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Campus Marechal Cândido Rondon Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras Programa de Pós-Graduação em História Área de Concentração: História, Poder e Práticas Sociais Anais do Simpósio V Simpósio de Pesquisa Estado e Poder 18 a 20 de agosto de 2015 Marechal Cândido Rondon Paraná

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Campus Marechal Cândido Rondon

Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras Programa de Pós-Graduação em História

Área de Concentração: História, Poder e Práticas Sociais

Anais do Simpósio

V Simpósio de Pesquisa Estado e Poder

18 a 20 de agosto de 2015

Marechal Cândido Rondon –Paraná

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V SIMPÓSIO DE PESQUISA ESTADO E PODER

DITADURA, TRANSIÇÃO E DEMOCRACIA

ANAIS DO V SIMPÓSIO DE PESQUISA ESTADO E PODER

PROMOÇÃO

Linha de Pesquisa Estado e Poder -Programa de

Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Sociais

Grupo de Pesquisa História e Poder

Colegiado do Curso de História

Laboratório de Pesquisa Estado e Poder

FINANCIAMENTO

SECRETARIA

Laboratório de Pesquisa Estado e Poder

UNIOESTE -Campus Marechal Rondon

Rua Pernambuco, 1777 -CEP: 85960-000 –

Fone: (45) 3284-7900

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V SIMPÓSIO DE PESQUISA ESTADO E PODER

DITADURA, TRANSIÇÃO E DEMOCRACIA Evento de âmbito nacional

COMISSÃO CIENTÍFICA Carla Luciana Silva, Gilberto Grassi Calil, Marcio Antônio Both da Silva, Paulo José Koling.

COMISSÃO ORGANIZADORA Alexandre Blankl Batista, Carla Luciana Silva, Carlos Eduardo Boaretto Pereira, Danilo

Fonseca, Edina Rautenberg, Gilberto Grassi Calil, Guilherme Ignácio Franco Andrade,

Isabel Grassiolli, Kleyne Lance, Lucas Patschiki, Marcos Alexandre Smaniotto,Marcos

Vinícius Ribeiro, Márcio Antonio Both da Silva, Maria José Castelano, Paulo José Koling,

Rodrigo Cândido da Silva, Rodrigo Paziani, Sandro Viana Essencio, Selma Martins Duarte;

Alessandro Pimentel, Cíntia Wolfart, Hiolly Batista de Souza, Jonas Christmann Koren,

Julius Daltoé, Mara Dulle dos Santos Silva, Raphael Almeida Dal Pai, Sabrina Rodrigues

Marques, Thomaz Joezer Herler, Valdir Sessi, Veridiana Bertelli de Oliveira; Graduandos:

Daniele Gish, Débora Rey, Luana Milena Pradela.

ORGANIZADORES DOS ANAIS DO EVENTO Alexandre Blankl Batista

Edina Rautenberg

Marcos Vinícius Ribeiro

Realização Linha de Pesquisa Estado e Poder

Grupo de Pesquisa História e Poder

Laboratório de Pesquisa Estado e Poder

Apoio Colegiado do Curso de História –UNIOESTE

Programa de Pós-Graduação em História –UNIOESTE

Laboratório de Ensino de História –UNIOESTE

Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais (LABELU-UEFS)

Grupode Estudos da Política da América Latina (GEPAL-UEL)

Grupo de Pesquisa Capitalismo e História (GPCH-UFG)

Núcleo de Estudos do Território, Movimentos Sociais e Relações de Poder (TEMPO-UERJ)

Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Contemporânea (NEPHC-UFG)

Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas - Marx (NIEP-MARX/UFF)

Todos os textos destes Anais são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo

qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à comissão organizadora do evento.

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

(Biblioteca da UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon – PR, Brasil)

Simpósio de Pesquisa Estado e Poder (5. : 2015 : Marechal Cândido S612d Rondon – PR)

Ditadura, transição e democracia: anais do V Simpósio de Pesquisa e Poder, 18 a 20 de agosto de 2015./ Organização de Alexandre Blankl Batista, Edina Rautenberg e Marcos Vinícius Ribeiro. – Marechal Cândido Rondon: 2015.

329 p. CD ISBN: 978-85-68205-00-6 1. Estado e poder. 2. Ditadura. 3. Democracia. I. Batista,, Alexandre Blankl, org. II.

Rautenber, Edina, org. III. Ribeiro, Marcos Vinícius, org. IV.Universidade Estadual do Oeste do Paraná.Programa de Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Sociais. Grupo de Pesquisa História e Poder. V. Título.

CDD 22.ed. 320.11

320.01

CIP-NBR 12899 Ficha catalográfica elaborado por Helena Soterio Bejio CRB-9/965

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29 DE ABRIL DE 2015: O ESTADO, O PODER, A VIOLÊNCIA E A

RESISTÊNCIA

Jamais esqueceremos o dia 29 de abril de 2015 e o cenário de massacre montado pela

Polícia Militar do Paraná, sob ordem do governador Carlos Alberto (Beto) Richa (PSDB) e

de seu Secretário de Segurança, Fernando Francischini (Partido Solidariedade), na Praça

Nossa Senhora da Salete, localizada no Centro Cívico de Curitiba. A resistência dos

funcionários públicos paranaense à imposição de novas reformas neoliberais foi

violentamente massacrada pelo covarde arsenal de guerra da polícia, enquanto o governador

assistia a tudo pela janela do Palácio Iguaçu. O aparelho repressivo do Estado e a violência

das bombas de gás, cassetetes, camburões e jatos d’água, balas de borracha, spray de

pimenta, cachorros sanguinários, helicópteros lançadores de bombas e vigias disfarçados no

alto dos prédios públicos, demonstrou o preço que o governador estava disposto a pagar para

saldar dívidas de campanha com o empresariado que apoiou a sua candidatura.

Os trabalhos relacionados ao ano letivo de 2015 nem bem começaram e os docentes

da rede pública de ensino se depararam com uma proposta de revisão da carreira docente

que retirava, e punha fim, ao plano de carreira dos professores e funcionários do serviço

público paranaense. Tratava-se de mais uma imposição rigorosamente neoliberal de derrota

histórica dos movimentos sindicais que conquistaram, à base de muita luta, um importante

quadro de direitos que favoreceu o retorno do interesse pelas licenciaturas, e pela carreira

docente num quadro mais amplo, depois dos ataques proferidos aos profissionais da

educação durante o governo de Jaime Lerner (PFL/DEM) de 1995-1999 e 1999-2003. Tal

luta incluiu sindicatos relacionados aos profissionais da educação de várias categorias e

unificou pautas durante seu itinerário de mobilizações ao longo dos anos de 1970, 1980,

1990 e 2000.

Porém, 2015 foi diferente. Mal começou o ano letivo e, ainda no período de formação

dos professores, também conhecida como “semana pedagógica”, difundiu-se a notícia de

que uma proposta do governador Beto Richa tramitaria na Assembleia Legislativa do Paraná

(ALEP) com claro interesse de desmontar a carreira docente, mas justificando o desmonte

na sanha de baratear o “ônus” do Estado com a folha de pagamentos. Ou seja, a educação,

mais uma vez, foi considerada uma despesa, mero gasto estatal. Nela, o ataque ao plano de

carreira docente, bem como a intenção de apropriar-se do fundo de aposentadoria dos

servidores, alocado no chamado “Paraná Previdência”, causou verdadeiro terror entre os

profissionais da categoria. Além disso, completava-se o quadro com fechamentos de turmas,

sucateamento das escolas, desresponsabilização do Estado em relação ao custeio de escolas

e retiradas de direitos conquistados pelos profissionais da educação. Parte desse quadro já

era esboçado em um documento de setembro de 2014 que indicava o corte de 30% do custeio

das instituições públicas.

Concomitantemente, a ampla discussão da pauta das reformas apresentada pelo

governo foi realizada pelos trabalhadores em seus locais de trabalho, deliberando-se pelo

ingresso no ano letivo, quase por unanimidade, com greve na educação. Algo inédito na

história da educação paranaense. Muitos professores e outros funcionários públicos se

reuniram em caravanas organizadas pelos seus respectivos sindicatos e foram a Curitiba para

demonstrar unidade de resistência frente aos ataques do governo.

A partir daí, mais precisamente no dia 9 de fevereiro de 2015, a Praça Nossa Senhora

da Salete foi ocupada por acampamentos de vigília que procuraram sensibilizar os deputados

estaduais para o desmonte da carreira docente e da educação promovido pelo governador

Beto Richa. Laços de solidariedade se estreitaram durante as mobilizações, de forma que o

sentimento geral compartilhado entre os mais diversos extratos do funcionalismo público se

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identificasse numa luta de unidade, visando, sobretudo, barrar o avanço das reformas

neoliberais propostas pelo governo.

Nas outras cidades do Estado, os educadores, majoritariamente, ocuparam os locais

públicos para dar visibilidade ao problema que há muito tempo se instalou na educação,

reivindicando a retirada da proposta pelo governo. As rádios locais debatiam diariamente a

condição da paralisação dos docentes e funcionários de escolas que davam depoimentos para

esclarecer a população sobre os motivos da greve, somados aos docentes das universidades

que, por especificidades dos calendários letivos, se juntaram à mobilização cerca de uma

semana depois de deflagrada a greve nas escolas, na mesma condição de iniciar o ano letivo

com greve.

Grupos de pressão compostos pelas lideranças sindicais pressionavam os deputados

em seus gabinetes para que a proposta fosse barrada. Pelo interior do Estado, assim como na

capital, os educadores promoviam mobilizações espetaculares e fortemente apoiadas pela

população, também alvo de diversos arrochos promovidos pelo governo, com especial

destaque para o aumento de 80% na tarifa de IPVA e no aumento sobre o imposto de mais

de 100 itens de primeira necessidade.

A greve dos funcionários públicos foi acolhida pela população como uma forma de

resistência legítima às imposições neoliberais do governador Beto Richa. Por onde

passavam, os profissionais da educação receberam amplo apoio da população. Um dos

jornais da grande imprensa paranaense, Gazeta do Povo, publicou editorais que noticiavam

o descontentamento da população com as violentas medidas do governador contra o povo,

afirmando que a greve chegava a 90% de aprovação entre os paranaenses. Apesar da

considerável visibilidade relegada à greve pela imprensa regional, nada se falou na imprensa

nacional, um verdadeiro silenciamento diante da mobilização, demonstrando o apoio

estratégico da grande mídia às austeridades do governo. Os jornais nacionais da Rede Globo

de Televisão só deram espaço ao então Secretário da Fazenda de Beto Richa, Mauro Ricardo

Costa, autor de conhecidos botins de guerra nos Estados da Bahia e de Minas Gerais,

verdadeiro articulador de saques do dinheiro público e conhecido por implantar planos de

austeridade com retirada de direitos de trabalhadores do setor público.

Mesmo assim, o Governador enviou à ALEP o projeto de lei que foi rejeitado

parcialmente, voltando para o governador para reformulações. Porém, apresentada uma

segunda vez, revelou-se que o ponto nodal da proposta era a retirada do fundo previdenciário

dos funcionários públicos para saldar dívidas da campanha do Governador. Alegando que o

Estado estava quebrado, aproveitando o terror difundido em âmbito nacional sobre o

aprofundamento da crise financeira do Estado, o Governador reeleito, paradoxalmente,

alegava que as contas do Estado necessitavam de saneamento e a poupança do fundo de

aposentadoria dos funcionários, meticulosamente escolhido por Mauro Ricardo Costa para

medidas de austeridade, deveria ser apropriada pelo Estado, passando de um investimento

conservador, sem possibilidade de manejo, a outro com autorização para ser mexido pelo

governo a fim de sanar as dívidas do Estado.

Com todo o funcionalismo mobilizado na Praça Nossa Senhora da Salete, o

Governador deu o “tiro de misericórdia”. Com a certeza de aprovação da nova lei que

passaria a regulamentar o fundo de aposentadoria dos funcionários públicos, o projeto foi

reencaminhado para votação, pois até mesmo os deputados da oposição, após a vitória do

Governador no primeiro turno, passaram à situação.

No dia 12 de fevereiro de 2015, na sessão ordinária da ALEP, os funcionários

públicos do Estado do Paraná ocuparam a popular “Casa do Povo” e barraram a votação que

já caminhava para o seu desfecho. A ocupação permaneceu por mais dois dias, quando foi

desocupada, dado o cancelamento das sessões posteriores devido ao recesso de carnaval, sob

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ameaça de multa aos sindicatos. Mesmo assim, os educadores resistiram em vigília.

Passaram todo o carnaval na praça.

No dia 13 de fevereiro de 2015, ainda durante a ocupação, os trabalhadores montaram

postos de vigilância barrando todos os acessos à ALEP, pois as notícias corriam e davam

conta de que o projeto seria votado à força. Na tarde daquele dia, numa cena inesquecível, a

tropa de choque da polícia avançou com o Caveirão sobre as grades que cercam a Assembleia

Legislativa. Após três bombas de efeito moral e um cordão de isolamento para proteger o

Caveirão, cortaram a grade e deram acesso ao pátio interno da ALEP para os passageiros do

camburão. Um a um, cerca de 20 deputados saíram do interior do camburão e direcionaram-

se aos aposentos do restaurante daquele prédio público. A turma do camburão, como ficou

conhecido o grupo de deputados, dedicados ao botim da aposentadoria dos servidores

públicos, queriam votar a proposta de saque da previdência à força, como forma de

demonstrar fidelidade ao Governador. O pátio foi novamente ocupado pelos trabalhadores

que fizeram recuar os deputados, pois temiam uma segunda ocupação da Assembleia

Legislativa por parte dos trabalhadores. No retorno das atividades da ALEP, um acordo

parcial para novas negociações foi selado e retornou-se às atividades com a manutenção do

estado de greve.

Porém, no dia 28 de abril de 2015, novamente em meio ao clima de terror, difundiu-

se que a proposta de apropriação do fundo previdenciário seria encaminhada novamente à

ALEP. Rapidamente, os trabalhadores retornaram à greve, já submetida à fortíssima pressão

da mídia diante dos ataques judiciais, ilegais, contra os sindicatos. É necessário lembrar que,

no calor das ações de arrocho contra a educação, o governador aprovou aumento de auxílio

moradia para juízes, na ordem de 4,4 mil reais, tentando ganhar para si um importante grupo

de pressão sobre a mobilização dos profissionais da educação e outras frações do

funcionalismo público paranaense. A medida de aumento do auxílio para juízes ocorreu

ainda no dia 29 de setembro 2014.

O massacre começou na madrugada do dia 28 de abril de 2015. Após cercar a ALEP

com grades, os policiais retiraram à força os manifestantes que resistiam. Helicópteros

davam voos rasantes sobre as barracas onde alguns educadores tentavam dormir, e muitas

voaram com a força do vento. O terror instalou-se novamente como tática de pressão sobre

os profissionais da educação. Ligeiramente, difundiu-se um chamado geral e conclamação a

todos à resistência, em meio ao terror, para tentar barrar o novo ataque à previdência dos

trabalhadores públicos paranaense.

Em meio às balas de borracha, professores ensinando a resistência. Em uma luta

desigual, servidores públicos se mobilizavam. De um lado, profissionais da educação, muitos

na eminência de se aposentar, outros tantos em início de carreira, desesperados com o

desrespeito do governo. De outro, policiais de todo o Estado do Paraná que foram

convocados para impedir a entrada em uma Assembleia que deveria ser do povo. Em tempo

real, vídeos eram encaminhados via redes sociais, demonstrando o cenário de guerra

instaurado em uma suposta praça santa de Curitiba. Cenas de terror que ainda comovem

quem lembra e/ou assiste.

Porém, o governo impôs o saque à previdência. Aprovou-se a proposta mesmo após

todos os esforços de mobilização dos trabalhadores que dividiu os deputados, mas cuja

maioria decidiu obedecer ao governador. Por isso, não esqueceremos o Massacre de 29 de

Abril de 2015.

Não esqueceremos porque o governo continua com as políticas de austeridade em

todos os segmentos públicos. Não esqueceremos porque o Massacre do dia 29 de Abril foi

apenas um dos exemplos da violência extrema empregada pelo Estado contra os

trabalhadores brasileiros. Não esqueceremos porque a greve de 2015 – apesar de ter lutado

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contra a estratégia do governo de desgaste máximo dos profissionais da educação, quando

da reposição das aulas – demonstrou a união e a força do setor, reunindo profissionais do

Ensino Fundamental e Superior de praticamente todo o Estado do Paraná. Não esqueceremos

porque foi mais uma demonstração de quão limitada é a chamada “democracia” neste país.

Na chamada do V Simpósio de Pesquisa Estado e Poder, “Ditadura, transição e

Democracia”, ilustrávamos uma referência à violência empregada pela Ditadura Civil-

Militar no Brasil. A lâmina por si só evoca lembranças dolorosas, cicatrizes que não

desaparecem jamais. Lembranças daqueles que resistiram contra o estado de violência que

se implantara no Brasil e que desapareceram. Trabalhadores que lutavam contra o falso

“desenvolvimento” conquistado com base no arrocho salarial e foram torturados e/ou

executados. Mortos que ainda se buscam os corpos. Memória que deve permanecer História.

Verdade que exige, luta por Justiça.

Mudam-se os contextos, mas a não terminada transição da Ditadura para a

Democracia continua produzindo exemplos. O V Simpósio foi planejado em contexto de

repressão e resistência. A nova imagem escolhida, o Massacre de 29 de abril de 2015, registra

que os limites entre democracia e ditadura são muito tênues, e que o recurso à violência é

uma forma de contenção aos movimentos de resistência. Mas o evento demonstrou o

engajamento de dezenas de pesquisadores preocupados em garantir a busca permanente pela

emergência deste passado ainda tão presente. Resistência que se faz também através da

abordagem desta história. Foram 94 comunicações inscritas e 76 efetivamente apresentadas.

51 textos compõem o presente Anais, distribuídos conforme ordem alfabética dos autores.

O Estado, o poder, a violência e a resistência… Ditadura, transição e democracia…

No tempo em que Golpe é apresentado como luta pela democracia, temos a satisfação de

publicar estes Anais. Que esse conjunto de estudos sirva para esclarecer e opor-se àqueles

que clamam pela Ditadura, além de evidenciar as limitações de nossa democracia. “Para

que não se esqueça, para que jamais aconteça!” Ditadura nunca mais! 29 de abril, não

esqueceremos!

Marechal Cândido Rondon, abril de 2016.

Organizadores dos Anais Alexandre Blankl Batista

Edina Rautenberg

Marcos Vinicius Ribeiro

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SUMÁRIO

MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS NO PARANÁ: INÍCIO DO SÉCULO XXI ................................. 10

ALESSANDRO PIMENTEL

A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA NO PERÍODO DA DITADURA CIVIL-

MILITAR E CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE CURUÁ-UMA NO MUNICÍPIO DE

SANTARÉM-PA ........................................................................................................................................... 16

ANDRÉ DAS CHAGAS SANTOS

ANDREIA PERON

O MAOÍSMO MEXICANO DE ESQUERDA ........................................................................................... 21

AZUCENA CITLALLI JASO GALVÁN

O CRESCIMENTO DO NEOCONSERVADORISMO E DA EXTREMA DIREITA NOS ESTADOS

UNIDOS DA ÁMERICA NO SÉCULO XXI (2001 – 2009) ...................................................................... 28

CARINA RAFAELA DE GODOI FELINI

GUILHERME IGNÁCIO FRANCO DE ANDRADE

“ERA UMA VEZ UM TIRANO”, DE ANA MARIA MACHADO, LITERATURA INFANTIL NO

INÍCIO DA DÉCADA DE OITENTA COMO FORMA DE DENÚNCIA .............................................. 34

CELIMARA CRISTINE LIMA

SOLANGE MARILENE MELCHIOR DO PRADO

OS CLUBES 4-S: OS ESTADOS UNIDOS E A EXTENSÃO RURAL EM MARECHAL CÂNDIDO

RONDON/PR (1960) ..................................................................................................................................... 40

CÍNTIA WOLFART

COMPOSIÇÃO SOCIAL E DISTRIBUIÇÃO REGIONAL DE CÉLULAS DO PARTIDO

COMUNISTA DO BRASIL (PCB) NO ESTADO DO PARANÁ (1945-1955) ........................................ 45

CLAUDIA MONTEIRO

OS IMPACTOS DA MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA NO OESTE PARANAENSE (1960-

1980)................................................................................................................................................................ 51

DANIELI CAROLINE SCHNEIDT GISH

APARTHEID, DEMOCRATIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO NA ÁFRICA DO SUL

CONTEMPORÂNEA ................................................................................................................................... 57

DANILO FERREIRA DA FONSECA

PRÁTICAS LITERÁRIAS E POLÍTICAS NA ARGENTINA DO REGIME AUTORITÁRIO DOS

ANOS 50 ......................................................................................................................................................... 63

DENISE SCOLARI VIEIRA

TEORIA SOCIAL E ESTRATÉGIA: A “RESPOSTA INTELECTUAL” DE FLORESTAN

FERNANDES AO CONFRONTO ENTRE ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO NO

CONTEXTO DA DITADURA EMPRESARIAL-MILITAR NO BRASIL ............................................. 69

DIOGO PERETO

“CPI QUATRO RODAS”: ABRIL E DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA .......................... 75

EDINA RAUTENBERG

CRÍTICA À IDEIA DO “CARÁTER PATRIMONIALISTA” DO ESTADO BRASILEIRO .............. 81

ELSIO LENARDÃO

O ENSINO DO MOBRAL NA DITADURA ............................................................................................... 89

ERICA DA COSTA

FOCALIZAÇÃO OU UNIVERSALIZAÇÃO: AS AÇÕES DO ESTADO.............................................. 95

FELIPE JOSÉ DE MORAES NETO

NOMEANDO OS BOIS: O QUE É O CHAMADO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO? ..................... 101

GABRIEL BARBOSA ROSSI DA SILVA

RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES DO OESTE PARANAENSE AO PROJETO DE

MODERNIZAÇÃO DO CAMPO BRASILEIRO DURANTE OS ANOS DE 1968-1985 .................... 107

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HIOLLY BATISTA JANUÁRIO DE SOUZA

TRABALHADORES E VILA ELETROSUL: PERCURSOS DA DESIGUALDADE NO MODO DE

VIVER E ENFRENTAR O ATENDIMENTO PÚBLICO DE SAÚDE (GUAÍRA, 1980-2015) .......... 114

JANAINA RODRIGUES DOS SANTOS

A REPRESENTAÇÃO DA DITADURA MILITAR NO DOCUMENTÁRIO O DIA QUE DUROU 21

ANOS ............................................................................................................................................................ 121

JEAN ISIDIO DOS SANTOS

“CRENTE VOTANDO EM COMUNISTA? ESSA NÃO!”: O ANTICOMUNISMO EM SILAS

MALAFAIA ................................................................................................................................................. 127

JONAS CHRISTMANN KOREN

ANÁLISE DA “NOVA” PEDAGOGIA APRESENTADA NA REVISTA NOVA ESCOLA ................ 133

KARINE BIASOTTO

“AINDA UMA EXPLICAÇÃO SOBRE A JUVENTUDE HITLERISTA”: ANÁLISE DA NARRATIVA

AUTOBIOGRÁFICA DE ADOLF WILHELM HENSE ........................................................................ 138

KELLIN CAROLINE SCHÖNE

JORNAL NOSSO TEMPO: OPOSIÇÃO AO REGIME MILITAR NOS ANOS DE 1980 A 1985 ..... 144

LUANA MILANI PRADELA

“DAQUI SÓ SAIO SE ME DER UMA CASA PRA MORAR”: A LUTA PELA MORADIA EM FOZ

DO IGUAÇU (1970-1990) ........................................................................................................................... 151

LUCAS EDUARDO GASPAR

O FASCISMO CONTEMPORÂNEO E A OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS NA INTERNET: O CASO DO

MÍDIA SEM MÁSCARA ........................................................................................................................... 158

LUCAS PATSCHIKI

NOVO CÓDIGO FLORESTAL BRASILEIRO: EMBATES IDEOLÓGICOS E INTERESSES EM

TORNO DA APROVAÇÃO DA LEI12651/12 ......................................................................................... 164

LUCIANO EGIDIO PALAGANO

OS IMPACTOS DA DITADURA SOBRE O TRIBUNAL MILITAR DE MG (1964-1965)................ 172

LUCIANO MENDES FERREIRA

EM DIREÇÃO AO ABISMO SOCIAL: A LITERATURA COMO FONTE PARA COMPREENDER A

ACUMULAÇÃO DE MISÉRIA DA DITADURA BRASILEIRA.......................................................... 178

LÚCIO FELLINI TAZINAFFO

GUAÍRA EM TEMPOS DE DITADURA CIVIL-MILITAR: A ATUAÇÃO DA DITADURA DE

SEGURANÇA NACIONAL NA CIDADE DE GUAÍRA-PR (1964-1985) ............................................. 185

MARA DHULLE DOS SANTOS SILVA

UMA ANÁLISE DO HERÓI: VISÕES DISTINTAS DE UM MESMO CONCEITO NA OBRA DE

HOMERO .................................................................................................................................................... 192

MÁRCIO AUGUSTO GALANTE

NOTAS PROMISSÓRIAS RURAIS: CRISE E CONFLITO NO EXTREMO-OESTE DO PARANÁ NA

DÉCADA DE 1970 ...................................................................................................................................... 197

MARCOS ALEXANDRE SMANIOTTO

O SOBREVOO DO CONDOR EM FOZ DO IGUAÇU: O CASO DE REMIGIO GIMENEZ

GAMARRA .................................................................................................................................................. 204

MARCOS VINICIUS RIBEIRO

A INFLUÊNCIA DE MARX E DOS MARXISMOS NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO DA

INTERNACIONAL SITUACIONISTA .................................................................................................... 210

MARCUS VINÍCIUS COSTA DA CONCEIÇÃO

IGREJA, QUESTÃO AGRÁRIA E ESTADO ......................................................................................... 216

MARIA JOSÉ CASTELANO

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ENTRE A MODERNIDADE E A TRADIÇÃO: A VOZ DESAUTORIZADA DO IDOSO EM

“SANGUE DA AVÓ MANCHANDO A ALCATIFA” E “CHUVA, A ABENSONHADA” DE MIA

COUTO ........................................................................................................................................................ 224

NEUZA BRAZIL DE CASTRO

“REVOLUÇÃO’ VERSUS “TRANSIÇÃO”: UM BREVE DEBATE ACERCA DO 25 DE ABRIL .. 231

PAMELA PERES CABREIRA

O CINEMA HOLLYWOODIANO E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER RETRATADA NO

FILME “NUNCA MAIS” ........................................................................................................................... 237

PEDRO HENRIQUE MIRANDA

TRANSGÊNEROS PAULISTANAS NA MIRA DA POLÍCIA CIVIL – A CONTRAVENÇÃO PENAL

DE VADIAGEM NA DITADURA CIVIL MILITAR ............................................................................. 243

RAFAEL FREITAS OCANHA

O GOLPE DE 1964: ESCOLA, HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO HISTORIOGRÁFICA NO ENSINO

MÉDIO ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL ................................................................................. 248

RAFAEL POLICENO DE SOUZA

O ISOLAMENTO POLÍTICO DE FLORES DA CUNHA: O PAPEL DE GETÚLIO VARGAS ...... 255

RAFAEL SARAIVA LAPUENTE

ASSESOAR: LUTA POR EDUCAÇÃO POPULAR E REFORMA AGRÁRIA NO SUDOESTE DO

PARANÁ ...................................................................................................................................................... 261

RICARDO CALLEGARI

“QUEREM APAGAR O LAMPIÃO” ....................................................................................................... 267

RONIELYSSOM CEZAR SOUZA PEREIRA

KARL POPPER: SOBRE A TEORIA DA MENTE OBJETIVA - APROXIMAÇÃO DA TESE DOS

TRÊS MUNDOS E O PROCESSO DE COMPREENSÃO DOS MESMOS COM A INVESTIGAÇÃO

DO PESQUISADOR ACERCA DO RESGATE DA MEMÓRIA DOS MORADORES SOBRE A

COLONIZAÇÃO E FORMAÇÃO DO DISTRITO DO PORTÃO OCOÍ MISSAL/PR ..................... 272

ROSANGELA PARIZOTTO

“A CRISE DO SUBPRIME” UMA ANÁLISE CONJUNTURAL DA REVISTA VEJA EM 2008 ..... 277

SABRINA RODRIGUES MARQUES

BLOCO DE PODER, CONTROLE POLÍTICO E OS LIMITES DA “REDEMOCRATIZAÇÃO”:

UMA ANÁLISE DO MOVIMENTO DIRETAS JÁ EM CAMPO GRANDE – MS ............................. 282

SAMUEL FERNANDO DA SILVA JUNIOR

DITADURA NO OESTE PARANAENSE. UMA ANÁLISE ACERCA DA REPRESSÃO SOFRIDA

PELOS EXPROPRIADOS, NA CIDADE DE GUAÍRA-PR, BEM COMO SUAS LUTAS, DURANTE

A CONSTRUÇÃO DA USINA HIDROELÉTRICA ITAIPU BINACIONAL (1970 A 1990) ............. 288

SIMONE DE SOUZA CORRÊA

ADEMAT: DAS PÁGINAS DE O MATOGROSSENSE À AÇÃO PARAMILITAR EM CAMPO

GRANDE (1963-1964) ................................................................................................................................. 295

THAÍS FLECK OLEGÁRIO

RELAÇÕES DE GÊNERO NO CONTEXTO DE EMANCIPAÇÃO DA CIDADE DE CASCAVEL –

PARANÁ ...................................................................................................................................................... 302

THALUAN RAFAEL DEBARBA BAUMBACH

CONTO E CRÔNICA: UM OLHAR SOBRE A CIDADE TRAÇADA/VIVIDA ................................. 308

VANUSA DE SOUZA

AS COMISSÕES DA VERDADE NAS UNIVERSIDADES E O OBJETIVO DE ASSEGURAR O

DIRETO À MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA REFERENTE AO PERÍODO DA DITADURA

CIVIL-MILITAR ........................................................................................................................................ 315

VERIDIANA BERTELLI FERREIRA DE OLIVEIRA

A CENSURA E A ARTE COMO RESISTÊNCIA E PROTESTO CONTRA O AI-5 ......................... 322

VICTOR HUGO DE OLIVEIRA PINTO

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MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS NO PARANÁ: INÍCIO DO SÉCULO XXI

Alessandro Pimentel1

Resumo: Apresento como proposta de análise compreender o papel desempenhado pela

grande mídia paranaense em relação aos movimentos sociais que se manifestaram a partir

do início do século XXI. Percebendo como a grande mídia se posiciona frente às

mobilizações populares ao longo dos primeiros anos deste século, entendo a mídia como um

aparelho privado de hegemonia e situado dentro de um campo de luta de classes. Esses

aparelhos de comunicação sejam eles jornais, revistas ou programas jornalísticos

televisionados, ao se posicionarem sobre determinados assuntos de interesse sociais, acabam

influenciando diretamente sobre o desenrolar dos acontecimentos. Nesse sentido, penso que

é importante situar a mídia dentro de um campo de relações sociais. A análise proposta tem

como fonte dois grandes jornais que circulam a níveis estaduais: o Jornal Gazeta do Povo e

Folha de Londrina. Esses dois colocam-se como formadores de opinião. Diante disso,

objetivamos a compreensão e a análise das relações da mídia com os movimentos sociais.

Esses dois periódicos têm grande relevância para compreendermos como aparecem e como

são entendidos os movimentos sociais a partir da mídia capitalista paranaense.

Palavras-chave: mídia; movimentos sociais; hegemonia.

Ao nos propormos pensar o papel da mídia na sociedade atual devemos entendê-la

não mais como se pensou no passado ou mesmo como o jornalismo tenta reproduzi-la,

seguindo uma ideia de neutralidade. Entender o protagonismo da grande mídia é um ponto

de partida para se conhecer e compreender a realidade histórica e social na qual se

desenvolvem atualmente os processos históricos. Assim, é imprescindível ater-se à

capacidade daqueles que se utilizam dos meios de comunicação para propor modelos sociais

e econômicos, pois se percebermos os agentes que formam e conduzem a grande mídia,

entenderemos também seus discursos e seus interesses. Daí ser imprescindível compreender

a atuação da mídia e de seus interesses, que podem ser particulares ou de um grupo, ou pode

vir a ser social, se aceito pela sociedade em geral.

É importante salientar que as mídias, jornais, revistas, programas jornalísticos

televisivos, além das mídias digitais, como revistas eletrônicas ou blogs, ou mesmo

programas jornalísticos transmitidos pelas rádios difusoras, devem ser pensados como

integrantes das relações que são construídas nos campos social e econômico, uma vez que

fazem parte daquilo que se constitui como norteador da sociedade em que estas mídias estão

inseridas e nelas atuam como representação ou representando determinados grupos e classes

sociais.

Carla Silva, debatendo sobre o papel da grande imprensa no Brasil, propõe que esta

está inserida no social e milita em temas que são de relevância para a sociedade, o que

demonstra que a mídia não é parcial. Segundo a autora:

O jornal e a revista não são inertes folhas de papel, mas folhas de papel que

representam, são voz e calam a sujeitos sociais concretos. Tudo isso

problematizado, permite propor um jornal ou revista como um objeto de

estudo: sua história, relações com o grupo que o publica, os interesses

1 Mestrando em história da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

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econômicos o projeto político, a inserção social, etc. (SILVA, 2014,

p.132).

A partir da fala da autora é possível perceber como esses meios de comunicação estão

inseridos nas relações sociais que se estabelecem na sociedade. Isso nos leva a pensar que

essas vozes de que a autora fala são direcionadas a determinados segmentos da sociedade.

Assim, colocam em debate temas que implicam nas relações que se desenvolvem

socialmente. Ao selecionar o que vão falar, esses meios de comunicação propõem a

relevância dos temas e, massivamente, repetem os assuntos sobre esses temas à exaustão. De

alguma forma, isso acaba por adentrar as mentalidades das classes, tanto das populares

quanto das elites dominantes, ou ainda da classe média, como temos observado atualmente

com as notícias diárias sobre o “combate à corrupção”. É um dado importante uma vez que

esse tema tem sido ovacionado pelas classes médias e por parte da burguesia nas

manifestações de 2015.

Diante disso, vemos que as vozes da grande mídia são ouvidas e, em alguns casos,

atendidas, como no exemplo dessas manifestações, o que demonstra como determinados

seguimentos da sociedade têm ligação direta com essas vozes. Outrossim, é preciso entender

também que, em geral, na atualidade, a grande mídia está ligada diretamente com o capital

e, por isso, tem interesses que se aproximam ou coadunam com os interesses da classe

dominante. Além disso, a burguesia fomenta o capitalismo e se utiliza da mídia para levar

seus interesses ao restante da população. Por isso, o olhar do historiador deve superar aquele

idealismo de entender a mídia apenas como um aparelho a trabalho do cidadão e dos

interesses públicos. Na verdade, deve ser entendida dentro de um campo de luta de classes,

pois ela toma partido e milita por causas que, na maioria das vezes, são de interesse das

classes dominantes. Nesse caso, a grande mídia deve ser concebida pelos historiadores como

um aparelho que é privado, mas que se relaciona e interfere no social e no público. Por isso,

deve ser entendida como um aparelho privado de hegemonia, uma vez que leva a voz das

classes dominantes aos setores populares, com a intenção de que ela seja ouvida, aceita e

colocada como a ideal e dominante.

Um dos aspectos extremamente importantes ao se pensar a mídia é perceber como

ela está inserida dentro de um campo de relações capitalistas, além de representar os

interesses das classes dominantes ligadas ao capital. Como nos apresenta Francisco Fonseca

(2005), a mídia transforma a notícia em um espetáculo dentro de um parâmetro

mercadológico, com interesses particulares e coletivos. Segundo o autor, é possível verificar

um modo operante aglutinador que, em várias esferas, repete-se a notícia como

entretenimento de modo espetaculoso. Portanto, existe um modo hegemônico da mídia

operar:

Esses aspectos simultaneamente empresariais e ideológicos pertencem à

dinâmica da intermediação das relações sociais. Sobretudo nas

circunstâncias em que os principais meios de comunicação convergem

ideologicamente, caso da introdução da agenda neoliberal no Brasil e da

crítica – observada perenemente – aos movimentos sociais (FONSECA,

2011, p.5).

Se a própria mídia é uma empresa capitalista que objetiva lucros, portanto, as notícias

e o modo como ela é apresentada transformam-se em mercadoria, e isso também observo no

caso do jornal a qual investigo, o Gazeta do Povo, que é integrado junto a uma grande rede

de veículos de comunicação.

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No decorrer dos anos, os sócios da Gazeta do Povo compraram a TV

Paranaense, canal 12, de Curitiba, contando com mais um sócio, o

empresário Roberto Marinho. A Rede Paranaense de Comunicação integra

a Gazeta do Povo, Diário da Tarde, Jornal de Londrina - este último foi

comprado em 2000 - pela Rádio FM 98, de Curitiba e por oito emissoras

de televisão, espalhadas no Estado, todas repetidoras da Rede Globo

(SEVERO; NETO, 2010, p. 4-5).

Severo e Neto, refletindo sobre “o processo de relações de consumo com o

jornalismo”, acabam nos apresentando um panorama sintomático das relações monopolistas

que se desenvolvem quando grupos privados com interesses econômicos assumem o papel

de fornecer informações à população. Como foi apresentado, a notícia torna-se algo

“espetaculoso”, porque é uma mercadoria que deve gerar lucros. Para que isso aconteça,

deve ser vendida. Então, vemos como se faz necessário um estudo que explore e compreenda

qual o significado que a mídia dá à democracia, pois, na verdade, o que se tem perpetuado é

um campo de monopólio financeiro e político.

Por isso, “os órgãos da mídia – emissoras de TV, rádios, jornais, revistas, portais –

são em larga medida empresas privadas que, como tal, objetivam o lucro e agem segundo a

lógica e os interesses privados dos grupos que representam” (FONSECA, 2011, p.3).

A consequência mais visível disso é de que a notícia é veiculada de forma

espetaculosa, e o próprio campo político transforma-se em um espetáculo que é transmitido

pela mídia. Uma vez que o interesse é o lucro, pouco importa o modo como o objetivo final

é alcançado. O espaço para o debate político acaba sendo reduzido ao entretenimento e a

mídia acaba transformando-se em um aparelho hegemônico, em que até mesmo o modo no

qual a política é feita deve adequar-se aos interesses do capital e da mídia, sendo excluídos

do processo os interesses das classes populares. Entretanto, “embora os conflitos

permaneçam e se complexifiquem, tendo em vista a política ser um terreno aberto, seu

enquadramento passa pela mídia, pois é ela o agente que faz a intermediação das relações

sociais” (FONSECA, 2011, p.4).

Seguindo esse raciocínio podemos perceber que a mídia está colocada em um

patamar de luta que se movimenta de acordo com os interesses de seus gestores, que são

grupos ou pessoas que tem interesses econômicos e que para alcançarem seus objetivos se

utilizam da mídia para influenciar a vida política dos Estados. De acordo com Carla Silva:

Relacionado a isso defendemos a tese de que a imprensa atua

politicamente, muitas vezes tendo atuação substitutiva a dos partidos

políticos e muitas vezes estão em sintonia com aparelhos privados de

hegemonia dada a complexidade das empresas jornalísticas nos tempos

atuais (SILVA, 2014, p.132).

A partir da fala da autora é possível perceber que mesmo os meios de comunicação

não estando diretamente vinculados a partidos políticos declaradamente, a mídia defende e

milita por agendas que são de interesses da classe dominante e de determinados partidos

políticos, saindo assim daquele campo neutro e imparcial que os jornalistas tanto defendem,

colocando-se na disputa para fazer valer também os interesses da própria mídia. Tal

perspectiva foi demonstrada por Francisco Fonseca em sua obra O Consenso Forjado, na

qual analisou a atuação dos quatro maiores jornais dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro

durante a formulação da Constituição Nacional de 1988. Em sua obra o autor demonstra que

os periódicos Folha de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e o Estado de São Paulo

militaram ferozmente a favor da implantação da agenda ultraliberal, e não mediram esforços

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para atacar os direitos trabalhistas e sociais que estavam em discussão. A partir dessa obra

temos um panorama de como, para a mídia, é mais viável manter o discurso da neutralidade,

e que isso também interessa aos partidos políticos. Uma vez que a mídia apoie suas agendas

políticas ou econômicas, isso dá até um certo grau de confiança para os políticos desses

partidos, pois passam a usar o jargão do senso comum, em que se diz “quem está dizendo é

a mídia”, ou, em outras palavras, a imprensa. Portanto, em uma concepção geral, seria uma

voz que fala, mas que não é apenas a voz do partido, e sim a de um outro setor da sociedade,

ou seja, a mídia. Isso dá até mais força para a implementação das agendas defendidas por

esses grupos.

Além disso, essa problemática nos remete a outro fator importante de ser lembrado

aqui: a questão da opinião pública. Um grande jornal, como é a Gazeta do Povo, coloca-se

como um aparelho que está preocupado com o bem-estar geral da sociedade, e ainda se

propõe a constituir a “opinião pública”, que na maior parte não é pública, mas de um grupo

em particular, a saber, dos seus leitores e assinantes. Isso nos leva a mais um fator importante

na compreensão das intenções das mídias. Ou seja, é importante lembrar e conhecer para

quem o jornal escreve, qual é o estrato social que recebe suas informações e como está

comprometida com essa classe? Nesse sentido, é importante remeter a ideia de que a

“opinião pública” que se quer formar, na verdade, é de um pequeno número de pessoas,

levando-se em consideração o número de assinantes da Gazeta do Povo em relação à

população total do Paraná, por exemplo.

Portanto, essa opinião jamais será totalmente pública, mas não deve ser descartada,

pois também é gestada dentro das relações sociais e de luta de classe, pois, se for aceita pela

maioria da população, então será hegemônica e fará parte das relações entre as classes

dominantes e as classes populares. Diante disso, Francisco Fonseca nos dá um parecer sobre

o papel das mídias nas formações da “opinião pública”. Segundo o autor:

A grande imprensa, concebida como ator político/ideológico, é

fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses e de

intervenção na vida social, pois representa, por meio de seus órgãos, uma

das instituições mais eficazes quanto à inculcação de ideias em relação a

grupos estrategicamente reprodutores de opinião, caracterizando-se como

polos de poder. Tais grupos sociais são constituídos pelos estratos médios

e superiores da hierarquia social brasileira (FONSECA, 2005, p.30).

Assim, a informação que é repassada aos leitores vem carregada de ideologias em

meio a que a mídia está inserida. Isso proporciona o caráter de agente social e político na

qual atua para representar determinados interesses. Como aponta Fonseca, sua voz é dirigida

a um grupo estrategicamente reprodutor da opinião, pois dá um sentido político à linguagem

que é falada pelas mídias aos seus leitores. Isso caracteriza-se como manipulação midiática

desses setores que o autor aponta, pois eles incorporam, e até militam, por essas ideias.

Portanto, essa seria a “opinião pública” que interessa à mídia, ou seja, a opinião dos seus

leitores que iriam reproduzi-la socialmente.

Nesse ponto, podemos questionar: como, então, os movimentos populares são vistos

e noticiados por essas mídias, uma vez que elas têm um lado pelo qual militam, e tomam

partido em questões que são de interesse público? A possibilidade mais viável de resposta

seria a de que as informações são manipuladas e distorcidas para informar, porém, ocultando

as intenções da mídia. Se os movimentos populares questionam a ordem e as agendas

defendidas pela mídia, logo começam os ataques contra esses movimentos, de modo a

denegri-los frente ao grosso da sociedade.

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Como bem aponta Fonseca, quando debate o papel informativo dos jornais sobre as

manifestações populares no início da nova república, o jornal cobra medidas do Estado.

Desse modo, o Estado seria o mantenedor da ordem na nova sociedade que está se formando

com o fim da ditadura. O autor diz o seguinte:

Não deixa de ser sintomático o jornal assumir a própria simbologia do

conflito, embora com sinais invertidos, pois vê na manifestação um

potencial anômico à ordem. No entanto, se uma mera manifestação

estudantil é concebida como conspiratória, o tratamento conferido ao

conflito capital/trabalho será ainda mais radicalizado, como se pode

observar no fato de querer a aplicação das leis autoritárias para

combater as greves logo no início da “Nova República”, isto é,

quando da transição que restituiria a democracia (FONSECA, 2005,

p.428).

Nesse fragmento, além de observar o quanto as greves e manifestações populares

podem ser mau vistas pela grande mídia, pois contestam a hegemonia capitalista da qual

estas fazem parte, também observamos que a mídia pode influenciar até mesmo nas decisões

tomadas pela justiça e pelo Estado. Ao cobrar punições severas a respeito desses

movimentos, também transparece o quanto a mídia pode auxiliar na manutenção da ordem

burguesa, ou seja, ela está intimamente ligada às ações dominantes e, por ela, emite opiniões

que ajudam a construir mecanismos de controle social. Portanto, quaisquer que sejam as

contestações que se façam ao projeto de sociedade defendido pela grande mídia, são logo

criminalizados, e passam a ser mal vistos por um grande contingente social, que, como já foi

apontado anteriormente, faz parte dos estratos altos e médios da sociedade, sendo os

beneficiados pelo grande capital.

Considerações finais

Esta breve comunicação foi escrita com a intenção de auxiliar na discussão sobre o

uso das mídias como fonte nos trabalhos de investigação histórica, atribuindo a elas, assim,

um papel de documentos primários, podendo ser utilizadas no trabalho do historiador. Essa

concisa reflexão auxilia na perspectiva de que as mídias podem ser entendidas como sujeitos

dentro de seu contexto histórico, e que elas mesmas fazem parte desse contexto. Portanto,

nos estudos que a utilizam como fonte, ela deve ser percebida dentro desse contexto como

sujeito atuante e inteiramente ligada à luta de classe. Embora em vários momentos se defenda

a neutralidade da mídia ou da imprensa, vejo isso como algo que não pode ser alcançado,

uma vez que esses meios de comunicação fazem parte de uma gama de relações que estão

intimamente ligadas com o social, o político e o econômico. Por isso, fazem parte da

constituição das relações sociais existentes. Como a hegemonia dominante nunca é

completa, deve ser repetida e defendida exaustivamente. No que concerne ao capitalismo, as

mídias a ele integradas fazem isso constantemente.

Referências bibliográficas

EVERO, Ana Karla Silveira; NETO, Antônio Fausto. Um olhar sobre três jornais

paranaenses e suas relações de comunicação, consumo e práticas sociais. Revista Anagrama:

Ano 3, Edição 2, Dez./2009-Fev./2010.

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FONSECA, Francisco. Desenvolvimento e meios de comunicação: teorização e práxis. In:

II Conferência do Desenvolvimento (CODE): I Circuito de Debates Acadêmicos das

Ciências Humanas, 2011, Brasília. Anais do I circuito de debates acadêmicos. Brasília: Ipea,

2011. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/code2011/chamada2011/pdf/area9/area9-

artigo1.pdf>. Acesso em 15/06/2015.

FONSECA, Francisco. O Consenso Forjado: a grande imprensa e a formação da agenda

ultraliberal no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 2005.

SILVA, Carla; RAUTENBERG, Edina. História e Imprensa: estudos de hegemonia. Porto

Alegre: FCM Editora, 2014 (Coleção Tempos Históricos, 14).

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A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA NO PERÍODO DA

DITADURA CIVIL-MILITAR E CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE

CURUÁ-UMA NO MUNICÍPIO DE SANTARÉM-PA*

André das Chagas Santos1

Andreia Peron2

Palavras-chave: Usina Hidrelétrica de Curuá-una; Governo Militar na Amazônia; Políticas

Desenvolvimentistas na Amazônia.

Introdução

Trabalhar com os temas históricos tornou-se ao longo dos anos muito difícil, devido

principalmente as modificações ocorridas dentro da própria ciência. Hoje há preocupação

em se estudar o cotidiano das pessoas e dos grupos sociais, das camadas mais humildes da

sociedade, a chamada História vinda de Baixo.

Essas modificações puderam ser vislumbradas principalmente após 1929, com a

Escola dos Annales. Vários historiadores foram desenvolvendo novas técnicas de pesquisas,

novos objetos e novos métodos de abordagens históricas.

Estudar um tema como o das políticas de desenvolvimento e construção da Usina

Hidrelétrica de Curuá-una torna-se importante, pois a região é carente de textos acadêmicos

ou técnico-científicos sobre a implantação e construção da usina.

Um dos objetivos do trabalho é analisar como os governos militares contribuíram

para as transformações sociais vislumbradas na Amazônia e, em especial, em Santarém, além

de contribuir com pesquisadores interessados em temas regionais, sem esquecer o contexto

histórico nacional.

O desenvolvimento da pesquisa aconteceu em três etapas: (a) revisão bibliográfica

sobre os métodos de pesquisa em história, o que possibilitou o contato com as novas formas

e tendências de abordagens históricas; (b) pesquisa bibliográfica sobre o período do Regime

Militar, para entendermos como esses governos afetaram, mesmo que de forma indireta, a

vida desses colonos; (c) investigação em jornais antigos da cidade, em busca de notícias

relacionadas ao tema da construção da Usina Hidrelétrica de Curuá-una.

O governo militar na Amazônia

No ano de 1964, tem início no Brasil, um período da História Política do país

denominado de Regime Militar. Este período é caracterizado pelo autoritarismo e pelo

cerceamento de direitos por parte do Estado ditatorial. Além da violação dos direitos

humanos, este período da História do Brasil foi marcado pela abertura do país aos capitais

* A comunicação do texto em questão foi apresentada no IV Simpósio de Pesquisa Estado e Poder – Ditaduras

e Democracias, ocorrido entre os dias 20 a 22 de agosto de 2013. Por falha da Comissão Organizadora dos

ANAIS, naquela ocasião, o texto não foi publicado. Nesse sentido, decidiu-se publicar o texto no presente

volume, referente aos Anais do V Simpósio de Pesquisa Estado e Poder. 1 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado), linha de pesquisa História

da Educação, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus de Cascavel. 2 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado), linha de pesquisa História

da Educação, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus de Cascavel.

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estrangeiros (a exemplo da política adotada por Juscelino Kubitschek), crise econômica e,

pela implantação de projetos de desenvolvimento e integração regional da Amazônia.

A Amazônia é a maior região brasileira, com cerca de 4,8 milhões de km², ocupando

mais da metade do território nacional, que durante longo período foi esquecida pelas

autoridades brasileiras. Sua característica econômica é o extrativismo vegetal, com

exportação de matéria-prima, principalmente para a Europa (cacau, castanha-do-pará e etc).

Na década de 1960, o governo brasileiro, temeroso de perder a soberania na região

norte do país, implantou um projeto de desenvolvimento para a região que previa construção

de rodovias e instalação de projetos agropecuários e de mineração na Amazônia.

A intenção do governo era povoar as terras da região e fazer a Integração Nacional.

Para a viabilização do projeto, o governou criou órgãos como a Superintendência de

Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), e a Superintendência da Zona Franca de Manaus

(SUFRAMA). Outra medida adotada foi à instalação de grandes empresas na região. O setor

minerador foi um dos que mais se beneficiou na época. Também foram concedidos

incentivos fiscais às empresas que aqui se instalassem. Esta medida causou sérios problemas,

como diz Vesentini:

O atual processo de ocupação da Amazônia brasileira, em síntese, é

predatório: em busca de lucros fáceis, grandes projetos agropecuários,

subsidiados pelos incentivos fiscais do governo federal, depredam a

floresta, exterminam nações indígenas, destroem a fauna, exploram

intensamente a força de trabalho que utilizam e desencadeiam conflitos

violentos como os pequenos proprietários de terra e posseiros

(VESENTINI, 1998, p.326).

O governo civil-militar também incentivou a migração de pequenos trabalhadores do

sul do país para a região Amazônica. Foi marcante a influência de uma campanha de

propaganda ideológica, com o lema: “Terra sem homens para homens sem-terra”.

Propaganda esta que posteriormente não foi cumprida, fazendo com que os migrantes que se

instalaram no local, migrassem para outras regiões do país.

Rodovias como a Santarém-Cuiabá, Belém-Brasília, Transamazônica, foram abertas

nessa época. Segundo as propagandas do governo, a abertura dessas rodovias traria

progresso e desenvolvimento para a região. Os jornais locais noticiavam de forma romântica

as obras e a política do governo federal. “Já pensaste tu meu bisonho patrício que tens o

sorriso ingênuo de salustio, na riqueza que trará para nós a fimbria desse manto real de

asfalto que será a estrada de rodagem Santarém-Cuiabá?” (SANTOS, 1967).

Os meios de comunicação locais participavam dos eventos do governo. Até os dias

atuais a população espera esse manto real de asfalto, visto que a rodovia Santarém-Cuiabá

ainda não foi completamente asfaltada.

Para atender toda essa estrutura de desenvolvimento proposto pelos militares para a

região amazônica, seria necessário a construção de usinas geradoras de energia elétrica.

Neste período foram construídas usinas hidrelétricas como é o caso da usina de Balbina no

Amazonas e de Tucuruí e Curuá-una no Pará. É importante ressaltar que o principal objetivo

da construção dessas usinas foi fornecer estrutura para abrigar os grandes projetos, e não

para beneficiar a população.

A construção da usina hidrelétrica de Curuá-Una

A Usina Hidrelétrica de Curuá-Una foi a primeira construída na floresta amazônica

(SARÉ ET AL, 2004). Desde o ano de 1998 a UHE de Curuá-una é propriedade da CELPA

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– Centrais Elétricas do Pará S/A (Grupo Rede). Foi adquirida em leilão público realizado na

Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, de acordo com a Lei Estadual (Estado do Pará) nº 5.979,

de 19 de julho de 1996, que instituiu o Programa Estadual de Desestatização – PED. O

Decreto nº 1.811, exarado pelo Governador do Estado do Pará em 14 de novembro de 1996,

incluiu a Celpa no PED e regulamentou as condições de sua desestatização.

A usina hidrelétrica de Curuá-una está localizada a 70 km de Santarém, no rio Curuá-

una, sendo este um afluente do Rio Amazonas. Curuá-una é uma palavra originada da língua

tupi e quer dizer Rio Escuro (curuá: rio e una: escuro). Segundo Ligocki (2003).

A UHE Curuá-Una dista cerca de 850 km, em linha reta a oeste, da capital

do Estado. Suas coordenadas geográficas são: 2º 24' 52'' S e 54º 42' 36'' W

e está localizado na margem direita do Rio Tapajós, na sua confluência

com o rio Amazonas (LIGOCKI, 2003, p. 93).

No local do aproveitamento existem duas cachoeiras, a Cachoeira do Palhão e a

Cachoeira do Portão, formadas por blocos e camadas de arenito ferruginoso (LIGOCKI,

2003, p 77). Haberlehner (1976 apud LIGOCKI, 2003, p.78) descreve o local da seguinte

maneira: “A Cachoeira do Palhão, formando queda natural de apenas 4 a 5 metros, situa-se

em uma volta do rio Curuá-Una que naquele local contorna uma plataforma elevada, que

durante muito tempo foi habitada por uma tribo de índios”.

“Até a década de 1970, a energia na maior parte da região amazônica era fornecida

por pequenas usinas térmicas, destinadas ao consumo de cidades isoladas” (TAVARES;

COELHO; MACHADO, 2006, p.102). “Mesmo os maiores centros urbanos, como Manaus

e Belém, utilizavam usinas térmicas movidas a óleo combustível enquanto os centros

urbanos menores dispunham de motores a diesel” (TAVARES; COELHO; MACHADO,

2006, p.102).

Havia a esperança, entre políticos, empresários e a imprensa, de que Santarém

crescesse muito neste período, devido ao programa do governo federal que buscava o

desenvolvimento da Amazônia. Porém as fontes energéticas disponíveis na cidade não

supririam as necessidades para tal. Sendo que somente a Companhia de Fiação e Tecelagem

de Juta de Santarém consumiria 750 KW, o que corresponde a mais da metade da energia

produzida pela usina que seria instalada em Santarém.

No ano de 1952 foram realizados os primeiros estudos sobre o aproveitamento do

potencial energético da cachoeira do Palhão pela Servix Engenharia Ltda, do Rio de Janeiro.

O projeto previa a construção de uma usina com um rendimento de 4MW de potência. Este

estudo realizado pela Servix fez uma análise visual do campo, e foi constatada a presença de

quartzo, na área onde seria construída a usina. Dez anos depois foram realizados estudos

mais precisos com sondagem e perfuração, pela “Grubina Engenheiros Consultores”. O solo

arenoso do entorno da cachoeira deu ao empreendimento uma característica ainda mais

peculiar, sendo a primeira usina construída no Brasil nessas condições. Outra característica

da usina é que “Os engenheiros da Grubina descobriram grandes jazidas de minério de ferro

compacto nas rochas do Palhão, o que constitui sem dúvida mais uma fonte de riqueza em

pleno coração de Santarém” (PEREIRA, 1961).

Com a descoberta de minérios e a possibilidade de instalação de indústrias nas

proximidades de Santarém, a população da região cresceu consideravelmente. Em 1966, com

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uma demanda maior de energia, o projeto teve que ser reformulado passando de 4 MW para

40 MW, e supriria as necessidades energéticas de Santarém e Aveiro3.

A notícia da construção de um empreendimento deste porte na região causou um

sentimento de euforia na população. Os jornais da cidade apresentavam a Usina Hidrelétrica

de Curuá-Una como a emancipação de energia elétrica do município. A sociedade santarena

enfrentava dificuldades com o fornecimento de energia elétrica, o que explica toda esta

ansiedade. “A hidrelétrica de Curuá-Una, que é a primeira do gênero de construção,

representa a emancipação econômica da região” (PEREIRA, 1968). Percebe-se que há no

senso comum a visão de que a disponibilidade de energia é a garantia do desenvolvimento

local/regional.

O projeto foi elaborado pela Eletroprojetos S.A. – Estudos de Projetos de Engenharia

S.A. e a construção esteve a cargo do Consórcio C.R. ALMEIDA e CONTERPA (LIGOCK,

2004, p. 96-97). No dia 19 de agosto de 1977 foi inaugurada a Usina Hidrelétrica de Curuá-

una, “quando a primeira turbina entrou em operação” (SARÉ, 2004, p. 2). A solenidade de

abertura da usina contou com a presença do presidente da República General Ernesto Geisel,

do governador do Estado Professor Aloysio da Costa Chaves, do senador Jarbas Gonçalves

Passarinho, do Prefeito de Santarém Paulo Imbiriba Lisboa além de outras autoridades.

Considerações finais

A construção da UHE de Curuá-una foi um empreendimento que possibilitou a

formação de algumas comunidades no planalto santareno, dentre as quais podemos destacar

a comunidade de Boa Esperança.

Os governos militares, ao implantarem o plano de desenvolvimento da Amazônia,

acabaram por instalar na região norte uma série de problemas. Apesar de a construção ter

sido iniciada neste período, a UHE de Curuá-una é um projeto muito anterior, desde a época

do presidente Vargas.

O potencial de geração energética da UHE de Curuá-una, em sua maior parte, foi

destinada ao emprego e instalação dos grandes projetos de mineração na região oeste do

Pará. O que mesmo assim não promoveu o desenvolvimento esperado pelos políticos e

empresários locais.

A imprensa escrita de Santarém, representada pelo O Jornal de Santarém, noticiou

o processo de construção da UHE de Curuá-Una e da propaganda do governo, vinculando

notícias exaltando as obras e as ações praticadas pelas autoridades, tanto locais quanto de

outras esferas.

Referências

FIGUEREIDO, Laercio. Aproveitamento da Energia Hidráulica do Palhão. O jornal de

Santarém ilustrado. Santarém, 1953.

3 Após os trabalhos preliminares, tais sejam, a construção de ponte metálica, ensecadeiras, campo de pouso

para aviões, usina térmica, posto médico, levantamentos topográficos, sondagens geológicas, etc., foram

iniciadas, em 1968, as obras civis da construção e montagem da usina propriamente dita: barragem de concreto,

com vertedor e descarregador de fundo, casa de maquinas com canal de descarga, instalações eletrônicas e

subestação elevadora, barragem de enrocamento e terra, linha de transmissão para a cidade e subestação

abaixadora em Santarém (FONSECA, 1996, p. 141).

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20

FONSECA, Wilde Dias da. Santarém momentos históricos. Ed. Santarém, 1996.

LIGOCKI, Laryssa Petry. Comportamento geotécnico da barragem de Curuá-una Pará.

2003. 195 f. Dissertação (mestrado em Engenharia Civil) Pontifícia Universidade Católica

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Sousa; CARVALHO, Yone de. História do mundo

ocidental. 1. Ed. São Paulo: FTD, 2005. Volume único.

PEREIRA, Antonio. Curuá-una; a esperança se concretiza. O Jornal de Santarém, 1968,

capa.

PEREIRA, Antonio. Valorização da Amazônia, apenas propaganda. O Jornal de Santarém,

1968.

PEREIRA, Geraldo. A confiança inabalável no futuro e no destino de Santarém empolga

Ubaldo Corrêa. O Jornal de Santarém. Santarém, 1961.

PEREIRA, Geraldo. A hidrelétrica do Palhão. O jornal de Santarém. Santarém, 17 de julho

de 1961.

PEREIRA, Geraldo. Curuá-una. O Jornal de Santarém. Santarém. 1961.

PEREIRA, Geraldo. Em Belém o Dr. Ubaldo Corrêa trabalha por Santarém. O Jornal de

Santarém. Santarém. 1961.

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VESENTINI, José Wiliam. Brasil, sociedade e espaço: geografia do Brasil. 6ª ed. São Paulo:

Ática, 1998.

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O MAOÍSMO MEXICANO DE ESQUERDA

Azucena Citlalli Jaso Galván1

Resumo: Os anos cinquenta foram um divisor de águas para a esquerda comunista

mexicana, que sofreu rupturas como reflexo da disputa teórica protagonizada pela União

Soviética e a China maoísta. O maoísmo e suas premissas sobre as formas de fazer a

revolução foram sedutoras tanto para a esquerda armada e a chamada “nova esquerda”

(movimentos urbanos e contra a precarização das condições de vida), mas também para o

Estado, que transformou o maoísmo em programas assistencialistas contrainsurgentes

vigentes até os dias de hoje. Agora, a peculiaridade do caso mexicano no contexto da Guerra

Fria fez com que o movimento armado não contasse com a ajuda ou assistência técnica ou

material dos países do bloco socialista. Por outro lado, os EUA toleraram a oposição pública

do Estado mexicano expressa na política exterior. Ou seja, nenhuma das potências em

conflito teve intenção de desestabilizar o México. Contudo, nos documentos elaborados pela

Dirección Federal de Seguridad, encontramos um caso único de um grupo armado treinado

militar e ideologicamente na China, com a missão de organizar uma guerra popular

prolongada. O objetivo deste trabalho, então, é traçar alguns aspectos da trajetória do

maoísmo através do Partido Revolucionario del Proletariado Mexicano.

Palavras-chave: maoísmo; movimento armado mexicano; repressão.

Introdução

Reconstruir a breve experiência do Partido Revolucionario del Proletariado

Mexicano (PRPM), um dos poucos grupos armados que conseguiram treinamento militar

num país pertencente ao bloco socialista2 na década de sessenta, é um pretexto para transitar

por uma pequena parte da história do maoísmo de esquerda no México.

A distinção que fazemos entre maoísmo de esquerda e o que chamaremos de “oficial”

está baseada na atividade do economista Adolfo Orive Berlinger, figura que ensina para o

Partido Revolucionário Institucional as formas organizativas, táticas e estratégias do

maoísmo. Nos anos sessenta, Orive fez várias viagens à China Popular com o objetivo de

estudar o modelo econômico do país asiático. Volta para o México e, como professor do

curso de Economia da UNAM, forma a organização chamada Línea de Masas. É acusado de

infiltrar organizações que desenvolviam trabalho no âmbito indígena: “nuestro grupo [Unión

del Pueblo] fue destruido por un grupo aparentemente de izquierda que se llamaba Línea de

Masas, que fue el grupo de Orive, que llegó a Chiapas y se tragó el movimiento nuestro.

Entonces expulsaron a los dirigentes más radicales, me expulsaron a mí” (Entrevista a

Antonio García de León, 22 de abril de 2009).

Nessas organizações foram política e ideologicamente formados os militantes que

integrariam os partidos políticos autodenominados de esquerda, como o Partido del Trabajo

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo (USP). 2 O outro grupo foi o Movimiento de Acción Revolucionaria (MAR) organizado por estudantes mexicanos da

Universidade da Amizade entre os Povos “Patrice Lumumba” de Moscou. Eles conseguiram ser treinados na

Coreia do Norte por recomendação do embaixador cubano em Moscou. Foram 53 os mexicanos treinados no

país asiático, entre janeiro de 1969 e outubro de 1970 (CASTELLANOS, 2008, p. 173-178; CONDÉS LARA,

2009, p. 35-71).

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(PT) e o Partido de la Revolución Democrática (PRD) nos anos noventa. Nessa mesma

década foi reconhecido como o teórico idealizador do programa Solidaridad, emblema do

governo de Carlos Salinas de Gortari, através do qual se consolida o avanço da

contrainsurgência pelo território nacional partindo do entendimento dos esquemas maoístas.

Grande conhecedor da organização indígena, foi chamado a colaborar com o ex-presidente

Ernesto Zedillo, como estrategista para a “pacificação” do território chiapaneco desde 1994

(La Jornada, 22 de março de 1998).

A dissidência maoísta

Desde 1943 começaram a formar-se alguns grupos trotskistas no México, sobretudo

como consequência da expulsão do escritor José Revueltas do Partido Comunista Mexicano

(PCM), que posteriormente integraria a Liga Leninista Espartaco (LLE). Em 1966 esta

organização se fusiona com outras de orientação maoísta adquirindo o nome de Liga

Comunista Espartaco (LCE). Esta organização reivindicava as teses fundamentais do

maoísmo, pelo que acreditavam que a tomada do poder teria que estar vinculada

inevitavelmente à luta guerrilheira desde o campo. Reconhecia, então, o pensamento de Mao

Zedong como a guia científica mais firme para a transformação da realidade mexicana

(FERNÁNDEZ CHRISTLIEB, 1978, p. 145).

Segundo Barry Carr, a discussão URSS-China não teve muita importância dentro do

comunismo mexicano, e que a influência do maoísmo (“ir para o povo, aprender do povo”)

foi acolhida pelo nascente movimento urbano-popular (CARR, 2000, p. 237). Contudo,

podemos observar que para 1960, ano do XIII Congresso Nacional do PCM, iniciou-se um

processo de redefinição de políticas e táticas identificadas com o eurocomunismo reformista

da metade da década dos sessenta.

Neste contexto de definições e excisões podemos situar dois grupos que não

formaram parte da LCE e que representam um referente do maoísmo mexicano de esquerda:

O Movimiento Marxista Leninista de México (MM-LM) e o Partido Revolucionario del

Proletariado Mexicano (PRPM). Estas duas organizações estão unidas pelos laços que

construíram com a China. Uma personagem fundamental para a reconstrução desta história

é Javier Fuentes Gutiérrez, cujo codinome era Pancho ou Popoca.

Javier Fuentes Gutiérrez nasceu em 22 de julho de 1925 no Distrito Federal. Filho

de Bulmaro Fuentes Popoca e Luz Gutiérrez de Fuentes. Em 1951 egressa como engenheiro

petroleiro provavelmente do Instituto Politécnico Nacional (IPN) (IPS, Caixa 3033 A, exp.

12, f. 1). O informe com a data mais precoce que descreve as atividades de Fuentes

relacionadas com os chineses é de 26 de julho de 1966. O capitão Fernando Gutiérrez

Barrios, diretor da Dirección Federal de Seguridad, assina o informe onde se faz uma

relatoria pormenorizada de uma reunião entre o engenheiro Fuentes e Pieng Cheng, chefe da

Agência Chinesa de Notícias, realizada em 4 de julho de 1966. Na reunião, Javier Fuentes

agradece o convite para viajar para China e informa a necessidade de que o passaporte tenha

o nome “Xavier Popoca Gutiérrez”. Menciona também que Fuentes é o responsável pela

Distribuidora Interamericana de Publicaciones.

A Distribuidora vendia seus livros através da Librería El Primer Paso. O esquema

era simples: “Agencia Noticiosa ‘Sin Jua’ (sic) le envía seiscientas libras esterlinas

mensuales, así como también por mediación de las distribuidoras ‘Gouzi Shudian’ (sic) y

‘Waiwen Shudian’ (sic) con sede en Pekín. Recibían diferente literatura gratuita y

propaganda”. As ganâncias seriam ocupadas para cobrir os gastos gerados pelo treinamento

e manutenção de uma organização armada (IPS, Caixa 3033 A, exp. 10, f. 2).

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Além da sua atividade propagandística, Pancho dedicava-se desde 1967 à

consolidação de círculos de estúdio no Estado de Morelos, com camponeses e jovens

interessados no maoísmo identificados previamente, enquanto trabalhava numa central

camponesa governista. Entre os assistentes às reuniões, podemos citar Antonio e Israel

González, Rafael Equihua, Aquileo, Primo, Pedro e Florencio Medrano (el Güero)3,

Carmelo Cortés, que tempo depois foi uma base importante para o comandante da Brigada

de Ajusticiamiento do Partido de los Pobres, e Lucio Cabañas (MIER MERELO, 2003, p.

340). O objetivo principal destas reuniões era convencer os assistentes de que a teoria

maoísta era o guia científico para empreender uma necessária luta revolucionária, pelo que

era oportuno incrementar a organização para iniciar a luta armada e derrubar o governo,

instaurando um de tipo socialista. Essas reuniões foram o germe do PRPM.

O PRPM

De maneira paralela ao estudo com os camponeses morelenses, o engenheiro Fuentes

mantinha contato com um grupo de jovens estudantes e profissionais do Distrito Federal,

entre eles Jesús Gómez Ibarra, a esposa dele, Teresa4, Raúl Ernesto Murguía Rosete, Rosalba

Robles Vessi e a advogada Judith Leal Duque, com os que se reunia para comentar a história

do México, fazer análise da sociedade mexicana e aprofundar-se na doutrina marxista

leninista maoísta5. Estes jovens

tenían a su favor el no cargar sobre sus espaldas las luchas ideológicas de

la izquierda de los cincuenta y sesenta, ellos no habían vivido la disputa

chino-soviética, ninguno había militado en el Partido Comunista

Mexicano, ni provenían de los antiguos núcleos maoístas del Movimiento

Marxista Leninista Mexicano, ni tampoco de las células maoístas del

espartaquismo (CHAO BARONA, 2001, p. 101).

O engenheiro Pancho trabalhou com estes jovens durante o movimento estudantil

de 1968 na Escola de Economia do IPN. Ao longo do movimento recrutam outros jovens,

entre eles Antonio García de León, estudante da Escuela Nacional de Antropología e

Historia (ENAH). Após a repressão sistemática ao movimento e o massacre de 2 de outubro,

Pancho e o grupo elaboram o programa de luta do partido. O objetivo principal era

ensanchar el Partido con la idea de hacerlo nacional, debiéndose buscar el

aglutinamiento de todos los grupos revolucionarios que operaban en la

República para hacer y fomentar la lucha armada a nivel nacional y con

fuerza arrolladora, toda vez que se harían en forma simultánea y desde

diferentes frentes, insistiendo en que la línea más conveniente para el

nuevo sistema a establecer en el país era y es la “maoísta” (IPS, Caixa

2538, exp. 1, f. 3).

Em maio de 1969, o engenheiro consegue que alguns militantes do PRPM fossem

para Beijing divididos em dois grupos. No primeiro, viajam Raúl Munguía, Rosalba Robles,

Israel González, Rafael Equihua, Judith Leal Duque, e el Güero Medrano. No segundo, 3 Personagens importantes para o movimento urbano-popular morelense da década de setenta. Participaram

também na recuperação de terras para a fundação de bairros populares. 4 Somente encontraram-se referências ao codinome, desconhecemos o nome verdadeiro. 5 Rosalba Robles menciona que acredita que conheceram o engenheiro Fuentes – ao menos ela e Raúl Murguía

– quase no fim do movimento estudantil de 1968 (Entrevista com Rosalba Robles Vessi, 1 de abril de 2010).

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Antonio García de León e Aquileo Medrano. Uma vez juntos em Beijing foram conduzidos

até Nankín. O objetivo de enviá-los era receber treinamento militar, além de estudar textos

de Mao e episódios da história da Revolução Chinesa no contexto da Revolução Cultural

Proletária.

O grupo volta para o México no fim do mês de dezembro de 1969 para fazer

trabalho político e de agitação no âmbito rural. Para cobrir as despesas econômicas para a

compra de armamento necessário para a guerrilha, o PRPM mantinha um local de aluguel e

reparação de bicicletas em Cuernavaca onde trabalhava el Güero e seu primo Aquileo.

Também tinham uma ferraria em Iztapalapa (DF), onde trabalhava Rafael Equihua desde

1965 (IPS, 2538, exp. 1, f. 3), além da livraria anteriormente referida.

Um fato que precipitou a desarticulação do grupo aconteceu em fevereiro de 1970.

Na oficina de reparação de aparatos eletrônicos que funcionava como arsenal de um grupo

chamado Comité de Lucha Revolucionaria (CLR), foram detonadas duas das bombas que

estavam sendo fabricadas no local. É provável que os militantes, sentindo-se rodeados pela

polícia, detonaram as bombas com a cortina de ferro fechada (Entrevista a Antonio García

de León, 22 de abril de 2009). O CLR foi catalogado pelas autoridades como “terrorista”

vinculando o nome com outros ataques a instalações de jornais e alguns escritórios

governamentais (El Día, 15 de fevereiro de 1970).

Após a explosão iniciaram-se as investigações para capturar definitivamente o

CLR. Segundo as conclusões dos órgãos de vigilância, o grupo foi culpado por conspiração,

incitação à rebelião, associação delituosa, fabricação de bombas, dano em propriedade

privada e lesões. Também se estabeleceram as redes organizativas com outros grupos

armados que operavam em outros Estados, especificamente com o grupo de Genaro Vázquez

no Estado de Guerrero, e com o PRPM no DF e Morelos. Para as autoridades, tanto o CLR

como o PRPM eram coordenados por Pancho, que havia inserido elementos de confiança

em cada um deles (El Día, 7 de março de 1970). Para Rosalba Robles, a aliança entre ambos

os grupos nunca se concretizou devido à detenção dos militantes do CLR (Entrevista a

Rosalba Robles Vessi, 1 de abril de 2010).

Em fevereiro de 1970, a célula do PRPM do DF começou a ter dificuldades com um

simpatizante do grupo encarregado de distribuir propaganda na região do bairro de

Tlatelolco. Ele não apresentava as contas das vendas, segurava o material e mostrava um

comportamento suspeito. Para consertar a situação, Fuentes convocou Raúl Murguía,

Rosalba Robles e Judith Leal, para apresentarem-se no apartamento do simpatizante e ter

uma conversa perante a necessidade de reforçar as medidas de segurança após o

encarceramento do CLR.

Nas redondezas do apartamento estavam postados, aproximadamente, sessenta

homens comandados por Miguel Nazar Haro, subdiretor da DFS. Num encontro posterior,

sendo questionado por García de León, o dito simpatizante argumentou que a polícia tinha

sequestrado sua mulher grávida. Com ameaças de estupro e tortura contra sua esposa, deu

informação sobre o Partido (Entrevista a Antonio García de León, 22 de abril de 2009).

Dessa maneira, os quatro militantes foram sequestrados e, após vários dias reclusos

num local desconhecido – provavelmente o Campo Militar n. 1 ou algum escritório policial

utilizado como cárcere clandestino6, foram apresentados perante as autoridades e acusados

de conspiração, incitação à rebelião, associação delituosa e encobrimento dos delitos de dano

em propriedade privada por explosão e lesões (El Día, 7 de março de 1970). Estando o núcleo

do PRPM no cárcere, o resto do Partido se dispersou. Presos durante quatro anos foram

6 “En estas circunstancias uno era introducido y sacado con los ojos vendados. Puedes describir el lugar por

dentro, pero no sabes qué es” (Entrevista a Rosalba Robles Vessi, 1 de abril de 2009).

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liberados possivelmente como uma demonstração de amizade entre o governo mexicano

após a viagem realizada em abril de 1973 de Luis Echeverría à República Popular Chinesa

para reandar as atividades diplomáticas entre ambas as nações (Entrevista Rosalba Robles

Vessi, 1 de abril de 2009). Alguns militantes se reorganizaram e começaram a elaborar um

projeto distinto ao do Partido.

A Colonia Proletaria Rubén Jaramillo e o Partido Proletario Unido de América (PPUA)

O treinamento militar impulsionado pelo engenheiro foi base de uma experiência

peculiar: a Colonia Proletaria Rubén Jaramillo. Em 1971, sob direção de Florencio Medrano

Mederos, el Güero, junto com Rafael Equihua e Israel González, formaram a Asociación

Nacional Obrero Campesino Estudiantil (ANOCE). Podemos enquadrar essa organização

no movimento urbano popular, integrada por camponeses pauperizados, majoritariamente

migrantes provenientes do Estado de Guerrero. Dois anos depois da fundação da Associação,

em 31 de março de 1973, ocuparam as terras de propriedade do filho do governador do

Estado de Morelos, localizadas no município de Temixco, para construir moradias

impulsionando a luta pela legalização da pose e pelos serviços básicos (esgoto, luz e

transporte) (PONIATOWSKA, 1980; JASO GALVÁN, 2010).

Dando continuidade à proposta ideológica e organizativa do PRPM, a luta não podia

ficar no imediatismo do movimento urbano-popular. A Colonia foi concebida como a

primeira fase da guerra popular prolongada, a construção da base de apoio que possibilitaria

a ação de uma guerrilha, a “agua do pez”. A destruição do Estado e a construção de um

sistema socialista era o fim último e isso poderia ser realizado somente através da ação

armada: “o poder nasce do fuzil”. Dessa maneira, com o treinamento adquirido na China por

parte das lideranças da Associação, depois de seis meses de trabalho com os colonos e após

a invasão militar da Colonia, os dirigentes viram-se forçados a assumir a clandestinidade

guerrilheira, e rapidamente formaram o Partido Proletario Unido de América (PPUA).

O projeto guerrilheiro pensado pelo engenheiro Javier Fuentes Gutiérrez, viu-se

concretizado no PPUA. Mas essa história terá que ser tema de outro trabalho, pois se estende

até os dias de hoje7. Nesse sentido, acreditamos que seja nossa tarefa como pesquisadores

olhar para estas histórias negadas pela historiografia oficial, sendo as grandes ausentes da

academia por serem consideradas inapreensíveis por sua proximidade temporal, além de

provocar as paixões do pesquisador, atentando contra a neutralidade exigida na nossa

formação como cientistas sociais. Como tentamos demonstrar neste trabalho de reconstrução

histórica, as fontes emitidas pela polícia política, ainda que requeiram uma análise rigorosa,

são uma ferramenta indispensável para reconstruir aspectos das experiências de distintos

indivíduos, grupos e movimentos, através dos olhos dos agentes secretos, infiltrados,

torturadores, agentes ministeriais e policiais. É importante, então, lutar pela abertura plena

dos arquivos da guerra suja mexicana.

7 Florencio Medrano, liderança do PPUA foi assassinado pelo Exército em 1978. A década de oitenta foi um

momento onde parte dos sobreviventes à violência do Estado concentrou-se nos Estados mais pobres do país e

onde a guerrilha e, sobretudo, a contrainsurgência da década anterior tinham deixado fortes estragos no tecido

social (Chiapas, Oaxaca e Guerrero). O PPUA é um dos grupos que integrariam o Ejército Popular

Revolucionario (EPR), que fez a sua aparição pública em 1996, um ano após o massacre de 17 camponeses no

vão de Aguas Blancas no Estado de Guerrero. É um dos grupos armados ativos com maior influência territorial.

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Referências

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de março de 1998.

AGN, IPS, 3033 B, exp. 6, “Nombres y cargos que ocupan las personas a quienes estaba

dirigida la propaganda China que fue decomisada”, s/d, f. 3.

AGN, IPS, 2538, exp. 1, “Partido Revolucionario del Proletariado Mexicano”, 3 de agosto

de 1972, f. 3.

AGN, IPS, 3033 A, exp. 10, “Texto de la consignación de 14 detenidos. PGR, Dirección

General de Averiguaciones Previas”, 19 de julho de 1967, f. 1.

AGN, IPS, 3033 A, exp. 10, “Boletín entregado a los periodistas por la PGJR”, 19 de julho

de 1967, f. 2.

CARR, Barry. La izquierda mexicana a través del Siglo XX. México: ERA, 2000.

CASTELLANOS, Laura. México armado (1943-1981). México: ERA, 2008.

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CHAO BARONA, Alejandro (coord.). Las Hojas de la Comunidad (2000). Cuernavaca:

UNICEDES-UAEM, 2001.

CONDÉS LARA, Enrique. Represión y rebelión en México. Tomo 3. México: Benemérita

Universidad Autónoma de Puebla-Miguel Ángel Porrúa, 2009.

“Declaración de Ignacio González Ramírez”. In: El Día, 15 de fevereiro de 1970.

Entrevista de Rosalba Robles Vessi, 1º de abril de 2010.

Entrevista de Antonio García de León, 22 de abril de 2009.

FERNÁNDEZ CHRISTLIEB, Paulina. El espartaquismo en México. México: El Caballito,

1978.

JASO GALVÁN, Azucena Citlalli. La Colonia Proletaria Rubén Jaramillo: La lucha por la

tenencia de la tierra y la guerra popular prolongada (31 de marzo de 1973 - enero de 1974).

Tesis Licenciatura (Licenciada en Historia), Facultad de Filosofía y Letras, UNAM. México,

2011.

MIER MERELO, Armando M. Sujetos, luchas, procesos y movimientos sociales en el

Morelos Contemporáneo: una interpretación. Morelos: UAEM-UNICEDES-Sindicato de

Trabajadores Académicos de la UAEM, 2003.

PONIATOWSKA, Elena. Fuerte es el silencio. México: ERA, 1980.

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“Texto de la consignación de Raúl Ernesto Murguía Rosete, Rosalba Robles de Murguía y

Judith Leal Duque”. In: El Día, 7 de março de 1970.

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O CRESCIMENTO DO NEOCONSERVADORISMO E DA EXTREMA DIREITA

NOS ESTADOS UNIDOS DA ÁMERICA NO SÉCULO XXI (2001 – 2009)

Carina Rafaela de Godoi Felini1

Guilherme Ignácio Franco de Andrade2

Resumo: Como forma de problematizar o crescimento do neoconservadorismo e da extrema

direita nos Estados Unidos no século XXI, esta pesquisa pressupõe que estes projetos

políticos, no período de 2001-2009, levantaram questões teóricas e conceituais de grande

relevância, mostrando possuir ramificações diversas e, portanto, justificando seu estudo.

Assim sendo, procuraremos compreender o movimento neoconservador nos Estados Unidos,

reativado durante o governo de George W. Bush (2001-2005) após os atentados terroristas

de 11 de setembro. Além disto, exploraremos brevemente o conceito histórico de

“conservadorismo”, pois acreditamos importante ressaltar que este movimento, raiz do

modelo político que pretendemos estudar nesta pesquisa, é uma corrente político-filosófica

que defende a tradição das instituições e sua evolução ao longo do tempo. Sua influência

sobre autores neoconservadores e direitistas foi vital para a formação de seus próprios

projetos, tais quais verificamos nos EUA no período proposto.

Palavras-chave: neoconservadorismo; extrema direita; Estados Unidos.

Apontamentos iniciais

Para problematizar os partidos de extrema direita e o neoconservadorismo

atualmente, faz-se necessário levantar questões teóricas e conceituais de grande relevância,

como entender o projeto partidário com que estamos lidando, compreender sua origem e

formação, suas raízes históricas e suas influências ideológicas. É mister escolhermos

caminhos teóricos e métodos de análise que nos permitam obter resultados concretos, não

caindo no erro de realizar uma crítica superficial, rasteira, ou que não seja suficiente em

alcançar os objetivos da pesquisa.

Para tanto, temos que inserir nosso objeto dentro de uma categoria de análise para

termos uma aproximação mais real dele e assim pensar o melhor método investigativo que

nos ajude a chegar a um resultado próximo da realidade. Assim sendo, nosso formato de

trabalho procurará, de forma simples, exemplificar movimentos de extrema direita e do

neoconservadorismo nos Estados Unidos (EUA).

De forma a aprofundar a discussão sobre a extrema direita estadunidense,

procuraremos nos apoiar nas origens do partido fascista europeu, representante em um

primeiro momento dos interesses de parte dos pequenos burgueses e da classe média. Aqui

procuraremos entender as consequências históricas que formaram o fascismo e sua estreita

relação com capitalismo. Ademais, devemos entender o conceito de fascismo para tratar os

partidos de extrema direita e sua emergência no século XXI, quais as formas de atuação hoje,

1 Mestranda em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, na linha

de pesquisa de Organização e Sociedade, orientada por Teresa Cristina Schneider Marques. Bolsista CNPq. E-

mail: <[email protected]> 2 Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, na linha de

pesquisa Sociedade, Urbanização e Imigração, orientado por Leandro Pereira Gonçalves. Bolsista CNPq. E-

mail: <[email protected]>

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quais as rupturas com o fascismo clássico, compreendendo que, dentro da conjuntura atual,

quais adaptações foram necessárias para a permanência do projeto fascista no século XX e

XXI. Depois, partimos para a compreensão do movimento neoconservador, revitalizado

durante o governo de George W. Bush (2001-2005) após os atentados terroristas de 11 de

setembro.

Assim, julgamos que a problematização acerca do crescimento do

neoconservadorismo e da extrema direita nos Estados Unidos no século XXI, tal como esta

pesquisa pressupõe, somente poderá ser feita de forma clara a partir de conceitos acerca de

projetos políticos que os antecederam. Tanto o neoconservadorismo quanto a extrema direita

representam desafios teóricos e conceituais de grande relevância, mostrando possuir

ramificações diversas e antecedentes importantes que justificam seu estudo.

O Conservadorismo enquanto espectro político

Ao pensarmos o termo “conservadorismo” comumente nos ligamos à ideia de

conservar, de deixar intacto e, ao mesmo tempo, de manter longe o que é novo, afirmando a

ordem instituída. No campo político, que é de nosso interesse neste trabalho, o

conservadorismo segue o mesmo padrão, porém mais ligado ao conceito de uma crença na

manutenção da ordem previamente instituída.

Se compreendermos o conservadorismo como ideologia, então este nos levará aos

postulados do político inglês Edmund Burke (1729-1797). Burke é autor da obra “Reflexões

sobre a Revolução Francesa” em 1790 e que sistematicamente acreditava que a racionalidade

humana ficava para trás no que tange ao desenvolvimento da sociedade, uma vez que, em

sua opinião, seriam os sentimentos e hábitos do homem que fariam este papel.

A crítica de Burke à Revolução Francesa consistia em nada mais do que uma crítica

ao racionalismo científico, ao individualismo e aos valores liberais, que, para ele, deixavam

de lado as tradições e os costumes. Para ele, este racionalismo parecia estar fora de lugar nas

práticas políticas, o que o incitava também a acreditar que a sociedade se encontrava em um

estado demasiadamente complexo para “caber” em uma só ideia racionalizante.

Em suma, a característica mais essencial deste conservadorismo que acabamos de

expor, é possuir uma postura histórica em favor do passado, colocando fé na própria História,

crendo que é justamente neste passado que há exemplos bons para a sociedade atual. Desta

forma, o conservadorismo não deixa de ser uma corrente político-filosófica que defende a

tradição das instituições (diferentemente daquelas que resultam de projetos feitos a partir do

nada) e sua evolução ao longo do tempo. Seria uma “fé na história” que qualifica os

conservadores como anti-modernos ou anti-progressistas, que resistentes ao voluntarismo

(TEIXEIRA, 2007, p. 43).

A Extrema Direita

O termo “extrema direita” é utilizado pelos pesquisadores estadunidenses e europeus,

para identificar esses partidos citados acima. No meio acadêmico o termo não é

unanimidade, é frequentemente alvo de debate. A terminologia surgiu em meio à imprensa

para classificar grupos neonazistas, neofascistas, que surgiram após a II Guerra Mundial,

para determinar uma separação da direita clássica para com os grupos mais reacionários

(EATWELL; MUDDLE, 2004, p. 8).

O projeto político da extrema direita busca romper com a política dos partidos

tradicionais, rejeitando os valores democráticos das sociedades ocidentais europeias, por

considerá-la decadente, responsável pelo desmantelamento do Estado Nacional,

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enfraquecimento da soberania nacional, por corromper a instituição família, os valores

morais e religiosos (WINOCK, 1994, p. 16). A extrema direita tem como aspiração destruir

a atual ordem social, política e econômica, e implantar um novo regime, baseado em seus

princípios: um Estado Autoritário, apoiado no patriotismo, aliado às forças militares e

policiais, em uma sociedade hierárquica, meritocrática e tecnocrática (MAYER;

PERRINEAU, 1989. p. 176).

Outra característica fundamental da extrema direita é a criação de padrões sociais,

étnicos, de orientação sexual e religiosa que devem ser seguidos. Assim como o fascismo, a

extrema direita cria inimigos internos e externos que seriam responsáveis pela decadência

da sociedade, pela fragilidade da economia do país, classificam grupos que em seu

entendimento seriam responsáveis pela violência e desemprego (JAMIN, 2009. p. 117).

O radicalismo da extrema direita tem em seu projeto político raízes permanentes do

fascismo, pois busca uma sociedade harmoniosa, homogênea (étnica e cultural), sem

conflitos de classe – mesmo inserido no sistema capitalista, assim como o fascismo, mantém

a exploração do capitalismo – com o objetivo de resgatar a sociedade tradicional (que

acredita ser verdadeira), baseado nos princípios de família, da religião, do desenvolvimento

da nação acima dos objetivos individuais (MILZA, 1992). Nesse ponto em que esclarecemos

as características principais, demonstra a ligação intrínseca entre a extrema direita e o projeto

fascista.

