área da História, não da Ética. Ela podia explicar o processo em que as provas da história de Adam tinham sido levantadas, mas não podia pro-por um método pelo qual se pudesse julgar essa história. Tinha suas próprias opiniões, é claro. Todos as tinham. Quem não já discutira a respeito, em casa, nas escolas, nos centros de lazer? Mas não estava preparada para defendê-las, não ofi cialmente. Não tinha qualifi cações para isso. Péricles lhe dissera para res-ponder cada pergunta da maneira mais completa e mais since-ra possível. Dissera que eles tentariam desestabilizá-la. Que a surpreenderiam com abordagens inesperadas. Ela continuou, mas tomando muito cuidado.

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anaximandra: Acho que todos sabem da existência de um am-plo leque de afi nidades entre a população. E não acho que isso seja uma surpresa, dado o lugar de destaque que Adam ocupa em nossa História. Acho compreensível haver quem considere suas ações heroicas. Acho que existe em nós um impulso para vê-lo dessa maneira.

examinador: E você sente esse impulso?

anaximandra: Como disse, todos o sentimos. Sua pergunta, imagino, é se esse é um impulso ao qual devamos obedecer ou algo que devamos controlar. Adam experimentou uma intensa empatia com aquela viajante desamparada. Ele fora instruído a deixar de lado essa compaixão, e as razões para isso eram sólidas. Embora ele possa ter acreditado que o perigo da peste havia passado, não foi uma atitude razoável tomar para si a responsabilidade de uma decisão em nome de toda a nação. Ele não era um especialista em virologia. No entanto, acho que aqueles que sentem o impulso de entender o heroísmo de Adam compreendem instintivamente a importância da empa-tia. Talvez seja necessário, para que uma sociedade funcione, que exista certo nível de empatia que não pode ser eliminado.

Pela primeira vez houve uma mudança perceptível nos três Exa-minadores. Eles se empertigaram em suas cadeiras. O líder pare-ceu fi car mais alto, e seus olhos brilharam com mais intensidade.

examinador: Está dizendo que uma sociedade ameaçada pela peste é preferível a uma sociedade ameaçada pela indiferença?

anaximandra: Esta é uma boa maneira de colocar a questão.

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examinador: E a sua resposta?

anaximandra: Acho que, nas circunstâncias, é impossível jus-tifi car o romantismo das ações de Adam, embora, dada nossa história, todos nós devamos ser gratos por elas.

Silêncio. Eles esperaram que ela continuasse a falar, mas Ana-ximandra sabia que acabara de se esquivar de um tiro e per-maneceu calma diante da banca, determinada a não avançar ainda mais naquela direção.

examinador: Uma resposta interessante.

anaximandra: Foi uma pergunta interessante.

examinador: Estou certo de que você está cronometrando nos-so tempo com muita atenção. Acabamos de concluir a primei-ra hora de nosso exame. Vamos pedir-lhe, de tempos em tem-pos, que passe para a sala de espera, enquanto a banca decide de que modo continuar a arguição.

anaximandra: Desejam que eu faça isso agora?

examinador: Se não se importar.

anaximandra: E quanto ao tempo?

examinador: Os cronômetros serão pausados.

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