Outra característica atual da extrema direita é o rompimento com a União Europeia,

por acreditar que após a criação da comunidade europeia e o uso do euro enquanto principal

moeda, os Estados perderam sua autonomia e controle da sua economia. Para a extrema

direita o euro é um dos principais responsáveis pela atual recessão econômica.

Nosso entendimento sobre a extrema direita nos leva a pensar o quanto estas se

comunicam com os autores neoconservadores estadunidenses. No próximo tópico cabe

trazer a definição do neoconservadorismo e como este foi gestado nos EUA. De fato, o

movimento neoconservador possui raízes e uma interligação muito profunda com a extrema

direita já tratada anteriormente.

O Neoconservadorismo

Tendo florescido na década de 1960, surge na linha de frente um nome primordial

para o pensamento neoconservador, Irving Kristol, um dos maiores teóricos do movimento.

Segundo Kristol, a diferença entre conservadorismo e neoconservadorismo residia na noção

de que o primeiro se baseava primordialmente no fato de manutenção da ordem pública e da

moralidade tradicional ao passo que o segundo não se preocupava em pensar

primordialmente sobre a realidade interna norte-americana, mas sim em analisar sua política

externa. O objetivo neoconservador consistiria mais em superar os conservadores em matéria

de política internacional, abrindo espaço para a exportação dos valores estadunidenses.

Objetivamente, os neoconservadores foram, aos poucos, difundindo sua teoria e

ampliando-a, sendo que uma de suas principais características repousa na tendência de ver o

mundo prioritariamente pela ótica do bem/mal. Cabe reparar que na lógica neoconservadora

preconiza a descrença diante da capacidade de projetos de engenharia social em

transformarem a realidade socioeconômica substancialmente, dessa forma, a noção

conservadora vigente entendia que as políticas sociais levariam a uma cultura de

acomodação. Ademais, os neoconservadores sempre nutriram certo ceticismo em relação à

legitimidade internacional, considerando leis, instituições e opinião pública internacionais

irrelevantes.

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Diante do exposto e ao mesmo tempo retornando ao período pós-atentados terroristas

de 11/09 nos governos de Bush, nota-se que a Casa Branca procurou exprimir de toda

maneira que a lógica neoconservadora que explicitava que o poderio estadunidense deveria

ser usado para fins morais, enxergava os EUA, como nação, com responsabilidades especiais

no mundo, partindo de uma noção na qual se acreditava que sua sociedade deveria ser

modelo para os demais países devido ao seu excepcionalismo (FUKUYAMA, 2006. p. 2).

Os atentados de 11 de setembro trouxeram como corolário uma questão, que até

aquele momento pouco se pensava, na qual permeava uma espécie de dúvida sobre qual o

papel dos EUA no mundo ou como a diplomacia estadunidense deveria se comportar? Ou

seja, como buscar alguma forma de aplicar nosso intervencionismo agora que fomos alvo de

ataque? Estas questões permitiram a entrada do neoconservadorismo na cúpula em

Washington. Após perder espaço político durante a Guerra Fria, o neoconservadorismo seria

naquele momento revisitado e transformado em uma ferramenta de forma a direcionar a

política externa norte-americana. Como Magalhães expõe “Após os ataques terroristas de 11

de setembro de 2001, os neoconservadores ganharam força e se tornaram o grupo mais

influente em Washington" (MAGALHÃES, 2008, pg. 17).

No pensamento neoconservador em política externa dos EUA há forte presença da

questão internacionalista, que se opõe ao espectro dos que pregam uma postura isolacionista.

Neste ponto faz-se mister entender que os neoconservadores fizeram uso de critérios

relacionados ao poder e à segurança dos EUA, mesmo não sendo universalistas em sua

acepção, mas possuindo algo mais parecido a um internacionalismo de caráter nacionalista

e patriótico. Os neoconservadores faziam suas análises e criavam seus pressupostos através

acreditar na existência de uma suposta singularidade dos Estados Unidos em relação aos

demais Estados nacionais (TEIXEIRA, 2007). Sumarizando: o neoconservadorismo

procurava unir a condição internacionalista a um sentimento nacionalista.

A questão do poderio militar estadunidense é central para os neoconservadores em

questão de política externa. Partindo do conceito das relações internacionais de

instrumentalização do uso da força notamos que é justamente sobre este conceito que a

questão bélica para os neoconservadores busca apoio. Não há debate que indique que a

doutrina neoconservadora não se consolidou nos EUA durante o governo de Bush, exercendo

uma influência considerável. A política externa norte-americana fez um giro grandioso no

que tange a questões sobre guerra preventiva e exportação da democracia como melhor

forma de governo, tudo, obviamente, apoiado pela corrente neoconservadora da Casa

Branca.

Apontamentos finais

Em matéria de estudos sobre a extrema direita e o neoconservadorismo norte-

americano pouco ainda é trabalhado, o que justifica a atualidade da pesquisa acerca destas

vertentes políticas. Buscamos trazer o que nos instigou a tratar destes temas de forma sucinta,

porém, cabe ressaltar novamente, que a universalidade desta temática nos impediu de sermos

mais breves.

Conforme vimos, a pesquisa pressupôs que estes projetos políticos, no período de

2001-2009, levantaram questões teóricas e conceituais de grande relevância, o que nos levou

a procurarmos compreendê-los mais profundamente. Ao entrarmos na seara pretendida,

notamos que tanto a extrema direita quanto o neoconservadorismo estadunidense

representam modelos políticos extremamente relevantes atualmente.

A extrema direita norte-americana apoia-se em um radicalismo cujo projeto político

tem raízes permanentes no fascismo, conforme vimos anteriormente. Este modelo, nos

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Estados Unidos, trouxe consigo características reguladoras da sociedade como qualquer

outro modelo extremista traria, negando os direitos de existir uma proposta diferente, de

existir uma oposição.

Já a doutrina neoconservadora se consolidou nos EUA durante o governo de Bush,

exercendo uma influência considerável. A política externa norte-americana representou a

pedra sobre a qual o governo de Bush se apoiaria. A aplicação do receituário neoconservador

trouxe consigo mudanças acerca questões de guerra e cultura estadunidenses, o que, por sua

vez, modificaria a maneira com a qual os Estados Unidos passaram a lidar com seus aliados

e inimigos no exterior. O neoconservadorismo estadunidense durante o governo de Bush

teve como prioridade tratar de questões relativas à política externa. Esta foi sua característica

mais marcante até o momento que Bush vagou seu assento na Casa Branca.

Referências bibliográficas

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“ERA UMA VEZ UM TIRANO”, DE ANA MARIA MACHADO, LITERATURA

INFANTIL NO INÍCIO DA DÉCADA DE OITENTA COMO FORMA DE

DENÚNCIA

Celimara Cristine Lima1

Solange Marilene Melchior do Prado2

Resumo: O presente artigo propõe analisar a obra “Era uma vez um tirano”, da literatura

infantil, escrita por Ana Maria Machado, no início da década de oitenta, período da ditadura

militar, marcado pelo cerceamento das ideias e pelo controle do Estado sobre produções

culturais. Diante daquele contexto de acintosas perseguições, alguns autores da literatura

infantil, dentre eles, Ana Maria Machado, encontram formas de alertar os jovens leitores

sobre a falta de liberdade de expressão e sobre o autoritarismo vigente. A relação entre poder

e obediência, por meio da linguagem literária, circula para o público infantil de modo a

favorecer a leitura e a criticidade em tempos de silêncio controlado. No contexto de censura

e represálias políticas, última década do regime militar, Ana Maria Machado apresenta a

figura do rei e o seu poder sem limites, mostrado, simbolicamente, o que propicia a

correlação das ações do rei às dos administradores públicos da época. Portanto, ao mesmo

tempo em que o leitor se diverte, pode também refletir sobre sua condição de subserviência.

Reporta-se aqui a um período de formação da literatura infantil, o qual se desponta sobre o

rígido controle do Estado. Para análise da obra serão tomados os pressupostos de Mikhail

Bakhtin, Antonio Candido, Marisa Lajolo e Ana Maria Machado.

Palavras-chave: Ana Maria Machado; Literatura Infantil; Ditadura.

Introdução

Este texto apresenta uma breve contextualização do período da ditadura militar no

Brasil, para entender o paradoxal crescimento da literatura infantil naquele contexto político

assinalado por opressões desmedidas e cerceamento à liberdade de expressão. O Estado

apregoa o crescimento do país, incentivando e investindo na produção cultural, pois pretende

passar a impressão de pujante nação, faz isso em clima de euforia, sob o argumento de que

investe na formação educacional. Assim, buscaremos compreender o que subjaz ao discurso

do dominante sobre o caráter educativo da literatura na época.

Após a reflexão contextualizada, buscaremos algumas questões já discutidas a

respeito da produção literária nas décadas de setenta e oitenta, de modo a fundamentar

teoricamente o presente estudo.

Em 1982, período que se cogitava a redemocratização do Brasil, foi publicada a obra

“Era uma vez um tirano”, de Ana Maria Machado, o enredo da obra traz marcas de seu

tempo, um tempo que para Marisa Lajolo (1983) “a cultura brasileira tratava de recuperar os

1 Docente da rede estadual de ensino, matriculada no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras –

Nível de Mestrado Profissional, área de concentração em Linguagens e Letramentos, da Universidade Estadual

do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de Cascavel. Email: <[email protected]>. Sob Orientação da

Profa. Dra. Denise Scolari Vieira. 2 Docente da rede estadual de ensino, matriculada no Programa de Pós-Graduação StrictoSensu em Letras –

Nível de Mestrado Profissional, área de concentração em Linguagem e Letramentos, da Universidade Estadual

do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de Cascavel. Email: <[email protected]>. Sob Orientação da

Profa. Dra. Aparecida Feolla Sella.

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fragmentos de sua imagem recente: a busca de uma linguagem própria de certo e de seu, tem

apenas a consciência de seus limites” (LAJOLO, 1983, p.106). Por exemplo, o nome do

protagonista da obra: Tirano, pode ser alusivo aos governos militares que administraram o

país, pois tirano3 é um vocábulo propício, embora seu emprego seja construído

alegoricamente. O estudo perpassa pela análise das ações do Tirano e sobre como se formou

a resistência a sua tirania e contestou-a.

Um breve contexto histórico

O regime político instaurado no período da ditadura militar abrange o período de

1964 a 1985 e foi marcado por protestos devido às imposições advindas do próprio regime.

Como forma de denunciar os desmandos dos governantes da época, as expressões artísticas

constituíram-se importantes veículos de denúncia. O controle do Estado cerceava a liberdade

de expressão, ainda assim, pesquisas apontam nomes como Regina Zilberman, Marisa

Lajolo, Fanny Abramovich e Ana Maria Machado, que se destacaram na produção literária

infantil no Brasil neste período. Trata-se de contribuições significativas, quando se vive em

tempos de represálias, pois, de forma estratégica e lúdica ao mesmo tempo, traz ideias

contestadoras sobre a realidade imposta à sociedade. Destaca-se aqui um simulacro de

abertura e fomento à produção desse material pelo próprio Estado que, sob a égide de

promotor dos bens culturais, procurou “fortalecer” a instituição escolar e difundir valores

tidos como exemplares para a nação. A esse respeito, em Marisa Lajolo (1984), temos a

seguinte constatação:

Já nesse período de formação de nossa literatura infantil se definem os

canais que, em nosso país agilizam a circulação e o consumo da literatura

destinada a crianças: um deles é o Estado Todo Poderoso. Se não o Criador

do Céu e da Terra, pelo menos o Distribuidor de Livros e Agenciador de

Leitores. Outro é a Escola. E quando a Escola escapa do Estado ao qual

serve e do qual é um aparelho ideológico, cai nas malhas da indústria

editorial. O equilíbrio é mais do que precário; quer como instrumento do

Capital, a escola é entreposto compulsório do livro infantil brasileiro que

quiser abandonar a poeira das estantes e chegar às mãos dos leitores

(LAJOLO, 1984, p. 58).

A configuração desse contexto leva-nos a questionar como a literatura teria se

comportado em meio à repressão e, ao mesmo tempo, com o sedutor convite a alianças com

o Estado? Teria a arte literária conseguido escapar ao cerco? A esse respeito, Adauto Novaes

(1979, 1980) argumenta que “foi um momento propício ao enriquecimento das teorias e das

práticas de representação do real, e este enriquecimento implica numa composição cultural

multifacetada e pluralista” (NOVAES, 1979, 1980, p.79). O autor também atribui ao fato de

a literatura não ser um veículo de massas no Brasil e, por essa razão, não oferecer risco ao

regime político em vigência, levando em consideração que os leitores seriam em número

bem reduzido.

Partindo desse princípio, a literatura engajada, dentre elas também a literatura

infantil, driblando o cerco, retrata temas como a centralização e o abuso do poder, a

supressão da liberdade e do direito de ir e vir. Segundo Antonio Candido (2008), os aspectos

históricos de uma obra literária “repousam sobre a organização formal de certas

3 1. aquele que usurpa o poder soberano de um Estado; 2. governante injusto e cruel, que coloca sua vontade e

autoridade acima das leis e da justiça. (Dicionário Houaiss, 2009, p.1847)

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representações mentais, condicionadas pela sociedade em que foi escrita. Devemos levar em

conta um nível de elaboração da realidade” (CANDIDO, 2008, p.177). Portanto, ao

considerar o contexto histórico e social da produção de uma obra, é possível abstraí-la em

sua essência.

Literatura / literatura infantil e política

As obras literárias são construídas em um determinado contexto histórico-social,

assim, ao lermos a obra “Era uma vez um tirano”, remetemo-nos àquele contexto a fim de

analisá-lo. Segundo Antonio Candido (2008), o olhar do leitor volta-se à compreensão de

“como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura literária, a ponto

dela poder ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite

compreender a função que a obra exerce” (CANDIDO, 2008, p. 9).

Por meio da linguagem simbólica voltada ao púbico infantil, vislumbramos uma

forma engajada, ainda que imaginária e divertida de destituir o poder de um tirano, o que

pode ser constatado na queda do personagem Tirano na presença da população em praça

púbica, no seguinte trecho: “Por via das dúvidas, diante disso, o Tirano achou melhor

aproveitar a escuridão da noite e sumir” (MACHADO, 1982, p. 25). Fazemos também uma

analogia sobre o momento da retirada do Tirano, pois não aconteceu à luz do dia, mas,

aproveitando-se da escuridão, atitude que denota fuga, ausência de transparência e

impunidade, assim como não vimos punição para os crimes políticos cometidos na época da

ditadura.

Sobre sua produção escrita, a autora afirma que o período ditatorial trouxe impacto,

pois participou de movimentos de resistência ao período e presa, em 1969 e exilada, assim,

autora vincula a vivência pessoal à produção artística, tanto que, em suas histórias, incorreu

assuntos em torno do autoritarismo.

Nós tínhamos uma ação consciente de resistência política, mas não

especificamente voltada para a literatura. No meu caso, posso dizer que faz

parte intrínseca de minha vida e, por isso, transparece no que eu escrevo.

Um livro como De olho nas penas, por exemplo, que fala da ditadura, da

clandestinidade e do exílio, tem a ver com situações vividas por mim, por

meus familiares, por amigos, por gente que eu conheço e amo. Em Era uma

vez um tirano (1982), eu nem ao menos disfarço, e chamo o governante de

rei. Mas nada disso era tratado como lição, palavra de ordem ou

panfletagem. Na verdade, os temas eram questões vividas, trabalhadas

ludicamente pela linguagem, e refletiam minha necessidade de expressão.

(MACHADO, apud TOTINO; BISSOLI; FREITAS, 2014).

Na década de setenta, apesar da ditadura ou por causa dela, houve um grande salto

no número de livros editados no Brasil. Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado aponta

como responsáveis por esse salto os seguintes fatores:

A expansão, pela reforma educacional de 1972, do ensino médio e

superior, que passou a adotar livros e incentivar a leitura; a reformulação

do INL – Instituto Nacional do Livro – fortalecendo a iniciativa privada

com apoio a editoras, sem mecenatismo ou paternalismo; a profissão do

homem de letras, que colocou seu conhecimento a serviço de uma

produção nos moldes capitalistas (PRADO, 2010, p. 41).

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Apesar dos interesses escusos das ações mencionadas, pode-se considerar uma

possibilidade de abertura à crítica do sistema político vigente. Silverman Malcolm (1995)

faz referência ao regresso dos exilados, grande parte deles intelectuais de “meia-esquerda”,

trata-se de um momento de comoção nacional e intenso desejo de registrar nas obras

ficcionais as experiências vividas, seja em autobiografias, (pseudo) memórias ou romances.

Segundo o crítico: “Todos partilham uma disposição de tirar vantagem da nova liberdade

encontrada de escrever abertamente, bem como da indústria editorial crescente para editar e

distribuir o que eles têm a dizer” (SILVERMAN, 1995, p. 291). O mesmo ocorre com a

literatura infantil de meados da década de setenta que se volta à sensibilidade ante aos

problemas de arbitrariedades do poder, com isso, autores como Ruth Rocha, Eliardo França,

Fernanda Lopes de Almeida, Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes e outros despontam no

meio literário apresentando-nos reis mandões que nos põe a refletir sobre os excessos

cometidos pelos tiranos e sobre os limites de seu jugo. Assim sendo, o enfoque no aspecto

pedagógico ou literário depende da orientação dada no ato da leitura, momento no qual

podemos interagir para que haja compreensão da realização artística da obra lida e se façam

as correlações possíveis com o contexto vivido.

Carnavalização menipeia e bufonaria do Tirano

Ana Maria Machado empregou a “sátira menipeia”, este recurso literário, conforme

postula Mikhail Bakhtin (2008, p. 129), “tornou-se um dos principais veículos portadores da

cosmovisão carnavalesca na literatura”. Essa forma composicional aproxima-se das

empregadas por autores que pretendiam driblar a censura e denunciar o sistema opressor.

O carnaval “é uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa

[…], apresenta diversas matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e

festejos particulares” (BAKHTIN, 2008, p.139). O enredo da obra “Era uma vez um tirano”

enquadra-se na estrutura da carnavalização, isso pode ser constatado na passagem em que a

população, em um dia em que o sol surgiu, dando clareza ao tom plúmbeo, chegou à frente

do palácio do Tirano. Sua reação imediata confirma com uma atitude que costuma ser

frequente: com fúria, ordenou que todos voltassem a trabalhar. A fala da personagem Jacira:

“Viemos mostrar uma coisa bonita” (MACHADO, 1982, p.19) revela a coragem de afrontá-

lo, sem medo de mostrar a beleza do arco-íris, que vai surgir de forma mágica e

surpreendente. O povo, não só se surpreende com a beleza, mas ganhou coragem para dar

um basta aos desmandos do Tirano, não temendo a força da guarda que já não podia ouvi-

lo. Assim, cada vez mais, o Tirano deparava-se com a incômoda ousadia da população: “Não

adiantou nada o berreiro dele. Ninguém ouvia nada, ninguém prestava atenção em coisa

nenhuma que não fosse a festa linda, as cores se espalhando, a música chamando, o corpo se

alegrando” (MACHADO, 1982, p.22).

Para quem pretendia ser o alvo das atenções, ser reconhecido e sempre obedecido,

esse tratamento desperta ira, haja vista que, em se tratando de um político tirano, a admiração

popular e bajulações, mesmo que espúrias, ajudam a manter as aparências. Ele esperava, por

exemplo, que os ânimos fossem arrefecidos ao escurecer, assim que ouvissem o toque de

recolher: “Não faz mal. Essa bagunça dura pouco. Daqui a pouco escurece e, com o toque

de recolher, acaba tudo” (MACHADO, 1982, p. 22). A autora revela personagens crianças,

que percebem e demonstram, desde cedo, a contestação das injustiças, apresentando as armas

para combater o tirano: um arco-íris no bolso, uma canção no corpo e uma chuva de estrelas.

As crianças começam desde pequenas a entender a importância de se viver em paz, e a

possibilidade de sonharem o que quiserem, contrariando o que tradicionalmente se ouve a

respeito da imposição de ordens sobre as ações dos cidadãos.

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A urdidura do romance possui aspectos da linguagem carnavalesca, na qual, segundo

a concepção bakhtiniana, o riso é ambivalente e funde-se à ridicularização e ao júbilo. Isso

pode ser observado no trecho em que os foguetes encantaram a todos e, mesmo tentando

intervir, não teve outra alternativa a não ser fugir. Mostra-se aí, simbolicamente, o poder

sucumbindo ante a pressão recebida. A autora ainda reforça que não é fácil livrar-se de um

tirano, contribuíram para isso vários fatores em harmonia e bem organizados, como: um

arco-íris, canção e estrelas. Todos são elementos simbólicos, mas podem ser associados ao

fortalecimento pela união.

Ao longo da obra, entretanto, observa-se, pela ótica do narrador onisciente, a

ridicularização da personagem que revela similaridade à figura do bufão: “Isto é proibido!

Todos vão ser castigados! Parem imediatamente!” (MACHADO, 1982, p.21). Esse gesto

confirma que o personagem facilmente perde o equilíbrio e, diante de qualquer ação que fuja

ao seu controle, age com grosseria e escabuja de raiva. Com isso, aquele que visava “louros”

por suas façanhas administrativas, ironicamente torna-se ridículo.

As ações carnavalescas representadas na obra “Era uma vez um Tirano” remetem a

reflexões acerca dos crimes políticos praticados durante o regime militar, os quais estavam

respaldados no Ato Institucional Número Cinco, que destituiu os cidadãos dos seus direitos.

A figura caricaturizada do bufão, de acordo com a concepção de Bakhtin (1988),

possui estreita ligação com os “microcosmos e cronotopos” que se servem da praça pública

ou dos palcos teatrais para suas representações alegóricas. Esta controvertida figura do bufão

é comum no romance picaresco e, na obra em análise, estabelece-se uma possibilidade de

comparar o Tirano à figura representativa do bufão.

A personagem Tirano pode ser caracterizada como bufão ante a seguinte contestação:

“Quem esse cara pensa que é? Será que ele pensa que tem o rei na barriga?” (MACHADO,

1982, p.7). A personagem que pode ser a representação simbólica de políticos tiranos, que

administraram o país na época da ditadura militar, foi criada com certa dose de hipérbole.

Suas ações exemplificam isso: “Mandou que um monte de chaminés e canos de descarga

lançassem fumaça e, assim, quase sempre o céu ficava cinza e não se via o sol”

(MACHADO, 1982, p.10).

Ações como a descrita anteriormente reafirmam a representação do bufão e o

narrador sinaliza para a iminente derrocada do poder. A sequência de acontecimentos

infortúnios que precipitam para a queda do Tirano é ficcional, mas, em certa medida, pode

ser correlacionada ao que se desejava em relação ao regime militar, restituindo aos cidadãos

seus direitos que, naquele período, haviam sido destituídos. Muitas manifestações,

principalmente estudantis, ocorreram em nome do restabelecimento da legalidade moral e

da democracia social do país.

A metáfora da cortina de fumaça

A alusão à fumaça, à proibição das cores e obrigatoriedade do cinza imposta pelo

Tirano, ainda mais quando se trata de obras escritas em tempos de ditadura, período propício

para o emprego de metáforas que simbolizam o poder do Estado sob o comando dos generais.

Simbolicamente as imagens “coloridas traduzem conflitos de forças que se

manifestam em todos os níveis da existência…” (GHEERBRANT, 2009, p. 275) O

desequilíbrio na harmonia das cores seria indício de igual desequilíbrio na organização

política, de tal modo que, o que deveria ser democrático e transparente, torna-se obnubilado.

As cortinas de fumaça podem ser associadas ao regime militar, cuja ostentação do

poder demonstrava pelas imposições desmedidas e insensatas dos governantes. Quando suas

ordens deixavam de ser cumpridas, era um sinal de que o poder se esvanecia. Assim, quando

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as três crianças conversaram e passaram a ter ideias de restabelecer a alegria das cores, dos

risos, conversas e danças, o Tirano teve seu poder destituído, confirmando-se a falência do

seu sistema político. Com essa estratégia divertida e ao mesmo tempo contundente, Ana

Maria Machado fez, através da literatura infantil, uma crítica ao, em breve, decadente regime

militar.

Através de uma análise figurativa, verifica-se o sentido metafórico do tom cinza, no

decorrer da obra e do arco-íris, no final, pois remetem à ideia de ponte, ao anúncio de

renovação e felicidade. Na trama da obra analisada, a retirada forçada da personagem Tirano

pode ser correlacionada à iminente queda do regime da ditadura militar das décadas de

sessenta e setenta e primeiro quinquênio de oitenta.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiésvski. Trad. Paulo Bezerra. 4ªed. Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 10ª ed.

Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,

2009.

LAJOLO, Marisa. Ana Maria Machado. Seleção de textos, notas, estudos biográfico,

histórico e crítico e exercícios. São Paulo: Abril educação, 1983.

MACHADO, Ana Maria. Era uma vez um tirano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982.

NOVAES, Adauto. et al. Anos 70 Literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980.

PRADO, Amaya Obata Mouriño de Almeida. Fábula renovada, ditadura questionada: “A

floresta azul”, de Orígenes Lessa. In: Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos

Literários. V. 19, nov. 2010. Disponível em:

<http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol19/TRvol19d.pdf>. Acesso em

28/08/2015.

SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance. Trad. Carlos Araújo. Porto Alegre/São

Carlos: Universidade/UFRGS, 1995.

TOTINO, Mariana; BISSOLI, Ana Paula; FREITAS, Clara. Nos anos de chumbo, literatura

infantil nada teve de ingênua. In: Portal Puc Rio Digital, 2014. Disponível em: <http://puc-

riodigital.com.puc-rio.br/Texto/Pais/Nos-anos-de-chumbo,-literatura-infantil-nada-teve-de-

ingenua-24261.html#.VeBpRvlViko>. Acesso em 28/08/2015.

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OS CLUBES 4-S: OS ESTADOS UNIDOS E A EXTENSÃO RURAL EM

MARECHAL CÂNDIDO RONDON/PR (1960)

Cíntia Wolfart1

Resumo: O artigo avalia o desenvolvimento da extensão rural e dos clubes 4-S em Marechal

Cândido Rondon na década de 1960. Tratam-se de modelos que já eram desenvolvidos nos

Estados Unidos e que foram introduzidos na agricultura brasileira no pós-Segunda Guerra

Mundial e segundo suas particularidades regionais e nacionais. O serviço de extensão rural

objetivou a difusão dos trabalhos e testes desenvolvidos nos campos de experimentações dos

colégios agrícolas, bem como instruiu os agricultores na utilização de insumos, maquinário

e crédito agrícola. Os clubes de jovens rurais denominados Clubes 4-s (Saber, Sentir, Saúde,

Servir) desenvolveram em Marechal Cândido Rondon demonstrações sobre práticas de

trabalho rural e prestaram assistência técnica aos trabalhadores rurais antes da implantação

do serviço estatal de extensão rural. Objetivavam a modernização das atividades agrícolas e

a modificação dos hábitos alimentares, de higiene e de trabalho da população residente nas

áreas rurais do município. Para esta comunicação, consultei alguns jornais locais como

Rondon Comunicação, O Alento e Informativo Copagril, que estão disponíveis para consulta

no Núcleo de Pesquisa e Documentação sobre o Oeste do Paraná – CEPEDAL, localizado

na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Marechal Cândido

Rondon/PR.

Palavras-chave: Clubes 4-S; Extensão rural; Marechal Cândido Rondon.

Este texto é o resultado de algumas reflexões iniciais sobre a pesquisa de mestrado

em que tratamos sobre o desenvolvimento da extensão rural e a organização dos clubes

denominados 4-S (Saber, Sentir, Saúde, Servir) em Marechal Cândido Rondon a partir da

década de 1960. Analisa-se a extensão rural enquanto veículo de propagação de técnicas

agrícolas e sanitárias aos produtores rurais na região estudada. Além disso, compreende-se

o “extensionismo”2 enquanto propulsor do desenvolvimento do capitalismo no meio rural

local e introdutor do pequeno produtor na economia de mercado. No Brasil, o

desenvolvimento do “extensionismo” rural e dos clubes 4-S seguiu o modelo norte-

americano, apesar de apresentar especificidades e peculiaridades. Sirlei de Fátima de Souza,

em dissertação de mestrado intitulado Tradição x Modernização no Processo Produtivo

Rural: os Clubes 4-S em Passo Fundo (1950-1980), ressalta que Clubes 4-S (programa para

a juventude rural) seguiram o programa para a juventude rural norte-americano, denominado

Clubes 4-H’s [Head (cabeça), Heart (coração), Health (saúde), Hands (mãos)].

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UNIOESTE, Campus de Marechal Cândido

Rondon. 2 Alguns autores entendem o “extensionismo” rural enquanto uma relação entre um técnico e um produtor

rural, que mantem foco entre o Estado e o Agricultor. Este é o caso do autor José Leme. Outros como Mauro

Marcio Oliveira, apesar de ter sido um extensionista, produziu críticas à própria extensão rural pelo seu caráter

classista e desigual. Este extensionista procurou demostrar que a extensão rural desde a sua criação não foi

pensada para alcançar o pequeno produtor desfavorecido, mas foi confabulada por interesses pessoais e de

empresas internacionais, como as de Rockfeller. Consultar: OLIVEIRA, Pedro Cassiano Farias de. Extensão

rural e interesses patronais no brasil: uma análise da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural –

ABCAR (1948-1974). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História do Departamento de

História da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2013.

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Segundo Souza, os clubes 4-H’s se originaram dos clubes agrícolas do milho, do

algodão, do tomate que se iniciaram nas escolas rurais com a finalidade de realizar

demonstrações sobre práticas de trabalho rural e estabelecer uma aproximação com a vida

rural. Além disso, se desenvolveu o trabalho de economia doméstica para as mulheres rurais

(BECHARRA, 1954 apud SOUZA, 2003, p.116).

No caso de Marechal Cândido Rondon, a Associação de Crédito e Assistência Rural

do Paraná – ACARPA3, originou o desenvolvimento de Clubes 4-S em vários distritos e

linhas da região Oeste do Paraná4. Esses clubes apresentaram como símbolo um trevo verde

de quatro folhas, com um “S” desenhado em cada uma delas. Esse trevo era fixado no

uniforme dos associados (geralmente dos jovens) e usados em vários eventos que ocorressem

regionalmente, como em festas municipais e nos encontros regionais dos Clubes 4-S.

Abaixo, pode-se visualizar um cartão de uma exposição dos Clubes 4-S realizado no

município de Iguiporã/PR, no ano de 1972. O broche em formato de trevo era fixado no

uniforme dos participantes e era semelhante ao trevo apresentado abaixo, contendo o

desenho da letra S em cada folha.

Fonte: Álbum da Acarpa de Marechal Cândido Rondon, sem data. Álbum localizado na Emater – Marechal

Cândido Rondon.

O desenvolvimento do “extensionismo” rural e dos clubes 4-S em Marechal Cândido

Rondon e em outros Estados do Brasil, esteve ligado à estratégia do capitalismo

internacional no pós-Segunda Guerra Mundial, bem como ao projeto de desenvolvimento do

complexo agroindustrial sob o comando de corporações transacionais, principalmente de

países como os Estados Unidos da América. Durante a Segunda Guerra Mundial, o grupo

Rockfeller dos EUA, por meio do programa denominado “Revolução Verde” idealizado e

patrocinado pelo mesmo grupo em 1943, procurou aumentar a produtividade agrícola no

mundo. Através do desenvolvimento de experimentações no campo, multiplicação de

sementes adequadas às condições climáticas e de solo, resistentes a pragas, eram alguns dos

objetivos desse grupo.

No município de Marechal Cândido Rondon, a Acarpa originou a criação dos Clubes

4-S. Essa associação apresentava como estratégias de ação a “modernização”5 da agricultura

3 A ACARPA, segundo o histórico da Emater-Paraná, era uma organização que tinha como objetivo a difusão

de tecnologia, práticas de implantação e manejo de lavouras e criações, estratégias de controle de pragas,

processos de manejo e conservação de solos visando o aumento da produtividade e a implantação dos sistemas

de “plantio direto”. 4 Alguns desses distritos e linhas que pertenciam ao município de Marechal Cândido Rondon, e que

desenvolveram os clubes 4-S, foram: Iguiporã, Margarida, Mercedes, Quatro Pontes, Linha Palmital e Sanga

XV. 5 Maria Yeda Linhares e Argemiro Jacob Brum, por exemplo, analisaram este fenômeno a partir do conceito

de “modernização conservadora”. Em outras palavras, para esses pesquisadores a modernização da agricultura,

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no meio rural e a integração dos clubes 4-S nas diferentes instituições da comunidade, além

de formar lideranças voluntárias, intercâmbios municipais, intermunicipal e estadual entre

os jovens. Através desses clubes e do trabalho com os jovens, almejavam a possibilidade do

aumento da produtividade mediante o emprego de novas técnicas agropecuárias6.

Os objetivos que embasaram o trabalho dos Clubes 4-S estavam inseridos num

contexto global e seguiam o modelo e orientações dos Estados Unidos. Este modelo visava

à introdução de pacotes tecnológicos no Brasil e à difusão das novas técnicas agrícolas e

produtos que estavam sendo desenvolvidos nos seus centros de pesquisa e nas indústrias, em

grande parte nas multinacionais (SOUZA, 2003, p. 14)

De acordo com Souza, o trabalho com a juventude rural foi umas das soluções

encontradas para a divulgação de novos métodos e técnicas entre os agricultores, pois os

jovens mostravam-se mais receptivos que os adultos e, assim, levavam menos tempo para

atingir os objetivos do trabalho de extensão (SOUZA, 2003, p. 117).

O jornal Rondon Comunicação, de 1974, apresenta alguns indícios de que era mais

fácil convencer os jovens “agricultores” a adotarem outros métodos de trabalho na

agricultura do que os adultos, como no caso dos pais desses jovens. Ou seja, a introdução

das novas tecnologias e a inserção desses trabalhadores na lógica de produção capitalista

seria muito mais eficaz através do trabalho com os jovens, filhos de trabalhadores rurais.

A juventude é portadora de cultura e instrumento de inovação. Sua

importância numérica, a possível melhoria do nível de ensino e o rápido

processo de emancipação social, a que se junta o alheamento das gerações

mais velhas, fazem com que ela seja, no mundo de hoje, uma força

importante e potencialmente explosiva. A juventude busca encontrar sua

identidade política e seu papel na sociedade e no processo de edificação

nacional. Se deixada à deriva pode converter-se em fonte de conduta anti-

social. Daí a importância dos programas dos clubes 4-S. Baseados na

participação positiva dos jovens no esforço comum de pessoas e entidades

e na instrução adequada, que permitam canalizar os recursos da juventude

para a ação no desenvolvimento socioeconômico. O jovem precisa ser

preparado para uma participação consciente na sociedade, em diferentes

campos de ação. Objetivos dos clubes 4-S: Acelerar o processo de

aprimoramento tecnológico da Agricultura, num transcurso, mínimo de

tempo. Servindo como estímulo para que os jovens permaneçam no meio

rural e participem ativamente no seu desenvolvimento. Técnico Agr. Atílio

Schaefler7.

Através da análise de um fragmento do jornal Rondon Comunicação, podemos

visualizar os interesses em torno do trabalho com os jovens. Na visão dos extensionistas e

agrônomos, os jovens deveriam ser orientados e instruídos nos clubes 4-S (politicamente,

socialmente e economicamente). O jornal demonstra alguns argumentos manejados pelos

técnicos agrônomos que estavam relacionados à possibilidade de os jovens apresentarem

em termos da estrutura agrária, pouco alterou a realidade nacional, sendo que uma das grandes consequências

foi o aumento da concentração fundiária. 6 Diretrizes de ação 1975 - ACARPA. Documento localizado na Biblioteca Pública de Curitiba/Paraná. 7 Jornal Rondon Comunicação, Marechal Cândido Rondon, Ano I, n. 26, 21 de setembro de 1974. Assunto:

Acarpa. Jornal disponível para consulta no Centro de Documentação do Oeste do Paraná – CEPEDAL,

localizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, no campus de Marechal Cândido

Rondon.

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desvios de conduta e tornarem-se “antissocial”. Trata-se de uma justificativa sobre a

necessidade da participação dos jovens nesses clubes.

Os extensionistas rurais da região estudada além de promoverem nos clubes agrícolas

denominados 4-S a difusão de uma nova racionalidade de trabalho no campo com o emprego

de uma “moderna” tecnologia e almejavam realizar esse objetivo, segundo o jornal, num

espaço de tempo muito curto. No município de Marechal Cândido Rondon, nos vários

eventos que eram realizados localmente, os jovens dos clubes 4-S participavam de

exposições dos seus trabalhos e resultados das produções. Geralmente, os encontros foram

realizados mensalmente e a data variou de um clube para outro. Alguns jovens

“quatroessistas” ajudaram na organização de hortas nas escolas da região. Esses jovens

recebiam instruções dos extensionistas e líderes 4-S.

Os clubes 4-S em Marechal Cândido Rondon desempenhavam funções muito

parecidas com os clubes 4-H dos Estados Unidos8. Segundo Souza, os clubes agrícolas

desempenhavam a função de educar a família por meio da juventude, realizando projetos de

trabalho agrícola ou de economia doméstica. Tratava-se de um projeto bem conduzido, que

não somente significava lucros e economia, mas servia como demonstração aos outros na

comunidade (SOUZA, 2003, p. 117).

Sonia Regina de Mendonça, em Extensão Rural e hegemonia norte-americana no

Brasil, apresentou avaliações importantes acerca da perpetração das novas práticas de ensino

agrícola no Brasil a partir de acordos de cooperação firmados entre o governo norte-

americano e o Ministério da Agricultura brasileiro. Além disso, analisou o papel do

“extensionismo” enquanto uma “correia de transmissão” entre o grande capital e o

trabalhador rural, considerando os meios de convencimento utilizados pelos agentes

extensionistas, cujo objetivo era promover outra racionalidade de trabalho na agricultura,

tais como: valores, hábitos, práticas diferenciadas daquelas que já eram empregadas no meio

rural brasileiro, entendidas por muitos enquanto atrasadas e subdesenvolvidas

(MENDONÇA, 2010, p. 188).

Portanto, a prática extensionista no Brasil apresentou certa missão de incutir outros

costumes entre os trabalhadores rurais e ocultou vários interesses de grandes multinacionais.

Nesse sentido, a difusão tecnológica promovida pelos extensionistas rurais objetivou a

integração desses trabalhadores aos circuitos mercantis do capitalismo hegemônico

(MENDONÇA, 2010, p.188).

Relação das fontes

Histórico de Extensão Rural. Disponível para consulta no site da Emater:

<http://www.emater.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=43>. Acessado

em 25 de janeiro de 2015.

Diretrizes de ação 1975 - ACARPA. Documento localizado na Biblioteca Pública de

Curitiba/Paraná.

Jornal Rondon Comunicação, Marechal Cândido Rondon, Ano I, n. 26, 21 de setembro de

1974. Assunto: Acarpa. Jornal disponível para consulta no Centro de Documentação do

8 Algumas entrevistas realizadas com antigos participantes dos clubes 4-S e extensionistas rurais dão indícios

de que as atividades realizadas nos clubes 4-S nesta região atraíam muito mais os jovens. Ao contrário dos pais

“agricultores” que era muito mais difícil convencê-los sobre a “importância” da nova tecnologia e de novas

práticas direcionadas ao meio rural.

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Oeste do Paraná – CEPEDAL, localizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná –

UNIOESTE, no campus de Marechal Cândido Rondon.

Jornal Rondon Comunicação, Marechal Cândido Rondon, Ano I, n. 30. 19 de outubro de

1974. Assunto: caravanas técnicas. Jornal disponível para consulta no Centro de

Documentação do Oeste do Paraná – CEPEDAL, localizado na Universidade Estadual do

Oeste do Paraná – UNIOESTE, no campus de Marechal Cândido Rondon.

Referências bibliográficas

ALVES, Clovis Tadeu. A revolução verde na mesorregião noroeste do RS (1930-1970).

Porto Alegre: Letra e Vida, 2013.

BECHARA, Miguel. Extensão agrícola. São Paulo: Secretaria da Agricultura /

Departamento de Produção Vegetal, 1954 apud SOUZA, Sirlei de Fátima. Tradição x

modernização no processo produtivo rural: os Clubes 4-S em Passo Fundo (1950-1980).

Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo

Fundo (UPF). Passo Fundo, 2003.

BRUM, Argemiro Jacob. Modernização da Agricultura – Trigo e Soja. Ijuí: Vozes,

FIDENE, 1988.

MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e educação rural no Brasil: alguns escritos. Niterói:

Vício de leitura/FAPERJ, 2007.

______. Extensão rural e hegemonia norte-americana no Brasil. Artigo História Unisinos,

volume 14, n. 2, Maio/Agosto 2010, p.188-196. Disponível em:

<https://www.google.com.br/?gfe_rd=cr&ei=M5zUVcfDG4WC8Qe9rp64Aw&gws_rd=ss

l#q=Extens%C3%A3o+rural+e+hegemonia+norte-americana+no+Brasil>. Acessado em

19/08/2015.

OLIVEIRA, Pedro Cassiano Farias de. Extensão rural e interesses patronais no Brasil: uma

análise da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural – ABCAR (1948-1974).

Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal

Fluminense (UFF). Niterói, 2013.

SOUZA, Sirlei de Fátima. Tradição x modernização no processo produtivo rural: os Clubes

4-S em Passo Fundo (1950-1980). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação

em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Passo Fundo, 2003.

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COMPOSIÇÃO SOCIAL E DISTRIBUIÇÃO REGIONAL DE CÉLULAS DO

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PCB) NO ESTADO DO PARANÁ (1945-

1955)

Claudia Monteiro1

Resumo: Esta comunicação trata da análise de dados quantitativos da presença de militantes

e núcleos do PCB (Partido Comunista do Brasil) no Estado do Paraná com o intuito de refletir

sobre as lutas específicas dos comunistas travadas entre 1945 e 1955. O levantado de fontes

do Arquivo Público do Paraná (acervo da Delegacia de Ordem Política e Social) aponta para

fortes disparidades regionais a respeito da atuação dos militantes no Estado e corrobora a

afirmação de Leôncio Martins Rodrigues sobre o desempenho dos comunistas no Brasil e o

fato de o PCB constituir-se como um partido eminentemente urbano, justificado pelo número

elevado de operários urbanos em suas fileiras e a reduzida proporção de camponeses em sua

composição social. De acordo um relatório produzido pela DOPS sobre o número de

comunistas fichados até 1955 naquela Delegacia, a maior presença de militantes

concentrava-se em Curitiba, Ponta Grossa e Paranaguá. Considerando que, naquele período,

os maiores contingentes de operários urbanos residiam justamente nas cidades de Curitiba,

Ponta Grossa e Paranaguá, sobretudo ferroviários e estivadores, e que os comunistas foram

bastante influentes entre os trabalhadores destas duas categorias, podemos afirmar que, no

Paraná, o PCB foi também um partido majoritariamente urbano. Com isso, não pretendemos

desconsiderar a importância da militância nas áreas rurais do Norte do Paraná, uma vez que

a bibliografia existente já demonstrou o envolvimento ativo, não só dos militantes de

Londrina na criação de Sindicatos Rurais na região e no próprio conflito entre posseiros e

grileiros na região de Porecatu, como também um número importante de trabalhadores rurais

compondo os quadros do partido no Norte do Estado.

Palavras-chave: Comunistas; Paraná; Partido Político

Neste texto apresentaremos uma reflexão sobre a inserção dos militantes do Partido

Comunista do Brasil nas diversas esferas da vida social e política paranaense a partir da

análise da documentação da DOPS e dos resultados eleitorais dos pleitos de dezembro de

1945 e janeiro de 1947, eleições em que o PCB pode participar legalmente no período

delimitado para esta pesquisa. É também nosso objetivo explicar a correlação entre a

desigual distribuição geográfica da influência do partido no Estado e a heterogeneidade da

dinâmica econômica e social paranaense.

Em maio de 1947 se dá a cassação do mandato do PCB; para Leôncio Martins

Rodrigues (1981, p.493), a direção comunista não contava com este fato, apesar da

tramitação do processo de anulação do mandato já existir desde o ano anterior.

Logo em seguida à cassação do mandato, o diretor do departamento de Segurança

Pública ordenou, via radiograma, o fechamento de todas as sedes do PCB no Estado do

Paraná. Em decorrência da ordem, as delegacias regionais e a DOPS da Capital trocaram,

imediatamente, vários telegramas sobre informações acerca do funcionamento de células e

comitês do partido nas diversas cidades do interior do Paraná, além disso, determinavam a

realização de buscas e apreensões do material encontrado nestes comitês. A súbita notícia

1 Doutora em História pela UFPR, Professora do curso de História da UNIOESTE – campus de Marechal

Cândido Rondon.

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da cassação do mandato, inesperada pelos comunistas, e a ação imediata da polícia

possibilitou apreensões de diversificado material (atas, documentos internos, livros,

correspondências, fotografias, cadernetas, panfletos). Tais informações serviram de

subsídios para os policiais mapearem as ações comunistas no Paraná.

Analisando a documentação do Tribunal Regional Eleitoral (TRE)2 acerca das

eleições realizadas em dezembro de 1945 e janeiro de 1947, em que o PCB concorreu com

candidatos próprios registrados na legenda do partido, e cruzando os dados com a

documentação da DOPS arrolada para esta pesquisa, podemos chegar a algumas conclusões

acerca da distribuição e da influência do PCB no Estado do Paraná. Especificamos três

regiões com características distintas: a região de Guarapuava, a região do Norte Cafeeiro em

torno do polo urbano de Londrina, e a região de Ponta Grossa, Curitiba e litoral.

A distribuição regional da influência do PCB no Paraná pode ser observada também

através da análise de um relatório da DOPS-PR contendo 150 páginas e intitulado

“Comunistas fichados nesta secção até o ano de 1955”, onde há um total de 4.693 nomes de

indivíduos fichados como comunistas no Estado do Paraná.3 Provavelmente trata-se um

levantamento de todos os indivíduos fichados pela DOPS desde a sua existência como

instituição em meados da década de 1930 até 1955, ano do relatório. É preciso estar ciente

de que a DOPS, quase sempre, exagerava em seus diagnósticos sobre a ação e o número dos

“elementos comunistas”, portanto nem todas as pessoas elencadas eram efetivamente

comunistas. Devemos lembrar também de que muitos militantes existentes não foram

fichados, mesmo porque, na conjuntura da legalidade (1945-1947) ser comunista não era

uma contravenção. Portanto, os números não devem ser tomados como uma tradução literal,

e sim como uma informação aproximada, contudo, não devemos desconfiar da “eficiência”

da Delegacia de Ordem Política e Social em seu trabalho de constante vigilância no sentido

de esquadrinhar as ações dos comunistas no Paraná, utilizando para isso, todo o tipo de

estratégia, desde a análise detalhada da documentação apreendida provenientes das sedes

municipais do partido até as informações de agentes infiltrados ou das notícias dos jornais e

panfletos.

Quanto ao número de militantes, nunca teremos uma fonte ideal, pois, mesmo na

documentação oficial produzida pelos próprios Comitês do PCB no Paraná, provavelmente

deve haver incorreções sobre a quantidade de membros filiados que nunca é constante, sem

contar que este tipo de fonte é bastante raro e apresenta dados fragmentados, encontramos

fontes assim somente sobre os comitês municipais de Curitiba, e sobre células do PCB em

Paranaguá e Morretes.

A partir do relatório da DOPS de 1955 e dos dados relativos às células do PCB nas

diversas cidades do interior paranaense e da Capital, é possível estabelecer um mapa geral

da distribuição dos comunistas por cidade e observar os maiores núcleos de militantes. Estes

2 Tal documentação, sob a guarda do Departamento Estadual de Arquivo Público, no momento da pesquisa

ainda não havia sido catalogada, o que dificultou bastante o trabalho. Os Tribunais Regionais Eleitorais foram

criados com a constituição de 1946, quando também foi instituído Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a

existência a partir daí, de uma autoridade judicial voltada exclusivamente para a normatização e fiscalização

dos pleitos eleitorais contribuiu para controlar e conter o problema da fraude e da corrupção nas eleições

brasileiras. Duas medidas adotadas nesta constituição contribuíram para um grande aumento do número de

votantes: A idade requerida para os indivíduos tornarem-se eleitores baixou de 21 para 18 anos e foi

reimplantado o voto obrigatório que havia sido extinto poucos anos antes do estabelecimento da República,

mas ainda mantinha-se a proibição dos votos dos analfabetos, o que ajuda a explicar as enormes disparidades

entre os números totais de votos válidos e o total da população dos municípios (MOTTA, 1999, p.68-69). 3 Fundo DOPS/DEAP. Pasta temática “Comunistas fichados em 1955”, n.313, cx.35.

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dados confirmam os já apresentados acima sobre as cidades onde os comunistas foram mais

atuantes, isto é, Curitiba, Paranaguá, Ponta Grossa e Londrina.

Do total de 4.693 indivíduos fichados no Paraná, 597 viviam em outros Estados (São Paulo,

Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia, etc.) e em 1.273 fichados não

havia informação sobre a cidade de residência. Com os dados referentes a 2.823 indivíduos

elaboramos a tabela a seguir, elencando as cidades por ordem decrescente, considerando o

número de militantes comunistas fichados pela DOPS.

Tabela 1: Número de comunistas fichados pela DOPS (até 1955), por cidade no Paraná

Cidade Número de comunistas fichados Porcentagem do total

Curitiba 925 32,76%

Paranaguá 425 15,06%

Ponta Grossa 267 9,46%

Londrina 152 5,39%

Apucarana 122 4,32%

Cornélio Procópio 106 3,75%

Antonina 89 3,16%

Porecatu 76 2,71%

Marialva 66 2,34%

Arapongas 62 2,2%

Santo Antonio da Platina 33 1,17%

Jaguariaíva 32 1,13%

Piraquara 30 1,06%

Ibiporã 24 0,85%

Jataizinho 23 0,81%

Jaguapitã 23 0,81%

Maringá 22 0,78%

Rio Negro 21 0,74%

Cambé 21 0,74%

Irati 20 0,71%

Bandeirantes 19 0,67%

Rolândia 14 0,5%

Morretes 13 0,46%

União da Vitória 13 0,46%

Caviúna 13 0,46%

São José dos Pinhais 12 0,42%

Demais cidades paranaenses

(com número de militantes

inferior a dez)

200 7,08%

Total: 2.823 100%

Fonte: Fundo DOPS/DEAP. Pasta temática “Comunistas fichados em 1955”, n.313, cx.035.

Observando a tabela acima, verificar a maior incidência de comunistas em algumas

cidades específicas nos ajuda a entender melhor a própria dinâmica da ação dos militantes

nas bases operárias e nas lutas específicas travadas no Paraná. O levantamento confirma

nossa hipótese de que havia maior número de militantes em cidades por onde passava a

ferrovia e que, por isso, tinham um contato maior com centros urbanos e também

concentrava um grande número de trabalhadores ferroviários, cidades como Curitiba,

Paranaguá, Ponta Grossa, Apucarana, Cornélio Procópio, Londrina, Arapongas e Antonina.

O caso das pequenas cidades de Porecatu e Jaguapitã terem um número maior de

elementos fichados como “comunistas” em comparação com outras cidadezinhas

semelhantes (de populações majoritariamente rurais e distantes da rede ferroviária), se

explica pela repercussão dos conflitos de terras na região do extremo norte do Paraná e a

influência do PCB na revolta de Porecatu, como já mencionamos anteriormente, e pela forte

repressão policial a este movimento, caçando os revoltosos e fichando os suspeitos. De

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acordo com Angelo Aparecido Priori (2002, p.216), o envolvimento do PCB na luta dos

posseiros de Porecatu se deu através do Comitê Municipal de Jaguapitã, da qual eram

dirigentes vários membros da família Gajardoni.

Ponta Grossa é a terceira cidade em número de militantes comunistas (267 fichados

na DOPS), se sobressai por ser uma cidade que comportava as oficinas da ferrovia (bairro

Oficinas), e onde havia importantes estações de parada, tanto de trens que viajavam no

sentido norte-sul, entre São Paulo e o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, quanto no sentido

interior-litoral paranaense. Curitiba também era um importante entroncamento da Rede de

Viação, ligando por meio da ferrovia, as cidades do interior aos portos de Paranaguá e

Antonina. No Paraná, portanto, a ferrovia foi um significativo cenário das lutas políticas e

operárias ocorridas em meados do século XX, tanto que o fato de haver militantes

comunistas entre os funcionários da ferrovia sempre foi uma preocupação da

Superintendência da RVPSC (Rede de Viação Paraná – Santa Catarina) e da DOPS, alguns

funcionários, como os maquinistas, eram excepcionalmente vigiados, pois, exerciam cargos

estratégicos que possibilitavam realizar propaganda e a distribuição de jornais e panfletos

comunistas em diferentes localidades nas quais a ferrovia tinha estações, como Irati, União

da Vitória, Rio Negro, Jaguariaíva, Morretes, Santo Antonio da Platina, Rolândia, etc,

municípios citados na tabela acima onde havia pequenos grupos de militantes e

simpatizantes do comunismo e do PCB.

Retornando à análise da tabela 1, observa-se que Paranaguá destaca-se como o maior

núcleo de comunistas no interior do Estado, o que se pode confirmar também pela dimensão

da documentação do Comitê Municipal do PCB em Paranaguá reunida pela DOPS. De

acordo com a tabela há 425 fichados residentes na cidade, que representa 15,06%. Este

contingente de militante tinha um impacto considerável no cotidiano local, tanto que, em

uma carta circular do Comitê Municipal de Paranaguá, o secretário de organização Manoel

Leandro da Costa Júnior, apresentava com orgulho o fato de que “[…] como todos sabem o

Partido em Paranaguá goza de uma fama muito justa”. 4

Para Gildo Marçal Brandão (1997, p.182), em cidades portuárias e ferroviárias,

caracterizadas por um forte sentimento de comunidade, ser operário é ser sindicalista e

comunista, este fenômeno ultrapassa o âmbito organizacional e partidário, porque resulta

não apenas de uma opção ideológica e política, mas configura um ethos comunitário, um

modo de vida local.

Primeiramente, na região de Guarapuava, área majoritariamente rural,

principalmente de pecuária tradicional, é claramente constatada a pouca inserção do Partido

Comunista. Apesar de constar no censo de 1946 como tendo a segunda maior população no

Paraná, com 96.235 habitantes, ficando atrás somente de Curitiba, tem também a segunda

mais baixa densidade demográfica, devido ao fato de ser o maior município em superfície

territorial, habitado por uma população espalhada numa vasta zona rural que incluía

pequenas vilas e distritos como Pitanga e Laranjeiras do Sul (futuramente emancipados

como municípios); o índice de povoamento em Guarapuava na época só não era inferior ao

munícipio de Foz do Iguaçu que abrangia grande parte do território do Oeste paranaense.5

As cidades situadas no Centro-Oeste e Oeste paranaense, na década de 40, separadas

geograficamente dos centros maiores e do litoral tanto pela existência de grandes espaços de

área verde, de florestas e campos, como pela dificuldade dos meios de transportes e

4 Fundo DOPS/DEAP. Pasta temática “Partido Comunista Brasileiro – PCB – documento diversos”, n. 1468 c,

cx.174, p.203. 5 “Anuário estatístico do Brasil 1946”. Rio de Janeiro: IBGE, v. 7, 1947. Disponível no site da internet:

<www.ibge.gov.br>.

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precariedade das vias de acesso, constituíram verdadeiros currais eleitorais de coronéis e da

elite local. Ressalta-se que os trilhos da ferrovia alcançaram a cidade de Guarapuava somente

em 1954, num momento em a expansão da rede de estradas de rodagem vinha substituindo

aos poucos o sistema ferroviário (KROETZ, 1985, p.129). O preço do isolamento geográfico

foi o retraimento econômico e principalmente o conservadorismo político, com todos os

atributos correspondentes a isso: clientelismo, corrupção, privilégios e exclusão da maioria

da população do jogo político.

Há uma distância bastante grande entre a conjuntura política e social das regiões do

Centro-Oeste, comparando-as com as características das cidades próximas ao litoral e aos

centros urbanos maiores, como Paranaguá, Ponta Grossa, Curitiba e Londrina. Um aspecto

não que não pode ser negligenciado é o fato de que todas estas cidades tinham acesso ao

transporte ferroviário, o que na época imprimia um novo dinamismo à economia e às

sociedades locais, permitindo um constante fluxo não só de mercadorias e pessoas, mas

principalmente de ideias.

A segunda região detectada é o polo aglutinado em torno da cidade de Londrina, o

Norte Cafeeiro, onde a colonização é mais recente e, apesar de ser também uma região de

população majoritariamente rural dedicada ao cultivo do café, os comunistas obtiveram ali

alguns êxitos. No Norte paranaense o partido conseguiu criar comitês em várias pequenas

cidades, como, por exemplo, Apucarana, Arapongas, Cornélio Procópio e Bandeirantes.

Sobre a ação dos militantes comunistas na área rural é bastante citado na bibliografia o

envolvimento dos militantes do partido nos conflitos de terras da região de Porecatu,

localizada no extremo Norte do Paraná na divisa com o Estado de São Paulo, onde, em razão

da caótica distribuição fundiária das ações do Departamento de Terras empreendida pelo

governo de Moisés Lupion, ocorreram sérios combates armados envolvendo pequenos

proprietários, posseiros, grileiros e grandes latifundiários no final da década de 40 e início

da década de 50.

Por fim, podemos elencar ainda uma terceira região, foi onde o partido teve maior

número de adeptos, principalmente a Capital do Estado e as cidades de Ponta Grossa e

Paranaguá, tal região se caracterizava por ser a mais urbanizada do Estado e por ter os

maiores índices populacionais. Leôncio Martins Rodrigues (1981, p.502) tratando do

desempenho dos comunistas no Brasil ressalta o fato de que o PCB constituiu-se como um

partido eminentemente urbano, justificado pelo número elevado de operários em suas fileiras

e a reduzida proporção de camponeses em sua composição social. Considerando o fato de

que os maiores contingentes estaduais de operários urbanos residiam nas cidades de Curitiba,

Ponta Grossa e Paranaguá, especialmente ferroviários e estivadores, e de que os comunistas

foram bastante influentes neste meio, podemos corroborar a afirmação de que no Paraná, o

PCB foi também um partido urbano, com isso, não queremos desconsiderar a importância

da atuação dos militantes nas áreas urbanas e rurais do “Comitê do PCB na Zona Norte”,

denominação partidária à sede do Comitê da região norte do Paraná. Veremos o

envolvimento não só dos militantes de Londrina participando ativamente da criação de

Sindicatos Rurais na região, como também os próprios “lavradores” compondo os quadros

do partido.

Referências bibliográficas

BRANDÃO, Gildo Marçal. A Esquerda Positiva: as Duas Almas do Partido Comunista

(1920/1964). São Paulo: Hucitec, 1997.

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KROETZ, Lando Rogério. As estradas de ferro no Paraná (1880-1940). Tese (doutorado)

USP, 1985.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à História dos Partidos Políticos Brasileiros. 2.ed.

Belo Horizonte: UFMG, 1999.

PRIORI, Angelo. A revolta camponesa de Porecatu: a luta pela defesa da terra camponesa

e a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no campo (1942-1952). Tese (Doutorado

em História) UNESP: 2002.

RODRIGUES, Leôncio Martins. O PCB: dirigentes e a organização. In: FAUSTO, Boris

(Dir.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1981, T. 3, v. 3.

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OS IMPACTOS DA MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA NO OESTE

PARANAENSE (1960-1980)

Danieli Caroline Schneidt Gish1

Resumo: Este artigo é resultado inicial de pesquisa de Iniciação Científica que venho

desenvolvendo sobre o processo da modernização da agricultura no oeste do Paraná. Abordo

mais diretamente a realização do processo nos territórios dos municípios de Cascavel,

Marechal Cândido Rondon e Toledo. O período em análise compreende os anos entre as

décadas de 1960 a 1990. O objetivo é discutir o projeto de modernização da agricultura

desenvolvido pelos governos federal e estadual, seu impacto e consequências na região,

buscando compreender fenômenos sociais como a migração, o êxodo rural, a ação de

empresas colonizadoras e os conflitos agrários relacionados ao processo. Para dar conta de

cumprir esse objetivo analiso matérias jornalísticas veiculadas em jornais que circularam na

época (Hoje Foz, Hoje Cascavel, O Paraná, O Alento, entre outros).

Palavras-chave: modernização; migração; conflitos.

Introdução

Várias colonizadoras atuaram no oeste paranaense com o intuito de trazer migrantes

para desbravarem esta área. Também para levarem pessoas daqui para outros Estados. Havia

colonizadoras que agiam legalmente e ilegalmente, com o discurso de auxiliar o crescimento

das regiões. Porém, um “progresso” a custo do quê? Muitos colonos saíram prejudicados

perdendo dinheiro e terras por conta do processo de colonização, seguido do de

modernização.

Pretendo relacionar a modernização da agricultura com esses projetos de colonização

e a migração. Utilizarei como fontes para análise algumas notícias dos jornais Fronteira do

Iguaçu, Hoje, A Tribuna e O Paraná. Estes jornais fazem parte do acervo documental do

Centro de Pesquisa e Documentação sobre o Oeste do Paraná (CEPEDAL). Problematizei,

relacionei e contrapus as fontes jornalísticas à historiografia produzida sobre a

modernização.

Colonização e colonizadoras

Por volta de 1902 empresas estrangeiras entraram no Oeste paranaense, com o intuito

de explorar a erva-mate e exportá-la para Buenos Aires. Destacaram-se as famílias de Júlio

Tomas Allica e Feliciano Lopes (fundadores de Porto Artaza, ao sul de Guaíra, à margem

esquerda do Rio Paraná); a Cia. Mate Larangeira e Porto Britânia (WEIRICH, 2004, p. 19).

Estas foram as primeiras colonizadoras da região. Elas atuavam no Estado do Rio

Grande do Sul e foram estimuladas pelo governo do Estado do Paraná a adquirirem terras

“boas e baratas” aqui no Oeste. Além do objetivo de nacionalizar a fronteira, havia o de abrir

caminho para a expansão do capital e para a colonização. Processo que tinha relação com a

política de “marcha para o oeste” desenvolvido pelo governo Getúlio Vargas.

1 Graduanda do curso de História da Unioeste, bolsista de Iniciação Científica da Fundação Araucária.

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Utilizava-se de intensa propaganda, enfatizando as terras com baixo custo, relevo

plano, clima favorável para plantio e terras férteis, a predominância de cursos d’água e matas

subtropicais (ZAAR, 1999, p. 103-104).

Por volta da década de 1940 (mais especificamente 1946) começou a se desenvolver

o projeto de colonização do Oeste do Paraná, com a formação da Companhia Madeireira e

Colonizadora Rio Paraná S.A-Maripá. A colonizadora tinha por objetivo a exploração das

terras, compra e venda comércio em geral, agricultura e pecuária, a extração, beneficiamento

e exportação de madeira. Em 1949, foi traçado um plano de ação com as seguintes metas:

escolha das pessoas para povoar a Fazenda Britânia; divisão das terras em glebas de 25

hectares ou 10 alqueires, proporcionando condições de tornar proprietário todo agricultor

que tivesse condições de pagar e se adequar aos modelos (quem não se adequasse recebia

outro tratamento; direção da produção agrícola rumo à policultura; auxílio aos agricultores

para colocação de seus produtos nos centros consumidores; e industrialização da região

(WEIRICH, 2004, p. 45-46).

Entre 1940 e 1965, cerca de 2.744.000 migrantes estabelecem-se no Estado do

Paraná. Principalmente gaúchos e catarinenses instalam-se aqui e compraram pequenas

propriedades, cultivando milho e feijão, por exemplo. Foi rápida a ocupação do Oeste, e

mais veloz ainda a modernização da agricultura - puxada pela cultura da soja - que em apenas

dez anos expandiu-se e consolidou-se (BRUM, 1988, p. 155-157).

Principalmente entre 1946 a 1952, quando os pequenos agricultores gaúchos e

catarinenses entraram no Oeste do Paraná, o solo ainda estava coberto por matas

subtropicais, provavelmente devido à prática da agricultura de subsistência (ZAAR, 1999,

p.50). Antes de 1946 viviam povos nativos aqui, com um sistema diferenciado de vida, com

formas específicas de se relacionar com o meio ambiente e o trabalho. As colheitas eram

abundantes, as famílias cooperavam entre si no trabalho. E com o aumento de moradores

passou-se a comercializar os excedentes de produção.

Modernização da agricultura

No início da década de 1960 falava-se muito sobre a implantação da reforma agrária,

porém após o golpe de 1964 as esperanças de sua realização praticamente acabaram. Senão

a reforma agrária, a outra opção da atividade agrícola era a alternativa da modernização

conservadora (BRUM, 1988, p. 73 e 81).

A estratégia da modernização conservadora tem por objetivo o aumento da

produção e da produtividade agropecuária mediante a renovação

tecnológica, isto é, a utilização de métodos, técnicas, equipamentos e

insumos modernos, sem que seja tocada ou grandemente alterada a

estrutura agrária. […] A estratégia de modernização conservadora se

enquadra perfeitamente no modelo econômico brasileiro, capitalista,

associado, dependente, concentrador, exportador e excludente. O mais

grave da opção por este caminho é o fato de que agora ela se ajusta também

à estratégia agrícola mundial liderada pelo complexo agroindustrial

(BRUM, 1988, p. 83-84).

No processo de modernização foi inserida a mecanização com o aumento do número

de tratores, o uso de fertilizantes para aumento da produtividade e o crédito rural com juros

baixos, fazendo a agricultura e a agropecuária tornarem-se dependentes do crédito. As

propagandas dos benefícios do uso de tratores, fertilizantes e agrotóxicos estão nos jornais

dos anos 1970 e 1980. Essa era a época da fase áurea da soja, ou seja, os produtores estavam

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recebendo bons retornos financeiros. “Tratores e automotrizes podiam ser facilmente

adquiridos pelos produtores, com financiamentos a juros favorecidos” (BRUM, 1988, p.

141).

Mas o processo de modernização da agricultura ainda era parcial, ocorria em maior

escala no Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O uso de tratores, fertilizantes e crédito rural são

fatores que indicam a modernização. Mas, na verdade, ela beneficiou na maioria os grandes

produtores e os produtos de exportação da região Centro-Sul (BRUM, 1999, p. 112-114).

Cooperativas e colonização

Neste tópico vou abordar a atuação das cooperativas na região e como elas quase que

disputavam pessoas, atraindo-as para os projetos de colonização. Levando famílias para

migrar ao Mato Grosso, principalmente. “Contando com crédito fácil e a juros favorecidos,

expandiram-se as lavouras de trigo e soja e cresceram as cooperativas” (BRUM, 1988, p.

1990). Um elemento importante a se destacar.

Além da colonização, havia um relacionamento entre agricultor e cooperativa que

acabava resultando em um ciclo vicioso. A cooperativa fornece “aos associados os insumos

necessários à produção, a preços mais acessíveis do que os cobrados pelo comércio em geral”

(BRUM, 1988, p. 194) e o fruto do seu trabalho o agricultor vende nela. Muitas vezes não

há um retorno tão lucrativo, ainda mais para o pequeno agricultor. Também a cooperativa

convence o trabalhador a comprar produtos que trariam bons resultados para a lavoura e os

animais.

Esse relacionamento facilitava no processo de convencimento para o agricultor

embarcar nos projetos de colonização. Mantendo-se uma relação de confiança entre colono

e cooperativa.

No jornal Fronteira do Iguaçu (1977), há uma matéria sobre a cooperativa

Cotriguaçu (atuante até hoje na região). Ela estava com um projeto de colonização do norte

do Mato Grosso, onde poderia adquirir 1 milhão de hectares, dependendo da resposta dentre

os seus 26 mil agricultores associados. O Banco do Brasil proporcionaria o crédito fundiário

para os agricultores e financiaria 80% do valor das terras com juros de 12% com 12 anos

para pagar e carência de dois anos. O presidente da cooperativa destacou o êxodo rural que

estava se agravando e ficaria pior por conta da inauguração da hidrelétrica de Itaipu. O

argumento da empresa era de que eles estavam contribuindo para dar melhores condições de

vida a esses colonos.

Com esses projetos de colonização, as cooperativas levavam os agricultores a migrar

para outros Estados. Ao levar-se em consideração que eram pequenos e médios agricultores,

os valores da terra acrescentados aos juros nem sempre se tornavam tão acessíveis.

Como disse o presidente da Cotriguaçu, “o programa todo só será viável e benéfico

para milhares de pequenos agricultores da região, se aliado ao apoio creditício

governamental” (FRONTEIRA DO IGUAÇU, 1977). Era necessária a integração de um

órgão governamental, como o Banco do Brasil, para ceder crédito, permitindo o

financiamento por parte do agricultor. O que ele provavelmente pagaria com a renda obtida

na nova terra, porém seria um recurso improvável. Talvez gastasse mais com produtos como

fertilizantes para manutenção da lavoura, da safra, ou a colheita poderia fracassar, tornando-

o assim endividado.

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Êxodo rural e migração

Como uma das consequências da “modernização” da agricultura, lê-se sobre o êxodo

rural, e seu reverso em Marechal Cândido Rondon, numa matéria jornalística d’A Tribuna

(1986). É usado o exemplo da família Christmann, que chegou do Rio Grande do Sul em

1970 e estabeleceu-se numa área de 5 alqueires. Os filhos do casal ao ficarem adultos

mudaram-se para a cidade em busca de emprego e, com o passar do tempo, os pais também

deixaram o campo, mas não venderam a propriedade. O principal motivo, segundo o jornal,

foi o modo ultrapassado de uso da terra, que inviabilizou a família de permanecer em

pequenas propriedades em função da impossibilidade de utilizar a mão-de-obra dos mais

jovens.

Na realidade, este é um exemplo de família camponesa que, mesmo migrando ou

indo para as cidades, mantém sua condição de campesinato. Nem tanto pelo motivo

econômico, pois a terra ficou inutilizada, mas muito pelo apego a ela. Pela condição de

camponeses, sempre sobreviveram da agricultura. Mesmo morando na cidade, ela seria

garantia para eles se os negócios não dessem certo.

Um dos filhos fez um curso básico em agropecuária e voltou para a propriedade da

família com sua esposa. Passou a utilizar as novas técnicas e cultivar verduras e hortaliças

sem o uso de produtos químicos. Ele conseguiu reverter o processo de êxodo dos pais e

irmãos para a cidade. A questão é que ele faz parte de uma minoria, pois são muito poucos

os que voltam ao campo. Se nos anos 80 a situação era essa, ocorre em menor proporção

ainda nos dias atuais.

O curso sobre agropecuária realizado por um dos filhos era uma estratégia de

convencimento para os camponeses aderirem ao projeto modernizador. Assim, o agricultor

levava as técnicas aprendidas para implantar no campo. Porém, isto consistia em modernizar

suas técnicas, geralmente comprando adubos, agrotóxicos e maquinários. Para isso

acontecer, teria que se investir, e nem sempre o retorno do campo cobria as despesas. Devido

ao alto custo de produção, esse processo acabou expulsando muitos camponeses do campo

para as cidades em seu município ou migrando para outros.

Luta pela terra

Uma situação bem frequente no Oeste Paranaense foi a entrada, principalmente, de

colonizadoras, que se apossavam de terras não regularizadas, ou, com o passar dos anos, a

família proprietária vendia a terra para outra, mas sem ter um documento por escrito, como

a escritura. Essas situações eclodiram em conflitos entre proprietários, posseiros e grileiros

pela posse da terra.

Pelos anos de 1976 e 1977 (CEPEDAL. FUNDO KIRINUS. REJOAN. DOC. 0021),

havia um grande conflito no município de Assis Chateaubriand pela posse de terras. Elas

pertenciam a herdeiros de uma família originalmente dona das terras, mas foram tomadas

por posseiros. A Colonizadora Norte do Paraná tinha ali 220 alqueires e estava aumentando

seu terreno com mais 500 alqueires pertencentes a um morador através de grilagem.

A colonizadora estava usando aviões que lançam veneno, tratores para destruir as

plantações e armas a fim de expulsar os posseiros das terras. Se não fosse a colonizadora,

eram os jagunços que sempre vinham armados, espalhando o medo para as famílias. Houve

mortes, envenenamentos e queima de plantações, porém somente depois de toda a perda o

INCRA publicou que poderia cassar a colonizadora ilegal (CEPEDAL. FUNDO KIRINUS.

REJOAN. DOC. 0022). Segundo a reportagem, havia falhas na constituição jurídica e

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funcional da colonizadora, como, por exemplo, vender terras sem estarem registradas no

registro de imóveis.

Caso semelhante ocorreu na Fazenda Três Pinheiros (CEPEDAL. FUNDO

KIRINUS. REJOAN. DOC. 732) próxima a Medianeira. Os jagunços estavam pressionando

e amedrontando os colonos. Natal Gomes, que residia a mais de quatro anos próximo a

fazenda, teve de se ausentar por uns dias. Quando retornou, encontrou os pertences da família

jogados longe da Fazenda. Natal afirmou que dois jagunços procuraram-no solicitando que

ele, a esposa e os oito filhos se retirassem da residência o quanto antes, pois não precisavam

mais dos seus serviços. Ele pediu uma quantia em dinheiro para poder procurar outra

residência e sustentar a família. Segundo os capangas, ele ganharia o dinheiro, mas deveria

retirar-se o quanto antes. Porém, antes de achar outra moradia, seus pertences foram

despejados na rua e a família ameaçada de morte.

Era essa a população que estava envolvida nos processos de migração para as cidades

e para outros Estados brasileiros. Pois, depois de serem despejados da terra de tal maneira,

não havia mais esperança no mesmo local, restando a opção de migrar. Sendo posseiros de

outra terra, trabalhando como boias-frias ou indo para as periferias.

Considerações finais

Percebe-se que no início da atuação das colonizadoras, elas eram um importante meio

de fazer com que as pessoas migrassem para explorar novas áreas. Essa situação seria

interessante até no momento em que vemos os relatos de colonizadoras agiando ilegalmente.

Muitos de seus projetos não eram aprovados pelo INCRA. Os colonos não recebiam a

escritura legal, pois as terras eram griladas. Portanto, não podiam ser regularizadas.

Mesmo se a situação chegasse ao INCRA ou outra autoridade, os posseiros que

queriam regularizar sua terra não conseguiriam, pois não eram deles e, muitas vezes, nem de

quem dizia ser dono. Essas pessoas acabavam ficando sem nada. A respeito das políticas

agrícolas, como o crédito rural, criava-se uma ideologia de que ele era o “maior amigo” do

agricultor, mas a época de liberação dos financiamentos e os prazos fixados para resgate nem

sempre favoreciam os pequenos agricultores. A grande burocracia que envolvia as operações

bancárias, praticamente, obrigava o agricultor a utilizar significativa parcela do

financiamento para cobrir as muitas despesas de locomoção até o banco (CEPEDAL.

FUNDO KIRINUS. DIPADE. DOC. 0005).

Na assistência técnica e na extensão rural o pequeno agricultor quase sempre esteve

em segundo plano. Predominava uma ideia de que esses colonos aderiram às práticas

modernas lentamente (devido a questões socioeconômicas e culturais) e os resultados viriam

em longo prazo. Segundo esse pensamento, era recomendado alocar recursos e implementar

projetos junto a médios e grandes produtores rurais que tinham melhor acesso à

modernização agrícola que vinha se dando. Não tendo acesso à assistência técnica, o

pequeno agricultor acabava não usufruindo da pesquisa agropecuária e avanço tecnológico

na agricultura, e de capacitar-se para melhora da produção (CEPEDAL. FUNDO KIRINUS.

DIPADE. DOC. 0005).

Bem como o crédito rural, a garantia de preços mínimos também não favorecia tanto

os pequenos agricultores. Na prática, a divulgação de preços mínimos foi eficaz. Porém, o

sistema creditício e o armazenamento não funcionavam da melhor forma (algumas agências

não cumpriam suas atribuições). Muitas vezes era difícil para o colono transportar a pequena

quantidade de sua produção para os armazéns, dependendo de intermediários para isso,

recebendo, assim, preços inferiores ao mínimo estabelecido (CEPEDAL. FUNDO

KIRINUS. DIPADE. DOC. 0005).

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Para resolver os problemas econômicos dos pequenos agricultores, existiria o

Cooperativismo. Se esta afirmação fosse verdadeira, seria uma ótima solução. Na prática, as

cooperativas são concebidas como empresas comerciais, não fornecendo atendimento às

necessidades dos colonos. Os obstáculos encontrados para o desenvolvimento das

cooperativas são: pequeno capital social; falta de conscientização dos associados quanto aos

direitos e deveres e falta de participação (minoria tomava as decisões); falta de estímulo

governamental e do sistema de crédito rural aos pequenos agricultores; intervenção de

pessoas estranhas, por motivos políticos, econômicos ou comerciais; e falta de organização

das cooperativas existentes em centrais e federações para maior dinamismo e força

econômica (CEPEDAL. FUNDO KIRINUS. DIPADE. DOC. 0005).

As soluções tornavam-se problemas, pois quem sofria era o pequeno agricultor. Em

tese, existiriam inúmeras políticas para favorecer o colono, mas, na prática, sempre havia

problemas. O colono acabava prejudicado de alguma forma.

Referências bibliográficas

BRUM, Argemiro Jacob. Modernização da Agricultura, Trigo e Soja. Petrópolis: Vozes,

1988.

HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e identidade a rede “gaúcha” no Nordeste.

Niterói: EDUFF, 1997.

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Paraná. Presidente Prudente, 2008.

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de Mato Grosso. Cuiabá: EdUFMT, 2013.

WEIRICH, Udilma Lins. História e Atualidades: Perfil de Marechal Cândido Rondon.

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agrícola e formação do lago de Itaipu. Cascavel: Edunioeste-Editora da Universidade do

Oeste do Paraná - UNIOESTE, 1999.

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APARTHEID, DEMOCRATIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO NA ÁFRICA DO

SUL CONTEMPORÂNEA

Danilo Ferreira da Fonseca1

Resumo: A presente comunicação tem o intuito de realizar uma análise acerca do Apartheid

sul-africano e o modo que a sua democratização foi conduzida. A transição na África do Sul,

dirigida por Nelson Mandela (com o seu Congresso Nacional Africano) e o Partido Nacional

(PN) foi mais do que um processo político, já que se apresentou como uma transição

econômica para a consolidação de uma economia política com amplas características

neoliberais. Assim, buscamos compreender como tais pontos são entendidos e praticados

pelos governos do Congresso Nacional Africano (ANC), de modo a problematizar como um

Partido que se posicionava como oposição ao Apartheid e que possuía bandeiras

progressistas negociou com o Partido Nacional de modo a abandonar as suas antigas

bandeiras e implementar o consenso de Washington, chegando ao ponto de o ex-presidente

Thabo Mbeki se auto declarar um político Thatcherista. Para realizar um entendimento mais

amplo, também analisamos a política econômica no decorrer do próprio Apartheid,

demonstrando como a crueldade do regime de segregação realizava um desenvolvimentismo

seletivo e repressivo, o que interferiu dentro do processo de negociação de transição para a

democracia e na formação de uma nova sociedade.

Palavras-chave: África do Sul; democracia; neoliberalismo.

No ano de 1994, a África do Sul passou por um momento singular de sua história

com a eleição de seu primeiro presidente negro: Nelson Mandela. Este processo eleitoral e

sua seguida posse decretava o fim de quase cinco décadas do regime do Apartheid, um brutal

regime de segregação racial que buscava beneficiar à população branca e com detrimentos

incalculáveis à população negra.

Mais do que acabar com o Apartheid, a posse de Mandela deveria coroar um rápido

processo de transição para uma democracia, em um processo ainda mais profundo, pois, com

o Congresso Nacional Africano (ANC) ocupando o principal cargo do executivo e a maioria

das cadeiras do poder legislativo2, o futuro prometido para a maior parcela dos sul-africanos

era promissor. Parecia que o período de extensas injustiças e exploração havia terminado, e

a África do Sul seria finalmente de todos, com uma democracia popular.

Ao ser anunciada pelo então presidente Frederik de Klerk a possibilidade de um

processo de abertura política em 1990, os diagnósticos da comunidade internacional acerca

do futuro da África do Sul foram dos mais catastróficos. A possível abertura era vista como

provavelmente não pacífica e muito turbulenta, já que colocava no horizonte sul-africano

uma guerra civil como um dos prováveis desfechos. Outra percepção comum no período era

a possibilidade de postura vingativa por parte da população negra frente à população branca,

1 Professor adjunto da Unioeste. Doutor em História pela PUC-SP com a tese “Etnicidade e Luta de classes na

África Contemporânea: África do Sul (1948–1994) e Ruanda (1959–1994). Contato:

[email protected] 2 Nas eleições de 1994, o ANC obteve 62,65% dos votos para as 400 cadeiras da Assembleia Nacional, uma

maioria para aprovar qualquer projeto de Lei. Se somarmos a coligação do ANC, a base aliada governista

possuía os ¾ das cadeiras legislativas necessárias para realizar emendas constitucionais e reformar a

constituição.

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ou até o separatismo de algumas regiões bantos.3 Frente a tal cenário apocalíptico, a ordem

do dia durante as negociações da transição foi sempre pautada por preocupações focadas nos

direitos humanos e as possibilidades de não serem respeitados.

Passados vinte anos desse processo, a África do Sul desponta como a ponta de lança

da economia e política africana, ultrapassando o tradicional Egito como a principal força do

continente. Hoje, a África do Sul, se consolidou como uma das novas forças na política

internacional, participando inclusive da organização dos BRICS, englobando o grupo de

países considerados emergentes.

Ao contrário das previsões catastróficas, durante estes vinte anos a África do Sul não

passou por uma Guerra Civil, continua com seu território e unidade nacional intactos e os

parâmetros postos de Direitos Humanos pelos encontros da CODESA II (Second Convention

for a Democratic South Africa) e os acordos de “Kempton Park” foram parcialmente e

apenas pontualmente desrespeitados, o que colocou a transição como um dos grandes

sucessos políticos do século XX, beatificando Mandela no panteão dos grandes homens da

humanidade.

Todavia, se nestes vinte anos os parcos confrontos entre a população branca e negra

ratificaram que a busca pela garantia dos direitos humanos teria sido uma assertiva do

modelo de transição e democratização, a atual situação da África do Sul pode nos mostrar

justamente o contrário.

Em nome da estabilidade política e econômica, os presidentes do país (eleitos sempre

pelo ANC desde a democratização), assim como o próprio Estado Sul-africano têm violado

nos últimos anos sistematicamente direitos humanos fundamentais.

Por trás de uma história de sucesso, a África do Sul possui hoje um alto desemprego

crônico (por volta dos 25%), que perpetuam a desigualdade e a pobreza, além de suas

consequências mais diretas, como é o caso da falta de habitação, a deficiência no acesso ao

saneamento básico, um largo processo de favelização dos centros urbanos e alta

criminalidade, além de, é claro, os problemas estruturais no acesso a saúde e a parcial derrota

no combate contra o HIV, entre outros problemas enfrentados pela população sul-africana.

A totalidade de tais adversidades resulta muitas vezes na ausência de dignidade para a

população.

A brutal repressão do Estado frente à população também se faz presente na nova

África do Sul democrática, assim como ocorria no período segregacionista, ocorrendo a

criminalização de movimentos trabalhistas, a proibição de greves e a prisão arbitrárias de

líderes sindicais não alinhados ao governo.

Neste sentido, para uma parte significativa da população sul-africano, principalmente

para os mais pobres, a transição política teve forte teor de frustração, já que muitos

problemas sociais e políticos da África do Sul permaneceram mesmo com o fim da

segregação. A permanência de contradições sociais, com forte segregação social, mesmo

com o fim do Apartheid é decorrente, dentro de nosso entendimento, da própria transição

política, que também se caracterizou como uma transição de política econômica,

abandonando o modelo “desenvolvimentista conservador” do Apartheid para a

implementação de um neoliberalismo, ao contrário do que se esperava e prometia o ANC,

que seria mais focado em um “desenvolvimentismo progressista”.

3 O movimento separatista mais expressivo era o do Partido da Liberdade Inkatha, comandado por Mangosuthu

Buthelezi, sobrinho do último grande rei Zulu. O Inkatha propunha a construção de um território para os Zulus.

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Transição e Neoliberalismo na África do Sul

O modelo de Estado e exploração do trabalho proposto pelo governo sul-africano do

Apartheid, e a barbárie resultante dele, começam a entrar em contradição e a se tornar

insustentável a partir dos anos 1980, impulsionando o país a encontrar um modelo de

transição.

As pressões por mudanças vinham de todos os lados, mas a principal força estava

com os movimentos sociais nacionais e internacionais, os quais condenavam a falta de

humanidade e de direitos que pairavam na sociedade Sul-africana e o seu modelo de

desenvolvimento. Em meados de 1980, existiam centenas de organizações anti-apartheid que

se articulavam internamente e também no exterior para pressionar uma abertura política e

social na África do Sul.

É neste momento que, diante da pluralidade de movimentos contra o Apartheid, que

surge a centralidade da figura de Nelson Mandela. Primeiro, o grito de “liberte Mandela” se

torna uma das palavras de ordem dos protestos, unindo diferentes setores da sociedade sul-

africana. Com a liberdade de Mandela4 em 1990, rapidamente ele se torna um dos principais

líderes populares que, junto do ANC, conduziria o processo de transição do Apartheid para

um país democrático, ainda mais por Mandela propagar muito do que as parcelas mais pobres

da África do Sul aspiravam por décadas.

As palavras e propostas de Mandela iam ao encontro daqueles que desejam uma

África do Sul mais igualitária e justa. Para Mandela, em suas próprias palavras “a

nacionalização das minas, dos bancos e dos monopólios industriais é a política do ANC e

uma mudança ou modificação das nossas visões é considerado inconcebível” (SAUL, 2001,

p 437). Tal posicionamento do líder do ANC era compatível com os ideais da Freedom

Charter de 19555, a qual propunha que a riqueza do país deveria ser distribuída para toda a

população.

Diante da magnitude que a liderança de Mandela ganhava dentro e fora da África do

Sul, o governo sul-africano, liderado pelo Partido Nacional, aceitou conduzir o processo de

transição junto do Congresso Nacional Africano, trazendo mais legitimidade para a transição

frente a população.

Todavia, a crise e as contradições internas do Apartheid, como o seu próprio

esgotamento, fazia com que muitos setores da sociedade também começassem a exigir

mudanças profundas na estrutura do Estado sul-africano. O descontentamento com o regime

também provinha dos próprios setores que o sustentaram por décadas. Com uma profunda

crise econômica, cada vez mais as grandes multinacionais que possuíam indústrias no

território sul-africano, e que por anos aproveitaram do regime do Apartheid para obter lucros

expressivos, começaram a abandonar o país6. As próprias classes dominantes (brancas) não

conseguiam mais garantir seus ganhos com o modelo de exploração do Apartheid, levando

estas a endossarem a necessidade de uma mudança no país.

Porém, os motivos e as propostas de mudanças destes setores, se distanciavam

radicalmente dos anseios das classes mais populares. Para grupos dirigentes da África do

Sul, os problemas do país e do regime do Apartheid a partir da década de 1980 estariam

atrelados aos altos custos do Estado, que para “manter a ordem” e a operacionalidade do

4 Mandela foi preso em 1962 e condenado à prisão perpétua em 1964. Foi enviado para prisão da Ilha Robben

em 1964, onde permaneceu preso até 1990. 5 Doc: Freedom Charter, 26 de junho de 1955. Disponível em: <http://www.anc.org.za/show.php?id=72>. 6 As principais empresas que abandonaram a África do Sul quando viram os seus ganhos ameaçados foram:

Honeywell, General Motors, Kodak, IBM, Coca-cola, Ford, entre uma série de bancos de diferentes países.

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sistema, precisava gastar muito para reprimir a população local (e também de países vizinhos

tidos como ameaças comunistas)7, além de ter muitos gastos para garantir a boa qualidade

de vida da população branca. O diagnóstico dos problemas da África do Sul condizia com

aqueles feitos por órgãos financeiros internacionais, como o FMI, assim como o modo que

estes problemas deveriam ser solucionados: diminuição do Estado e liberalização do

mercado.

Durante a década de 1980 e 1990, grande parte do continente africano vai receber o

mesmo diagnóstico do FMI e do BM. Diante das crises econômicas e sociais que os modelos

de Estados desenvolvimentistas estavam enfrentando, a solução hegemônica empurrada para

estes países foi a adoção do modelo neoliberal.

Para as classes dirigentes da África do Sul, a transição do regime do Apartheid para

uma democracia seria o momento propício para instaurar o neoliberalismo no país, porém,

seria necessário negociar esta transição com os setores que estariam mais tendenciosos a

aceitar tais condições. O Congresso Nacional Africano (ANC) de Nelson Mandela foi o que

aceitou realizar tais negociações.

Dentre os acordos de “Kempton Park” estabeleceu-se que um dos direitos humanos

invioláveis da nova África do Sul estaria o direito à propriedade. (SAUL, 2001, p 433.) Tal

concepção de direitos humanos impossibilitou as reformas mais importantes e prometidas

inicialmente pelo ANC, tendo em vista que um processo de nacionalização ou reforma

agrária poderia se caracterizar enquanto uma violação de um Direito Humano fundamental.

Tal percepção de Direitos Humanos que coloca a propriedade como sendo central está

intimamente atrelada a sua percepção mais liberal, que coloca no cerne de tais direitos a

propriedade e a liberdade, mas uma liberdade voltada para o mercado.

Porém, essa mudança de postura do ANC não pode ser vista como um acidente, ou

um mero descuido das negociações por parte de seus líderes, mas sim, como uma guinada

política e econômica da cúpula da oposição negra sul-africana, que abandona suas antigas

convecções, deixando isso claro no momento próximo à posse de Nelson Mandela como

presidente, conforme podemos observar em sua fala: “não existe uma única referência a

coisas como nacionalização, e isso não é acidental. Não existe um único slogan que nos

conectará com qualquer ideologia marxista”. (SAUL, 2001, p 458.)

Os governos do ANC passam a abraçar cada vez mais uma política econômica

neoliberal. Uma das grandes expressões da nova política econômica da África do Sul é o

“Growth, Employment and Redistribution” (GEAR) de 1996.

A partir da cartilha do FMI, o ANC começa a ter como uma de suas prioridades

beneficiar e liberalizar o mercado, realizando privatizações das empresas públicas do

período do Apartheid, dando mais liberdade ao capital financeiro, e sem ampliar os direitos

da população sul-africana, como era de se esperar com o fim do Apartheid.

Os sul-africanos que esperavam por uma África do Sul mais justa e igualitária, viram

que o direito ao voto nem sempre representa a ampliação de outros direitos. É evidente que

esta frustração na sociedade sul-africana está atrelada ao modo que o neoliberalismo é

implementado.

Dentro de uma percepção neoliberal, um Estado ativo e garantidor de direitos, não

seria positivo, já que, de alguma maneira, violaria a suposta necessidade de uma liberdade

econômica. Desta forma, cabe ao Estado neoliberal, se ausentar o máximo possível para

7 A África do Sul participou da Guerra Civil da Rodésia (1964-79), apoiando o governo de minoria branca.

Também entrou em guerra entre 1966 e 1989, interferindo na Guerra de Independência da Namíbia e na Guerra

Civil Angolana, lutando principalmente contra movimentos de esquerda. A África do Sul também realizou

incursões em Moçambique.

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garantir o suposto funcionamento da sociedade, cortando políticas públicas, sociais,

empresas estatais e direitos trabalhistas.

O governo do Congresso Nacional Africano bebeu desta fonte. Ao invés de estender

as políticas públicas existentes (que eram apenas para os brancos) para a população negra, o

que ocorreu foi o corte destas ações, deixando grande parte dos sul-africanos repletos de

privações.

O grande nome deste processo foi o de Thabo Mbeki, vice-presidente de Nelson

Mandela e seu sucessor nas eleições de 1999, sendo presidente da África do Sul até 2008.

Mbeki era claro ao definir a sua forma de governar e seus propósitos políticos, já que se auto

denominava como sendo um Thatcheriano, ou seja, um seguidor de Margareth Thatcher.

Desta forma, o fim da barbárie do Apartheid por si só não significou a imediata

conquista de direitos por parte da população sul-africana, já que com a política econômica

da nova África do Sul, múltiplos direitos continuaram a ser subsumidos. Mas, é importante

ressaltar que este processo não é de modo algum um acidente de percurso, já que para a

cúpula do PN e ANC que negociava a transição (entre eles Mbeki) entendia que o fim do

Apartheid não era a extensão de direitos para todos, mas sim a possibilidade de existir uma

burguesia negra, conforme o próprio Mbeki afirmava. (SAUL, 2001, p. 444).

As debilidades e limitações da nova África do Sul são escancaradas no momento em

que seu Estado se aproxima do próprio Estado do Apartheid. Assim como a forças

repressivas do regime do Apartheid atiraram contra manifestantes em Shaperville no ano de

1960 matando dezenas de civis, o atual governo sul-africano também abriu fogo em agosto

de 2012 contra mineiros grevistas, matando dezenas de civis, e, para deixar a situação mais

perversa, o governo culpou e prendeu os grevistas sobreviventes do massacre, utilizando-se

de leis remanescentes do Apartheid, que culpavam os mineiros pela morte de seus colegas,

como se estes tivessem sido os responsáveis por incentivar os agentes policiais a utilizar da

força, como se essa fosse uma necessidade. (MASSOT, 2013, p 27).

Outro setor que nos apontam as debilidades de direitos na África do Sul

contemporânea é o seu sindicalismo. Atualmente na África do Sul, a principal central

sindical, a COSATU é diretamente vinculada ao ANC, o que faz muitas vezes a própria

central sindical agir de maneira mais favorável ao governo do que os próprios trabalhadores,

proibindo-os até do direito de greve, e perseguindo (e prendendo) líderes sindicalistas que

não estão de acordo com os interesses do governo, como foi o caso das greves que

envolveram as mineradoras em 2012, e também as greves que das obras da Copa do Mundo

de futebol de 2010.

Porém, um dos maiores problemas que a África do Sul enfrenta com as políticas

neoliberais é o alto índice de desemprego e a baixa qualidade de vida da população

(principalmente a trabalhadora), atrelados a uma pobreza crônica de parte da população.

Durante a última década, a pobreza e o risco de pobreza afeta mais de 50% da população,

sendo que o índice de desemprego estacionou acima dos 20% na última década, chegando

em 2014, a mais de 25% da população. Atrelado a tal situação, a desigualdade social na

África do Sul não tem melhorado, fazendo com que frequentemente o país figure no ranking

dos mais desiguais de todo o mundo.

Outro problema crônico da África do Sul envolve questões de saúde, principalmente

a luta contra o HIV. Por anos, líderes do ANC negaram que a AIDS fosse um problema na

África do Sul, sendo que o ex-presidente Mbeki afirmava que nunca havia conhecido uma

pessoa que morreu em decorrência do vírus, e o atual presidente sul-africano, Jacob Zuma,

propagar que um bom banho poderia prevenir a contaminação do vírus. É evidente que tal

postura resultou em um país com um problema crônico, em que dos quase 50 milhões de

sul-africanos, 6 milhões são portadores do vírus HIV. Porém, é importante ressaltar que

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atualmente as políticas de combate ao vírus começaram a engatinhar de maneira positiva,

apesar de ainda não colher uma redução nos números de mortes e contaminações.

Considerações finais

O processo histórico sul-africano foi marcado por restrições para grande parte da

população, principalmente a população negra, seja no decorrer do Apartheid ou também da

nova África do Sul após o processo de transição, com a falta de igualdade e liberdade,

somados ainda à baixa qualidade de vida da população e sua ampla exploração.

Tais restrições eram frutos do próprio Estado sul-africano, que tinha por objetivo

garantir os ganhos das classes dominantes, deixando uma parte significativa da população

repleta de carências. Porém, o modo que isto se constituiu é bastante distinto entre o período

do Apartheid e da África do Sul democrática.

O Apartheid tinha como um de seus principais imperativos de seu regime de

segregação a possibilidade de realizar uma ampla exploração da população negra, enquanto

que esta mesma exploração sustentava uma ótima qualidade de vida para a população branca,

o que era mantido e coordenado por um “Estado desenvolvimentista conservador”.

Já na África do Sul democrática, ao invés de ocorrer a extensão de mais direitos para

toda a população, a opção foi por continuar sendo restritiva, mas desta vez, não por um

regime de segregação baseado em um Estado forte, mas sim a partir de políticas econômicas

neoliberais. Sendo assim, o processo de transição da África do Sul, saindo do autoritarismo

do Apartheid para a sua nova democracia, também significou uma transição de política

econômica, com uma forte guinada ao neoliberalismo.

Referências bibliográficas

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SAUL, J. S. A cry for the beloved Country: the post-apartheid denouement. Monthly

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PRÁTICAS LITERÁRIAS E POLÍTICAS NA ARGENTINA DO REGIME

AUTORITÁRIO DOS ANOS 50

Denise Scolari Vieira1

Resumo: A década de 50 inicia-se na Argentina sob o signo da crise, da inflação, do

desabastecimento e da violência. Pouco a pouco se fratura o peronismo em seu Estado de

bem-estar e a realidade que segue o golpe militar de 1955 fortalece a geração dirigente

reunida em torno das Forças Armadas e da coalizão com os Estados Unidos. Mas, apesar da

instabilidade política e da crescente marginalização de setores da população, a Argentina de

vinte milhões de habitantes possuía baixos índices de analfabetismo e anunciava uma

vanguarda cultural florescente. Nessa época, fortaleceu-se a Universidade, fundaram-se

editoras, revistas culturais e políticas, criaram-se escolas de arte dramática e de música,

proliferaram grupos de artistas plásticos, escritores e intelectuais. Era o tempo de Alejandra

Pizarnik, Francisco Urondo, Juan Gelman, David Viñas, Haroldo Conti, Rodolfo Walsh,

Bernardo Kordon, Beatriz Guido, etc. O desenvolvimento de uma efervescência cultural

única na América de expressão espanhola formou, com alguns deles, a nova esquerda

argentina e gerou sujeitos capazes de elaborar o contra-discurso político das décadas

posteriores. Pretende-se debater sobre o impacto que essa realidade sociocultural exerceu

sobre a geração desses artistas latino-americanos, a fim de potencializar experiências de

leitura literária como espaço de fluxos e inter-trocas de narrativas contundentes em tempos

de autoritarismos.

Palavras-chave: Literatura; Autoritarismo; Leitura Literária; Argentina.

Considerações iniciais

O campo literário argentino da década de 50 constituiu-se, a partir da convergência

de acontecimentos históricos e da transfiguração da trajetória estética, que convertida em

metacrítica optou por distintos modos de intervenção política. O que se observa é a passagem

decisiva à desarticulação de conceitos centrais que se impuseram àquele aparato teórico mais

afeito à mesura e ao equilíbrio na organização da escrita, até então.

A ressonância do tempo de radicais transformações impostas pelos projetos

estruturais alinhados a sucessivos golpes militares, e a ruína deixada pela ditadura, produziu

uma trama retórica ou narrativa, pela qual os intelectuais dessa geração, na cidade febril,

dinamizaram uma generalizada tendência cultural diametralmente oposta à restrição da

ordem do conhecimento.

Assim, potencializou-se a criação irrestrita, vital utopia do artista como anunciador de

contrários, imerso na tarefa de movimentar-se sob o signo dos múltiplos sentidos que a

sociedade restritiva, ao contrário, pretendia tornar únicos.

Essa incursão contra-discursiva dos intelectuais, pelas figurações da cidade real

fraturada em seu caráter de pretendida hegemonia pelas classes dirigentes golpistas, matizou

1 Doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da área de Língua

e Literatura Espanhola da UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná)- campus de Marechal

Cândido Rondon-PR. Professora de Literatura e Ensino do PROFLETRAS (Mestrado Profissional em Letras)

da UNIOESTE- campus de Cascavel-PR. Email: <[email protected]>

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uma volúpia desdobrada no locus de sua representação engajada aos acontecimentos do

mundo e do trabalho da memória ou, alheios a eles.

Essas formas de contestação tencionaram, para alguns artistas, formas, sons,

imagens, numa espécie de percepção convulsionada pelo vigor da mudança, ao mesmo

tempo em que se materializaram, para outros, como uma visão fugidia do espaço conhecido.

Dentro dessa perspectiva, escrever significava manter-se vivo, e/ou habitar aqueles

espaços ficcionais, em suas tramas ambíguas e instáveis, como uma espécie de impulso

estratégico que imputava a própria indigência existencial.

Tempos duros aqueles, tempos de estupor, de mapas inúteis, de bússolas perdidas,

de urgências inimagináveis.

Escritores, jornalistas, cineastas, homens, mulheres armaram um corpus literário que

desnudou antigas hierarquias, para que não apagássemos o que não pode ser apagado.

Esta expectativa também reiterou termos e artifícios. Contudo, sem descurar do

empenho pela renovação do panorama local das artes. Ali, na cidade em que se formulavam

desafios éticos, também incluíram saberes, práticas e experiências que permitiram a potência

de novas vozes, de outras relações políticas que frutificaram na geração seguinte.

Consequentemente, intelectuais ressaltaram lugares estratégicos para repensar a si

mesmos, bem como as representações paradoxais do campo intelectual e político de sua

época.

Observa-se em tal espaço discursivo, uma espécie de confronto interativo, no qual

são problematizadas as classificações hierarquizantes, expectativa esta que ampliará as

possibilidades enunciativas e forjará a pluralidade do discurso, que viria anos mais tarde.

Dessa maneira, incide significativamente nas distintas fases do empreendimento

estético/político dessa geração que se potencializa sob o signo da dissonância e do paradoxo

e um território no qual, o escritor dramatiza as inúmeras possibilidades da linguagem e da

escrita. Razão pela qual o conceito de estrutura centrada passe a ser rechaçado, porque

quando há outra possibilidade, há um deslocamento, o centro não é mais o centro.

Então, o estilo de escrita feito por formulações paradoxais, neologismos e várias

formas de jogos de palavras também vai desestabilizar o olhar do leitor e justamente pelo

discurso estético de autores como Alejandra Pizarnik cuja dramaticidade agressiva aparece

através de categorias como ambivalência, ambiguidade, tensão, ironia, dissonância, o

processo de escritura e de leitura vai empreender uma linguagem sempre aberta e inconclusa.

À urgência de tais postulações parece óbvio que a consciência da pluralidade se

instale nos textos sem fingimentos e, na cidade vista como lugar do caos, haverá outra

hipótese de fundação.

É preciso insistir, de qualquer modo, que nessas condições os exercícios discursivos

ganham outra dimensão, são abalados os modos de dizer, porque vão sugerir relações novas

no campo da linguagem. Por certo, se a linguagem é fator decisivo no jogo de construção e

desconstrução da interpretação, não há mais significados fixos, já que um dos aspectos

incorporados à criação literária ganha o atributo de revolução dos limites do discurso.

Poderíamos encontrar nessa dicção a representação da dimensão subjetiva alterada

pelo espaço dilacerado, talvez seja a narração de histórias e experiências no enclave da vida

cotidiana da ordem capitalista moderna em crise, na qual o olhar narrativo articula a

descontinuidade e a preponderância da lógica da diferença.

Mas, também se insurgem narrativas que disputam o monopólio cultural, como por

exemplo, as obras de Beatriz Guido, em seu tom que reforça o posicionamento que

consagrou uma escritura em termos, aparentemente emancipatórios, quando dirigidos à

noção mesma de “intelectual”, cujo mundo fechado e falocêntrico, torna árduo o desapego

da “essencialização” da categoria feminina. Nota-se, dessa maneira, uma narrativa, que,

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tanto em seus personagens, como em seu jogo de luta simbólica, se proclamam, mediante

leituras para o entretenimento, uma trajetória vulnerável, em seu pretenso desejo de

abandono das visões dicotômicas próprias da sociedade patriarcal.

Apesar disso, Guido foi notável no jogo de ângulos e retas a adoção de uma agressiva

insubmissão, que procurou pelo lugar de pertencimento, ao mesmo tempo em que cultuou o

progresso. Curioso olhar que nega e que fortalece a ordem imperialista, de perfis

consumistas, de descrições de ambientes e personagens, em narrativas polifônicas da

intelligentsia liberal.

Já por outro lado, destacam-se aqueles intelectuais e militantes virulentos que

reprovaram a polarização cultural entre dois polos, pois, para eles, nesse marco

simplificador, tornava-se muito difícil manter a construção de uma sociedade plural.

Portanto, frente às circunstâncias dos primeiros anos 50, na Argentina encontravam-

se, em confluência e enfrentamento, muitas agrupações, cujas expressões políticas e estéticas

plurais impedirem que lhes fossem outorgadas leituras com linhas definidas, pois foram

formuladas em sua natureza amplamente dispersa, tanto em seus marcos de referência

política, quanto no âmbito da produção cultural.

Tais inclinações levaram ao campo literário também a revolução dos limites do

discurso, pelo qual houve o reconhecimento de que o gênero “não é uma entidade fechada

com número determinado de traços”, ao mesmo tempo em que “forma a camada de

redundância necessária para que o receptor tenha condições de receber e dar lugar a uma

certa obra” (COUTINHO, 1976, p.268), então, por esse movimento foi suscitada uma

perspectiva múltipla que acentuou a escritura recriada, isto é, que pode configurar-se em

textos híbridos, localizados na fronteira entre a prosa, o verso, a ficção, o teatro, o cinema.

Em suma, ao deslocarem-se os limites do gênero, ocorreu a expansão do olhar,

mediante a releitura dos objetos culturais, até o ponto em que a complexidade dessa questão

se fez notar pelo interesse de distintos autores acerca da experiência estética pautada por

elementos heteróclitos internos e externos à escritura, e ao mesmo tempo, suscetível de

provocar avaliações e denominações como, por exemplo, o que Mikhail Bakhtin

compreendia como plurilinguíssimo, apresentado quando:

Todas as formas que introduzem um narrador ou um suposto narrador

assinalam de alguma maneira que o autor está livre de uma linguagem una

e única, liberdade essa ligada à relativização dos sistemas linguísticos

literários, ou seja, assinalam a possibilidade de, no plano linguístico, ele

não se autodefinir, de transferir as suas intenções de um sistema linguístico

para outro, d em situar a ‘linguagem comum’, de falar por si na linguagem

de outrem, e por outrem na sua própria linguagem (BAKHTIN, 2002,

p.119).

Foi precisamente a partir da justaposição de gêneros, das inversões rituais da

hierarquia e de suas categorias conceituais sobre a diferença e a alteridade propostas por

Bakhtin, que a elocução estética construiu novos pontos de vista, pelos quais a relação entre

o texto e todos os seus ‘outros’ fazem com que surjam projetos de organização ficcional no

ponto de convergência entre inúmeras contradições.

Quanto ao presente estudo, há uma ilustrativa análise capaz de prever a correlação

entre linguagens fruto do inusitado movimento de fazer ficção e de constituir um sistema

escritural em rede. Não se trata absolutamente de afirmar que determinado escritor inaugurou

os fundamentos do universo da transgressão inovadora, ao contrário, fica difícil continuar

defendendo que após os vários significados históricos e estéticos de muitas gerações haja

uma orientação nova nesse sentido.

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No entanto, pretende-se evocar os procedimentos literários que um autor pode

instaurar em sua proposta de apropriação e bricolagem, o que tem a vantagem de acolher o

disperso, redirecionar o texto a outros espaços, bem como, aproximar fragmentos da ficção

à realidade, mas ainda assim admitir sua instabilidade diante da complexidade dessa

conformação.

Nessa leitura salienta-se a travessia estabelecida por vários escritores da Geração de

50 na Argentina. Um momento histórico de efervescência cultural, cujo autoritarismo na

política, trouxe, simultaneamente, a resistência de uma geração de intelectuais que desenhou

a nova esquerda na América Latina.

Precisamente, o projeto intelectual de David Viñas, Rodolfo Walsh, Haroldo Conti,

Francisco Urondo, Bernardo Kordon, Juan Gelman, para citar alguns.

A tarefa empreendida por eles desenhou um mapa simbólico nos antípodas da ordem

imperialista-oligárquica. E, apesar das diferenças que a escritura de cada um evidenciou em

suas obras, sustentaram a relevância do perfil de intelectual que se levantou, como uma voz

coletiva, capaz de vociferar contra a opressão real dos anos que lhes tocaram viver. Eles

disputaram com seus adversários e, essa índole, lhes custou, a própria vida, no caso de

Rodolfo Walsh, a vida dos filhos, caso de Juan Gelman, e, a repercussão que a sutura foi

capaz de forjar na alma dessa geração.

Evidentemente, não havia consenso no que concerne à materialização do projeto

político, à figuração da prática da vida pública, das imposições do exílio, da repressão, da

exceção, pois a qualquer momento seus objetos parciais de interpretação crítica e da postura

adotada como dispositivo contra-hegemônico reafirmava o limite dessa especulação e se

repetia outra rede de significantes.

Então, se interditava o local de origem e ocorria a sua substituição alucinada em

direção oposta, para sobreviver.

Diante dessa constatação não era mais razoável pensar a simbolização do centro de

origem, porque da instância paradoxal: “é preciso dizer que não está nunca onde a

procuramos e, inversamente, que nunca a encontramos onde está” (DELEUZE, 1974, p.43).

Entretanto a atitude dessa geração, já demonstrava a desconstrução de sistemas de

classificação cultural e geográfica e começava a lançar as premissas que inverteu a lógica

das correntes intelectuais, uma vez que esses escritores argentinos se valeram de diferentes

técnicas, sem qualquer preocupação hierárquica, a fim de potencializar uma descentralização

voluntária.

No caso da análise desse período, em que exemplificamos autores tão distintos, muito

mais que vertentes, seria apropriado mencionar a operação discursiva complexa que eles

foram capazes de efetivar, uma vez que:

O autor é uma espécie de encruzilhada onde cruza e volta a cruzar a

linguagem composta por citações, repetições e referências, e o leitor

aparece vinculado a uma nova experiência de recepção porque pode

conhecer o texto por todos os lados e não mais como um único caminho

correto” (BONICCI; ZOLIN, 2003, p.148).

A partir de tal argumento nota-se que o resultado foi a reformulação da problemática

entre unidade e diversidade, entre o significado fixo e a rede de significados, pois nesse caso

se destituiu a diferença entre a literatura e as outras escritas e o fato decisivo, se refere a que

“nenhuma cultura pode autodenominar-se autêntica ou pretender atingir a verdade além de

seu discurso” (BONICCI; ZOLIN, 2003, p. 152).

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Portanto, a criação artística, o pertencimento, a territorialidade e a identidade estão

vinculados por elementos históricos, culturais, políticos, econômicos e sociais pautados pela

instabilidade.

Noções que podiam separar esses intelectuais em seu entendimento entre arte pura

ou comprometida. Entretanto, a tessitura dos textos se configurou embebida de angústia.

Elas parecem ter em comum, de uma maneira ou outra, a contestação de valores legitimados

e opressores, que foram, paulatinamente, fraturados no campo político e cultural.

(In) conclusão

Nas artes plásticas, nas letras, no cinema, foi recorrente o desenvolvimento uma

espécie de jogo entre o ocultamento e uma revelação que parece não se concretizar

totalmente, da cidade em constante transformação; desta maneira, artista e espectador, poeta

e leitor refazem significados recriando espaços reais ou simbólicos.

As consequências dessa revisão produzem imagens abertas aos intervalos, aos

interstícios, aos lugares afetivos, simbólicos, utópicos, recalcados; enquanto igual, enquanto

diferente, mas sempre numa relação tensa e ambivalente. Mesmo assim, permaneceu a marca

da alteridade, aliás, esta se tornou o aparato elaborado para imprimir a difícil transposição

dos universos culturais com típico gesto de pensar o devir.

Cabe salientar como ao longo do séc. XX os questionamentos das premissas

modernas salientam as obras de arte marcadas pela discussão sobre a temporalidade e suas

dimensões interiores à linguagem, “não seria talvez esta relação essencial à linguagem, como

um ‘fluxo’ de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de deslizar sobre aquilo

o que remete sem jamais se deter?” (DELEUZE, 1974, p.2).

Ambos, lugares e linguagem são espaços de tensão, em contínuo vir-a-ser; e ao falar

em desejo da realidade nota-se que a escassa capacidade de apreensão cria o desejo- de-

saber sobre sua constituição, a investigação jamais satisfeita de entender os lugares de nossa

maior fragilidade.

A simbolização da realidade anuncia o desejo de tornar o local de pertencimento

prazeroso, mesmo quando se debruça naqueles elementos que sinalizam a sua destruição.

Então, se estabelece para os artistas a imperiosa necessidade de apreciação crítica da

própria escrita, porque como menciona Jacques Derrida: “Independentemente do que se

pense sob esta rubrica, não há dúvida de que o problema da linguagem nunca foi apenas um

problema entre outros. Mas nunca, tanto como hoje, invadira como tal o horizonte mundial

das mais diversas pesquisas e dos discursos mais heterogêneos em intenção, método e

ideologia” (DERRIDA, 1973, p.7, grifos do autor).

Referências

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Aurora Fornoni Bernardini et. al. 5. ed. São Paulo: Annablume: Hucitec, 2002.

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BONNICI Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e

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DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução Miriam Schnaiderman e Renato Janine

Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973 (Estudos, 16).

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva

e Guacira Louro. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LEÓN, Rebeca; MARTÍNEZ, Jorge. Signo, gesto y textura en la producción plástica y

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estudos em literatura comparada interamericana. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998.

SCHWARTZ, Jorge Vanguardas Latino-Americanas: Polêmicas, Manifestos e Textos

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SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

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TEORIA SOCIAL E ESTRATÉGIA: A “RESPOSTA INTELECTUAL” DE

FLORESTAN FERNANDES AO CONFRONTO ENTRE ESTRATÉGIAS DE

DESENVOLVIMENTO NO CONTEXTO DA DITADURA EMPRESARIAL-

MILITAR NO BRASIL

Diogo Pereto1

Resumo: Esta comunicação propõe o debate da formulação de estratégias políticas e, para

tal, apresenta dois objetivos, um teórico e outro histórico. O primeiro visa a explorar os nexos

entre a interpretação da realidade e as teorias sociais decorrentes dela e a formulação de

estratégias políticas globais. Com vista a atender o segundo objetivo, a relação entre teoria

social e estratégia foi buscada no terreno concreto da história, através da recuperação do

contexto confrontacional de grupos e blocos de poder que personificavam as diferentes

estratégias concorrentes no contexto que antecede ao golpe de 1964: a estratégia

“neobismarkiana”, a da “revolução democrático-burguesa” e da “segurança e

desenvolvimento”. A exposição passa a recuperar, de forma breve e em seus traços gerais

fundamentos da teorização de Florestan Fernandes empreendida entre 1964 e 1974. Postula

a hipótese de que se trata da emergência de uma nova teoria social sobre a realidade

brasileira, que permite derivar uma nova estratégia e indica grupos que passam a apropriar-

se desse legado nos anos de 1980.

Palavras-chave: Estratégia; Ditadura; Florestan Fernandes.

Introdução

Na ocasião do V Simpósio de Pesquisa Estado e Poder vimos a oportunidade de

explorar um campo de investigação que apenas havíamos tangenciado em nossa monografia

de conclusão de curso (PERETO, 2009). Nela, nossa preocupação era entender os

fundamentos da interpretação da realidade brasileira elaborada por Florestan Fernandes.

Considerando a questão do poder proposta pelo simpósio, nos pareceu oportuno começar a

avançar na direção de inquirir sobre qual(is) o(s) ponto(s) de contato entre teoria social e

estratégia política.

Nessa comunicação, buscamos enfatizar a dinâmica histórico-social que gera as

disputas estratégicas levando em consideração o contexto pré e pós golpe de 1964 no Brasil.

Pontuamos algumas noções gerais da relação teoria social e estratégia política; analisamos

essa relação em três momentos: sob o bloco de poder populista (1930-1964); o bloco de

poder multinacional e associado (pós-1964); e a crítica a esse bloco de poder, ou a “resposta”

de Florestan.

Teoria Social e Estratégia

Estratégia política é “a arte/ciência do planejamento e condução da ação política de

conjunto para a conquista, consolidação ou preservação e manutenção de posições e relações

de poder (em relação a outras classes ou grupos). [… e] se aplica às grandes operações da

política […], isto é, ao cálculo e à coordenação a médio e longo prazo do conjunto de

1 Pesquisador independente, historiador pela Universidade Federal de Santa Catarina e técnico universitário na

Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: <[email protected]>

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recursos, disposições e medidas cuja aplicação é estimada como necessária para chegar a um

resultado final almejado no contexto da oposição de forças adversas, e que podem redundar,

se bem-sucedidas, na direção da sociedade e na orientação política das instâncias estatais”

(DREIFUSS, 1986, p.29). Portanto, nesse contexto, a estratégia passa a ser um instrumento

mediador – de classes ou grupos sociais – entre o pensar a realidade e a ação concreta nela.

Isto é, a estratégia é a categoria mediadora entre teoria social (interpretação da realidade) e

práxis social (particularmente, ação política).

Tendo isso em consideração, a estratégica necessita ser informada de qual é a base

real sobre a qual intervirá tendo em vista os projetos, interesses, etc. das classes e grupos

sociais em contenda. Assim, “ser capaz de pensar e agir estrategicamente supõe a

maximização do conhecimento global e sintético de uma situação, assim como a organização

geral das operações ao nível da(s) campanha(s) e a capacidade de prever adaptações táticas

na evolução das relações de força entre os vários adversários” (DREIFUSS, 1986, p.30,

grifos meus). O conhecimento da situação (global e sintético) advém da própria teoria e deve

deixar mais ou menos claro aos agentes pelo menos: 1) a natureza da sociedade a qual será

objeto de ação; 2) suas potencialidades e possibilidades de ajustes ou alterações profundas

dessa natureza e as principais tendências de desenvolvimento; 3) a forças sociais que

controlam a sociedade, sua base de poder, sua disposição ou capacidade em adaptarem-se a

novas situações.

Estratégia Neobismarkiana

O padrão de hegemonia das classes dominantes estabelecido entre 1930 e 1964 gerou

também seu próprio quadro ideológico que serviu de base para a elaboração teórica e a

formulação de estratégias políticas globais. Desde 1930, após o golpe de Estado getulista,

impulsionado pelo movimento tenentista e o deslocamento do poder oligárquico de base

agrária, as novas forças sociais urbanas em ascensão, comprometidas em alcançar maior

espaço nas decisões no seio do Estado brasileiro, empenhavam-se em dar novas soluções

para as questões da sociedade nacional. Todas essas soluções estavam impregnadas de certo

tipo de nacionalismo, que servia de ideologia mobilizadora e de parâmetros de pensamento.

O “desenvolvimentismo”/“nacional-desenvolvimento” – como ideologia

hegemônica – amalgamava os principais grupos sociais no Brasil. Uma das estratégias

formuladas sob tal ideologia foi denominada, por essa razão, de “nacional-

desenvolvimentismo” ou também de “neobismarkismo” (IANNI, 1984, p.55-62). Esta

teorização foi muito influente em partidos e grupos ligados a setores da burguesia industrial

e financeira. Possuía ampla aceitação nos núcleos estratégicos do Estado e na implementação

da política econômica. Seu polo principal de formulação foi o Instituto Superior de Estudos

Brasileiros (ISEB) – órgão ligado ao Ministério da Educação –, sobretudo na sua primeira

fase (1955-1958) sob a liderança de Hélio Jaguaribe, mas também com Celso Furtado. As

teses principais do nacional-desenvolvimentismo foram a expressão de alguns setores das

classes burguesas no Brasil e a sua crença na possibilidade de completar sua hegemonia

como o fizera a burguesia francesa ou estadunidense.

A concepção pressuposta nessa interpretação sobre a realidade social brasileira era a

de que existiam poucos setores “modernos” e, portanto, era necessário “modernizar” a

sociedade (“levar o progresso para o interior” nas palavras de JK), amplamente

hegemonizada por setores tradicionalistas e arcaicos. Haveria “dois Brasis”, um

incipientemente moderno e outro arcaico.

No que é essencial, sob a ótica dos pressupostos teórico-metodológicos que guiava

essa interpretação, derivando na estratégia neobismarkiana, observamos a ausência dos

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referenciais analíticos fundado nas classes, sempre tendo como alvo a “Nação”. Se se faz

referência às classes, mais é para suprimir as diferenças ideologicamente que analisá-las

objetivamente. Nas palavras de Hélio Jaguaribe, “os setores dominantes de todas as classes

sociais têm os mesmos interesses situacionais (transformação social), e estes interesses

situacionais, por sua vez, coincidem com as necessidades objetivas de todo o país (a

expansão das forças materiais de produção)” (JAGUARIBE apud MANTEGA, 1995, p.59).

Estratégia da Revolução Nacional-Democrática

A estratégia da revolução nacional-democrática foi derivada em parte das teses da III

Internacional Comunista, em parte da análise de que a existência do capitalismo não era uma

realidade no País, e que se vivia dominado pelo modo de produção feudal. Tinha em seu

núcleo formulador e de irradiação o Partido Comunista do Brasil (PCB), por meio de seus

intelectuais e lideranças políticas (dentre os quais poderíamos destacar Nelson Werneck

Sodré e Luiz Carlos Prestes). Detinham grande influência em diversos setores da sociedade

brasileira, em sindicatos, na intelectualidade de esquerda, militares e de setores das classes

médias. Tal interpretação supunha, por um lado, que não existia, à época, capitalismo no

Brasil e, por outro, que ele não só seria possível como disporia de condições para o seu pleno

desenvolvimento autônomo.

Segundo as interpretações pecebistas, haveria uma burguesia industrial que

manifestava interesse no desenvolvimento das forças produtivas do país, bem como do

desenvolvimento de seu mercado interno e apta a promover reformas necessárias no campo,

consolidando a industrialização e rompendo os laços de dependência com o imperialismo.

Tais tarefas caberia a uma fração da burguesia nacional, secundada pelo proletariado e

demais classes subalternizadas (rurais e urbanas). Assim, seria função do proletariado

impulsionar a “burguesia nacional” para que tomasse a vanguarda do processo da “revolução

democrático-burguesa”, cumprindo suas tarefas históricas clássicas para suplantar de vez os

resquícios feudais da sociedade brasileira, implantar o capitalismo nacional e,

posteriormente permitir ao proletariado iniciar uma etapa de luta pela construção do

socialismo. Antes, porém, seria necessário lutar pelo desenvolvimento nacional do

capitalismo. Daí a estratégia impregnada de nacional-desenvolvimentismo.

Dizia Luiz Carlos Prestes: “Seria um erro, que enfraqueceria o campo das forças

antimperialistas e antifeudais, confundir a burguesia nacional com as forças do campo

feudal-imperialista, assim como subestimar a significação que tem a burguesia nacional,

especialmente no estágio atual do movimento revolucionário brasileiro, pela sua influência

nas fileiras da pequena burguesia, das massas camponesas e mesmo de parte da classe

operária. […] Sem amainar a luta econômica pelos seus interesses de classe, contra a

exploração burguesa, trata-se para o proletariado de lutar e marchar junto com a burguesia

nacional, […] e contra o regime de latifundiários e grandes capitalistas” (PRESTES apud

IANNI, 1984, p.49).

Considerando ambas estratégias acima referidas, até 1964, não havia uma teoria

explicativa da formação social brasileira (da natureza do capitalismo, da constituição das

classes sociais e do caráter da burguesia brasileira) que permitisse uma compreensão

qualitativamente distinta dessa sociedade de maneira a dar suporte teórico e estratégico de

modo independente às lutas das classes subalternas.

A Estratégia da Segurança e Desenvolvimento

A Doutrina de Segurança Nacional vai se constituindo no Brasil como um

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desdobramento da teoria da modernização norte-americana. Da adaptação dessa teoria às

condições brasileiras é que surge a estratégica da “segurança e desenvolvimento”. Seus

formuladores não se preocupavam em massificá-la para além de círculos restritos de

militares, empresários e intelectuais influentes. Formulada na cúpula das Forças Armadas

brasileira, através da Escola Superior de Guerra (ESG), teve como ícone o general Golbery

do Couto e Silva, sendo o complexo IPES/IBAD seu instrumento irradiador para as elites

empresariais e a intelectualidade civil golpista e serve de amalgama para o novo bloco de

poder multinacional e associado.

Tal estratégica também sofreu influência de outra corrente teórica que poderíamos

denominar de as teses do “capitalismo associado”, aberta à participação quase irrestrita do

capital estrangeiro, cuja proeminente figura à época foi Delfin Neto. Só juntas é que a

estratégia da segurança e desenvolvimento ganha eficácia.

A inflexão da defesa para a segurança nacional explicita que caberia às forças

armadas cuidarem tanto do inimigo externo pelo papel inexpugnável de defesa militar da

pátria, mas sobretudo levando a “segurança” em sua concepção militarizada para todas as

esferas da vida social de modo a combater o “inimigo interno” e a “subversão” interna. Só

poderia haver “desenvolvimento” se houvesse plena estabilidade política (isto é, segurança),

pondo fim a qualquer manifestação divergente em qualquer plano da sociedade em que fosse

necessário. O objetivo era interpor ações que inibissem a existência ou ação de movimentos

sociais e políticos que exigissem reformas capazes de colocar em risco a estabilidade da

dominação burguesa. Às elites burocráticas militares e civis caberiam dirigir o Estado,

impondo-se sobre todos os cidadãos, classes, grupos, garantir a “segurança jurídica” dos

contratos dando plena viabilidade ao capital estrangeiro.

Essa foi a estratégia que se fez história, saindo vitoriosa da disputa entre as três após

1964.

A “Resposta intelectual” de Florestan

O livro A Revolução Burguesa no Brasil consistiu na peça de combate de Florestan

contra àquela situação do golpe de 1964. O ensaio levou quase dez anos para ser concluído.

Diz Florestan: “Comecei a escrever este livro em 1966. Ele deveria ser uma resposta

intelectual à situação política que se criara com o regime instaurado em 31 de março de

1964”. (FERNANDES, 1974, p.3, grifos meus).

Sem embargo, o livro não descreve o golpe, mas o interpreta como momento de

consolidação da revolução burguesa no Brasil, incorporando esse evento numa interpretação

de largo prazo sobre a formação social brasileira. Contrapondo-se à integração subordinada

do capitalismo brasileiro imposta pela estratégia da “segurança e desenvolvimento”, mas

igualmente rechaçando as alternativas reformistas das estratégias nacional-

desenvolvimentista, Florestan define a revolução dos “de baixo” como estratégia: “No

fundo, tais burguesias pretendem concluir uma revolução que, para outras classes, encarna

atualmente a própria contra-revolução. A maioria já não é cega, mesmo quando compartilha

as 'opções burguesas', ou se volta abertamente contra elas, identificando-se com as

esperanças criadas pelo socialismo, revolucionário ou reformista. Nessas condições, há uma

coexistência de revoluções antagônicas. Uma, que vem do passado e chega a termo sem

maiores perspectivas. Outra, que lança raízes diretamente sobre 'a construção do futuro no

presente'” (FERNANDES, 1974, p. 295). O horizonte ideológico que ele identifica como

“esperança” se aprofundaria enquanto estratégia só em 1981 (FERNANDES, 1981). Pois no

ensaio aqui analisado encontram-se os “pressupostos” teóricos dessa estratégia, a

caracterização do capitalismo dependente, da burguesia e o padrão da revolução burguesa

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brasileira.

Florestan constata que a natureza da sociedade brasileira já vinha sendo capitalista

desde o último quartel do século XIX. Contudo, a natureza desse capitalismo é peculiar, pois

além dos traços fundamentais que o caracterizam (o dinheiro como equivalente geral, o

trabalho livre assalariado, a concorrência e o monopólio, a mais-valia relativa, etc.), a

sociedade colonial e neocolonial nunca fora suplantada, revitalizando-se no interior dessa

revolução burguesa. Assim, a figura do “migrante” e do “fazendeiro de café” assumem os

papéis de agentes da transformação capitalista. As oligarquias agrárias conduzem o processo

de transição ao mesmo tempo que se aburguesam, surgindo um padrão compósito de

dominação de classe, junto com a composição de classes burguesas externas, produto da

dominação externa. A “dominação imperialista externa” e a “associação dependente” ao

exterior nunca se rompem; “formas pré-capitalistas de produção, troca e circulação” que

coabitam na mesma formação social em que domina o “sistema de produção especificamente

capitalistas”; e a incapacidade de superar a apropriação dual do excedente econômico, e,

portanto, manter a acumulação de capital sob controle interno. Todos esses traços são

permanentes e dão especificidade ao nosso capitalismo, o “capitalismo selvagem”, como

muitas vezes se refere Florestan, o “capitalismo dependente”.

Portanto, há uma revolução burguesa na medida em que tal classe exerce hegemonia

na economia, na sociedade civil e no Estado. Entretanto, ela não se volta contra as classes

“arcaicas”, mas contra as modernas: o proletariado. Por isso, o processo é simultaneamente

uma revolução e uma contra-revolução. Debilitada na esfera econômica pela apropriação de

maior parte do excedente pelas burguesias externas, as nativas têm diminuída sua margem

de manobra para exercer seu domínio. O que lhes falta na esfera econômica deve exceder na

esfera da dominação política, lançam mão sempre de estruturas estatais que não são

democráticas, mas autocráticas. Ainda que modernizando os aspectos formais do processo

político, as burguesias nativas reciclam permanentemente a sua “autocracia burguesa”.

Conclui Florestan que o que existe na formação social brasileira é a) uma forma

específica de capitalismo; b) essa forma específica produz uma sobre-exploração do trabalho

e uma sobre-apropriação exigida pela dupla apropriação do excedente econômico

compartilhado pela burguesia nativa e a maior parte apropriada pelas burguesias das nações

hegemônicas; c) essa dupla apropriação faz com que a burguesia nativa fique com pouca

margem de manobra para conceder condições dignas de trabalho e de vida; d) tais condições

geram constantemente contestação social; e “instabilidade política” resultado mediado da

dupla apropriação traz, como consequência, a busca continuada por criar e) um excedente

de poder político visto como nem sempre “legal”, mas como “legítimo”.

Florestan observa que tal ordem social é extremamente restrita. Os espaços para a

conquista de verdadeiras reformas são exíguos, e as classes burguesas reiteradamente

restringem o espaço para a participação política realmente independente das classes

subalternas. Diante desse quadro, as estratégias políticas mais promissoras seriam aquelas

que miram outra sociedade, formulando estratégias políticas contra a ordem. Mesmo as

verdadeiras reformas nessa sociedade só seriam possíveis se se projetam fora dessa ordem.

A historiadora Anita Prestes (PRESTES, 1982), já na década dos 80, identificara nas

análises sobre o capitalismo dependente de Florestan um dos pilares para iniciar a

interpretação crítica da realidade brasileira, no intuito de dar suporte à elaboração de uma

nova estratégia política para os subalternos. Não nos parece exagero, inclusive, afirmar que

a nova teorização proposta por Florestan tenha influenciado na década dos 80 a ruptura de

Luiz Carlos Prestes com o PCB na famosa Carta aos Comunistas.

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Considerações finais

As estratégias exigem teorização sobre a realidade que pode derivar da produção

acadêmica, mas não são de natureza acadêmica, muitas vezes na forma de “ensaios”. Os

blocos de poder burgueses criaram sua própria racionalidade no curso de sua dominação e

vimos como Florestan buscou criar uma contra-racionalidade que serviria a estratégias

contra-hegemônicas.

Se for correta a afirmação de que “Para 'governar seu mundo', as classes burguesas

deveriam começar por conhecê-lo melhor e por introduzir a racionalidade burguesa na

compreensão de seus papéis históricos sob o capitalismo dependente” (FERNANDES, 1976,

p.313), não seria correto também pensar que as classes subalternizadas, para criar “seu

mundo”, precisam conhecer o que vivem, inserindo nessa forma de conhecimento uma

racionalidade própria a elas? Pensamos que Florestan deu passos fundamentais neste sentido,

os quais estão longe de serem proscritos pela realidade e que podem servir de poderoso

instrumento teórico para futuras descobertas científicas e novas formas de ação política.

Bibliografia

DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.

DREIFUSS, René. A Internacional Capitalista. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986.

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

1976.

FERNANDES, Florestan. O que é Revolução? São Paulo: Brasiliense, 1981.

IANNI, Octávio. O Ciclo da Revolução Burguesa. Petrópolis: Vozes, 1984.

MANTEGA, Guido. A Economia Política Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1995.

PERETO, Diogo. (2009). História, (Contra-)Revolução Burguesa e Capitalismo

Dependente: Aproximações ao Método da Interpretação da Formação Histórico-Social

Brasileira de Florestan Fernandes. Trabalho de Conclusão de Curso. Departamento de

História da UFSC.

PRESTES, Anita Leocádia. A que herança os comunistas devem renunciar. In.: Revista

Oitenta. Porto Alegre, 1982.

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“CPI QUATRO RODAS”: ABRIL E DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA1

Edina Rautenberg2

Resumo: O objetivo do presente texto é problematizar as relações da Editora Abril (Victor

Civita e seus filhos), com a ditadura civil-militar brasileira. Para além da atuação da Abril

como formadora de um consenso favorável à ditadura (o que já foi comprovado através da

análise do discurso da revista Veja3), pretendemos demonstrar as relações “próximas” de

Civita com os militares, no que concerne aos beneficiamentos obtidos pelo empresário no

campo hoteleiro. Além do campo editorial, a Abril investiu na década de 1970, no setor

hoteleiro e de frigoríficos. No que se refere ao campo hoteleiro, Civita ganhou destaque

nacional através da construção da rede hoteleira “Quatro Rodas Hotéis” no Nordeste, que

estava associada ao empreendimento “Quatro Rodas Empreendimentos Turísticas Ltda”. No

entanto, circularam nos anos 1980, através de jornais oposicionistas à editora Abril,

denúncias de beneficiamento ilícito por parte de Civita com a ditadura (na construção dos

referidos hotéis), que levaram à instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Neste sentido, a comunicação visará apresentar os desdobramentos da CPI, problematizando

mais detidamente as relações da Abril com a ditadura.

Palavras-chave: CPI-Quatro Rodas; Editora Abril; Ditadura Civil-Militar Brasileira.

Veja manteve um discurso favorável à ditadura civil militar brasileira e isto já é fato

incontestável4. Assim como outras empresas no Brasil, a Editora Abril se beneficiou com a

ditadura e, direta e/ou indiretamente interferiu nela. E é neste sentido que falamos em

“Ditadura Civil-Militar”, tendo em vista o entendimento de que as ditaduras são

instrumentos das empresas, muitas vezes necessárias para garantir a continuidade do

desenvolvimento do capitalismo no mundo (VIANA, 2005; DREIFUSS, 2006).

Antonio Gramsci (2000) se tornou um importante referencial teórico e metodológico

por conta disso. Além de proporcionar o entendimento da função/atuação dos veículos da

imprensa na construção de consenso e hegemonia, ele nos incita a identificar a organicidade

desses grupos, mapeando as relações no âmbito da sociedade civil com a sociedade política

e vice-versa.

Neste sentido, nossos trabalhos (apoiados em bibliografia diversa que, por conta do

limite de espaço, não será possível elencar aqui), destacaram as relações de Civita com a

Ditadura: Relações entre funcionários da editora com a Ditadura ou a presença de

“funcionários” da Ditadura nas publicações da Abril (exemplo de Elio Gaspari com Golbery

do Couto e Silva – fonte importante de informações para Veja; Mário Henrique Simonsen,

que era colaborador de Veja e tinha uma coluna fixa na revista Exame; Roberto Campos que

tinha uma coluna quinzenal em Veja; Delfim Netto que era idolatrado nas matérias de Veja

1 Este texto é parte de um artigo encaminhado para compor a coletânea “História Econômica e História da

Imprensa” ainda em fase de avaliação. A organização do livro integra o plano de atividades de Projeto de

Pesquisa contemplado no Edital “Jovem Cientista do Nosso Estado” da Fundação Carlos Chagas Filho de

Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, sob a coordenação de Maria Letícia Corrêa. 2 Mestre em História pela UNIOESTE, Professora Colaboradora no Curso de História da UNIOESTE e

Professora da SEED-PR. 3 É o que pode ser visualizado em nossa dissertação de mestrado (RAUTENBERG, 2011). 4 Vide 6 anos de pesquisa em que analisamos o discurso da revista com objetos diversos (grupos de luta armada

no Brasil, “grandes obras”, multinacionais e empreiteiras).

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e que recebeu um medalhão de Civita em sua homenagem; etc.); As demissões de jornalistas

importantes da Abril como “troca de favores” entre Civita e a Ditadura (caso de Raimundo

Pereira, Mino Carta); etc5. Procuramos demonstrar como Victor Civita transitava e se

relacionava com o quadro pessoal da Ditadura, angariando investimentos e empréstimos para

sua editora e, em troca, contribuía na construção (através de suas publicações) de uma

imagem benéfica da ditadura, apresentada como elemento de desenvolvimento e progresso

para o “Brasil”. Nesta relação, Civita ofereceu a “cabeça” de seus funcionários sempre que

a situação assim o exigiu, e foi o estudo de uma dessas “especificidades” que nos levou ao

conhecimento da CPI constituída contra a Abril na década de 19806.

Em 1980 – e, portanto, ainda durante a ditadura – circularam no jornal O Estado de

São Paulo, denúncias que acusavam o envolvimento de figuras da administração federal, de

maneira direta e indireta, no favorecimento à empresa Quatro Rodas Hotéis do Nordeste

S.A., de propriedade de Victor Civita. O jornal noticiava a tentativa do deputado de oposição

à ditadura, Del Bosco Amaral (PMDB), de protocolar junto à Câmara dos Deputados, o

pedido de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar “os negócios especiais”

entre a Abril e a EMBRATUR (autarquia especial do Ministério do Turismo, responsável

pela execução da política nacional de turismo). No entanto, segundo informações do próprio

jornal, o pedido teria que aguardar já que já estava funcionando cinco comissões

parlamentares de inquérito no momento, o máximo permitido pela Constituição. A notícia é

marcada por certo tom de ironia, já que o deputado estava enfrentando restrições para

protocolar o pedido, além da possibilidade da comissão não vir a se constituir, já que a

Câmara era formada pela maioria dos deputados aliados à ditadura (O Estado de São Paulo.

Pedido de CPI da “4 Rodas” sai até quinta. 25/11/1980, p.05).

Apesar das desconfianças do jornal, as denúncias levaram à criação de uma Comissão

Parlamentar de Inquérito em 1981 que, após a instauração e investigação realizada, concluiu

pela não culpabilização dos acusados. No entanto, o relatório com as conclusões da CPI e

seus anexos, nos fornecem dados para exemplificar algumas relações importantes.

Para além do campo editorial, a Abril – na figura de Victor Civita e seus filhos –

havia investido na década de 1970 no campo hoteleiro e de armazéns frigoríficos. Segundo

Roberto Pompeu de Toledo, em edição comemorativa dos 50 anos da Abril, as razões dos

sucessos de Victor Civita e da Editora Abril, se davam porque “Victor Civita aliou a

capacidade de trabalho ao fino talento para manter sua caravela a favor do vento, de modo a

aproveitar-se das mesmas forças que impulsionavam o país de modo geral” (TOLEDO,

2000, p.43). O campo hoteleiro pode ser considerado um dos exemplos desse “fino talento”

de Civita em se aproveitar dos “ventos” no Brasil, já que, como podemos ler no relatório

332/1982 conclusivo da “CPI-Quatro Rodas”, como foi chamada, quando se reporta aos

“fatos”, a seguinte transcrição:

5 Essas discussões estão desenvolvidas no artigo “Victor Civita e a Ditadura Civil-Militar Brasileira: a posição

da revista Veja”, publicado nos anais eletrônicos da II Jornada de estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos,

realizado em Porto Alegre-RS, em abril de 2013. Os anais estão disponíveis em <http://www.apers.rs.gov.br/>. 6 Refiro-me aos acontecimentos que levaram à demissão do Jornalista Mino Carta. Mino Carta, nos editoriais

de Veja em 1974, se posicionou criticamente em relação ao “encobrimento” das informações realizado pelo

governo na sucessão presidencial. Por conta dessas publicações, Civita sofreu uma série de pressões por parte

da ditadura. Com o prosseguimento desta postura de Carta, quatro ministros do presidente Geisel exigiram a

saída de Mino Carta da direção da revista (HERNANDES, 2004). Segundo Nilton Hernandes, nessa época

Victor Civita queria construir hotéis e os pedidos de empréstimos encalhavam na mesa dos ministros. Em

dezembro de 1975, Mino Carta se despede de Veja, segundo ele, para três meses de férias. Ele nunca mais volta

à revista. Em 1976, Civita obteve o empréstimo.

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Na década de 1970, segundo é dito em vários depoimentos, criou-se no

Nordeste a certeza de que uma de suas saídas para o desenvolvimento,

principalmente para criação de novos empregos necessários à elevação da

renda “per capita” de sua gente, seria o turismo ou “indústria sem

chaminés” e para ter essa indústria haveria também necessidade de se criar

infra-estrutura básica. Diante disso estabeleceram-se, em vários Estados,

atrativos para implantação de complexos hoteleiros e projetos foram

aprovados no órgão de desenvolvimento regional. Dentre outras empresas,

que se habilitaram a esses incentivos para implantar hotéis no Nordeste,

constituiu-se em 11/06/1973, sob a denominação inicial de Quatro Rodas

Hotéis de Olinda S/A, subsidiária de Quatro Rodas Empreendimentos

Turísticas Ltda. [...] (PRC 332/1982 – CPIQR – 25/05/1982, p.02).

Pode-se perceber nesta citação o tom do relatório que vai levar à absolvição da Abril:

o Estado é que teria oferecido “atrativos” para as empresas hoteleiras e a empresa de Civita

apenas “se habilitou a esses incentivos”. Seja como for, o fato é que Victor Civita soube

aproveitar a oportunidade ofertada, cabendo-nos indagar se foi a oportunidade que constitui

a empresa ou a empresa é que construiu a oportunidade, já que sabemos que, durante a

ditadura brasileira, muitas empresas privadas tinham ampla penetração no aparelho do

Estado, orientando políticas públicas e interferindo em projetos governamentais7.

Além disso, é interessante notar a habilidade de Civita em aliar suas publicações com

outros ramos da economia em expansão, já que em 1965 a Editora Abril havia lançado o

Guia Quatro Rodas (tendo relação direta com a Revista Quatro Rodas publicada em 1960 –

junto com o desenvolvimento da indústria automobilística no Brasil), considerado hoje a

mais tradicional publicação na área de turismo no Brasil8. O funcionamento do Guia Quatro

Rodas baseia-se na qualificação dos hotéis brasileiros (de onde advém as famosas

“estrelas”), obtidos a partir de visitas anônimas e com base em critérios próprios para

classificação. O guia era e é utilizado inclusive pelo Ministério do Turismo como fonte

alternativa para levantamento de dados do setor hoteleiro brasileiro. Embora ainda careça de

maiores pesquisas, podemos supor o Guia Quatro Rodas como um aparelho privado de

hegemonia da Abril e/ou de outras empresas do setor turístico, já que, apesar de

supostamente os hotéis e restaurantes não pagarem para terem suas empresas no ranking do

guia, ele é importante ferramenta de tomada de decisão, não só quanto a hotéis e restaurantes,

mas também de atrações turísticas a serem conhecidas. Além disso, como veremos

posteriormente, havia uma íntima ligação entre Victor Civita e o Ministério do Turismo, o

que evidencia as relações políticas, econômicas e empresariais entre as partes.

Segundo consta nas denúncias que levaram à CPI, Victor Civita teria construído

hotéis em pontos turísticos do Nordeste (São Luiz, Natal, Olinda, Aracajú e Salvador), com

incentivos fiscais da SUDENE e da EMBRATUR, e dinheiro vindo de empréstimos

privilegiados do BNB (Banco do Nordeste do Brasil), BB (Banco do Brasil) e até do extinto

BNH (Banco Nacional da Habitação). Tendo vencido os prazos de quitação dos

empréstimos, não estando as construções concluídas e o dinheiro devolvido, Victor Civita

teria oferecido ao BNH e ao BB a possibilidade de virarem acionistas dos hotéis como forma

de quitar a dívida. Neste sentido, as principais críticas, constantes do requerimento que

deram origem à CPI, foram:

7 Um excelente estudo que demonstra estas relações, direcionados para o setor da construção civil, é o trabalho

de CAMPOS, 2012. 8 Sendo que o primeiro exemplar já relacionava 633 hotéis em 283 cidades brasileiras.

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– os terrenos foram adquiridos em condições privilegiadas ou doações

sob compromisso de construção de hotéis, sem cumprimento;

– obtenção privilegiada de empréstimos, no BNB e no BB, sem execução;

– favorecimento da SUDENE e da EMBRATUR, em aporte de recursos

incentivados;

– conversão de uma dívida de 1,43 bilhão de cruzeiros, de QRHNE para

com o BNB e BB, em ações (PRC 332/1982 – CPIQR – 25/05/1982,

p.06).

Como já afirmado anteriormente, a CPI conclui não haver “o envolvimento de figuras

da administração federal, direta ou indiretamente, de forma a causar eventuais prejuízos ao

erário público” (PRC 332/1982 – CPIQR – 25/05/1982, p.07-08). No entanto, após a

publicação da conclusão, o deputado Del Bosco Amaral, insatisfeito com o resultado da

investigação, protocolou um “voto em separado”, como forma de apresentar mais provas

documentais para comprovar que as operações entre a Abril e Órgãos da Administração

Pública Federal teriam sido “excepcionais, especiais privilegiantes e imorais”. Entre os

argumentos elencados, um é de nosso especial interesse: Segundo o documento, as relações

que levaram ao beneficiamento da Abril teriam sido “organizadas por técnicos e

profissionais que serviram alternadamente o Poder Público e a Empresa Privada no período

de maturação dos negócios especiais” (PRC 332/1982 – CPIQR – 1980. Voto em Separado,

p. 01). Apesar de longa, trazemos a transcrição desta parte do relatório:

Relação de profissionais que serviram órgãos governamentais e ao grupo

Abril, ou foram promovidos na EMBRATUR durante o processo de

organização, implementação e maturação do projeto “Quatro Rodas”.

Todos com poderes decisórios.

Ex-Ministro Said Farhat: Empregado do Grupo Abril por trinta e três dias

de onde saiu para a Presidência da EMBRATUR, justamente quando

tramitou no Órgão o pedido de “Quatro Rodas”;

Rubens Vaz da Costa: Presidente de 1971 a 1974 do Banco Nacional de

Habitação e que agilizou decisão anterior à sua gestão, de envolver o

BNH em Operações de desenvolvimento da hotelaria. Deixou o BNH e

foi para vice-presidência da Abril S/A Cultural e Industrial, vice

presidência da Quatro Rodas Empreendimentos Turísticos S/A.

Participou ativamente de todo episódio e conflitou-se seriamente com o

Presidente do BNB Nilson Craveiro Holanda, que obstaculou as

pretensões absurdas do Grupo Abril.

Engenheiro Armando da Costa Cairutas: Engenheiro de Coordenação de

Obras da Empresa Quatro Rodas Hotéis do Nordeste S/A e Diretor da

Coordenação de Obra do Projeto no período de dezembro de 1975 a

setembro de 1977. Recebeu o “prêmio” de assistente técnico nível “E” da

EMBRATUR a partir do protocolo interministerial de favorecimento

imoral. Admitido em abril de 1980, na EMBRATUR;

Roberto Bonfim: Admitido na EMBRATUR em 1967. No período de

09/78 a 03/08 (ápice da escalada do grupo Abril) elaborava parecerem em

projetos que solicitavam benefícios fiscais ou financeiros da

EMBRATUR. No dia 12/09/80 quando já “esquentava” o assunto Quatro

Rodas foi colocado à disposição do Riocentro-Centro Internacional

RIOTUR S/A, sem prejuízo de vencimentos e vantagens. (PRC 332/1982

– CPIQR – 1980. Voto em Separado, p. 02-03).

Ou seja, a acusação procura demonstrar relações de pessoal entre a Abril e a

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EMBRATUR e o BNH, que teriam influenciado no beneficiamento quando do empréstimo

para a construção dos hotéis Quatro Rodas. Embora o “voto em separado” não tenha sido

aceito pela Câmara dos Deputados, os elementos apresentados nele nos ajudam a endossar a

argumentação que apresentamos anteriormente, da interferência privada no setor e nas

políticas públicas. Além disso, ainda neste mesmo documento, o deputado Del Bosco

Amaral acusa ministros de Estado como beneficiadores da Abril quando da transação que

pretendia transformar a dívida em ações, além de se tornarem interventores diretos no

engavetamento da referida CPI: Antonio Delfim Netto (Ministro-Chefe da Secretaria de

Planejamento da Presidência da República), Mario David Andreazza (Ministro do Interior),

Ernane Galveas (Ministro da Fazenda) e João Camilo Penna (Ministro da Indústria e

Comércio). Como já vimos neste artigo, Veja mantinha um discurso altamente favorável a

Delfim Netto em suas matérias. Não seria de se duvidar da “troca de favores” entre Delfim

e Civita que permitia ao empresário amplo acesso nas orientações do governo ditatorial, e

que, em troca, exprimiria nas páginas da revista ampla defesa à ditadura.

Enfim, apesar das limitações deste artigo, acreditamos ter sido possível demonstrar

a organicidade do Grupo Abril e a atuação de Victor Civita durante a ditadura. Para além do

discurso favorável à ditadura e da “troca de favores” entre o empresário e os governos

ditatoriais (como os exemplos de demissão de Raimundo Pereira e Mino Carta), Civita

manteve trânsito dentro da sociedade política ditatorial, que lhe asseguraram não apenas ter

acesso privilegiado a algumas informações (caso da relação entre Elio Gaspari e Golbery do

Couto e Silva) – que por si só já seriam de grande valia para um veículo de comunicação –,

como também lhe permitiram investimentos e financiamentos em áreas que iam além do

parque editorial (Mobral no caso editorial e Quatro Rodas no campo hoteleiro). Como vimos,

tanto o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) – criado em 1967, visando a

alfabetização massiva da população brasileira (e visando formar contingentes de eleitores

manipuláveis) – quanto a política de desenvolvimento do turismo no Nordeste beneficiaram

Victor Civita e o Grupo Abril.

Esta estreita ligação (também evidenciada quando demonstramos o trânsito de

pessoal entre a Abril, a EMBRATUR e o BNH, bem como na figura de Delfim Netto),

poderia também ser estendida para outros indivíduos como Mário Henrique Simonsen e

Roberto Campos. Mário Henrique Simonsen foi Ministro da Fazenda durante o governo

Geisel e Ministro do Planejamento durante o governo Figueiredo. Também foi presidente do

Mobral em 1970 e, apesar de não trabalhar diretamente em Veja, colaborava regularmente

com a revista. Já na revista Exame (também da editora Abril) tinha uma coluna fixa, levando

Carla Silva a caracterizá-lo como um “intelectual do grupo” (SILVA, 2005, p.137).

Interessante notar a “coincidência” da Abril ter recebido a tarefa de imprimir os livros do

Mobral na mesma época em que o presidente do Mobral era Simonsen, o mesmo Simonsen

que tinha ampla ligação com Civita. Roberto Campos foi Ministro do Planejamento durante

o governo Castello Branco e também veio a ocupar uma coluna quinzenal em Veja. Carla

Silva os define como “intelectuais orgânicos” agindo na revista Veja9. No momento,

interessou-nos evidenciar a presença de ministros e ex-ministros da ditadura diretamente nos

quadros da Abril e de Veja.

Referências bibliográficas

CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de

9 O que pode ser melhor aprofundado com a leitura da sua tese de doutorado (SILVA, 2005).

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construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985. Tese

de Doutorado em História – Universidade Federal Fluminense, RJ, 2012.

DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. 6ª

Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2000.

HERNANDES, Nilton. A revista Veja e o discurso do emprego na globalização: uma análise

semiótica. Salvador: Edufba; Maceió, Edufal, 2004.

RAUTENBERG, Edina. A revista Veja e as empresas da construção civil (1968-1978).

Dissertação de Mestrado em História pela Unioeste/MCR. Marechal Cândido Rondon, 2011.

SILVA, Carla. Veja: O indispensável partido neoliberal 1989-2002. Niterói: UFF, Tese de

Doutorado. 2005.

TOLEDO, Roberto Pompeu de. O resolvedor de problemas. ABRIL 50 ANOS. Edição

especial comemorativa publicada em julho de 2000 pela Editora Abril.

VIANA, Nildo. Acumulação Capitalista e Golpe de 1964. In: Revista História e Luta de

Classes. “O Golpe de 1964”. Ano 1, Edição 1, Abril de 2005.

PRC 332/1982 – CPIQR – 1982. Dossiê digitalizado disponível em:

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1244477&filen

ame=Dossie+-PRC+332/1982+CPIQR>. Consulta realizada em 21/05/2015.

Revistas Veja de 1968 a 1985.

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CRÍTICA À IDEIA DO “CARÁTER PATRIMONIALISTA” DO ESTADO

BRASILEIRO

Elsio Lenardão1

Resumo: O acompanhamento das análises políticas a respeito do funcionamento do Estado

brasileiro mostra que predomina, principalmente no jornalismo e no senso comum, a

sugestão de que o Estado no Brasil seria, ainda hoje, regido pelo “patrimonialismo”, sendo

esse traço o grande responsável pelos dramas e percalços que comprometem a realização do

republicanismo e da justiça social no país. No caso desse tema, o debate, na imprensa

especialmente, fica girando em torno dos termos que essa sugestão propõe: privilégios de

um suposto “estamento estatal”, apropriação privada da coisa pública, corrupção, tamanho

do Estado (gigantismo), interferência do Estado nos negócios privados etc. Como resultado

desse quase monopólio do eixo explicativo patrimonialista, raramente emergem outras

perspectivas de análise e quase nada se diz sobre outros elementos importantes de reflexão

a respeito da política brasileira, por exemplo, sobre a pequena participação popular nas

decisões públicas, sobre o caráter de classe do Estado na distribuição do fundo público etc.

Destaca-se, nessa interpretação, que poderíamos denominar de “hipótese patrimonialista”, a

recorrência a certas imagens a respeito do Estado Brasileiro e de sua burocracia que parece

sugerir a presença, ainda hoje, de uma “burocracia estamental” à frente do Estado brasileiro.

Neste trabalho, apresentamos alguns contra-argumentos à ideia da presença de um Estado

de tipo patrimonialista no Brasil e à ideia de um estamento estatal dirigindo esse Estado,

pondo em destaque dados comparativos a respeito da burocracia brasileira atual

(profissionalização, estabilidade, remuneração) e do Estado (tamanho, gastos), visando

desmistificar, nesse aspecto, a “hipótese patrimonialista”.

Palavras-chave: Patrimonialismo no Brasil; Estado brasileiro; Burocracia estamental no

Brasil.

Introdução

O acompanhamento das análises a respeito do funcionamento do Estado brasileiro

atual mostra que permanece com bastante vigor, principalmente no jornalismo e no senso

comum, a sugestão – que aparece sempre na forma de crítica – de que o Estado no Brasil

seria, ainda hoje, regido pelo “patrimonialismo”, de tal modo que esse traço seria o grande

responsável pelos dramas e percalços que comprometem a realização do republicanismo e

da justiça social no país. Chega-se até, a sugerir que o conceito de patrimonialismo seria,

atualmente, o “[…] conceito central da reflexão brasileira” (SOUZA, 2008, p. 46).

Essa interpretação costuma propor, na forma de denúncia, que o Estado brasileiro se

põe: a) como patrimônio “possuído” por segmentos do funcionalismo público – que se

comportariam à semelhança de estamentos2 --; b) ou se põe possuído por agentes políticos,

identificados como uma “classe política”, que vêm a ocupar ocasionalmente cargos no

1 Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. 2 O uso do termo estamento sugere que estaríamos diante de uma “comunidade”, mais ou menos, organizada

em torno de uma identidade por ocupação e interesses de reprodução, de tal modo que as implicações do

pertencimento a essa comunidade se sobreporiam a outros fatores como a origem de classe ou a posição

político-ideológica de cada membro dela.

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aparelho de Estado. Aparece também nessa interpretação a indicação de que o caráter

patrimonialista do Estado brasileiro se revelaria pelo fato de ele ser “tomado”, direta ou

indiretamente, por certos empresários, pequenos grupos ou setores restritos da elite

empresarial brasileira que moveriam seus negócios a base de subsídios, benesses ou a base

de relações escusas com o Estado.

É assim que a noção atual de patrimonialismo, quase sempre, indica “[…] uma suposta ação

parasitária do Estado e de sua ‘elite’ [o estamento] sobre a sociedade” (SOUZA, 2008, p.

44). Dessa maneira, o suposto Estado patrimonialista brasileiro decorreria, principalmente,

de “desvios de comportamento” de uma suposta “burocracia estamental” ou de uma “classe

política” corrupta ou, ainda, de desvios de certos empresários corruptos.

A presença de um “estamento estatal”

A definição a seguir representa com clareza essa interpretação que sugere ser o

Estado brasileiro de tipo patrimonialista:

[…] uma forma de governar que atendia essencialmente aos interesses do

estamento dirigente formado pelo grupo de poder (governantes,

tecnoburocratas – incluindo aqui os ministros de Estado –, membros do

Poder Legislativo, do Poder Judiciário, administradores públicos etc) O

patrimonialismo estatal – entendido como uma estrutura de mando e de

decisão na qual não há separação entre a esfera pública e a esfera privada

– continua, de diversas maneiras, vivo e dando as coordenadas básicas para

o modo de agir dos novos dirigentes no século XXI” (REZENDE, 2009, p.

37, grifos meus)

Destaca-se, nessa interpretação, que o caráter do Estado seria dado pelos seus

próprios agentes internos. Neste artigo, a interpretação, exposta acima, sobre o Estado

brasileiro e sobre seu funcionamento, será denominada como “hipótese patrimonialista”3.

Sob o predomínio dessa interpretação, o debate a respeito do caráter do Estado brasileiro

fica girando em torno dos seguintes termos: privilégios de uma suposta burocracia

estamental e de uma classe política, relação público-privado, corrupção, tamanho do Estado,

gasto estatal, interferência do Estado nos negócios privados etc. Como resultado desse

monopólio do eixo explicativo patrimonialista, raramente emergem outras perspectivas de

análise e quase nada se diz sobre outros elementos importantes de reflexão a respeito da

política brasileira, por exemplo, sobre a pequena participação popular nas decisões públicas,

sobre o caráter de classe do Estado na distribuição do fundo público etc.

Vê-se, portanto, que a hipótese patrimonialista oscila entre ora enfatizar o elemento

de uma suposta “burocracia estatal”, ora destacar a relação estritamente favorável que o

Estado manteria com alguns empresários ou grupos empresariais muito específicos. Importa

anotar que, de qualquer modo, as duas análises acabam por fiar-se num discurso de

“demonização” do Estado (SOUZA, 2009). A primeira pela acusação de excesso de Estado

consumindo as riquezas da nação e a segunda pela denúncia da intromissão nociva do Estado

no livre jogo da concorrência negocial. Deriva, também, dessas premissas a indicação de que

algumas mudanças administrativas e de funcionamento dos órgãos estatais devolveriam o

3 O texto clássico que sugere a hipótese do patrimonialismo é Os donos do poder, de Raymundo Faoro (1989).

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Estado à retidão “neutra” e “universal” de suas políticas. E, dessa maneira, o fundo público,

por exemplo, seria direcionado à toda a população e não a grupos restritos dela.

A posição interpretativa que vou sugerir aqui é a de que talvez seja exagerado referir-

se à vigência de uma “estrutura estatal de tipo patrimonialista” no Brasil de hoje. Parece ser

mais razoável tentar verificar os elementos de mudanças que afetaram o Estado e a sociedade

brasileira nas últimas décadas – por exemplo, entre outras, alterações na composição e

funcionamento dos agentes do Estado (sua burocracia) –, e que podem ajudar a definir

melhor o caráter do Estado. A observação de tais mudanças permitiria tratar esses “vícios”

da administração pública (corrupção, fisiologismo, nepotismo, apossamento privado de bens

públicos etc.) como práticas de tipo patrimonialista que sobrevivem sim no Estado

brasileiro, mas acomodadas e sendo até funcionais a uma estrutura de organização estatal

que está muito mais para liberal do que para patrimonialista.

Neste artigo, dedicarei atenção especial a uma contra-argumentação à hipótese da

presença de um Estado de tipo patrimonial no Brasil, priorizando a desconstrução da ideia

de um estamento estatal dirigindo o Estado Brasileiro atual, pondo em destaque alguns

limites de certos pressupostos dessa ideia4. Abaixo, segue um exemplo de como essa ideia

aparece na mídia.

(Revista Carta Capital): […] como Raimundo Faoro mostrou

magistralmente, há [no Brasil] a dominância de um ‘estamento

burocrático’ (e seus permanentes aliados políticos), verdadeiros donos do

poder5 (grifo meu).

Na crítica à ideia de estamento estatal no Brasil, uma primeira questão importante: a

profissionalização da burocracia brasileira

(Revista Veja): O Brasil continua preso à visão dos tempos do

patrimonialismo português, quando as glórias das conquistas ultramarinas

conviviam com a concessão dos empregos públicos aos nobres, o

loteamento do governo pelo estamento burocrático e a concessão do

orçamento público com as posses do rei6 (grifos meus).

Quando a hipótese patrimonialista insiste na figura do estamento (burocracia

estamental), de olho no seu comportamento predatório frente aos recursos públicos, costuma

insinuar uma situação de ausência de critérios meritocráticos na seleção e na atividade

regular da burocracia estatal brasileira atual, tomando por base dois possíveis pressupostos:

primeiro, o de que parte importante dos servidores públicos seria constituída por indicados

e/ou protegidos de políticos, o que os ligaria, no seu comportamento profissional, antes de

tudo, ao atendimento, junto à administração pública, das demandas privadas de seus

padrinhos.

O segundo pressuposto deslocaria o núcleo da predação patrimonialista para aquela

fração menor da “alta burocracia” portadora de posições de poder decisório que, na hipótese

em foco, teria seu comportamento escuso derivado do fato de ocuparem cargos na função de

delegados dos políticos que os colocaram ali com o objetivo de, mais à frente, direcionar

facilidades ou benefícios para estes últimos e, também para si próprios.

4 Dado o espaço restrito deste artigo, os argumentos e os indicadores que os sustentam foram bastante

reduzidos. 5 NAKANO, Yoshiaki. A agenda para uma reforma do Estado. Carta Capital. Edição 781. Jan. 2014. 6 NÓBREGA, Mailson da. Revista Veja, n. 2213, p. 26, 20 abr. 2011.

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O cenário que a hipótese patrimonialista insinua, ao generalizar alguns casos,

indicaria, então, uma constante troca e renovação de servidores conforme a ascensão e queda

dos grupos políticos no comando do Estado. Do ponto de vista do comportamento político,

o problema aqui seria a sujeição da burocracia a estritos interesses de certos políticos, de

pequenos grupos privados ou do próprio servidor, em detrimento do interesse público. Isto

é, a burocracia do Estado deixaria de mediar as variadas demandas frente ao aparelho estatal

com base em meios isonômicos e legítimos.

Estabilidade administrativa

Dados à disposição (SANTOS, 2006, cap. V) apontam para a necessidade de se

relativizar os pressupostos colocados anteriormente, ao menos quanto ao setor federal. Por

exemplo, a análise da comparação da variação entre a ocupação de cargos daquelas posições

de atividade-meio da burocracia (aquelas ligadas especificamente à administração pública e

compostas pela média e pequena burocracia) e a variação na renovação dos grupos

parlamentares ou das presidências da República, revela que não há correspondência evidente

que indique que tal fração dos servidores esteja exposta ao controle clientelista (à nomeação

por indicação de políticos ou de grupos de interesse). Por exemplo, sob uma gestão federal

tipicamente neoliberal nos anos 1990, houve uma considerável redução do número de

servidores do Executivo da União. Passaram de 705.548, em 1988, para 532.000 em 1997.

Já em 2010, com outro governo à frente do Executivo Federal, mais pró-desenvolvimentista,

o número havia subido para 601 mil (MORAES; SILVA; COSTA, 2010, p.5). Além do quê,

esses números precisam ser colocados ao lado do aumento da população geral atendida pelo

Estado no mesmo período. Ou seja, a variação no número de servidores está relacionada à

concepção que a coalizão no poder tem quanto ao papel do Estado e suas obrigações e não a

interesses clientelistas imediatos ou particulares.

Por razões óbvias, o mesmo não se aplica àqueles chamados “cargos de confiança”,

que compõe uma reserva de controle do Executivo, indispensável à montagem de equipes

de gestão ajustadas aos seus programas de governo, da qual participam as bases aliadas com

suas indicações de ocupantes. Neste caso, é grande a variação nos seus ocupantes ocasionais.

Porém, mesmo nesse caso, pode-se notar que os quase 22.000 cargos de confiança dos quais

dispunha, em 2010, o poder Executivo Federal, 70% eram ocupados por servidores efetivos

da administração direta ou requisitados junto a autarquias, fundações ou outros órgãos do

aparelho estatal7. Quer dizer, embora os cargos de confiança sejam de livre provimento,

observa-se que a grande maioria é ocupada por funcionários concursados pertencentes ao

quadro funcional do Estado brasileiro, mesmo nos mais altos escalões.

Outra proporção reveladora da estabilidade do quadro de servidores é a demonstrada

pela consideração de que, por exemplo, em 2006, em razão da limitação imposta por um

decreto assinado em 2005 pelo governo Lula, dos 520 mil servidores públicos civis na ativa

do Poder Executivo, pouco mais de 6.400, ou 1,2%, podiam ser livremente indicados para

servir ao governo por determinado período sem necessidade de ter passado por concurso

público (KERCHE, 2006). Tal quadro parece apontar, também neste caso (cargos de

confiança), para a tendência de profissionalização do serviço público no Brasil. Seria

possível afirmar, então, que a ocupação da maior parte daqueles postos de importância

estratégica dos aparelhos de Estado estaria, atualmente, afetada também por padrões de

mérito e competência.

7 Serviço público se profissionaliza, afirma governo. O Estado de S. Paulo, p. A4, 28 nov. 2010.

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O “gigantismo” do Estado Brasileiro (O Estado “inchado”)

(O Estado de S. Paulo) “Funcionalismo inchado e caro”

Uma das características da administração federal nos últimos anos é o

inchaço da máquina estatal, com o aumento do quadro do funcionalismo e

o consequente aumento dos gastos com pessoal. […] O resultado, em lugar

de um Estado mais eficiente, é uma máquina mais inchada e cara […]8.

Faz parte também da caracterização do Estado brasileiro como patrimonialista a

acusação de seu “gigantismo” que se manifestaria, por exemplo, no enorme contingente de

empregados públicos de toda ordem: estatutários, celetistas, da administração direta e

indireta. Os números, porém, revelam que, comparativamente, o qualificativo dado acima

talvez não caiba ao Estado brasileiro atual. Informações de 2008 davam conta de que o

emprego público no Brasil representava cerca de 12% do total das pessoas ocupadas no

mercado de trabalho. Por comparação, na França era perto de 28%, nos Estados Unidos de

15%, na Alemanha 14,7%, no Uruguai de 15% e no México, 14% (MORAES; SILVA;

COSTA, 2010, p.4).

Dados divulgados, em 2010, pela Organização para a Cooperação do

Desenvolvimento Econômico (OCDE), indicavam que, comparada com os 31 países mais

desenvolvidos do mundo, a proporção de servidores públicos brasileiros em relação à

população total de trabalhadores não era elevada. Enquanto naquele grupo de 31 países

(OCDE) a força de trabalho pública representava perto de 22% do total de empregos, no

Brasil, esse número era a metade, entre 10 e 11%, segundo a OCDE9.

O funcionalismo como a “torradeira” do fundo público

(Manchete do jornal O Globo): “Em 88% dos empregos, setor público paga

mais”10

Também acompanha a hipótese patrimonialista a ideia de que o funcionalismo

público seria a “torradeira” dos recursos do Estado por causa dos altos salários que receberia.

Há, de fato, entre os servidores públicos salários altíssimos, mesmo para padrões

internacionais, porém, a grande maioria dos funcionários tem remuneração dentro de padrões

razoáveis, embora não pareça, dada a mesquinhez do valor médio dos salários do setor

privado brasileiro. Por exemplo, pode-se afirmar com tranquilidade que o salário distribuído

entre a grande maioria dos servidores do poder Executivo Federal (que inclui, por exemplo,

funcionários e professores das universidades e escolas federais, pesquisadores, auditores,

policiais federais, analistas, advogados e diplomatas) não é “patológico” ou fora dos padrões

do setor privado, quando considerados, para comparação, indicadores como escolarização e

qualificação técnica.

Para dados de 2005, época em que o funcionalismo não havia se recuperado ainda

do arrocho salarial imposto pelos governos de acentuada perspectiva neoliberal dos anos

1990, notava-se que mais de 40% dos funcionários públicos federais recebiam até 3 salários

8 Editorial. O Estado de S. Paulo. p. A3, 06 jan. 2013. 9 Disponível em: <http://www.secom.gov.br/sobre-a-secom/nucleo-de-comunicacao-publica/copy-of-em>.

Acesso em 24 mar. 2011. 10 Disponível em: <http://www.oglobo.globo.com/pais/em-88-dos-empregos-setor-publico-paga-mais>.

Acesso em 20 mai. 2013.

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mínimos e 80% até 7 salários mínimos. Considerando-se o valor do salário mínimo no Brasil

à época, destacava-se, até, a modéstia da grade salarial dos servidores públicos (SANTOS,

2006, p. 96; BENDER e FERNANDES, 2009).

Da metade dos anos 2000 até hoje, houve significativa melhora na remuneração dos

servidores federais, alterando um pouco a distribuição salarial. Em 2015, por exemplo, 50%

dos servidores do Executivo recebiam até 7 salários mínimos e 60% até 8 salários mínimos,

conforme tabela que segue11.

De R$ 1.140 a R$ 3.500 = 22% (1,5 a 4,5 salários mínimos/sm)12

De R$ 3.501 a R$ 4.500 = 14% (4,5 a 5,5 sm)

De R$ 4.501 a R$ 5.500 = 14,2% (5,5 a 7 sm)

De R$ 5.501 a R$ 6.500 = 10% (7 a 8 sm)

De R$ 6.501 a R$ 8.500 = 11,5% (8 a 10,5 sm)

De R$ 8.501 a R$ 10.500 = 9,5 %

Acima de R$ 13.000 = 12%

A alta escolaridade a favor da burocracia

Convém ressaltar um importante item de profissionalização e qualificação da força

de trabalho pública, o de sua escolaridade. A favor da burocracia brasileira, ao menos a do

nível federal (servidores públicos do Executivo), poderia ser anotado o elevado grau de

instrução formal de seus servidores. Neste item os servidores se encontram em posição bem

mais favorável que a população geral do país e os trabalhadores do setor privado.

Em 2012, os indicadores mostravam que 14% dos trabalhadores do setor privado

possuíam diploma de nível superior contra 45% entre os funcionários públicos do Executivo

federal13. Já entre a população geral, apenas 6,8% haviam concluído o ensino universitário14.

Informações para o ano de 2012 mostravam que seria favorável, também, a situação desses

servidores públicos quanto à distribuição etária, onde expressiva maioria, perto de 70%,

situava-se entre aqueles de 36 a 55 anos e próximo de 15% ficava abaixo do piso de 36 anos.

Quer dizer, parte importante do funcionalismo encontrava-se no melhor período de

produtividade e capacidade (ENAP/Estudos, 2015). Números como os acima citados

parecem indicar que o tamanho da burocracia brasileira e os gastos com ela não poderiam

ser considerados como “fora do comum”, como sugere a hipótese patrimonialista.

O Estado brasileiro como “Estado gastador”

Faz parte, ainda, da ideia de gigantismo da máquina estatal o argumento de que o

Estado brasileiro gastaria demais com funcionalismo e despesas correntes. É controversa

essa sugestão em razão dos termos de comparação, sendo sempre cercada de muita cautela

(MENDES, 2015; IPEA, 2015). O total de gastos do setor público brasileiro (com

funcionalismo e custeio, excluídos investimentos), para 2010, girava em torno de 19% do 11 Dados aproximados conforme informações do Boletim Estatístico de Pessoal e Informações

Organizacionais/Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Gestão Pública. Brasília: MP.

vol. 20. n. 226, fev. 2015. 12 Para facilitar a visualização, o valor do salário mínimo (R$ 788,00) foi arredondado para R$ 800,00. 13 Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais/Ministério do Planejamento, Orçamento e

Gestão. Secretaria de Gestão Pública. Brasília: MP. vol. 20. n. 226, fev. 2015. 14 Estudo revela perfil dos servidores públicos federais do Executivo. Disponível em:

<www.brasil.gov.br/governo/2013/09/estudo-revela-perfil-dos-servidores-publicos-federais-do-executivo>.

Acesso em 31 jul. 2015.

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Produto Interno Bruto (PIB). Este índice era próximo da média dos gastos dos países da

Zona do euro, que estava perto de 20% (SANTANA et al, p.253). Passados alguns anos, em

2013, no Brasil, os gastos teriam sido da ordem de 21% do PIB, ou seja, continuavam num

nível dentro da média internacional (SCHNEIDER, 2013).

Outra forma de abordar o argumento de que o Estado brasileiro seria “gastador” é

tomar em conta o balanço primário, calculado como a diferença entre as receitas totais e as

despesas não financeiras, isto é, excluindo-se o pagamento de juros sobre a dívida pública

das despesas gerais do governo. Neste quesito, o Brasil é um dos poucos países que vêm há

muito tempo produzindo superávit primário. Isto é, gasta menos do que arrecada. Na maior

parte dos países, os gastos primários são maiores do que as receitas do setor público, gerando

o que se denomina déficit primário. Não seria este o caso do governo brasileiro nos últimos

anos. Por exemplo, 2014 teria sido, em 18 anos, a primeira vez que as contas do governo

teriam apresentado déficit primário15. Conforme dados do FMI para 2013, entre uma série

volumosa de países, o Brasil apresentava o terceiro maior superávit primário em relação ao

PIB. O Brasil só passaria à situação de déficit quando é incluído o pagamento de juros, até

porque o país paga em torno de 5% do PIB de juros sobre a dívida pública. Com base nessa

perspectiva, não seria acertado acusar o governo brasileiro de gastador16.

Considerações finais

Em síntese, a observação dos números e do perfil do Estado e da burocracia no Brasil

ajuda a rever alguns mitos, permitindo que se mantenha a impressão exposta por Santos

(2006, p. 96-97) de que, ao menos,

[…] a burocracia federal brasileira, como afluente do poder executivo, é

comparativamente reduzida, corresponde a reduzida porcentagem da força

de trabalho nacional, se aparenta a uma ilha cada vez proporcionalmente

menor, face à totalidade do emprego privado, é madura, sem graves

desvios etários em qualquer direção, educacionalmente bem qualificada,

tendo em sua vastíssima maioria, ingressado no serviço público através de

exame, ou seja, por mérito, e se apropria de discreta parcela da renda

nacional, sob a forma de salários modestos, por comparações

internacionais.

Ou seja, o Estado brasileiro e sua burocracia estariam bem longe da ideia de “Estado

estamental” sugerida pelas várias imagens e análises propostas pela imprensa e pela

academia.

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O ENSINO DO MOBRAL NA DITADURA

Erica da Costa1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo fazer um percurso histórico do Ensino de Jovens e

Adultos, intitulado “Mobral”, (Movimento Brasileiro de Alfabetização) no período que

compreende a ditadura militar, a partir de 1964. A educação do Mobral, que teve sua

implantação no ano de 1967, tinha por objetivo erradicar o analfabetismo, “ou divulgar o

fim do mesmo”, dentro de seus interesses, sendo ele pensado nos moldes do regime militar,

classe dominante da época. O regime militar na educação tinha como propósito impor à

população a ideologia dominante, consequentemente a exploração e a submissão como

processo natural. Pesquisas mostram que o ensino de jovens e adultos nesse período era feito

por pessoas que nem sempre estavam preparadas para o exercício da docência. Considerando

a amplitude do território nacional, o ensino não seguia um padrão, ficando para cada região

o repasse diferente. Assim, não cumprindo seu propósito, foi extinto em 1985 e passou para

Fundação Educar o seguimento do ensino. A educação de Jovens e Adultos sempre enfrentou

dificuldades, uma vez que nem sempre a especificidade da mesma é levada em consideração.

Sendo necessário revisitar o passado para buscar melhorias, uma vez que não foi erradicado

o analfabetismo no país, a evasão escolar leva a EJA a continuar existindo.

Palavras-chave: adulto; ensino; alfabetização.

Introdução

O período da Ditadura foi um dos mais violentos da história do Brasil. Ainda é

recente em muitas memórias, que passaram por tempos difíceis e sem direitos. Nesse tempo

foi inaugurado um dos maiores programas de alfabetização de adultos, até hoje mencionado,

o Mobral, (Movimento Brasileiro de Alfabetização), o qual ocultava seus reais objetivos,

valendo-se do slogan da alfabetização.

Esse movimento foi idealizado pelos Militares, que nesse período dominavam o país,

aterrorizando os cidadãos declarados “comunistas”. A eles era proibida qualquer

manifestação de opinião, uma vez que o poder constituído reprimia e atacava a população.

O Mobral serviu à ideologia dos militares, disseminando em todo país um ideal de

oportunidade de aprendizagem aos adultos. Escondiam-se, na verdade! Divulgavam que, em

pouco tempo, resolveriam o fim da falta de instrução do povo brasileiro, que carregava essa

marca desde a colonização.

Faz-se necessário pensar o passado para não permitir que novas práticas sejam

aceitas no presente, uma vez que o povo ainda serve como massa de manobra na mão de

ditadores modernos. Executar trabalho com adultos ainda é uma tarefa difícil, pois também

se sofre com o descaso dos governantes, que apenas usam os números representativos sem

pensar no sujeito e na aprendizagem do mesmo.

Este trabalho tem a pretensão de referendar alguns autores que falaram dos reais

interesses do Mobral, propondo um diálogo a fim de buscar esclarecimentos e levar à

reflexão para que a sociedade não permita mais tais atrocidades.

1 Acadêmica do Curso de Pedagogia da Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – campus

Cascavel.

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O percurso histórico da educação do Mobral

Quando pensamos na educação voltada ao adulto, nos remetemos ao período da

colonização, na qual aos jesuítas foi incumbida a missão de catequizar os índios. Para fazer

a difusão do cristianismo, era necessário o domínio da escrita, tanto das crianças quanto dos

adultos.

Inicialmente, para os colonizadores, a alfabetização de adultos tinha o objetivo de

instrumentalizar a população, ensinando a ler e escrever.

Passada essa tentativa, perdeu-se a importância de alfabetizar os adultos. No entanto,

com o passar do tempo, novas instituições surgiram a fim de ensinar esse público, uma vez

que o mesmo nunca deixou de existir, sendo um mal crônico o analfabetismo no país.

Conforme Santos:

No decorrer da história da educação de adultos, sua importância esteve

vinculada à construção de uma nação desenvolvida. Aniquilar o

analfabetismo solucionaria os demais problemas do país, visto que este

estava sempre posto como causa e não efeito dos problemas econômicos,

sociais e políticos. A educação é supervalorizada, vista como mudança na

estrutura da sociedade, um requisito indispensável para a construção de

uma nova conjuntura nacional (SANTOS, 2014, p. 305).

Ainda segundo SANTOS (2014), a partir da criação do Fundo Nacional do Ensino

Primário (FNEP), passou-se a destinar 25% de seus recursos para a educação de adultos.

Este fato representou um marco para alfabetização deste público.

A partir de 1960, a educação destinada a adultos teve um impulso, pois outras

instituições passaram a se importar com a população analfabeta. Dentre esses movimentos,

destacam-se o Movimento de Cultura Popular (MCP), o Movimento de Educação de Base

(MEB) e o Centro Popular de Cultura (CPC), entre outros. No entanto, aqui daremos ênfase

nos três citados.

O MEB surgiu como uma iniciativa da Igreja Católica. Em 1961, por meio

do Decreto 50.370, de 21 de março, foi estabelecida a criação do MEB. O

decreto previa que o Governo Federal iria colaborar com a CNBB -

Conferência Nacional de Bispos do Brasil no processo de alfabetização de

adultos. Essa cooperação se daria por meio de convênios consolidados com

o MEC, outros Ministérios e Órgãos Federais, que repassariam os recursos

para a CNBB. A alfabetização de adultos seria realizada por meio do

Movimento de Educação de Base utilizando a rede de emissoras católicas

(BRASIL, 2005, p. 02).

Este programa atuava em áreas subdesenvolvidas, principalmente no interior das

regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. No entanto, quando o regime militar percebeu que

o MEB poderia levar o sujeito à reflexão, o mesmo foi repreendido:

A desestruturação do MEB iniciou-se durante os primeiros meses de 1964.

Nessa época alguns de seus livros foram confiscados por serem

classificados de teor comunista. A partir daí o MEB passou a ser

pressionado não só pela igreja, mas também pelos poderes sociais e

conservadores do regime militar. Em 1966 o programa encerrou-se em

alguns estados devido à pressão feita pelo governo militar. Mas alguns

anos depois, por volta de 1970, o MEB, que havia diminuído sua área de

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atuação, voltou ao processo de alfabetização dando prioridade para as

regiões Norte e Nordeste do país (BRASIL, 2005, p. 02).

Assim como o MEB, o MCP buscava solucionar o problema da falta de leitura dos

brasileiros.

O MCP – Movimento de Cultura Popular teve origem em maio de 1960.

Era um movimento ligado à Prefeitura de Recife. Tinha o apoio do

Governo de Miguel Arraes e de Paulo Freire, que era o Diretor da Divisão

de Pesquisa e Coordenador do Projeto de Educação de Adultos do MCP.

Utilizava os centros de cultura e os círculos de cultura para alfabetizar, por

meio de grupos de debate (BRASIL, 2005, p. 03).

O MCP tinha metas de expandir o campo de atuação, a fim de alfabetizar e não ficar

apenas em Recife.

O MCP tinha como objetivo alfabetizar utilizando novos métodos de

aprendizagem, mas faltavam recursos financeiros para que esse movimento

ingressasse em outros estados. Sua atuação se restringiu a Recife e ao Rio

Grande do Norte. Teve sua extinção em 1964, por causa do Golpe Militar.

Os militares por considerarem o programa uma ameaça aos seus objetivos

acabaram com o movimento, prendendo e exilando alguns de seus

integrantes (BRASIL, 2005, p. 03).

Outro programa dessa época foi em busca de, além de alfabetizar, transmitir ao povo

cultura, uma vez que o acesso à cultura é necessário para o bom desenvolvimento do

processo de aprendizagem.

Em 1961 surge o CPC – Centro de Cultura Popular, fundado pela UNE –

União Nacional dos Estudantes, artistas e intelectuais da época. Os

principais agentes de sua criação foram a UNE e três atores do Teatro de

Arena - Oduvaldo Vianna Filho, Carlos Estevan Martins e Leon Hirazman.

Tinha como objetivo levar a cultura às classes mais desfavorecidas da

sociedade. Utilizavam peças teatrais para que o povo adquirisse cultura.

Por volta de 1963, foi criado o departamento de alfabetização de adultos,

onde seriam utilizados materiais como livros de literatura no ensino. O

CPC acabou em 1964. Quando em decorrência do Golpe Militar, as

instalações da UNE foram incendiadas para evitar o contato com as classes

populares (BRASIL 2005, p. 03).

Nesse cenário, surge um importante defensor da educação de adultos, Paulo Freire,

engajado na luta para além de apenas alfabetizar os adultos, mas também considerar os

conhecimentos do educando.

Para ser um ato de conhecimento o processo de alfabetização de adultos

demanda, entre educadores e educandos, uma relação de autêntico diálogo.

Aquela em que os sujeitos do ato de conhecer (educado-educando;

educando-educador) se encontram mediatizados pelo objeto a ser

conhecido. Nesta perspectiva, portanto, os alfabetizandos assumem, desde

o começo, o papel de sujeitos criadores. Aprender a ler e escrever já não é,

pois, memorizar sílabas, palavras ou frases, mas refletir criticamente sobre

o próprio processo de ler e escrever e sobre o profundo significado da

linguagem (FREIRE, 2002, p. 58).

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Porém, o Golpe de 64 acabou vetando os ideais desse educador, substituindo os

programas até então existente pelo Mobral. Mesmo os movimentos tentando resistir,

sofreram perseguições por não se adequarem aos “moldes” do regime militar.

Brasil (2014) destaca que vários desses programas após 31 de março de 1964 foram

extintos por serem considerados comunistas. Alguns que participavam foram perseguidos e

exilados.

Este foi um movimento forte que contou com recursos financeiros oriundos da

Loteria Federal, teve ampla divulgação nacional, atingindo todo país. Foi implantado no

governo Arthur da Costa e Silva por meio da Lei 5.379 de 15 de dezembro de 1967.

As escolhas de professores para lecionar no Mobral eram feitas nos municípios.

Quem tivesse instrução e soubesse ler, escrever e calcular poderia ensinar e seria

“escolhido”. O material era fornecido pelo Estado, e a sede era no Rio de Janeiro. Não se

levava em conta a extensão territorial, o material era o mesmo.

Esse movimento teve ampla divulgação nas revistas e no rádio por meio de músicas.

Foi tão emblemático que é comum ouvirmos até hoje pessoas fazerem referência a esse

marco da educação de adultos como positivo, sem refletir sobre os seus reais interesses.

A população com pouca instrução considerava um ato político generoso com os

adultos, que até então não tinham oportunidade para desvendar os caminhos da leitura,

escrita e cálculo no papel.

Os reais objetivos do Mobral

O Regime Militar teve vigência de 1964 a 1985, caracterizado pela falta de

democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão

aos que eram contra.

O analfabetismo no Brasil existe desde o período colonial, mas só foi considerado

um problema no final do período imperial. Já que, pela lei, os analfabetos não podiam votar,

percebe-se de início um problema de ordem política.

É comum ainda ouvirmos referência ao ensino de adultos com a nomenclatura do

Mobral. Esse movimento ficou impregnado na mente dos dessa época, ou aos filhos destes

que ouviam falar ou até mesmo acompanhavam seus pais no ensino noturno das aulas do

Mobral.

Usava-se da divulgação de favorecer aos adultos ao campo do conhecimento até

então negado a estes, mascarando o real sentido de sua existência. Este tinha por lema num

período curto de tempo alfabetizar adultos. Na verdade, era uma instrução funcional, que

não levava a crítica como ponto crucial de reflexão. Infelizmente, não havia a real intenção

de considerar o sujeito como importante no processo ensino- aprendizagem, pois no ano de

1979, o Brasil estava passando pelo processo de industrialização, sendo de suma importância

que a população, que até então habitava no campo, viesse para as cidades para trabalharem

nas fábricas. O governo incentiva o êxodo rural, provocando a forte imigração rural-urbana.

Houve o fortalecimento do modelo industrial-urbano. Visavam trabalho em diversos setores:

indústria, comércio, transporte, comunicação.

Usavam da funcionalidade e aceleração. Os objetivos e conteúdo dos materiais

pedagógicos eram de responsabilidade do Mobral/Central; os professores só seguiam

“ordens”, o que se discutia em aula era somente o processo de realização das atividades

propostas.

Santos (2014) destaca: tentava copiar uma metodologia de Paulo Freire, mas não

alcançava nenhum dos objetivos do educador. Paulo Freire: propunha a “educação como

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prática da liberdade”. Mobral: sujeito recebe a informação e desempenha corretamente seu

papel na sociedade.

“… como o processo que auxilia o homem a explicitar suas capacidades,

desenvolvendo-se como pessoa que se relaciona com os outros e com o

meio, adquirindo condições de assumir sua responsabilidade como agente

e seu direito como beneficiário do desenvolvimento econômico, social e

cultural” (JANNUZZI, 1979 apud BRASIL, 2005, p. 04)

Sua preocupação era somente fazer com que seus alunos aprendessem a ler e

escrever, sem uma preocupação maior com a formação do homem.

O Mobral passou a desenvolver junto aos seus objetivos dois programas básicos que

atendem à população de adolescentes e adultos: o Programa de Alfabetização Funcional

(PAF) - duração de 5 meses, 2 horas semanais – de alunos alfabetizados, e o Programa de

Educação Integrada (PEI) – continuação dos estudos. Além desses programas básicos,

existiam os complementares: Mobral Cultural, Programa de Educação Comunitária para a

Saúde, Programa Diversificado de Ação Comunitária e Programa de Autodidatismo. Todos

para dar continuidade aos estudos e estimular a procura do conhecimento.

Não se discute o alcance e a popularidade do Movimento, obtidos com essa

diversificação. Mas, com isso, o Mobral passou a ser descaracterizado, não consolidando seu

objetivo:

Uma das causas do fracasso do MOBRAL no seu trabalho de alfabetização

do jovem e do adulto brasileiros está relacionada aos recursos humanos: o

despreparo dos monitores a quem era entregue a tarefa de alfabetizar.

Tratava-se de pessoas não capacitadas para o trabalho em educação, que

recebiam um “cursinho” de treinamento de como aplicar o material

didático fornecido pelo MOBRAL e ensinavam apenas a mecânica da

escrita e da leitura, portanto, não alfabetizaram (SAUNER, 2002, apud

SANTOS, 2014, p.310).

No ano de 1980, iniciou-se a abertura política no Brasil e outras experiências mais

democráticas em EJA. O Mobral foi extinto no ano 1985, e essas experiências educativas

direcionadas aos grupos populares da sociedade continuaram tornando-se mais fortes e

voltando lentamente para a filosofia de Paulo Freire.

A promoção da educação de jovens e adultos é fundamentada no princípio da

universalização do acesso à educação e da atenção à diversidade, requerendo uma filosofia

de educação de qualidade para todos. Na busca deste pressuposto, é essencial o

desenvolvimento de uma pedagogia centrada no jovem adulto que está buscando o

conhecimento.

Considerações finais

É de suma importância entender o processo de manobra que ocorreu durante o regime

militar, para que, hoje, adultos que estão buscando acesso ao conhecimento não sejam usados

para fins de disseminação de uma ideologia dominante, sem levar o sujeito à reflexão crítica.

O movimento pela educação de adultos se constitui numa postura ativa de

identificação das barreiras que alguns grupos minoritários segregados encontram no acesso

a recursos necessários para ultrapassá-las, consolidando a construção de uma educação

voltada a todos, independentemente da faixa etária. Dessa forma, promove a necessária

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transformação de alternativas pedagógicas com vistas ao desenvolvimento de uma educação

para todos nas escolas.

A escolarização de jovens e adultos já passou por várias mudanças significativas no

Brasil; também vários programas foram lançados com nomenclaturas diferentes, a fim de

erradicar o analfabetismo no Brasil, ou amenizá-lo.

O atual teve início em 2003, chama-se Brasil Alfabetizado, lançado no mandato do

presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que também continua com o propósito de erradicar o

analfabetismo.

Portanto, percebe-se que a educação popular dialogou criticamente com a tradição,

porque se referiu, sobretudo, no universo cultural dos educandos e questionou a valorização

diferencial do conhecimento científico frente aos saberes construídos nas práticas de trabalho

e convivência no meio popular. No entanto, durante o regime militar, as especificidades do

adulto não foram levadas em consideração. Por isso, a necessidade de uma reflexão crítica a

fim de que novos equívocos não sejam cometidos.

Referências bibliográficas

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Disponível em:

<http://www.ucb.br/sites/100/103/TCC/12005/CristianeCostaBrasil.pdf>. Acesso em

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 21ª

edição. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002.

SANTOS, Leide Rodrigues dos. Mobral: a representação ideológica do regime militar nas

entrelinhas da alfabetização de adultos. Ano V, nº 10, dezembro/2014.

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FOCALIZAÇÃO OU UNIVERSALIZAÇÃO: AS AÇÕES DO ESTADO

Felipe José de Moraes Neto1

Resumo: O presente texto tem por finalidade analisar os argumentos em torno das políticas

focalizadas e das políticas universais, buscando, portanto, como pano de fundo compreender

a noção de Estado segundo suas ações. Primeiro, será necessário visualizar alguns conceitos

introdutórios presentes no cerne desta discussão, tal como a distinção entre política pública,

política social e justiça social. Segundo, analisar temas, tal como: a eficiência social versus

natureza ética, a desigualdade de tratamento aos mais necessitados, a afronta e menosprezo

aos direitos sociais, a falta de recurso do Estado e a “armadilha da pobreza”.

Palavras-chave: Estado; Políticas Públicas; Políticas Sociais; Universalização; Focalização.

Introdução

Os apontamentos teóricos sobre um dos dilemas atuais das políticas públicas,

principalmente no que diz respeito à redução das desigualdades e do desenvolvimento social,

gira em torno da defesa das Políticas Focalizadas ou das Políticas Universais. Estes conceitos

são os alicerces das políticas sociais, cujas ações são orientadas por uma concepção de

justiça. Diante disto, a reconstrução desta discussão será aqui, guiada como pano de fundo

sob qual concepção de “Estado” está presente.

Observa-se que para analisar os argumentos prós e contras as políticas focalizadas

ou universais faz-se necessário visualizar alguns conceitos presentes no interior desta

problemática, a saber, políticas públicas, políticas sociais e justiça social. O conceito de

justiça social será apresentado de dois modos, segundo uma “Justiça de Mercado”, com uma

visão distributiva; e uma “Justiça de Estado”, pautada sobre os princípios éticos.

Plano conceitual: políticas sociais, políticas públicas e justiça social

À primeira vista, tende-se a afirmar que as políticas universais buscam que todos,

naturalmente, se assegurem dos direitos sociais, enquanto as políticas focalizadas operam

segundo noções residuais de justiça, com recursos concentrados a uma minoria em

desvantagem (KERSTENETZKY, 2006). Porém, esta análise poderia ser considerada como

armadilha e levar a conclusão de que estas são métodos alternativos à redução da

desigualdade. Para evitar tal problemática, faz-se necessário tomar a noção de ‘justiça social’

como ponto fundamental desta discussão. Destarte, ainda, que neste trabalho será tomado

como fundamento teórico autores brasileiros, tal como: Celia Lessa Kerstenetzky (2006),

Potyara Pereira (2003), Rosa Helena Stein (2004), que dentre outros, serão visitados no

decorrer desta apresentação.

O conceito de justiça social está entrelaçado a dois outros conceitos, a saber, de

políticas públicas e de políticas sociais. As políticas públicas existem porque há uma

necessidade básica a ser satisfeita e, “o governo escolhe fazer ou não fazer” (SOUZA, 2006,

p.24.). Costuma-se dizer, que é o “Estado em ação”, seja por meio de programas e ou de

1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFGD, turma 2015. Graduado em Filosofia pela

Faculdade Palotina/RS. Professor da Rede Estadual de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul. Para

contato e possíveis fomentações teóricas o endereço eletrônico: <[email protected]>.

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projetos de implementação ou manutenção, voltados para setores específicos da sociedade.

É como um conjunto de decisões e ações de instituições provindas do acervo organizacional

estatal, que visam organizar a sociedade em conjunto, ressaltando, portanto, a alocação

imperativa dos valores, compreendidos como de responsabilidade do Estado (HÖFLING,

2001).

Já, no que diz respeito à política social, afirma-se que esta seria um dos componentes,

ou uma das consequências das políticas públicas (JOHNSON, 2011). A política social é uma

forma de interferência do Estado, que visa à manutenção das relações sociais de determinado

modo, sejam usualmente entendidas como as de educação, saúde, previdência, habitação,

saneamento básico, entre outras.

Entende-se por justiça social “como redistribuição de oportunidades de realização,

incluindo ainda que limitadamente, renda e riqueza” (KERSTENETZKY, 2006, p.567), cujo

tem por base, dois parâmetros, a saber, o Estado e o Mercado.

A “Justiça de Mercado”, analogamente referida como justiça distributiva, apresenta

por característica o Mercado como o responsável por distribuir as vantagens econômicas. E

ao Estado, cabe a função de formular e zelar as leis de ordem necessária para o

funcionamento. Considera-se assim, que própria economia se beneficia das desigualdades.

Mesmo que parecendo um argumento contraditório, o Mercado acabaria por favorecer aos

pobres, pois a remuneração desigual funcionaria como incentivo ao trabalho2. A ‘Justiça de

Mercado’ gera o conceito “mercadocentrico”, ou seja, é o Mercado quem dita as regras de

ordem econômica e apropria-se automaticamente da responsabilidade das ações de

desenvolvimento social dos indivíduos (KERSTENETZKY, 2006).

Em contrapartida, a ‘Justiça de Estado’ cujo é proferida como uma justiça

redistributiva, apresenta por característica a intervenção do Estado com a justificativa de que

o Mercado está privilegiando alguns, e favorecendo a desigualdade. Fica conhecido assim,

como uma visão “estadocentrica”, pois: “Confere ao Estado a atribuição de prover uma rede

subsidiária de proteção social (renda mínima, seguro desemprego, imposto de renda

negativo, são algumas de suas variantes), uma espécie de seguro social contra a incerteza”

(KERSTENETZKY, 2006, p.566).

Porém, há outra terminologia utilizada por Kerstenetzky (2006, p.573) “quanto a

princípios genéricos de justiça, que se refere às opções residualismo, como na noção fina de

justiça, ou redistribuição/reparação, como na noção espessa”. Diante do exposto, uma

justiça fina refere-se a uma de “Justiça de Mercado”, que está relacionada, primeiramente

com a ação do mercado de caráter residual, cuja finalidade é a eficiência. Já, a noção espessa

relaciona-se como uma “Justiça de Estado”, que visa ser redistributiva ou de reparação, cuja

finalidade é a equidade.

Focalização: análise conceitual e aspectos teóricos pós e contras

A discussão em entorno das políticas sociais se focalizada ou se universalizada,

mostram diretamente quais as definições de prioridades defendidas pelo Estado (justiça

social), ou seja, seu objeto de ação. A política social seletiva, focalizada ou de prioridade,

tem por característica atender um público específico, em situação de desigualdade ou

desvantagem social, territorial, demográficas, entre outras. A opção pela focalização, por sua

2 Destarte, que esta concepção, é fortemente influenciada por uma visão liberalista de Estado, que maximiza a

liberdade de escolha do indivíduo e as vantagens econômicas, segundo o mérito ou responsabilidade individual.

No que diz respeito à adoção da defesa da concepção liberalista, ver: KERSTENETZKY, 2006, p.566;

JOHNSON, 2011, p.182.

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vez, objetiva garantir serviços de boa qualidade e reduzir o nível de pobreza, por meio de

políticas emergenciais, programas de transferência de renda e ações residuais provisórias ou

temporárias.

As ações das políticas focalizadas são nitidamente pensadas e defendidas por

governos neoliberais3, os quais adotam a postura de que só será possível haver distribuição

de renda se, reduzir a pobreza e estimular o crescimento econômico. Estes governos partem

do princípio que os recursos disponíveis são sempre escassos, e tornar o Estado como agente

redistributivo, levaria a uma igualdade econômica e geraria uma ineficiência econômica,

dado que, cada indivíduo é responsável pela própria manutenção.

Estas estratégias de atendimento residual estão pautadas nas diretrizes

estabelecidas pelos organismos multilaterais como Banco Mundial,

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Banco

Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Fundo Monetário

Internacional (FMI) (SCHEEFFER e JOHNSON, 2008, p.10)4.

Segundo Moreno (2009), as ações pretendidas por este grupo são mais específicas,

tal como: permitir o funcionamento do Mercado; liberar a economia; fortalecer o

intercâmbio de bens e serviços; privatizar empresas estatais e serviços públicos; e,

desregulamentar as proteções sociais. Sobre estes aspectos fica visível a presença de uma

‘justiça fina’, pautada sobre um princípio de eficiência ditado pelo Mercado, a qual teria a

responsabilidade de distribuir as vantagens econômicas, objetivadas no bem da sociedade e,

também, em benefícios próprios.

Em síntese, Kerstenetzky (2006), menciona que o objetivo da política focalizada

pode ser: residual, condicional ou reparatório. A política focalizada “residual”, está

intimamente ligada como forma de oferta de serviço, orienta por uma noção

“mercadocentrica” de justiça, que visa apenas o atendimento provisório, como uma forma

de seguro contra problemas fortuitos (KERSTENETZKY, 2006, p.569). Já, no aspecto

“condicionante”, é voltado para utilização adequada e eficiente dos recursos públicos, com

o objetivo de garantir o acesso às áreas carentes por meios pré-requisitos necessários e

obrigatórios. E, por fim, “a ação reparatória ou redistributiva”, que visa garantir a igualdade

de direitos sociais, como uma complementação das políticas universais (KERSTENETZKY,

2006).

Potyara Pereira (2003), no texto Porque também sou contra a focalização das

políticas sociais, argumenta que o princípio da universalidade é o que melhor contempla e

exige a relação entre políticas públicas e direitos sociais, sem descartar naturalmente os

direitos individuais (civis e políticos). Uma razão histórica fundamental para a adoção desse

princípio foi o objetivo democrático de não discriminar cidadãos no seu acesso a bens e

serviços que, por serem públicos, são indivisíveis e devem estar à disposição de todos. Não

discriminar, na perspectiva desse princípio, significa não estabelecer critérios desiguais de

elegibilidade, que humilhem, envergonhem, estigmatizem e rebaixem o status de cidadania

de quem precisa de proteção social pública (MORENO, 2009, p.79).

3 “A concepção neoliberal de Estado, em franco apogeu, convocava a sociedade civil a compartilhar

responsabilidades pela questão social. Enquanto a perspectiva liberal vislumbrava a possibilidade de uma

Reforma Gerencial do Estado” (JOHNSON, 2006, 196). 4 Ver também: VIANNA JR., Aurélio. A luta da rede Brasil pela transparência do governo brasileiro, Banco

Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento em relação às estratégicas para o Brasil. In Barros,

Flávia (org.). As estratégias dos Bancos Multilaterais para o Brasil (2000-2003). Brasília. Rede Brasil, 2001.

Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/media/2003/07/258973.pdf>, acesso em: maio de 2014.

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Associado à prevenção prevista no princípio da universalidade, o conceito de direitos

sociais se impôs como antídoto a toda sorte de agressões e constrangimentos aos pobres no

processo de satisfação de suas necessidades básicas e como arma de luta coletiva por

melhores condições de vida e de cidadania. Fazendo parte dos mecanismos de controle das

políticas focalizadas estão vícios arcaicos e anacrônicos, como os constrangedores e

vexatórios testes de meios (comprovação de pobreza) e a fraudemania (mania de fraude em

relação aos pobres) (MORENO, 2009).

Por fim, observa-se que a política focalizada traz à tona o termo de “clientelismo”,

como uma forma de apoio político das classes baixas, na mediada em que a assistência

oferecida, não é reconhecida como um direito do cidadão, mas sim como um favor do

governo em questão, pois são medidas de um governo e não de Estado, ponto que faz nutrir

a população uma insegurança quanto à continuação e complementação desta política

(MORENO, 2009).

Políticas Universais: a eficiência social e a natureza ética

Os defensores das políticas universais partem do argumento que as perspectivas

neoliberais são incapazes de preservar as políticas sociais segundo a concepção do Estado

de Bem-Estar Social. Dado que a visão neoliberal limita o debate da redução da pobreza ao

tecnicismo, às escolhas públicas eficientes, à diminuição de gastos sociais, e opta por um

desenvolvimento estratégico que conduz as intervenções das políticas sociais aos ajustes

econômicos (MORENO, 2009).

Por política universal entende-se aquelas ações do Estado de modo abrangente, dado

por um acesso sem exclusões condicionais, que garanta concretizar materialmente os direitos

fundamentais. Kerstenetzky (2006) menciona que neste tipo de política, estão presentes

argumentos tantos de eficiência social quanto de natureza ética. As questões éticas estão

ligadas ao atendimento de todos sem causar prejuízos a ninguém. Já no caso da eficiência

social, a política de garantia de direito não tem distinção de seu público e, relaciona-se

teoricamente, com uma concepção de justiça redistributiva.

Destaca-se, ainda, que a política universal contém um caráter de prevenção e não

apenas de correção. Entretanto, ao buscar o foco da problemática e, tratando-a assim, de

modo abrangente e igualitário, os resultados podem ser atingidos em longo prazo. Observa-

se, assim, que não há um caráter provisório e valem sempre por ser de natureza constitucional

(KERSTENETZKY, 2006).

Como interventor da redistribuição das vantagens econômicas e sociais, o Estado

busca equilibrar as desigualdades naturais e as desvantagens artificiais criadas, ou

fortalecidas, pelo capitalismo. O Mercado não objetiva ou pretende agir em função das

desigualdades, “justamente por ter interesses inconciliáveis com o oferecimento de bem-

estar à população” (MORENO, 2009, p.74), que é, a saber, a pré-disposição de acumulo de

riquezas. Diferente das políticas focalizadas, as políticas universais, não exigem a chamada

“armadilha da pobreza”, sendo que o indivíduo não necessita permanecer na linha da pobreza

para manter-se no programa (TRIVELINO, 2006). Pois, o Estado por meio das políticas

sociais deve abranger sem exclusão, todos os cidadãos, garantindo assim, a socialização e a

democratização de bens e serviços.

Defender as políticas universais se torna fácil quando tomados de antemão, os

argumentos de eficiência social e de natureza ética, ademais cabe lembrar que existem alguns

pontos atenuantes que inviabilizam esta proposta, tal como a escassez de recursos, as

promoções individuais, e o incômodo ético do benefício.

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O argumento primeiro contra a política universal é a escassez de recurso. Sendo que,

“O público-alvo dos programas universais geralmente é muito extenso, o que pode

representar uma sobrecarga para os orçamentos dos programas sociais” (MEDEIROS,

DINIZ e SQUINCA, 2006, p.7). Certamente, se os recursos fossem suficientes, poucos

discordariam dos princípios universais, do acesso e do uso ilimitado.

Os defensores das políticas focalizadas criticam as políticas universais sobre o

argumento de atender a quem não precisa, reforçando o “efeito Mateus”5. Dado que, ao

buscar o foco correto dos problemas, corre-se o risco de ter uma ação de incondicionalidade,

“como quando se atinge melhor os mais necessitados estendendo-se um benefício a todos

dentro de um determinado território, e não apenas aos mais necessitados”

(KERSTENETZKY, 2006, p.570). Neste caso, não resolveria apenas encontrar o foco do

problema com uma ação universal, sem criar mecanismos burocráticos de fiscalização, e

ainda levaria a novos gastos indevidos.

Um último caso, a considerar sobre as críticas é o fator da consciência ética do sujeito

beneficiado. Em alguns casos, este sentirá vergonha ao receber o benefício, pois será

considerado “vagabundo” por não ter trabalho e depender exclusivamente do Estado. E é por

esta razão que alguns programas oferecem um subsídio pequeno, para que não causem o

efeito da “armadilha da pobreza” (o desemprego). “Afinal o custo de estar no programa é

muito grande em relação ao benefício de estar trabalhando, ele ganhará mais trabalhando do

que estando no programa, ainda que esse trabalho seja precário e incerto” (MORENO, 2009,

p.87).

Considerações finais

Longe de buscar finalizar as discussões da dicotomia encontrada nas políticas sociais,

a saber, sobre as políticas universais e políticas focalizadas, o enfoque do presente trabalho

foi construir os argumentos prós e contras a estas ações políticas do Estado. Diante do

exposto, as políticas públicas e as políticas sociais, foram observadas como a resposta do

Estado às necessidades apresentadas pela sociedade, segundo programas ou projetos de

manutenção ou implementação, seja de modo focalizado ou universal.

Em defesa das políticas focalizadas, argumenta-se que elas têm por característica

atender um público específico, em situação de desigualdade ou desvantagem social. Objetiva

garantir serviços de boa qualidade e reduzir o nível de pobreza, por meio de políticas

emergenciais, programas de transferência de renda. De outro modo, os defensores das

políticas universais usam como argumento que as ações do Estado devem ser de modo

abrangente, por um acesso sem exclusões condicionais e como garantia dos direitos

fundamentais, segundo uma natureza ética e uma eficiência social. Contudo, tais

apontamentos não devem ser fechados sobre tais prismas, necessitando, portanto, de novas

pesquisas e orientações, quiçá, até mesmo da junção da eficiência econômica com a natureza

ética, segundo uma noção de “justiça social”.

5 Este termo é utilizado por Luís Moreno, na obra Ciudadanos Precários: La ultima red de proteção social,

referindo-se a passagem do evangelho de Mateus: “Pois a todo aquele que tem será dado ainda mais, e ficará

em abundância; mas, daquele que nada tem será tirado até mesmo aquilo que tem” (apud, MORENO, 2009,

p.64).

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universalização. In: FAISTING, André Luiz; FARIAS, Marisa de Fátima Lomba de (Orgs).

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Pós-Graduação em política social – Mestrado em Política Social. Brasília, 2006.

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NOMEANDO OS BOIS: O QUE É O CHAMADO SERTANEJO

UNIVERSITÁRIO?1

Gabriel Barbosa Rossi da Silva2

Resumo: O objetivo desse artigo é apresentar algumas questões que possibilitem uma

análise da música sertaneja como gênero musical da qual faz parte. A partir do século XXI

essa música é dirigida a um público jovem e considerando a dimensão que esse setor ganhou

a partir de finais do século XX com nomes como “Leandro e Leonardo”, “Zezé di Camargo

e Luciano”, tentaremos identificar o que difere para o ouvinte esse Sertanejo do “século

passado” do sertanejo atual. O que caracteriza esse “Sertanejo Universitário”? Qual a gênese

dessa música? Quem são seus principais interpretes? Como o público a reconhece?

Discutiremos também como a música sertaneja pode ter um caráter dialógico, que como

afirma Allan Paula de Oliveira, é um “conjunto estável de enunciados”, enunciados que,

segundo Barthes, são muito que uma mera soma de frases. Essa música seria formada por

um público heterogêneo, que sabe reconhece-la em determinados enunciados, cada um de

acordo com o grau de envolvimento do ouvinte. Todas essas questões possibilitarão um o

debate sobre como esse gênero musical, evoluiu de algo considerado “inferior” dentro da

cultura brasileira, para o que está a mais tempo e com mais músicas nas paradas de sucesso

do Brasil.

Palavras-chave: Música Sertaneja; Sertanejo Universitário; Música Caipira

A música, sobretudo a chamada “música popular”, ocupa no Brasil um

lugar privilegiado na história sociocultural, lugar de mediações, fusões,

encontros de diversas etnias, classes e regiões que formam o nosso grande

mosaico nacional. Além disso, a música tem sido, ao menos em boa parte

do século XX, a tradutora dos nossos dilemas nacionais e veículo de nossas

utopias sociais (NAPOLITANO, 2002, p. 07).

Para essa análise, é necessário compreender esse estilo musical dentro das várias

manifestações e contextos dentro de sua época, algo que pode ser chamado de “cena

musical”3, na qual ele esteve e está inserido hoje.

Durante praticamente todo século XX, a música sertaneja é vista como de mau gosto

por uma parcela significativa da população urbana. Sempre tentando classificá-la como parte

de uma cultura que não era considerada erudita, justamente por fazer parte da vida no campo

e não da cultura urbana ou “civilizada”.

Principalmente depois da década de 1970, surgem as primeiras conceituações sobre

a música sertaneja. A partir desse período há uma divisão entre caipiras e sertanejos,

distinção que é mediada por uma classe média letrada e uma formação de sociólogos que

estudam essa música com um viés crítico. A corrente marxista que tentava preponderar uma

1 Essa análise é o resultado parcial da pesquisa sobre a música Sertaneja Universitária. Em desenvolvimento

pelo Programa de Pós-Graduação da UNIOESTE e financiado pela Fundação Araucária. Orientado pela Profª.

Drª. Geni Rosa Duarte. 2 Mestrando em História pela UNIOESTE. E-mail: <[email protected]> 3 Ideia utilizada por José Roberto Zan para conceituar o processo de incorporação de determinadas

características de um estilo musical em determinada época por consequência de fatores históricos desse período

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análise baseada na ideia de que essa música era alienante, acaba servindo como objeto

legitimador ao preconceito contra esse segmento musical.

Apesar dos exageros, fato é que a crítica à música sertaneja se espalhou

pela intelectualidade de classe média, servindo à esquerda e à direita na

distinção em relação à “corrompida” arte musical rural. Tratada como

“sequela sonora de males maiores” a música sertaneja não era analisada

“em si”. Quando os sociólogos uspianos analisavam as obras sertanejas

buscavam encontrar um espelho das condições “objetivas”; desejava-se ver

uma arte que refletisse o real massacrante vivido pela classe operária e

camponesa. Como não o encontravam, tachavam este músico de

“alienado” (ALONSO, 2011, p. 173).

Popularmente conhecida de tal forma, a música sertaneja, tem características

baseadas na vida do trabalhador rural e no “universo” do campo. Pode-se considerá-la como

uma utopia do sitiante, ou seja, quando composta e cantada ela não representava de fato uma

realidade existente, mas sonhos e querências, que por sua vez refletiam uma identidade

construída com a vivência no campo e que assim, quando cantada, criava então a face desse

segmento.

Nos últimos 60 anos, a música sertaneja se dividiu em três etapas, que foram da

década de 1950 até 1970, de 1970 até 1990 e por fim de 2000 até o presente momento. A

priori, destacam-se os chamados “lavradores de tradição” que se mantiveram firmes quanto

à linguagem e quanto aos temas das composições, caso de Tonico e Tinoco.

A partir de 1970, esses representantes do “sertanejo moderno” aderiram ao estilo do

cancioneiro da primeira metade do século XX. Em plena ditadura militar, as canções que

tinham ufanismos ao país e ao campo acatavam um nacionalismo exacerbado, tentando

representar por definição a cultura brasileira como a cultura do sertanejo e contrastavam com

as limitações impostas pela modernidade que os mesmos cantavam. Exemplos de artistas

que se destacaram nessa fase são Chitãozinho e Xororó, dupla que se encontra no mercado

até hoje.

Na década de 1990, “estouram os sucessos” que vinham surgindo provenientes dessa

divisão da música entre caipiras e sertanejos, dando origem agora a duplas que cantam

apenas o cotidiano das cidades e mesmo quando cantam sobre o campo fazem alusão ao que

a modernidade trouxe para esse ambiente. Dos precursores desse movimento podemos citar

Zezé di Camargo e Luciano e Leandro e Leonardo

O sucesso da música sertaneja, na década de 1990, é o fator mais característico da

formação de seu sucessor nesse campo da indústria fonográfica; o sertanejo universitário.

A fase da música sertaneja que atualmente é chamada de “universitária” começa a se

destacar a partir dos anos 2000, dentro de um mercado menor de regiões interioranas,

principalmente do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná.

O sertanejo universitário é marcado por elementos comuns à música sertaneja do

século XX. A música que antes falava da vida no campo, se adaptou a sua cena musical e

passou a falar da vida na cidade, de seus amores, sonhos e ilusões. Diferentemente da música

sertaneja e da música raiz; o sertanejo universitário, na maioria de suas canções, mantém um

discurso particular, em que há um narrador que conta seu “causo” de amor, fama, riqueza,

entre outros temas que norteiam a sociedade de consumo moderna. Seu principal elemento

é, sem dúvida a influência da internet, que transformou os rumos da indústria fonográfica.

Até o final do século XX um artista precisava das gravadoras e um incentivo gigantesco em

rádios para que fizesse sucesso nacional, paradoxalmente, a internet no começo do século

XXI, possibilitou que artistas fizessem sucesso internacional, antes mesmo de serem

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amplamente conhecidos nas rádios do Brasil. Isso tornou as gravadoras, de certa forma,

obsoletas, restando a elas apenas a fase final de distribuição dos discos, e dando aspecto

independente as produtoras, que ficaram encarregadas de lançarem esses artistas no mercado

nacional.

Objetivo

Em 2002 a dupla “João Bosco e Vinicius” lança seu primeiro CD. Esse CD é uma

produção “não oficial”, gravada em um bar da região de Coxim-MS, pequena cidade no mato

grosso do Sul, de onde a dupla começou seus trabalhos. Com uma qualidade

espetacularmente ruim. Graças ao sucesso desse disco, essa dupla é considerada por alguns

nomes do segmento como os precursores do movimento “universitário”.

Tal disco é considerado a gênese do movimento universitário, por ter conseguido se

sobressair dentro de um pequeno mercado regional e que teve capacidade de espalhar o nome

da dupla, bem como, consolidá-los praticamente como os primeiros do sertanejo

“universitário”. Segundo Dudu Borges, produtor musical de Bruno e Marrone, Bruninho e

Davi, João Bosco e Vinicius, Cristiano Araújo, entre tantos outros: “Os universitários, como

se diziam, não tinham uma qualidade muito boa de gravação”.

Ao que concorda Bruninho, da dupla Bruninho e Davi:

Eles foram fazendo aquilo que eles acreditavam, eu vi um comecinho, um

CD que era ruim demais, era ruim demais. Eu trabalhava num camelô de

um amigo meu no final do ano vendendo CD pirata na época e toda minha

grana que eu ganhava eu comprava CD do João Bosco e Vinícius pra

revender, por que na época vendia muito4.

Toda essa repercussão e ascensão da música sertaneja nos anos 2000 é extremamente

relacionada com o surgimento das redes sociais e a expansão da internet como fonte de

pirataria. Depois da indústria do disco, a internet possibilitou a pirataria de uma forma jamais

vista. Sites como o YouTube5 são uma ferramenta de propagação das músicas em larga

escala, graças a formação da mídia digital6. No fim da década de 1990, por exemplo, uma

música deveria ser compactada para que coubesse em três disquetes. Os CDs7 surgiram com

seus 700 megabytes e 80 minutos de duração, tirando de circulação os LP’s e as fitas K7s8.

Esse é outro ponto que alterou o panorama da música. Artistas que levavam anos

para fazer sucesso agora faziam em meses, e mesmo que as grandes gravadoras não os

aceitassem ou os conhecessem esses artistas tinham um público grande, principalmente no

interior. Ao mesmo tempo que essas ferramentas pirateavam elas divulgavam esses artistas,

o acesso da música ao público se tornou muito mais fácil e deu origem a cada vez mais

cantores com cada vez mais músicas.

4 Dudu Borges e Bruninho (Bruninho e Davi) em entrevista à página oficial do produtor Dudu Borges no

Facebook. Visto em: <https://www.facebook.com/duduborgesvip/videos/603688743068218/> 5 Site das corporações Google, caracterizado pelo armazenamento e reprodução de vídeos, e que podem ser

compartilhados por qualquer pessoa ou empresa. 6 Tipo específico de mídia onde os dados são armazenados em formato digital 7 Mídia física criada na década de 1990 que suporta até 80 minutos de música ou 700 megabytes de conteúdo

digital 8 Chamada popularmente de k7, o Compact Cassete é um formato de mídia física que surgiu em 1963 e usava

uma fita magnética que poderia ser gravada com conteúdo dos dois lados (A e B).

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Aqui então temos as duas principais características que norteiam essa fase da música

sertaneja: a divulgação com a pirataria e o público atingido por essa divulgação – e pirataria.

Esse mesmo público que recebia a divulgação, ajudava na mesma. Universitários das

pequenas cidades do interior de vários estados brasileiros, conheciam esses cantores quase

anônimos nas rádios e grandes centro urbanos. Segundo João Bosco e Vinicius, os

universitários das pequenas cidades do interior, principalmente de Mato Grosso do Sul,

saiam desses pequenos centros para estudarem nas capitais, e quando esses artistas iam tocar

nessas grandes cidades, a principal plateia eram esses mesmos universitários das cidades do

interior. Sendo assim, o fator a priori que denuncia a alcunha de “universitário” é o próprio

público que impulsionava esse pequeno mercado interiorano.

Abordar a música sertaneja como gênero musical significa observá-la

como um conjunto estável de enunciados, reconhecidos (e, portanto,

chancelados) por uma audiência específica. Esta audiência, seu público, é

formada por uma heterogeneidade de sujeitos que possuem uma

competência variável no reconhecimento destes enunciados. Isto equivale

dizer que uma exegese das formas e dos estilos dos enunciados típicos da

música sertaneja varia de acordo com o grau de envolvimento dos sujeitos

com o gênero, com sua posição no interior do campo social organizado em

torno destes enunciados (OLIVEIRA, 2009, p. 37).

Claro, existem divergências entre o que realmente significa o termo “universitário”.

Luan Santana em entrevista à Marília Gabriela não consegue explicar exatamente as

mudanças entre o sertanejo e o sertanejo universitário:

É porque é assim: a galera tem na cabeça uma coisa errada, que os

sertanejos são os antigos e o sertanejo universitário é a galera nova. [No]

sertanejo universitário as músicas são um pouco mais pra cima, um pouco

mais a batera na cara, um pouco mais a levada pop… Tem isso na nossa

música sim, mas eu acho que não tem sentido falar universitário9.

Casos como de Jorge e Mateus, Victor e Léo e César Menotti e Fabiano são exemplos

de discos que seguiram essa mesma ideia, baseada no mesmo público que compunham as

plateias desses shows, além da mesma forma de divulgação, com trabalhos independentes

anteriores e CDs entregues de graça nas cidades dias antes dos shows.

Ao contrário do Sertanejo pop, cuja produção e divulgação se dão através

dos circuitos das grandes gravadoras e dos meios de massa de grande

alcance, o repertório do Pós-caipira está ligado a pequenos selos

fonográficos e produções independentes, e a divulgação ocorre

principalmente em circuitos universitários (ZAN, 2009).

Sempre se fez necessária a atualização da linguagem em qualquer segmento de bens

de consumo, conforme a própria Indústria Cultural atualiza os perfis do consumidor na

medida em que a sociedade se atualiza tecnológica e socialmente. Isso força os compositores

e artistas a adequarem-se a essas novas normas do mercado cultural. Muitas vezes, os artistas

trazem suas considerações e influências para suas letras e composições harmônicas e

letristas, porém, as gravadoras também têm compositores próprios que obedecem a

especificações da demanda do mercado, e esse tipo de padrão estético escapa da mão do 9 Entrevista Luan Santana a Marília Gabriela, De frente com Gabi, SBT, 22/08/2010.

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artista, que acaba reproduzindo-o para a permanência de si mesmo dentro do mercado

fonográfico, que é o que acontece hoje com as duplas que se consagraram na década de 1990.

Assim como o sertanejo dos anos de 1980 e 1990 e até mesmo em suas fases

anteriores, o sertanejo universitário também precisou de uma canção que aglutinasse a

maioria das identificações musicais espalhadas por aquele segmento e os impulsione para

formar uma massa única desse segmento.

Em 2009, João Bosco e Vinicius lançam o hit “Chora, me liga”. Foi a porta de

abertura para os cantores da geração de Cristiano Araújo e os novos hibridismos da música.

Chora me liga alterou o modo de cantar o relacionamento no sertanejo universitário. Até

2009 as canções predominantemente faziam sucesso a partir de um amor romântico, otimista

e poético, que tinha raízes ainda no sertanejo feito por Zezé di Camargo e Luciano e Leandro

e Leonardo. Agora o que predomina na estética da música é uma rápida relação de amor

furtivo e otimista, dessa vez não no sentido romântico, mas relacionado a falta de culpa. Uma

espécie de “poética da farra”10.

Em julho de 2011, Michel Teló grava o hit “Ai se eu te pego”. Essa música conseguiu

levar a música a um nível internacional tão alto que artistas renomados da música sertaneja

não conseguiram. Caso de Zezé di Camargo e Luciano e Chitãozinho e Xororó. Até mesmo

uma versão em inglês de “Ai se eu te pego” chegou a ser produzida. O hit que levou Teló a

uma rápida fama internacional foi composta em forma de Funk pela compositora Sharon

Acioly. Gravada posteriormente em forma de Forró pelas bandas “Garota Safada” e

“Cangaia de Jegue”. Foi transformada por Teló em um breganejo solado por sanfona.

Atualmente a música sertaneja flerta com inúmeros estilos musicais e apresenta hibridismos

notáveis, porém todos eles são incorporados na alcunha de “universitário”.

A fase universitária marca as canções do segmento musical que surgiram nos anos

2000. Existem contradições entre os próprios representantes desse segmento sobre o que é

“sertanejo” e o que é “sertanejo universitário”, como no caso de Luan Santana.

Essa nova música (re)apropria a forma como o consumidor da canção sertaneja se

classifica dentro dela, para praticamente todo o contexto do meio urbano, porém, essa

imersão não é completa, graças a alcunha de música sertaneja, deixando a função estética da

música presa à raiz do gênero, por mais que as letras tratem de outros contextos, deixando

os três segmentos do mesmo gênero musical num diálogo entre si.

Portanto, na “era digital” as produtoras tiveram de se adequar. As vendagens

diminuíram graças à pirataria e a larga distribuição na internet e agora o investimento do

panorama sertanejo é no espetáculo, no show ao vivo, e que no caso do sertanejo

universitário se trata de mega eventos. Nesses espetáculos, as pessoas vestem-se iguais aos

cantores, e até representam os discursos de suas músicas, vestindo a identidade que a

Indústria Cultural está vendendo, cabendo aqui o que Baumann disse sobre a formação de

identidade, de como ela, principalmente, em espetáculos duram apenas o momento em que

o show começa até quando ele acaba: “são reunidas enquanto dura o espetáculo e

prontamente desfeitas quando os espectadores apanham os seus casacos no cabide”

(BAUMANN, 2005). Todas essas também são formas de divulgação, ou seja, as identidades

buscadas com os discursos e a própria produção da música, são auxiliadoras tanto na

manutenção do mercado fonográfico, que precisa desses shows para que haja lucro, perdido

pela pirataria, quanto na formação do estilo musical.

Existem sim diferenças entre as músicas cantadas a partir desse período para as

músicas dos anos 1990, assim como também existem diferenças entre as canções de 1990 e

10 Termo utilizado por Gustavo Alonso em Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira,

para designar a predominância de canções que falam do fim de relacionamentos de maneira positiva.

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1980 e assim sucessivamente. A fase universitária flerta com outros estilos sim, mas a fase

“romântica” cantada por Leandro e Leonardo e Zezé di Camargo e Luciano, também tiveram

seus flertes com o rock e o pop. A diferença mais clara aqui vem da alcunha de universitário,

termo recebido a partir da cena social onde se popularizaram a nova leva de cantores da

música sertaneja. Ou seja, a fase universitária da música sertaneja é o resultado da cena

musical da qual ela surgiu, com todos os seus fatores históricos e contextuais que puderam

dar um caráter globalizante à música rural brasileira.

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RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES DO OESTE PARANAENSE AO

PROJETO DE MODERNIZAÇÃO DO CAMPO BRASILEIRO DURANTE OS

ANOS DE 1968-1985

Hiolly Batista Januário de Souza1

Resumo: O trabalho aqui proposto tem por objetivo discutir as resistências e contestações

manifestadas pelos camponeses do oeste paranaense durante a ditadura civil-militar

brasileira, - entre os anos de 1968 a 1985. Temos como ponto de partida o programa de

modernização conservadora, nome dado ao desenvolvimento do capitalismo no campo

brasileiro na segunda metade do século XX, e que tinha como meta o aperfeiçoamento do

meio rural através de investimentos em maquinários modernos, em insumos e defensivos

advindos da evolução da indústria química, tendo por base o imperativo do mercado e o

lugar que o Brasil deveria ocupar dentro de sua proposta global. Nesse sentido,

argumentaremos que a implementação desse projeto no campo brasileiro não tinha interesse

em modificar as estruturas agrárias, fosse na região oeste do Paraná, fosse no país como um

todo. Não obstante, tentaremos também observar a atuação do Estado brasileiro na região

oeste do Paraná, enquanto o braço efetivador legal daquele projeto, se utilizando de forças

repressivas e do seu aparato judicial para executar a modernização no campo, bem como

para servir de amparo às suas bases, constituídas, em geral, por grandes corporações,

latifundiários e empresários.

Palavras-chave: camponeses; modernização do campo; ditadura civil-militar brasileira.

O trabalho aqui proposto tem por objetivo central, ainda que de forma introdutória,

observar a resistência dos trabalhadores rurais e camponeses da região oeste paranaense ao

projeto de modernização da agricultura estabelecido pelo Estado brasileiro durante fins da

década de 1960, passando pela década de 1970, e meados dos anos 1980. Por se tratar de um

breve artigo, nosso trabalho acaba por se limitar a alguns pontos, mas que acreditamos ser

necessário, ao menos, trazer tais questões à discussão.

Para nossa escrita utilizaremos os textos de Wenceslau Gonçalves Neto Estado e

Agricultura no Brasil: política agrícola e modernização econômica brasileira (1960-1980),

Sonia Regina de Mendonça Ruralistas e Burocratas: modernização e antirreforma agrária

na América Latina, Marta Cioccari Os trabalhadores rurais e o regime militar no Brasil e

Paulo Zarth Lutas camponesas no sul do Brasil: terra e saberes. Como fontes para este

trabalho nos valemos exclusivamente dos periódicos Informativo Copagril (Cooperativa

Agrícola Mista de Rondon), dos jornais A Semana, A Tribuna, O Paraná e CRAVIL, tendo

os mesmos um enfoque maior sobre a cidade de Marechal Cândido Rondon (PR), mas que

também davam espaço para acontecimentos de outras cidades da região oeste do Paraná.

Não há como falar de resistência ao processo de modernização da agricultura sem

antes situarmos o leitor no que foi essa modernização e a forma pela qual ela passa a ser

posta em prática enquanto política de Estado e, no nosso caso em específico, de um estado

ditatorial.

1 Discente do PPGH – UNIOESTE. Bolsista- técnica da UNIOESTE. E-mail: <[email protected]>.

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Modernização e desenvolvimento: fetiche do subdesenvolvimento

Segundo W. G. Neto (1997) e S. R. de Mendonça (2014) o projeto de modernização

da agricultura que foi executado no Brasil, e em outros países latino-americanos, ganha

força no pós-II Guerra Mundial, começando a ser instalado em nosso país ainda durante o

período do governo de Juscelino Kubitschek na década de 1950. Tal projeto era baseado no

discurso de desenvolvimento

como uma representação que não só moldou os caminhos pelos quais a

realidade era imaginada como também atuou fortemente junto a ela. […] o

discurso do desenvolvimento originou um eficiente aparato institucional

voltado para a produção de conhecimento e o exercício de poder junto ao

Terceiro Mundo (MENDONÇA, 2014, p. 137).

Com a difusão da noção de que era necessário desenvolver o Brasil, - a exemplo de

outros países que passaram a ser considerados subdesenvolvidos -, o Estado passou a buscar

novas formas de crescer economicamente. Nesse contexto passa a se observar o incremento

capitalista no campo brasileiro através de investimentos em indústrias químicas, de insumos,

defensivos agrícolas, maquinário. Observamos concretamente o exposto acima acerca das

assertivas de Mendonça no discurso feito pelo então Ministro da Agriculta, Alysson

Paulinelli, durante o II Simpósio Nacional da Soja, realizado pela Assembleia Legislativa do

Paraná, em outubro de 1977, segundo a fala do ministro temos que

Se uma lição devemos aprender, deve ser aquela de que houve confiança,

houve fé, houve participação e que aquela safra, então colhida [referindo-

se a safra de 1973], de sete milhões e quatrocentas ou quinhentas mil

toneladas, está se transformando na expressiva safra de mais de doze

milhões de toneladas em 1977. E mais do que isso – que este País

transformou a sua, digo, que este País demonstrou a sua capacidade de

crescer, de desenvolver, de aumentar a sua produção e a sua participação

nos mercados internacionais, mesmo em recessão, fato até então não

contatado na própria história, não só do Brasil, mas dos próprios países

subdesenvolvidos.

Hoje, somos reconhecidos como uma nova potência emergente, em termos

de produção de alimentos; e que a soja, pela sua exuberante participação

no processo produtivo brasileiro, se desponta pelo que ela significa de

inovação no processo produtivo deste País; o que ela significa de

capacidade competitiva de País subdesenvolvido com uma infraestrutura

débil; de País tropical, sofrendo todas as consequências das inconstâncias

climáticas, das adversidades de clima do País tropical.

[…]

É a própria evolução que todos nós desejamos, a que chamamos de

Desenvolvimento; - pois interpretamos que este Desenvolvimento nada

mais é do que uma sucessão de problemas a serem transpostos por aqueles

que decidem buscar as melhores condições de vida, a justiça social e

econômica, que todos nós queremos (INFORMATIVO COPAGRIL, 1977,

p. 02, grifos nossos).

Sonia R. de Mendonça trata da associação que passa a ser feita entre as pesquisas

que visavam o desenvolvimento técnico da agricultura, e o descolamento do Estado enquanto

um lugar de classe, que passa a ser visto imbuído de uma neutralidade legitimada, agora,

pela ciência e racionalidade (MENDONÇA, 2014, p. 136), buscando com isso a penetração

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de sua ideologia sem que fosse associado aos imperativos do mercado, mas aos resultados

obtidos nos laboratórios, através de experimentos imparciais, que buscavam o melhor para

a agropecuária, em nosso caso, no oeste do Paraná. Não nos faltam notícias que dão conta

dos estudos que foram feitos para justificarem o uso de suínos com carga genética específica,

de bovinos melhorados, da semente de milho modificada, do trigo desenvolvido pela

EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), etc. Nesse sentido trazemos

uma notícia denominada “Pesquisa na Soja” no ano de 1977, que alertava aos produtores

sobre as variedades da leguminosa e que as recomendações da EMBRAPA deveriam ser

seguidas:

Cada palmo de terra desbravada traz conhecimentos, novas exigências e

impõe novas técnicas.

[…]

É bem verdade que a mudança climática que está ocorrendo de ano para

ano cria muitas vezes novas épocas de plantio. Mas enquanto estas novas

épocas de plantio não forem confirmadas pelas pesquisas, o agricultor deve

aceitar as recomendações técnicas fornecidas pela EMBRAPA. Isto porém

não vem sendo obedecido por muitos agricultores, o que pode resultar num

fracasso futuro e inclusive excluir do direito ao PROAGRO.

Por exemplo a variedade Bragg é altamente sensível á temperatura do solo

e ao fotoperiodismo (horas de luz dia) razão pela qual se aconselha a

plantar somente no mês de novembro.

[…]

Para isto a pesquisa se preocupa em conhecer bem as novas variedades e o

seu comportamento […] (INFORMATIVO COPAGRIL, 1977, p. 06).

Ao campo, o desenvolvimento

O desenvolvimento das técnicas agrícolas passou a ter como ponto central o aumento

da produtividade através da incorporação de novas tecnologias. Mendonça trata com especial

atenção o trabalho desenvolvido pelos extensionistas rurais que “atuariam quer como pontas

de lança da penetração do capitalismo no campo, quer como instrumentos de disciplinamento

dos trabalhadores rurais, dificultando sua organização política e autônoma” (MENDONÇA,

2014, p. 136). Partindo dessa visão dos extensionistas rurais lançamos mão do conceito de

“violência cotidiana” utilizado por Marta Cioccara (2014) na qual as práticas reproduzidas

por aqueles auxiliavam no desmantelamento da capacidade de resistência dos trabalhadores

rurais e camponeses, onde enxergamos o extensionista rural como um membro de promoção

dessa violência, mesmo que camuflado sob um discurso de ajuda e de crescimento

econômico.

Segundo Paulo Zarth a efetivação do projeto modernizante da agricultura no Brasil

pela ditadura militar teve um impacto extremamente forte no campesinato brasileiro, que os

forçava a consumir novas tecnologias e a se endividarem através do crédito rural,

desconsiderando suas práticas e saberes (2014, p. 121). Corroborando com o exposto acima

temos, novamente, Sonia Mendonça afirmando que

as chamadas “velhas maneiras” de pensar sucumbiram ao desejo de

crescimento econômico ligado à fé, revitalizada pela ciência e a tecnologia,

redentoras da pobreza. À sombra deste viés humanitários, novas formas de

poder e controle, sutis e refinadas, seriam praticadas e, em contrapartida, a

habilidade dos “povos pobres” de definirem sua própria história seria

bastante erodida, sendo seus saberes totalmente desqualificados e

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transformando-se, eles próprios, em públicos-alvo de programas

sofisticados (MENDONÇA, 2014, p. 139).

Encontramos o pensamento expresso no trabalho de S. R. de Mendonça no Jornal

CRAVIL (julho/1986) onde as mudanças ocorridas no meio rural são exaltadas e mostradas

como desenvolvimento como no caso da notícia “Quem é o agricultor?”, na qual o jornal se

expressa da seguinte maneira:

É cada vez mais difícil encontrar o caipira tradicional no campo, por que o

agricultor mudou muito ultimamente, principalmente devido à evolução

dos meios de comunicação, como rádio e televisão. Hoje aceita-se que o

agricultor tem a sua própria dimensão histórica e da qual resulta tudo aquilo

que ele faz, aquilo que sente, o que vive, seus padrões com relação a tudo

que o cerca, seus valores próprios.

[…]

Recentes pesquisas realizadas por diversas entidades, como Associação

Brasileira de Marketing Rural, em conjunto com o Instituto Gallup,

constaram que 54 por cento dos agricultores tem televisão, 66 por cento

possui rádio, 84 por cento, geladeira, 90 por cento tem fogão a gás. E mais:

68 por cento dos agricultores brasileiros moram em casa própria, e 49 por

cento possui automóvel, 83 por cento consome refrigerantes, 90%

compram margarina, 95 por cento usa creme dental e 77 por cento usam

desodorantes. No entanto alguns hábitos foram mantidos: 92 por cento dos

agricultores costumam usar café em pó. Esses dados, embora não

representem um perfil exato do agricultor brasileiro, aproximam-se da

realidade média do setor rural (CRAVIL, 1986).

Consideramos a notícia acima um exemplo concreto das transformações sofridas

pelos trabalhadores do campo que tiveram que se adequar às mudanças como forma de

sobreviverem aos novos padrões. Mesmo que a notícia fale que o pequeno produtor tem sua

história, os colocam em consonância com o consumo urbano, que suas formas de viver agora

fazem parte de um passado, tendo o agricultor - termo utilizado pelo jornal - se modernizado.

Os trabalhadores rurais, o Oeste e a modernização

Para a consecução do texto devemos rememorar que nosso foco no que se refere às

fontes ficou centrado exclusivamente nos jornais Informativo Copagril, A Semana, O

Paraná, CRAVIL e A Tribuna, não nos estendemos por outros meios (fontes orais,

documentos de outras instituições, atas de sindicatos, etc.). Desde o início do mapeamento

de tais fontes pudemos perceber que as formas de resistência, se existiram, dos trabalhadores

e camponeses do oeste paranaense ao projeto de modernização a ser implantado no campo

da região, não seriam tão facilmente encontradas.

A fim de termos uma noção breve das 91 partes analisadas dos jornais apenas 4

davam conta das desapropriações ocorridas na região, sendo a maioria (03) se referindo às

famílias que sofreram com a criação do lago de Itaipu, e apenas um caso sobre expulsão de

famílias em uma fazenda na cidade de Santa Helena, caso de repercussão na região. Em

contrapartida temos dentro desses 91 documentos, 12 (doze) notícias que falam quase que

exclusivamente da implantação dos CAIs (Complexos Agroindustriais) e de como a chegada

de tais empreendimentos representam um avanço econômico para a região. Como exemplo

citaremos notícia do jornal A Semana, de 25/02/1983, sob o título “Parque Industrial gera

aumento de empregos”, ao tratar da ampliação do parque industrial da cidade de Marechal

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Cândido Rondon

num breve relato do secretário [Reuter], ficou claro que a viagem

empreendida àqueles estados [Santa Catarina e Rio Grande do Sul] foi

bastante proveitosa, pois há amplas possibilidades de novas indústrias

virem a se instalar em Marechal C. Rondon, aumentando em consequência,

ainda mais a oferta de empregos, fator que já sofreu sensível aumento com

a instalação das empresas naquele lugar (A SEMANA, 1983, p. 05).

Na mesma notícia o jornal divulga que estava se estudando a criação de um novo

parque industrial na mesma cidade acima citada e que “em meados deste ano [1983] deverá

ser liberada a área de 10 alqueires paulista, localizada em frente à Swift Armour S/A., nas

proximidades do trevo PR-239” (op. cit., 1983, p. 05), com isso o jornal não só divulga a

chegada de novas indústrias e empresas, como também a criação de um novo parque

industrial.

Levando em conta o que W. Benjamin chama de “escrever a história a contrapelo”

(LOWY, 2002, p. 203) levantamos algumas hipóteses que a leitura dos jornais acabou por

nos suscitar. Primeiro temos uma propagada noção de que a região oeste é composta por

majoritariamente pequenos proprietários rurais de acordo com os próprios periódicos2 locais,

no entanto se quase toda a população tem acesso a terra, por qual motivo as indústrias se

instalariam se toda a mão de obra trabalha em terras próprias? Será que a implantação da

mecanização foi tão passiva quanto nos apresenta os jornais? Será que os trabalhadores e

camponeses aceitavam tudo da forma como o governo e seus agentes propagandeavam que

deveria ser?

Seguindo essas indagações expomos dois trechos, um já citado anteriormente sobre

os trabalhadores que não seguiam as recomendações da EMBRAPA sobre o plantio da soja,

e outra notícia que, apesar de comunicar acerca de Itaipu, nos dá uma breve noção, se

levarmos em conta que os mesmos camponeses e trabalhadores rurais atingidos pela

modernização da agricultura também sofreram com a construção da hidrelétrica, de como o

Estado tratava essa camada da população e algumas reações daqueles que podem ser lidas

se os trechos forem analisados com um cuidado mais profundo:

Mas enquanto estas novas épocas de plantio não forem confirmadas pelas

pesquisas, o agricultor deve aceitar as recomendações técnicas fornecidas

pela EMBRAPA. Isto porém não vem sendo obedecido por muitos

agricultores, o que pode resultar num fracasso futuro e inclusive excluir

do direito ao PROAGRO (INFORMATIVO COPAGRIL, 1977, p.6, grifos

nossos). É evidente que, e os senhores são testemunhas disso, que entre 100 pessoas,

por mais que se faça, vão aparecer dois ou três descontentes, mas esses

são descontentes consigo mesmo, eles nunca estão satisfeitos com nada,

então não adianta. A preocupação de Itaipu não é contentar todo mundo,

porque isso é impossível, mas desde que ela contente a grande maioria, ou

seja, 90 e tantos por cento do reservatório, já é importante. Agora, um ou

outro pode discordar e pode achar que não foi indenizado como ele

esperava, mas é difícil contentar todo mundo. Isso é praticamente

impossível. Não existe no mundo uma pessoa que tenha contentado 100

pessoas juntas todas ao mesmo tempo (INFORMATIVO COPAGRIL,

1977, p. 6, grifos nossos).

2 Jornal O Paraná, s/d, p. 6-7.

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Ao lermos os jornais observamos que os trabalhadores e camponeses que ocupavam

as terras desses municípios, por assim dizer, “somem”. Em geral é dada uma nota de que

havia moradores no lugar, mas que saíram em nome do desenvolvimento, entretanto, quando

algumas situações chegavam a um nível preocupante mesmo para os entusiastas da

modernização e para a classe dominante que gerias esses periódicos, eram anunciadas

notícias como a que foi publicada pelo jornal A Tribuna, em junho de 1987, cujo título era

“Convulsão social no campo”:

Hoje, como nunca aconteceu na história deste país, aquele que vive da terra

a está perdendo, não por exaurir sua capacidade de produção, mas por não

possuir condições financeiras de cultivá-las.

As dívidas com os bancos se avolumaram de tal forma que dentro das

atuais condições, fica inviável qualquer tipo de tentativa de plantio que

implique em tomada de recurso financeiro por empréstimo.

[…]

Paulo Carneiro, presidente da Federação da Agricultura do Paraná, afirma

que cerca de 30 mil famílias de produtores rurais paranaenses, que

representam um contingente de aproximadamente 150 mil pessoas,

poderão perder suas terras e seus bens, caso o governo não tome medidas

urgentes para sanar os problemas financeiros vividos pelo setor (A

TRIBUNA, 1987, p. 06).

Assim temos que as leituras desses periódicos devem ser feitas com um rigor muito

maior que o aqui apresentado, mas que já nos dão um indicativo que o processo de

modernização do campo no oeste paranaense não foi tão tranquilo quanto nos aparece em

propagandas: uma região de pequenos proprietários que fazem parte de uma elite produtora

e familiarizada com o desenvolvimento econômico.

Considerações finais

Depreendemos do exposto acima que a modernização do campo apresentou

mudanças extremamente profundas nas bases sociais e nas regras de sociabilidade que

regiam a região oeste do Paraná, e do Brasil como um todo. A implantação de tal projeto

com investimento na área de pesquisas em biotecnologia, o desenvolvimento de uma

empresa voltada exclusivamente para estudos agropecuários (EMBRAPA), a disseminação

do extensionismo rural, entre outras medidas, nos dão mostra do longo caminho que ainda

devemos percorrer a fim de estudarmos, minimamente, aquele processo que hoje nos parece

tão naturalizado, o dos CAIs e o agronegócio.

A leitura nos jornais nos deixou com mais dúvidas que certezas, mas que foram

expostas, ainda que sucintamente, e que será por nós desenvolvida, em nossa dissertação a

ser apresentada ao PPGH-Unioeste.

Fontes

Informativo Copagril

Jornal A semana

Jornal A Tribuna.

Jornal CRAVIL

Jornal O Paraná.

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Referências bibliográficas

CIOCCARI, Marta. Os trabalhadores rurais e o regime militar no Brasil. In: MATTOS,

Marcelo Badaró, VEGA, Rubén. Trabalhadores e ditaduras: Brasil, Espanha e Portugal. Rio

de Janeiro: Consequência, 2014.

LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin. In: Estudos Avançados, n° 16,

2002.

MENDONÇA, Sonia Regina de. Ruralistas e burocratas: modernização e antirreforma

agrária na América Latina. In: GRACI, Graciela Bonassa, RIBEIRO, Vanderlei Vazelesk

(org.). Vozes da terra: proprietários rurais, camponeses e burocratas na América Latina. Rio

de Janeiro: Multifoco, 2014.

NETTO, Wenceslau Gonçalves. Estados e Agricultura no Brasil: política agrícola e

modernização econômica brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1997.

ZARTH, Paulo. Lutas camponesas no sul do Brasil: terra e saberes. In: SILVA, Carla

Luciana. CALIL, Gilberto Grassi. SILVA, Marcio Antônio Both da (org.). Ditaduras e

Democracias: estudos sobre poder hegemonia e regimes políticos no Brasil (1945-2014).

Porto Alegre: FCM Editora, 2014.

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TRABALHADORES E VILA ELETROSUL: PERCURSOS DA DESIGUALDADE

NO MODO DE VIVER E ENFRENTAR O ATENDIMENTO PÚBLICO DE SAÚDE

(GUAÍRA, 1980-2015)

Janaina Rodrigues dos Santos1

Resumo: O presente trabalho tem como ponto de partida identificar e discutir práticas e

sentidos construídos pelos trabalhadores que residem no bairro Vila Eletrosul, na cidade de

Guaíra- PR, particularmente, envolvendo o atendimento público de saúde e a ação desses

sujeitos na produção do seu modo de vida no bairro, em especial a partir do início da década

de 1980 quando a vila de operários foi incorporada ao conjunto de bairros da cidade. Nesse

sentido, fichas de acompanhamento familiar de assistente de saúde do Eletrosul, índices do

Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES) e entrevistas

realizadas com trabalhadores, permitirão nesse primeiro momento, identificar interpretações

e visibilidade de conflitos e valores que são “compartilhados e confrontados” quando esses

sujeitos se deparam com o atendimento do Sistema Público de Saúde e, também, com

alterações na sua dinâmica na cidade (relacionadas a trabalho, moradia, custo de vida etc.).

Ao fazer isso, interessa perceber, os campos de possibilidades produzidos por trabalhadores

que vivem, ou viveram, no Eletrosul percebendo os cuidados com a saúde como parte da

condição de classe que experimentam na cidade nas últimas décadas.

Palavras-chave: Trabalhadores; Cidade; Vila Eletrosul; Sistema Público de Saúde

O presente trabalho visa discutir práticas e sentidos construídos pelos trabalhadores

que residem no bairro Vila Eletrosul, na cidade de Guaíra- PR, particularmente, envolvendo

o atendimento público de saúde e a ação desses sujeitos na produção do seu modo de vida

no bairro, em especial a partir do início da década de 1980 quando a vila de operários foi

incorporada ao conjunto de bairros da cidade.

A vila está localizada há aproximadamente 7 km de distância em relação ao centro

de Guaíra, os trabalhadores que pertencem ao bairro caracterizam um universo de condições

de classe compartilhada, frente às dificuldades de renda, moradia dentre as próprias

limitações do bairro em transporte, atendimento médico etc. Em meio às muitas famílias que

residem na Vila, encontramos famílias paraguaias e indígenas, o que aponta a complexidade

de questões envolvendo empobrecimento e acesso à cidade.

As casas tanto para aluguel quanto para venda são mais baratas, indício da qualidade

das residências e o quanto o preço imobiliário no bairro diz sobre o seu lugar na dinâmica

de Guaíra, algo necessário para uma grande parcela de trabalhadores que vivem na cidade,

principalmente por um número significativo desses sujeitos conviverem com um fluxo

inconstante de empregos e rendas na cidade e no Paraguai, país fronteiriço à cidade.

No início da década de 1980 o crescimento da cidade devido às obras de Ilha Grande2

implicou em grandes consequências nos setores sociais ligados ao modo como os

trabalhadores viviam na cidade, ou seja, a forma como a prefeitura prometia dinamizar

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Estadual do Oeste do Paraná

(UNIOESTE), Campus de Marechal. Cândido Rondon. Bolsista CAPES. 2 Em torno de 16 municípios do Estado do Paraná perderam área para um quinto da capacidade de Itaipu, a

barragem de Ilha Grande representaria cerca de 35,7% de todas as áreas inundadas no estado.

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mudanças e possibilidades de trabalho influenciavam diretamente na chegada de mais

trabalhadores e trazia dificuldades nas condições que os trabalhadores enfrentavam para se

instalar, pois as alterações promovidas não respondiam às demandas e urgências:

Considerando que apenas 19,79% dos imóveis dispõem de rede de esgoto

e que entre eles somente 53,19% têm rede ligada, pode-se supor que na

realidade a parcela da população urbana com acesso a esse serviço é

extremamente reduzida, provavelmente muito abaixo do atendimento

médio do Estado que atinge 17% da população residente na zona urbana

(IPARDES, 1981, p.127-128).

Os índices apresentados pelo IPARDES permitem pensar que mesmo com a

frequência de pessoas visitando as Setes Quedas3, ou com o aumento populacional frente às

iniciativas de construções que necessitavam da expansão desse mercado de trabalho, tudo

isso não foi o “suficiente” para que a cidade proporcionasse melhorias para grande parte dos

trabalhadores, seja para aqueles que trabalhavam nas péssimas condições de vida, seja os

que nem mesmo se inseriram nas novas (e momentâneas) vagas abertas.

Nesse sentido, podemos perceber essas questões na entrevista realizada com a

trabalhadora Helena, residente na Vila Eletrosul desde 1980, porém chegou em Guaíra um

pouco antes de sua ida para a vila, com 24 anos de idade, no ano de 1978, chegava à cidade:

Janaina: E como chegou em Guaíra?

Helena: A é que tínhamos parentes, bom... na verdade eram conhecidos

né? da minha família mesmo, que vieram morar em Guaíra... aí o assunto

era que era um lugar bom de se viver né? para trabalhar... aí acabei vindo4.

Quando Helena chegou em Guaíra as Sete Quedas ainda existiam, nesse sentido a

ideia de que o município era um lugar “bom de se viver” estava sendo “divulgado” em outras

cidades, justamente por ser um ponto turístico, a entrevistada indica ainda como deu

procedência em sua vinda quando ao chegar conseguiu emprego no Hotel Sete Quedas:

Janaina: Foi o primeiro emprego de carteira assinada?

Helena: Sim foi… esse no hotel…

Janaina: E como que era trabalhar lá?

Helena: Ah, eu fazia um pouquinho de tudo né? Mas era mais coisas que

camareira faz: lavar, passar, arrumar… deixar os quartos arrumadinhos o

mais rápido possível.

Janaina: Por quê?

Helena: Ah, aquele hotel vivia cheio de gente, tarde, noite e dia eram

pessoas chegando para visitar as quedas, ah... é... naquele tempo das

quedas o hotel era cheio de gente que vinha do Paraguai e do Mato

Grosso...5

Os Hotéis e restaurantes eram os mais almejados para trabalho naquele momento,

devido ao fluxo de pessoas que passavam constantemente pela cidade, o hotel Sete Quedas

3 As Sete Quedas eram constituídas por 19 cachoeiras principais, divididas em 7 grupos de quedas. Cf no site

<http://www.portalguaira.com/saudades-quase-31-anos-da-morte-das-sete-quedas-em-guaira/>. 4 HELENA (pseudônimo). Entrevista realizada pela autora, na residência da entrevistada, em 13/01/2015.

Guaíra-PR 5 Ibidem.

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foi fundado justamente em função do turismo como indica o próprio nome - Hotel Sete

Quedas.

Helena indica que o ritmo de trabalho dentro do Hotel era em função de deixar tudo

em “ordem” para a chegada dos hóspedes. Porém, o fato de ser o primeiro emprego com

carteira assinada em uma cidade que procurava começar a vida com o namorado, de certa

forma, apontava uma melhoria em sua vida ainda que a custo de muito trabalho e sem

horários definidos:

Helena: eu lembro que tinha bastante movimento, aí era hotel, mercado, as

lojas, farmácia, tudo para atender melhor o povo que chegava para ver as

quedas ...

Janaina: atender melhor? E os moradores que viviam na cidade?

Helena: É, sabe, ter tudo no lugar para causar boa impressão, a gente

conseguia ter as coisas também... era só se misturar com os de fora (risos),

naquele tempo as coisas eram mais fáceis.

Janaina: Fácil?

Helena: É, não tinha muito papel, sabe? Enrolação, se quisesse ir no

médico chegava no posto e ia...

Janaina: O atendimento era rápido?

Helena: Acho que sim6

O ritmo de trabalho era intenso, Helena indica que a imagem que a cidade estava

procurando construir para os turistas era de oferecer atendimentos rápidos e funcionais, não

apenas os hotéis como aparece na entrevista, outras áreas também estavam nessa tentativa,

em função do turismo.

Helena ao falar sobre usufruir de um bom atendimento médico, entendia que

precisava se “misturar” com turistas, ou seja, a distinção social que reconhecia sendo

moradora da cidade estabelecia para si aproveitar do desigual acesso atribuído aos visitantes.

Ela e muitos outros trabalhadores tentaram utilizar desses meios - ser entendido como turista

- para conseguir algum serviço público, inclusive atendimento médico.

Quando indagada sobre o atendimento médico ser rápido, Helena responde tendo

como referência os dias atuais, pois faz referência indicando que o atendimento naquela

época não tinha “muito papel”, ou seja, ela entende que nos dias atuais a burocracia, que

acompanha os atendimentos públicos na área da saúde, é excessiva e prolonga a espera, o

que em alguma medida, na passagem da década de 1970 para 1980 a seu ver, ainda que

limitados, os encaminhamentos pareciam ser mais práticos e rápidos.

Porém, no decorrer da entrevista quando indagada sobre a procura de atendimento

médico, essa distinção e facilidade de tempos atrás sugerem alternativas perante a

dificuldade de acesso a tratamentos e atendimento:

Janaina: A senhora já chegou a se consultar nele? [Médico]

Helena: Não, eu não… fui poucas vezes ao médico. Naquela época, eu era

mais nova, né? Trabalhava, quando ficava doente fazia um chazinho em

casa mesmo, coisa que se aprende com a família, né?7

Se, por um lado, tinha um atendimento “prático” e rápido, por outro, a trabalhadora

busca adotar outros meios para suprir dores e problemas de saúde, que parecem estar mais

6 Ibidem. 7 Ibidem.

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próximos do seu cotidiano: “fazia um chazinho”. Principalmente por ser nova e ter que

trabalhar, permanecer doente ou perder tempo com a busca pelo atendimento parecia

concorrer com outras urgências de sua permanência na cidade. Helena indica que, ainda

assim, algumas vezes em que o “chazinho” não era o suficiente ou que algum problema de

saúde se agravasse, o caminho adotado era a procura por um posto de saúde e,

consequentemente, a consulta médica. Ao prosseguir a conversa, deixa o saudosismo e

aponta o que se associava às dificuldades de atendimento e afastamento do tratamento

público.

O esforço que fazia no trabalho implicou no agravamento de problemas físicos, o

remédio ou o “chazinho” auxiliavam em alívios instantâneos, ou seja, na medida em que o

desgaste proporcionado pela intensificação do trabalho fosse vivenciado influenciava

diretamente no agravamento ou aparecimento de uma nova dor.

Essas ações ajudam a pensar que a saúde do trabalhador não se desvincula do modo

como vive, trabalha e avalia suas pressões de classe. Ao contrário, são lutas diárias

carregadas de pressões e decisões que precisam ser tomadas ao longo da sua trajetória:

Janaina: A senhora chegou a sair do hotel?

Helena: Sim, saí do hotel e fui trabalhar de diarista na casas dos outros…

Janaina: E por que saiu?

Helena: Depois que as quedas acabou, Guaíra quase que morreu ...não

tinha mais aquele monte de gente… no hotel mesmo só vinha viajante e

quando vinha... o povo começou a ir à falência sabe? […]8

Após a extinção das Sete Quedas a maioria dos hotéis e dos vários restaurantes

existentes na cidade também foram extintos, o que obrigou os trabalhadores a buscarem

outras atividades, ou mesmo a saída da cidade. A trajetória de Helena permite pensar nas

dinâmicas existentes ao lidar com problemas de saúde aliados à necessidade de trabalho e

como essa vivência na cidade influencia no modo de prosseguirem suas vidas e tomar

decisões sobre onde e como vivem.

A Vila Eletrosul foi umas das opções adotadas por vários trabalhadores para darem

procedência em suas vidas, como fez Helena e seu marido, ainda assim, o campo de

possibilidades continuou reduzido. Em meados da década de 1980, eles e tantos outros

chegavam ao bairro:

Janaina: E como que veio morar na Eletrosul?

Helena: Meu falecido marido, tinha um amigo que tinha uma casa aqui na

vila... ele era engenheiro, depois de todo aquele rolo que deu sabe? De fazer

usina, acho que é esse o nome, aí depois não ia fazer mais… só sei que as

casas aqui uns foram abandonando e outros conseguiram vender…

Janaina: quem abandonou?

Helena: o povo que foi contratado para trabalhar na usina... meu marido

falava que a esperança para a cidade era a construção da usina, já que teve

o fim das quedas né? Mas nem isso aconteceu...

Janaina: aí vocês compraram a casa então?

Helena: é, compramos... foi baratinho sabe? Bom, era o que meu marido

falava, né?

Janaina: e por que saíram lá do centro?

8 Ibidem.

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Helena: meu marido achou aqui mais barato para se morar... tinha água de

poço… quer dizer, era como é hoje, só que não tinha tanta gente aqui na

vila assim não… depois que as pessoas foram chegando9.

Interessante pensar que se a “esperança” deixou de se fixar no crescimento de Guaíra

a partir da usina, para Helena e seu marido, a oportunidade de continuarem suas vidas na

cidade foi a vinda para a Vila Eletrosul, seja porque em alguma medida, o valor pago na

época podia ser avaliado como “baratinho”, ao alcance de trabalhadores como eles, e que

precisavam de um lugar para morar, porém que se encaixasse no orçamento limitado da

família.

A visualização do bairro, que Helena faz ao recompor esse momento, remete-se a

uma vila para trabalhadores de uma usina que não saiu do projeto inicial e foi incorporada

às expectativas e necessidades de moradia dos trabalhadores de Guaíra, como Helena e o

marido. Casas pequeninas, feitas de madeira, servidas por um poço artesiano, com ruas sem

asfalto, sem escola e sem posto de saúde. Foi nesse cenário que o jovem casal avaliava como

um ganho importante adquirir aquela casa, já que somado a não pagarem aluguel não

precisavam pagar pela água, ou seja, o melhor a fazer era vir para a vila, ainda que ela

precisasse ser transformada ao longo do tempo.

Atualmente o bairro continua sendo abastecido pelo poço artesanal ou como se fala

pela caixa d’água. Porém, o que aparecia como um benefício original - o não pagamento da

taxa de água, hoje pelo grande número de casas que se avolumou na região é frequente a

falta de água em algum momento do dia.

Outra questão é que mesmo tendo muitas casas de madeiras, os trabalhadores que

vieram para a Vila foram construindo e alterando partes de suas moradias, Helena também

realizou essas alterações, foi mudando sua casa aos poucos: primeiro mudou o chão do

banheiro, depois o piso da cozinha colocando cerâmica em ambos. Podemos avaliar que as

mudanças ocorridas nas casas são significativas na medida em que a moradia de madeira

não aparece com os mesmo valores da época de 1980, segundo Helena sua casa custou o que

seria hoje em torno de mil reais sendo que o salário mínimo na época era aproximadamente

duzentos reais, muito menos as famílias continuam como naquele momento, os filhos e netos

chegam, assim como conhecidos e parentes que, muitas vezes fazem com que essas

alterações expressem a dinâmica com que organizam suas vidas e daqueles que lhes são

próximos.

Ainda assim as casas mais novas já são de alvenaria, porém isso não elimina a falta

de água, transtornos com o transporte público, atendimento no posto de saúde, segurança

etc. São mais de 30 anos em que elencam mudanças e procuram promovê-las no bairro.

Contudo, conforme indicações da Assistente Social que atende o bairro10, hoje, a Vila

Eletrosul formada por aproximadamente 3.000 famílias, porém muitos desses moradores não

possuem escritura do terreno ou das casas em que residem. Algumas casas foram revendidas

para outros moradores e, devido à forma como ocorreram as vendas, todos os anos a

Prefeitura Municipal realiza campanhas para que os moradores procurem regularizar suas

casas junto à Prefeitura.

Uma questão que nos remete àquele momento em que Helena se mudava, como foi

o acesso a essas casas? Como se deu a vinda e permanência de trabalhadores na Vila

Eletrosul? Essas são indagações para a continuidade da pesquisa. Essas perguntas permitem

9 Ibidem. 10 MARIA (pseudônimo) Entrevista realizada em Guaíra-PR, na residência do entrevistado, em 08/08/2015.

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pensar quais enfrentamentos e disputas estão sendo vivenciados pelos trabalhadores, e como

as relações que envolvem o atendimento público de saúde vem se efetivando.

Maria, 22 anos, veio para o Eletrosul quando ainda era criança com 7 anos,

juntamente com seus pais da cidade de Iporã- PR. Trabalha como Assistente de Saúde no

bairro, sendo funcionária concursada pela Prefeitura Municipal de Guaíra há dois anos,

dentre suas ações, ela realiza visita de acompanhamento às famílias de trabalhadores que

compõem o bairro. A entrevista com Maria permite ter uma maior visibilidade de como são

formulados os procedimentos para as visitas:

Janaina: Vocês fazem acompanhamento nas fichas, pra que elas servem?

Maria: Na verdade a gente tem dois tipos de ficha, uma que a gente coloca

o nome da rua, o número da casa, o nome da pessoa e ela tem que assinar

na frente, e a outra ficha que quando a gente faz o acompanhamento nosso,

escrevendo o que aconteceu, do que ela precisa, quer dizer, se ela passou

mal ou se ficou internada. Essa primeira ficha que uma ficha só como nome

do morador e endereço e a assinatura, ela vai pro superior, pro chefe

superior pra ele poder contar essas visitas, porque a gente tem meta né? 11

Atualmente o bairro possui uma unidade de posto de Saúde com duas enfermeiras,

um médico que atende quatro vezes na semana somente pela parte da manhã. São duas

assistentes de saúde responsáveis de fazerem acompanhamentos nas casas famílias, Maria

explica que elas não são responsáveis apenas por realizarem as visitas mensalmente,

precisam repassar todos os dados para a Prefeitura. Essa “preocupação” por parte da

administração de saber como o trabalho das assistentes vem sendo realizado, não está

necessariamente relacionada com a saúde familiar, mas sim a tentativa de se comprovar que

o munícipio vem aparentemente cumprindo seu “dever” apresentando os índices de

assistência e acompanhamento de famílias de trabalhadores, ao mesmo em que controla as

moradias registradas e ocupadas irregularmente no bairro. É um cadastramento dos

moradores frente à Prefeitura.

Helena, hoje com 60 anos de idade, morando a 36 anos na Eletrosul, continua

morando na mesma casa desde que mudou para o bairro quando jovem com o seu falecido

esposo. No dia 15 do mês de Abril do ano de 2014, a assistente visitou a casa de dona Helena

e escreveu:

Visita domiciliar na casa da dona Helena para acompanhar, dona Helena

compra nifedripino 20 mg porque o médico disse que era melhor comprar,

porque o do posto não fazia efeito, vou olhar se é do mesmo e pegar para

ela, no mais está tudo certo e está bem12

A ficha da assistente de saúde ajuda a compor outros caminhos, para enfrentar o não

atendimento ou como descrito na ficha, mesmo quando o atendimento acontece, os

problemas podem não ser resolvidos. Penso que depois de todo o processo que se tem para

conseguir atendimento médico, deparar-se com a ideia de que o remédio do posto não

funciona e que você precisa comprá-lo, talvez contribua para noção de que tudo que se

remete ao particular é mais satisfatório e talvez mais seguro, além disso, a presença de

11 Ibidem. 12 HELENA (pseudônimo). [FICHA DE ACOMPANHAMENTO FAMILIAR]. Guaíra-PR. 15/04/2014. Ficha

de acompanhamento familiar das assistentes de saúde da prefeitura Municipal de Guaíra. Acervo da autora.

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parcerias entre profissionais da saúde com determinados laboratórios pode motivar as

restrições a determinadas indicações.

Helena precisa do medicamento para controlar sua pressão e, na dúvida prefere

comprar o remédio e não pensa em voltar a tomá-lo pelo posto, não só porque o médico disse

que não faz efeito, mas porque a “responsabilidade” da eficácia do tratamento se remete

apenas a ela, uma vez que ele já advertiu, o “melhor é comprar”.

Essas evidências indicam que a historicidade que envolve a presença dos trabalhadores em

Guaíra na passagem da década de 1970 para 1980 aos dias atuais, contribui para pensar as

necessidades e expectativas desses sujeitos no século. XXI e como essa historicidade se deu.

Portanto as experiências compartilhadas entre os trabalhadores de Guaíra e,

particularmente os que vivem na Vila Eletrosul, me motivam a dar continuidade dentro do

debate acadêmico sobre a dureza da vida real, uma vez que esses embates estão sendo

vivenciados e pautados constantemente pelos trabalhadores.

Referências

IPARDES. Caderno Estatístico Município de Guaíra. Curitiba: IPARDES, 2012.

Disponível em:

<http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/cadernos_municipios/guaira2012.pdf>.

Acesso em: 10 de Agosto de 2015.

SANTOS, Janaina Rodrigues dos. Trabalhadores em Guaíra: discutindo tratamentos e

tensões no enfrentamento do serviço público de saúde no século XXI. 2014. 66f. Trabalho

de Conclusão de Curso (Graduação em História). Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Marechal Cândido Rondon, 2014.

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A REPRESENTAÇÃO DA DITADURA MILITAR NO DOCUMENTÁRIO O DIA

QUE DUROU 21 ANOS

Jean Isidio dos Santos1

Resumo: Analisar a contribuição do documentário para a representação histórica é vital,

tendo em vista que o documentário procura explicar, desvendar ou descrever determinados

fatos históricos e fenômenos sociais. Para a compreensão de determinados eventos

históricos, os documentários procuram utilizar de recursos e de documentos (fotos,

entrevistas, sons, etc) que se assemelham ao processo da pesquisa histórica e investigativa.

Todo esse processo de produção do documentário político e histórico contribui para explicar

ou desvendar um fato histórico. O documentário está intrinsecamente ligado ao mundo

histórico, às relações sociais estabelecidas num tempo específico e à visão de mundo de

quem produziu. São fatores que incidem de forma fundamental na criação ou na

reconstituição da memória social e da história social. De certa forma ele nos diz muito sobre

determinadas épocas, de alguns fatos históricos, porque estes filmes transmitem “verdades”

que são aspectos de realidades criadas e muitas vezes manipuladas a serviço de determinados

grupos ou sistemas políticos. Para Ramos, o campo do documentário “ é aquele onde o

discurso fílmico é carregado de asserções e enunciados, asserções ou afirmações sobre a

realidade. ” (Ramos, 2000, p.8), o discurso é carregado de asserções, afirmações ou saberes

de determinado fato histórico ou sobre determinada realidade social que o filme se propõe a

representar. O documentário histórico O dia que durou 21 anos (2013), de Camilo Tavares

procura representar a influência dos EUA no contexto do golpe de 1964. Este documentário

é constituído de uma série de documentos secretos, de fotos e gravações originais da época

que confirmam a participação da CIA e da Casa Branca na articulação da derrubada do então

presidente João Goulart e na instauração da ditadura militar no país.

Palavras-chave: Ditadura militar; Documentário Histórico; Memória Social; Fato

Histórico.

Introdução

A ditadura militar no Brasil suscitou uma série de estudos no campo das ciências

humanas, análises diversas partiram de olhares diferenciados sobre o mesmo fenômeno

histórico. A ditadura militar correspondeu a um momento marcado por vários conflitos e

tensões em todos os âmbitos sociais. Do campo à cidade, ou num movimento inverso, da

cidade ao campo, os conflitos se agravaram, fazendo surgir grupos que se organizavam de

forma combatente. No campo podemos citar as ligas camponesas, as organizações de luta

rural, grupos no Nordeste que buscavam a reforma agrária. Na cidade diversos movimentos

sindicais, movimentos estudantis, movimentos urbanos se articularam na resistência e na

luta contra o golpe de 1964. O período da ditadura militar representou um dos momentos

mais críticos, repressivos e perturbadores da história do país, pois diversos intelectuais,

estudantes, artistas e cidadãos foram perseguidos e torturados. Neste sentido, a importância

do documentário se evidencia na representação deste período, possibilitando uma

ressignificação, uma compreensão imagética e fílmica sobre este fato histórico.

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Email:

<[email protected]>.

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O documentário nos diz muito sobre determinadas épocas, sobre fatos históricos,

porque estes filmes transmitem “verdades” que são aspectos de realidades criadas. Tal

representação pode ser realizada sob uma perspectiva crítica ou sob uma forma manipulada

a serviço de determinados grupos ou sistemas políticos. Para Ramos, o campo do

documentário “é aquele onde o discurso fílmico é carregado de asserções e enunciados,

asserções ou afirmações sobre a realidade.” (RAMOS, 2000, p.8), o discurso fílmico é,

sobretudo, carregado de afirmações ou saberes de determinado fato histórico ou realidade

social que o filme se propõe a representar. O documentário histórico O dia que durou 21

anos (2013), de Camilo Tavares procura representar a influência dos EUA no contexto do

golpe de 1964. Este documentário é constituído de uma série de documentos secretos, de

fotos e gravações originais da época que confirmam a participação da CIA e da Casa Branca

na articulação da derrubada do então presidente João Goulart e na instauração da ditadura

militar no país.

O conceito de documentário

A narrativa presente em boa parte dos documentários políticos é direta, intensa e

muitas vezes investigativa e, nessa perspectiva, difere do filme de ficção que cria

determinadas histórias sem preocupação com a mimesis do fato histórico ou de algum evento

específico. Grande parte das produções de documentários tem uma preocupação crítica na

construção de determinados conteúdos sociais que abordam questões diversas, tais como a

fome, a pobreza, a violência, a desigualdade social, a corrupção política, etc. Mas é preciso

salientar que existem muitas produções de documentários que não têm preocupação com a

crítica social. Muitos deles são voltados apenas para o entretenimento e são produzidos sem

uma preocupação política.

O documentário não surge porque pessoas quiseram inventar ou criar uma nova

tradição, um novo segmento dentro do campo cinematográfico que se diferenciasse do filme

tradicional, ao contrário, o documentário surge a partir dos interesses de alguns cineastas e

escritores que queriam explorar os limites do cinema e descobrir novas possibilidades e

formas até então não experimentadas. A questão da experimentação da forma fílmica, a

junção da exibição e do relato, a narrativa e a retórica possibilitaram que o documentário

permanecesse como um gênero ativo que continuou se expandindo com o desenrolar do

século XX. Em tal ponto, frisa-se que a produção do documentário é diferente do cinema de

ficção. Isto porque determinados documentários têm uma preocupação em retratar a

realidade social. Sua linguagem é direta e realística. Por ora, a tarefa é a de definir o conceito

do documentário e, posteriormente, abordar aspectos do documentário O dia que durou 21

anos (2013). A definição de documentário não é tão fácil quanto se parece, tal termo é tão

complexo como a definição de cultura, de liberdade, de realidade, de felicidade. Além disso,

o campo de produção de documentários é heterogêneo e as produções variam indo do vídeo

analógico (modalidade pouco utilizada atualmente) ao vídeo digital, às produções feitas em

celulares, etc. Outra questão que dificulta a definição de documentário é a sua constante

mutabilidade, suas transformações, sua proximidade e semelhança com o filme de ficção,

além de outros fatores técnicos. O documentário possui a capacidade de mobilização social,

de denúncia, de provocação mediante algum fato histórico específico ou de acordo com o

ponto de vista histórico do documentarista que o produziu. É no documentário que a

possibilidade de autenticidade e fidelidade da representação de determinado aspecto da vida

social ou de um período histórico torna-se possível e compartilhado de forma clara, fato que

o diferencia do cinema de ficção.

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O primeiro ponto a se ressaltar é que o documentário possui elementos próprios que

o caracteriza que o distingue e que lhe garante uma relativa autonomia no seu processo de

produção. Tal afirmativa parte do princípio de que o documentário possui elementos

característicos que o diferenciam do filme convencional ou de ficção, do drama, da comédia,

dos filmes de terror, por exemplo. Sua especificidade está na forma como é produzido, na

utilização de atores não profissionais, na utilização de equipamentos muitas vezes rústicos,

na linguagem direta, na imagem tremida, na captura real de imagens em situações inusitadas,

na interação entre o diretor e entrevistado, na voz over, para usar aqui a expressão de Bill

Nichols (2012), que é um elemento fundamental da narrativa documental, dentre outras

questões que o diferenciam do filme. Para Nichols (2012, p.48),

os documentários não adotam um conjunto fixo de técnicas, não tratam de

apenas um conjunto de questões, não apresentam apenas um conjunto de

formas ou estilos. Nem todos os documentários exibem um conjunto único

de características comuns. A prática do documentário é uma arena onde as

coisas mudam. Abordagens alternativas são constantemente tentadas e, em

seguida, adotadas por outros cineastas ou abandonadas.

Existe uma série de documentários que são produzidos de diferentes formas e estilos,

fato que evidencia que não há uma homogeneidade técnica, narrativa, entre as produções

documentais. Definir o documentário, portanto, é uma atividade complexa, visto que as

formas de produção mudam muito rápido nesta arena marcada pelas lutas e interesses dos

produtores e analistas do documentário. Além disso, com o advento de novas tecnologias

vão surgindo paralelamente novas formas digitais dos documentários produzidos com

aparelhos de celulares ou do webdocumentário. Um documentário, antes de tudo, possui uma

lógica organizacional, uma estrutura técnica própria, que o possibilita fazer asserções

históricas sobre o mundo, sobre determinados fatos. O documentário se propõe, por meio de

uma narrativa fílmica, apresentar uma história ou procurar captá-la no calor dos

acontecimentos, por meio de entrevistas, por exemplo, da qual se destacam os atores sociais,

pessoas no seu cotidiano, no seu processo de luta ou em situações sociais limite, convivendo

com o medo, com a violência ou no calor de uma manifestação ou protesto. É o caso, por

exemplo, do filme A Batalha do Chile (1975-79), de Patrick Gusman, que relata as

experiências políticas ocorridas no Chile durante a instauração do golpe de Pinochet. Toda

essa organização que compõe este corpus estrutural do documentário dá a ele características

singulares, seguidas de uma retórica convincente ou argumento lógico, que apresenta uma

história que é exibida para sensibilizar e envolver o espectador, mas é preciso frisar que nem

todo documentário tem essa mesma preocupação.

Um documentário, antes de tudo, possui uma lógica organizacional, uma estrutura

técnica própria, que o possibilita fazer asserções históricas sobre o mundo, sobre

determinados fatos e acontecimentos históricos. O documentário se propõe, por meio de uma

narrativa fílmica, apresentar uma história ou procurar captá-la no calor dos acontecimento.

Entrevistas, narrativas, situações de risco em que se coloca o cineasta para captar um situação

específica, atores sociais, pessoas no seu cotidiano, no seu processo de luta ou em situações

sociais limite, convivendo com o medo, com a violência vão dando contorno e forma aos

documentários com um teor crítico, ou de denúncia. É o caso, por exemplo, do documentário

A Batalha do Chile (1975-79), de Patrick Gusman, que relata as experiências políticas

ocorridas no Chile durante a instauração do golpe de Pinochet. Toda essa organização que

compõe este corpus estrutural do documentário dá a ele características singulares, seguidas

de uma retórica convincente ou argumento lógico, que apresenta uma história que é exibida

para sensibilizar e envolver o espectador. Uma questão fundamental ressaltada por Nichols

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(2012) para definir o documentário é o seu conceito de “voz do documentário”, isto é, os

documentários possuem uma retórica própria quando se dirigem ou “falam” com os

espectadores de diversas formas e estilos.

Para Nichols (2012), os documentários representam questões, aspectos,

características e problemas encontrados no mundo histórico e a forma como eles representam

ou falam destes problemas sociais é por meio dos sons e das imagens, com exceção dos

filmes mudos. As imagens possibilitam um melhor entendimento do que é falado, narrado e,

dessa forma, contribuem para um melhor entendimento do mundo social representado.

A voz do documentário pode defender uma causa, apresentar um

argumento, bem como transmitir um ponto de vista. Os documentários

procuram nos persuadir ou convencer, pela força de seu argumento, ou

ponto de vista, e pelo atrativo, ou poder, de sua voz. A voz do documentário

é a maneira especial de expressar um argumento ou uma perspectiva

(NICHOLS, 2012, p.73).

O argumento é um recurso discursivo bastante utilizado pelos documentaristas no

intuito de convencer, de persuadir, de atrair o espectador de diversas formas ou pontos de

vistas que são evidenciados na medida em que a narrativa se apresenta nos documentários.

Por “voz”, Nichols (2012) define como “aquilo que nos transmite uma percepção do ponto

de vista social de um texto”. A voz não se restringiria a um código ou a uma característica,

mas à interação de todos os códigos de um filme. A voz do documentário diz muito sobre o

documentarista, ou seja, como ele se engaja no mundo, como percebe e se posiciona em

relação aos problemas sociais, políticos, culturais e econômicos, como utiliza sua câmera

para representar determinados fenômenos sociais que muitas vezes se apresentam conforme

se inserem no campo de produção ou no local de filmagem.

O dia que durou 21 anos: a conspiração norte-americana

O documentário O dia que durou 21 anos (2013) de Camilo Tavares, tem como

objetivo mostrar como e porque os EUA decidiram interferir decisivamente nas instituições

políticas e econômicas do Brasil, com o pretexto de “conter” ou “barrar” qualquer

organização de cunho socialista ou comunista no país. O documentário é dividido em três

partes: a conspiração, o golpe de Estado e o escolhido. O dia que durou 21 anos foi dirigido

por Camilo Tavares e surgiu a partir de questões e motivações pessoais que instigou o

cineasta a contar a história da própria família. A princípio o jornalista queria contar a história

da repressão sofrida pelo seu pai Flávio Tavares, que foi um dos 15 presos políticos que

foram libertados em troca do embaixador norte-americano no contexto da ditadura. O

cineasta queria entender porque sequestraram um embaixador americano? Qual o peso dos

EUA na interferência do golpe de 1964? O filme buscou responder estas perguntas e para

isso, procurou levantar uma série de documentos considerados top secrets, neste contexto.

Áudios com depoimentos do presidente Kennedy, fotos, depoimentos do embaixador

Gordon, telegramas, arquivos secretos, e fontes que revelam as ordens expressas para uma

infiltração nas forças armadas nacionais, foi o resultado direto de três anos de pesquisa que

mostraram o passo à passo do golpe de 1964.

Arquivos secretos, materiais inéditos, depoimentos de históriadores como Carlos

Fico, Peter Kombluh, de Plínio Arruda, e também de generais e ex-ministros como Jarbas

Passsarinho, General Newton Cruz são personagens que vão compondo a narrativa filmica,

dando contorno na representação deste período histórico. As estratégias secretas do governo

de Kennedy para implantar o seu projeto ambicionista para a América Latina, ou seja, a

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Aliança para o Progresso, fica evidenciado no documentário. O Brasil estava no cerne, no

centro dos interesses norte-americanos, e qualquer aproximação do país com as ideias do

comunismo cubano, deteria os interesses econômicos das multinacionais americanas

instaladas no país. A expansão do capitalismo imperialista americano não poderia ser detida

por nenhum governo populista que tentasse frear o avanço da acumulação capitalista. Os

objetivos da Aliança para o Progresso era claro, tratava-se de tansformar a América Latina

num vasto campo de atuação e subordinação das economias latinas ao capitalismo

imperialista. Neste sentido o regime de acumulação visava intesificar seus exorbitantes

lucros nos países subordinados ao capitalismo imperialista norte americano. O regime de

acumulação (VIANA, 2009) consiste numa determinada estratégia do capital para extrair

mais-valor, uma determinada configuração estatal que define a ação do Estado e sua forma

de organização; e uma determinada articulação das relações internacionais, isto é,

determinado modo de exploração capitalista internacional. Os EUA articulou

estrategicamente o golpe de 1964 com o intuito, sobretudo, de proteger os interesses do

capitalismo e de continuar subjugando a economia nacional aos interesses das multinacionais

que lucravam com os investimentos realidos em solo nacional.

As ações da CIA, do IPES (Instituo de Pesquisa e Estudos Sociais e do IBAD

(Instituto Brasileiro de Ações Democráticas), são ressaltadas na narrativa do documentário,

que procura evidenciar o papel de tais institutos na preparação do terreno e na criação de

condições vitais para o Golpe de 1964. A articulação da cúpula da Casa Branca e da CIA

para a criação do IPES e do IBAD ficaram em destaque no documentário que frisou como

estes órgãos disseminaram conteúdos na mídia, além de criarem pesquisas anti-reformistas,

conservadoras que exaltavam o ditos ideais democráticos e ao mesmo tempo espalhavam o

medo vermelho a ameaça e os perigos do comunismo no Brasil. Tais órgão eram

encarregados de manipular as informações, e de organizar passeatas a favor dos valores

democráticos, foram eles que criaram a chamada marcha da família com Deus pela

liberdade que reuniu milhares de pessoas na cidade do Rio de Janeiro, tal evento reuniu os

grupos reacionários e conservadores que apoiavam o regime ditatorial.

Os setores conservadores, setores da imprensa, diversos intelectuais, capitalistas,

partidos políticos de direita, a igreja católica, parte da burocracia estatal, cantaram gritos

contra o governo de Goulart e tal cenário de desestabilidade, de desorganização política e

instabilidade econômica foi o alicerce perfeito para os militares implantarem suas bases

logísticas e ir tomando gradativamente o poder, sem nenhuma resistência ou reação por parte

do governo, ou por qualquer outro grupo de esquerda no país. Foi mais fácil que o esperado,

foi uma ditadura “assistida” por grande parte da população que sequer reagiu, e que

permaneceuo passiva, inerte. O generais tomaram o poder com o discurso que iria consertar

a casa, mas ninguém passa 21 anos consertando a própria casa como fizeram os militares no

país. Os porta-aviões, os navios petroleiros, torpedeiros, aviões-caça e milhares de armas e

munições de guerra foram enviados pelos EUA sequer foram utilizados, não ocorreu

nenhuma guerra civil no país como noutros países da América Latina. A ditadura foi imposta

sem dar nenhum tiro, o presidente foi deposto e os militares tiveram o caminho livre para

conduzirem o poder com as mãos de ferro e submeter e subjugar a economia nacional ao

capitalismo imperialista norte-americano. O documentário O dia que durou 21 anos em

síntese procura representar os momentos que antecederam o golpe de 1964, com uma riqueza

de detalhes, com áudios inéditos, com fotos dos arquivos norte-americanos e com

depoimentos de historiadores, mas determinados momentos do documentário carecem de

mais aprofundamento histórico. No que diz respeito às motivações do golpe, o fator

econômico não fica claro, fica no plano descritivo, e a reconstrução fica como uma colcha

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de retalhos sem nexos, sem ligações claras, como se o golpe fosse um plano arquitetado

como uma peça de teatro da qual já saberemos o resultado final.

Por mais que o documentarista chama a atenção para as estratégias secretas militares

norte-americanas de interferir na economia brasileira, não fica totalmente claro os interesses

capitalistas em manter o país subjugado, em estagnar a economia, concentrar a renda,

impulsionar o arrocho salarial, desarticular todo e qualquer movimento sindical, enfraquecer

os movimentos sociais, reajustar a economia de acordo com os interesses do capital

imperialista e recuperar a queda da taxa de lucro no país, neste sentido, o documentário não

aprofundou suas crítica e mostrou as limitações de quem o produziu.

Considerações finais

O documentário O dia que durou 21 anos possui suas especificidades, sua

importância e relevância social se dão na medida em que ele aborda este período ditatorial

da história nacional. O documentário apresenta um conjunto de informações, de fontes

históricas, de arquivos documentais, de telegramas, de fotos que são ferramentas importantes

para validação da narrativa construída pelo autor. Ele possui elementos críticos e de

relevância histórica, pois apresenta elementos imagéticos que possibilita a reconstrução de

um fato histórico, ou seja, a ditadura militar. Sua relevância se dá justamente por trazer

elementos inéditos, entrevistas e imagens que não tinham sido até então acessadas. Sua

relevância se dá exatamente pela possibilidade que o documentário possibilita na capacidade

de contribuir para o conhecimento de um período histórico que está sempre em recontrução,

que está constantemente sendo debatido, analisado e revisitado. A reflexão crítica não

diminui a importância do documentário, ao contrário, aponta elementos de limitação por

parte do cineasta e enfatiza o potencial do documentário para suscitar discussões históricas,

debates e articulações em torno da temática da ditadura.

Referências bibliográficas

GAUTHIER, GUY. O Documentário: um outro cinema. Campinas: Papirus, 2011.

MARX, Karl. Manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2012.

RAMOS, Fernão. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008.

VIANA, Nildo. O capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida (SP): Editora

Santuário, 2009.

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“CRENTE VOTANDO EM COMUNISTA? ESSA NÃO!”: O ANTICOMUNISMO

EM SILAS MALAFAIA

Jonas Christmann Koren1

Resumo: No artigo, pretendo analisar a ideologia anticomunista difundido pelo Pastor Silas

Malafaia e por sua associação, a Vitória em Cristo. Compreendo que as ideologias difundidas

cumprem um papel de criação de visões de mundo e de normas de conduta prática na

sociedade civil, além de servirem de suporte para o apoio de projetos e atores políticos na

sociedade política (deixando claro que a distinção entre a sociedade civil e a sociedade

política é meramente metodológica). O marxismo e comunismo são temas constantes nas

falas do Pastor Malafaia e nas notícias veiculadas no site de sua associação, o Verdade

Gospel. Sempre em sentido pejorativo e geralmente relacionados com a destruição da família

tradicional, com a falta de liberdade de expressão ou com a perseguição religiosa. A crítica

do pastor ao comunismo estende-se aos partidos de esquerda, não necessariamente

comunistas, denominados por ele de “esquerdopatas”. Anticomunismo não é

necessariamente a rejeição do comunismo enquanto ideia ou projeto de sociedade, mas sim

a rejeição das ideias e projetos que possam ser compreendidos como comunistas. Esse

discurso ganha nova proporção no Brasil após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em

2002, e se justifica como “preventivo”, atentando para esta mudança no bloco no poder,

novidade na autocracia burguesa brasileira.

Palavras-chave: Ideologia; Silas Malafaia; Anticomunismo.

No artigo, pretendo analisar a ideologia anticomunista difundido pelo Pastor Silas

Malafaia e por sua associação, a Vitória em Cristo, utilizando como fonte algumas

mensagens veiculadas pelo pastor em seu programa de televisão e notícias publicadas no site

Verdade Gospel, site de notícias de sua associação. Compreendo que as ideologias

difundidas cumprem um papel de criação de visões de mundo e de normas de conduta prática

na sociedade civil, além de servirem de suporte para o apoio de projetos e atores políticos na

sociedade política (deixando claro que a distinção entre a sociedade civil e a sociedade

política é meramente metodológica).

Marxismo e comunismo são temas constantes nas falas do Pastor Malafaia e nas

notícias veiculadas no site Verdade Gospel. Sempre em sentido pejorativo e geralmente

relacionados com a destruição da família tradicional e com a perseguição religiosa. Antes de

partirmos para mais fontes sobre o tema, é importante definir o que é o “anticomunismo”.

Segundo Lucas Patschiki:

[...] anticomunismo não refere-se somente a atuação de um Partido

Comunista em específico, como rejeição direta deste, sendo um fenômeno

que estende-se a tudo o que pode ser interpretado como contribuinte ao

objetivo histórico esperado pelos comunistas. Deste modo, a abrangência

do comunismo amplia-se a ponto de não poder ser quantificada de maneira

simples: o “espectro” ronda todo o corpo social. A possibilidade de

identificar os elementos contaminados, ou melhor, passando a dotar as

1 Estudante do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná

(UNIOESTE) – Campus de Marechal Cândido Rondon. Pesquisa financiada pela CAPES.

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práticas políticas mais diversas de um sentido político específico, o

comunista, atuando em contraposição ao outro (PATSCHIKI, 2012. p.

335).

Ou seja, anticomunismo não é necessariamente a rejeição do comunismo enquanto

ideia ou projeto de sociedade, mas sim a rejeição dos projetos políticos que possam ser

compreendidos como objetivos comunistas. Marx e Engels já trataram do tema no Manifesto

do Partido Comunista onde demandam que a Liga dos Comunistas combata as caricaturas e

distorções do programa comunista. E distinguiram dois elementos no anticomunismo: o de

“difundir o medo do comunismo, focando temas como a partilha social ou a revolta popular”

e o de atribuir ao comunismo “distorções, o atacando como sendo equivalente ao que se

acusa de ser comunista” (MARX, K; ENGELS, F. 2010, p. 17). Sobre o último os autores se

perguntam: “que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no

poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de

esquerda a pecha infamante de comunista?” (MARX, K; ENGELS, F. 2010, p. 17).

Conforme o Dictionnaire Critique du Marxisme, de forma geral o anticomunismo pode ser

definido como:

[...] uma hostilidade sistemática ao comunismo, traduzindo-se de acordo

com seu grau de desenvolvimento questionando o suporte teórico e

ideológico do comunismo (o marxismo) ou das forças e regimes que o

encarnariam (os partidos comunistas, os “países socialistas”). Para os

comunistas, o anticomunismo é uma operação que consiste em

caricaturizar os objetivos e as práticas do movimento comunista para o

melhor combater2.

O anticomunismo aparece assim como falsificação e deformação das posições

comunistas, atribuindo aos objetivos imediatos dos comunistas a negação absoluta de valores

da sociedade burguesa, como a família, a nação ou a propriedade privada. Essa falsificação

permite:

[...] desqualificar o programa dos comunistas pela imagem catastrófica de

suas consequências: a abolição da propriedade individual, fruto do trabalho

pessoal, os comunistas generalizantes da preguiça; a abolição da família,

que iria introduzir a comunidade das mulheres; a liberdade, a pátria são da

mesma forma os principais temas do anticomunismo descrito por Marx e

Engel3.

2 [...] une hostilité systématique au communisme, se traduisant selon son degré d’élaboration par une mise en

cause du support théorique et idéologique du communisme (le marxisme) oudes forces et régimes qui

l’incarnent (les partis communistes, les “pays socialistes”). Pour les communistes, l’anticommunisme est une

opération qui consiste à travestir les objectifs et les pratiques du mouvement communiste pour mieux le

combattre (LAVABRE, 1982. p. 39-40). 3 “L’anticommunisme apparaît bien pour l’essentiel comme falsification et déformation des positions

communistes. Plus précisément : l’anticommunisme consiste à donner pour but immédiat des communistes la

negation absolue des valeurs (propriété, famille, nation) de la société bourgeoise. Cette opération permet de

disqualifier le programme des communists par le tableau catastrophique de ses conséquences : en abolissant la

propriété individuelle, fruit du travail personnel, les communistes généraliseraient la paresse ; en abolissant la

famille, ils institueraient la communauté des femmes ; la liberté, la patrie figurent de la même manière parmi

les thèmes majeurs de l’anticommunisme tel que le décrivent Marx et Engels” (LAVABRE, 1982. p. 39-40).

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Estes elementos originais irão alimentar as visões sobre a sociedade soviética após a

Revolução Russa. Assim o anticomunismo adquire o caráter de denúncia contra a “Pátria do

socialismo”, baseados na “verificação empírica” do mal que o comunismo poderia causar

(PATSCHIKI, 2011, p. 334). Isto dotou o anticomunismo de uma “dimensão suplementar:

a oposição mundo livre/totalitarismo Ocidente/Oriente, ou civilização/barbárie”4. O que faz

com que os partidos comunistas sejam taxados de “traidores da Pátria, partidos do

estrangeiro, os supondo como “destacamentos avançados” de uma conspiração global,

comandada pela União Soviética” (PATSCHIKI, 2011, p. 334). O anticomunismo reduz o

campo político em duas posições contrárias, em uma leitura social maniqueísta, como

escreve Patschiki:

Desta redução do campo político, entre prós e contras, gera-se uma

desqualificação generalizante da própria política, que passa a ser

compreendida como expressão de duas naturezas distintas (onde cada

posicionamento torna-se somatória direta em direção a um fim da história),

e que em última instância, poderiam ser resumidos na divisão entre bem e

mal (PATSCHIKI, 2011, p. 334).

A luta contra o comunismo foi o fundamento ideológico de vários políticos

reacionários ou conservadores, como no caso dos regimes fascistas da Europa do entre

guerras ou o macarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos5. No Brasil, o discurso

anticomunista emerge rapidamente com eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, e se

justifica como “preventivo”, atentando para esta mudança no bloco no poder, novidade na

autocracia burguesa brasileira (PATSCHIKI, 2011, p.185).

No vídeo intitulado “Crente votando em comunista? Essa não!'; Pastor Silas

comenta”, postado no site de notícias Verdade Gospel, Malafaia, segundo a descrição,

“alerta a comunidade evangélica acerca das armadilhas dissimuladas na política, como a

filosofia de partidos comunistas, que cerceiam as liberdades de expressão e religiosa”

(Verdade Gospel. 19/10/2012). Conforme o pastor:

[...] você é livre pra votar em quem você quiser, mas você vota baseado em

seus princípios, crenças, certo?” [...] Eu fico admirado de ver alguém votar

em uma pessoa que é do partido comunista, principalmente quando esse é

um cabeça de chapa. Sabe? Um cara que é candidato a prefeito, candidato

a governador, candidato a presidente, na cabeça da chapa. Principalmente

com isso, aí não dá. Em gente que é do partido comunista, peraí, peraí,

peraí! Vamos analisar a ideologia dele gente. Nós não somos criança. Não

adianta aí eles fazerem uma simulação de que eles são bonzinhos. Peraí,

repare a ideologia comunista: China, Coréia, Cuba, OK! Há pouco tempo

atrás a União Soviética, meu amigo, esses caras não toleram religião. Lá

na China eles abriram a economia. Mas não abriram pra liberdade de

expressão nem liberdade religiosa. Vai lá em Cuba, vai lá. Vai lá em Cuba

pra ver se tem moleza pra cristão. A ideologia baseada em Marx prega o

4 “En outre, la revolution bolchevique a donné à l’argumentaire anticommuniste une dimension

supplémentaire: l’opposition monde libre / totalitarisme, Occident/Orient, voire civilisation/barbarie”

(LAVABRE, 1982, p. 40, tradução nossa). 5 “[...] la lutte contre le communisme apparaît bien comme le fondement idéologique de la plupart des politiques

réactionnaires ou simplement conservatrices (voir l'instauration, en son nom, de régimcs fascistes dans l'Europe

del'entre-deux-guerres ou le maccarthysme dans les années 50 aux Etats-L'nis)” (LAVABRE, 1982, p. 40,

Tradução nossa).

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ateísmo. Religião, religião é o ópio. Religião é uma coisa que precisa ser

extirpada, foi uma coisa que eles doutrinaram e pregaram o tempo inteiro.

Ai agora, “não, não, eu assino aqui documento que sou contra o aborto, eu

assino documento que sou contra casamento gay” Filho, vai ver o que eles

defendem no bojo partidário. Vai ver o que eles defendem na ideologia

deles. Nós não podemos... gente, vamos devagar. Eu sei que você é livre

pra votar em quem você quiser. Agora, você votar em gente que é do

partido comunista, e principalmente quem é cabeça de chapa pra governar.

Gente cuja ideologia é diametralmente oposta aos nossos princípios

(Verdade Gospel. 19/10/2012).

De acordo com a fala do pastor, a comunidade evangélica, público alvo do vídeo,

tem a liberdade de votar em quem quiser, porém, o problema se encontra em votar em

candidatos que vão contra as crenças e valores dos evangélicos. A visão do pastor sobre o

tema é maniqueísta: de um lado o cristianismo e de outro o comunismo, ideologia

“diametralmente oposta” aos princípios cristãos. A divisão entre “bem e mal” fica clara

quando o pastor afirma que no período eleitoral os candidatos de partidos comunistas fazem

uma “simulação de serem bonzinhos”. Como só existem “dois lados”, as opiniões políticas

contrárias às do pastor são vistas como pertencentes aos comunistas, como a defesa do

casamento entre homossexuais e do aborto. Essas, apesar de poderem fazer parte da pauta

política de partidos de esquerda, não são necessariamente os objetivos comunistas. Para

demonstrar a incompatibilidade da ideologia marxista com religião cita, fora de contexto, a

famosa frase de Marx: a religião “é o ópio do povo”. A frase foi escrita por Marx na

Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1848. Segue o parágrafo completo:

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro,

o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração

de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito.

É o ópio do povo (MARX, acessado em 10/06/2015).

A leitura do parágrafo completo demonstra que a visão de Marx sobre a religião é

mais complexa do que a de um fenômeno que precisa ser extirpado. Embora obviamente

crítico da religião, Marx leva em conta o caráter dual do fenômeno, tanto como legitimação

das condições existentes como um protesto contra essas (LÖWY, 2007). E Malafaia segue:

Pelo amor de Deus, os caras pregam que Deus não existe, os caras pregam

a anulação religiosa. Onde eles dominam não tem liberdade de expressão

nem liberdade religiosa e agora vem dissimular e dar uma de amiguinho de

evangélico. Não, eu não... desculpa, respeito você, mas eu estou marcando

aqui uma posição. Vai ler o que os partidos comunistas do Brasil pensam.

Vai ver o que eles defendem. Vai ver a ideologia deles. Vamos deixar de

papo minha gente. Vamos deixar de conversa fiada. Eu quero deixar aqui

a minha palavra: não voto não. Mas não voto... O que!? Um cara candidato

a prefeito comunista, de partido comunista, mas não leva meu voto nem

daqui a mil anos, porque eu conheço a ideologia baseada e sustentada na

ideologia de Max (Marx), vai ver o que esse cara fez. Vai ver o que os

comunistas fizeram. Mais de um milhão de mortos lá no Vietnam, hâ?,

setenta milhões de mortos na União Soviética, hã? Milhões e milhões de

mortos na China. Vai ver lá onde eles são minorias se eles toleram os

contrários. Negativo. É ideologia deles. Não leva a mal. Você quer votar é

problema seu meu irmão. É direito seu. Eu só estou te dando um alerta. O

que eles defendem agora, pra ganhar a eleição eles assinam qualquer

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documento, dizem que são a nosso favor, mas vai ver o que eles defendem.

Deus abençoes você, Deus abençoe sua família, Deus abençoes o Brasil

(Verdade Gospel. 19/10/2012).

Essa citação é crucial porque ela não apenas reafirma a leitura binária que já

discutimos, como também faz um salto para o discurso fascista. A contagem dos supostos

mortos pelo comunismo, a correlação simples entre falta de “liberdade de expressão” e

expressão religiosa dos países pós-revolucionários ecoam abertamente reproduções do

discurso anticomunista perpetuado pelos fascistas, não apenas da geração do macarthismo

como as atuais (PATSCHIKI, 2013).

A crítica do pastor ao comunismo estende-se aos partidos de esquerda, denominados

por ele de “esquerdopatas”. Principalmente ao Partido dos Trabalhadores (PT). Malafaia

declarou o seu apoio a Lula nos dois mandatos, porém, apoiou o candidato José Serra do

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) nas eleições de 2010. No ano seguinte são

postados os primeiros vídeos e notícias com conteúdo anticomunistas e também de oposição

ao PT e seus candidatos. Como no trecho do vídeo transcrito a seguir:

Sabe quem é o grande ídolo de Lula e de Dilma: Fidel Castro. Sabe quem

é Fidel Castro? É o bandido que é dono de Cuba. É o bandido, ok, que bota

opositores na cadeia e mata. É esse que não permite liberdade religiosa,

nem liberdade de crença. É o ídolo deles. Vocês sabem em quem está

sustentada a ideologia do PT? Num comunista italiano famoso:

“gramiscistas”. Usam a democracia pra poder controlar o Estado. Eu

pergunto a você meu irmão: eles, o PT, tá ai no programa de partido, são a

favor do controle da mídia, do conteúdo da mídia. Nós não, nos somos a

favor de uma imprensa livre, sempre livre, até pra falar mal de nós

(MALAFAIA, 08/08/2014).

O PT, partido que durante a década de noventa passou por um processo de

transformismo, “abandonando o caráter classista e de superação do capitalismo pelo

socialismo, por um reformismo em conformidade com o capital” (PATSCHIKI, 2011, p.

185), é associado à figura de Fidel Castro, o “bandido que é dono de Cuba”, e assim taxado

de comunista, com todo o caráter negativo que já comentamos. Segundo o pastor, a ideologia

do PT, sustentada em Gramsci, tem por objetivo usar a democracia para controlar o Estado.

A ideia de que as teorias de Gramsci estejam sendo usadas pela esquerda brasileira com o

objetivo de levar o Brasil a uma ditadura comunista vem sendo difundida por outros

intelectuais conservadores, como Olavo de Carvalho, que já escreveu livros sobre o tema,

que ele chama de “marxismo cultural” (PATSCHIKI, 2011, p. 219).

No vídeo, Malafaia critica a proposta do partido de regulamentação da mídia. Essa

vai contra os interesses do pastor, uma vez que, como visto no primeiro capítulo, as leis

brasileiras atuais permitem a venda de horários, mesmo sendo os canais concessões públicas.

Realidade que seria mudada, caso a regulamentação da mídia fosse aprovada. Em um

manifesto enviado pelo pastor aos meios de comunicação, Malafaia afirma que o “marco

regulatório para concessões de rádio e TV é a ideologia comunista da vertente Trotskista,

que tem como marca PATRULHAMENTO IDEOLÓGICO, CONTROLE SOCIAL E

PROPAGANDA DE ESTADO” (Verdade Gospel. 05/06/2012). Mostrando mais uma vez

que “comunista” são os que vão contra os seus interesses e daqueles que representa.

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Referências bibliográficas

LAVABRE, M-C. “Anticommunisme” (verbete). In. BENSUSSAN, G; LABICA, G.

Dictionnaire critique du marxisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1982.

LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.

MALAFAIA, Silas. “É Possível um Cristão votar no PT ? Pr Silas Responde”, 08/08/2014.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=o6Plx2TRCsI>. Acessado

05/05/2015.

MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista/A ideologia alemã. Lima: Los

Libros Más Pequeños del Mundo, 2010.

MARX, Karl. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Disponível em:

<https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/02/10.htm>. Acessado em: 10/06/2015.

PATSCHIKI, Lucas. Os litores da nossa burguesia: O Mídia Sem Máscara em atuação

partidária (2002-2011). Dissertação de Mestrado. Marechal Cândido Rondon: UNIOESTE.

2012.

PATSCHIKI, Lucas. TEA PARTY: Integrantes, Ideologia e Metodologia Organizativa de

um Movimento Fascista na Contemporaneidade. Cadernos do Tempo Presente. Edição n.

11, 10 de março de 2013. Disponível em: <www.getempo.org/index.php/revistas/56-n-11-

marco-de-2013/artigos/163-4-tea-party-integrantes-ideologia-e-metodologia-organizativa-

de-um-movimento-fascista-na-contemporaneidade>. Acessado em: 11/06/2015.

Verdade Gospel. Crente votando em comunista? Essa não!'; Pastor Silas comenta. Site

Verdade Gospel. 19/10/2012. Disponível em: <http://www.verdadegospel.com/crente-

votando-em-comunista-essa-nao-pr-silas-comenta/>. Acessado em: 10/06/2015.

Verdade Gospel. PT e o Governo querem impedir a pregação do evangelho no Rádio e TV.

Site Verdade Gospel. 05/06/2012. Disponível em: <http://www.verdadegospel.com/pt-e-o-

governo-querem-impedir-a-pregacao-do-evangelho-no-radio-e-tv-2/>. Acessado em:

01/07/2015.

Vitória em Cristo. Institucional. Site Associação Vitória em Cristo. Disponível em:

<http://www.vitoriaemcristo.org/_gutenweb/_site/gw-institucional/>. Acessado em:

03/09/2014.

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ANÁLISE DA “NOVA” PEDAGOGIA APRESENTADA NA REVISTA NOVA

ESCOLA

Karine Biasotto1

Resumo: Este artigo é resultado das discussões da disciplina de Epistemologia do

Conhecimento e Processos Educativos realizada no Programa de Pós-graduação em

Educação em 2014. Tem por objetivo relacionar a Revista Nova Escola, que é o objeto de

uma pesquisa que está em andamento no Mestrado em Educação, com os textos

Comunidades de Leitores (1999), de Roger Chartier e Ler: Uma Operação de Caça (1998)

de Michel de Certeau. Foram escolhidos esses dois textos porque eles tratam da leitura,

sendo um meio para refletir como essa publicação atingiu o público docente no momento

histórico abordado e porque ao entender dos mesmos existem diferentes textos destinados a

diferentes tipos de leitores, e esses ainda terão diversas interpretações. Portanto, ao usar uma

revista como fonte primária ter esse entendimento é fundamental. A pesquisa tem como

recorte temporal o ano de 1986 até 1989. Refere-se ao ano em que a revista começa a ser

publicada até a primeira eleição direta para presidente. Além disso, esse é o período em que

o Brasil passa pelo processo de redemocratização, após 21 anos de ditadura militar. A busca

pela democratização no país ia além do contexto político, esse era um momento em que

também se buscava a democratização da escola pública, de modo que o ensino fundamental

abrangesse a todas as crianças em idade escolar.

Palavras-chave: História da Educação; Revista Nova Escola; Redemocratização

Introdução

Neste artigo relacionamos a Revista Nova Escola, objeto de uma pesquisa que está

em andamento no Programa de Pós-graduação em Educação, com dois textos da bibliografia

utilizada na disciplina de Epistemologia do Conhecimento e Processos Educativos2.

Priorizamos, assim, Comunidades de Leitores (1999), de Roger Chartier e Ler: Uma

Operação de Caça (1998) de Michel de Certeau, por serem escritos que problematizam a

questão da leitura.

Partimos da compreensão de que a revista supracitada tem preocupações datadas, ou

seja, buscava respostas para problemas do contexto histórico que temos como recorte

temporal, que inicia em 1986 e vai até 1989.

Além disso, é a representação de sujeitos e destinada a um público específico, os

docentes da educação básica, mas este público, ao mesmo tempo é amplo e realiza diferentes

interpretações dos textos por ela veiculados.

Contextualização do objeto de pesquisa

1 Discente do Programa de Pós-Graduação em Educação, nível Mestrado, da Universidade Estadual do Oeste

do Paraná – UNIOESTE Campus Cascavel. Professora da Secretaria de Estado de Educação do Paraná. 2 Este artigo foi elaborado para a avaliação final da disciplina realizada no Programa de Mestrado em Educação

em 2014.

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A pesquisa que está em andamento e será apresentada neste artigo, tem como objeto

as ideias pedagógicas produzidas pela Revista Nova Escola, tendo como recorte temporal o

ano de 1986, início da publicação a 1989, ano do retorno das eleições diretas para presidente.

Escolhemos este período por tratar-se da transição do regime militar para a

democracia. Este processo havia iniciado em meados dos anos 1970 no governo de Ernesto

Geisel, e que, teve continuidade com seu sucessor, João Batista Figueiredo, que em 1979

tornou-se o último presidente militar.

Isso acontecia em meio à crise econômica, mais tarde, marcada por um período de

recessão, gerando consequências como desemprego e PIB em declínio. Dessa forma, foi

necessário recorrer a empréstimos de organismos internacionais numa tentativa de sanar os

problemas econômicos do Brasil. Somente em 1984, com o crescimento das exportações, é

que, a economia tem um temporário alívio.

No que diz respeito à esfera política do país, foi durante o governo de Figueiredo que

o Congresso aprovou em 1979, a lei que anistiava aqueles que cometeram crimes políticos.

Proporcionou-se assim, a oportunidade para que os exilados políticos retornassem ao Brasil.

Outro fato importante deste período foi à aprovação da Nova Lei Orgânica dos

Partidos, também no ano de 1979, oportunizando a criação de novos partidos políticos, bem

como foram extintos o MDB e o ARENA.

Anos mais tarde, em 1984, com um forte apelo popular, indo além das

movimentações de partidos e como uma unanimidade em todo o Brasil, tem início a

campanha das Diretas Já, reivindicando que houvesse eleição direta para presidente. Para

que isso de fato acontecesse, era necessário que dois terços dos membros do Congresso

votassem a favor.

A campanha não alcançou o objetivo, faltando apenas 22 votos. Assim sendo, em

1985 foi realizada eleição indireta para presidente, em que, foi eleito Tancredo Neves. Porém

este nem chega a assumir o cargo, devido a sua doença que brevemente o levou a morte.

Logo, quem assume é seu vice, José Sarney. Este, já inicia seu governo com um quadro

econômico menos grave.

Em 1986 acontece a eleição para Câmara de Deputados e Senado. Em fevereiro do

ano seguinte, começa a se reunir a Assembleia Nacional Constituinte com objetivo de

elaborar uma nova Constituição. E em outubro de 1988, a mesma foi promulgada.

No que diz respeito a educação neste contexto, era um período de crise, sobretudo na

escola pública. Havia um amplo debate entre os educadores no que se refere aos altos índices

de evasão e repetência dos alunos oriundos das camadas populares, o que se convencionou

chamar de “fracasso escolar”.

Este período caracteriza-se também pela tentativa de universalização do então,

ensino de 1º grau. No debate ganha força que, a escola existente naquele contexto histórico

era inadequada para atender a demanda da democratização educacional em curso. Era

necessário, portanto, reformá-la.

Nesse sentido, destaca-se também o papel do professor. No período em questão,

houve um forte debate no que se refere à formação docente, que preparava para atender ao

aluno “modelo”, proveniente de classes dominantes e não ao “aluno concreto”, oriundo de

classes populares, que é a grande demanda atendida pela escola pública.

A denúncia destes fatos e a defesa de uma reforma que contribuísse para a superação

deste quadro predominavam no debate ocorrido no período em questão. Klein (1996) mostra

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que dentre as diversas explicações do fracasso escolar, uma incidia sobre o professor,

fundado em dois aspectos: “a incompetência técnica e o descompromisso político” (p. 19)3.

Partindo da evidencia de que os índices de reprovação e repetência são

mais significativos entre os alunos das chamadas “classes populares”, […]

concluem que existe uma incompetência técnica, ou seja, um despreparo

do professor para ensinar um aluno que apresenta características sócio-

culturais decorrentes da sua condição de classe – a classe trabalhadora – e,

mais do que isso, de segmentos acentuadamente pobres dessa classe.

Segundo, ainda, essas análises, esses alunos – que constituem a grande

maioria da população escolar – não corresponderiam às características que

constituem o “modelo” de aluno para o qual se organiza a escola pública

brasileira, desde as suas origens (KLEIN, 1996, p. 19).

Tendo clara a necessidade de competência técnica e do compromisso político, o

professor conseguiria levar em conta as características dos alunos de classes populares e

possibilitaria a eles obter sucesso escolar.

Com essa solicitação relacionada à qualificação do professor, reivindica-se uma

pedagogia “a favor das classes populares” com alicerce nas suas experiências.

E, em meio a esse debate de educadores, foi retomada4 a publicação da revista Nova

Escola, periódico voltado ao público docente, focando o fracasso escolar e a necessidade de

reformas no processo de ensino visando atender as novas demandas de uma sociedade em

processo de democratização. Destaca-se nesta revista, a ideia de que, para obter êxito na

educação escolar era necessário tomar como referência no processo de ensino a experiência

dos alunos.

Porém relacionar o êxito educacional do aluno a sua experiência pessoal, não era

algo novo na educação. John Dewey (1859 – 1952), um clássico da pedagogia norte-

americana já divulgava essa ideia no final do século XIX, tendo influenciado o pensamento

pedagógico no Brasil nos Estados Unidos e na Europa durante o século XX.

Deste modo, consideramos pertinente estudar o pensamento deste autor, sobretudo

sua concepção de experiência e educação com a finalidade de verificar se há ou não,

proximidades entre as ideias defendidas por Dewey sobre experiência e educação com as

ideias veiculadas na Revista Nova Escola na década de 1980.

Nova Escola e novas abordagens

Partimos do pressuposto de que a Revista Nova Escola nos anos 1980, respondia a

anseios daquele contexto histórico, de um Brasil recém saído do regime militar, em processo

de democratização e em crise nos mais diversos setores sociais.

No sentido de como essa publicação atingia seu público, podemos considerar que, é

a leitura que dá significado ao texto, e que, esses significados podem ser diferentes de acordo

com cada leitor. Enquanto os sujeitos que escreviam os textos publicados eram apenas

signatários. Nas palavras de Chartier

3 Esse binômio foi cunhado na sua forma inversa, por Guiomar Namo de Mello numa análise sobre a escola

pública brasileira na obra Magistério de 1º grau: Da Competência Técnica ao Compromisso Político.

4 A Editora Abril já havia lançado dois títulos voltados a área da educação. A revista Escola (1972) e Professora

Querida (1983), ambos sem êxito, quando em 1986, numa parceria com o Ministério da Educação para que

todas as escolas de 1º grau recebessem a revista, começa a ser publicada a Nova Escola.

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[…] Um tal projeto repousa, por princípio, num duplo postulado: que a

leitura não está, ainda inscrita no texto, e que não há, portanto, distância

pensável entre o sentido que lhe é imposto (por seu autor, pelo uso, pela

crítica, etc.) e a interpretação que pode ser feita pelos seus leitores;

consequentemente, um texto só existe se houver um leitor para lhe dar

significado (CHARTIER, 1999, p. 11).

Ainda de acordo com Chartier, ao considerarmos que, o texto ganha sentido por meio

da leitura e interpretação daqueles que o consomem, percebemos que cabe ao historiador

diferenciar os textos nas suas formas discursivas e materiais da prática de leitura e

interpretação.

Para o pesquisador supracitado existem três formas para trazer à tona uma história

da leitura. A análise de diferentes estilos de textos, a história dos livros nos seus diferentes

formatos e a história da produção de significações dos textos ou das maneiras de ler, ou, ao

entender do autor “a maneira pela qual se opera o ‘mundo do texto’ e o ‘mundo do leitor’”

(CHARTIER, 1999, p.12).

Assim sendo, podemos refletir que o público docente, a quem a revista Nova Escola

se destina, e que atuou especificamente no final dos anos 1980, delimitação histórica desta

pesquisa, fazia uma leitura em um determinado espaço, com determinados hábitos. E esse

público leitor, possuía diferentes ferramentas intelectuais e também diferentes relações com

os escritos, dando a esses registros diferentes significados.

Para Chartier é essencial compreender que, um mesmo texto é diversamente

manejado e compreendido. A leitura para este autor, “não é somente uma operação abstrata

de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os

outros” (CHARTIER, 1999, p.16).

O mesmo autor destaca ainda que um texto não é isolado da materialidade. Que é

extremamente necessário lembrar que não há texto fora de um contexto. Em suas palavras

[…] Contra a representação elaborada pela própria literatura e retomada

pela mais quantitativa das histórias do livro – segundo o qual o texto existe

em si mesmo, isolado de toda materialidade – deve-se lembrar que não há

texto fora do suporte que o dá ler (ou ouvir), e sublinhar o fato de que não

existe a compreensão de um texto, qualquer que ele seja que não dependa

das formas através das quais ela atinge seu leitor. Daí a distinção necessária

entre dois conjuntos de dispositivos: os que destacam estratégias textuais

e intenções do autor, e os que resultam de decisões de editores ou de

limitações por oficinas impressoras (CHARTIER, 1999, p.17).

Outro ponto que Chartier debate é a literatura popular. Destinada a um grande

público, repetição de temas semelhantes, imagens e tendo o texto como uma compreensão

de novas leituras, sendo mais um reconhecimento do que uma descoberta.

Assim como estas obras eram escritas para um determinado público, com as suas

características sociais, a Revista Nova Escola também é destinada a um público específico

com as suas características próprias e que tiveram as suas interpretações daquilo que era

difundido pela publicação.

Ainda tratando do assunto da leitura, Michel de Certeau nos mostra que, no século

XVIII, os iluministas queriam que os livros realizassem uma reforma social. No decorrer

disso, ganha força a ideia de que a sociedade é produzida por um sistema escrito. Como

consequência houve a convicção de que o texto é capaz de moldar seu público. Esse texto

caracteriza a sociedade.

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Para Certeau, a leitura é um aspecto fundamental, porém é parcial. A escrita é o que

organiza a sociedade e tem o poder de modificar e reformar estruturas. Contudo, isso

acontece por meio do binômio escrita-leitura.

Este binômio é válido a diversos tipos de texto, a exemplo, os textos de John Dewey,

autor clássico utilizado em nossa pesquisa.

No Brasil, os textos de Dewey foram traduzidos por Anísio Teixeira, que foi seu

interprete e discípulo. Portanto, tinha uma leitura positiva de seu ideário difundindo-o em

nosso país por meio de documentos como o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”,

num contexto em que o Brasil passava por um processo de industrialização.

Em contraponto, Dermeval Saviani, autor contemporâneo, faz no início dos anos

1980 a crítica a Escola Nova5, propagada no exterior por Dewey, e posteriormente no Brasil

por Anísio Teixeira. Neste contexto nosso país passava por uma série de crises nos mais

diversos setores, inclusive a educação, que passava por um processo de universalização do

ensino de 1º grau e para este pesquisador, que é também um leitor, a Escola Nova não é

democrática.

Assim sendo, em cada momento histórico, diferentes pesquisadores fizeram valer o binômio

escrita-leitura para transformar estruturas e persuadir outros leitores, pertencentes a

diferentes momentos históricos.

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi refletir o sentido da leitura em Roger Chartier e Michel de

Certeau aplicado a Revista Nova Escola, objeto de estudo da pesquisa que está em

andamento no Programa de Pós-graduação em Educação da UNIOESTE.

Realizamos primeiramente a contextualização e apresentação do objeto de pesquisa

e posteriormente a análise deste junto aos autores selecionados.

Para realizar a análise de qualquer texto escrito as reflexões de Chartier e Certeau

são bastante pertinentes, pois trazem a pensamento de que existem diversos textos ou livros,

direcionados a diferentes tipos de leitores, e esses por sua vez, farão diferentes tipos de

interpretações. E para uma pesquisa que utiliza uma publicação como fonte primária, essa

discussão é fundamental.

Referências

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Vozes: Petrópolis, 1998.

CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros. Editora UNB: Brasília, 1999.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. Edusp: São Paulo, 2010.

KLEIN, Lígia Regina. Alfabetização: quem tem medo de ensinar? Cortez; Editora UFMS:

Campo Grande, 1996.

REVAH, Daniel. Escola e Nova Escola: Faces de um velho sonho. In: Hist. Educ. vol.17, n.

39, Santa Maria, Jan. /Abr. 2013.

5 O texto em que Dermeval Saviani faz menção a Escola Nova é “Escola e Democracia I – A teoria da curvatura

da vara”, que está na obra Escola e Democracia.

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“AINDA UMA EXPLICAÇÃO SOBRE A JUVENTUDE HITLERISTA”: ANÁLISE

DA NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA DE ADOLF WILHELM HENSE

Kellin Caroline Schöne1

Resumo: O presente estudo é parte de meu trabalho de conclusão de curso, o qual tem como

foco analisar a narrativa autobiográfica do livro “Minhas memórias: Vivência em dois

Mundos”, de Adolf Wilhelm Hense, publicado em Florianópolis em 1998. A partir dessa

investigação, o objetivo é explorar a construção de determinadas memórias e de uma

determinada imagem de si para o(s) leitor(es). A pesquisa parte da problematização de uma

história de vida, através da narrativa escrita do próprio sujeito, que viveu experiências de

migrações entre Brasil e Alemanha, onde viveu durante o regime nacional-socialista e a

Segunda Guerra Mundial, haja vista, que narrativas memorialísticas como esta, são uma

fonte privilegiada para trabalhar com subjetividades na história, a relação entre o individual

e o social e o modo como os sujeitos se constituem por meio da escrita de si. Para esta

pesquisa, busca-se investigar as escolhas, silenciamentos, o modo pelo qual o autor narra sua

vida, como significa e justifica suas experiências, entre elas as vividas durante o nazismo,

além de analisar os possíveis motivos que levaram o autor a querer “arquivar sua vida” em

forma de livro.

Palavras-chave: Narrativa autobiográfica; Memória; Nazismo.

O presente artigo é fruto de meu trabalho de conclusão de curso, que está em

desenvolvimento, e que tem como foco a investigação e análise de uma fonte histórica

específica, que se trata de um livro constituído por meio de uma narrativa autobiográfica,

intitulado Minhas memórias: Vivência em dois mundos, de Adolf Wilhelm Hense2. O livro

em questão foi publicado em Florianópolis em 1998, escrito originalmente na língua alemã

e traduzido para o português por Verena M. Hense Jungklaus, nora do autor, sendo que se

trata de uma edição do próprio autor. O livro nasceu a partir do incentivo da família para sua

produção, e também de certa forma direcionado a ela.

O trabalho trata da problematização de uma história de vida, através da narrativa do

próprio sujeito, que além de ter vivido experiências de sua vida em dois países diferentes,

Brasil e Alemanha, também viveu experiências relacionadas ao nazismo e à Segunda Guerra

Mundial. Segundo conta, os pais e avós de Hense imigraram da Alemanha para o Brasil na

década de 1920, devido a uma crise financeira na Alemanha, Hense nasceu no Brasil em

1927, viveu aqui durante sua infância e adolescência. No entanto, no início de 1939 mudou-

se para Alemanha com sua mãe e irmão, pois seu pai queria lhes prover uma melhor

educação, lá viveu sob o nacional-socialismo, participou da Juventude Hitlerista durante a

Segunda Guerra Mundial e após o fim do conflito voltou ao Brasil com sua mãe, no ano de

1947.

Essa análise autobiográfica será realizada levando em consideração a subjetividade,

as possíveis escolhas e silenciamentos e os sentidos que este sujeito dá a sua vida. Isto, pois,

narrativas autobiográficas são uma fonte de pesquisa importante para se trabalhar com

1 Acadêmica do curso de História na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus de

Marechal Cândido Rondon. 2 Este estudo faz parte de um projeto de pesquisa maior, coordenado pela Profª. Drª. Méri Frotscher, intitulado

“História e memória autobiográfica em narrativas de imigrantes alemães no Brasil”, financiado pelo CNPq.

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subjetividades e intersubjetividades na história, nos permitem perceber como os sujeitos

significam e ressignificam sua existência, para si e para os outros, através da escrita.

No caso desta análise, perceberemos mais adiante a questão de como ele fala

positivamente da Juventude Hitlerista, parece que ele, por causa da visão negativa que se

tem, procura defender aquela instituição e, assim, também produzir um escrito de autodefesa.

Levando em consideração que os relatos de Hense tratam da vivência própria de um sujeito

em determinado momento, merece ser discutida em suas particularidades, e em relação com

sua conjuntura histórica.

O autor e sua família consideraram importante Hense escrever sua história, pois

perceberam a riqueza de experiências que marcaram a vida dele, portanto, a obra surgiu a

partir de uma proposta da família. O interesse em publicar essa história em forma de livro é

explicado através da contribuição que as memórias de Hense agregariam a história familiar,

e também para que servisse de estímulo para outras pessoas que desejassem publicar suas

experiências de vida.

A obra é dividida em cinco partes, sendo estas: O início – Os Tempos difíceis na

Colônia; A partida para a Alemanha; A Guerra – Tempos de Horror; A volta para o Brasil

– Novos Tempos; A Vida a dois – Um novo começo. À vista disso, podemos perceber através

dessa estruturação de suas experiências no livro, que ele não narra toda a sua vida, mas

apenas partes dela, as partes as quais considera mais importante. É importante perceber como

o autor caracteriza os períodos de sua vida, observe, o período da colonização ele traz a

dificuldade como ponto constitutivo, na parte em que narra as experiências vividas na

Segunda Guerra, ele aborda o horror, e o período do casamento é caracterizado como um

recomeço.

Sua narrativa é escrita após os acontecimentos ocorridos, por conseguinte, é essencial

entendermos a quem é direcionado sua escrita, e também atentar em questionar quais são os

interesses do autor ao escrever sua história. Do mesmo modo, entender que há um trabalho

de memória inserido, entender a memória enquanto fenômeno coletivo, construído

socialmente, e por isto sujeito a mudanças e transformações (POLLAK, 1992). Portanto, o

livro não se trata de mera descrição do que aconteceu, mas deve ser entendido como uma

construção, feito a partir de um trabalho de organização, seleção, exclusão, etc.

A apresentação do livro é escrita por José Raulino Jungklaus, o genro do autor, na

qual escreve:

Narrar a história de nossas famílias não é tarefa fácil. Normalmente, as

obras que se propõem a tratar do assunto são prodigas em acentuar as

virtudes e a harmonia da família. A apresentação das dificuldades e dos

percalços pelos quais o lar passou é quase sempre “esquecida” (HENSE,

1998, p.9).

Com base neste trecho, verifica-se a intenção do escritor em destacar as dificuldades

e percalços que a família passou, podemos interpretar que a intenção dele ao fazer essa

ressalva está em afirmar a superação, isto é, afirmar a superação de Hense para as futuras

gerações.

Ainda na apresentação do livro, Jungklaus escreve: “O relato cru e fiel da realidade

dos fatos, quase sempre uma raridade. Mas é justamente isso que Adolf Hense faz ao lançar

suas memórias” (1998, p.9). Tal citação revela uma concepção de narrativa histórica distinta

da dos historiadores, que não operam com essa noção de verdade.

Com relação à diferença entre a concepção dos historiadores em comparação à de

testemunha, podemos nos apoiar nos escritos do filósofo Tzvetan Todorov (2002), no qual

elucida que os vestígios do passado se organizam em diferentes tipos de discursos, sendo

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eles, o da testemunha, historiador e ainda o comemorador. Com efeito, a testemunha

emprega suas lembranças para produzir um sentido e uma identidade sobre si, construindo

uma imagem a partir de suas experiências em que pode omitir, reter, deformar ou acomodar

certos acontecimentos. O historiador é o profissional responsável pela análise do passado, e

seu objetivo último não está voltado ao seu interesse, mas a verdade impessoal dos fatos.

Mais além, Todorov acomete que a partir do momento que a testemunha divulga suas

lembranças na esfera pública, ela produz um depoimento, que pode vir a competir com o

discurso histórico. Todavia, essas duas espécies de discursos devem ser complementares,

visto que a experiência da testemunha é singular, uma visão de dentro do fato vivido, e o

trabalho dos historiadores, está voltado em buscar os sentidos, valores, consequências dessa

experiência.

Assim sendo, como já dito, a pesquisa está relacionada a um estudo que tem por

acepção a problematização de uma história de vida, identificando conexões entre o

individual e o social, buscando identificar de que forma o autor narra sua trajetória de vida

e quais os sentidos que dá a ela.

O primeiro capítulo do livro de Hense inicia com a narração sobre a vinda de seus

avós e pais para o Brasil, em 1923. Segundo escreve, seus avôs maternos possuíam uma

distribuidora de cerveja na Alemanha, contudo, após a Primeira Guerra Mundial, uma crise

se alastrou: “Em prevenção a um colapso total da distribuidora de cerveja e dos bens, a

família Mönnich resolveu pouco antes vender tudo e emigrar para o Brasil” (HENSE, 1998,

p.11). O autor traz informações detalhadas sobre sua árvore genealógica, tanto dos avôs

maternos como dos paternos, fazendo-nos perceber que sua escrita extrapola sua vida e recua

para suas ascendências.

Para compreendermos um pouco melhor a questão da emigração alemã para o Brasil,

em fins do século XIX e início do XX, podemos nos reportar ao trabalho de Stefan Rinke

(2008). Segundo Rinke, as relações entre alemães e brasileiros, se fortificaram no decorrer

do século XIX e XX, entre estas, estavam inclusas relações transatlânticas, comerciais,

empréstimos, investimentos, etc. Entretanto, as relações teuto-brasileiras esboçavam-se

desde antes, devido ao aspecto da emigração alemã para o Brasil. Antes mesmo de o Brasil

se tornar independente, já houvera “o recrutamento de colonizadores alemães, que já havia

atingido seu primeiro ponto alto nos anos 1820” (RINKE, 2008, p.39). Porém, Rinke aborda

que, a emigração aumentou significativamente somente a partir da primeira metade do

século, até a Primeira Guerra.

Com base nas colocações do autor, também apreendemos que após o fim da Primeira

Guerra em 1918, os chamados “alemães no exterior”, ou seja, os imigrantes isolados no sul

do Brasil, que mantiveram sua cultura germânica no país, adquiriram outro significado nas

discussões públicas na Alemanha. Estes “alemães no exterior” passaram a serem vistos como

uma base propulsora para a ascensão mundial da Alemanha, sendo assim, investiu-se em

uma política de germanidade, em que a base estava caracterizada pela emigração alemã para

a América Latina, após 1918. Desta maneira, “A base da política de germanidade foi a

emigração alemã que, depois do fim da Primeira Guerra Mundial, assumiu mais uma vez a

forma de uma “onda” e alcançou seus números mais altos” (RINKE, 2008, p.40).

Por conseguinte, ocorreu uma onda emigratória alemã muito grande para a América

Latina, sendo o Brasil um dos principais alvos dessa imigração. A família de Hense foi parte

de um fluxo migratório que veio para o Brasil no momento da crise e que voltou para a

Alemanha entre 1938 e 1939, retornando ao Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Segundo conta Hense, seu pai o enviou junto com sua mãe e irmão de volta à Alemanha, em

1939, para que pudessem ter uma melhor educação. Hense em seu livro traz relatos sobre a

chegada à Alemanha.

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Adolf Wilhelm Hense, em seus relatos autobiográficos, se preocupa também em

narrar como entrou para a Juventude Hitlerista, após partir à Alemanha. Com relação ao

contexto do nazismo, a autora Hannah Arendt, no livro Origens do Totalitarismo (1989),

explica que as massas não eram conquistadas pelo nazismo só através da força, mas também

pela propaganda, que servia como forma para realizar uma doutrinação da sociedade.

Também escreve que essa propaganda muitas vezes vinha acompanhada de doses de terror

e violência, às vezes uma violência estratégica. O nazismo tinha a necessidade de recorrer à

propaganda, como forma de convencimento, internamente e externamente. Hense, em seu

livro, chega a comentar sobre o papel que o professor exerceu no seu ingresso na Juventude

Hitlerista:

Passado mais alguns dias, o professor perguntou-me o que eu gostaria de

ser na vida. Respondi que gostaria de construir túneis ou barragens. Ele

sugeriu, então, que eu entrasse na Juventude Hitlerista, para que meu sonho

se fizesse realidade (HENSE, 1998, p.18).

Observa-se, que ao falar sobre a Juventude Hitlerista, Hense em nenhum momento

da narrativa questiona seus ideais, pelo contrário, exalta como ela foi importante para ele, ao

oferecer várias possibilidades para adquirir conhecimentos diferentes em várias áreas

(HENSE, 1998, p.18). A partir de uma análise da obra, percebemos que o autor em momento

algum do livro, escreve sobre o conteúdo ideológico do nazismo, que envolvia as atividades

da Juventude Hitlerista. Não esboçando, ao menos na escrita, uma visão crítica sobre o

passado da Alemanha sob o nacional-socialismo.

Diante do exposto, podemos interpretar esse silenciamento de Adolf Hense em

relação ao conteúdo ideológico perante a instituição nazista da qual fez parte, de duas

maneiras. A primeira maneira seria partindo da premissa de que ele não teria consciência

dos ideais nazistas, até mesmo pelo fato, de permanecer inserido nesta instituição por cinco

anos.

Outra interpretação possível partiria do pressuposto de que Hense teria consciência

dos ideais nazistas, e que, deste modo, propositalmente, excluiu estas questões de sua

narrativa. Partindo deste argumento, poderíamos interpretar parte de seu texto como uma

escrita de autodefesa, pois percebemos uma preocupação do autor em justificar sua

participação na Juventude Hitlerista durante cinco anos, afirmando que ela poderia ser

igualada ao grupo de escoteiros existentes hoje, tanto no aspecto relativo à disciplina como

à prestação de serviços (HENSE, 1998, p.23).

Ainda uma explicação sobre a Juventude Hitlerista. Era uma juventude

organizada com princípios instrutivos em todas as áreas. Podemos igualá-

la aos nossos grupos de escoteiros, uniformizados, disciplinados,

prestativos, mas sob uma orientação planejada. Aí participei por 5 anos

(HENSE, 1998, p.23).

Por conta de um discurso difundido no público hoje sobre o nazismo, o autor parece

querer mostrar a “normalidade” vivida naquela época e até mesmo os pontos positivos da

sociedade sob o nacional-socialismo. Percebemos também uma preocupação em justificar

sua participação nela. Assim, parece que Hense procura escrever um discurso de autodefesa.

Como aborda Calligaris, as autobiografias, assim como os diários íntimos, são escritas por

vários motivos, podendo responder “a necessidades de confissão, de justificação ou de

invenção de um novo sentido” (CALLIGARIS, 1998, p.43).

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O historiador Artiéres também nos fala sobre a autobiografia como a reunião de peças

de uma autodefesa:

O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única

ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele

desejaria ser visto. Arquivar a própria vida, é simbolicamente preparar o

próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa,

organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós.

Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens

assim como o trabalho do tempo (ARTIÈRES, 1998, p.29).

À vista disso, parte da narrativa de Hense, pode ser analisada como uma forma de

justificação de sua experiência pessoal. Pois, não há nesta autobiografia uma interpretação

crítica sobre o passado da Alemanha nazista. Dessa forma, é importante perceber como o

debate sobre o nazismo aparece ou não nesta obra.

Ao pensarmos que Hense produz uma escrita de si, levando em conta o que se pensa hoje no

público sobre o nazismo e a Juventude Hitlerista, podemos perceber a relação que existe

entre a memória individual e a memória coletiva ou social. O sociólogo Maurice Halbwachs,

em sua obra A Memória Coletiva, expõe que a memória individual jamais existe separada da

sociedade, para ele,

[…] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória

coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que

esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros

ambientes (HALBWACHS, 2006, p. 69).

Portanto, as memórias são construções que não são meramente individuais, porém,

sofrem influência dos meios sociais que o sujeito participa ou participou. Conforme o autor,

nossas lembranças são coletivas, “ainda que se trate de eventos em que somente nós

estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos

sós” (HALBWACHS, 2006, p.30). E apesar de afirmar isto, o autor não nega o estado de

consciência individual, que ele chama de “intuição sensível”, pois ainda que nossa memória

seja influenciada pelo social, existem impressões que são próprias de cada um.

Com base nestas colocações, percebemos que Adolf Hense pode ter construído sua

narrativa memorialística, considerando o meio social em que estava inserido. Ou seja, uma

sociedade, que podemos dizer que grande parte da população já tinha conhecimento sobre

as realizações de perseguição e carnificina de cunho racista, empreendidas pelo nazismo.

Durante a guerra, Hense é convocado, com 17 anos de idade, a servir na aeronáutica,

como parte de um conjunto de jovens que foi convocado no final da guerra antes de

completarem 18 anos. Ao narrar sua experiência no conflito, Hense se remete a dois de seus

comandantes dizendo que eram como pais para ele, ou seja, viveu na Alemanha sem o pai e

os comandantes são até vistos como uma espécie de pais substitutos. Pensando que, ao

analisar uma obra, os sentimentos e a subjetividade se fazem presentes, se pode perceber em

alguns momentos da narrativa do livro o ressentimento que sentia em relação ao pai

biológico, que havia deixado a esposa. Quando ele voltou ao Brasil com a mãe, seu pai estava

casado com outra mulher e havia constituído outra família. A partir disso, percebemos como

questões psicológicas se traçam aqui com a própria forma como o autor narra a guerra.

Para concluir, ressalta-se a relevância dessa pesquisa para o meio acadêmico, no

sentido de mostrar como, através de uma narrativa memorialística, podemos investigar e

perceber a apreensão subjetiva de diversos eventos e processos, no caso, o nazismo, a

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Segunda Guerra Mundial, a repatriação, o pós-guerra, entre outros. Como também perceber

a relação entre memória individual e a memória social. Além disso, este trabalho permite a

discussão das implicações da memória em sua relação com a produção de conhecimento

histórico no tempo presente, visando a produção de uma análise histórica crítica. No que se

refere à memória, existem poucos estudos sobre memórias do nazismo no Brasil, mais

especificamente, sobre memórias de migrantes que viveram experiências sob o nacional-

socialismo na Alemanha. Este estudo que realizarei parte de uma fonte diferenciada em

relação a fontes escritas na Europa, pois se trata de uma fonte publicada no Brasil e que

permite analisar a imigração, guerra, nacional-socialismo a partir do Brasil.

Fonte

HENSE, Adolf Wilhelm. Minhas Memórias: Vivência em dois mundos. Florianópolis:

Edição do Autor – Bilíngue, 1998.

Referências

ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n 21,

v.11, 1998.

CALLIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos Históricos.

Rio de Janeiro, n. 21, v.11, 1998.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo:

Centauro, 2006.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.

5, n. 10, 1992.

RINKE, Stefan. Auslandsdeutsche no Brasil (1918-1933): Nova emigração e mudança de

identidades. Espaço Plural, Marechal Cândido Rondon, ano IX, n. 19, 2º semestre 2008.

TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem: Indagações sobre o século XX.

São Paulo: Arx, 2002.

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JORNAL NOSSO TEMPO: OPOSIÇÃO AO REGIME MILITAR NOS ANOS DE

1980 A 1985

Luana Milani Pradela1

Resumo: Este trabalho é resultado do projeto de iniciação científica de mesmo título que

tem por objetivo discutir o processo de abertura “democrática” – chamado de projeto de

distensão – no Brasil nos anos finais da Ditadura Militar instaurada no ano de 1964, projeto

este que resultaria na democracia burguesa vigente. Tal discussão tem por base a análise das

edições do Jornal Nosso Tempo, o qual foi produzido em Foz do Iguaçu entre anos de 1980

a 1989. Porém, a análise tem por objetivo os anos de 1980 (ano de sua criação) a 1985, ano

que marcou a eleição de Tancredo Neves, primeiro presidente não militar após vinte anos de

regime. Nosso Tempo constituiu-se enquanto um jornal de oposição à ditadura, atuando,

portanto, enquanto uma mídia alternativa à mídia empresarial, que possuía (e ainda possui)

vínculos políticos e econômicos que garantiram a concretização e manutenção da ditadura

militar. As edições possibilitam encontrar denúncias e reportagens que abordavam aqueles

que sofriam diretamente com as arbitrariedades do governo militar no Paraná e no Brasil,

dando espaço e “voz” a quem não tinha presença nos meios de comunicação vinculados à

mídia empresarial. Dessa forma, é possível perceber a violência praticada pelos órgãos

policiais, práticas de corrupção pelos agentes do governo, as desapropriações efetuadas pela

construção da Hidrelétrica Itaipu Binacional, o processo de disputa eleitoral e a busca por

eleições diretas, enfim, elementos que nos permitem compreender melhor como se deu este

período.

Palavras-chave: Ditadura Militar; Nosso Tempo; Projeto de distensão.

O Jornal Nosso Tempo foi constituído no ano de 1981, tendo sua primeira edição

lançada no dia 3 de dezembro do mesmo ano. Os responsáveis pela organização do jornal

eram os editores: Aluisio Palmar, Juvêncio Mazzarollo e João Adelino de Souza. O primeiro

foi militante de esquerda do PCB (Partido Comunista Brasileiro), o segundo professor

formado em letras e o terceiro jornalista.

Surgido nos anos finais da Ditadura Militar instaurada no Brasil (1964 – 1985), o

jornal tinha um posicionamento claro de oposição ao regime militar, atuando enquanto uma

mídia alternativa expondo constantemente críticas ao sistema, aos políticos e à elite

brasileira, em especial na cidade de Foz do Iguaçu, local em que o jornal foi instalado.

Atuando enquanto um meio de comunicação difundindo ideias e perspectivas, Nosso

Tempo pode ser estudado enquanto um aparelho privado de hegemonia, conceito

desenvolvido por Antonio Gramsci, que nos remete para a

organização e, portanto, para a produção coletiva de visões de mundo, da

consciência social, de formas de ser adequadas aos interesses do mundo

burguês (a hegemonia) ou, ao contrário, capazes de opor-se resolutamente

a este terreno dos interesses (corporativo) (FONTES, 2010, p.134, grifos

meus).

1 Acadêmica do curso de História da UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná)

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Procurava “dar voz” a quem não tinha espaço nas mídias empresariais, organizadas

a partir de vínculos políticos e econômicos que determinavam quais visões eram

reproduzidas.

Dessa forma, Nosso Tempo é analisado a partir de uma produção que se opõe aos

interesses corporativos, como abordado, e assim sendo, contra aos interesses hegemônicos

(burgueses). Hegemonia, no caso, refere-se à capacidade de uma classe de elaborar uma

visão de mundo própria, afirmando essa visão enquanto projeto para si e para a sociedade e

direcionando as demais classes que passam a ser subordinadas (DIAS, 1996, p.10). Dispunham de autonomia financeira e política, o que os permitia trazer denúncias

sobre violência policial, corrupção e as arbitrariedades do governo em geral. Afinal, mesmo

durante os anos finais da Ditadura, o Brasil não esteve livre da violência e de práticas

autoritárias por parte do governo militar.

Logo nas primeiras edições, aborda-se sobre a tortura praticada pelos órgãos

policiais. É sabido que durante os anos da ditadura, constituiu-se um aparelho repressivo

institucionalizado pelo governo para punir (leia-se torturar, matar) aqueles que se opusessem

às ações deste governo. Tal aparelho foi sendo desconstruído ao longo dos anos, e após o

extermínio da luta armada, porém, deixou uma herança de violência e irregularidades à

formação policial, que esteve presente nos anos finais da ditadura, reafirmado no seguinte

trecho:

Nas primeiras edições deste jornal realizou-se amplo e sério trabalho de

desmascaramento da aviltante e contraproducente prática dentro dos

organismos policiais de Foz do Iguaçu. Semanalmente a tortura desumana,

brutal, animalesca, tem dado assuntos fartos nestas páginas. A revelação

de atrocidades cometidas por policiais provocou comoções na comunidade

e despertou as atenções das autoridades de Curitiba e Brasília (NOSSO

TEMPO, Ed. 12, p.2., 25 de fevereiro de 1981).

Na mesma edição é narrado o caso de tortura,

O caminho percorrido por Luiz Dias Lopes foi o mesmo que de todos os

presos que chegam na Delegacia. Começam a ser espancados já no ato da

prisão, e dentro da Delegacia são submetidos às mais variadas atrocidades

pelos torturadores. Desta vez aconteceu uma morte e ficou claro, sem

nenhuma margem de dúvidas, que a vítima morreu na tortura (Idem).

Luiz havia ultrapassado um sinal vermelho, sendo perseguido pela polícia

Rodoviária, e em seguida, encaminhado para a 6ª SDP por “suspeita”. Chegando lá, começou

a sessão de tortura:

A noite do dia 13 para 14 foi um inferno para o preso nas mãos dos insanos

torturadores. Levaram Luis para um quartinho nos fundos da Delegacia e

ali começou a sessão de torturas. Depois dos espancamentos, ele foi

pendurado no cruel instrumento de suplício conhecido como “pau-de-

arara”, assim chamado porque o indivíduo depois de ter as mãos e os pés

amarrados fica pendurado numa barra de ferro que é erguida entre duas

Cadeiras ou mesas (Idem).

Essa violência escancarada é questionável num processo em que o governo afirmava

que caminhava para uma “abertura” democrática. Da mesma forma, muitas outras

arbitrariedades são questionáveis. Entre elas, a miséria em que se encontrava o Brasil, devido

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às ações do governo. Outro elemento bastante presente nesse período é a miséria da

população brasileira.

Acontece que os anos de ouro da Ditadura, correspondentes a um suposto “milagre

econômico”, foram resultado de um grande impulso à industrialização com base em vínculos

internacionais. Porém, para favorecer o acúmulo financeiro, ampliou-se o arrocho salarial e

a super exploração do trabalhador. Para garantir o silêncio dos trabalhadores, criou-se uma

legislação salarial e trabalhista em 1965, que visava, entre seus objetivos, a submissão do

trabalhador a sindicatos “assistencialistas” e menos politizados, que impedissem a

organização efetiva dos trabalhadores, fora a extinção do direito de greve (FONTES;

MENDONÇA, 2006, p.22). Seriam estes os chamados sindicatos pelegos.

Esses elementos acentuaram a pobreza da população brasileira. Além disso, com a

alta do preço do petróleo, fator primordial no declínio do regime militar, constituiu-se uma

crise econômica no país. O petróleo barato havia sido supervalorizado pelo governo militar,

sem se dar conta de que as jazidas baratas um dia esgotariam (KUCINSKI, 1982, p.25).

Assim, com a queda do petróleo, o governo passou contrair dívidas externas para contornar

a crise, a qual atingiria diretamente a economia da população brasileira.

No caso de Foz do Iguaçu essa situação era ainda mais acentuada. No período em

que foi construída a Hidrelétrica de Itaipu, Foz tornou-se um foco de atração aos

trabalhadores de toda região urbana e do campo. Porém, por não ter condições de absorver

a grande quantidade de mão de obra que se deslocava, desenvolviam-se trabalhos informais

e subempregos (CATTA, 1994 apud SOUZA, 2009, p.49). Essa situação de miséria e precariedade era abordada nas edições do jornal,

Foz do Iguaçu ainda é uma das cidades do Paraná onde o problema de

moradia é crítico. Com o esvaziamento do campo derivado depois do

surgimento de plantações extensivas (modelo norte americano) onde a

mão-de-obra é mínima a ser ocupada, a população urbana cresceu de forma

assustadora. […] A população de Foz aumento de vinte mil para cento e

dez mil em cinco anos (NOSSO TEMPO, 6ª ed, 18 de fevereiro de 1981,

p.10).

E, ainda,

Para quem vive de salário mínimo ou com uma renda mensal de até 15 mil

cruzeiros, talvez a maioria da população assalariada, resta morar na

periferia a dez ou doze quilômetros da cidade ou nas favelas espalhadas

ao redor ou próximas aos locais de trabalho (Idem).

O jornal ainda trouxe dados oficiais para expressar a situação A reportagem do jornal

Nosso Tempo, denominada Concentração da Riqueza e aumento da pobreza, é uma evidência

das consequências do período do milagre econômico.

A matéria nos traz dados do IBGE apontando que durante o governo militar, o

produto interno bruto cresceu 8,2% ao ano e o produto per-capita 5,2% ao ano (c). Porém,

no mesmo sentido, a participação dos 5% mais ricos no país elevou-se de 28% em 1960 para

38% em 1976, e os 80% mais pobres perderam de 45% para 35% sua participação (Idem).

Ou seja, a melhoria na economia beneficiou aos mais ricos, pois possibilitou a concentração

de renda, enquanto a miséria no Brasil aumentava ainda mais.

Com a construção da Hidrelétrica Itaipu, um dos projetos arquitetônicos da Ditadura

Militar, a situação tornou-se mais complexa, pois milhares de pessoas foram expulsas de

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suas terras, perdendo seus trabalhos, suas casas, por conta das águas que tomariam as

propriedades.

Muitos trabalhadores foram expulsos sem sequer receber indenizações ou recebendo

valores muito abaixo do que deveriam, por pressão do governo e das forças policiais. Com

o tempo, esses trabalhadores passaram a se organizar em movimento de luta, com forte apoio

da Igreja Católica, na busca de indenizações coerentes e no enfrentamento de outros

problemas que foram surgindo, como é possível observar na passagem abaixo, em que se

relata uma das ações do movimento dos trabalhadores expropriados.

O movimento que em julho bloqueou o escritório da empresa em Santa

Helena serviu para um ânimo geral, mas em seguida constataram dois

problemas: o preço pago por Itaipu nunca alcança os índices do mercado

de terra da região, por causa da inflação e da especulação; outro

problema liga-se ao reassentamento. As terras disponíveis para aquisição

são muito poucas no Oeste do Paraná. Está cada vez mais difícil arrumar

terras (NOSSO TEMPO, Ed.3, p.18, 17 de dezembro de 1980, grifos

meus).

E,

Muitos agricultores indenizados estão há mais de um mês perambulando

a procura de terra, com o dinheiro na mão, mas não encontram terras para

comprar. Seu dinheiro está desvalorizando em suas mãos enquanto o preço

de terras sobe constantemente (Idem, grifos meus).

Além dos valores inferiores ao real valor da terra, os expropriados sofriam com a

falta de terra na região, o que muitas vezes os empurrava para regiões distantes para que

pudessem procurar se estabilizar novamente, fazendo com que começassem suas vidas do

zero, muitas vezes longe de seus familiares e amigos.

Além dos pequenos proprietários da região, tribos indígenas foram expulsas,

perdendo grande parte de suas terras, seu meio de sobrevivência, sendo relegados a pequenas

porções impróprias de terra.

Diante dessa situação de miséria, encontrava-se um prefeito biônico, ou seja,

escolhido pelo presidente, o qual não resolvia os problemas locais. Essa situação deve-se ao

fato de Foz do Iguaçu ter sido definida como área de segurança nacional, por conta de sua

localização na fronteira com outros países, o que facilitava o movimento de grupos de

oposição ao regime, considerados clandestinos.

Assim como no caso de Foz, para muitas outras cidades consideradas área de

segurança eram designados prefeitos escolhidos pelo próprio presidente, os chamados

biônicos, muitas vezes não sendo nem da própria cidade que representavam, o que os deixava

distantes dos problemas locais. Em Foz do Iguaçu, esse cargo ficou nas mãos do coronel

Cunha Vianna por mais de oito anos, gerando grande insatisfação popular.

Para reverter tal situação, bem como a situação do Brasil em geral, o povo brasileiro

saiu às ruas nos anos de 1983 e 1984 exigindo eleições diretas para prefeitos e presidente da

República. Este movimento teve força principalmente com a dissolução do bipartidarismo

nacional, representados pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e pelo MDB

(Movimento Democrático Brasileiro), que ampliaria os partidos da oposição e resultaria na

vitória de José Richa, membro do então PMDB para governador do Paraná.

O desenvolvimento do multipartidarismo foi uma estratégia do governo de modo a

enfraquecer a oposição, principalmente o MDB, que passou a ser o voto de protesto da

população contra a ARENA, partido do governo (MACIEL, 2004, p.231). Porém, o tiro saiu

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pela culatra, pois os grupos oposicionistas centraram forças na eleição de José Richa, tendo

em vista que o PMDB era o partido mais forte da oposição, pois aglutinava desde setores

oposicionistas e não-hegemônicos do bloco no poder, como o médio capital industrial e a

média propriedade rural, passando por setores tradicionais da classe média urbana, até parte

dos novos movimentos das classes subalternas, tanto urbanos quanto rurais (MACIEL, 2004,

p.248).

Para as eleições municipais, não houve muito avanço, pois o presidente continuou

escolhendo os representantes até o fim do regime militar. Porém, no caso de Foz, houve a

possibilidade de se indicar um representante da própria cidade, o qual tinha mais contato

com os problemas locais, diferentemente de Cunha Vianna que não era morador da cidade

que administrava.

O que diz respeito à eleição presidencial direta, o movimento pelas eleições diretas (Diretas

Já!) resultou na apresentação de uma emenda constitucional apresentada pelo Deputado

Federal Dante de Oliveira, pelo PMDB de Mato Grosso, com o objetivo de reimplantar as

eleições diretas imediatas para presidente da República no Brasil

Tal emenda tinha grande apoio de setores da oposição, em especial do PMDB,

partido que teria maiores chances numa eleição presidencial por conta de sua força,

principalmente após a fusão com o PP (Partido Progressista). No entanto, sob a articulação

dos governistas e dos setores da oposição que temiam a organização dos setores populares,

a Emenda foi derrubada, garantindo eleições diretas apenas para 1988.

Sob a miséria administrativa e política do presidente Figueiredo, no

pantanal do jogo sujo praticado pela velharada decrépita que comanda o

“bunker” de Brasília; dentro do lixeiro partidário que sempre foi o partido

de sustentação do regime militar; sob o tacão da essência autoritária que

faz das forças armadas o supra- sumo da antidemocrata e com o comando

do general Newton Cruz, o governo conseguiu patrocinar uma palhaçada

sem precedentes ao impedir a aprovação da emenda Dante de Oliveira (NOSSO TEMPO, Ed. 119, p.4, 18 de maio de 1984).

Diante da derrota, o PMDB passou a se organizar rapidamente na organização de

uma chapa para disputar as eleições no Colégio Eleitoral. É importante salientar a

pluralidade que formava este partido, partindo de setores das frações das classes dominantes

até setores populares, com apoio inclusive de grupos da esquerda como o PCdoB (Partido

Comunista do Brasil) e o MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro).

Os membros das frações das classes dominantes tinham sua maior preocupação em

colocar na presidência um sujeito que representasse seus interesses. Juntamente com setores

do PDS, o PMDB-PP lançaram a chapa Tancredo Neves para presidente e Sarney para vice,

levando em conta as boas relações que Tancredo possuía com alguns militares como o

próprio Geisel, e passando por cima dos interesses dos setores populares do próprio partido.

Dessa forma, em janeiro de 1985 a chapa lançada pelo PMDB saiu vitoriosa no

Colégio Eleitoral, garantindo a presença de um representante dos interesses das frações da

classe dominante no poder, sem desconstruir de imediato o sistema autoritário em que a

ditadura estava constituída, e garantindo processo que Geisel denominou de lento, gradual e

seguro.

Os editores do jornal Nosso Tempo, por sua vez, não comemoraram com afinco essa

vitória, a qual não recebeu nem sequer uma capa específica. Foram exibidas apenas notas

apresentando a vitória de Tancredo, demonstrando sua insatisfação com o acontecido, já que

objetivavam mesmo eram as eleições diretas.

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Tancredo-já, ora bolas! Tudo bem, já que não deu vamos nos preparar para

outras. Já guardei na gaveta minha camisa das diretas-lá, tirei do carro o

adesivo verde-amarelo e estou esperando aquele com Tancredo-já, peguei

aquela faixona usada no comício que fizemos aqui em Foz e enfiei lá no

quartinho dos fundos. Meu título de eleitor, que eu já havia tirado lá do

meio das papeladas e colocado entre as páginas de O Capital, de Marx, já

não será mais usado no meu voto patriótico, nacionalista e brizolista. Tá

legal, vamos nessa de implodir com esta eme de regime usando o seu

próprio veneno. Mas tem uma - mandato de dois anos para este governo de

transição e Constituinte-já. Aguentar mais quatro anos de governo

ilegítimo e sem respaldo popular para as grandes transformações que o pais

exige, vai ser um saco (NOSSO TEMPO, Ed. 128, p.9, 20 de julho de

1984).

Em outra nota, porém, percebemos que mesmo insatisfeitos com o resultado, os

editores compreendiam que era um contexto melhor que o anterior, afinal, os militares saiam

da presidência, e um governo democrático estava mais próximo.

Ufa! Até que enfim dá pra respirar. O Colégio Eleitoral elegeu o doutor

Tancredo Neves. Agora é só esperar sua posse no dia 15 de março e ver o

que vai dar tudo isso. O governo da coalizão PMDB mais dissidentes do

PDS tem uma missão a cumprir: redemocratizar o país. Pelo menos no

nível institucional. É uma missão importante e a nação vai empurrar o

novo governo, para que a transição se faça num menor prazo de tempo

possível (NOSSO TEMPO, Ed. 152, p. 7, 18 de janeiro de 1985).

Por fim, saliento que de acordo com essas abordagens, percebemos que o período

que se definiu enquanto abertura, não esteve livre das ações arbitrárias do governo, o qual

manteve-se presente no poder até o último instante em que pode.

Fontes

Nosso Tempo, Ed.3, 17 de dezembro de 1980.

Nosso Tempo, Ed. 12, 25 de fevereiro de 1981.

Nosso Tempo, 6ed, 18 de fevereiro de 1981.

Nosso Tempo, Ed. 119, 18 de maio de 1984.

Nosso Tempo, Ed. 128, 20 de julho de 1984.

Nosso Tempo, Ed. 152, 18 de janeiro de 1985.

Referências

DIAS, Edmundo. Hegemonia: racionalidade que se faz história. In. ______. O outro

Gramsci. 2ª ed. São Paulo: Xamã, 1996.

FONTES, Virgínia M. O Brasil e o capital-imperialismo. 2.ed. Editora UFRJ. Rio de

Janeiro, 2010.

FONTES, Virgínia Maria; MENDONÇA, Sonia Regina de. História do Brasil recente:

1964-1992. 4.ed. São Paulo: Ática, 2004.

KUCINSKI, Bernardo. Abertura: A história de uma crise. São Paulo: Brasil Debates, 1982.

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MACIEL, David. A Argamassa da Ordem: da ditadura militar à Nova República (1974-

1985). São Paulo: Xamã, 2004.

SOUZA, Aparecida Darc. Formação Social e Econômica de Foz do Iguaçu: um estudo sobre

as memórias constitutivas da cidade (1970 – 2008). Tese de doutorado, USP, São Paulo,

2009.

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“DAQUI SÓ SAIO SE ME DER UMA CASA PRA MORAR”: A LUTA PELA

MORADIA EM FOZ DO IGUAÇU (1970-1990)

Lucas Eduardo Gaspar1

Resumo: Este trabalho tem como proposição principal a análise de um problema histórico

da cidade de Foz do Iguaçu, o problema da moradia. Para isto, volto a atenção às décadas de

1970 a 1990, recorte temporal este que é marcante na história da cidade, visto a efervescência

de projetos estatais, comércio internacional, e deslocamento de trabalhadores para a cidade.

Para a análise do problema da moradia no período, utilizarei como fonte principal as matérias

que tratam do assunto no jornal iguaçuense Nosso Tempo, que circulou no município

semanalmente de 1980 a 1994. Nesse sentido, serão apontados os limites e possibilidades de

pesquisa e análise histórica, utilizando este tipo de evidência. Sendo assim, a discussão girará

em torno da identificação e análise tanto dos principais problemas e atenções a serem

tomadas quando recorremos a tal evidência na construção histórica, como também das

possibilidades de análise do processo conflituoso, marcado pela luta de classes e que tinha

como um dos elementos essenciais a questão da moradia, que permeavam a sociedade

iguaçuense. Além disso, uma região da cidade é privilegiada na análise: o chamado Rincão

São Francisco aparece por diversas vezes nas páginas do jornal e receberá atenção especial

nesta abordagem.

Palavras-chave: Moradia; Trabalhadores; Luta de Classes.

O Jornal Nosso tempo: História, limites e possibilidades.

A partir de dezembro de 1980, o jornal Nosso Tempo passou a circular semanalmente

na cidade de Foz do Iguaçu. Desde 1964, o Brasil vivenciava um período ditatorial. No ano

de 1980 o presidente da República era o general João Figueiredo, e os coronéis Ney Braga e

Clovis Cunha Vianna ocupavam os cargos de governador do Paraná e prefeito de Foz do

Iguaçu, respectivamente. A repressão estatal e a censura da imprensa são características

bastante conhecidas do período. Torturas, perseguições políticas, nomeação de cargos

políticos e a corrupção são também alguns dos elementos que marcam o contexto nacional

da década de 1980. Pensando agora na cidade de Foz do Iguaçu, alguns elementos essenciais

daquele período também podem ser elencados como, por exemplo, a construção da Usina de

Itaipu, o crescimento demográfico do município, o aumento do comércio com os países

vizinhos e os problemas urbanos cada vez mais visíveis e perceptíveis à população urbana.

É neste contexto, e sobre este contexto que o jornal Nosso Tempo é criado e atua.

Aluísio Palmar, João Adelino de Souza e Juvêncio Mazzarollo foram os idealizadores e

criadores do periódico. De trajetórias diversificadas, estes sujeitos militaram contra o regime

ditatorial brasileiro. No início do ano de 1980 trabalhavam juntos na redação do periódico

“Hoje”, que circulava em toda região Oeste do Paraná. Com a venda deste jornal para

Jucundino Furtado – sujeito ligado à antiga ARENA, e que deteve certa influência dentro do

regime militar no Paraná, ocupando cargos como diretor Administrativo da Itaipu Binacional

1 Mestrando em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Faz parte da equipe do

laboratório de Trabalho e Movimentos Sociais e do grupo História Social do Trabalho e da Cidade da

UNIOESTE e membro do grupo de pesquisa Paisagens Periféricas: Poéticas e Conflitos, da Universidade

Federal da Integração Latino-Americana - UNILA. Email: <[email protected]>

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e também Presidente do Banco do Paraná – os três jornalistas foram imediatamente

demitidos, devido a sua postura contestadora e de esquerda dentro do jornal.

A ideia de criação de um jornal contestador, que denunciaria problemas da cidade de

Foz do Iguaçu serviu como atrativo para os investimentos no jornal. Os investidores viram

nessa proposta a chance de uma maior atuação política dentro do município. A formação da

editora Nosso Tempo foi um exemplo claro desse movimento, pois serviu como captação

formal de investimentos para o jornal e teve sua primeira composição feita por empresários

e políticos filiados ao PMDB e PDS.

Depois de criado o jornal, passou a publicar severas críticas tanto ao governo

municipal, quanto estadual e federal. Sua composição tinha, quase na íntegra, matérias que

denunciavam situações como a fome, o problema da moradia, as disputas pela terra, a tortura,

perseguição e das ações políticas ditatoriais. O jornal mostrava sua postura de recusa e

combate a esta situação enfrentada em Foz do Iguaçu e no Brasil. Foi por essa postura que

este periódico e seus editores principais sofreram diversos ataques, tanto de populares e

empresários da cidade de Foz do Iguaçu que apoiavam o sistema ditatorial, quanto do próprio

Estado que, por vezes, tentou fechar as portas do jornal, impedir a publicação de texto de

alguns editores por não terem formação em jornalismo e até mesmo a prisão de um escritor

do Nosso Tempo, o professor Juvêncio Mazzarollo.

Nesta luta constante, o jornal permaneceu ativo até o ano de 1988. Com o fim da

ditadura e implantação da nova Constituição Brasileira, pouco a pouco o periódico começou

a perder seu caráter combativo e de denúncias, passando a ganhar formas cada vez mais

comerciais. Essa característica acabou por não agradar seus leitores mais assíduos, fazendo

com que a tiragem do jornal diminuísse, até que no ano de 1992 fosse vendido para Luiz

Almeida, que numa ação de retomada da credibilidade e circulação do periódico o torna

diário. Sem sucesso o jornal é fechado no ano de 1994.

Muitos são os limites do trabalho de análise histórica com o jornal Nosso Tempo.

Algumas atenções devem ser tomadas ao recorrer a este jornal para a construção da história

do município. A primeira atenção está relacionada ao público que era direcionado o jornal,

pois, diferentemente de Jornais Sindicais ou partidários, o Nosso Tempo foi elaborado por

sujeitos que detinham um conhecimento acadêmico, como é o caso de Juvêncio Mazzarollo,

professor de português, e Aluisio Palmar, jornalista. Essa característica fez com que, apesar

da linguagem simples e de fácil entendimento, o jornal não fosse direcionado para os

trabalhadores da cidade. Eram os políticos, acadêmicos e até mesmo alguns empresários da

cidade que formavam o público para o qual as matérias se direcionavam.

Uma questão que está intimamente ligada ao ponto anterior é o problema de acesso

ao jornal, inicialmente vendido a um preço acessível de CR$ 20,00 (Cruzeiros). Após um

ano de circulação seu preço já havia dobrado, e no final de 1984 já custava CR$ 500,00 pelas

mesmas 20 páginas semanais. Fora o preço crescente que dificultava o acesso da população

mais pobre ao jornal, devemos considerar também que esta população na cidade de Foz do

Iguaçu não era totalmente alfabetizada2 e, por esse motivo, acabava por não recorrer a jornais

como fonte de informação.

Outro elemento problemático encontrado em sua composição é o de seu caráter que

constantemente acaba por culpabilizar todas as situações problemáticas da cidade de Foz do

Iguaçu a três sujeitos principais, o prefeito, o Estado, e a Usina de Itaipu. Quando olhamos

para este período histórico, devemos considerar que o regime ditatorial brasileiro trouxe uma

série de mudanças para todo o país, desde as pequenas cidades às grandes metrópoles

2 Visto a falta de dados que elucidem a taxa de analfabetismo na cidade no período, tomo como referência o

senso demográfico feito pelo IBGE no ano de 1980, que constatou uma taxa de 27,5% de analfabetos no país.

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sofreram transformações, muitas delas negativas, com o agravamento de problemas sociais

e econômicos. Apesar disso, a postura do jornal Nosso Tempo, ao culpar tais transformações

à responsabilidade destes sujeitos, acaba por descaracterizar a atuação dos outros grupos

sociais e atores do período. A classe trabalhadora aparece então nas páginas do jornal por

diversas vezes, mas sempre como vítima de um processo que a atingiu. Além disso, o

periódico, ao fazer essa caracterização do momento evidenciado, também relega as

“soluções” dos problemas ou à própria ação do Estado ou aos militantes, intelectuais e

políticos de partidos aliados, mais uma vez, deixando de lado o caráter transformador e

político das ações populares.

Apesar desses cuidados e limitações da evidência, creio que ela seja de extrema

importância para a pesquisa de que provém este trabalho. Uma série de outros elementos

podem ser problematizados com um olhar histórico sobre o jornal Nosso Tempo. Ao

considerá-lo como um meio de comunicação, carregado de intenções e com um pensamento

político muito bem delimitado, debates importantes que permeavam o município na década

de 1980 podem ser discutidos. Um deles é a questão da moradia.

A Luta por Moradia nas páginas do Jornal

Desde suas primeiras edições, o jornal Nosso Tempo mostrou diversos problemas da

cidade de Foz do Iguaçu, entre eles podemos observar a luta por educação dos filhos dos

trabalhadores, que, dependendo do bairro em que residiam, não poderiam matricular seus

filhos na escola pública que ficava no centro da cidade. Outros problemas, como a falta de

saneamento básico em diversas regiões da cidade, os alagamentos e precariedades das vias

urbanas, também foram temas recorrentes nas edições deste jornal3. A disputa por uma área

rural nas redondezas do município de Foz do Iguaçu foi um tema que apareceu por diversos

anos nas páginas do Jornal. A região chamada de Lote Grande, por anos, foi disputada entre

famílias de trabalhadores rurais, que ocuparam a terra, e o proprietário do terreno, que exigia

a reintegração de posse.

Recorrendo sempre a entrevistas feitas, na maioria das vezes, com os sujeitos que

vivenciavam esses problemas e também devido à sua postura dissidente em relação ao

governo do período, as matérias do jornal Nosso Tempo estão carregadas de elementos que

podem servir para o entendimento da realidade social vivida em Foz do Iguaçu, bem como

o papel da classe trabalhadora na construção de uma cidade em pleno crescimento.

A questão da moradia é um destes aspectos que podem ser analisados e questionados

a partir deste periódico. No período estudado, de 1980 a 1983, foram encontradas cerca de

100 matérias que tratam de alguma forma de problemas relacionados à população pobre,

aspectos urbanos da cidade como os vistos acima. Neste mesmo período foram encontradas

32 matérias que tratam especificamente do problema da habitação na cidade. Neste trabalho

seria impossível discutir todas essas matérias de maneira mais aprofundada, por isso

concentrarei esta parte final na discussão de dois elementos que aparecem no Jornal. O

primeiro deles é uma matéria publicada em fevereiro de 1981, intitulada “Crise da Moradia”;

o outro elemento que gostaria de trabalhar é o aparecimento recorrente de uma região da

cidade nas páginas do Jornal, a Região do São Francisco.

3 Exemplos disso são as matérias: “Se é do Rincão não entra”, da segunda edição do jornal que denunciava a

negação de jovens moradores do bairro São Francisco no colégio Bartolomeu Mitre do centro da cidade;

também as matérias “Cidade será finalizada Finalmente”, “Princesa Inunda e Polui rio” e “Prefeitura só asfalta

rua de rico”, que abordam a questão de diferentes problemas encontrados no espaço urbano da cidade, matérias

essas presentes na 3° e 4° edição do jornal.

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No primeiro elemento, o que de início chamou a atenção, foi sua proporção dentro

da 11ª edição do jornal, pois a matéria sobre a crise da moradia ocupou 5 páginas do

periódico. A sua primeira página talvez seja a mais expressiva, no que diz respeito ao

posicionamento e intenção do jornal. Nela, o título da matéria ocupa mais da metade da

página, com letras em caixa alta e rodeada por duas fotografias. No restante da página, o

subtítulo “Uma realidade em Foz do Iguaçu” é seguido por um campo de texto reduzido –

para os padrões do jornal –, onde é dada uma introdução do problema na cidade.

Imagem 1: Primeira página da matéria “Crise da Moradia” de 1981 do Jornal Nosso Tempo.

(Fonte: Jornal Nosso Tempo, Ed. 11, de 18 a 25/02/1981, p. 10)

Tecnicamente, a matéria destoava do padrão de publicação do jornal, ao delegar tanto

espaço a um título. Deste elemento já podemos perceber tanto a preocupação do periódico

com esse tema como também a importância dele no contexto em que foi produzido, pois, se

tal discussão não fosse tão relevante e não estivesse em voga, com certeza, não receberia

este espaço no jornal. Como relatei anteriormente, essa não foi a única matéria que tratou da

questão da moradia no periódico, mas com certeza foi a maior delas.

Detendo-se ainda à primeira página exposta, outro elemento chama atenção. As duas

imagens utilizadas também nos servem aqui para uma análise histórica do município. A

imagem da esquerda leva no subtítulo a seguinte frase: “Até no alagado os migrantes fazem

sua casa”, já a da direita ressalta: “Eles saem do campo, onde as máquinas substituíram o

homem, e vem pra Foz em busca de trabalho. Esta família ficou acampada na rodoviária até

conseguir um lugar na favela”. Tais fotografias evidenciam uma realidade que comumente

é negligenciada da História da cidade de Foz do Iguaçu, uma realidade que no período era

marcada pelo deslocamento de um grande número de trabalhadores para Foz do Iguaçu,

muito influenciados pela construção da barragem da Usina de Itaipu.

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Dentro de uma perspectiva histórica hegemônica e oficial do município, os

problemas decorrentes deste grande deslocamento e crescimento demográfico são ocultados.

Essas reportagens e fotografias abrem espaço para a formulação de uma outra história da

cidade, uma história marcada pela crescente precariedade de vida da população mais pobre

e recém chegada, pela falta de condições básicas de vida e de moradia, onde o caso da

barraco ribeirinho e da família na rodoviária não constituem casos isolados no contexto

social de Foz do Iguaçu da década de 1980, mas sim realidades e vivências recorrentes de

determinado grupo social, que lutou de diversas maneiras para a conquista de uma moradia,

nem digna muito menos aconchegante, mas que serviria para que não dormissem ao relento.

Outro ponto que gostaria de atentar no trabalho com tais fotografias é a

caracterização destes sujeitos como migrantes. A utilização dessa expressão é recorrente em

todo jornal para caracterizar os sujeitos que vieram de outras regiões do país em busca de

trabalho. Ao utilizar o termo para os trabalhadores, o jornal acaba assumindo uma postura

que separa os moradores da cidade e os “de fora”. Essa caracterização merece alguns

cuidados, pois se assumirmos a postura do jornal na análise histórica, acabaremos por

diferenciar sujeitos que, por mais que tivessem vindo de diferentes regiões, naquele período,

constituíam a classe trabalhadora da cidade, classe essa que partilhava de necessidades e

lutas, independente de onde provinham os sujeitos que a constituíam.

A citação que compõe o título deste trabalho, “daqui só saio se derem uma casa pra

morar”, foi também título de um dos tópicos de uma sessão desta matéria, esta é uma de

citação de uma entrevista concedida por Felícia Azevedo, moradora de uma área não loteada

de Foz do Iguaçu. Felícia morava em um barraco nesta área a mais de 10 anos e no período

da entrevista estava recebendo ordens de saída do local, pois a terra havia mudado de dono,

que estava com intenções de lotear a região. Felícia lavava roupas para fora, e vivia ali com

seus dois filhos e seu marido que trabalhava em uma fazenda no Paraguai, todos eles

dividiam um barraco de uma peça feita de madeira.

O caso de Felícia é representativo quando pensamos no loteamento das regiões

periféricas da cidade de Foz do Iguaçu. A prática da compra e venda de terras, lotes e casas

sem nenhum registro ou documentação foi recorrente em Foz do Iguaçu. Muitos moradores

antigos da cidade, que detinham uma condição de vida mais alta, se apossaram de regiões

inteiras da cidade e as venderam quando esta leva de trabalhadores chegou ao município. A

prática da venda de loteamentos sem escritura nem registro a um preço acessível ao

trabalhador recém-chegado acabou por causar problemas que são visíveis em Foz do Iguaçu

até a atualidade. Exemplo disso é a luta pela regularização da posse de moradia nos bairros

de trabalhadores, Portal da Foz e Morenitas I.

Além disso, o caso de Felícia também representa a posição da classe trabalhadora

frente aos problemas relacionados à moradia, evidencia a postura desses sujeitos frente a

estas imposições, uma postura que nada tem de passiva e submissa às autoridades,

propriedade ou legislação, mas uma postura de consciência e enfrentamento a essas normas.

Muitos dos trabalhadores, assim como Felícia, permaneceram em suas casas, mesmo depois

dos avisos e das decisões judiciais. Muitos deles acabaram sendo removidos à força, mesmo

após a luta incessante; já outros permaneceram em suas residências com muita dificuldade,

que em alguns casos são sentidas até hoje.

O Rincão São Francisco foi um bairro que se formou a partir de finais da década de

1970 na cidade de Foz do Iguaçu. Os primeiros moradores que ali residiram foram

trabalhadores de diversas regiões do país que vieram em busca de trabalho na usina de Itaipu.

Tanto alguns trabalhadores que conseguiram tal emprego como os que não puderam

trabalhar na obra se fixaram na região. A partir daí o bairro começou a crescer, onde

posteriormente mudou de nome para Morumbi e se dividiu em 4, Morumbi I, II, II e IV.

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Além disso, outros bairros se formaram ao redor do São Francisco, como por exemplo o

Portal da Foz, São Rafael I e II, Soledade I e II, entre outros. Atualmente, toda uma região

de Foz do Iguaçu recebe o nome de São Francisco, sendo a maior região da cidade com cerca

de 16% da população, divididas em 25 bairros (PREFEITURA MUNICIPAL, 2003).

As aparições do São Francisco nas páginas do jornal Nosso Tempo também são

recorrentes, muito porque era um bairro novo, formado basicamente por trabalhadores

pobres que vieram a Foz do Iguaçu sem condições de voltar para suas cidades natal. Além

disso, a área carece até a atualidade de investimentos públicos, onde a luta pelo asfalto ainda

é presente na vida da maioria dos moradores da região. Outro elemento que o São Francisco

é citado com frequência no periódico é a sua “fama” de ser um bairro violento. Todos esses

elementos podem ser encontrados em uma entrevista concedida por uma moradora do bairro

e que aparece na segunda edição do Jornal. Segundo Hernany, na matéria intitulada “Zorra,

Parque Morumbi estão bronquados com a falta de segurança”:

É um povo esquecido, criticado por tudo e não lembrado por nada. A minha

maior bronca é contra um repórter policial de um determinado jornal da

cidade que usa suas páginas pra mentir, pra denegrir o sofrido povo desse

bairro. Não tem uma edição que eles não largam alguma coisa do Rincão

São Francisco (NOSSO TEMPO, Ed. 02, p.13, 1980).

A fala de Hernany mostra um grau de indignação que foi constante nos moradores

do bairro, tanto com o poder público quanto em relação à violência. O bairro tinha sim

características que podem ser consideradas como violentas, como por exemplo, mortes,

roubos, venda de drogas e conflitos entre facções. Apesar disso, muitos moradores não

concordavam com a imagem que estava sendo criada do bairro e divulgada para o restante

da cidade.

Considerações finais

O intuito deste trabalho não foi o de esgotamento nem do jornal Nosso Tempo como

uma fonte histórica nem como a análise geral e histórica da luta por moradia em Foz do

Iguaçu. Mesmo assim, considero que a análise feita aqui possa servir como ponto de partida

tanto para um olhar mais atencioso de uma fonte histórica, considerando as especificidades

e o cuidado que devem ser tomados ao trabalhar com a imprensa, bem como as contribuições

que este tipo de material pode trazer para a construção do conhecimento histórico.

Além disso, este trabalho evidenciou alguns aspectos da luta por moradia na cidade

que, mesmo atualmente, são “esquecidos” pela história oficial de Foz do Iguaçu. Ao utilizar

uma fonte que se caracterizava como contestadora do momento vivido e atentando para as

práticas dos trabalhadores neste mesmo período, pode ser brevemente problematizado tanto

os sentidos que o jornal atribui aos problemas sociais da cidade quanto a análise da

participação de toda uma classe na luta constante não só por moradia, mas por melhores

condições de vida, acesso à cidade e participação política.

Referências/Fontes

ALVES. Fábio Lopes; GUARNIERI. Ivanor Luiz. A Utilização da Imprensa Escrita para a

Escrita da História: Diálogos Contemporâneos. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo

(REBEJ). V. 01, N° 02. 2007.

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CRUZ. Heloisa de Faria; PEIXOTO. Maria do Rosário da Cunha. Na Oficina do Historiador:

Conversas sobre História e Imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, p. 253-270, dez.

2007.

LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla

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PREFEITURA Municipal de Foz do Iguaçu. Perfil da População de Foz do Iguaçu (2003),

em Função das Regiões e Quantitativo Populacional. 2003

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

________. A Imprensa e a Cultura Popular: Uma Perspectiva Histórica. Projeto História,

São Paulo, n.35, p. 15-26, dez. 2007.

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O FASCISMO CONTEMPORÂNEO E A OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS NA

INTERNET: O CASO DO MÍDIA SEM MÁSCARA

Lucas Patschiki1

RESUMO: Neste artigo analisaremos um documento divulgado pelo website “Mídia Sem

Máscara” (<www.midiasemmascara.org>, daqui para diante MSM) no qual são

apresentados fundamentos táticos e estratégicos para a ocupação de espaços na internet,

principal frente de atuação dos grupos fascistas na contemporaneidade. Este artigo perpetra

as principais diretrizes de propaganda assumidas, somando-se à experiência e

experimentações táticas construídas pela sua comunidade de leitores-militantes na prática.

Este artigo faz parte de uma pesquisa maior, onde investigamos a atuação partidária do grupo

organizado em torno do MSM entre os anos de 2002 e 2011. Apresentando-se como um

observatório de imprensa, sob a responsabilidade de Olavo de Carvalho, este buscando

agrupar uma série de intelectuais e grupos sob o signo do anticomunismo, base para

organizar o espectro fascista da sociedade.

Palavras-chave: Propaganda; estratégia; Olavo de Carvalho.

Neste artigo analisaremos um documento divulgado pelo website “Mídia Sem

Máscara” (MSM), chamado “Resistência e Reação”, no qual são apresentados fundamentos

táticos e estratégicos para a ocupação de espaços na internet, principal frente de atuação dos

grupos fascistas na contemporaneidade. Este artigo é uma contribuição de um leitor, Thomaz

Martins, e perpetra as principais diretrizes assumidas pelo MSM, de caráter estratégico (de

outro modo, não teria sido publicado), somando-se a experiência e experimentações táticas

construídas pela sua comunidade de leitores-militantes na prática. Este artigo faz parte de

nossa Dissertação de Mestrado, onde investigamos a atuação partidária do grupo organizado

em torno do MSM entre os anos de 2002 e 2011. Apresentando-se como um observatório de

imprensa, sob a responsabilidade de Olavo de Carvalho este buscou agrupar uma série de

intelectuais e grupos sob o signo do anticomunismo, base ideológica comum para organizar

o espectro fascista da sociedade, movimento já visando o acirramento da luta de classes.

O MSM foi criado em 2002, contando com a participação de cinquenta e três

colunistas, tendo como editores responsáveis Diego Casagrande e Olavo de Carvalho – o

website foi organizado em torno deste último, que além de editor vinha publicando há tempos

artigos de colunistas em sua página pessoal. O autointitulado filósofo há décadas trabalha na

imprensa hegemônica, sendo enfático na defesa de seus empregadores:

Se algo aprendi nos dezesseis anos que decorreram desde meus primeiros

avisos sobre a mais vasta e silenciosa trama revolucionária que já se viu no

mundo, foi que a “burguesia” é a classe mais indefesa que existe.

Acovardada perante o prestígio dos vigaristas intelectuais mais baixos e

sórdidos, ela se apega a qualquer pretexto para enxergar, no inimigo que

planeja assassiná-la, todas as virtudes mais róseas e fictícias e evitar assim

o confronto com uma realidade temível (CARVALHO, 17/08/2009).

1 Doutorando em História/UFG. Bolsista CAPES.

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Essa preocupação com que Olavo de Carvalho analisa a burguesia brasileira é

retribuída, pois o dota de meios e rendimentos para levar esta luta adiante: sua permanência

nos EUA é financiada pelo Diário do Comércio, veículo de imprensa da Associação

Comercial de São Paulo, onde o autor publicava desde 2008. E na composição de sua rede

extrapartidária observa-se diversos aparelhos privados de hegemonia da classe dominante,

especialmente o Instituto Millenium. As ligações com os militares se dão através de grupos

como o Ternuma (Terrorismo Nunca Mais), Resistência Militar, o Clube Militar, Coturno

Noturno, Defesa@net e Grupo Guarárapes.

Em 2012 O MSM contava com 26 colunistas, e segundo o “Alexa”, ferramenta de

ranking da web, constava como número 4.298 entre os sites brasileiros, número 167.906 em

comparação global – o site é apresentado como “.org”, sendo redirecionado para o “.com.br”

(ALEXA, 2010). Isto demonstra alcance considerável, já que habitava em universo de mais

de 2.763.360 sites registrados como “.com.br”, com o público “possível” de mais de

75.982.000 usuários no Brasil (ECOMMERCE.ORG, 2012). O MSM é mantido por doações

(através da ONG Instituto Brasileiro de Humanidades) e pela publicidade no site (seu maior

anunciante fixo é a Livraria Cultura).

O MSM se apresenta como um observatório da imprensa, suposta auto atribuição de

crítico sobre as funções sociais da mídia, plenamente ancorado no mito liberal da

imparcialidade da imprensa. Para o MSM na imprensa brasileira existiriam “dois grupos de

interesse”: “os donos das empresas e os grupos políticos que fazem a cabeça da classe

jornalística”, que tratam “jornais e revistas como produtos, que devem atender à demanda

do mercado”. E o segundo grupo os que vêm a imprensa “como meios de criar ressentimento

e ódio no povo para produzir uma revolução e tomar o poder” (CARVALHO, 2010). Esta

suposta manipulação da grande mídia seria colocada em xeque pelas possibilidades que o

jornalismo on-line oferece. Esta caracterização foi destinada a possibilitar sua inserção como

agente político competente, para a atuação crítica da realidade, foi estrategicamente seu

maior ponto de apoio para o agrupamento e normatização de seus quadros assim como para

a disseminação ideológica, para fins de propaganda através da internet.

O fascismo é compreendido aqui como um fenômeno nascido com o imperialismo,

cuja função política e social primária é o de reorganizar o bloco no poder de maneira brutal

durante a crise aberta, para a manutenção e reprodução da sociedade de classes. Isto não

significa que qualquer crise abre caminho para a crise de cunho fascista, mas é pela

perspectiva de ruptura que os movimentos fascistas contemporâneos organizam-se, seja

através de partidos formais parlamentares ou de associações da sociedade civil. Por fascismo

iremos nos apoiar na conceituação proposta por Konder (2009, p. 53). Os movimentos e

partidos fascistas deste modo não são estranhos ao funcionamento das democracias

parlamentares-eleitorais formais, sendo que não seriam capazes de manterem-se como

opções para o capital caso não se transformassem para continuarem os mesmos. Este

movimento não é simples, visto que tanto as mudanças no campo político quanto no campo

econômico alterarão as características clássicas do fascismo, além das variações específicas

nas diferentes formações sociais, já que estes movimentos e partidos atuam dentro dos

limites nacionais estatais, através da necessidade real de subjugar e quebrar o espírito

combativo da classe operária, seja quando esta oferece perigo real a ordem burguesa, seja

quando as necessidades da reprodução do capital-imperialismo exigem uma ofensiva contra

a classe trabalhadora.

Situaremos historicamente estes partidos através de suas três “ondas” como indicado

por Camus (01/05/2002). A primeira onda histórica seria a do fascismo clássico, marcada

pela experiência italiana e alemã. A segunda corresponde aos fascismos do pós-guerra, ou

seja, o movimento de transformação exigido aos partidos e regimes (Portugal e Espanha)

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para sua manutenção, assinalando duas de suas maiores mudanças ideológicas: o abandono

do corporativismo, típico da primeira onda, e a justificativa maior de sua existência marcada

pelo anticomunismo preventivo, ou seja, a defesa de um modelo democrático altamente

formal e restritivo dentro da conjuntura geopolítica da Guerra Fria. A terceira onda ocorre

após os anos 80, onde os partidos fascistas assumem um projeto econômico ultraliberal,

assumindo uma postura de defesa “cultural” de cunho xenófobo. Embora estas

características assumam um formato “geracional” na prática isto não ocorre, pois grupos

com distintas características (assinaladas simplificadamente através das ondas) afloram no

“espectro fascista” dentro de uma mesma temporalidade histórica, como observado na

contemporaneidade, cabendo a cada um destes grupos a atuação em uma frente específica

(BARBOSA, Passapalavra, 07/05/2009).

Em termos organizativos, mesmo reproduzindo um modelo altamente centralizado

em torno de lideranças específicas, não assumem mais o caráter metodológico organizativo,

e mesmo simbólico, dos partidos fascistas clássicos. Estes passam a formar redes

extrapartidárias, e como no caso do estadunidense Tea Party células relativamente

autônomas, evitando assim tanto sua marginalização, quanto possibilitando a ação direta das

milícias sem que com isso a organização como um todo seja colocada em semi-legalidade

(tornando-se alvo de sanções jurídicas). A descentralização os possibilita “unificar”

conflituosamente distintos grupos do espectro fascista sob sua liderança, ou seja, os

posicionando como lideranças de um movimento que não pode ser resumido em um único

partido formal, articulando diferentes frentes de atuação. Também os permite assumir

iniciativas criativas de organização e cooptação de militantes, concretizado como exemplo

maior o uso ostensivo da internet para a atuação política (não só para propaganda, para a

disseminação ideológica, mas como instância organizativa, de cooptação, formação e

confronto ideológico).

O MSM foi à busca de seus consumidores, através da propaganda, entendida como

publicidade. “A propaganda está ligada à catequese e ao convencimento, enquanto a

publicidade refere-se a tornar público, remetendo ao que não deve ser mantido em segredo,

ao que todos devem saber”, distinção básica, mas crucial, já que “a propaganda pode não ser

pública, isto é, ela não supõe a generalização ampla de seus próprios pressupostos, estando

mais voltada diretamente para o convencimento”. Fontes (2005, p. 179-180) irá explorar as

duas categorias em seu sentido histórico, pois “a transformação da publicidade em

propaganda – isto é, a mercantilização da difusão e da informação – faz parte da expansão

contemporânea do capitalismo”. Já a publicidade está diretamente ligada com o mito liberal

do Estado neutro, sujeito idôneo acima das classes e seus conflitos, e foi uma das lutas

levadas a cabo pelos trabalhadores, no sentido de tornar público votações de representantes,

dos debates políticos. “Tornar público, socializar informações provenientes dos Estados e

dos governos – foi uma das conquistas dessas lutas dos trabalhadores e estes o fizeram,

muitas vezes, por meio de seus próprios jornais e impressos”. A propaganda é relacionada

com a produção e difusão de visões de mundo, “de livros para leitura popular que pudessem

contrapor-se às formas de propaganda dominante, traduzidas pela publicação de folhetins

disciplinadores, de literatura de ordem moralizante, de ‘catecismos’ diversos”, sendo

elemento central para os movimentos organizados da classe trabalhadora: “Aliás, uma das

primeiras preocupações desses partidos (que fossem anarquistas, socialistas ou marxistas)

era exatamente a difusão não apenas de suas próprias palavras de ordem ou visões de mundo,

mas também de uma cultura mais ampla para as camadas populares”, que através de seus

“setores partidários de ‘agit-prop’ – agitação e propaganda – constituíram-se em formas de

aprendizado social e de acesso à literatura, ao debate internacional, às discussões filosóficas

ou econômicas” (FONTES, 2005, p. 179-184). A citação seguinte é longa, mas devido ao

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caráter normatizador para a propaganda do MSM, iremos citá-la integralmente no que se

refere à internet:

A idéia é a seguinte: DIVULGAÇÃO, EXPOSIÇÃO E TOMADA DE

ESPAÇOS. Seguem algumas sugestões para a ação na internet: 1) Se você

não tem um blog, faça um. É de graça e você não vai gastar mais que alguns

minutos. Não precisa ter textos originais. Encha o blog de textos que julgar

interessantes, citando a fonte, claro. Adicione marcadores (ou tags), por

exemplo: o texto fala sobre o Foro de São Paulo - coloque “foro de são

paulo”, “lula”, “pt”, “Fidel”, “comunismo”, “farc”, “socialismo”, etc.

nessas tags. Elas servem para auxiliar alguns mecanismos de busca. Mas

seja honesto e liste apenas o essencial. 2) Comente as matérias dos jornais.

Cadastre-se nesses meios, a maioria é de graça, e comente sobre as

matérias. Não precisa ser uma tese de doutorado, basta uma manifestação

enérgica. O que importa, nessa estratégia de ocupação de espaços é a

VISIBILIDADE. Deixe as pessoas que irão ler em seguida saberem que a

opinião delas tem simpatizantes, que elas não estão sós, afinal sabemos que

o povo brasileiro é conservador. Também classifique os demais

comentários. 3) Crie tópicos no Orkut em comunidades variadas e neutras.

Só não encha a comunidade de tópicos para não ser o chato da história. Use

o bom senso para descobrir em qual comunidades [sic] postar e como fazê-

lo. Um tópico por dia, apenas isso, em comunidades diferentes, você não

será inconveniente. Use como assunto os desmandos comuno-socialistas,

as barbaridades petistas, material é o que não falta. É aconselhável

acompanhar esses tópicos e respondê-los, se necessário. Use o Twitter;

para espalhar coisas é uma ferramenta ótima. RTs, frases soltas,

comentários, perguntas capciosas a esquerdistas famosos (eles estão aos

montes e simplesmente não saem do Twitter!), qualquer coisa é material

para essa pulverização. Idem para MySpace, FaceBook e todas as outras

redes sociais. 4) Cuidado para não ser chato, ranzinza, antipático ou

violento com as pessoas neutras ou doutrinadas. Elas não tiveram culpa de

estudar no Brasil atual. Temos que ser simpáticos e AGREGAR. O frescor

do ideário direitista, sem aquele ranço revolucionário, sem as barbas e a

bolsa de couro fedida ajuda muito nisso. Não é difícil reforçar as

características de LIBERDADE E RESPONSABILIDADE que o

pensamento direitista abarca. 5) Não pense que você mudará a opinião

daqueles dinossauros. Esses já estão perdidos. Nos resta os apolíticos, os

ainda não totalmente doutrinados, os jovens. Lembre-se que, por quase

meio século, a esquerda no Brasil realizou uma bem sucedida tomada de

espaços nos meios acadêmicos e culturais a partir da doutrina gramsciana.

Acontece que temos agora acesso a informações que há algum tempo não

tínhamos e hoje ainda temos um instrumento poderoso: a internet, o único

lugar onde a esquerda tem chance de apanhar. 6) Textos gigantes e difíceis

sobre conjuntura política têm menos visibilidade para a maioria das

pessoas que frases curtas. Foque seu público. Use o HUMOR, ridicularize

os cocômunistas, num estilo à la Comunistas Caricatos, Opinião Popular,

etc. O humor é poderoso! 7) Quem tem conhecimento de línguas pode fazer

a mesma coisa em sites de notícias estrangeiros. Fale para os outros

habitantes da Terra o que se passa na Bananalândia! Comente as notícias

da FOX, CNN, escreva twitts em inglês, conte para o mundo a bomba que

se encontra no calcanhar deles! 8) Adesivos em carros, nas janelas de casa

e camisetas também ajudam, mas fica ao critério de cada um o uso desses

meios de divulgação, por uma questão de auto-preservação. 9) Troque

telefone com direitistas da internet da sua região (aqueles que seguramente

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reconhecer). Contatos pessoais, nem que seja para falar um oi, são mais

convincentes do que o mero conhecimento na rede. Cuidado com fakes e

clones.10) TENHA CUIDADO. Como sabemos, muitos revolucionários

são perigosos e não têm freio moral. Portanto, mude freqüentemente suas

senhas, faça senhas complicadas, não abra links nem se envolva

pessoalmente nas discussões. Por outro lado, seja enérgico e não demonstre

medo ou fraqueza. Mas se preserve. Se quiser, escreva usando

pseudônimos (MARTINS, 2010).

Não há necessidade que o partidário do MSM torne-se produtor de conhecimento,

articulando sua experiência, seu lugar de classe e atuação no sentido de desmistificar sua

vivência cotidiana, mas sim, que dentro das suas possibilidades, ele torne-se reprodutor de

um conhecimento já disponibilizado para tanto, desde que “citando a fonte, claro”. Isto

garante uma falsa homogeneização de seus partidários, já que a mera reprodução pela

repetição nada mais garante que a interiorização ideológica não mediada pelo sujeito, ou

melhor, mediada, pois inevitável, mas que em tese não precisaria sê-la. Ou seja, provoca o

efeito duplo de reiterar o senso comum do militante, ao mesmo tempo em que reafirma a

superioridade das teorizações do MSM, que não necessitam ser colocadas em xeque, mas

veiculadas “passivamente” de acordo com as instruções. E forçando-os ao embate, através

do conhecimento fragmentado do adversário (que torna-se deste modo também superficial),

obriga-se que o discurso seja construído como oposição – no sentido de abarcar o discurso

adversário ao mesmo tempo que reafirma sua caracterização anterior, como confirmação de

suas hipóteses, o que “evita” a cooptação ou convencimento pelo inimigo –, tendo em vista

que, mesmo esgotada a argumentação com determinado opositor, estes simplesmente seriam

considerados “dinossauros perdidos”. E a necessidade da militância justificada pelo espaço

que supostamente não possuiria o projeto político que o MSM defende, obrigado a enfrentar

uma luta injusta, já que “a esquerda no Brasil realizou uma bem-sucedida tomada de

espaços”, dá-se o mote para a atuação partidária do indivíduo, visando atingir

prioritariamente, “os apolíticos, os ainda não totalmente doutrinados, os jovens”. Pretende-

se tão somente normatizar o discurso de seus militantes, não os dotando de referencial

teórico-metodológico adequado para a intervenção em distintos campos do corpo social, nos

quais teriam de buscar por si próprios a análise para a atuação adequada, e assim compondo

ativamente o projeto político com o Estado-maior do MSM, mas sim buscando

instrumentalizá-los verticalmente, sem nenhum tipo de participação decisória, para a

ocupação de espaços, para a guerra de posição. Guerra entendida em termos literais, já que

“revolucionários são perigosos e não têm freio moral”. Afirmando a emergência do combate

organizam seus militantes em torno do pressuposto da crise que se aproxima, justificativa

para a necessidade da atuação em termos violentos e virulentos.

Como visto, o posicionamento do MSM como observatório da imprensa nem de

longe corresponde à democratização pregada pela pluralidade de leituras sociais. Sua

autocaracterização, destinada a possibilitar sua inserção como agente competente foi seu

maior ponto de apoio para o agrupamento e normatização de seus quadros, assim como para

a propaganda através da internet. Sua forma de propaganda é cuidadosamente preparada,

visando a sua consolidação e de seus intelectuais como referências maiores aos

agrupamentos fascistas da sociedade.

Bibliografia

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<http://www.alexa.com/siteinfo/midiasemmascara.org#>, acessado em 13/02/2010.

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BARBOSA, J. R. “Entre milícias e militantes (III): skinheads nacional-socialistas e

integralistas e os “carecas do subúrbio”. Passapalavra. 07/05/2009. Disponível em:

<http://passapalavra.info/?p=6041>, acessado em 03/05/2011.

CAMUS, J-Y. “Metamorfoses políticas na Europa”. Le Monde Diplomatique. 01/05/2002.

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CARVALHO, O. de. “A burguesia indefesa”. Diário do Comércio. 17/08/2009. Disponível

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CARVALHO, O. de. Jornalismo e verdade. Entrevista a um grupo de estudantes da PUC-

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ECOMMERCE.ORG. Os 20 países com maior número de usuários da internet. Disponível

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KONDER, L. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

MARTINS, T. F. Resistência e reação. 17/07/10. Disponível em:

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NOVO CÓDIGO FLORESTAL BRASILEIRO: EMBATES IDEOLÓGICOS E

INTERESSES EM TORNO DA APROVAÇÃO DA LEI12651/12

Luciano Egidio Palagano1

Resumo: As mudanças no Código Florestal Brasileiro podem ser consideradas um marco

sobre o debate ambiental no Brasil. O processo de mudança que alterou o antigo código

florestal e criou o novo código sob a numeração 12651/12 foi marcado por centenas de

reuniões em todo o Brasil e por um intenso debate entre os setores ambientalista e ruralista,

em diversos espaços, na sociedade e no congresso. Analisando as atas das reuniões plenárias

que discutiram e aprovaram o relatório do então deputado Aldo Rebelo (PC do B) na Câmara

dos Deputados, percebe-se claramente o tom discursivo e, muitas vezes, apelativo ao medo

e a um suposto nacionalismo por parte dos setores que encamparam a mudança na lei. Ao

cruzar os nomes de alguns dos principais agentes que apoiaram e referendaram esta mudança

legislativa com os dados de suas prestações de contas eleitorais, percebe-se um vínculo

estreito entre o complexo industrial do agronegócio e os parlamentares que defenderam as

alterações no código florestal, sendo a maioria deles pertencentes à autointitulada bancada

ruralista. Analisando o processo de mudança na lei ambiental brasileira, fica claro como o

chamado Agronegócio se organiza para defender os seus interesses, interferindo diretamente

na organização do Estado Brasileiro. Além disso, esta organização do setor do Agronegócio

passa pelo financiamento privado de campanha, mecanismo que serve de correia de

transmissão direta dos interesses do mercado para o parlamento. Esta comunicação apresenta

algumas impressões do estudo realizado para a Monografia, defendida no final de 2014 para

a obtenção do grau de Bacharel e Licenciado em História.

Palavras-chave: Código Florestal; Bancada Ruralista; Meio Ambiente.

O Ser Humano sempre manteve uma relação dual com a natureza a sua volta, relação

esta perpassada pelo medo, pela admiração que redundou em sua sacralização ao longo do

tempo e uma espécie de competição com a natureza e as “forças naturais”. Tal relação ficou

expressa em vários mitos de criação, como o próprio mito de criação cristão ou o mito grego

de Prometeu. Dessa forma, as civilizações humanas, se desenvolveram utilizando os recursos

naturais que lhes eram disponíveis. Nesse processo, todas elas interferiram no sistema

ecológico.

Algumas de maneira mais drástica (como a Civilização Rapanui da Ilha de Páscoa),

já outras construindo socialmente formas de relação mais harmônicas (como a Civilização

Guarani) interferiram menos no sistema ecológico como um todo. Entretanto, todas elas, de

uma maneira ou de outra, ao longo da História, através do trabalho socialmente construído,

interferiram e modificaram a natureza. Afinal, segundo Engels, o trabalho “é a condição

básica e fundamental de toda a vida humana. É em tal grau que, até certo ponto, podemos

afirmar que o trabalho criou o próprio homem” (apud ANTUNES, 2004, p.11).

Dessa forma, o ser humano se faz humano a partir do trabalho, e todo trabalho é

trabalho exercido sobre um determinado elemento extraído da natureza. Logo, o ser humano

se fez humano modificando a natureza na medida em que esta também o modificava.

1 Bacharel e Licenciado em História pela UNIOESTE, acadêmico do 4º Ano do Curso de Direito da

UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon, Agente Educacional II na rede estadual de educação do

Paraná.

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Esta relação dual, dialética em sua essência, permeada de conflitos e medos dos

fenômenos naturais aos quais não se tinha explicação, é que serviu de base concreta para as

diversas formas de relação com o chamado mundo natural, que vimos ocorrer ao longo da

História humana. Diversas formas, porque estas relações, apesar de nos seus primórdios

terem a mesma origem, resultaram ao longo da História em formas completamente diferentes

de se relacionar com o mundo natural, assim como em sociedade.

Logo, temos o fato de que o ser humano, enquanto espécie, sempre interferiu e

modificou a natureza a sua volta, uma vez que este processo de modificação da natureza é

inerente ao próprio ser humano, portanto não é uma novidade do atual momento histórico a

interferência do ser humano sobre o mundo natural. A novidade que se começa a consolidar,

principalmente a partir do advento do chamado século das luzes (Sec. XVIII) é a dimensão

desta interferência, que destrói todos os freios culturais existentes até então.

Uma nova forma de relação Sociedade/Natureza se consolida no Ocidente

Na esteira da consolidação de um modelo econômico que transforma as pessoas em

mercadoria, temos também a dessacralização da natureza e a transformação desta em mero

objeto. Em mera fonte de matérias primas, e as vezes, até mesmo, em empecilho para o

desenvolvimento de um determinado modelo de progresso.

Ilustração 1: Mapa comparativo entre a área de cobertura vegetal original de Mata Atlântica e a remanescente

(2010). No mapa percebe-se que até 2010, 93% da vegetação original havia sido desmatada. Fonte:

<http://www.rededasaguas.org.br>.

Para isso, contribuíram, uma determinada noção de natureza a partir do discurso

científico, a noção cristã de separação do ser humano e do mundo natural a partir do mito de

criação e a consolidação de um sistema econômico que transforma tudo em mercadoria, e

não admite nenhum limite, nem mesmo os limites naturais. Temos,

...com o advento do Capitalismo […] um aumento exponencial desta

exploração, em que a partir desta nova relação entre sociedade e natureza,

a mesma é dessacralizada, […] e encarada apenas como um depósito de

reservas, isso quando não é vista como empecilho ao progresso capitalista.

Essa maneira de encarar a natureza se tornou dominante ao longo do

tempo, e é a partir dela que a sociedade ocidental e, consequentemente,

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também, a brasileira vêm construindo a sua relação com o mundo natural

(PALAGANO, 2014, p.37-38).

Dentre as diversas formas de se perceber como a sociedade se organiza internamente,

temos o estudo de suas legislações, suas regras, suas leis. Estudar a legislação de uma

determinada sociedade é desnudar as cadeias de sua estrutura interna. Analisar e perceber

como as relações sociais estão cristalizadas nos textos legais e nos costumes, e como esta

mesma sociedade também se relaciona com o meio natural no qual ela está inserida. Daí a

razão do tema desta pesquisa: as mudanças no código florestal brasileiro. Estudar o processo

dessas mudanças também é estudar e descortinar os interesses antagônicos e conflitivos

envolvidos nas mesmas, uma vez que tivemos ao longo do debate nas mudanças no Código

Florestal Brasileiro, o embate de duas formas de organização social diferentes, duas visões

sobre a relação meio ambiente e sociedade que se conflitaram naquele período (e se

conflitam até hoje), conflito este, expresso nos documentos analisados durante a pesquisa,

principalmente nas Atas do Diário da Câmara dos Deputados.

O projeto de lei que resultou na Lei 12651/12, alterando o Código Florestal

Brasileiro, foi apresentado em 1999 pelo então Deputado Sergio Carvalho2, sob a

nomenclatura PL1876/99, temos então, de 1999 até 2012, praticamente treze anos entre a

apresentação e a aprovação do projeto. A retomada do debate em torno das mudanças no

Código Florestal ocorreu no mesmo ano em que a bolha imobiliária nos EUA implode e

temos o início da atual crise do sistema financeiro global. Segundo Lowy, é apenas uma das

facetas de uma crise muito maior, a crise do modelo de civilização capitalista ocidental:

A crise ecológica e a crise econômica resultam do mesmo fenômeno: um

sistema que transforma tudo – a terra, a água, o ar que respiramos, os seres

humanos – em mercadoria que não conhece outro critério que não seja a

expansão dos negócios e a acumulação de lucros. As duas crises são

aspectos interligados de uma crise mais geral, a crise da civilização

capitalista industrial moderna. Isto é, a crise de um modo de vida – cuja

forma caricatural é o famoso american way of life, que, obviamente, só

pode existir enquanto for privilégio de uma minoria – de um sistema de

produção, consumo, transporte e habitação que é, literalmente,

insustentável (LOWY, 2013, p.79-80).

Em crise, o Capital precisa avançar sobre os direitos sociais e sobre a natureza.

Temos, assim, como um dos reflexos desta crise global – que coloca em xeque o atual

modelo civilizatório hegemônico no ocidente – as mudanças ocorridas no Código Florestal

Brasileiro, mudanças estas que serviram para privilegiar um determinado setor econômico e

os representantes do mesmo: o Agronegócio que é um dos braços do sistema financeiro

global.

Os discursos em torno de um interesse

As posições em torno das mudanças no Código Florestal Brasileiro podem ser

classificadas, grosso modo, em duas visões antagônicas sobre o uso da propriedade. Uma

referendada em um discurso legitimado pelo antigo código civil brasileiro (código civil de

2 Sergio Carvalho era, na época, Deputado Federal pelo PSDB de Rondônia e veio a falecer em Maio de 2003,

não vendo o seu projeto ser aprovado.

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1916) que traz em seu cerne o chamado “jus utendi et abutendi”3. Esta é a visão sobre a

propriedade que vemos presente no discurso dos deputados da bancada ruralista ao

defenderem as mudanças no Código Florestal Brasileiro.

Analisando o diário da Câmara dos Deputados, nos deparamos com expressões

como: “Ora! A Reserva Legal é um absurdo, porque é confisco de propriedade”4. Ou:

Temos que sair daqui com um texto aprovado, sem vencidos ou vencedores,

mas que o grande vencedor seja o Brasil e a sua soberania. […] “Precisamos

dar um basta a essas ONGs que querem fazer pauta no Congresso Nacional.

E o caminho é com altivez, repito, com determinação, com vontade, com

amor à Pátria para enfrentarmos esse assunto aqui no plenário5.

Estas duas frases definem como o setor que buscava as mudanças no Código Florestal

enxergam a propriedade e sua relação com a sociedade. Nessas frases está expressa uma

visão completamente antagônica em relação ao conceito de função social da propriedade

expressa na Constituição de 1988. Expressa-se nessas duas frases a visão de um setor que

controla o território brasileiro desde o período colonial, e que, como afirma Castilho, é zelosa

em manter este controle, chegando às vezes ao limite da paranoia para manter o controle

sobre o território. Segundo Castilho:

[…] a bancada ruralista é paranoica. Ciosa de que tem muito a perder (um

pedaço do território), credita um poder enorme aos indígenas e

camponeses. A qualquer momento estes podem virar o jogo, na visão destes

parlamentares. O discurso típico é o de defesa do direito 'sagrado' à

propriedade. São sempre invocados os direitos adquiridos, 'ancestrais', uma

relação aparentemente eterna dos proprietários com a terra no Brasil. Como

se possuíssem esses bens há milhões de anos (CASTILHO, 2012, p.115).

Para manter esse controle, o setor ruralista aprendeu, com o tempo, a atuar

politicamente no parlamento. Em um projeto de médio prazo constituíram uma bancada de

parlamentares com o fim único de defender os seus interesses. Esta bancada, que não está

organizada em um partido único, mas sim espalhada por diversas legendas que vão desde o

DEM até o PT, atua sempre como um partido único quando está em pauta algo que seja de

interesse do setor que representam.

Atuam taticamente, controlando comissões estratégicas para a defesa dos seus

interesses, como a Comissão de Agricultura, a de Meio Ambiente – na época da aprovação

das mudanças no Código Florestal tínhamos um ruralista presidindo a comissão de meio

ambiente da Câmara dos Deputados – a de Constituição e Justiça entre outras. Nos

corredores destas comissões, que é onde realmente são tomadas as decisões, temos a

presença de diversos lobistas do setor do Agronegócio.

A outra visão que conflitou com esta se expressa na seguinte fala, também encontrada

no Diário da Câmara dos Deputados:

Os deputados que defendem a mudança proposta pelo deputado Aldo Rebelo

não veem função social na propriedade. Eles mesmos querem acabar com a

reserva legal, por que entendem que são donos da propriedade e que nela não

3 Expressão latina utilizada do Direito Romano e que significa “Direito de Uso e Abuso”. 4 Fala do Dep. Onix Lorenzoni – DEM/RS, Diário da Câmara dos Deputados, 12/05/2011, p. 23343. 5 Fala do Dep. Moreira Mendes, então PPS hoje PSD, Diário da Câmara dos Deputados, 12/05/2011, p. 23328.

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é preciso nenhuma regulação. Nós temos outra visão, uma visão conceitual

diferente dessa. Entendemos que as florestas são bens comum (sic) do povo

e, por isso, devem ser preservadas e respeitadas para que todos possam fazer

uso dela. Nesse sentido, o dono da propriedade não é dono de tudo o que

tem. (Apupos nas galerias). Viram como os ruralistas aqui estão aguçados?

Acabamos de ouvir a manifestação de um pensamento conservador que

existe na sociedade brasileira6.

Ao confrontarmos o trecho acima com os já citados, temos nas fontes analisadas,

duas visões conceituais diferentes sobre a propriedade. Nenhuma delas questiona a

propriedade em si, nenhuma delas coloca em risco o chamado direito à propriedade, mas

uma apresenta a propriedade como sendo um direito absoluto e outra como sendo um direito

relativo.

Em termos conceituais, foram estas duas visões que se confrontaram nos debates em

torno das mudanças no Código Florestal. Venceu este embate a visão mais conservadora.

Mas, isso teve uma razão.

A autointitulada bancada ruralista não é apenas um grupo de parlamentares no

congresso. Por trás deste agrupamento altamente elástico de parlamentares – elástico porque,

dependendo da pauta, ele tem a capacidade de se inflar a partir das negociações de

corredores, e aí está grande parte de sua força – é vinculado, financiado e estruturado por

um setor econômico, o setor do chamado Agronegócio7 ou Agrobusines. Um setor

econômico estreitamente vinculado ao mercado internacional de commodities, tecnologia e

máquinas para o campo (entenda-se para o latifúndio no campo).

Aqui podemos apresentar uma outra parte do discurso utilizado para justificar a

aprovação do relatório do então Deputado Aldo Rebelo (PC do B) sobre o PL 1876/99. O

discurso do Nacionalismo.

Uma bancada nacionalista, mas nem tanto

Um dos argumentos fartamente utilizado por aqueles que defendiam as mudanças no

Código Florestal Brasileiro era a “defesa do Brasil”, a “defesa da nação”. Temos como

exemplo do uso desse argumento este trecho da fala do Dep. Moreira Mendes:

Temos que sair daqui com um texto aprovado, sem vencidos ou

vencedores, mas que o grande vencedor seja o Brasil e a sua soberania.

[…] “Precisamos dar um basta a essas ONGs que querem fazer pauta no

Congresso Nacional. E o caminho é com altivez, repito, com determinação,

com vontade, com amor à Pátria para enfrentarmos esse assunto aqui no

plenário8.

Como vemos no recorte exposto acima, existiu um grande apelo a um suposto

nacionalismo em relação às necessidades de aprovação do PL 1876/99, e a constante

acusação de que aqueles que se colocavam contra as mudanças seriam traidores da pátria,

financiados por ONGs internacionais. Alguns deputados que apoiavam a aprovação do

relatório do Dep. Aldo Rebelo, chegaram até mesmo a compor em 2010 uma Frente

Parlamentar Nacionalista, que foi lançada no dia 23/03/2010, às 17h, e era presidida pelo

6 Fala do Dep. Ivan Valente – PSOL/SP. Diário da Câmara dos Deputados, 12/05/2011, p. 86. 7 Talvez um conceito mais exato seja o termo agrohidronegócio, cunhado pelo Geógrafo Antônio Thomaz Jr. 8 Fala do Dep. Moreira Mendes, então PPS, hoje PSD. Diário da Câmara dos Deputados, 12/05/2011, p. 77.

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próprio Rebelo.

Ilustração 2: Deputados criam Frente Parlamentar Nacionalista – Fonte: Agência Câmara Notícias

No entanto, quando consultamos o site do Tribunal Superior Eleitoral, encontramos

uma clara contradição entre os fatos e o discurso proposto por estes deputados, tanto os que

compunham a chamada “frente nacionalista”, como todos os demais que defendiam as

mudanças para a aprovação do projeto de lei 1876/99 com um discurso de defesa dos

interesses nacionais.

O próprio deputado Moreira Mendes, citado logo acima, foi um dos parlamentares

que receberam generosas doações de campanha de corporações multinacionais ligadas ao

agronegócio. Doações que, inclusive, tiveram um generoso acréscimo nas eleições que

vieram na sequência da aprovação do PL1876/99 e do Relatório do Deputado Aldo Rebelo.

Agronegócio e Financiamento de Campanha

Rubens Moreira Mendes Filho – PPS (2010)

Guascor do Brasil LTDA* R$ 100.000,00

Bunge Fertilizantes S/A R$ 80.0000,00

JBS S/A R$ 50.0000.00

Cosan S/A Industria e Comercio** R$ 50.0000.00

Marchesan Impl Maq Agric Tatu S/A R$ 30.0000,00

Agropecuária Itauna LTDA R$ 10.0000,00

Fonte: Transparência Brasil * Empresa com sede na Espanha que junto com a Distribuidora Equador formam o Consórcio

Energia do Acre.

** Conglomerado que, entre outras marcas, inclui a Radar (administradora de Terras) e a

Raízen (join venture com a Shell que atua na área da fabricação de Etanol de Cana de Açúcar)

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Rubens Moreira Mendes Filho – PDS (2014)*

Copersucar S.A. R$ 100.000,00

Salobo Metais S/A** R$ 100.000,00

Mineracao Corumbaense Reunida S.A. R$ 100.000,00

Mineracoes Brasileiras Reunidas S A Mbr R$ 100.000,00

Cooperativa dos Plantadores de Cana do Oeste do

Estado de Sao Paulo

R$ 4.0000,00

Agropecuária Itauna LTDA R$ 10.0000,00

Fonte: Transparência Brasil * Candidato ao Senado – Não eleito.

** Uma das marcas do Conglomerado Vale do Rio Doce

Podemos perceber pelas tabelas acima que o deputado nacionalista não é tão

nacionalista assim quando se trata de doações de campanha. Outro exemplo de fortes

vínculos que são explicitados pelas doações de campanha está nas tabelas a seguir:

Onix Lorenzoni – DEM (2010)

Fibria Celulose S/A R$ 50.0000.00

Klabin S.A. R$ 20.0000,00

Onix Lorenzoni – DEM (2014)

Rima Industrial S/A R$ 150.000,00

Bradesco Leasing S.A. - Arrendamento Mercantil R$ 100.000,00

Copersucar S.A. R$ 100.000,00

Itau Unibanco S.A. R$ 75.000,00

Evora S.A.* R$ 10.000,00

Fonte: Transparência Brasil *Évora Holding Company – atua nos ramos de “Não Tecidos”, “Latas de Alumínio”,

“Fechamentos” e “Florestas de Eucalipto”.

Onix Lorenzoni e Moreira Mendes foram dois dos principais parlamentares na defesa

da aprovação do PL1876 durante as sessões relatadas nas atas analisadas. Os dois

parlamentares, assim como outros, foram financiados por corporações financeiras ligadas ao

agronegócio e ao sistema financeiro internacional. Cai por terra, assim, o argumento de

nacionalismo fortemente utilizado no período e que é utilizado até hoje pela bancada ruralista

quando se trata de atacar os movimentos que lutam pela terra, como o MST, indígenas,

quilombolas e demais povos tradicionais.

O processo de mudanças ocorridas na legislação ambiental brasileira demonstra a

fragilidade da democracia no Brasil enquanto perdurar o financiamento privado de

campanha, e como através deste modelo de financiamento de candidaturas os interesses de

um setor minoritário (mas que controla o mercado) ficam acima dos interesses de toda a

Nação.

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Daí a necessidade de se estudar este processo, para desnudar estes laços, e assim,

quem sabe, possibilitar uma mudança.

Bibliografia

ANTUNES Ricardo (Org.). A Dialética do Trabalho: Escritos de Marx e Engels. São Paulo:

Expressão Popular, 2004.

CASTILHO, Alceu L. Partido da Terra: como os políticos conquistam o território

brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2012.

LÖWY, Michael. Crise ecológica, crise capitalista, crise de civilização: a alternativa

ecossocialista in Caderno CRH, Jan – Abr 2013. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-

49792013000100006&script=sci_abstract&tlng=pt>.

Acessado em 26/08/2015 às 19h30.

PALAGANO, Luciano Egídio. As mudanças no Código Florestal Brasileiro: os embates

parlamentares em torno do relatório do deputado Aldo Rebelo. Trabalho de Conclusão de

Curso – Faculdade de História, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE),

Marechal Cândido Rondon, 2014.

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OS IMPACTOS DA DITADURA SOBRE O TRIBUNAL MILITAR DE MINAS

GERAIS (1964-1965)1

Luciano Mendes Ferreira2

Resumo: O trabalho tem como objetivo buscar entender o momento da transição para o

regime militar brasileiro, no âmbito da Justiça Militar de Minas Gerais. Para tanto, serão

analisadas as Atas das Sessões das Audiências Públicas da Auditoria da Quarta

Circunscrição Judiciária Militar dos anos de 1964 e 1965, com o objetivo de compreender

os impactos e as mudanças causadas pelo contexto inicial da ditadura civil militar no Brasil.

É interessante perceber uma mudança significativa na atuação do Poder Judiciário Militar,

que neste período deixa de ter uma natureza especial, principalmente devido ao aumento do

número de processos decorrente da ampliação da competência para processar e julgar crimes

relacionados à Lei de Segurança Nacional, fora do universo propriamente militar. A análise

da esfera judiciária (militar) deste momento transparece uma importante relação entre os

Poderes Judiciário e Executivo. A intenção é compreender de que forma o Poder Executivo

se faz presente nos tribunais, e até que ponto existe uma autonomia do Poder Judiciário na

condução dos processos. Ao analisar as atas dos anos iniciais na ditadura, buscaremos definir

os papéis dos agentes – militares, promotores, advogados e juízes – que compõem o Tribunal

Militar, as relações de poder como também de disputa, as leis mais recorrentes e as

argumentações que as correspondem. Compreenderemos de que forma a dinâmica no

tribunal refletiu nos atos institucionais e vice-versa, para que a mesma pudesse se adequar à

realidade de dominação política militar.

Palavras-chave: Justiça Militar; Tribunal Militar; Lei de Segurança Nacional.

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo apresentar os primeiros impactos na Justiça

Militar Federal de Minas Gerais no contexto de transição para o regime militar brasileiro.

Para tanto, foram brevemente analisadas a “relação dos processos dos acusados na Lei de

Segurança Nacional” e as Atas das Sessões das Audiências da Auditoria da Quarta

Circunscrição Judiciária Militar, com sede em Juiz de Fora, dos anos de 1964 e 1965, com a

finalidade de apontar os impactos e as mudanças no período em questão. A formalização

deste trabalho está na percepção da mudança significativa da atuação da Justiça Militar, que

neste período, deixa de ter uma natureza especial, principalmente, devido ao aumento do

número de processos decorrente da ampliação da competência para processar e julgar crimes

relacionados à Lei de Segurança Nacional, fora do universo propriamente militar.

A análise da esfera judiciária (militar) deste momento propõe uma importante

reflexão sobre a relação entre os Poderes Judiciário e Executivo. A intenção é tentar

compreender de que forma o Poder Executivo se faz presente nos tribunais, e até que ponto

existe uma autonomia do Poder Judiciário na condução dos processos. Dessa maneira,

voltamos a este tema recorrente em um viés pouco estudado, como pontua Renato Lemos,

“… tende-se a estudar o regime militar brasileiro, como forma de dominação política,

exclusivamente em seus aspectos coercitivos: práticas policiais, legislação autoritária, etc.”

1 A presente comunicação compõe as primeiras pesquisas do projeto de dissertação. 2 Mestrando em História pela Universidade Federal de São João Del-Rei. Bolsista da Capes.

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(LEMOS, 2004, p.4), abstendo-se de análises importantes para o entendimento do período.

Para refletirmos sobre o alcance que o governo militar tinha naquele momento, no

ambiente judiciário, é interessante nos concentrarmos, rapidamente, na composição e no

funcionamento da Justiça Militar. Formada por quatro militares e um juiz auditor (ou juiz

auditor substituto), os Conselhos Permanente e Especial da Justiça do Exército3 são órgãos

colegiados responsáveis pelo processo e pelo julgamento de crimes de competência militar

de Justiça do Exército. É evidente a forte participação militar no poder decisório dentro do

tribunal, o que iria de encontro com as ações e os objetivos pretendidos pela ditadura. Além

do Conselho de Justiça, participa também da dinâmica, no tribunal militar, o Ministério

Público Militar, que através de seu representante, o Promotor de Justiça Militar, é

responsável pela proposição da ação penal (processo de acusação) relativa aos crimes de

competência da Auditoria Militar, e os advogados de ofício (faziam parte do quadro de

funcionários da Justiça Militar) e os constituídos (contratados pelos acusados) responsáveis

pela defesa do denunciado (SEIXAS, 2002).

No decorrer do trabalho, analisaremos os impactos no tribunal militar, percebidos na

documentação das Atas das Sessões, e a relação dos atos institucionais 1 e 2, que marcaram

os anos iniciais da ditadura militar brasileira.

“Institucionalização da Revolução”

“A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela

sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente

dispõe”.

Ato Institucional nº 1

Definido no preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, o

“movimento civil militar”, iniciado em março de 1964 é uma “revolução”. Sendo uma

“revolução” absorve o Poder Constituinte da Nação, e sua força normativa possibilitara a

intervenção plena no ordenamento jurídico, contribuindo para a institucionalização do

Movimento Militar pós 64 (ARANTES, 1997). Dando continuidade à leitura do preâmbulo,

as aparências democráticas serão articuladas sempre como forma de legitimar o novo

sistema. Dessa maneira, a manutenção da Constituição de 1946 foi uma pretensa articulação

a favor desse espírito.

Essa tentativa inicial de uma institucionalização da “revolução”, com preceitos

democráticos, é bem destacada por Renato Lemos, que caracteriza aquele período da

seguinte maneira:

Uma das marcas mais significativas do período que estou focalizando foi,

justamente, a tentativa de conciliar a formalidade de estruturas

democráticas com práticas e inovações institucionais consideradas

necessárias à implantação de novas formas de dominação política. O

precário equilíbrio assim construído permeou, em particular, o

funcionamento do sistema partidário e dos poderes Legislativo e

Judiciário, inclusive, é claro, o da Justiça Militar (LEMOS, 2004, p. 282-

289).

3 A diferença entre o Conselho Permanente e o Conselho Especial está na competência em processar e julgar.

No Conselho Permanente compete o julgamento de praças em geral, enquanto que no Conselho Especial são

julgados oficiais, exceto generais. Ler Decreto-Lei nº 925, de 2 de dezembro de 1938.

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Este empenho inicial gerou significativas mudanças institucionais, modificando e

adaptando as estruturas para a manutenção do regime. As reformas começaram a se fazer

presentes antes até da instauração dos AI's. O surgimento de uma Justiça Militar de alcance

amplo, e defensora dos objetivos da “revolução de 31 de março”4 já vinha mostrando seu

papel antes mesmo da instauração do AI nº 2, que efetivamente formalizou a nova atuação

da Justiça Militar. No jornal Correio da Manhã, já é possível notar os reflexos desta

transição, ao anunciar, por exemplo, a disponibilidade da Justiça Militar de Minas Gerais e

de seus principais profissionais, informando o contexto de apreensão de alguns “maus

elementos”5, e a investigação sobre ações suspeitas na esfera estudantil. Dessa forma, foi

lançado o projeto de participação desta instituição junto ao governo.

Como mecanismo para não dissolver, definitivamente, aspectos democráticos, como

as ligadas às regras formalizadas do judiciário, casos foram transferidos para competência

de segurança nacional, no âmbito da Justiça Castrense. Ela, em seu sistema colegiado,

abarcara a maioria militar, contribuindo com os interesses do regime. No entanto, a

instituição jurídica emerge centralizando o conflito entre os detentores do poder e a oposição

radical, que submetidos às regras formalizadas do rito processual, adquiriam uma certa

previsibilidade (LEMOS, 2004, p.4).

Analisar os anos iniciais (1964-1965), torna-se interessante por representar uma

adequação e contribuição da Justiça Militar na institucionalização do golpe e da sua

ideologia de segurança nacional. Este momento de transição permite reconhecer uma

demanda de mudanças condizentes aos objetivos do novo sistema. Na Justiça Militar,

acredito que isso se fará mediante o desenvolvimento – e articulação – de certas práticas

argumentativas, assim como a legitimação destas práticas. Neste sentido, através da leitura

das Atas das Sessões, pode-se reconhecer práticas ainda não formalizadas, criando uma

demanda de importância para a constituição dos Atos Institucionais. Ao analisar as atas,

percebe-se algumas incoerências (destacaremos mais à frente) pela falta de uma

formalização de certas ações, ou seja, pela ausência de um aval judicial de certos

procedimentos, o que iria ser retificado nos Atos Institucionais.

Atas das Sessões das Audiências (1964 e 1965)

A documentação primária pesquisada para a presente comunicação faz parte do

acervo da Auditoria da Quarta Circunscrição Judiciária Militar6. As Atas das Sessões são

documentos que descrevem a dinâmica no tribunal militar. Possui em grande parte uma

objetividade, no sentido de que, aparentemente, diálogos e inquirições são descritos de forma

mais simples, objetiva. Todavia, apresentam uma lógica argumentativa, em alguns

momentos, que reflete os interesses, de um lado do regime militar, e de outro dos direitos

individuais dos acusados, tornando-se um documento rico em informações. Além do mais,

é interessante perceber as articulações das leis, suas interpretações e aplicações, como

também as mudanças legislativas que marcaram os trabalhos na auditoria militar.

Nas atas de 1964 podem-se destacar fatos que condizem com o objetivo do golpe. O

elevado número de pedido de prisão preventiva traduz bem a busca do controle sobre

ameaças internas, sendo, dessa maneira, um mecanismo de repressão. Foram contabilizados

na documentação disponível – considerando algumas lacunas na frequência dos documentos

4 Termo referido constantemente nas Atas das Sessões. 5 Os “maus elementos” referidos são: Clodismith Riani, Sival Bambirra e José Gomes Pimenta, os primeiros

acusados relacionados no documento: O rol de acusados incursos na Lei de Segurança Nacional. 6 Corresponde com a Quarta Região Militar (Minas Gerais).

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– setenta e um acusados, relacionados no pedido de prisão preventiva.

Outro fato interessante, que se caracteriza como um incidente processual7, é a

constante arguição a favor dos acusados, alegando a incompetência da Justiça Militar em

processar e julgar tais crimes da Lei de Segurança Nacional8. O artigo 8º, parágrafo 1º da

Constituição de 1946, comprometia o alcance da Justiça Militar sobre os civis enquadrados

na LSN, por um detalhe:

Art. 8º - A Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares

definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são, assemelhadas.

§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos, expressos

em lei, para a repressão de crimes contra a segurança externa do País ou as

instituições militares.

Isso explica a constante argumentação neste sentido, configurando um mecanismo

por parte da defesa com o objetivo de transferir o julgamento para a Justiça Comum. Mesmo

sem nenhuma regulamentação, não foi aceita a caracterização de incompetência da Justiça

Militar perante tais processos e, por conseguinte, continuaram a tramitar na auditoria militar.

O trecho de um extenso processo ilustra bem esta situação:

Dada a palavra ao Dr. O.G., defensor de vários acusados, alega em relação

a todos, a exceção de incompetência em face da tipicidade afirmando não

estar provado nos autos a ajuda ou subsídio de país estrangeiro ou de

organismo de caráter internacional.

Com a palavra o Dr. Promotor, este alega que além da ajuda financeira,

existe a ajuda ideológica, e quanto a atividade dos acusados, esta está

provada, lendo, ao final, documento de caráter secreto, dizendo que a

Justiça Militar é competente para julgar os réus defendidos pelo Dr. O G.

(Ata da 56º Sessão do Conselho Permanente De Justiça Para o Exército.)

Este embate, com tal argumentação, se repetirá por todo ano de 1964 e até final de

1965, que veremos a mudança necessária para legitimar a tramitação do processo na

auditoria militar.

No ano de 1965, já é significativo o aumento do número de audiências. Se no ano de

1964 houve aproximadamente 70 audiências, no ano de 1965 esse número quase dobrou,

contabilizando aproximadamente 130 audiências. É neste mesmo ano que surgiu o Conselho

Extraordinário de Justiça do Exército, para colaborar com a demanda que aumentara. Os

processos de acusados na LSN também aumentaram significativamente. Enquanto que no

ano de 1964 houve 15 processos, no ano de 1965 já contabilizava 49 processos9. Apesar do

número de processos de 1964 ser inferior ao ano seguinte, não podemos nos enganar com o

alcance que ele atingiu, isso porque, muitos processos foram formados por dezenas, até

centenas, de denunciados.

Em 27 de outubro de 1965, a instauração do ato institucional número 2 apresentou a

primeira grande mudança no sistema judiciário. O parágrafo 1º do artigo 8º da Constituição

de 1946 mudaria efetivamente o campo de atuação da Justiça Militar, ampliando sua

competência em processar e julgar crimes relacionados à Segurança Nacional. O parágrafo

alterado ficou da seguinte forma: “§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos

7 Art. 143 a 149 do Código de Processo Penal Militar. 8 Lei nº 1802, de 5 de janeiro de 1953. 9 Retirado do documento Relação de Processos dos Acusados na Lei de Segurança Nacional.

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casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as

instituições militares”10.

Dessa maneira, o conceito de “Segurança Nacional”, englobava não somente a

segurança externa, mas também a interna (SEIXAS, 2002). Outra importante alteração foi a

suspensão das garantias constitucionais adquiridas pelos Juízes Auditores. O artigo 14

expressa esta alteração:

Art. 14 - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de

vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em

funções por tempo certo.

Parágrafo único - Ouvido o Conselho de Segurança Nacional, os titulares

dessas garantias poderão ser demitidos, removidos ou dispensados, ou,

ainda, com os vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de

serviço, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a

reserva ou reformados, desde que demonstrem incompatibilidade com os

objetivos da Revolução11.

Decerto, isso propiciou um controle dos profissionais da magistratura a favor dos

interesses do governo, promovendo uma configuração do sistema judiciário, que se

institucionalizava a favor do novo regime.

Disposições Finais

Ao longo do presente trabalho, acreditamos estar contribuindo para a questão do

problema judiciário durante a época da ditadura militar. Tal questão se constitui como um

dos fundamentos desse período político, que perdurou no nosso país por 21 anos.

Compreender as configurações jurídicas de como se institucionalizou o governo militar é

algo que consideramos fundamental, tanto pelo fato de nos propiciar a compreensão dos

mecanismos repressivos utilizados na auditoria militar, quanto para a legitimação deste

mesmo poder.

O que podemos nos alertar diante da breve comunicação, é a intensidade documental

(informativa) que temos sobre o período em questão. A busca de novas realidades, em um

período polêmico, se faz coerente numa contribuição historiográfica. Diversificar leituras,

contribuir para novas interpretações, é pulsar a favor de reconhecimentos outrora

negligenciados pela escassa documentação disponível, que por ora emerge.

Fontes Primárias

Atas das Sessões dos Conselhos Permanentes de Justiça para o Exército (1964 e 1965).

Disponível no Arquivo da Quarta Auditoria da Justiça Militar.

Ato Institucional nº 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-

64.htm>.

Ato Institucional nº 2. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-

65.htm>.

10 Ato Institucional nº 2, artigo 108, parágrafo 1º. 11 Ato Institucional nº 2, Artigo 14.

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Constituição de 1946. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>

Funciona em Minas a Justiça Militar. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5/4/1964, p. 2.

Referências bibliográficas

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Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos referentes às Leis

de Segurança Nacional (1964-1978). (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do

Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009.

ARANTES, Rogério Bastos. Judiciário e Política no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré,

1997.

LEMOS, Renato Luís do Couto Neto. Justiça Militar e processo político no Brasil (1964-

1968). In: Anais do seminário “1964-2004 - 40 anos do golpe”. Ditadura militar e resistência

no Brasil. UFRJ, UFF, CPDOC e APERJ. Rio de Janeiro: 7Letras; FAPERJ, 2004, p. 282-

289.

LEMOS, Renato Luís do Couto Neto. A Justiça Militar e a implantação da ordem

Republicana no Brasil (1889-1895). Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, v. 13, n. 24,

p. 60-72, jan./jun. 2012.

LEMOS, Renato Luís do Couto Neto. Poder Judiciário e poder militar (1964-1969). In:

CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova história militar

brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV / Bom Texto, 2004.

SEIXAS, Alexandre Magalhães. (2002). A Justiça Militar no Brasil: estrutura e funções.

Dissertação de Mestrado (Ciência Política). Campinas (SP): UNICAMP.

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EM DIREÇÃO AO ABISMO SOCIAL: A LITERATURA COMO FONTE PARA

COMPREENDER A ACUMULAÇÃO DE MISÉRIA DA DITADURA

BRASILEIRA

Lúcio Fellini Tazinaffo1

Resumo: Este artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado que investiga a literatura e o teatro

na Ditadura no Brasil, com a finalidade de compreender a violência na luta de classes do

período. A partir da obra Zero (1974) de Ignácio de Loyola Brandão, e dos contos de

Roniwalter Jatobá, Sabor de Química (1976) e Crônicas da vida operária (1978), discutimos

as condições da vida da classe trabalhadora produzidas pela Ditadura. Os dois autores

escolhem como protagonistas trabalhadores que migraram para o extrato mais baixo da

classe: o lumpemproletariado. Acreditamos que esta escolha tem por objetivo ressaltar os

problemas sociais vividos por esses sujeitos, devido às medidas socioeconômicas adotadas

a partir do golpe de 1964, em que a classe trabalhadora se viu sob forte ataque do Estado:

sofrendo perdas de direitos políticos conquistados nas lutas dos anos anteriores e passando

por mudanças econômicas que acentuaram a exploração do capital sob o trabalho. Para

problematizar nossas fontes utilizamos as reflexões de Karl Marx sobre o

lumpemproletariado e os conceitos de acumulação de capital e acumulação de miséria, ideias

que expressam as desigualdades sociais vividas na sociedade capitalista, visto que

compreendemos a Ditadura como uma transformação do capitalismo no Brasil. Também

partimos da ideia de tragédia de Raymond Williams, indicando não somente um estilo

literário – que pode muito bem ser aplicado às nossas fontes – mas também uma qualidade

específica do modo de vida dos trabalhadores, consequência da exploração do capital.

Palavras-chave: Ditadura; Lumpemproletariado; Acumulação de miséria.

Introdução

A Tragédia é uma das nove musas gregas da inspiração artística. Como estilo

linguístico, a tragédia reconstrói a realidade de maneira a analisar com o público os dramas

e sofrimentos vividos pelas pessoas.

No entanto, a tragédia também pode ser compreendia como uma experiência de vida.

Raymond Williams procura dialogar com as duas formas, mostrando como o teatro

brechtiano é construído a partir de uma linguagem trágica, mas também como ele revela

experiências trágicas da classe trabalhadora (WILLIAMS, 2011).

No nosso entendimento, o capitalismo se apresenta como um sistema que constrói

tragédias, tanto para a classe dominante como para a classe trabalhadora – muito embora a

segunda seja a sua principal vítima.

Em nossa pesquisa nos voltamos para um dos momentos mais sangrentos e

repressivos vividos pela classe trabalhadora: a Ditadura. Entre 1964 e 1985, o Brasil sofreu

um golpe que levou ao poder um grupo de militares que, junto com outras camadas da

sociedade, implantaram um projeto de desenvolvimento econômico que trouxe sérias

consequências para os movimentos sociais e para os trabalhadores, que tiveram vários

direitos anteriormente conquistados atacados pela nova legislação, pelas transformações no

1 Estudante do Programa de Mestrado do curso de História da Unioeste – campus de Mal. Cândido Rondon.

Orientado pelo Prof. Dr. Antônio de Pádua Bosi.

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modo de produção e pela repressão.

Procuramos explorar uma literatura que revela traços da realidade vivida pelos

trabalhadores neste período. A partir de algumas obras de Roniwalter Jatobá – ex-operário e

famoso escritor – e Ignácio de Loyola Brandão – jornalista e romancista engajado –

problematizamos a violência sofrida pela classe trabalhadora, explorando outros elementos

para além da tortura – estigma sofrido pelos perseguidos políticos durante a Ditadura.

A acumulação de miséria na Ditadura de 1964: descida ao abismo social

Os anos anteriores ao golpe foram de grande tensão social e política. Os movimentos

sociais estavam em grande furor: o movimento operário havia crescido e acumulado muitas

conquistas, em que os sindicatos exerciam papel fundamental na luta pelos direitos dos

trabalhadores; as Ligas Camponesas estava se formando no interior do país e procuravam

resolver o problema da distribuição e posse desigual de terras que vinha desde a organização

lusitana em terras indígenas; os estudantes lutavam por maior acesso nas universidades e

procuravam participar dos debates políticos dos movimentos sociais; havia uma esquerda

crescente, em que o PCB era a grande referência, mas que já contava com outros grupos que

apontavam alternativas para os problemas sociais no Brasil. Por fim o governo de João

Goulart parecia ceder e tentar dialogar com estes grupos, o que amedrontava e enraivecia os

grupos dominantes, insatisfeitos com o governo e temerosos das articulações entre os

movimentos sociais.

Alguns setores da classe dominante começaram a se articular com o fim de organizar

a classe e estabelecer parâmetros para uma sociedade capitalista industrial. Juntamente com

grupos das forças armadas, eles criaram e financiaram órgãos que serviram para dar suporte

para as ações que levaram ao golpe e para projetar os planos que deveriam ser postos em

prática para que o desenvolvimento econômico almejado fosse alcançado. René Dreyfuss

fez um importante levantamento de fontes sobre esse tema, e sua pesquisa revela a profunda

organização e rede de informações estabelecida por setores da classe dominante e das forças

armadas. Por meio do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e do IBAD (Instituto

Brasileiro de Ação Democrática) foi possível estabelecer uma relação de comum acordo

entre diferentes setores da sociedade – classe média, burguesia industrial, latifundiários e

forças militares – com a finalidade de dar um golpe de estado, atacar as forças comunistas

no país, desestruturar as formas de organização dos trabalhadores e implantar um plano

econômico que atendesse aos objetivos da classe dominante (DREIFUSS, 2006).

Nos primeiros anos da Ditadura, entre 1964 e 1967, um programa elaborado pelo

IPES seria implantado, com o fim de coordenar as atividades do governo na esfera

econômica: o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) preparou uma série de

reformas políticas, econômicas e sociais que beneficiavam os grandes industriais e

prejudicavam os trabalhadores. Segundo Dreifuss:

A nova legislação serviu a três finalidades principais: a) aumentou o

controle direto dos sindicatos; b) procurou fortalecer os aspectos

corporativos da estrutura sindicalista pelo seu papel na construção nacional

e na manutenção da coesão social; c) sob o pretexto do controle da inflação

tentou transferir recursos para a indústria submetendo a classe trabalhadora

a diversos tipos de programas de poupança forçada (DREIFUSS, 2006,

p.460).

A partir deste momento o Estado começou a atacar os direitos dos trabalhadores.

Houve a intervenção do Estado em grande parte dos sindicatos. Cerca de 70% dos sindicatos

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com cinco mil ou mais membros sofreram este processo. Todas as associações de

trabalhadores combativas foram destruídas: aqueles considerados líderes ou influentes foram

presos ou demitidos com justa causa.

O direito à greve foi abolido: a Lei nº 4.330 de junho de 1964 proibia qualquer tipo

de greve, o que provocou uma queda abrupta no número de greves, segundo Kenneth

Erickson: em 1963 ocorreram trezentas e duas greves, em 1965 vinte e cinco, em 1966

quinze, doze em 1970 e nenhuma em 1971 (GT-13, 2014, p.67).

Mais tempo de trabalho, sem ganho de horas extras, precarização das condições de

trabalho (ambiente de trabalho perigoso, favorável a acidentes) e a implementação de

tecnologias que não prezavam pela saúde do trabalhador, mas sim pelo aumento da

produção, provocaram um grande aumento do abismo social entre ricos e pobres no período.

Com a perda de seus órgãos de defesa e de seus direitos, os trabalhadores se viram neste

momento forçados a aceitar essas condições de trabalho, do que enfrentar a repressão policial

e o desemprego que ameaçava a sua sobrevivência.

Foram essas medidas iniciais da Ditadura que gestaram o chamado “milagre

econômico”, período de 1968 a 1973 em que o Brasil registrou índices superiores a 10% de

crescimento do PIB. O aumento dos lucros das empresas andou ao lado do arrocho salarial

dos trabalhadores e do aumento da pobreza da classe trabalhadora. Para se ter uma ideia o

“setor metalúrgico, que pode ser considerado o coração da indústria brasileira no período

entre 1966 e 1974, o salário real médio manteve-se inalterado, enquanto a produtividade

cresceu 99%” (GT-13, 2014, p.68).

Dados como esse ajudam a colocar em cheque a falsa roupagem do discurso do

milagre, uma vez que denunciam a pobreza em que viviam os trabalhadores em

contraposição a elevação da produtividade das empresas.

Neste processo de desenvolvimento capitalista devemos problematizar a acumulação

de riquezas, de modo a perceber as consequências que ela gerou para a classe trabalhadora.

Marx indica que no processo de acumulação do capital ocorre, ao mesmo tempo, um

processo de acumulação de miséria: para que haja um aumento do lucro dos capitalistas é

preciso que ocorra um aumento da exploração do trabalho, acentuando ainda mais o abismo

existente entre as classes. A base dessa acumulação está no aumento do exército industrial

de reserva, em que o crescimento da taxa de lucro e o desenvolvimento técnico provocam

um aumento do número de desempregados e da exploração do trabalho daqueles que estão

empregados, pois a falta de empregos – a falta de horizontes possíveis de melhora nas

condições de vida –, o número elevado de trabalhadores prontos para assumirem o seu lugar

e o temor de sofrer com os problemas que assolam aqueles que se encontram na condição de

desempregados submetem o trabalhador a uma intensificação da exploração. Assim o capital

opõe os membros da classe trabalhadora entre si, provocando a “condenação de uma parcela

dela à ociosidade forçada em virtude do sobretrabalho da outra” (MARX, 1988, p.203).

Diante disso vejamos agora como as nossas fontes nos revelam aspectos dessa

realidade da classe trabalhadora, permitindo perceber o lado sombrio do desenvolvimento

capitalista empreendido durante a Ditadura.

O símbolo da exploração do capital nos anos da Ditadura: o lumpemproletariado

Ignácio de Loyola Brandão nasceu no interior de São Paulo em 1936. Formou-se

como jornalista e escreveu em vários jornais de São Paulo. Escreveu muitos romances,

dentre os quais Zero, produzido entre 1965 e 1973, que foi publicado pela primeira vez em

1974, na Itália, após ter sido recusado por várias editoras brasileiras. Em 1975, foi publicado

no Brasil, mas teve a sua venda proibida, para voltar somente na década de 1980 no mercado

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de livros brasileiro. Tanto como jornalista quanto escritor sofreu com a censura, sobretudo

por tratar em seus trabalhos sobre a repressão e a miséria vividos pela classe trabalhadora

pelas mãos do Estado militar.

Brandão compôs o seu romance a partir de vários recortes de jornais e revistas que

ele guardou desde os primeiros anos da Ditadura. Por meio deles, ele construiu uma obra

que traz reflexões acerca do papel dos meios de comunicação como legitimadores do golpe

e ocultadores dos problemas sociais, em contraponto às contradições sociais e às

desigualdades sofridas pela classe trabalhadora. No protagonista José temos a imagem do

trabalhador que procura construir a sua vida em meio às pressões sociais que o

desenvolvimento capitalista na Ditadura impõe sob os mais pobres.

José, o protagonista da obra, migra da esfera do trabalho precarizado – era um

matador de ratos num cinema, vivia numa pensão – e vai para o mundo do crime. Entretanto

seus assaltos possuem um sentido político: ele só ataca pessoas de uma categoria social

superior. Seus roubos não aparecem apenas como uma maneira de sobreviver numa

sociedade que oferece poucas e péssimas alternativas de trabalho para as classes subalternas,

mas surgem como uma desforra social, uma forma de resistência contra a dominação.

No final da obra, José acaba sendo capturado e preso, e em um momento ele faz uma

autorreflexão sobre a trajetória que ele escolheu no mundo crime.

? Adiantou a minha violência./ Adiantou. A gente tem de cuspir, em vez

de engolir o catarro e se envenenar. Cuspir no olho e na boca de quem está

querendo pisar na gente. Dar troco. Não ficar devendo. O que eu fiz foi

para não ficar sufocado, poder gritar. Um minuto meu é a eternidade

deles. Vivi 130 anos, mãe. Era isso, a salvação meu filho, salvar sua alma,

era o que você dizia cercada de velas e incenso e flores e santos. Vivi 130

anos diante de cada homem a quem apontei o revólver (BRANDÃO, 2001,

p.255, grifos nossos).

Neste trecho Brandão conclui a sua reflexão sobre a vida de crimes de José. A

violência, como forma de resistência e revolta social, surge como um meio de trazer alívio e

autonomia a José, que vivia sob as pressões do sistema capitalista do período. Desde o

instante em que ele começou a roubar o ato criminoso parecia indicar mais de um sentido.

Planejar os crimes, roubar membros da classe dominante e depois começar a assassiná-los é

traduzido por José como uma maneira de se libertar dos grilhões de uma sociedade dominada

por uma ditadura. Antes disso, com seus outros empregos José sentia-se preso: mais do que

isso, sentia-se morto. A violência de José parece ser colocada por Brandão como uma

maneira dele tomar o controle da sua própria vida.

Roniwalter Jatobá nasceu em 1949 na cidade de Campanário-MG. Com dez anos de

idade mudou-se para Campo Formoso, na Bahia, e mais tarde veio a trabalhar com um

caminhão pelo sertão baiano. Depois de servir o exército em 1970 veio para São Paulo, onde

trabalhou como operário na Karmann-Ghia, no ABC, enquanto morava ao lado da

Nitroquímica, em São Miguel Paulista. Estes anos trabalhando na indústria e convivendo

com operários dos diferentes ramos industriais de São Paulo serviram de inspiração para as

obras que compôs no final da década de 1970 – Sabor de Química (1977) e Crônicas da vida

operária (1978), quando estava trabalhando na Editora Abril – desde 1973. A partir de 1978

já atuava também como jornalista.

A marca característica dos contos de Sabor de química e Crônicas da vida operária

são os acidentes de trabalho. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o

aumento da exploração da força de trabalho deu ao Brasil o título de campeão mundial de

acidentes de trabalho, com cerca de 3.900 mortes e mais de 1,7 milhões de sinistros atingidos

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em 1976 (GT-13, 2014, p.68). Jatobá, que trabalhou como operário e conviveu com

trabalhadores dos vários setores da indústria de São Paulo, conheceu de perto essa realidade

e a traduziu na forma de literatura, mostrando como o processo de desenvolvimento

capitalista trouxe trágicas consequências para a classe trabalhadora.

No conto A fábrica, de Sabor de química, temos a perspectiva de uma criança sobre

as mudanças sofridas pela família que se mudou para São Paulo. Vejamos o trecho em que

o garoto conta para os pais que viu um homem cair do alto de um prédio em que estava

trabalhando:

Não contei nada (para a mãe). Nunca tinha visto ninguém morrer. De noite,

na mesa, todo mundo jantando, toquei no assunto. Pai assuntou ascendendo

um cigarro, mãe repreendeu com as vistas, aí pai disse vai dormir, deixa de

histórias de trancoso. Depois, ele falou que dessa semana eu não passava,

já tinha emprego garantido. Ia começar, passado do tempo, no mais tardar,

segunda-feira que entra. Saí para o quarto, uma coisa me dizendo na

cabeça, perguntando, se trabalhar é bom (JATOBÁ, 1991, p.70, grifos

nossos).

A obra, repleta de casos de trabalhadores que sofreram algum acidente, provocado

pelas condições precárias do ambiente de trabalho e pela intensificação da produção,

complementa o raciocínio final do garoto: trabalhar é bom? O pai, preocupado com o fato

de o filho brincar na rua, e imbuído pelo discurso do Estado sobre o trabalho, procurou algum

serviço para pôr o garoto como aprendiz. O menino, vendo a rotina diária do pai, e assustado

com a cena que vira naquele dia, reflete sobre a preocupação do pai e a ideia de que trabalhar

seja algo bom para ele – ou para qualquer indivíduo.

Nas Crônicas da vida operária, Jatobá conta a história de Natanael, filho de um

ferreiro, que veio para São Paulo trabalhar e crescer numa indústria. O conto, chamado A

mão esquerda, começa com o ex-operário sem a mão esquerda, e aos poucos ele vai se

recordando do dia em que chegou na cidade, o emprego que arranjou, o sonho de crescer

profissionalmente e a perda da mão num acidente de trabalho. Vejamos um dos trechos em

que ele se lembra do dia do acidente:

Fico lembrando a mesa da prensa pintada de tinta recente, azul, o molejo

dela no sobe e desce e minha mão que ficou parada como mão de morto,

mão de morto pois nem veio no pensamento da cabeça aquela vontade e

ligeireza de puxar a mão, fiquei na frieza de um homem morto, a mão

recebeu a força de toneladas de peso, ainda vi a cor do sangue, os dedos

esmagados, esfolados numa cor só, e fui vendo a morte, o medo de morrer

que se faz sentir com os gritos que soltei, gritei, gritei de dor, raiva de

acontecer aquilo, o grito ecoando nas outras prensas, homens correndo, vi,

homens me segurando nos braços, segurando agarrando minha cabeça que

começava a pender de banda, vi, o assoalho lavado de sangue, fui vendo,

vendo, sumindo, se apagando os homens, neblinando nas vistas os dedos

sujos, nada mais vi. Depois, vi a roupa branca do enfermeiro, o olhar dele

de dó, a minha mão parada, quieta ao lado do corpo, sem dor na hora agora,

só pesada sem se bulir, um frio em todo o corpo de vento gelado. E foi

passando na cabeça o meu choro, o sangue melando a máquina, o azul dela,

fui sentindo vergonha, não me veio um tico de nada de ódio da prensa, da

prensa que me deixou com tocos de dedos, um homem aleijado, inutilizado

como dizem por aí, não, não senti raiva cega da máquina, só da minha

fraqueza, do meu medo, do descuido, do choro, essa mão, agora, pois vê,

pesada e quieta como se não parecesse minha (JATOBÁ, 1979, p.18-19).

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O trecho, mostrando a lembrança de Natanael do momento em que perdera a mão,

está carregado de emoções. Algumas delas revelam a dor, a tristeza e a angústia no momento

em que a prensa esmagou a sua mão, junto com o medo de morrer. Depois as emoções

aparecem como uma mistura da raiva pela máquina com um forte sentimento de vergonha e

culpa. Jatobá, a partir deste conto, mostra o raciocínio que muitos trabalhadores tiveram ao

sofrer um acidente de trabalho, em que ao invés de culpar a indústria e o patrão pelas

condições de trabalho, que acabaram provocando o acidente, acreditam que a culpa foi deles,

por negligência ou descuido. O cansaço e a sonolência, provocados pela intensa rotina de

trabalho e pelas poucas horas de descanso, não são identificados como os fatores que

provocaram o acidente. No mesmo conto Natanael soube de outro trabalhador que havia

sofrido um acidente naquela prensa, e a ele eram atribuídos o descuido do funcionário: o RH

da empresa, o patrão e alguns funcionários culpabilizam as vítimas dos acidentes,

espalhando um discurso que ocultava os verdadeiros responsáveis.

Jatobá não trabalha somente o acidente, mas o que ele provocou na vida daqueles que

sobreviveram. O sentimento de impotência – a incapacidade de realizar as atividades

cotidianas e de conseguir um novo emprego –, o descaso da firma pelo qual o funcionário se

dedicava, as dores constantes e as dificuldades para conseguir os remédios compunham o

quadro trágico em que se encontravam aqueles que sofreram com o projeto de

desenvolvimento capitalista implantado na Ditadura.

Pode-se perceber que todas as obras retratam os modos de vida de trabalhadores que

habitavam a esfera do mais profundo pauperismo: o lumpemproletariado. De acordo com a

análise de Marx, esse terceiro estrato do exército industrial de reserva, chamado por ele de

estagnado, vive numa condição de vida abaixo do nível normal médio da classe trabalhadora,

que por isso a torna a base para certos ramos de exploração do capital – os serviços mais

precarizados, caracterizados pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de salário, como

aqueles oferecidos pelas indústrias, que buscavam o máximo crescimento e a contenção de

custos com mão-de-obra e ambientes de trabalho seguros. Essa camada da classe

trabalhadora, formada por delinquentes e pelos incapacitados para o trabalho, é

marginalizada pela sociedade capitalista, tanto pelos grupos dominantes como pelos próprios

trabalhadores. Por viverem nessas condições, sob essas pressões, com quase nenhum

horizonte de mudança à frente, submetem-se aos piores tipos de serviços que aparecem

(MARX, 1988, p. 208-210). Algumas vezes, como nos mostrou Jatobá, os trabalhadores

desconhecem o caráter precário do trabalho que arrumaram, e por isso acabam pagando um

alto preço depois, afundando ainda mais no abismo social em que se encontram.

Considerações finais

Tanto Jatobá como Brandão parecem indicar que o capitalismo implantado na

Ditadura criou enormes pressões na vida dos trabalhadores, empurrando muitos deles para o

abismo social da classe: o lumpemproletariado. Não é coincidência que os protagonistas de

suas obras são o lumpem: trabalhadores que sofreram acidente de trabalho ou um trabalhador

que encontrou no crime a sua arma contra a dominação.

Roniwalter Jatobá indica as mudanças sofridas pelos trabalhadores e por seus entes

queridos com a mudança para São Paulo e pelo acidente provocado pelas péssimas condições

de trabalho. As consequências na vida desses sujeitos, expressas em suas obras, nos ajudam

a compreender como o processo de desenvolvimento capitalista posto em prática com a

Ditadura transformou a vida dos trabalhadores. Suas obras acabam por qualificar o outro

lado da moeda do “milagre econômico” da Ditadura, mostrando como ele foi produzido e

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quem não usufruiu nem um pouco dele: a classe trabalhadora.

A trajetória de José ao abismo social, que vai do pobre matador de ratos até o

criminoso que roubava e matava as suas vítimas, indica o caráter determinista e cruel da

sociedade capitalista: o controle e a oferta de empregos bastante precários e com baixíssimos

salários fizeram com que José escolhesse o mundo do crime como alternativa e resposta a

essas condições de vida. No entanto, a vida de José não é romantizada: ele não vira um Robin

Hood. A sua opção pelo crime pode ter-lhe trazido certo sentimento de liberdade, mas ele

ainda se encontrava preso naquela sociedade desigual. Pior ainda: ao tornar-se um infrator

das leis do Estado, ele agora estava sob a mira das suas forças repressoras mais do que nunca.

Não podemos deixar de lado certa crítica de Brandão à luta armada no Brasil: assim, em

nossa análise, Brandão mostra por meio de José como o capitalismo gera uma camada da

sociedade empobrecida que pode adentrar o mundo do crime, e não que a ação política por

meio da violência seja uma boa arma contra a repressão e a exploração do Estado ditatorial.

Nossas fontes revelam as múltiplas faces da violência sofrida pela classe

trabalhadora, provocadas principalmente pela exploração do trabalho. Negar essa realidade

significa ignorar a fonte que gestou o “milagre econômico” e as outras características brutais

da Ditadura de 1964, que compõem o quadro trágico geral daquela realidade vivida pela

classe trabalhadora.

Referências bibliográficas

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12ª ed. São Paulo: Global, 2001.

DREIFUSS, René Armand. 1964, a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de

classe. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

GT-13: Grupo de Trabalho nº 13 da Comissão Nacional da Verdade, sobre Ditadura e

Repressão aos Trabalhadores e Movimento Sindical. Textos Temáticos, dez/2014.

Disponível em:

<https://trabalhadoresgtcnv.files.wordpress.com/2014/12/nosso_capitulo.pdf>. Acessado

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GUAÍRA EM TEMPOS DE DITADURA CIVIL-MILITAR: A ATUAÇÃO DA

DITADURA DE SEGURANÇA NACIONAL NA CIDADE DE GUAÍRA-PR (1964-

1985)

Mara Dhulle dos Santos Silva1

Resumo: O trabalho se dará a partir da análise do município de Guaíra (PR) no contexto de

Ditadura de Segurança Nacional e sua aplicação nos anos de 1964 a 1985 no Brasil,

analisando como esta pequena cidade localizada no extremo oeste paranaense foi afetada

pelos ditames da Ditadura. Avalia-se, deste modo, como durante o período ditatorial foram

aplicadas diferentes formas de repressão e coerção nesta cidade e como a política de medo

foi implantada. O objetivo desta análise é ponderar como dentro da ideologia de Segurança

Nacional o Terror de Estado foi implantado, afetando esta cidade da região paranaense que

perfaz as divisas com o Estado de Mato Grosso do Sul e o país vizinho Paraguai. Essas

ocorrências alteraram o cotidiano dos cidadãos guairenses, assim como o da política local.

Ponderamos como a ditadura civil-militar atuava através dos ditames da Ditadura de

Segurança Nacional instalada em todo Cone Sul, e que nos anos de 1964 e 1985 operou no

Brasil, deixando suas marcas até os dias atuais. Entre essas marcas está o fato de ter afetado

o território nacional como um todo, não se fixando apenas nos grandes centros.

Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar; Doutrina de Segurança Nacional; Guaíra (PR);

Política.

Introdução

O texto que segue trata de uma busca por indícios que possibilitam a compreensão

da história do Município de Guaíra. Pode parecer desnecessário o estudo e/ou análise de um

pequeno munícipio localizado a extremo oeste paranaense, mas o que se pretende é um

avanço na apreensão do que ocorre nas regiões interioranas durante o período ditatorial

brasileiro.

Para além do estudo de uma cidade, buscam-se a análise desta cidade durante o

período ditatorial civil-militar, passando assim uma leitura deste período como algo ocorrido

e com impacto para além dos grandes centros urbanos, compreendendo que a Ditadura Civil-

Militar ocorreu de forma abrangente, tendo suas influências em todo território nacional.

Busca-se a compreensão tanto das dinâmicas e mudanças ocorridas a partir da instauração

do Golpe ditatorial Civil-Militar brasileiro de 1964, no contexto nacional, como alterou e se

entrelaçou as dinâmicas das políticas municipais e como as disputas pelo poder local e/ou as

pequenas políticas estão intrinsecamente relacionadas às políticas nacionais.

Para iniciar esta pesquisa foi preciso passar por diversas dificuldades com as fontes.

Refiro-me a entrevistas negadas, requerimentos negados, além de arquivos que se

“perderam”, entre diversas entrevistas que foram recusadas, mesmo tendo sido estas

previamente agendadas e/ou já tivessem sido realizadas conversas informais anteriormente.

Algumas acabavam sendo recusadas com argumentos como: “Não é bem assim! Este tipo

de conversa não pode ser feita dessa forma”. Houve também requerimentos de acesso a

arquivos negados sem nem mesmo este tipo de justificativa mencionada nas entrevistas. Por

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UNIOESTE. Email: <[email protected]>.

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exemplo, os pedidos de acesso aos arquivos do 34º Batalhão de Infantaria Motorizado,

localizado em Foz do Iguaçu (PR), da 15ª Companhia de Infantaria Motorizada localizada

na cidade de Guaíra (PR), da Delegacia Fluvial de Guaíra, entre outros, foram rejeitados e

tendo como resposta apenas um pedido da 15ª Companhia de Infantaria Motorizada de que,

se houvesse interesse em ter acesso aos seus arquivos, deveria ser encaminhado outro

requerimento ao Gabinete do Comandante do Exército em Brasília, sob comando do Exc.º

Senhor General de Exército Enzo Martins Peri. Requerimento este que até a atual data não

foi sequer respondido.

Porém, com todas as dificuldades, a pesquisa seguiu, e o texto aqui apresentado é um

de seus resultados. Parte-se, assim, da análise das marcas deixadas pelo período ditatorial

brasileiro na cidade de Guaíra (PR), buscando ponderar sobre as questões que podem ser

compreendidas como continuidades da Ditadura Civil-Militar, se foram aplicadas diferentes

formas de controle social, e, nessa premissa, quais teriam sido as diferentes formas de

dominação utilizadas, e se as mesmas se mantiveram no cotidiano da população guairense.

Guaíra no contexto ditatorial brasileiro

O Golpe dado no ano de 1964, mais especificamente no dia 31 de março, deu às

Forças Armadas o poder dirigente do Estado brasileiro com o apoio de setores civis. Este

novo cenário nacional provocou uma ruptura, que em conjunto com o novo ambiente

institucional do país, se entrelaça com “as dinâmicas das eleições regionais e com as disputas

pela conquista ou preservação do poder local (GUILHERME, 2012, p.11)”. Mais

significativas são as disputas que se iniciam durante esses processos eleitorais, pois, mesmo

com “o tacão de uma ditadura, os detentores do poder procuravam erigir instituições que

pudessem alimentar a imagem de que o país se encontrava sob relativa normalidade

democrática” (GUILHERME, 2012, p.11).

Apesar da afirmação de que parte das ações políticas realizadas nas cidades

brasileiras acontecerem a partir de interesses particulares desses sujeitos e/ou da elite da

cidade, não significa que o município esteja deslocado do contexto ditatorial que ocorre em

todo o Brasil. Muito pelo contrário, é a partir das premissas ditatoriais que esses sujeitos têm

a liberdade e a legalidade de suas ações garantidas.

Uma das formas para a compreensão desse contexto é através das entrevistas, como

mencionado na introdução, a dificuldade de trabalhar com esta temática está muito presente

devido a referir-se a um fato muito próximo. Não me refiro apenas a ser um fato recente da

historiografia, mas, principalmente, por seus agentes estarem presentes no cotidiano da

cidade de Guaíra. Em sua maioria, ainda mantêm cargos de poder social, sejam apenas em

seus status ou em cargos públicos.

Dentre as diversas tentativas de entrevistas realizadas para a dissertação, irei destacar

uma que além de ser bem-sucedida em sua finalização, permite compreender como agiam

os agentes da Ditadura na cidade de Guaíra (PR). A entrevista realizada com Maurino de

Oliveira, que é morador de Guaíra desde sua tenra idade. Ele é, atualmente, aposentado, mas

foi funcionário da empresa Mate Laranjeira durante sua juventude, trabalhou como telégrafo

do aeroporto municipal por um ano, além de servir na 5ª Cia de Fronteira durante os anos de

1963 e 1964. Após sua baixa do Exército, seguiu como funcionário do Grupo Lex S.A., um

conjunto empresarial pertencente à família do atual prefeito de Guaíra-Pr. Muito conhecido

na cidade de Guaíra por seus serviços prestados ao Grupo Lex S.A., torna-se convidado a

participar do Rotary Club de Guaíra, tendo assim contato com toda a elite guairense.

Em todas as entrevistas expostas na dissertação, quando perguntado como repercutiu

para a população guairense o Golpe Civil-Militar de 1964 na cidade de Guaíra, as respostas

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eram quase que unânimes2, mas o trecho que se segue da entrevista, realizada com Maurino,

resume muito bem as outras respostas para a mesma pergunta:

No começo foi um impacto, porque a gente não conhecia o que era uma

ditadura no país. Então, para nós que estávamos saindo da casca, jovens

ainda, nos pegou de surpresa, porque começou o período de repressão. Não

se podia falar tudo que queria, não se podia permanecer após as 22h horas

na rua, não poderia frequentar certos lugares, tudo que era proibido deveria

ser cumprido. Aquele que não cumprisse, o Exército punia. E punia… com

energia mesmo3.

São decretadas as áreas de Segurança Nacional

Após a tomada do poder nacional pela Junta Militar, são emitidos os atos

institucionais, sendo que o primeiro destes tem como sua principal função extinguir os

partidos políticos existentes e criar apenas dois partidos: a ARENA, como partido da

situação e o MDB, como partido de “oposição”. Com o controle sobre o poder Legislativo,

fortalece-se ainda mais o poder Executivo, tomado pela ditadura (ZAGO, 2007, p.30).

Ou seja, quando a Junta Militar assume o poder do Estado brasileiro, implanta-se

uma série de leis e decretos que previam medidas de controle e de repressão, o que

sustentaria a permanência das Forças Armadas no poder. Essas leis são conhecidas como

Atos Institucionais, que decretaram as chamadas Áreas de Interesse da Segurança Nacional,

com o objetivo de:

assegurar domínio político em locais importantes e estratégicos, como

forma de sustentação do próprio regime. O governo militar argumentava

que era necessário proteger as divisas. Para tanto, os prefeitos deveriam ser

da confiança do regime e não poderiam ser eleitos pelo voto popular

(GREGORY, 2008, p.267).

E “de acordo com o artigo 5° desta legislação, ‘ficam respeitados os mandatos dos

atuais prefeitos municipais, cujos municípios são considerados por esta lei de interesse da

segurança nacional” (GREGORY, 2008, p.267); ao ser declarada área de interesse nacional,

suas eleições são realizadas de forma indireta, por meio de nomeações, o que mantém no

cargo de prefeito de Guaíra, por mais de 20 anos Kurt Walter Hasper (GREGORY, 2008).

Isto ocorre devido à instauração dos Atos Institucionais, mais especificamente a

partir do Ato Institucional nº 2, que é voltado especificamente para o controle político, ou

seja:

O AI-2 (e os posteriores complementares) estabeleceu eleições indiretas

para presidência da República e para governadores de estado, extinguiu os

partidos existentes, permitiu a aprovação dos decretos do Executivo no

Congresso por decurso de prazo, ampliou as prerrogativas presidenciais

para a cassação de mandatos e a decretação do estado de sítio e interferiu

no Judiciário [...]. Dessa forma, a extinção dos partidos significou uma

intervenção brutal do governo militar sobre a organização autônoma da

sociedade civil, atingindo especialmente os segmentos ligados à

mobilização popular (MACIEL, 2004, p.48).

2 Um ou outro caso que se recusava a falar no assunto, e outro que diz não conhecer o fato. 3 Entrevista com Maurino de Oliveira realizada em 9/4/2015 por SILVA, Mara D.S.

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Ao ser declarada área de interesse de segurança nacional, ocorreram algumas

mudanças na rotina do município de Guaíra. Algumas dessas mudanças podem ser

observadas no relato que Maurino faz deste primeiro anúncio:

Com a área de segurança nacional teve mais restrições, houve restrições

em tudo o que foi, porque foi o período em que o governo começou a fazer

o que faz, que precisa fazer hoje. Começou a investir mais em segurança.

Interesse em manter mesmo a fronteira segura, não é? Então, aquilo, de

uma certa forma, amedrontava a gente. Poxa, porque todos esses caras

ostentando aí arma, e tal, e passando… As Forças passavam durante o dia,

durante a noite, os carros, o grupo todo armado. Essas passadas que os

policiais dão na rua, aquilo era em carros abertos, aquilo era uma ronda

quase que constante, você tinha que estar sempre alerta, sempre atento, por

aí, jovem, criança, todo mundo ficava com medo. Aí: “vem vindo o quartel,

vem vindo o quartel!”4

Nessa fala, indiretamente, podem ser observados diferentes aspectos do discurso que

a Ditadura Civil-Militar se utilizava para justificar suas ações, porém irei destacar apenas

duas neste momento, sendo a primeira o discurso de “Segurança”, muito impregnado pela

Doutrina de Segurança Nacional. O segundo, e que mais se destacou durante os relatos de

Maurino, trata-se da política de medo (PADRÓS, 2005, p.45), que se espalhou por todo o

território brasileiro desde que o Golpe de 1964 se concretizou, estabelecendo assim a

onipresença do Terrorismo de Estado implantado pela Ditadura Civil-Militar.

Quando se analisa a instalação da segurança nacional, é possível verificar a princípio

três pontos principais, o primeiro está voltado para a geopolítica, pois, sendo Guaíra uma

cidade de fronteira, deveria ser “protegida”, sendo esta a justificativa legal que se utiliza as

Forças Armadas para instalar e praticar qualquer ação sem qualquer impedimento. A

segunda grande influência, decorrente da primeira, mas no sentido material, é a presença

física dos militares na cidade, com a instalação da 15ª Companhia de Infantaria Motorizada

(que mais tarde seria transformada na 5ª Companhia de Fronteira).

Quais os limites do medo?

A instauração da ditadura civil-militar em 1964 no Brasil pode ser caracterizada pela

utilização sistematizada do terrorismo praticado pelo próprio Estado, “juntamente com a

prática comum e generalizada de sequestros, prisões sem processo em centros clandestinos

de detenção, torturas e a liquidação física de seres humanos, com a ocultação de seus

cadáveres” (PASCUAL, 2004, p.20).

O texto de Eduardo Duhalde nos permite compreender o Estado Terrorista como uma

expressão última do Estado contra-insurgente fundamentado na Doutrina de Segurança

Nacional, e vai além:

No se trata sólo ya del Estado militarmente ocupado, asaltado por su brazo

militar, donde la coerción ha reemplazado a las decisiones democráticas y

donde el autoritarismo se configura en el manejo discrecional del aparto del

Estado y en la abrogación de los derechos y libertad de los ciudadanos. Por

el contrario, implica un cambio cualitativo y profundo en la propia

4 Entrevista realizada com Maurino de Oliveira, em 09 de abril de 2015 por SILVA, Mara D.S.

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concepción de Estado, se trata de un nuevo Estado, una nueva forma de

Estado de Excepción (DUHALDE, 1999, p.217).

O terrorismo de Estado, também, pode ser compreendido como a materialização da

doutrina da segurança nacional, pois esta materialização consistia no fortalecimento político

e operativo das Forças Armadas, no combate ao inimigo interno; uma vez que a aplicação

dessa “política significava o uso das armas contra seus próprios habitantes. A supressão das

garantias constitucionais, a ditadura militar e a imposição do terror constituíam diferentes

graus de aplicação da doutrina” (PASCUAL, 2004, p.41).

Logo, a “subversão”, no discurso da DSN, sempre esteve presente, pois era a única

forma de legitimar o Estado de Segurança Nacional e o terror de Estado (TDE). O que pode

ser observado neste trecho da obra de Padrós:

Uma vez consolidado o regime de segurança e a derrota da “subversão”,

ocorreu importante modificação no discurso oficial. Da prometida segurança

como condição para o desenvolvimento, passou-se para a ideia de

“desenvolvimento em segurança”; esta lógica adquiriu uma espécie de aura

imutável. De qualquer forma, o sentido instrumental conferido ao conceito

de Segurança Nacional pelas Forças Armadas permitiu que, independente do

jogo de palavras, se atenuassem as diferenças entre violência e não-

violência, política exterior e política interior, violência preventiva e

violência repressiva (PADRÓS, 2005, p.88).

Esta “confusão” entre “violência preventiva e violência repressiva” é o que garantiu

ao Estado a utilização do terrorismo como forma de dominação e controle social. Ainda

segundo Padrós, as diretrizes centrais da DSN eram:

Ser obrigação do Estado proteger a Nação das ameaças “de qualquer

antagonista real” ou “potencial”, cabendo a ele a decisão de quem era esse

antagonista, prejulgou e condenou, a priori, todo e qualquer indivíduo.

Práticas de “violência preventiva” e de “violência repressiva”. A percepção

de Segurança Nacional que legitimou a ação preventiva contra qualquer

ameaça potencial criminalizou – sem base judicial – cidadãos suspeitos,

constrangidos e reprimidos, como se fossem reconhecidamente culpáveis.

Isso gerou um verdadeiro contra-senso, pois ao impor-se a segurança a

qualquer custo, gerou-se um verdadeiro clima de insegurança, ancorada em

forte sentimento de impunidade e na ausência de controle e de fiscalização

na aplicação de mecanismos repressivos ilimitados (PADRÓS, 2005, p.88).

A violência irradiada característica do Terrorismo de Estado atinge toda a sociedade

sem discriminação, chegando aos lugares mais remotos do Brasil. Guaíra (PR) não ficava

fora desta rota de violência, o que pode ser visto com uma clareza brutal no relato que

Maurino faz ao ser perguntado sobre a atuação da ditadura:

Eu me lembro de uma experiência lá dentro do quartel, nós pegamos um.

Apareceu, aportou em Guaíra, assim, um estrangeiro, não me lembro de

onde, e ele tinha dólares. Nunca ninguém sabia o que eram dólares,

ninguém conhecia, não sabiam de nada, por que esse homem estava em

Guaíra, portando dólares? O Exército queria saber tudo. Pegou ele, e ele

não falava. Ele era, não sei, mexicano, chileno, é de um país sul-americano.

Aí, vai para o ‘Pátio dos Milagres’. No Pátio dos Milagres eram poucas

pessoas que presenciavam. [...] Pátio dos Milagres nada mais era do que

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onde ficavam os cavalos, os cavalariços. Enquanto tinha um que executava

o ... a pessoa, primeiro dava choque nele, colocava ele pelado, amarrado…

choque. Daí começava: onde que ele arrumou esses dólares, aquela coisa

toda, de onde ele veio. Não dava resultado, por último, o último que eu vi

foi horrível, daí do lance da execução. E, cada vez que você fazia alguma

coisa, ele gritava, a céu aberto, né?! Gritava, e para que isso não fosse

ouvido, tinha um que dava choque no cavalo. O cavalo urrava, os animais

urravam para que abafasse o som do grito dele...5

O primeiro ponto, mas não único, que podemos retirar dessa fala é que: se a Ditadura

não chegou a essas cidades interioranas, como é possível relatos como esses existirem?

Conclusão

Seria ilusório supor que este trabalho responderá a todas as questões acerca da cidade

de Guaíra, muito menos sobre a Ditadura Civil-Militar brasileira. Não existem fontes que

solucionariam todas as problemáticas e fechariam todas as lacunas, mas tem sim como um

de seus objetivos apontar a possibilidade de análise desta temática, ditadura, fora do eixo

Rio-São Paulo, fora dos grandes centros urbanos do Brasil, levantando assim novas

perspectivas de compreensão da história nacional a partir das questões regionais das cidades

do interior do país, de como essas cidades são afetadas pela Ditadura de Segurança Nacional,

pelos limites fronteiriços implantados neste período, pela intensificação da “segurança” e

mesmo pelas mudanças no sistema político municipal a partir do contexto ditatorial.

Ainda há um longo caminho a ser percorrido para uma melhor compreensão dos fatos

ocorridos naquele período, mas este trabalho inicial se propõe como uma forma de

problematizar algumas dessas questões, propondo-se assim, também, a realizar uma análise

de como a cidade de Guaíra estruturou-se até os anos de 1960, tentando esclarecer os

antecedentes históricos deste Município e mesmo apresentar um pouco de sua história a um

leitor que desconheça aquele espaço.

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5 Entrevista realizada com Maurino de Oliveira, em 09 de abril de 2015 por SILVA, Mara D.S.

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UMA ANÁLISE DO HERÓI: VISÕES DISTINTAS DE UM MESMO CONCEITO

NA OBRA DE HOMERO

Márcio Augusto Galante1

Resumo: O objetivo desta comunicação é apresentar algumas propostas e perspectivas em

relação ao projeto que apresentarei para a seleção do Programa de Pós-Graduação em

História, nível Mestrado, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Pesquisei no meu

trabalho de conclusão de curso de graduação a construção da figura do herói mitológico a

partir da obra Ilíada, de autoria atribuída à Homero, em contraposição ao filme

estadunidense Tróia, de 2004, blockbuster hollywoodiano dirigido por Wolfgang Petersen e

estrelado por Brad Pitt no papel do herói, Aquiles. Durante a pesquisa, me deparei com

questões sobre o papel do herói na sociedade grega e como essa imagem foi resignificada

para um contexto contemporâneo, onde o aclamado “herói” é desprovido de todas as

características cantadas pelo poema, tornando-se, então, o elemento externo que traz a guerra

e a instabilidade para a sociedade troiana. Para o projeto de mestrado, a questão gira em

torno do contraponto do herói da Ilíada, com relação ao herói descrito na Odisseia, com

autoria atribuída ao mesmo Homero. Teoricamente, a pesquisa é embasada a partir da

discussão do conceito de herói segundo as prerrogativas da História dos Conceitos de

Reinhardt Koselleck. O problema central, a grande questão do projeto, é observar como o

conceito de herói é significado dentro de uma sociedade aristocrática-escravocrata, sendo

que, dentro desta, o conceito assume dois significados distintos, conforme a visão de mundo

que o autor tenta construir dentro de sua obra. Assim, o herói é visto tanto como um símbolo

de perfeição divina, representado por Aquiles na Ilíada, como um simples mortal,

dependente da intervenção divina, representado por Odisseu na Odisseia.

Palavras-chave: herói; história antiga; história dos conceitos; Homero; Ilíada e Odisseia.

Introdução

As tradições orais gregas, baseadas na exposição da mitologia e na construção dos

elementos históricos, vistos e vividos pela sociedade, são fundamentais para a perpetuação

das tradições. Esses elementos estão presentes dentro da narrativa homérica, que funde o

elemento histórico com o imaginário mitológico. Dessa forma, pode-se colocar como

perspectiva que a guerra, a mitologia, seus deuses e heróis sejam parte essencial para o “ser

grego” e a fundamentação da sociedade grega, mesmo não tendo a cisão entre as Cidades-

Estados, apesar dos conflitos existentes entre as mesmas.

Dentro dessa perspectiva temática, os poemas epopeicos atribuídos a Homero, tem

grande relevância para o entendimento da construção do que foi (ou como foi) a sociedade

grega antiga, prerrogativa defendida por Moses Finley em O mundo de Ulisses (FINLEY,

1965). Para o autor, é possível entender tal sociedade a partir do estudo e análise dos poemas

homéricos Ilíada e Odisseia. Assim como Finley, acredito que também é possível fazer essa

análise, buscando uma análise dos poemas e entender a importância dos heróis para essa

sociedade.

1 Graduado em História (2013) e aluno especial do Programa de Pós-Graduação, nível Mestrado, na

Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

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Inicialmente, ao trabalhar com História Narrativa, Mitológica e Antiga, o historiador

se defronta com problemas de perspectiva histórica. Esses, por sua vez, devem ser levados

em conta para que os devidos cuidados sejam tomados com relação ao período e fontes. De

início, nos defrontamos com algumas incógnitas, como, por exemplo, Homero existiu? Se

sim, era um Rapsodo ou um Aedo? Ambas as obras (Ilíada e Odisseia) são de sua autoria?

A Guerra de Tróia existiu de fato? A cidade de Tróia (Ilion) é uma invenção de Homero? Se

existiu de fato, onde jaz atualmente?

No entanto, não é o foco responder essas perguntas, que até hoje sofrem com a

longiquidade temporal e com a carência das fontes arqueológicas e históricas para dar a

devida resposta a essas perguntas.

Dois poemas e dois heróis: Aquiles e Odisseu

Retomamos, portanto, a perspectiva que se põe frente às questões ligadas ao interior

dos poemas Ilíada e Odisseia, que se remetem a perspectivas diferentes.

A primeira delas narra o último ano da Guerra de Tróia, tendo início com a ganância

do Rei Agamenon, frente ao discípulo do Deus Apolo, prejudicando diretamente o exército

aqueu. Após isso, as relações entre Aquiles e Agamenon, que já não eram tranquilas, se

conturbam ainda mais em torno da figura de Briseida. Dessa forma, há um embate entre duas

tempestuosas figuras: de um lado, Agamenon, rei dos reis, senhor dos Aqueus. Do outro

lado, Aquiles, rei da Fítia, abençoado pelos deuses, filho de Tétis com Peleu, o melhor

combatente dos Aqueus. Dessa situação temos a primeira grande prerrogativa do Poema, a

Ira de Aquiles frente ao ambicioso Agamenon. Essa ira perpassa todo o poema, mas tem dois

principais focos: o “roubo” de Briseida por Agamenon e a morte de Pátroclo por

Héctor/Heitor.

Apesar de a Guerra de Tróia estar ligada ao sequestro de Helena, esposa de Menelau,

Rei de Esparta, pelo príncipe Troiano Alexandre/Páris, essa questão passa muitas vezes

como sendo o fator de fundo da narrativa de Homero, enquanto que os cuidados dão-se onde

Aquiles abandona a Guerra, por conta do incidente envolvendo Briseida. Com a falta de

Aquiles no campo de batalha, os outros heróis gregos (os Ajaxes, Odiesseu, Nestor,

Diomedes, Menelau e outros) não fazem frente ao poderio bélico de Troia e do príncipe

guerreiro, Heitor. Com o avanço das tropas sobre os navios gregos, Pátroclo, imbuído das

armas de Aquiles, busca rechaçar os inimigos, porém é morto por Heitor, trazendo o segundo

momento da ira do Peleide (Aquiles), que vai entrar na guerra para buscar o corpo do primo

e matar Heitor. Com a morte de Heitor e seu funeral, encerra-se a Ilíada, colocando alguns

debates sobre o entorno do poema, entre os quais: a busca por Helena de Esparta-Tróia; a

defesa de Tróia; a ambição de Agamenon; a ira de Aquiles.

Em meu trabalho de conclusão de curso (GALANTE, 2013), busquei elementos que

contornavam o último elemento destacado, porém, não é apenas esse o detalhe a que se deve

resumir a Ilíada, pois Aquiles busca consagrar as virtudes do herói grego, entre as quais se

destaca a honra e a glória, em busca de um inimigo à altura, construindo seus feitos através

da derrota de outros heróis. Não só Aquiles caminha por essa trilha, mas como os outros

heróis sejam gregos ou troianos, uma relação de vida e morte, que na busca de consagrar-se

arrisca a vida constantemente, onde a morte permeia todo o contexto da Ilíada, destacando o

elemento denominado de khalos thanatos2 (VERNANT, 2005), a morte honrada e gloriosa.

2 “Bela Morte”.

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Na segunda obra, Odisseia, diferencia-se do primeiro livro, pois, não narra feitos

bélicos nem se restringe a um local, mas trata da tentativa de Odisseu (Ulisses na tradução

latina) voltar para sua casa em Ítaca, bem como a busca de seu filho Telêmaco pelo pai

desaparecido.

Após a guerra, inicia-se a volta de Odisseu e seus companheiros para seu reino, em

Ítaca, porém, não tão simples, essa volta terá a duração de dezessete anos. A esposa

Penélope, que acreditava na volta do seu rei e marido, estava sendo pressionada por um

grupo de pessoas que queria tomar o poder. Esse grupo dizia que Odisseu estava morto e que

ela deveria se casar com um dos “pretendentes” ao cargo de rei. Levando Telêmaco e seus

companheiros, vão em busca de notícias que pudessem ajudar a rastrear os passos de

Odisseu.

Por sua vez, Odisseu acaba por enfrentar uma série de “contratempos” e tem seu

regresso retardado. Algumas aventuras são notáveis e vale a pena mencioná-las: Odisseu

chega à ilha da ninfa Calypso, onde fica preso por muito tempo em razão dos encantos e

promessas que uma região cheia de mulheres promove aos marinheiros; o aprisionamento

do deus Éolo, deus do vento em um saco, que ulteriormente é aberto e lança a nau para

lugares ainda mais distantes; o lugar para onde foi arremessada a nau era a ilha da bruxa

Circe, que transformou os marinheiros em porcos; o aprisionamento dos viajantes pelo

ciclope Polifemo e sua estratégia para sair da prisão na caverna; o tapar dos ouvidos com

cera para não serem atraídos pelos cantos das sereias, devoradoras de homens.

Essas e muitas outras peripécias foram utilizadas para evidenciar a necessidade de

expressão da maior das características de Odisseu: a astúcia.

Enquanto isso, em Ítaca, a rainha Penélope continuava sofrendo forte pressão dos

pretendentes, ela prometeu cozer um tapete: se o rei não retornasse antes do seu acabamento,

ela escolheria um pretendente. Porém, ela fazia o tapete durante o dia; e à noite o desfazia,

para poder ganhar mais tempo, na esperança de que o rei retornasse. Depois de uma jornada

com muitas aventuras e revezes, Odisseu encontra Telêmaco e seu grupo, e juntos retornam

a Ítaca. Avisado pelo filho sobre os pretendentes, Odisseu encontra a deusa Atena (que o

auxilia em outras ocasiões). Assim, a deusa o transforma em mendigo, disfarçando-o para

que pudesse adentrar ao palácio sem ser visto. Quando deste episódio, a trama de Penélope

é descoberta e exige-se que faça a escolha de um pretendente. Ela, novamente astuta, diz que

escolherá aquele que conseguir retesar o arco do seu marido – mas ninguém obteve sucesso,

exceto o próprio Odisseu, que obtém sucesso e derrota seus inimigos, assumindo assim o tão

esperado lar, esposa e filho.

O objetivo das linhas que se seguiram, foi um breve resumo da história narrada por

Ilíada e Odisseia e os seus heróis (Aquiles e Odisseu, respectivamente) e como que cada um,

com sua virtude resplandecente, consegue seu objetivo, apesar de todos os problemas

enfrentados.

O “Herói” como conceito

Apontada acima, toda a história dos poemas homéricos consiste em fazer valia aos

dois heróis supracitados. Porém, apesar de ambos serem heróis, são concebidos de modo

diferente. Deixando as diferenças de lado, voltemo-nos para o ponto em comum: ambos são

heróis.

Tendo como base o conceito de herói, objetiva-se analisar e esmiuçar o que significa

herói e tudo o que envolve a constituição do mesmo, ou ainda, o que é necessário para ser

um herói, distinguindo-se dos outros homens. O herói grego clássico tem sua concepção nos

cantos homéricos, distanciando-se da formação dos heróis contemporâneos. Em suma, o

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herói grego possuiu uma série de excelências que fazem sentido quando inseridos dentro do

contexto social, histórico e temporal da Grécia Antiga.

Partindo desse pressuposto e levando em conta o conceito do herói, tenho como

objetivo buscar entender como esse conceito se dá e se concebe para os gregos. Para entender

esse problema de forma teórico-metodológica, trago Reinhardt Koselleck (KOSELLECK,

1992).

Para Koselleck, “todo conceito articula-se a um certo contexto sobre o qual também

pode atuar, tornando-o compreensível” (KOSELLECK, 1992, p. 136). A partir dessa

premissa, entendemos que a análise do conceito “herói” deve ser feita dentro do contexto

grego, pois é ali, nesse recorte espaço-temporal, onde ele se desdobra. Portanto, conhecer o

contexto é tão importante quanto conhecer o contexto.

Ainda para o autor, é extremamente necessário que se faça uma distinção da palavra

(no caso a palavra “herói”), para que seja possível teorizá-la e compreendê-la enquanto a

formulação de um conceito. Nas palavras de Reinhardt Koselleck,

A história dos conceitos coloca-se como problemática indagar a partir de

quando determinados conceitos são resultados de um processo de

teorização. Essa problemática é possível de ser empiricamente tratada,

objetivando essa constatação por meio do trabalho com as fontes.

(KOSELLECK, 1992, p. 136).

Portanto, partindo da problemática apresentada por Koselleck, busco entender o que

significa o conceito “herói”, bem como a importância da sua construção na gênese da

sociedade grega antiga. O conceito, palavra, é dotado de contexto e passível de teorização e

formulação, como também carregado de significados, significações e símbolos.

Conclusão

Por fim, a partir da leitura das epopeias homéricas Ilíada e Odisseia, analisando-as

como fontes e monumentos (significados a elas atribuídas), seja possível entender como os

heróis são concebidos para a sociedade grega. Alicerçando o debate sobre o período, com a

leitura de Moses Finley e o seu entendimento sobre as possibilidades que Homero permite a

partir dos textos, é que vou buscar entender o período. A partir daí, buscar entender como o

conceito de herói é forjado para os gregos sob a sombra da concepção de Reinhardt

Koselleck e a História dos Conceitos. Em conjectura com essas perspectivas é que os

problemas e as questões irão se desdobrar para a possibilidade de um texto de dissertação.

Sendo assim, seja pelas façanhas de Aquiles na Ilíada ou de Odisseu na Odisseia,

ambos gozam de virtudes e de sua ligação com o panteão grego. Porém, por mais que os

heróis se beneficiem disso, a narrativa homérica dá margem para outra perspectiva: a

distinção entre ambos. Mas o que difere Aquiles de Odisseu?

De imediato, pode-se apontar as mais latentes virtudes que consagram esses heróis,

de um lado o exímio guerreiro Aquiles e do outro o astuto Odisseu, porém, essa é a

perspectiva rasa sobre ambos. Na Ilíada, Homero narra com muito esmero as inúmeras

qualidades do “melhor dos Aqueus”, onde cita sua beleza, sua proficiência com a lira, sua

riqueza e seu bem-aventurado nascimento, dotado de armas específicas que foram presentes

dos deuses. De outro lado, aparece Odisseu, mais humano, dotado de suas capacidades,

mesmo que seja um bom combatente. De certo modo, mesmo diferenciando-se, a ambos

cabe o desígnio de “herói”, o que nos remete a uma problemática: O que torna Aquiles e

Odisseu heróis?

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Talvez, o conjunto de seus feitos e virtudes permitam a definição de ambos para esse

conceito. Partindo dessas duas perguntas, e utilizando como base a questão teórico-

metodológica de Reinhardt Koselleck sobre a História dos Conceitos, busco esmiuçar as

características que tornam esses dois personagens em heróis por excelência.

Assim, pretende-se enxergar o herói e sua concepção enquanto conceito, e não como

uma forma de enquadrar as possíveis interpretações do que “seria um herói”, diferenciado

do “não herói”. O fato de Aquiles ser o melhor dos aqueus, ser rico, belo e proficiente em

outras áreas, torna os outros, como por exemplo, o próprio Odisseu, menos herói que o filho

de Peleu? Nota-se que Ítaca era próspera, porém não rica e devia muitos favores e tributos a

Agamenon (rei dos Reis), Odisseu ainda se ocupava da marcenaria, algo que deve ser

destacado aqui, pois o trabalho manual não era bem quisto dentro do status quo da Grécia

Antiga (vide o caso de Éfesto). Era necessário, mas não rendia o mesmo que a terra ou

escravos. Assim, Odisseu era senhor, possuía um ofício, governava e guerreava, não era filho

de ninfas e nem foi mergulhado no rio Estíge. O que torna, então, Odisseu o Herói da

Odisseia?

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autor em 1965.

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KOSELLECK, Reinhardt. Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos.

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NOTAS PROMISSÓRIAS RURAIS: CRISE E CONFLITO NO EXTREMO-OESTE

DO PARANÁ NA DÉCADA DE 1970

Marcos Alexandre Smaniotto1

Resumo: De maneira geral, crises econômicas (conjunturais e estruturais) foram a tônica da

década de 1970, não somente em Marechal Cândido Rondon, mas no mundo capitalista. No

município, em diferentes períodos da década, diversas crises se sucederam, no campo e na

cidade. Os sujeitos sociais abatidos nestas circunstâncias foram, essencialmente, a) os

colonos (pequenos agricultores com baixa capacidade de capitalização por meio da

modernização conservadora, diferentemente dos “empresários do campo”) e b) os

trabalhadores assalariados urbanos. Lucraram, com elas, os capitalistas e outros proprietários

e/ou gestores de cooperativas na microrregião. As Notas Promissórias Rurais (NPR’s), que

eram títulos que as empresas davam aos colonos como garantia de pagamento do produto e

que só podiam ser descontados nos bancos mediante endosso e aval dos próprios colonos,

foram um dos vetores de crise econômica e de expropriação dos trabalhadores (do campo e

da cidade). Com a concordata do grupo Frimesa/Ruaro, o Frigorífico Rondon, criado em

1963 foi à falência e então começou a pressão das instituições financeiras (em especial o

Banco do Brasil) para o recebimento das promissórias assinadas pelos colonos. Aliada aos

bancos, a Itaipu também engendrou uma forma de pressionar os colonos para realizar o

pagamento das notas. O Estado se manifestava publicamente a favor dos colonos, mas

efetivamente não cessava a cobrança das NPR’s.

Palavras-chave: Crise econômica; Notas Promissórias Rurais; Estado Ampliado

O mito da ligação inexorável entre “desenvolvimento” e “indústria” permeia, ainda

hoje, o discurso burguês sobre a “modernidade”. Nesta lógica, há a necessidade de indústrias

para que uma localidade se faça moderna, atualizada. A Maripá tinha em seu Plano de

Colonização a inserção de indústrias para sua área de atuação. Neste sentido, já nos primeiros

anos de colonização pensou-se em quais indústrias poderiam ser inseridas no contexto

microrregional, visando, dentre outros, a permanência da renda gerada no campo na

microrregião, além, evidentemente, de gerar capital para um seleto grupo que gerenciaria

este empreendimento. Assim, logo após a emancipação político-administrativa do município

em 1960, foi iniciado também o processo industrialização, trazendo com ela a esperança de

“progresso”.

Neste contexto é que foi criado o Frigorífico Marechal Cândido Rondon S.A.,

Indústria e Comércio (ou Frirondon), em outubro de 1963, “[…] inicialmente pelos

comerciantes, Alfredo Nied, Afonso Diesel, Osvino Rodolfo Zart, Arnildo Dreier, Helmuth

Koch, Carlos Kleemann e Nelson Aloísio Hack e alguns agricultores” (SEIBERTH, 2008. p.

37)2. Foram seis anos de estudos e estruturação, dado que, conforme Seiberth, os diretores

não tinham experiência no setor industrial e foi necessária contratação de pessoas

experientes no ramo3. Foi somente em 31 de dezembro de 1968 que o Frirondon inaugurou

1 Doutorando em História na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Professor de História na

Rede Pública de Educação Fundamental e Média. 2 Carlos Alberto Seiberth pesquisou especificamente o caso dos moradores daquele bairro. 3 Conforme Carlos Alberto Seiberth, “Alfredo Nied e Afonso Diesel tiveram destaque na direção da empresa:

Alfredo Nied foi diretor comercial e Afonso Diesel, diretor industrial. Eles contrataram os primeiros

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a empresa, mas somente em junho de 1969 começou a abater os suínos.

O suíno foi um animal criado pelos colonos desde a formação de Marechal Cândido

Rondon. Fazia parte da alimentação cotidiana dos colonos e do conjunto necessário para a

própria manutenção deste no campo, dada a diversidade de subprodutos que se consegue

deste animal (gordura para cozinhar e conservar alimentos – geralmente carnes – torresmo,

linguiça, a própria carne, dentre outros) sem a necessidade de refrigerador para conservação.

Além disso, o excedente poderia ser comercializado, dada a existência de comércio para

tanto4. O suíno era uma alternativa principalmente para os colonos, com pequenas

propriedades (que era a maioria naquele momento histórico), dada a pouca rentabilidade de

suas áreas. Neste contexto, a produção aumentava.

A produção seguiu na década de 1970 com períodos de alta e baixa, mas com uma

tendência sempre constante na queda da produção, dada a predominância do interesse dos

colonos na monocultura soja-trigo-milho. Foi na segunda metade daquela década que quem

criava suínos teve que interromper o processo devido à bancarrota do principal comprador

da região, o Frigorífico Rondon. Esse processo teve consequências diversas, tanto no campo

quanto na cidade, que abordar-se-á a partir de agora.

Um destes processos está relacionado às Notas Promissórias Rurais (NPR’s), que

eram títulos que as empresas davam aos colonos como garantia de pagamento do produto e

que só podiam ser descontados nos bancos mediante endosso e aval dos próprios colonos. O

Jornal Rondon Hoje explicou como funcionava o “esquema” das NPR’s:

[…] O estouro do Grupo Frimesa serve de alerta para a necessidade de

mudanças na legislação que disciplina a Nota Promissória Rural. O

produtor não pode ser avalista nem endossante de títulos com os quais o

adquirente da produção saca recursos em banco para o pagamento do

produto. […] A legislação data dos tempos do Ministro Delfim Neto. Que

conseguiu o “milagre” de obter fusões e incorporações de bancos, sem

cumprir a sua promessa de reduzir os custos operacionais. […] Qual seria

a solução para o caso das NPR’s? Muito simples. Em vez do produtor

endossar, que o aval e o endosso seja feito seja dos diretores da empresa

adquirente. Ou vice-versa, que estes emitam os títulos e os avalizem em

nome da firma. Por que este sistema que, se dá galho, rebenta no lombo do

agricultor? Fala-se em ajudar e incentivar, mas com a NPR envolve-se o

nosso colono em uma armadilha, na qual se converte em avalista ou

endossante do próprio dinheiro. Vamos trocar em miúdos: O colono

entrega a sua produção. A firma adquirente não tem dinheiro para pagar.

Então o remédio é a Nota Promissória Rural, que o colono avaliza ou

endossa. Com ela o comerciante vai ao banco, pega o dinheiro e paga o

produtor. Este vai tranquilo para casa, paga suas dívidas, se possível guarda

uma reserva e dorme tranquilo. Dois ou três meses depois toma

conhecimento que o comprador do seu produto não conseguiu reembolsar

funcionários, captaram o capital dos agricultores, compraram o terreno onde foi construído o frigorífico, os

materiais necessários à construção da planta industrial, mas não foi iniciada a produção, pois faltavam-lhe

experiência e conhecimento nesta área. Não existia na cidade uma pessoa que soubesse colocar a indústria em

operação. Para tanto, entraram em contato com o Jacob Brescianini, na cidade de Arroio do Meio/RS, e o

convidaram para trabalhar no frigorífico. Brescianini possuía vasta experiência no ramo, havia trabalhado em

vários frigoríficos, principalmente na Sadia em Concórdia (SC), e na Chapecoense em Chapecó (SC)”

(SEIBERTH, 2008. p. 38). 4 Segundo Seiberth, “Alfredo Nied trabalhava com a comercialização de suínos desde 1954 e sua casa

comercial foi uma das primeiras a negociar neste ramo. […] os suínos adquiridos por Nied eram revendidos

para o frigorífico Wilson, na cidade de Ponta Grosa, Paraná” (SEIBERTH, 2008. p. 37).

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o título no banco e que é ele, produtor, quem deve devolver ao banco o

dinheiro que recebeu para o pagamento de sua própria produção. Temos aí

mais um milagre brasileiro. Um milagre da genialidade do Ministro Delfim

Neto (Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, de 17 a 24 de abril

de 1978).

Percebe-se que a responsabilidade fiscal pelas Notas era dos colonos, que eram

obrigados a vincularem-se a uma dívida com o banco para poderem receber pela sua

produção. Eximia-se as empresas e os bancos de possíveis prejuízos, ficando estes, por

medida legal, ao encargo dos colonos. Esta conjunção de interesses, além de indicar o Estado

Ampliado, mostra a eficiência do Estado militar em proteger os empresários de prejuízos,

pois, como aconteceu, a concordata do Frigorífico Rondon não levou os empresários,

necessariamente, à pobreza, dada a possibilidade de fraude neste tipo de transação5. Pode-se

continuar com o entendimento das NPR’s com Frank Mezzomo, pois, segundo ele,

A Frimesa de Medianeira e o Frigorífico Rondon, sediados nos municípios

de Medianeira e Marechal Cândido Rondon respectivamente, são

exemplos de uma série de empresas que pediram concordata e, na

seqüência, foram decretadas como falidas. Pertencentes ao Grupo Ruaro,

mantinham agroindústria nas regiões Sudoeste, Oeste e Norte do Paraná,

totalizando 57 empresas espalhadas pelo território nacional. Conforme

documento publicado pela CPT, o pedido de concordata e falência lesionou

mais de mil operários ameaçados de desemprego, 200 firmas fornecedoras,

10 mil credores de fornecimentos diversos e milhares de agricultores

envolvidos nas Notas Promissórias Rurais (NPRs) (MEZZOMO, 2009. p.

268).

O anúncio da concordata e depois da falência do Grupo Ruaro dispensou legalmente

o “Grupo” da quitação de sua dívida com os bancos. Por sua vez, as instituições bancárias

exigiam o pagamento da dívida dos colonos que assinaram ou endossaram as NPR’s.

Sinteticamente, o que aconteceu ao colono foi o não recebimento do dinheiro pela venda do

suíno – ou outro produto –, além de serem forçados a pagar pela NPR’s junto às instituições

financeiras.

Legalmente, esta prática estava garantida por Lei6. Segundo Frank Antonio

Mezzomo,

A sistemática das notas, prevista na legislação brasileira, foi criada com

objetivo bastante específico, isto é, são títulos a serem emitidos pelos

compradores de produtos agrícolas em vendas a prazo. O credor de tais

notas deveria ser sempre o produtor rural. Foi a prática do desconto

bancário e das exigências, pelos bancos, de vinculação dos produtores

como endossantes e avalistas que gerou a crise social desencadeada pela

insolvência dos verdadeiros devedores (MEZZOMO, 2009. p. 269).

Assim, de maneira geral, pode-se dizer que alguns frigoríficos faliram supostamente

de maneira fraudulenta e os bancos cobraram dos avalistas, os colonos – em Marechal

Cândido Rondon, suinocultores –, que foram enganados e estavam sendo forçados a pagar

5 Mais informações sobre este processo estão sendo compiladas para a redação final de nossa tese de

doutoramento. Por ora, indica-se a possibilidade de fraude em um processo de pedido de concordata. 6 Lei 167, de 14 de fevereiro de 1967, que dava o direito de cobrar do endossante ou o avalista.

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uma dívida que não era deles. Isso fica claro quando se vê uma reportagem do jornal Rondon

Hoje, informando que o “Banestado prorrogará Vencimentos das NPR’s não Pagas pelas

Firmas em Concordata”:

[…] A fórmula consiste em prorrogar o débito dos lavradores no

Banestado, mediante contrato de confissão de dívida, pelo prazo

equivalente ao da concordata, vinculando-se estes créditos a Notas

Promissórias Rurais de co-responsabilidade dos produtores. Desta forma

evitar-se-á a execução das dívidas e os lavradores poderão continuar com

seus créditos abertos no Banco do Estado do Paraná […] desde que paguem

semestralmente os juros dos débitos prorrogados (Jornal Rondon Hoje.

Banestado prorrogará Vencimentos das NPR’s não Pagas pelas Firmas em

Concordata. Marechal Cândido Rondon, 15 a 21 de fevereiro de 1978).

Ou seja, os colonos tinham que se comprometer com o pagamento mínimo dos juros

de uma dívida que não era deles, para poder sobreviver no campo, por meio dos

financiamentos agrícolas. No ano seguinte, o Jornal Rondon Hoje apresentou uma Carta

Aberta de uma Comissão de representantes dos agricultores que tiveram problemas com

NPR’s, informando que

Nós, da Comissão, eleita em assembleia em 21 de março […] registramos

e denunciamos aqui as seguintes pressões e atitudes irregulares contra

nosso movimento: a) Na agência do Banco do Brasil de Medianeira um

funcionário rasgou a carteirinha e o talão de cheque-ouro do Sr. Mário

Annshau, por ter apoiado seus colegas agricultores que tenham problema

com NPR’s; b) na mesma agência foi negado ao Sr. Romeu Falkenbach

financiamento para a compra de uma grade, sendo lhe informado que

buscasse financiamento junto aos padres; c) ao Sr. Albino Rustig foi

descontado uma prestação que venceria em agosto de 1980, mediante

cheque cruzado; d) o gerente da mesma disse aos componentes da

Comissão […] no ato da entrega do documento, que faziam parte de um

grupo de agitadores, juntamente com os padres e os políticos, rasgando e

jogando no lixo o referido documento; e) há algumas agências bancárias

que procuram os agricultores para trocarem as NPR’s por duplicatas ou

promissórias comuns, ou para assinarem cartas de confissão de dívida com

5 linhas iniciais em branco, isso sob a ameaça de execução judicial […]

(Carta Aberta aos Agricultores. Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido

Rondon, 24 de abril a 1 de maio de 1979).

Em outras palavras, os colonos suinocultores estavam sendo pressionados pelas

instituições financeiras a assumirem uma dívida que não era deles há mais de um ano.

Resistiam à pressão das instituições financeiras, buscando formas de manterem-se no campo.

De parte do governo estadual, os responsáveis pela Comissão em reunião com Reinold

Stephanes, Secretário de Agricultura, e Eugênio Stefanello, diretor da Secretaria,

informaram que estavam fazendo solicitações de verbas junto ao Banco Central mas que este

não manifestava-se. Também, que a pressão das instituições financeiras “locais” teria que

ser denunciada à ouvidoria do Banco do Brasil, instância do banco que então

responsabilizaria e tomaria as medidas necessárias para a punição daqueles que estavam

pressionando os colonos. Isso, evidentemente, era uma atitude visando proteger os

funcionários, que no máximo poderiam responder internamente a práticas que poderiam ser

julgadas pela justiça comum, direcionadas ao banco, e não ao funcionário. Era uma forma

de proteger a instituição bancária de possíveis processos contra ela.

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Também, a Itaipu assegurava a pressão das instituições bancárias junto aos colonos.

Conforme Mezzomo, “Os bancos contavam, indiretamente, com o apoio da Itaipu que, ao

fazer indenização das áreas a serem alagadas, exigia a liberação legal da propriedade quando

não se descontava a dívida do banco no valor da terra” (MEZZOMO, 2009. p. 270).

A comissão sugeria aos colonos prejudicados pelas NPR’s que:

1) Ninguém aceite renovar a carta de acordo; 2) Ninguém aceite novos

prazos de prorrogação das NPR’s propostos pelos bancos; 3) Ninguém

concorde em trocar NPR’s por duplicata, ou promissória, ou outro

financiamento; 4) Ninguém pague as NPR’s; 5) Em caso de qualquer

repressão ou represália por parte dos bancos, procurem imediatamente um

membro da Comissão; 6) Façam reuniões para apoio mútuo e reflexão

sobre os próximos passos (Jornal Rondon Hoje. Carta Aberta aos

Agricultores. Marechal Cândido Rondon, 24 de abril a 1 de maio de 1979).

Desta forma, articulava-se mais um embate entre trabalhadores rurais e capital na

agricultura também de Marechal Cândido Rondon. Enfim, apresenta-se mais uma face da

luta de classes na década de 1970 na região, indicando os conflitos, dado, dentre outras

razões, que

Essa situação teria provocado clima de tensão e instabilidade social porque,

ao lado das dificuldades provenientes dos preços baixos os produtos e

interferência climática, os agricultores teriam de pagar uma dívida que não

haviam contraído de fato, não receberiam pelos produtos entregues e, para

completar, teriam seus créditos bancários cortados (MEZZOMO, 2009. p.

271).

Na cidade, a falência dos frigoríficos também trouxe prejuízos econômicos, mas,

principalmente, para os trabalhadores, sofrimento. Conforme o Jornal Rondon Hoje,

O Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, juntamente com a

Prefeitura Municipal de Marechal Cândido Rondon, distribuiu, no último

dia 3 e na segunda-feira de Carnaval, arroz, feijão, açúcar, farinha de trigo

e leite em pó para 50 famílias que vivem momentos de incerteza, em

virtude da paralisação do Frigorífico Rondon. Pais e filhos destas famílias

receberam do Frigorífico Rondon – empresa do Grupo Olear-Frimesa –

aviso prévio que expirou no último dia 3. A direção da empresa prometeu

para aquele dia uma solução: o frigorífico seria vendido a outro grupo

econômico, garantindo assim os empregos, ou, em última hipótese, os

empregados receberiam aquilo que determina a legislação trabalhista em

caso de demissão. Dia 3, porém, os diretores do frigorífico não apareceram

e com isso agravou-se ainda mais a situação dos 170 funcionários. Cerca

de 500 pessoas dependem diretamente do frigorífico (Jornal Rondon Hoje.

Prefeitura Distribuiu Gêneros Alimentícios aos Empregados do

Frigorífico. Marechal Cândido Rondon, 15 a 21 de fevereiro de 1978).

Além dos colonos que, sem receberem pelo seu produto e adquiriram dívida bancária,

os trabalhadores do Frigorífico Rondon amargaram a falência da empresa. Estes, viam-se

desafiados pelo frigorífico que os deixou em uma péssima situação econômica, dado que

estes estavam sem salário, viviam em um bairro industrial criado pela própria empresa e lá

enfrentavam corte no fornecimento de água e energia elétrica, por falta de pagamento, bem

como desumanas condições de moradia.

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Conforme o Jornal Rondon Hoje,

Os trabalhadores, mesmo que há mais de 70 [dias] o parque industrial do

Frigorífico Rondon S.A. esteja com suas atividades paralisadas, continuam

indo todos os dias ao pátio da empresa na esperança de que alguma solução

tenha sido encontrada. A Copel não atendeu o pedido de Carlos Antonio

Vanzin, responsável interno pela empresa: ele havia reivindicado aquela

companhia que ligasse ao menos duas vezes por semana a energia elétrica

que fora cortada por falta de pagamento, para que as 500 pessoas que

residem na vila pudessem encher as caixas d’água. […] O que mais

preocupa estas pessoas no momento, não é a falta de luz e água, mas sim o

futuro incerto […]. Alguns começaram a revoltar-se, pois, “eles não podem

fazer a gente de bobo”, diz um funcionário com quase dois anos de firma

(Jornal Rondon Hoje. Prefeitura Distribuiu Gêneros Alimentícios aos

Empregados do Frigorífico. Marechal Cândido Rondon, 15 a 21 de

fevereiro de 1978).

A ameaça de revolta por parte dos moradores esteve presente, mas aqueles

trabalhadores não sistematizaram uma ação direta contra a empresa, ou tentaram

apropriarem-se da “massa falida” para tentar conseguir o valor de seus salários com a venda

das máquinas, ou ainda a tomada da direção da indústria visando a sua administração. Até

os dias atuais, a situação dos moradores daquele bairro industrial, ainda é incerta, conforme

indicou Carlos Alberto Seiberth em sua pesquisa. Alguns dos trabalhadores do Frigorífico

Rondon, diante da crise gerada pela concordata da empresa, pensavam em soluções para as

suas vidas com base na sua condição passada, de agricultores. Conforme o Jornal Rondon

Hoje

Parte dos empregados, principalmente aqueles que tinham na empresa

emprego para os filhos, aguardam ainda que o frigorífico seja vendido. É

o caso de Afonso Schumacher, pai de 11 filhos, dos quais quatro trabalham

na firma: “É um caso triste. O que vai fazer? Eu espero que seja vendida,

só assim a gente continua trabalhando e ganhando comida”. O medo é de

que o frigorífico venha a encerrar suas atividades definitivamente. Esse

temor é justificado: vieram da zona rural e não possuem qualificação. […]

Mais de 65 famílias residem em casas de propriedade do frigorífico e o

medo é de que, encerrando as atividades definitivamente, a empresa venha

solicitar a desocupação das residências: “Para onde iremos”, pergunta João

Martinelli. O jeito é arrendar um pedaço de terra para colocar os 11 filhos”,

diz Afonso Schumacher (Prefeitura Distribuiu Gêneros Alimentícios aos

Empregados do Frigorífico. Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido

Rondon, 15 a 21 de fevereiro de 1978.)

Assim, voltar para o campo servindo como mão de obra seria uma solução aos

expropriados do Frigorífico Rondon, mas dificultada pela mecanização da produção e pelo

fluxo contrário à esta direção. Conforme análise do Jornal Rondon Hoje, o trabalho no campo

também estava um tanto quanto comprometido, pela especulação relacionada com a

suinocultura e pelo êxodo rural em processo no município:

Os 170 funcionários esperam uma solução da empresa. Mas onde

conseguir quase um milhão de Cruzeiros, ou um bi antigo, para pagar os

empregados? A administração municipal rondonense está se preocupando

com o impasse, pois além da especulação em torno do preço dos suínos,

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alguns agricultores estão vendendo suas terras e mudando-se para outros

centros (Prefeitura Distribuiu Gêneros Alimentícios aos Empregados do

Frigorífico. Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, 15 a 21 de

fevereiro de 1978).

Crise econômica motivada pela modernização conservadora aliada às intempéries e

conjugada à crise na indústria fizeram parte do contexto de formação do município de

Marechal Cândido Rondon. Também, a construção da hidrelétrica de Itaipu foi um dos

vetores de expulsão dos colonos do campo, provocando o crescimento do êxodo rural e da

especulação imobiliária no município. São fatores que ajudam a entender a atual formação

da classe dominante no município, dado que, desta “seleção” realizada por meio das crises

da década de 1970, despontaram os “empresários do campo” mais aptos para o mercado

capitalista na região. Este é um processo ainda em pesquisa. Acredita-se que até a confecção

final da tese este processo esteja mais problematizado, com mais fontes.

Fontes e bibliografia

Banestado prorrogará Vencimentos das NPR’s não Pagas pelas Firmas em Concordata.

Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, 15 a 21 de fevereiro de 1978.

Carta Aberta aos Agricultores. Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, 24 de abril

a 1 de maio de 1979.

Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, de 17 a 24 de abril de 1978.

Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, de 26 de janeiro a 01 de fevereiro de 1978.

Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, de 31 de outubro a 7 de novembro de 1978.

MEZZOMO, Frank Antonio. Dom Olívio Aurélio Fazza: trajetória eclesial de um bispo em

uma região de conflitos. Tese de Doutoramento em História (UFSC). Santa Catarina, 2009.

Prefeitura Distribuiu Gêneros Alimentícios aos Empregados do Frigorífico. Jornal Rondon

Hoje. Marechal Cândido Rondon, 15 a 21 de fevereiro de 1978.

SEIBERTH, Carlos A. Os Moradores Do Loteamento Ceval Na História De Marechal

Cândido Rondon (1991–2007): um estudo de caso sobre a formação do setor urbano-

industrial frigorífico e a luta por moradia. Dissertação de Mestrado em História (Unioeste).

Marechal Cândido Rondon, 2008.

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O SOBREVOO DO CONDOR EM FOZ DO IGUAÇU: O CASO DE REMIGIO

GIMENEZ GAMARRA

Marcos Vinicius Ribeiro1

Resumo: Este artigo é o resultado de pesquisa realizada junto ao projeto “Ditadura no Oeste

do Paraná: História e Memória”, sob coordenação da Professora Doutora Carla Luciana

Souza da Silva, que conta com financiamento do CNPq. O projeto repressivo de cooperação

internacional da Operação Condor, que contou com a participação do Brasil, Chile,

Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Peru, estabeleceu alvos relacionados à resistência

às ditaduras latino-americanas de Segurança Nacional. Militantes foram perseguidos durante

o exílio ou fuga pela atuação dos agentes ativos nas polícias e exércitos da região, treinados

pela ideologia da guerra contrarrevolucionária da Doutrina Francesa, ou até mesmo pela

Central Intelligence Agency (CIA) na reacionária tradição do anticomunismo e do combate

ao “inimigo interno”, cujas principais características, deste último, relacionavam-se ao perfil

dos cidadãos comuns das sociedades nacionais latino-americanas. Com a militarização dos

países acoimados pela lógica do combate ao comunismo, no contexto da Guerra Fria, durante

as ditaduras, a Operação Condor foi inaugurada no ano de 1975, em uma reunião ocorrida

na cidade de Santiago do Chile. Dela participaram representantes da inteligência repressiva

latino-americana, cujo objetivo era o estabelecimento de ações conjuntas e cooperativas

planificadas e geridas por agentes que vigiariam e infiltrar-se-iam em diversas frentes de

atuação dos militantes da luta armada, com possibilidade de desdobramento ou não, a fim

de justificar e agir em defesa dos interesses do capitalismo. A cidade de Foz do Iguaçu e a

região do oeste paranaense entram na dinâmica Condor com o planejamento e execução das

obras da hidrelétrica binacional de Itaipu. O cidadão paraguaio Remigio Gimenez Gamarra,

preso no Brasil por participar de uma ação armada em 1969, foi julgado e solto, mas foi

novamente preso em 1986, na ponte da Amizade, em operação conjunta entre a repressão

brasileira e Paraguaia. Sua trajetória será analisada neste artigo.

Palavras-chave: Operação Condor; Ditadura; Foz do Iguaçu-PR.

Em 24 de dezembro de 1960, na fronteira com o Paraguai, na altura de Ypejhú,

Departamento de Canindeyú, cidade de Paranhos, Mato Grosso do Sul, Brasil, terminou a

trajetória de 8 militantes do movimento guerrilheiro 14 de Mayo. Tratava-se de uma dentre

as inúmeras resistências à ditadura paraguaia de Alfredo Stroessner. O evento foi registrado

por Efrain Martinez Cuevas, no livro “Masacrados en Nochebuena”. Dele participou

Remigio Gimenez Gamarra, que em 1969 foi preso no Brasil por participar de uma ação

armada. Até meados do ano de 1986, sua trajetória foi marcada por arbitrariedades cometidas

pelos diversos órgãos de repressão das ditaduras brasileira e paraguaia. Gamarra foi preso

no Brasil e enviado ao Paraguai sem reconhecimento de qualquer processo de extradição,

mesmo depois de cumprir pena pelo delito/expropriação cometido em 1968. Em 1978, na

ponte da amizade, marco transfronteiriço entre Brasil e Paraguai, Gamarra foi caçado pela

Polícia Federal brasileira e entregue aos agentes da ditadura stroenista, numa ação

tipicamente planejada aos moldes repressivos da Operação Condor.

1 Doutorando em História pelo PPGH da Unioeste e Professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Paraná

(SEED-PR). Contato: <[email protected]>.

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Este artigo problematiza e historiciza a trajetória de Remigio Gimenez Gamarra que

foi preso no Brasil em 1969, 1974 e 1978, e que foi sobrevivente do chamado Masacre de

Nochebuena de 1960/1961, ocorrido na localidade de Ype Jhu, no Paraguai, na fronteira com

o Brasil, na altura da cidade de Paranhos, Mato Grosso do Sul. As fontes pesquisadas foram

consultadas no Archivo del Horror, localizado no Palácio de Justiça do Paraguai, na capital

federal, Assunção. Por meio dos autos criminais e inquéritos, bem como documentos de

investigação da Polícia stroenista procuro reconstruir a trajetória deste militante/combatente

que ousou lutar contra as ditaduras de segurança nacional do conesul. Trata-se de uma

reflexão introdutória, que é parte de uma pesquisa mais ampla sobre as ditaduras civil-

militares de segurança nacional na fronteira do oeste e sudoeste paranaense, com ênfase nos

casos relacionados à chamada Operação Condor. Esta, por sua vez, foi uma reunião

repressiva latino-americana, que contou com a participação dos seguintes países: Brasil,

Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Peru.

Masacrados en Nochebuena é o título do livro de Efrain Martinez Cuevas que narra

a saga de oito guerrilheiros paraguaios envolvidos na luta contra a ditadura de Alfredo

Stroessner. Por dois meses e meio, entre setembro e dezembro do ano de 1960 e o início de

janeiro de 1961, uma coluna do movimento guerrilheiro “14 de Mayo”, formada por

estivadores reunidos em Puerto Yguazú, Missiones, Argentina, combateram as tropas do

general Stroessner. De maneira desigual, os combates se estenderam por longos trajetos e os

oitos guerrilheiros que formaram parte deste destacamento imprimiram algumas derrotas

importantes e, como narrado por Cuevas, foram duramente caçados pelas tropas regulares

do exército paraguaio.

Com a fronteira paraguaia em estado de alerta, devido ao acionar da resistência

contra a ditadura de Stroessner, Remigio Gimenez, depois de ser expulso de seu povoado a

mando de políticos aliados ao general ditador, bem como toda oposição, passou a ser vigiada.

A metodologia da espionagem é sistematicamente aplicada como forma de interceder na

possibilidade de reunião das oposições e agir no sentido de desarticulá-las de maneira

preventiva ou em combate. Gimenez, diferentemente dos colorados e demais integrantes do

movimento 14 de maio, era comprometido com a oposição liberal2. Sua trajetória no final

dos anos de 1950 foi marcada pela obrigatoriedade de deslocamento constante, a fim de fugir

da perseguição política.

Toda resistência paraguaia sofreu forte vigilância. Os locais de reuniões de exilados

foram especialmente vigiados pelo caráter explosivo de sua condição oposicionista e foram

alvos recorrentes da polícia paraguaia. Sujeitos infiltrados nos movimentos, ou até mesmo

agindo segundo pagamentos em dinheiro, oferecidos aos delatores, foi o modus operandi.

Tratam-se dos pyragues, espiões especialmente treinados para estas funções no caso

paraguaio. A atuação dos pyragues colocou toda a resistência na defensiva. Qualquer sujeito

que se aproximasse das células montadas no exterior era rigorosamente investigado pelos

integrantes da resistência. No caso de Gimenez não foi diferente. Após ser expulso da

localidade de sua moradia, devido a discussões e perseguições políticas, Gimenez chegou a

Puerto Yguazú no ano de 1959. Ocupou-se da estiva para sustentar-se, pois este era um exílio

econômico, mais do que político. Conheceu a resistência e engajou-se. Mesmo assim, não

escapou das desconfianças com relação ao seu posicionamento político, mas desta vez por

parte de seus companheiros de armas. Cuevas explica esta situação da seguinte forma:

2 O termo Liberal na militância política paraguaia da época representa sujeitos comprometidos com a

construção das chamadas democracias irrestritas e populares e não uma ideia de implantação de economia

liberal como discutido por intelectuais conservadores da atualidade.

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Depois do período de reunião, treinamento e definição tática, os oito guerrilheiros do

movimento 14 de maio, Carlino Colinas Mercado, Marcelo Martínez, Baldomiro Acosta,

Bernabé Peralta Rojas, Remigio Gimenez Gamarra, Romero “Tayorí”, “Carpincho” Ramirez

e Antonio Gualberto Arce partiram para os enfrentamentos que resultariam na execução de

seis dos oito guerrilheiros na localidade de Ype Jhú, próximo à fronteira com o Brasil na

cidade de Paranhos, no Estado do Mato Grosso do Sul. O plano consistia em adentrar o

Paraguai pela fronteira brasileira com Foz do Iguaçu e seguir em direção aos combates nas

áreas campesinas do Paraguai, visando debilitar as tropas oficiais. O itinerário era confuso e

Cuevas não esclarece de que maneira ele se integrou ao plano mais amplo da resistência,

mas tratava-se de cruzar a fronteira no departamento do Alto Paraná, seguir para Caaguzu,

Canindeyu e ingressar em Amambay.

Remigio Gimenez era um dos oito guerrilheiros. Preparou-se para a luta armada nas

circunstâncias do combate, apesar de uma experiência prévia no exército paraguaio. Depois

da fugaz tentativa de combates abertos na mata de uma região montanhosa do Paraguai,

Gimenez começa a exercer certo protagonismo e se destacou, segundo Cuevas, como

liderança do grupo. Toda a narrativa de Cuevas está centrada nas desventuras praticadas pela

coluna do 14 de Maio, com certo protagonismo de Gimenez e Arce. Os dois únicos

sobreviventes do Massacre de Nochebuena foram, também, fontes de depoimentos para o

levantamento histórico realizado por Cuevas.

Como desfecho desta experiência, ocorreu a busca pelos combatentes em plena mata

paraguaia e combates que acabaram com a baixa de dois membros do exército paraguaio

envolvidos com a missão. Ao retornar ao Brasil através da fronteira com o Estado do Mato

Grosso do Sul, na altura da cidade de Paranhos, os oitos guerrilheiros foram capturados pelas

autoridades locais e entregues à polícia paraguaia. Todos foram fuzilados quando saíram da

propriedade em que estavam alojados. Apenas Gimenez e Arce sobreviveram.

Este acontecimento ocorreu no início de 1961. Para Cuevas, o massacre foi realizado

em retaliação à ousadia do grupo. Sua narrativa recorre a eventos que demonstram a

perspicácia dos guerrilheiros frente à debilidade das tropas regulares. O Massacre de

Nochebuena ocorreu antes do golpe de 1964 no Brasil. Por isso, Gimenez e Arce foram

considerados exilados por Jânio Quadros. O massacre quase provocou um incidente

diplomático entre Brasil e Paraguai. Entretanto, à época, nada se fez. A partir daqui, a

trajetória de Gimenz será avaliada desde os autos criminais, relatórios policiais e declarações

indagatórias realizadas por ocasião das prisões de Gimenez no Paraguai.

Após o evento, Gimenez morou em São Paulo. Pelos relatórios do DOPS, o brasileiro

Gimenez passou a viver de vendas. Foi periodicamente à cidade de Foz do Iguaçu – PR

transportando mercadorias para venda. Em 1968, conheceu dois sujeitos, nomeados pelos

relatórios como Pacheco e Osório. Os dois convidaram Gimenez para uma ação armada em

um banco Tosan da cidade de São Paulo. Segundo o relatório, a ação armada foi interceptada

pela polícia paulista, que entrou em confronto com o grupo de Gimenez. Durante o evento,

Gimenez foi atingido frontalmente por um tiro, mas escapou. Foi preso no ano seguinte, em

1969, acusado de assalto a mão armada e foi sentenciado a 7 anos e meio de prisão, dos quais

cumpriu 3 anos e meio e foi solto por bom comportamento. Durante este período de sua saída

da prisão, não há qualquer indicação de sua trajetória nos documentos analisados. Há, sim,

certificados expedidos pelo DOPS de que Gimenez cumpriu a pena que lhe foi estabelecida.

Em 1974 foi preso após ser parado na BR 277 entre Foz do Iguaçu e Cascavel – PR.

Abordado pela Polícia Federal brasileira, teve seu automóvel revistado. Nessa ocasião,

Gimenez e mais duas pessoas, José Bezerra de Vasconcelos e João Pereira da Silva,

transitavam pela rodovia em direção a Foz do Iguaçu. Ao ser abordado pela Polícia Federal,

solicitou-se a revista do carro que era uma caminhonete Rural Wilys. Durante a revista, o

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agente da Polícia Federal brasileira encontrou indícios de que os forros laterais do carro

foram removidos. Ao verificar seu interior, o agente encontrou uma quantidade considerável

de entorpecentes, além de uma pistola Beretta calibre 6.35. Gimenez e os demais ocupantes

do carro foram enviados à delegacia para depor sobre o fato.

Este depoimento, revela algumas informações pertinentes para a análise da trajetória

de Gimenez. Tanto Gimenez quanto José Bezerra declararam que a real intenção da viagem

a Foz do Iguaçu era encontrar um lugar para o estabelecimento de uma oficina mecânica em

que os dois fariam sociedade. Gimenez mencionou que, durante três meses, José Bezerra

ficou hospedado em sua casa na cidade de Foz do Iguaçu, tempo em que resolveram montar

a sociedade. Sobre este período, João da Silva comentou que, periodicamente, Gimenez saiu

de sua casa com rumo desconhecido por ele, já no período em que se encontravam

hospedados na casa de Gimenez em Foz do Iguaçu. Que não observou qualquer indício de

que Gimenez fosse usuário de drogas, mas que, em sua avaliação, tais saídas, na verdade,

eram a oportunidade em que Gimenez buscou os entorpecentes e os colocou no forro do

automóvel, endossando a declaração de que não tinha conhecimento da carga. Na ocasião,

José Bezerra era o motorista da caminhonete. Segundo depoimento de José Bezerra, a

decisão foi tomada em função de que Gimenez não dirigia muito bem. O condutor confirmou

que o interesse na cidade residia na possibilidade de instalação de uma oficina mecânica que

já existia com suas instalações na cidade de São Paulo, mas que o contrato de locação do

prédio na referida cidade expirou e foram aconselhados por Gimenez a procurar a cidade

para continuar no ramo. João da Silva os acompanhou por estar sem ocupação e a procura

de trabalho, e que, portanto, seria empregado pelos dois na oficina.

A mesma declaração de João da Silva, com relação à propriedade dos entorpecentes,

o fez José Bezerra. Declarou que não conhecia a sua origem, não se tratava de sua posse e

que Gimenez também saía periodicamente com o automóvel na cidade de Foz do Iguaçu sem

informar para onde. Segundo José Bezerra, Gimenez, aparentemente, não apresentava

qualquer indício de praticar a atividade de traficante e terminou o depoimento sem endossar

tal tese. Entretanto, dizia que o trânsito de Gimenz à cidade de Foz do Iguaçu era para

traficar, mas que Gimenez vinha sim periodicamente à cidade para visitar a sua família.

O depoimento de Gimenez esclareceu a origem da droga. Ele assumiu a propriedade

da mesma dizendo que as recebeu das mãos de barqueiros que faziam o translado do produto

na barranca do rio Paraná. Que os demais ocupantes do automóvel nada sabiam sobre o

ilícito e que se tratava da primeira vez que tentou o referido trânsito da droga com vistas a

comercializá-lo na cidade de São Paulo. Finalizou o depoimento dizendo que tinha interesse

em estabelecer-se definitivamente na cidade de Foz do Iguaçu e que seu trânsito em direção

a esta cidade residia no interesse em visitar a sua família, que pensava em estabelecer-se

definitivamente por ali, afim de montar um comércio em sociedade com José Bezerra. De

certa forma, apesar do exílio, Gimenez procurou aproximar-se da fronteira com o Paraguai.

Segundo o inquérito da Polícia Federal brasileira, com data de 15 de fevereiro de

1974, o depoimento de Gimenez esclarece,

[…] que relativamente aos seis (sic) indivíduos que acompanhavam o

declarante, de fato, de nada sabiam, com referência ao delito que estava

sendo praticado pelo declarante, pois, o declarante há questão de seis meses

aproximadamente vieram de São Paulo e os mesmos vieram de São Paulo

em companhia do declarante, a convite deste e hospedaram-se durante os

dias que aqui permaneceram, na residência do declarante, mas ignoravam

tudo o que o declarante estava planejando; que as declarações prestadas

pelos dois rapazes coincide com a verdade, como já esclareceu o

declarante, os mesmos vieram a esta cidade orientados pelo declarante e

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desejavam aqui montar uma oficina de pintura e lanternagem de veículos;

que o declarante já tinha um comprador certo na cidade de São Paulo, para

quem seria vendidas as ampolas à razão de quatro cruzeiros cada e a

maconha o declarante não havia pensado no preço de venda; que o

comprador em São Paulo, seria um indivíduo cujo nome e endereço o

declarante ignora, mas na cidade seria fácil localizá-lo; que o que levou o

declarante a fazer o que motivou sua prisão, é a necessidade de conseguir

determinada importância, a fim de regularizar seus compromissos; que a

droga foi a atravessada da República do Paraguai para o lado brasileiro, de

barco pelo Rio Paraná; que o declarante nunca esteve preso e nem

processado; que a arma apreendida em poder do declarante é de sua

propriedade e somente usava quando viajava fora de seu domicilio; que os

autores da prisão do declarante foram os agentes desta Divisão de Polícia

Federal; que as declarações ora prestadas pelo declarante são a expressão

da verdade; que o declarante não sofreu nenhuma coação física ou moral

para prestar estas declarações […] (INQUÉRITO DA POLÍCIA FEDERAL

BRASILEIRA, 15/02/1974).

Em 1978, Gimenez foi novamente preso em Foz do Iguaçu. Sobre este episódio,

encontramos uma indicação do jornalista Aluizio Palmar no acervo do site “Memórias

Reveladas”, que o militante pelos direitos humanos alimenta com documentos dos órgãos de

repressão das ditaduras brasileira e paraguaia. Segundo uma matéria de 1981 do jornal Nosso

Tempo, a prisão de Gimenez aconteceu da seguinte forma: “Esta trágica história começou

em 17 de dezembro de 1978, quando a Polícia Federal brasileira sequestrou Remigio Gimez

em Foz do Iguaçu e o entregou ao sanguinário Departamento de Investigação da polícia

paraguaia, na cidade fronteiriça de Puerto Stroessner” (Nosso Tempo, 1981).

Em Foz do Iguaçu, a comunidade paraguaia aqui residente e um grupo de

brasileiros realizaram, no dia 28 de janeiro, uma manifestação em frente

ao Consulado do Paraguai em Foz do Iguaçu. O cônsul limitou-se a dizer

que Remigio Giménez não passa de um delinquente comum ao receber dos

manifestantes um documento que pedia justiça para o preso em greve de

fome.

Na última terça-feira, em novo ato pela libertação de Giménez, um grupo

de pessoas representando o PMDB, PDT, Diretório Acadêmico da Facisa,

Centro Cultural Árabe Umefi e Comitê Latinoamericano de Solidariedade,

fez uma jornada de jejum na praça da Câmara de Vereadores de Foz do

Iguaçu. Paraguaios e brasileiros reuniram-se em vigília às 8 horas e

encerraram o ato com um culto religioso conduzido pelo padre Germano

Lauck, da Paróquia São João Batista. Durante o dia, os manifestantes

distribuíram panfletos relatando a situação de Giménez e ostentaram faixas

e cartazes informando aos que passavam pelo local o motivo do jejum e da

vigília (Nosso Tempo, 1981).

Embora a declaração indagatória prestada à Polícia Paraguaia, a cargo do general

Pastor Coronel indique que a prisão de Gimenez foi realizada do lado paraguaio, há indícios

claros de que Gimenez foi vigiado e capturado pela Polícia Federal brasileira e entregue à

polícia paraguaia. Vários organismos ligados à defesa dos Direitos Humanos denunciaram a

arbitrariedade cometida durante a captura e detenção de Gimenez. Como exilado paraguaio

no Brasil, Gimenez não poderia ser preso e enviado ao Paraguai.

Recentemente, em pesquisa no fundo documental do ex-deputado federal do MDB

Gernote Kirinus, atualmente disponível para consulta no Centro de Documentação do Oeste

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do Paraná (CEPEDAL), localizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná

(UNIOESTE), nos deparamos com uma série de recortes de jornais que denunciaram a

condição desumana da prisão de Gimenez. A campanha encabeçada por Kirinus foi

promovida por intermédio do Centro de Forças Democráticas da América Latina – CEDEL3.

Tratava-se de um órgão ligado à Assembleia Legislativa do Paraná – ALEP. Um recorte de

Jornal sem data e referência sobre o órgão de comunicação noticia a campanha arquitetada

por Kirinus na Assembleia em favor da revisão do auto de prisão de Gimenez no Paraguai.

Bibliografia

CUEVAS, Efraín Martinez. Masacrados em Nochebuena. Foz do Iguaçu, 2002.

PIRES, Rui. Resistência na América Latina. Curitiba: CEDEL, 1981.

SANNEMANN, Gladys. El Paraguay en el Operativo Condor. Asunción, 2013.

Documentos/sites consultados

Jornal Nosso Tempo, dezembro de 1981. Disponível em:

<http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/america/paraguai/preso-pela-pf-de-

foz-do-iguacu-e-entregue-a-ditadura-de-stroessner/>.

<http://www.forumverdade.ufpr.br/blog/2014/09/04/operacao-condor-o-calvario-de-

remigio-gimenez/>.

Fundo Gernote Kirinus, CEPEDAL, UNIOESTE, 2014.

3 Sobre o CEDEL, Cf. Rui Pires (PIRES, 1981).

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A INFLUÊNCIA DE MARX E DOS MARXISMOS NA FORMAÇÃO DO

PENSAMENTO DA INTERNACIONAL SITUACIONISTA

Marcus Vinícius Costa da Conceição1

Resumo: A Internacional Situacionista foi um grupo artístico-político de caráter

internacional que se forma na Europa em 1957 e encerra as suas atividades em 1972. No

período da sua existência teve interesse nos mais diversos assuntos: desde a arquitetura e

urbanismo, passando pela arte contestatória, pelo cinema, pela prática política. A IS pode

ser compreendida a partir de duas fases: uma primeira (1957 – 1962) relacionada a aspectos

artísticos e urbanísticos; e uma segunda (1962 – 1972) relacionada a aspectos mais

estritamente políticos, como a análise da sociedade e do Estado no pós- Segunda Guerra

Mundial. O presente texto tem como objetivo discutir a influência do pensamento de Marx

e de correntes marxistas na formação do pensamento da Internacional Situacionista,

especialmente na sua segunda fase. Um ponto chave que será discutido no presente texto é

o conceito de ditadura do proletariado percebendo como Marx e Engels definem esse

conceito, passando pelo processo de discussão do conceito nas revoluções da década de

1910/20 e culminando com o processo de ressignificação do conceito realizado pelos

situacionistas na década de 1960, com a sua busca de construir uma interpretação da

sociedade capitalista de bem-estar social.

Palavras-chave: Situacionistas; marxismo; ditadura do proletariado.

Pensar na reinterpretação dada pelos situacionistas da obra de Marx é analisar como

eles pensaram e utilizaram os conceitos produzidos por Marx para produzirem os seus

próprios conceitos e compreenderem quais as consequências que atingiram o mundo após a

morte de Marx. O foco foi baseado nas mudanças ocorridas na Europa, no período do pós-

Segunda Guerra Mundial, com a sua política do Estado de bem-estar social.

A vinculação da Internacional Situacionista (IS) com o marxismo já foi alvo de

diversos estudos e abordagens, em que, estudiosos do assunto procuraram observar como

ocorria as construções teóricas situacionistas. No entanto, no início, tentou-se fazer uma

negação da ligação entre os escritos situacionistas e o marxismo, em muito baseado, nesta

afirmação da IS publicada no seu texto El cuestionario: “10. Vocês são marxistas? Bem

entendido que, Marx disse: ‘eu não sou marxista2’” (INTERNACIONAL SITUCIONISTA,

2004, p.148). Negar que os situacionistas desenvolvessem uma maneira própria de realizar

uma leitura dos textos de Marx e de outros marxistas (como Lukács, por exemplo), seria

negar a própria base de todos os escritos situacionistas e a própria noção de revolução que

os situacionistas se utilizaram e aprofundaram baseados nas revoluções operárias do século

XX e também na realidade histórica do seu período. Esta afirmação realizada pelos

situacionistas, de que não seriam marxistas, foi muito mais uma forma de tentar não serem

comparados com outros grupos que se remetiam à herança marxista, em especial o Partido

Comunista Francês e os novos grupos maoístas que inspiravam a juventude francesa naquele

momento. No entanto, como será demonstrado no decorrer deste trabalho, os situacionistas

1 Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás, bolsista CAPES. 2 Esta afirmação é escrita por Engels em uma carta a Conrad Smith em 1890, em que diz que Marx costumava

usar esta expressão a se referir aos pretensos “marxistas” franceses na década de 1870.

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fazem nada mais nada menos que procurar realizar uma análise marxista sobre o seu período

histórico, apesar de alguns sobressaltos cometidos por este grupo.

O fato da não ligação da IS com outros grupos se deve muito mais pelo fato de eles

propugnarem a tentativa de construção de uma nova forma de compreender a realidade,

baseada na sua própria teoria e em Marx, como será demonstrado abaixo, do que se

preocupar necessariamente na filiação teórica do grupo. A IS sempre demonstrou como a

utilização de rótulos – como foi demonstrado com o termo marxismo – é um ponto que pode

fazer a transformação de uma ideia política em ideologia, ou seja, falsa consciência. Isso

ficou claro, quando os situacionistas abordaram o termo situacionismo. Eles não

concordavam com a abordagem, pois na visão da IS a sua luta se transformaria em algo

utilizado como meio de perpetuação da diferença social. Mas não era porque eles não

gostavam do tema que efetivamente não se criou um situacionismo. Em particular, depois

dos eventos do Maio de 1968 e, mais efetivamente, com a apropriação dos estudos

situacionistas sobre o papel da mídia. Isso pode ser destacado no fato da IS criticar termos e

práticas anarquistas e marxistas, mas, mesmo assim, utilizar-se de tais termos na constituição

da sua práxis.

Vê-se este processo claramente em relação à opção dos situacionistas em favor e

defesa dos conselhos operários como órgãos supremos da revolução, em contraposição a

qualquer outro tipo de organização, como partidos e sindicatos. Para a IS, para uma

revolução operária sair vitoriosa e suplantar de vez o modo de produção capitalista, ela

deveria ter os conselhos operários na sua base, pois somente os trabalhadores poderiam guiar

a sua revolução. A ideia dos conselhos operários, como portadores da revolução, foi

desenvolvida de uma maneira mais aprofundada, pela corrente denominada de comunistas

de conselho ou conselhista. Esta corrente começou a se desenvolver, principalmente, entre

os comunistas alemães e holandeses na década de 1920.

É difícil falar em um grupo homogêneo, existiram divergências como, por exemplo,

a respeito do papel de que grupos de não operários deveriam atuar no meio operário, porém,

a visão dos conselhos operários, como base da revolução, foi um denominador comum. Esta

corrente começou a nascer a partir da inquietação de alguns setores mais à esquerda do

Partido Comunista Alemão3, em especial, após a morte de Rosa Luxemburgo, com os rumos

que o Partido tomava e como crítica ao processo de fortalecimento do Estado e do Partido

Bolchevique em detrimento das organizações operárias e dos conselhos operários. Para estes

militantes, o Partido não poderia, de forma nenhuma, sobrepujar as organizações operárias,

pois ele serviria apenas como um elemento de apoio às demandas e às ações do proletariado,

uma vez que, para os conselhistas, o partido era uma organização intelectual de apoio.

Os comunistas de conselho, em um primeiro momento, foram denominados de

esquerdistas4, por Lênin. Travaram, desde o início, uma batalha contra o que denominavam

uma tentativa de Lênin de exportar um modelo de organização e revolução para todo o

mundo. A postura deste grupo ficou explícita no texto de Otto Rühle que expos como era

compreendida a relação de Moscou com as outras regiões da Europa que estavam em

processo revolucionário.

En cada país, la revolución toma su propia fisonomía. Crea sus propias

formas. Desarrolla sus propias leyes.

3 A influência da corrente austro-marxista, nomeadamente, da sua ala a esquerda com Max foi de fundamental

importância na criação do comunismo de conselhos. 4 É importante ressaltar que nem todos os esquerdistas se tornaram comunistas de conselho, mas todos os

comunistas de conselho eram denominados esquerdistas.

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Aunque se despliega como un asunto internacional, la revolución es, en

primer lugar, un asunto que concierne a cada país, a cada pueblo en sí.

Por muy preciosas que sean las experiencias revolucionarias de Rusia para

el proletariado de un país, por muy agradecido que esté por los consejos de

su hermano y el apoyo de su vecino, la revolución misma es su asunto;

debe ser autónomo em sus combates, libre en sus resoluciones, y no

influenciado y estorbado en la evaluación y explotación de la situación

revolucionaria.

¡La revolución rusa no es la revolución alemana, no es a revolución

mundial! (RÜHLE, 2004, 148)

Para Rühle e para seus companheiros de ação, a ingerência de Moscou demonstrava

que os bolcheviques queriam, através do processo de homogeneização do processo

revolucionário, em todo o mundo – especialmente na Europa ocidental –, expandir o tipo de

partido (bolchevique) que tinha se saído vitorioso na Rússia. Porém, o grande problema que

cercou esta perspectiva de Lênin e ao qual os conselhistas eram tão críticos, era o fato da

revolução, na Europa Ocidental, não ocorrer nas mesmas condições que a Revolução Russa,

não podendo, desta forma, ocorrer uma transposição mecânica das formas de luta de uma

região para outra. Para os conselhistas, a III Internacional, ao ser tratada como um círculo

de disseminação das práticas bolcheviques, acabou com a autonomia dos outros países em

conduzirem suas revoluções. Herman Gorter enxergava como uma das grandes diferenças

de que, em países como a Alemanha, não bastava uma crise para se criar um processo

revolucionário como ocorreu na Rússia nos primeiros anos do século XX, era necessário ter

todo um trabalho de base, de retomada da consciência revolucionária, baseado acima de tudo

num trabalho de restaurar a energia revolucionária do proletariado, que havia sido sugada

pelos sindicatos, pelo Partido Social Democrata e pela esperança de mudança através do

regime constitucional (via parlamento). Gorter achava que este ponto só poderia ser

resolvido através de instituições de base, como os conselhos operários, que seriam capazes

de resgatar este potencial, a partir do momento em que os trabalhadores, ao se colocarem

como os únicos detentores do seu destino, a História da revolução passaria a ser escrita. A

presença de conselhos operários explodiu na Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial

e o processo revolucionário alemão, de 1919-1920, foi primordialmente baseado nos

conselhos operários, que serviram de inspiração para a construção desta corrente, uma vez

que, ela se baseou na visão dos conselhos daquele período para formular a sua teoria.

Somou-se o processo de ainda o fato dos conselhistas não aceitarem algumas

posições defendidas por Lênin, como por exemplo, o parlamentarismo5 e o rumo que a

revolução russa estava tomando fez com que aqueles passassem a fazer uma série de análises

sobre o processo de revolução e seus limites e diferenças entre a Rússia e o Ocidente. E, o

fator que mais pesava era a presença do Partido Bolchevique, enquanto organizador e

condutor da Revolução. Para os conselhistas, isso fazia com que a Rússia caminhasse para

uma situação em que o proletariado não teria efetivamente o poder, porque o que se pretendia

alcançar lá, nas palavras de Gorter era uma “ditadura do partido – ou seja, de alguns chefes”,

enquanto que, na Alemanha, o processo revolucionário, através dos conselhos e pela base,

procurava criar “uma ditadura de classe – isto é, proletária”.

Este modo de encarar a Revolução dos comunistas de conselho era muito próximo

do tipo de ação revolucionária que os situacionistas defendiam e tentavam pôr em prática,

5 Para os conselhistas, a participação em eleições era uma forma de reforçar a mentalidade de uma transição

pacífica ao comunismo, algo que nunca ocorreria e que, ao mesmo tempo, retirava as forças de ação de outros

setores e não contribuía efetivamente para o caminhar da revolução proletária.

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porém de uma forma muito menos contundente que os conselhistas, até mesmo porque, as

diferenças de condições entre os períodos históricos destas duas correntes eram muito

discrepantes. Como no período situacionista, o seu tempo pendia mais para o reformismo do

que para uma revolução.

Foram inspirados, de certa forma, na ideia de Gorter colocada acima, que os

situacionistas procuraram refazer a leitura do que venha a ser uma ditadura do proletariado,

procurando fugir da conotação que acabou sendo difundida – a de Lênin e da União Soviética

– e procurando dar uma nova roupagem a partir de elementos desenvolvidos por eles e

também por outras correntes, como foi o caso dos comunistas de conselho6.

Partindo deste ponto, Debord fez uma releitura do termo de ditadura do proletariado.

Para ele, a compreensão deveria partir do sentido descrito abaixo

A ideia mais revolucionária a respeito do urbanismo não é uma ideia

urbanística, tecnológica ou estética. É a decisão de reconstruir

integralmente o território de acordo com as necessidades do poder dos

Conselhos de trabalhadores, da ditadura anti-estatal do proletariado, do

diálogo executório (DEBORD, 2006, p. 118).

Quando Debord refez o termo o intitulando de ditadura anti-estatal do proletariado,

o fez com o objetivo de tentar apagar a visão, até aquele momento comumente aceita e

difundida, de que ditadura do proletariado se referia a um processo de tomada de Estado e

de constituição de um Estado de transição entre o capitalismo e o comunismo, denominado

de socialismo.

Apesar de este termo aparecer em apenas duas passagens7 ele remete a ideia global

da Internacional Situacionista, uma vez que, ela traduzia a primazia das análises de Marx e

Engels sobre a Comuna de Paris em detrimento dos primeiros textos dos fundadores do

marxismo em que a conquista do Estado era dada como um objetivo a ser alcançado. Para

os situacionistas, as condições a que foram alçados os operários em todo o mundo, desde a

experiência da Comuna de Paris, trouxeram definitivamente a negação total da necessidade

de realização de uma revolução burguesa, para depois, realizar-se uma revolução comunista.

Os situacionistas viam a defesa de uma ditadura do proletariado do tipo russo um

retrocesso no processo de constituição de uma sociedade comunista, visto que, este tipo de

processo de transição acarretava grandes problemas por não ter, em primeiro plano, as

demandas do operariado e sim, as demandas do partido que, para os situacionistas eram

encaradas em planos totalmente distintos. Isto porque, os situacionistas enxergavam o

partido – no sentido leninista – como um grupo dirigente que tinha o objetivo de ser o

condutor do processo revolucionário, muitas das vezes, deixando as organizações operárias

e os próprios operários fora das decisões daquilo que seria uma sociedade comunista.

A existência de um período de transição como Lênin denominou em O Estado e a

Revolução, chamando-o de socialismo, foi vista pelos situacionistas como uma prática

inconcebível, pois o que se tinha ali não era a ditadura da classe, mas a ditadura de uma

fração que se dizia representar a classe e que criava, na verdade, a estrutura de um Estado

centralizador em vez de uma estrutura social baseada no poder dos conselhos operários.

Além disso, avançar no combate ao Estado, fosse ele de qual tipo fosse, socialista ou

6 Os comunistas de conselho foi uma corrente que surgiu na década de 1920, na Alemanha e na Holanda, e que

defendia os conselhos operários como os organismos responsáveis pela revolução dos trabalhadores e pela

constituição da nova sociedade a ser instituída. 7 A outra passagem é no artigo Preliminares sobre os conselhos e a organização conselhista de René Risiel

(2001).

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capitalista, era para a IS uma das suas principais funções. Isto porque, os situacionistas

enxergavam que o proletariado não necessitava mais de organizações que tomassem decisões

por eles próprios, porque as suas experiências, desde a Comuna, passando pelas revoluções

do século XX demonstraram o alto poder de auto-organização, sendo assim que o Estado e

o partido se colocavam como itens dispensáveis no processo de transição para uma sociedade

comunista. Raoul Vaneigem expos a posição da IS da seguinte maneira

El proletariado ha demonstrado ya que se puede responder a la complejidad

opresiva de los Estados capitalistas y “socialistas” con la sencillez de la

organización ejercida directamente por todos y para todos. En nuestra

época no se plantean cuestiones de supervivencia más que con la condición

de no resolverlas nunca; com el proyeto de los consejos obreros, por el

contrario, los problemas de la historia por vivir se plantean claramente a la

vez como positividad y como negatividad; es decir, como elemento básico

de una sociedad unitaria industrial y como anti-Estado

(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2001, p. 603).

A superação destas formas de Estado e da luta anti-Estatal que as lutas operárias

tomaram foi demonstrada claramente na formação dos conselhos operários nestas lutas,

partindo de ações que procuravam trazer para o cerne da questão a autonomia do operariado

frente à opressão das necessidades do capital contra as necessidades reais.

A IS procurou construir essa sua visão sobre o Estado levando em consideração os

escritos de Marx sobre a Comuna de Paris, pois era ali que ele avança para questões além da

estatização dos meios de produção, pois ele enxergava que este não era mais o objetivo do

proletariado. Assim, na sua construção de uma noção de uma ditadura anti-estatal do

proletariado, os situacionistas levavam em consideração o que Marx denominou de livre

associação dos produtores, que, para a IS, seria a formação dos conselhos operários, aliada

a implementação do autogoverno dos produtores, isto é, o fim de toda forma de Estado e de

intermediação entre o proletariado e o poder instituído.

Observando o conceito de ditadura do proletariado em Marx, Adler8 observou-se que

a IS teve uma postura muito próxima das suas formulações, não discutindo muito, no entanto

a questão da democracia. Pode-se entender esta discussão partindo do pressuposto que os

situacionistas se utilizavam do conceito de autogestão9 – que era entendido como uma forma

de governar baseada na democracia direta e na capacidade dos trabalhadores conduzirem o

processo produtivo, sem intermediários– que não era existente no período de Adler que,

desta maneira, recorreu ao termo democracia para demarcar o seu território e fazer a

diferenciação entre a democracia burguesa e a democracia baseada nos conselhos operários,

porque quase sempre que os situacionistas se referiam à democracia estavam ligando-a à

8 Adler propôs uma ditadura do proletariado baseado nos conselhos operários e na democracia, caracterizando

assim, a verdadeira essência do comunismo, uma vez que, sendo os conselhos operários expressão do

movimento operário real, traziam nas suas práticas os elementos capazes de construir a sociedade comunista.

“[...] é necessário que a educação revolucionária dos conselhos operários no espírito marxista da luta de classes

e do socialismo seja considerada como uma segunda tarefa capital e permanente, juntamente com o trabalho

de administração. Só assim se poderá impedir que os conselhos se limitem a um simples trabalho de reformas

e percam de vista o seu fim supremo: serem os principais instrumentos da transformação social, da supressão

da sociedade capitalista” (ADLER, 1976, 120). 9 O conceito de autogestão surgiu no início da década de 1960, como fator de explicação da diferenciação entre

o socialismo soviético e o socialismo iugoslavo, que permitia uma maior participação dos trabalhadores nas

decisões do processo de produção.

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democracia burguesa e a sua forma representativa, que servia, na realidade, como uma forma

de podar o processo de expressão da classe trabalhadora.

A reapropriação do termo ditadura do proletariado foi somente um dos que os

situacionistas se apropriaram ou construíram baseados em Marx ou no marxismo. Esse

processo é de extrema importância para ver como os situacionistas estavam articulados com

os debates na esquerda mundial durante o período da sua existência.

Referências bibliográficas

ADLER, Max. Conselhos operários e revolução. Coimbra: Centelha, 1976.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo.

Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. El cuestionario. In: Internationale Situationniste nº

9, 1964. Madrid: Traficantes de sueños, 2004, 146 – 149.

RÜHLE, Otto. Moscú y nosotros. In: AUTHIER, Denis; DAUVÉ, Gilles. Ni parlamentos,

ni sindicatos: ¡ los consejos obreros. Barcelona: Ediciones Espartaco Internacional, 2004.

pp. 143 – 150.

RIESEL, René. Preliminares sobre los consejos y la organización consejista. In:

Internationale Situationniste, nº 12, 1969. Madrid: Literatura Gris, 2001, pp. 588 – 599.

VANEIGEM, Raoul. Aviso a los civilizados com respecto a la autogestión generalizada. In:

Internationale Situationniste, nº12, 1969. Madrid: Literatura Gris, 2001, pp. 600 – 606.

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IGREJA, QUESTÃO AGRÁRIA E ESTADO

Maria José Castelano1

Resumo: O objetivo deste texto é apresentar algumas reflexões da pesquisa de doutorado

em curso a partir da análise preliminar de algumas fontes e entrevistas e de uma revisão

bibliográfica sobre a constituição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e sua atuação junto

aos movimentos sociais, identificando as críticas e as possíveis soluções direcionadas aos

problemas que afligiram os pequenos agricultores e trabalhadores rurais no processo de

modernização econômica do Brasil. No Paraná, firmado o tratado da criação da Usina

Hidroelétrica de Itaipu e iniciado o processo de desapropriação das terras que seriam

alagadas pela mesma, a CPT denuncia, em pleno estado de exceção, a situação dramática

enfrentada pela população a ser atingida pela construção da barragem da Itaipu, quando, por

meio de documentos (como foi o caso do boletim Poeira), mostra algumas evidências do

poder desigual no processo de negociação entre trabalhadores e representantes da Itaipu. A

atuação da CPT coincide com o aprofundamento da crise e das contradições sociais

agravadas com a reestruturação capitalista, na cidade e no campo, praticadas pela Ditadura

Militar. Destaca-se a relação conflituosa entre a atuação das Igrejas Católica e Luterana, por

meio dos seus mediadores, e o Estado na luta pela terra que resulta na constituição do

Movimento de Trabalhadores Rurais do Oeste do Paraná – Mastro.

Palavras-chave: CPT; Igreja Luterana; Itaipu; desapropriação.

Apresentamos algumas reflexões a partir de uma revisão bibliográfica sobre a ação

da Igreja Católica nos conflitos agrários no Paraná, no período que antecede o Golpe Militar

de 1964 e a constituição e atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), durante a vigência

da ditadura militar (1964-1985), temática da nossa pesquisa de doutorado que está em

andamento.

Ao fazermos o trabalho de organização das fontes e análise de sub-temáticas

apontadas pelas fontes, no intuito de compreender a emergência e o trabalho desenvolvido

pela CPT com as organizações de pequenos produtores rurais, posseiros, indígenas e os

atingidos pelas barragens como a de Itaipu, no Oeste do Paraná, chama a atenção que tais

intervenções emergem em um período da nossa história recente em que “novos personagens

entram em cena”: movimentos sociais no campo e na cidade que se constituíram no momento

em que veem à público críticas a ditadura militar, de setores de algumas igrejas cristãs como

parte da Igreja Católica, da Igreja de Confissão Luterana, entre outras, e empresários que

apoiaram o Golpe em 1964. Os movimentos sociais emergidos no pré-64 e os partidos de

esquerda foram silenciados pelos protagonistas da ditadura, gestores do capital atrófico no

Brasil.

Sobre a formação da CPT no Oeste do Paraná, há no Centro de Pesquisas do Oeste

do Paraná (CEPEDAL) vários documentos disponíveis, como o Fundo Kirinus, constituído

pelos documentos doados pelo pastor Gernorte G. Kirinus da Igreja Evangélica de Confissão

Luterana (I.E.C.LB) e também ex-deputado pelo MDB na década de 1970. Kirinus foi um

dos fundadores da CPT, em Marechal Cândido Rondon, no Paraná, e também incentivou e

participou da fundação do diretório local do MDB. Nas eleições de 1976, o MDB conseguiu

1 Professora da Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon, doutoranda pela PUC-SP e bolsista CNPQ.

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eleger dois vereadores na cidade e, em 1978, elegeu o pastor como deputado Estadual. Este

feito quebrou o monopólio político da Arena local. Ademais, no Fundo também há

correspondências trocadas entre os integrantes das CPTs e outras entidades, recortes de

jornais, dados sobre conflitos pela posse da terra na região, cadernos de estudos, listas e

levantamentos dos agricultores e comerciantes que seriam desapropriados, levantamentos

dos posseiros e das áreas sem regulamentação e titulação, entre dezenas de outros

documentos.

Tivemos acesso também ao arquivo da Associação de Estudos, Orientação e

Assistência Rural (Assesoar) como cadernos e textos de estudos da CPT, jornais, revistas,

boletins da CPT nacional e regionais, além de fontes sobre a Assesoar, sindicalismo, MST e

a Igreja Católica.

A CPT nacional disponibilizou um ótimo acervo no site: <www.cptnacional.org.br>.

Também investigamos a documentação preservada pela própria CPT do Paraná, ao longo de

seus quarenta anos de existência (comemorados em julho de 2015), a qual tivemos acesso

sob a guarda do Centro de Documentação da UEL.

Buscamos complementar a pesquisa, ainda, com acervo do Arquivo Público do

Paraná, em que a maioria dos documentos se encontra digitalizada. Tivemos auxílio de

ótimos e dedicados profissionais nos centros de documentação citados, que nos deram todo

o suporte para a realização da pesquisa em curso. Não menos importante foi a oportunidade

de entrevistar os pastores Genorte Kirinus, Werner Fuchs e Gelsi A Duarte da Assesoar.

Uma das abstrações razoáveis2 da qual principiamos a nossa reflexão pauta-se no

reconhecimento de que o direcionamento ideológico cristão promovido pelos integrantes da

CPT, influenciados pela Teologia da Libertação no Brasil, pode ter contribuído no processo

de educação popular e de conscientização social dos integrantes de movimentos sociais

ocorridos no Oeste do Paraná. Nos referimos ao Movimento Justiça e Terra e o Mastro, que

passam a lutar por uma maior participação nas decisões políticas, em oposição ao regime

ditatorial vigente no país, com a formação de lideranças que se destacavam em tais

movimentos, sindicatos, que vão posteriormente fundar a Central Única dos Trabalhadores

e o Partido dos Trabalhadores, no Paraná.

Há algumas dissertações, teses e livros que demonstram que no Paraná, entre as ações

da CPT, destacam-se a sua atuação na mobilização da população a ser atingida pela

construção da barragem da Usina Hidroelétrica de Itaipu. Esta atuação pode ser

acompanhada pela elaboração e divulgação de materiais educativos e informativos, como o

Boletim Poeira, que denunciam o evidente poder desigual no processo de negociação entre

trabalhadores e Estado, no caso deste, tendo como braço institucional a Itaipu. A partir do

levantamento de fontes foi possível constatar que as CPTs regionais, já na década de 1970,

vão elaborar seus boletins, como o Voz da Terra, da CPT do Rio Grande do Sul e o Cheiro

da Terra, da CPT de Santa Catarina, além do Boletim da CPT Nacional, como forma de

comunicação entre seus integrantes e também meio de debate de temas e difusão de ideias.

Além desses boletins encontramos cadernos temáticos, boletins, informes eclesiais,

2 Sobre as abstrações razoáveis, consultar CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica.

São Paulo, Boitempo; RAGO FILHO, Antônio. J. CHASIN: redescobrindo Marx - a teoria das abstrações.

Disponível em:

<http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Rago%20Filho,%20Antonio/a%20teoria%20das%20ab

stracoes.doc>. Acesso em: 04 out. 2014. FORTES, Ronaldo. Procedimento investigativo e forma expositiva

em Marx - duas leituras: Lukács/Chasin. Disponível em:

<http://www.verinotio.org/conteudo/0.16253103610364.pdf>. Acesso em: 01 out. 2014.

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econômicos e políticos, entre outros documentos com posicionamento crítico da Igreja frente

aos conflitos sociais no campo.

O objetivo central deste estudo encontra-se na busca da compreensão de como o

Cristianismo, por meio da Pastoral Rural e, posteriormente, da CPT, torna-se uma ideologia

de engajamento das lutas cotidianas dos movimentos sociais. Neste sentido, encontramos a

dissertação de Alegro (1994) que conclui que os “mediadores cristãos”, vinculados a CPT

atuaram como intelectuais orgânicos.

Na esteira da concepção de intelectual orgânico de Gramsci, Alegro afirma que:

A característica do intelectual orgânico é a clareza acerca do seu papel de

dirigente e educador. Neste sentido pode-se afirmar que a CPT atuando

junto aos movimentos sociais configura-se como um grupo de intelectuais

organizados no interior das Igrejas cristãs, que contribuem para a

elaboração de uma consciência histórica dos trabalhadores rurais, dentro

dos limites da sua condição/situação (ALEGRO, 1994, p. 56).

Qual o papel das lideranças da CPT, pensadas como intelectuais orgânicos, com

relação ao objeto de estudo apontado acima? Isto é, como os integrantes da CPT vão entender

as possibilidades de luta e atuação da classe trabalhadora no processo de modernização

conservadora excludente operado pela classe vinculada ao capital nacional e apoiada pelo

capital financeiro internacional? Quais as táticas e estratégias de atuação da CPT? Quais as

críticas lançadas ao projeto da Ditadura Militar? Quais as saídas apontadas para resoluções

dos conflitos agrários?

Considerando o contexto político e econômico vigente durante os governos militares

(1964-1985), destaca-se que a implantação da Doutrina de Segurança Nacional não impediu

a emergência de organizações de resistência diante de conflitos envolvendo a questão

agrária, motivadas pela expropriação de pequenos proprietários, posseiros e trabalhadores

rurais. Neste sentido, chama a atenção que a CPT foi criada em meados da década de 1970,

por bispos, padres, pastores e leigos progressistas envolvidos nestes conflitos, em pleno

Estado de exceção. Em várias regiões do país, como no Sul, Sudeste, Nordeste e no Norte, a

CPT atuou e se posicionou a favor da defesa dos interesses dos trabalhadores do campo, ou

seja, dos “oprimidos”, pela modernização engendrada e pelo avanço do capitalismo no

campo.

No que se refere à fundamentação teórica, enquanto perspectiva mais ampla de

análise para orientar nosso estudo, para compreendermos a atuação da CPT e se esta assume

uma função ideológica no movimento social, partimos do pressuposto que:

Ideologia não deve ser entendida no uso atual da palavra (como uma

consciência antecipadamente falsa da realidade), mas assim como Marx

‘formas nas quais os seres se conscientizam desse conflito’. Assim, [...] o

estudo da ideologia pode proporcionar tanto uma aproximação do ser como

um afastamento dele. O limite entre verdadeiro e falso é fluído, social e

historicamente condicionado, cheio de contradições [...] (LUKACS, 2010,

p. 41).

Metodologicamente pensando o estudo da ideologia é possível contar apenas com a

correta colaboração da experiência cotidiana prática e a conquista científica da realidade que

pode levar a uma aproximação legítima da verdadeira constituição do ser.

Partimos do pressuposto que a atividade do indivíduo, qualquer que ela seja, implica

a mediação da sociabilidade. O pensamento aqui é reconhecido como forma de expressão e

apropriação humana, como uma das forças essenciais que caracterizam os vários modos de

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apropriação humana do mundo. O pensar, dentre a multiplicidade de formas de apropriação

possíveis, enquanto “órgão imediatamente social em sua forma”, se consubstancia como uma

“força essencial” específica de apropriação também específica dos objetos por meio de sua

reprodução ideal. Assim, tanto a subjetividade em todas as suas possíveis figurações,

inclusive o pensar, são socialmente constituídas no interior do complexo e contraditório

processo de humanização do homem.

Desse modo, “[...] a produção da consciência como momento da prática humana

concreta é constituída no interior da própria sociabilidade. A fundamentação onto-prática do

pensamento, onde a consciência emerge enquanto atributo insuperável do ser dos homens e

enquanto tal, porta caráter necessariamente social” (CHASIN, 1995, p. 243-244).

Nas palavras de Lukács:

O processo global da sociedade é um processo causal, que possui suas

próprias normatividades, mas não é jamais objetivamente dirigido para a

realização de finalidades. Mesmo quando alguns homens ou grupos de

homens conseguem realizar suas finalidades, os resultados produzem, via

de regra, algo que é inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido.

[…] o fator subjetivo, resultante da reação humana a tais tendências de

movimento, conserva-se sempre, em muitos campos, como um fator por

vezes modificador e, por vezes, até mesmo decisivo (LUKÁCS, 2010, p.

11. Grifos nossos).

As contribuições de Chasin (2009), Duayer (2012), Lukács (2010; 2012) e Mészáros

(1996) iluminarão a rota de nossa investigação no sentido de indicar abstrações razoáveis na

busca da compreensão do nosso objeto de investigação – a atuação da CPT –, que está no

campo da ideologia. Entendemos que na busca do conhecimento “[...] é preciso partir da

imediaticidade da vida cotidiana, e ao mesmo tempo ir além dela, para poder apreender o ser

como autêntico em si” (LUKÁCS, 2010, p.37).

Ontologia é concebida como plataforma para a produção científica, não afirmação de

certezas a priori. Isso conduz a duas consequências fundamentais ao pensarmos a questão

metodológica: em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico;

em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou se torna, mas

sim como formas moventes e movidas da própria matéria; formas do existir, determinações

da existência.

Neste sentido, para Chasin, não há guias, mapas ou expedientes que pavimentam a

caminhada, ou pontos de partida ideais previamente estabelecidos que possam garantir a

realização do trabalho árduo do nosso ofício. Isto porque o “[...] rumo só está inscrito na

própria coisa e o roteiro da viagem só é visível, olhando para trás, do cimo luminoso, quando,

a rigor já não tem serventia, nem mesmo para outras jornadas porque é a luminosidade

específica de um objeto específico” (CHASIN, 1995, p. 516).

O posicionamento da igreja com relação ao desenvolvimento do capitalismo no campo

e a questão agrária nas décadas 1950-1960

Para entender os embates travados entre o Estado e a Igreja Católica sobre a reforma

agrária, recuaremos à década de 1950, período em que a discussão sobre a necessidade da

revisão da estrutura fundiária brasileira ganhava corpo no interior do debate nacionalista,

tanto nos grupos representativos dos setores da esquerda (progressistas) quanto da direita

(conservadores).

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A partir da análise do debate produzido sob um referência marxista, há uma

preocupação em entender o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e seu caráter que

segundo a análise de Chasin, é identificado como hiper-tardio (o processo de industrialização

dinamizou-se apenas na década de 1950), não realizou uma revolução burguesa e, desde os

seus primórdios, dependeu dos capitais externos para os investimentos internos. A maioria

da população sempre permaneceu excluída, sem acesso à instrução elementar, à saúde, às

liberdades políticas e à reforma agrária.

A via colonial da objetivação do capitalismo, em uma de suas

determinações mais gerais, significa o estabelecimento da existência

societária do capital sem interveniência de processo revolucionário

constituinte. Por si só esta característica da história brasileira é responsável

por traços fundamentais do modo de ser e de se mover da formação

nacional (CHASIN, 2000, p.221).

Portanto, o Brasil conhece o verdadeiro capitalismo somente na segunda metade do

século XX, no período pós Segunda Guerra Mundial, em um momento avançado das guerras

imperialistas e sem nunca ter rompido com a sua condição de país subordinado aos centros

hegemônicos do capital. Foi somente no segundo governo Vargas (1951-1955) que surgiram

os primeiros ensaios sistemáticos em favor da industrialização no país, voltados para a

ampliação e expansão do padrão de acumulação de bens de capital e para o setor de bens de

produção não duráveis.

No governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), o padrão de acumulação de bens de

produção mudou de forma, adquirindo consistência através do Plano de Metas, sob o slogan

“50 anos em 5”. Este plano marcou o impulso da industrialização acelerada e subordinada

aos capitais externos. Configurou-se um período de intenso crescimento econômico, com

profundas consequências sociais e políticas para o país.

No início da década de 1960, a economia sofreu com uma prolongada recessão. Neste

contexto, as “Reformas de Base”, iniciadas nos anos 1960 por setores progressistas,

objetivavam ampliar o acesso das massas ao processo de modernização capitalista em curso.

Além disso, alguns projetos possuíam uma perspectiva nacional popular, que visava uma

industrialização autônoma do país, procurando mudar a sua inserção na divisão internacional

do trabalho, com uma postura crítica ao imperialismo estadunidense. Outros indicavam uma

direção oposta e pretendiam estreitar o vínculo ao capitalismo norteamericano,

aprofundando os laços com o capital externo, selando a participação subalterna do país no

mercado mundial.

As reformas foram colocadas na agenda da discussão, à época, por pressão de setores

sociais formados por trabalhadores rurais, operários e estudantes engajados na luta por estas

mudanças. No entanto, o projeto de industrialização/modernização do Brasil, consolidado a

partir do último quartel do século passado, passa a ser capitaneado por um grupo de militares

com o apoio da burguesia agrária e industrial (aliados ao capital-imperialista) e setores da

classe média. Este projeto, que se mostrou amplamente excludente, almejava frear as

reformas sociais postas em curso pelo Estado, na fase anterior ao golpe de 1964, inclusive,

para o setor agrário.

Em meados do século XX, vários conflitos surgiram no campo brasileiro como

Trombas e Formoso, em Goiás, (décadas de 1940-1950), a Guerrilha de Porecatu e a Revolta

dos Posseiros, no Paraná, (década de 1950), apenas para mencionar alguns. Não é possível

discutir aqui tais conflitos, que podem ser consultados em ampla bibliografia disponível.

Mas, queremos assinalar a participação nestes conflitos de integrantes do Partido Comunista

Brasileiro (PCB). Esta atuação direta também é encontrada na formação das Ligas

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Camponesas, em 1955, no Nordeste, que contou com a participação do PCB, diante de

ferrenha oposição da Igreja Católica.

Em 1954, os comunistas organizaram a Segunda Conferência Nacional de

Lavradores e Camponeses, reunida em São Paulo. Dela surgiu pela primeira vez no Brasil

uma organização nacional de homens do campo, a União dos Lavradores e Camponeses do

Brasil (ULTAB). Portanto, a discussão que se estabeleceu no início dos anos 1960 entre

intelectuais de esquerda, era sobre como a reforma agrária relacionava-se com o projeto de

industrialização e com a questão da necessidade de melhorar o padrão de vida rural,

explicitados por meio das lutas eclodidas no campo.

Entre meados da Segunda Guerra Mundial e o final da década de 1950, a linha

política do PCB, assim como a de todo movimento comunista internacional, conheceu três

orientações distintas: a “união nacional”, a “linha chinesa” e o “caminho pacífico” para a

revolução (CASTELANO, 2005). Assinalamos que a Declaração de março de 1958 marcou

uma profunda reviravolta na tática do PCB, refletindo o impacto que as denúncias sobre o

stalinismo e o culto à personalidade, revelados pelo Relatório Kruschev, provocaram na

militância comunista, assim como o reconhecimento, ainda no XX Congresso do PCUS

(Partido Comunista da União Soviética), de que não haveria somente um caminho, mas

trajetórias diversas em direção ao socialismo.

Como consequência deste contexto internacional, a tática adotada pelo PCB foi a via

pacífica, coerente com a estratégia global de transformação, ou seja, para a revolução

brasileira, seria necessária a aliança com os setores considerados progressistas da burguesia.

Assim, o PCB propunha fazer a reforma agrária pela via parlamentar, pela implantação de

reformas de base que asseguravam mudanças gradativas, através do emprego tático de

acumulação de forças. Esta nova posição vai conflitar com algumas lideranças das Ligas (os

julianistas) na década de 1960, que queriam a luta armada.

Ressalta-se que a Igreja Católica mudou suas táticas e sofreu inflexão de orientação

em sua Doutrina Social pós Segunda Guerra Mundial, sobretudo com o Concílio Vaticano

II e a Conferência de Medellín. No Brasil, neste período, a Igreja, na sua prática política se

opôs às oligarquias dos estados e municípios comprometidas com formas econômicas

“atrasadas” e com relações de trabalho consideradas antiquadas e opressivas. Neste sentido,

a Declaração dos Bispos do Nordeste, em 1956, permitiu um salto na teoria e na prática da

pastoral social. Para Martins, “O novo conceito que centraliza o pensamento episcopal é o

de desenvolvimento” (MARTINS, 1989, p. 41-42). No entanto, esta nova orientação não

levou a uma pastoral social oposta ao latifúndio e a propriedade da terra, naquele momento.

As esperanças que a Igreja depositou na ação do Estado e no desenvolvimento econômico

(durante parte do governo J.K.) para a superação das condições de miséria no campo foram

corroídas rapidamente. Na interpretação de Martins, “Setores lúcidos da Igreja acreditavam

que o regime militar concretizaria reformas sociais impossíveis em um regime político

aberto”. Além disso:

O golpe de estado e a ditadura são recebidos como meio de quebrar esse

círculo vicioso de poder, que restaurava sempre as oligarquias e seu

domínio, seu compromisso com o atraso e com a pobreza. Era meio

também de afastar os comunistas e outros progressistas, inclusive católicos

de esquerda [...] (MARTINS, 1989, p. 46-47).

Em 1956, na IV Conferência Rural Brasileira, realizada em Fortaleza (CE), que

reuniu federações e associações rurais de vários estados, recomendou-se a instituição de uma

lei agrária para criar um fundo para desapropriações por interesse social, constituído por

meio da taxação de terras improdutivas. Entre as propostas preconizava-se a colonização das

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áreas qualificadas de “vazios demográficos” e, também, a recolonização de áreas já

ocupadas. Sugeriu-se, também, a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, que deveria

regulamentar a jornada de oito horas, a estabilidade e o contrato de trabalho. As oligarquias

rurais combateram duramente as propostas mais radicais surgidas neste debate, como a

reforma agrária baseada no interesse social e sem indenização aos latifundiários

desapropriados. Alguns deputados trabalhistas eram contrários a "prévia" e "justa"

indenização em dinheiro às desapropriações de terras. Mas o Estatuto só foi efetivamente

aprovado em 1963, em plena crise do governo João Goulart.

Os anos 1960 marcam, ainda, a disputa pela hegemonia na condução das

organizações camponesas entre a Igreja, o PCB e o trabalhismo3. À medida que o PCB foi

perdendo influência sobre os trabalhadores do campo, aumentou a presença da Igreja nesses

movimentos. Este fato se deve pela mudança de táticas políticas do próprio PCB, explícitas

na Declaração de 1958, e mencionadas anteriormente.

Em novembro de 1961 realizou-se, em Belo Horizonte, o I Congresso Nacional dos

Trabalhadores Agrícolas. A reunião foi planejada por Francisco Julião, membros da Liga e

pelos dirigentes comunistas de São Paulo e do Paraná. Mas, com a repressão aos comunistas

e a vitória da autocracia burguesa, impõe-se rígida censura às forças políticas de oposição.

Neste sentido, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)

resultou da aliança entre comunistas e católicos (MARTINS, 1981, p. 10). Além disso,

segundo Martins, “A questão agrária, antes dessa época, tinha sua base social nos

arrendatários parceiros e foreiros, tanto no Nordeste quanto no Sudeste, ameaçados de

expulsão da terra, reduzidos a uma relação precária e extorsiva de arrendamento”

(MARTINS, 1981, p. 11). Mas, a política de incentivos fiscais para o desenvolvimento da

Amazônia e outras regiões do País acentuou o interesse das empresas capitalistas pela terra,

intensificando os conflitos, como mostra Martins (1981, 1989), Neidi Esterci (1987) e Otávio

Ianni (1979). Estes conflitos resultam da forma como o capital altera as relações sociais no

campo, amparados nos ideais de desenvolvimento e progresso que, na prática, resultam na

expulsão de posseiros cuja presença era vista como causa do “atraso” ao desenvolvimento

econômico.

A posição de Caio Prado (1978), neste debate, indicava que a causa do atraso deveria

ser buscada na presença do latifúndio e não no baixo padrão técnico da produção dos

trabalhadores rurais. Para este autor, a elevação do nível tecnológico e da produtividade

vinha frequentemente acompanhada de piora das relações de exploração do trabalho. A

elevação das condições de vida das massas somente viria por meio da luta dos trabalhadores,

sejam quais forem suas relações de trabalho e natureza da remuneração que recebiam.

Com relação ao posicionamento da Igreja Católica brasileira é notório que sempre

esteve aliada às oligarquias rurais e às frações da burguesia e apoiou, inclusive, o golpe civil-

militar de 1964, visando afugentar o “perigo comunista” que rondava as manifestações

sociais no campo e na cidade. Suas alianças conservadoras são reveladas em ações como a

“Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Por outro lado, essa instituição também é

transpassada por contradições. O acompanhamento e a vivência junto aos trabalhadores do

campo levam alguns sacerdotes, freiras e bispos a se engajarem na luta em defesa da reforma

agrária e a fazerem críticas à ditadura civil-militar.

Ademais, temos o surgimento junto a setores progressistas da Igreja de um

movimento que ficou conhecido como Teologia da Libertação, com destaque na América

Latina. A experiência do Movimento Educação de Base (MEB), a alfabetização de jovens e

3 Consultar Medeiros (1989) e Martins (1980 e 1981).

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adultos agricultores, conduzidas sob a orientação do educador católico Paulo Freire e a

organização das Comunidades Eclesiais de Base são exemplos da atuação desta fração da

Igreja que marcou a década de 1960.

Para Alegro (1994), as igrejas cristãs expressam uma tentativa de redefinição de

concepções e práticas inscritas na doutrina social cristã. Estas igrejas podem ser consideradas

aparelhos privados em disputa pela hegemonia. Para a autora, naquele momento inicial da

CPT a luta que se instaurava era contra o poder estabelecido por meio do apoio a autonomia

do movimento popular.

Concluindo, no Oeste do Paraná, nos anos 1970, o capital vai alterando o modus

operandi de sua exploração, controlando cada vez mais a produção no campo. Com crise do

Milagre Econômico que gera escassez de crédito, aumento de juros, entre outros fatores, a

situação dos produtores se agrava e eles começam a se organizar. Vão ressurgir vários

movimentos de trabalhadores rurais e pequenos proprietários como os suinocultores e os

desapropriados por barragens que sofreram as mudanças operadas pelo capital no setor

produtivo e da agroindústria.

A pesquisa apontou, até o momento, que a CPT formulou críticas aos governos

militares e aos governos eleitos após a redemocratização, pela forma como lidaram com os

conflitos originados no campo. Visamos compreender quais foram essas críticas e em que

medida elas se direcionaram ao modelo político e econômico vigente no país.

Bibliografia

ALEGRO, Regina Célia. Buscar o Reino de Deus e a sua Justiça - A mediação pedagógica

da Comissão Pastoral da Terra. Maringá, 1994. Dissertação (Mestrado em Fundamentos da

Educação) - Pós-graduação em Educação, UEM.

CASTELANO, Maria José. A proposta de reforma agrária do Partido Comunista Brasileiro

(PCB) desenvolvida nas décadas de 1950 e 1960. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE

HISTÓRIA. Anais. Londrina: ANPUH, 2005. CD-ROM.

CHASIN, J. A miséria brasileira: 1964-1994: do golpe militar à crise social. São Paulo: Ad

Hominem, 2000.

MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite. Emancipação política e libertação

nos movimentos sociais do campo. São Paulo: Hucitec, 1989.

MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política. Petrópolis: Vozes, 1981.

MARTINS, José de Souza. PCB. Vinte anos de Política (1958-1979). São Paulo: Liv.

Ciências Humanas, 1980.

MEDEIROS, Leonilde S. Movimentos Sociais no Campo. Rio de Janeiro: FASE, 1989.

PRADO JR., A Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1978.

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ENTRE A MODERNIDADE E A TRADIÇÃO: A VOZ DESAUTORIZADA DO

IDOSO EM “SANGUE DA AVÓ MANCHANDO A ALCATIFA” E “CHUVA, A

ABENSONHADA” DE MIA COUTO

Neuza Brazil de Castro1

Resumo: Durante décadas de exploração pela colonização europeia e, posteriormente, com

a guerra civil, o povo moçambicano sofreu progressiva perda de sua legitimidade

sociocultural. Tal situação afetou principalmente os idosos que, em muitos casos, têm sido

relegados a um papel secundário na sociedade e assistem ao apagamento de seus valores

culturais por parte das novas gerações. Esse estudo realiza uma reflexão sobre a

representação literária que aborda a função social da ancestralidade na literatura africana.

Essa investigação analisa as personagens tia Tristereza, do conto Chuva, abensonhada e Vó

Carolina do conto Sangue da avó manchando a alcatifa, ambos do escritor Mia Couto. São

tratadas questões que têm relegado os mais velhos a um processo de silenciamento,

desautorização discursiva e desumanização. Para esse trabalho, serão revisados alguns

aportes teóricos de Peter Burke (1992), Carmem L. Tindó Secco (2010), Frantz Fanon

(2008), dentre outros que discorrem sobre questões voltadas a essa temática.

Palavras-chave: África Contemporânea; Narrativa; Mia Couto.

Introdução

A exploração pela colonização europeia que perdurou por décadas e a guerra civil

que dizimou milhares de vítimas, levou o povo moçambicano a enfrentar progressiva perda

de sua legitimidade sociocultural. Tal situação afeta principalmente os velhos que, em

muitos casos, são relegados a um papel secundário na sociedade e assistem ao apagamento

de seus valores culturais.

Com o fim dos conflitos, Moçambique enfrentou o processo de reconstrução do país.

Assim, se inseriu no modelo capitalista no qual boa parte do mundo também se encontra. De

acordo com Frantz Fanon: “A civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao negro

um desvio existencial” (FANON, 2008, p.30).

Na cultura atual, em que as novidades tecnológicas adquirem grande importância, o

idoso é legado à posição de exclusão, posto à margem, sofre tentativas de silenciamento,

pois representa o “velho”, o “ultrapassado” para boa parte da nova geração.

Tradicionalmente, na história oficial, prevalecem os grandes feitos de heróis

grandiosos e seus registros são contados pelo olhar da elite. Raras vezes se tem acesso ao

viés da história contada pela voz das pessoas que viveram e participaram dos fatos como

cidadãos comuns.

Conforme se lê em Jim Sharpe (apud BURKE, 1992):

Tradicionalmente, a história tem sido encarada, desde os tempos clássicos,

como um relato dos feitos dos grandes. O interesse na história social e

econômica mais ampla desenvolveu-se no século dezenove, mas o

principal tema da história continuou sendo a revelação das opiniões

políticas da elite (SHARPE apud BURKE, Peter, 1992, p. 40).

1 Aluna do Mestrado Profissional em Letras - PROFLETRAS- UNIOESTE - campus de Cascavel. Sob

orientação da Profª Drª Denise Scolari Vieira.

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Ou seja, oficialmente pouco ou nada se registra da participação de personagens

comuns nos fatos, esquecendo-se que esses também exercem um papel importante na

construção da história.

Em muitos povos africanos, os anciãos ainda são respeitados como guardiães das

tradições culturais. Por meio deles, aos mais novos são transmitidos saberes, aproximando a

experiência aos novos conhecimentos, preservando assim, as tradições.

A cultura africana é cheia de símbolos fortemente carregados de significados; e

dentre os muitos, há o Sankofa, representado como um pássaro mítico que voa para frente,

tendo a cabeça voltada para trás, carregando no bico um ovo, representando o futuro. Seu

mote é resgatar a memória para continuar fazendo história.

De acordo com a Revista SANKOFA de História da África e de Estudos da Diáspora

Africana:

Sankofa é, assim, uma realização do eu, individual e coletivo. O que quer

que seja que tenha sido perdido, esquecido, renunciado ou privado, pode

ser reclamado, reavivado, preservado ou perpetuado… É parte do

conhecimento dos povos africanos, expressando a busca de sabedoria em

aprender com o passado para entender o presente e moldar o futuro

(SANKOFA, 2013, p. 4).

Esse ideograma tem a conotação de recuperar e valorizar a tradição cultural africana.

Com o provérbio “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”, ou seja, é bom

aprender com o passado, construir o futuro sobre as bases do que se viveu, ou voltar às raízes

e construir sobre elas o desenvolvimento e a prosperidade.

Assim, realizamos uma análise comparativa das personagens Tia Tristereza do conto

“Chuva, a abensonhada” da obra Estórias abensonhadas (2012) e a Vovó Carolina do conto

“Sangue da avó manchando a alcatifa” da obra Cronicando (2003), ambas do escritor Mia

Couto.

Partindo do viés de que as personagens Vó Carolina e Tia Tristereza se constituem

numa denúncia do silenciamento em relação à figura do idoso, este estudo analisa a

representação do velho em tais contos como signo de exclusão e de alteridade.

Em Sangue da avó manchando a alcatifa, a narrativa inicia com alguns ditos

populares e provérbios como é comum nas narrativas orais africanas, numa tentativa de

resgatar a tradição, valorizando os mais velhos, referenciando os problemas causados aos

africanos pelo colonialismo europeu que apagou muitos traços culturais. Frantz Fanon

defende que:

O negro ‘evoluído’, escravo do mito negro, espontâneo, cósmico, a um

dado momento sente que sua raça não o compreende mais. Ou que ele não

a compreende mais […]. Ou, mais raramente, ele quer ser de seu povo. E

é com a raiva nos lábios e a vertigem no coração que ele se joga no grande

buraco negro. Veremos que esta atitude, tão absolutamente bela, rejeita a

atualidade e o devir em nome de um passado místico (FANON, 2008, p.3).

Mia Couto denuncia um país que sofre as consequências da dominação branca,

desprovido em seus direitos. Não só Mia, mas outros escritores anunciam, por metáforas, a

situação marginalizada dos africanos, abordando aspectos como ancestralidade, identidade,

dominação estrangeira, entre outros.

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A idosa em Mia Couto: uma voz que não aceita ser desautorizada

Em “Sangue da avó manchando a alcatifa”, a narrativa é em terceira pessoa; o

narrador observador apresenta o espaço, o tempo e o enredo trazendo a história da avó

Carolina, que se muda do interior de Moçambique para Maputo, numa espécie de fuga da

guerra que assola o seu vilarejo. Ela vem morar na cidade com seus familiares: “Mandaram

vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra” (COUTO, 1993, p.25).

Carolina, de acordo com o Dicionário de Nomes Próprios (2015) significa “mulher

forte do povo”2. Essa escolha representa o resgate da cultura popular, a valorização da

história e da tradição.

Na casa da filha, a avó logo se admira com os luxos, mas depois nota que “as

extravagâncias” são para poucos:

A vovó chegou e logo se admirou dos luxos da família… Nos princípios,

ela muito se orgulhou daquelas riquezas… Mas depois, a velha se foi

duvidando. Afinal, de onde vinham tantas vaidades? E porque razão os

tesouros desta vida não se distribuem pelos todos? (COUTO, 1993, p. 26).

Seus parentes cultuam o consumo – marca do capitalismo – e gostam dessa situação,

não percebem isso criticamente. O conto mostra o desprendimento da família dos valores

tradicionais defendidos pela avó. Essa vida de “luxos” provoca na avó grande decepção:

“Em sua boca, a família era bandeira hasteada bem no alto, onde nem poeira pode trazer

mancha. Mas agora ela se inquietava olhando aquela casa empanturrada de luxos” (COUTO,

2003, p.26).

As marcas das mudanças nos valores sociais moçambicanos estão presentes em todo

o texto, mas é evidente o apagamento do papel social dos velhos. Para os parentes, a avó era

quase um incômodo, diferentemente do tratamento dado aos mais velhos no passado.

A experiência dos mais velhos aparece como algo ultrapassado. Os costumes vividos

pela avó estão se dissipando e os jovens estão incorporando novos modos de vida. A avó

gostaria de contar histórias, como era costume tradicional, mas nesta nova situação da

modernidade: parentes focados na TV, sentados no sofá da sala, mostra o desmonte dos

valores: “Filhos e netos se fechavam numa roda, assistindo vídeo. Quase lhe vinha um

sentimento doce, a memória da fogueira arredondando os corações. E lhe subia uma vontade

de contar estórias. Mas ninguém lhe escutava” (COUTO, 1993, p. 27).

Essas constatações provocam-lhe saudades de sua vida na aldeia. Surge o desejo de

voltar para sua casa, no interior, fato que leva a família a uma tentativa de agradar a avó com

objetos materiais:

Cansada de tanta coisa que não podia explicar, ela pediu para regressar.

Voltava para o lugar onde pertencia, vizinha da ausência. Então, os filhos

lhe ofereceram roupas bonitas, sapatos de muito tacão e até um par de

óculos para corrigir as atenções da idosa senhora. Carolina cedeu à

tentação. Bonitou-se. Pela primeira vez saiu a ver a cidade (COUTO, 1993,

p. 27).

2 Significado de Carolina: Significa “mulher do povo”, “mulher doce”. Há ainda algumas fontes que

relacionam Carolina com a união dos termos germânicos karl “homem”, e lind “doce”, significando “mulher

doce”.

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Mas ao caminhar pelas ruas, se defronta com as desigualdades em que vive Maputo:

“Logo no passeio, ela viu os meninos farrapudos, a miséria mendigando. Quantas mãos se

lhe estenderiam... A avó sentou-se na esquina, tirou os óculos, esfregou os olhos. Chorava?”

(COUTO, 1993, p. 27). Assim, toma consciência das transformações sociais de seu povo,

chora com essa situação e revoltada, se veste com trajes típicos, as capulanas: “Regressada

a casa, ela despiu as roupas, atirou no chão os enfeites. Da mala de cartão retirou as

consagradas capulanas, cobriu o cabelo com o lenço estampado” (COUTO, 1993, p. 27). Sua

atitude representa uma ação de resistência à cultura capitalista que se impõe a todos.

A constatação dos problemas da guerra a leva a tomar uma atitude fatídica: “De

súbito, sem que ninguém pudesse evitar, a velha atirou sua pesada bengala de encontro ao

aparelho de televisão... os vidros tintilaram na alcatifa. Os bandidos se desligaram, ficou um

fumo retangular. – Matei-lhes, satanhocos gritou a avó” (COUTO, 1993, p.27).

Com isso, a avó quer eliminar os responsáveis pelos problemas que a afetam. E diante

da reação dos familiares, especialmente do genro que a ameaça, ela reage, com autoridade:

“– Tu cala-te. Não sentes vergonha? Há bandidos a passear aqui na tua sala e tu não fazes

nada. Incrustada em espanto, a família encarava a anciã” (COUTO, 1993:28). Sugere que os

responsáveis pelas coisas negativas na sociedade moçambicana estão circulando livremente

dentro do país (sua casa), e ninguém se importa nem reage, apenas a avó, compete a ela –

aos mais velhos – reagir e lutar contra isso.

Com essa atitude, Carolina sente que livrou sua família dos males da nova sociedade;

varre os cacos colocando-os em um saco plástico: “– Estão aqui todos, disse. E entregou o

saco ao genro. Do plástico pingam gotas de sangue. Era sangue da avó, gotas antiquíssimas.

Tombaram no tapete, em vermelha acusação” (COUTO, 2003, p. 28). Esse sangue não é um

sangue qualquer e se configura como a representação da morte dos antepassados reclamando

reconhecimento, respeito, honra.

Na manha seguinte, a avó despachou o seu regresso. Voltou à sua terra,

nem dela se soube mais. Na cidade, a família se recompôs sem demora.

Compraram um novo aparelho de televisão, até que o anterior já nem era

compatível (COUTO, 2013, p.28).

Após o incidente, a família segue sua vida, sua rotina e compra uma tevê nova. A avó

volta ao interior, deixando marcada seu repúdio à cultura de fora que “deturpa” os valores

historicamente defendidos. Esse retorno pode ser visto como busca da própria identidade e

remete ao sentido de Sankofa: “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”,

sugerindo que a superação do quadro social deteriorado pode se dar por meio da retomada

dos valores culturais.

E o sangue impossível de ser limpo é uma mancha definitiva na vida das pessoas:

“Tentaram lavar desconseguiram. Tentaram tirar os tapetes impossível. A mancha colara-se

ao soalho com tal sofreguidão que só mesmo arrancando o chão. Chamaram o parecer do

feiticeiro” (COUTO, 1993, p.28).

Uma marca na alcatifa que atinge a sala, toda a casa. Essa imagem remete

metaforicamente às terras moçambicanas, marcadas por mortes. O fato de chamar o feiticeiro

simboliza que os novos ainda mantêm ligação à cultura tradicional, restam ainda, certos

valores que podem manter viva a cultura tradicional, pois os feiticeiros são um dos símbolos

da África tradicional: “O homem […] disse que aquele sangue não terminava, crescia com

os tempos, transitando de gota para o rio, de rio para oceano. Aquela mancha não podia,

afinal, resultar de pessoa única. Era sangue da terra, soberano e irrevogável como a própria

vida” (COUTO, 1993, p.28).

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A narrativa deixa aberta a reflexão das dimensões atingidas pela imposição de uma

cultura sobre um povo e sobre as consequências da modernidade na cultura moçambicana.

Esse sangue cresce e toma proporções gigantescas que afeta todo o povo. A história está

manchada pelo sangue dos antepassados.

Comparado as narrativas “Sangue da avó manchando a alcatifa” (COUTO, 2003) e

“Chuva, a abensonhada” (COUTO, 2012) percebemos a tentativa do autor em revelar

ficcionalmente a tentativa do povo moçambicano na manutenção de sua história e

reconstrução do país, pois findada a guerra, permaneceram as dificuldades e os problemas

dos anos de confrontos. Ambos os textos se referem às vozes dos avós e às formas de

silenciamento e desautorização sentidos nos discursos da nova geração.

Em “Chuva, a abensonhada” também se percebe uma busca de resgate das tradições,

de reflexão sobre a situação social de miséria, de resistência cultural. A resistência advém,

sobretudo, dos idosos, concebidos como detentores da memória cultural, representados nos

dois contos pelas idosas avó Carolina e tia Tristereza, que tentam incutir aos mais novos os

valores dos antepassados.

Aqui a avó conversa com seu interlocutor anônimo transmitindo-lhe valores e crenças

da tradição, entendendo a chuva como bênção dos espíritos. E diante da resistência do moço,

ela insiste em fazê-lo crer no seu modo de ver as coisas.

A palavra “abensonhada” constitui uma gama de significados; unindo abençoada

com sonhada remete à ideia de chuva como bênção, como graça dos espíritos, a responsável

pelo reviver e renascer de tudo; e sonhada, desejada por anos, causando saudade de ouvir o

“molhado tintintinar” da chuva, de sentir a “terra perfumegante”.

O espaço é o interior da casa e a ação se dá no pensamento do personagem masculino.

As informações são apresentadas pelo diálogo entre ele e a idosa tendo como referência a

chuva que cai após longo período de estiagem: “Estou sentado junto da janela olhando a

chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintinar do chuvisco... Há

quantos anos não chovia assim?” (COUTO, 2012, p.43).

O homem apresenta animosidade pela chuva que voltou a molhar a terra esturricada

pela estiagem trazendo esperança de recomeço. Em Moçambique, os anos de colonização e

de guerra civil massacraram milhares de pessoas, mutilando o país. E findadas as guerras, a

esperança renasce, e a chuva rega os novos sonhos.

Tia Tristereza concebe a chuva como elemento de purificação e renovação como os

antigos. Para ela, a chuva é sublime: “Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima,

mas recado dos espíritos”. Para o próprio narrador, a chuva é especial: “Agora, a chuva cai,

cantarosa, abençoada” (COUTO, 2012, p.43).

As analogias do nome Tristereza remetem à tristeza em decorrência das guerras, da

seca e problemas que a miséria traz e que estão tão impregnadas na vida das pessoas que

fazem parte de seus nomes, de sua identidade, enfim, de suas vidas.

A Tia Tristereza apropria-se de uma linguagem que recria as narrativas orais,

remetendo às crenças de seu povo numa discussão implícita dos valores ancestrais: “Sim,

agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos os deuses nos castigaram com a

seca… A chuva está a limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos” (p.44 -45). Para ela

a chuva é bênção dos deuses para recomeçar a vida. A referência aos antepassados sugere o

contexto do pós-guerra. Evidenciamos que o narrador – jovem – discorda da idosa ante suas

explicações para a chuva que cai. Notamos a resistência dos mais novos ante a sabedoria dos

ancestrais, que se baseavam nos cerimoniais e nos conhecimentos empíricos para explicar

os fenômenos da natureza e das relações sociais: “ – Nossa terra estava cheia de sangue.

Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei […]. Mas nem agora, desculpe o favor,

nem agora o senhor dá vez a esse seu fato?” (COUTO, 2012, p.43-45).

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A tia busca convencer o rapaz de seus saberes e suas crenças em relação ao fato de

estar chovendo após a guerra, mas ele desconfia e desacredita das explicações da idosa: “Mas

dentro de mim persiste uma desconfiança […] será que à calamidade do estio se seguirá a

punição das cheias? […] Não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? […]

Não acredita, senhor? Sim, finjo acreditar” (COUTO, 1994, p. 44-45).

Aos poucos, o moço vai deixando-se convencer. A idosa mostra ao moço “outros

entendimentos” que sua “sabedoria não pode tocar” e por fim, o jovem cede às insistências

da idosa e ambos saem na chuva para receberem as bênçãos e enfrentarem a nova vida que

se apresenta: “Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado,

saímos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de

um infinito brinquedo” (COUTO, 2012, p. 46).

Semelhante ao primeiro conto, a idosa aqui carrega a voz da sabedoria e, portanto,

da memória viva e revivida pela comunidade local.

Considerações finais

Os contos analisados neste estudo estão marcados por registros da trajetória do povo

moçambicano. No primeiro, a desautorização e o silenciamento são mais evidentes entre os

personagens. Já no segundo, as vozes da cultura tradicional aparecem de forma mais

explícita e sem tanta resistência pelo jovem. Em ambos temos personagens com o mesmo

perfil: senhoras idosas tentando reforçar os valores culturais tradicionais ante a resistência

dos mais novos, pensando o modo como os idosos se relacionam com as transformações do

presente, perspectivas de futuro e o resgate da identidade.

Ficcionalmente, representam o renascer da esperança em novos tempos e a confiança

na reconstrução da identidade do povo moçambicano. Nessa perspectiva, passado e futuro

se cruzam, sugerindo que a construção de uma identidade futura parte de um diálogo com o

passado.

Referências

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UNESP, 1992.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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<http://www.dicio.com.br>. Acesso em 12 de agosto de 2015.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas; tradução de Renato da Silveira. Salvador:

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SANKOFA - Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana/Núcleo de

Estudos de África, Colonialidade e Cultura Política – Número XII, Ano VI, Dezembro. São

Paulo, NEACP, 2013.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó; SALGADO, Maria Teresa; JORGE, Sílvio Renato. Pensando

África: Literatura, arte, cultura e ensino - III Encontro de Professores de Literaturas

Africanas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010.

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“REVOLUÇÃO’ VERSUS “TRANSIÇÃO”: UM BREVE DEBATE ACERCA DO 25

DE ABRIL

Pamela Peres Cabreira1

O capitalismo americano pode muito bem “digerir” uma transformação

económica e social profunda em Portugal. No fundo, pouco importa o

número de nacionalizações ou o modo de gestão das empresas (Mário

Soares, 1976, p. 70).

Resumo: Com a Revolução dos Cravos, iniciada em 25 de Abril de 1974, Portugal passaria

por uma efervescente fase de transformações em seu seio econômico, político e social, em

busca por uma via socialista de sociedade. No entanto, o que se percebe com o período de

“transição” é uma consolidação de um plano voltado às medidas neoliberais buscando a

perspectiva de uma democracia no molde burguês capitalista de Estado. Interessa-nos,

portanto, apresentar brevemente uma caracterização deste Estado e como as décadas

seguintes lidaram, e ainda lidam, com o revisionismo do 25 de Abril.

Palavras-chave: Portugal; PCP; Revolução dos Cravos.

O Estado democrático burguês em Portugal

Portugal protagonizou no século XX o período mais longo de um regime autoritário

no Ocidente. Desde 1926, o Estado Novo português abriria suas asas sobre um país

relativamente – comparado ao restante da Europa - atrasado econômica e culturalmente,

contribuindo para uma mais fácil manutenção do regime. Mesmo após a chegada ao poder

por Marcello Caetano em 1968, com a frágil saúde de Oliveira Salazar, Portugal ainda se

manteria sob um regime anti-“democrático”. Apesar disso, fez-se surpresa as notícias de

uma Revolução contra o regime. Segundo Rosas, a “[…] antena da CIA em Lisboa estaria

desativada” (2004, p.129).

Em suma, a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril, viria a marcar uma forte ruptura

com um passado autoritário, originando-se da insatisfação de parte do exército com a guerra

colonial e com a população civil, fatigada do longo período por que passava. A Revolução

traz consigo mudanças. A possibilidade de reorganização política, econômica e educacional,

fica a cargo - o que aqui se considera como a primeira etapa da revolução - do Movimento

das Forças Armadas, com General Spínola e a representatividade partidária legalizada, além

dos diversos movimentos autônomos de trabalhadores, operários, estudantes. Como salienta

Poulantzas,

[…] no contexto destes regimes ditatoriais2, foi-se, progressivamente,

destacando a convergência conjuntural e tática dos interesses da burguesia

interna de um lado, e da classe operária e das massas populares de outro,

tendo por objetivo a substituição destes regimes por regimes

‘democráticos’ […] Em nehum [sic] sentido e em nenhum momento

1 Licenciada em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; mestranda e bolsista CAPES no

Programa de Pós-Graduação em História pela mesma Universidade na linha de pesquisa “Relações de Poder,

Trabalho e Práticas Culturais”. 2 O autor refere-se aqui a Portugal, Grécia e Espanha.

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significou uma convergência e uma compreensão de tal ordem que pudesse

implicar, do lado das burguesias internas, num esboço de processo real de

independência nacional profundas reformas democráticas e sociais, mesmo

que fossem apenas do tipo antimonopolista (POULANTZAS, 1976, p.47-

48).

A revolução portuguesa foi uma revolução solitária. A articulação internacional do

Partido Comunista Português era fraca por seus próprios conflitos e contradições internas

além dos longos anos de prisões, luta e clandestinidade. Os movimentos sociais, e o pouco

segmento operário organizado, fatigavam ao longo de quase meio século de repressão.

Apenas a obsoletalidade da guerra colonial que corroíam a economia e o já falho sistema

político que poderia tocar de forma tão forte uma parcela do exército para que se revoltassem

contrariamente e, assim, o MFA toma frente das organizações de tomada do poder. Tomada

na medida em que o apoio popular que se seguiu não era planejado, que os planos do que

seria após o 25 de abril, não eram claros. A Revolução se deu a partir do 25 de Abril, de fato

e, não houve, “um movimento frontal de massas contra o regime” (Idem, p.48). No

complicado processo que se seguiu, Poulantzas aponta que “[…] não houve articulação entre

o processo de democratização, o de transição para o socialismo e o de libertação nacional

(Idem, p.49, grifo do autor).

Aponta-se que durante os 19 meses de Revolução – corridos com seis governos

provisórios -, até a contrarrevolução de 25 de novembro de 1975, três grandes grupos eram

dominantes na cena política de Portugal: pela direita o Partido Socialista, apoiado pelos

partidos de centro-direita (PPD) e de direita (CDS) onde ganha maioria na Constituinte eleita

em 25 de abril de 1975; pela esquerda o Governo Provisório far-se-á mais presente nas lutas

sociais em conjunto com o MFA e o apoio do PCP; por fim, os movimentos sociais bem

como os de trabalhadores e operários se organizam em face de tomadas de terra ao sul de

Portugal, integração de coletivos sociais e mobilizações autônomas. Ressalta-se que essas

três partículas integrantes do conflituoso cenário revolucionário, justamente por colidirem

quanto às suas expectativas, não conseguiram criar e manejar o sistema político e econômico

em vias que a todos contentassem. A guerra colonial e a discussão acerca do processo de

descolonização no ultramar muito colaboraram para este cenário (VARELA, 2012 (a),

p.404-420).

Se entendermos que o Estado se caracteriza, para além de outras especificidades,

como um organismo de coerção, cabe destacar que durante os dezenove meses que

caracterizam o período revolucionário, não houve um Estado formal em Portugal, uma vez

que os aparelhos repressivos do Estado foram extintos logo após o 25 de abril. Já no período

contrarrevolucionário, para além de suas características pontuais, pode-se entender

teoricamente as mazelas que corromperão a possibilidade de uma vitória da esquerda.

Poulantzas afirma que a heterogeneidade, a desunião, a fraqueza e a ambiguidade político-

ideológica presentes na burguesia nacional são fatores integrantes desta condição

desestabilizadora (1976, p.48). A partir desta desorganização, as massas populares

determinam as contradições internas dentro deste mecanismo nas mais variadas faces e, por

isso, desarticulam um movimento possível de desestabilização por parte das classes

dominantes, movimento que não é possível anteriormente à queda do regime, uma vez que

isolamento da sociedade portuguesa “[…] teria, de certa forma, impedido que as

contradições de classe atravessassem o aparelho de Estado” (Idem, p.63).

Para que esta relação se mostrasse possível, uma integração das classes sociais e o

Estado, a teoria burguesa do Estado coisa ou Estado sujeito, deveria ser superada (Idem,

p.64). A partir do momento em que o Estado é tratado de forma manipulável, ou visto como

um “instrumento” de utilidade aos interesses das classes dominantes, este perde seu sentido

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fundamentador das relações sociais e de sua capacidade organizativa dentro de seus próprios

órgãos. Neste sentido, o Estado não é “[…] só sujeito ou só coisa, mas, por natureza e da

mesma maneira que o ‘capital’, o Estado é uma relação, ou melhor, a condensação da relação

de forças entre as classes tal como ela se manifesta de forma específica, no seio dele próprio”

(Idem, p.65, grifos do autor). Neste sentido, a partir do momento que concebemos que o

Estado é constituído por contradições de classes, essas mesmas contradições se

desenvolverão dentro de seu próprio meio, de sua própria “ossatura”, resultando em uma

posição, em uma resposta às medidas políticas, econômicas e sociais que a elas se impõe.

Sobretudo no período revolucionário, estas contradições percorrerão cada extremo e cada

fissura do Estado.

A partir do exposto temos então, em 1976, a estabilização de um regime democrático

liberal - visto que na década de 70, a inserção internacional e o processo de dependência do

capital estrangeiro já mostravam suas faces - a formação de um Estado (democrático

burguês) capitalista nos moldes internacionais e liberais, onde dava seus primeiros passos.

A nova Constituição, aprovada em Assembleia em 25 de Abril de 1976, apresentará em sua

forma uma “conquista, na consagração da transição para o socialismo”, busca prever a

nacionalização dos seus principais meios de produção e assegura a participação do

Movimento das Forças Armadas no exercício do poder político, através do então formado

conselho da Revolução (que será extinto em 1982). A Assembleia Constituinte também

consagrará um parlamento monocameral, trazendo consigo, entre outras afirmativas, o

sufrágio universal e a liberdade de organização partidária3. Apesar de não caber nestas

páginas uma discussão mais profunda sobre as conquistas e disposições desta Constituição

com base na teoria marxista de política, mostra-se claro que o interesse do Partido Socialista,

através de Mário Soares, atravessou os mais profundos espaços da burguesia nacional em

prol de uma habilidade já demonstrada em 1975, a de conquistar. Conquistou o poder através

de um golpe; conquistou os votos e o apoio das classes burguesas bem como dos partidos de

direita para sua eleição; conquistou a possibilidade de camuflar os seus ideais burgueses

capitalistas neoliberais através da Constituição de 76, invocando um socialismo que nunca

se fez presente após sua aprovação. A inserção de direitos como o sufrágio ou a instituição

de agentes de esquerda nos mais diversos aparelhos representativos do Estado de nada

resolverão, e em Portugal isso mostrou-se muito claro, se ele não for, em sua essência,

destruído ou substituído por uma nova forma organizativa de sociedade.

Com a instalação de um sistema político democrático burguês, pautado no princípio

do voto popular, também irá acrescentar a este modelo uma economia em acelerado processo

de dependentização. Obviamente não é o Estado em “transição para o socialismo” como se

fez afirmar a Constituição, Neste caso, como bem ressalta Poulantzas,

[…] dada a conjuntura de derrubada do regime, as destituições e

transformações permaneceram nos limites de uma “continuidade” do

Estado. Não somente não houve transformação democrática do tipo aliança

antimonopolista como a ruptura democrática foi feita sob a direção da

burguesia (Idem, p.77).

Pode-se dizer que o Estado então formado neste período, e que ainda irá se

transformar ao longo das décadas seguintes, apesar de garantir estes dois direitos

fundamentais dentro de um sistema democrático, buscará sua legitimidade entre as diferentes

classes sociais, favorecendo ainda as classes dominantes. Além disso, marcará sua economia

3 Constituição Portuguesa aprovada em 2 de Abril de 1976.

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nacional com uma gestão que visa uma regulação sempre a curto prazo e a uma possibilidade

de inserção no mercado internacional, mantendo sua origem burguesa: a manutenção dos

interesses destes agentes externos de acordo com a exploração e a manipulação da produção

interna.

O revisionismo histórico sobre a Revolução dos Cravos: a categorização de sentido

frente aos interesses dominantes

A apropriação do discurso em torno do 25 de Abril é atualmente uma mobilização

política de recuperação e ressignificação de valores, visto o interesse dessa apropriação

diante da crise que avassala o país e afunda sua economia, nada mais sábio que trazer para

o campo da mídia e do cenário político o simbolismo imagético que a data representa para a

maioria da população. Liberdade e democracia ganham o discurso. A revolução é, então,

vista como um “delírio coletivo” e a tomada contra-revolucionária na instalação do

capitalismo liberal que se desencadeia pela direita socialista no país, ganha os pontos pela

democracia representativa. Para Cruzeiro, no panorama português, a memória coletiva

construída a partir dos alicerces de uma seletividade de memórias e de uma análise

revisionista de análise do presente histórico, prejudica e favorece um revisionismo pejorativo

de significados quanto ao evento (2014, p.27). As várias formas de organização da memória

coletiva possuem, no entanto, “[…] um mesmo princípio unificador preside à sua

organização, impondo uma leitura hegemónica dos acontecimentos históricos englobados na

designação genérica de revolução” (Idem, p.28). Logo, para a autora, “[…] essa leitura

hegemónica veicula versões no mínimo simplistas e redutoras, onde não cabe uma infinidade

de memórias individuais discordantes” (Idem, p.28). A partir desta leitura, e da crítica a este

revisionismo pautado na memória coletiva construída a posteriori, o país teria se

democratizado automaticamente, ou, naturalmente. Diante de uma revolução pacífica,

unificadora e consensual, os valores positivos para uma democracia liberal estavam a

caminho, livrando-se dos esquerdistas mal-intencionados e instalando uma democracia

parlamentar (Idem, p.29-30).

Portanto, a data seria marcada ao longo dos anos subsequentes ora como uma

revolução/ruptura no sentido positivo de novos referenciais para uma sociedade devastada,

ora no sentido de ter sido apenas um contributo para a já prevista política marcelista e, por

muitas vezes, vista como ato de baderna e desordem dentro de uma sociedade que

“caminhava com seus próprios pés” para a democracia (FREIRE, 2012, p.135-138). O

desenvolvimento do revisionismo histórico apresenta-se como um modelo imperativo dentro

da Revolução dos Cravos, onde esta tendência busca “[…] relativizar regimes autoritários,

violadores dos direitos humanos, e, por outro lado, condenar a tradição revolucionária”

(SOUTELO, 2014, p.100). Buscando uma direção no ato de conferir sentido à memória do

passado, de acordo com as identidades, necessidades e visões políticas do presente, o

revisionismo português terá seu ápice, sobretudo, nas comemorações de 25 de abril de 1994.

Com a instalação do regime parlamentarista em 1976, Portugal caminharia através

das vias democráticas, tendência em ascensão nos países europeus. A utilização do discurso

público sobre a Revolução ocorreria e se transformaria ao longo dos anos subsequentes.

Desta forma, “para a direita, a homogeneização deriva do desejo de minimizar a história da

revolução e até negar sua ocorrência” (MAXWELL, 2006, p.16-17), como constatado

anteriormente. Logo, “a imagem da revolução evidentemente é parte indissociável da luta

pela memória histórica, processo que, em si, pode envolver tanto afirmação quanto negação”

(Idem, p.17).

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Durante praticamente toda a década de 1980, pode-se destacar um importante

processo de valorização e enaltecimento da Revolução como importante marco histórico no

processo de mudança de sistema político no país, destacando-se as conquistas baseadas na

pacificidade do ato. A inserção de Portugal na Comunidade Europeia, por sua vez, contribui

para mudanças de referência na redefinição de identidade da sociedade portuguesa pós 74

(SOLTELO, p.121). A década seria amplamente marcada pela disputa ideológica em torno

da revisão da Constituição, em busca da retirada dos conceitos, visões e componentes

ideológicos de cunha marxista, ampliando o debate do que teria significado a Revolução. A

década seria significantemente atingida pelos ideais neoliberais e pela política fundada na

União Europeia. Pode-se salientar que com o predomínio de governos direitistas, os debates

acerca das ditaduras ocorridas ao longo do século acabam por marginalizar-se, mas não se

extinguir. Este passado delinquente, nos moldes pós-modernos de análise histórica, já não

importava.

Apesar de não haver contestações políticas sobre o 25 de Abril, uma certa crise de

identidade paira sobre os meios de comunicação conservadores, colocando em destaque a

identidade do português como o desbravador dos mares, enaltecendo as vias de conseguir

superar as adversidades na Europa do início do século (Idem, p.139). Como aponta Soutelo,

com o 12º aniversário da Revolução, muitos ativistas, civis e políticos ligados diretamente à

Revolução colocaram-se contra as manifestações, onde a identidade portuguesa não se

deformou com a Revolução, mas sim com o fascismo imperativo em quase meio século de

repressão (Idem, p.139).

O ano de 1989 mostra-se emblemático na questão da recuperação da memória acerca

do 25 de Abril: com a queda do muro de Berlim, evento que causou impacto mundial, as

manifestações de outrora que visavam a democracia revolucionária, como ocorre em

Portugal na década de 70, torna-se foco de revisões. O combate pela memória mostrar-se-á

muito presente no sentido de resgatar as origens da democracia portuguesa e apontar seus

“fundadores”. A partir disso, a orientação de identidade torna-se mais clara na medida de

buscar as vias democráticas impostas pelos partidos ditos de direita, então governantes

majoritários neste período.

Por fim, o período a ser analisado que torna marcante a causa do revisionismo

português e que até os dias de hoje são colocadas em pautas, empregam suas raízes na década

de 1990. Com o 30º (cujo slogan é “Abril é Evolução”) aniversário da revolução e já com os

moldes políticos impregnados com a inserção do país na União Europeia, o 25 de Abril é,

enfim, forjado como um acontecimento de “evolução”, apagando seu sentido revolucionário

e único. Como aponta Cruzeiro, “ao omitir uma simples letra, apaga-se o passado

revolucionário, celebrando o presente neo-conservador e neo-liberal, numa complexa

operação de marketing, situada algures entre a amnésia e a mentira” (CRUZEIRO, p.28).

O continuísmo é então declarado e sublinhado, deixando à margem e, literalmente,

buscando apagar uma democracia que nasce a partir de uma ruptura, que transforma e evolui.

A busca, ainda presente, de alterar o termo “revolução” por “transição” faz-se constante, na

medida de camuflar uma ruptura brusca com um passado pérfido anterior. Como aponta

Varela, “aquilo que nós discutimos é que o conceito de transição para uma democracia é um

conceito absolutamente errado” (VARELA, 2012(b), p.22). “Quando há um processo

revolucionário nós não sabemos se ele vai acabar na transição para a democracia ou em outra

coisa qualquer e, portanto, os historiadores não têm de dar conceitos sobre o que vai

acontecer, têm de analisar o que aconteceu!” (Idem). Em uma academia repleta de

contradições, a historiografia portuguesa sobre o tema mostra-se cada vez mais fértil de

pesquisa, em busca de compreender estas mesmas contradições que imperam ao longo destes

50 anos de políticas desmedidas e crescente decadência da economia do país. Em sua

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inconformidão compartilhada, Cruzeiro destaca que a “amnésia e mentira parecem ser afinal

os dois pólos que marcam a forma como o regime democrático lida com esse trauma

silencioso que é o 25 de Abril. Mesmo que o comemore, ou justamente porque o

comemora… para mais facilmente o esquecer!” (2014, p.28).

Referências bibliográficas

CRUZEIRO, Maria Manuela. “O 25 de Abril de 1974: Memória da Revolução e Revolução

da Memória”. Revista Lusófona de Estudos Culturais, v. 2, n. 1, 2014.

FREIRE, Américo Oscar Guichard. MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. “Lembrar

abril: as historiografias brasileira e portuguesa e o problema da transição para a democracia”.

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repercussão na imprensa internacional e memória(s). Lisboa: Instituto de História

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VARELA, Raquel. “Um, dois, três…”: o Movimento das Forças Armadas na Revolução dos

Cravos – do prestígio à crise. Revista brasileira de História, v.32, n.63, São Paulo, 2012(a).

______, Raquel. História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-75. Lisboa: Editora

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O CINEMA HOLLYWOODIANO E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

RETRATADA NO FILME “NUNCA MAIS”1

Pedro Henrique Miranda2

Resumo: O objetivo desse texto é apresentar uma breve análise do modo como o cinema

hollywoodiano aborda a questão da violência contra as mulheres em suas produções

cinematográficas. Para a pesquisa, foi utilizado o filme Nunca Mais - (Enough), dirigido por

Michael Apted, lançado em 2002 nos Estados Unidos. O filme conta a história de Slim

(Jenifer Lopez), uma garçonete que conhece Mitch (Bill Campbell), um empresário

milionário e que aparentemente demonstra ser gentil e carinhoso. Eles se casam, têm uma

filha e vivem uma vida confortável. Entretanto, sofrendo cada vez mais abusos, Slim percebe

que seu marido não tem nada de perfeito. Ela procura pela ajuda da polícia e de advogados

e descobre que não irá receber ajuda do Estado. Cansada, decide ir embora, juntamente com

sua filha, para um lugar onde possa recomeçar sua vida, porém Mitch parte em sua busca e

volta a ameaçá-la. No filme somos apresentados a diversas situações de violência de gênero

inseridos no cotidiano da protagonista, seja no âmbito privado/familiar ou social; traumas

psicológicos e físicos sofridos no decorrer da narrativa e as possíveis alternativas

encontradas para sair dessas situações trágicas. O presente trabalho pretende, ainda, debater

a importância do cinema como prática social e a construção de representações das figuras

feminina e masculina no filme elencado. A análise inicial do filme trata-se de um resultado

parcial da pesquisa intitulada “Gênero e Cinema: o retrato da violência contra a mulher em

produções hollywoodianas” que está sendo desenvolvido no Programa de Pós-graduação em

História da UNIOESTE.

Palavras-chave: Cinema; Hollywood; Violência de Gênero.

O filme “Enough – Nunca Mais” é uma produção hollywoodiana lançada no ano de

2002, teve um orçamento de 38 milhões de dólares, arrecadou somente nos Estados Unidos

aproximadamente 40 milhões de dólares e no resto do mundo mais 50 milhões.3 O filme

conta a história de Slim (Jenifer Lopez), uma garçonete que conhece Mitch (Bill Campbell),

um empresário milionário e que aparentemente demonstra ser gentil e carinhoso. Eles se

casam, têm uma filha e vivem uma vida confortável. Entretanto, sofrendo cada vez mais

abusos, Slim percebe que seu marido não tem nada de perfeito.

Hollywood é um distrito da cidade de Las Vegas, nos Estados Unidos. Desde a

década de 1920 tem se destacado no mundo do cinema, atualmente é responsável pelo centro

das titânicas produções cinematográficas americanas e que levam todos os anos milhões de

pessoas as salas de cinema em todo o mundo.

O Cinema surgiu há mais de um século atrás na França, criação dos irmãos Lumiére

inicialmente como forma de entretenimento para o público. Posteriormente, ao levarem ao

1 NUNCA, mais (Enough). Direção de Michael Apdet. Roteiro de Nicholas Kazan. Produzido por Rob Cowan

e Irwin Winkler. Dist. Columbia Pictures. EUA, 2002. 1 DVD (116 min). DVD, son., colorido. 2 Aluno do Programa de Pós Graduação Unioeste. Bolsista vinculado à Coordenação de aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES). Orientadora: Profª. Dr. Ivonete Pereira. E-mail:

<[email protected]>. 3 Informações disponíveis no site: <http://www.imdb.com/title/tt0278435/?ref_=nv_sr_2>. Acessado em

21/07/2015.

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público parisiense filmagens de diferentes lugares do mundo, para que conhecessem

diferentes culturas, as quais talvez nunca pudessem conhecer de outra forma, o cinema

recebe uma função documental, a qual só seria reconhecida pela História décadas mais tarde.

O cinema foi se tornando fonte de estudo para historiadores que o interpretavam de diferentes

formas.

Nos anos 70, o autor Marc Ferro afirmou que o cinema documentário e o de ficção

devem fazer uma análise cultural e social da sociedade na qual é produzido. Segundo esse

autor, os filmes de ficção apresentam uma outra forma de analisar o documento histórico:

Evocando o imaginário, presente para ele em qualquer gênero fílmico,

como uma das forças dirigentes da atividade humana, procura demonstrar

como é através da forma que o filme atua no terreno da imaginação e se

estabelece a relação entre autor/tema/espectador. Nesse sentido, “o

imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o

cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da

história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos”

(KORNIS, 1992, p. 243).

Os filmes, sejam eles de ficção, ação ou documentário, tornam possível aos

historiadores realizar uma análise através de uma série de perguntas à fonte: Quais os

elementos compõem a temática apresentada? Tais elementos possuem alguma mensagem

para o telespectador? Quem são os produtores? como se será a exibição, recepção e crítica

do filme? Para Kornis portanto, o filme não é somente um produto comercial, mas um agente

histórico: “Ferro demonstra como os filmes, através de uma representação, podem servir à

doutrinação e ou a glorificação” (KORNIS, 1992, p. 244).

O autor Marco Napolitano ainda coloca o seguinte: “Marc Ferro diz que o cinema

como agente da história ou exemplo de contra análise da sociedade, implica na crença de

que a ficção, o documentário e o noticiário intervêm na sociedade como testemunho indireto

de processos sócio históricos” (NAPOLITANO, 2005, p. 242).

Algumas das produções cinematográficas hollywoodianas buscam tratar de assuntos

que refletem os problemas da sociedade ou de assuntos e situações que estão inseridos no

cotidiano das pessoas, é uma ferramenta utilizada para aproximar o filme com o público alvo

que o assiste, seja este um público masculino (a grande maioria) ou o público feminino.

Segundo Renata Kabke: “para Adelam (2005) ‘O cinema, como toda produção cultural,

reflete práticas e significados sociais ao mesmo tempo em que os constrói’ enquanto que

para Kehl (1996) o cinema hollywoodiano é, especificamente, ‘um cinema cheio de

intenções pedagógicas e expansionistas’” (PINHEIRO, Renata K., 2010, p.02).

A violência contra a mulher não ocorre apenas em um determinado espaço social, ela

não escolhe a classe social, raça ou idade. Ao entrar no site de pesquisa Google e digitar

"violência contra a mulher" ou "violência doméstica" são encontrados, aproximadamente,

645.000 (seiscentos e quarenta e cinco mil) resultados, um número extremamente

alarmante4.

Os números mundiais da violência contra as mulheres são alarmantes.

Dados extraídos só dos casos denunciados nas delegacias ou em demanda

de tratamento em hospitais, pois há os fatos silenciados porque as

mulheres, sob o domínio do medo, calam a agressão, o estupro, para não

4 Disponível em: <https://www.google.com.br/?gws_rd=ssl#q=violencia+contra+a+mulher>. Acessado no dia

15/07/2015

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serem mal tratadas e/ ou prevendo outras ameaças de morte de seus

agressores. (ÁLVARES, Luzia Miranda, p. 6)

Além da violência sofrida fisicamente e psicologicamente dentro de suas casas, pelos

seus companheiros, na grande maioria das vezes, as mulheres agredidas precisam lidar com

o preconceito de uma sociedade patriarcal e machista.

A narrativa do filme é composto por dez atos5, são eles: Ato I “Hey”; II “How They

Met”; III “To have and to Hold”; IV “Conquering Hero”; V “Our Happy Family”; VI “More

Than Enough”; VII “Get Out”; VIII “You Can Run”; IX “New Leaf”; X “Take Care”.

Ato I “Hey – Olá”, Apresenta uma garçonete que atende pelo nome de Slim/Erin

Hiller (Jennifer Lopez) trabalhando em uma lanchonete chamada Red Car, juntamente com

os seus companheiros de trabalho. Nesse ato a protagonista conversa com a sua amiga Ginny

(Juliette Lewis) sobre os seus planos para o futuro, dentre eles está o objetivo de voltar a

estudar.

Ato II “How They Met – Como eles se conheceram” Um novo cliente entra na

lanchonete e se mostra interessado por Slim, a mesma responde o interesse. No entanto,

Mitch (Billy Campbell) um homem que está sentado atrás do cliente o confronta, dizendo

que o rapaz fez uma aposta no valor de duzentos dólares no ambiente externo da lanchonete

com um amigo, a aposta era de que ele conseguiria dormir com a garçonete até as doze horas,

do próximo dia.

Ato III “To have and to Hold – Amando e respeitando” O casal Mitch e Slim estão

em sua festa de casamento, enquanto estão dançando entre os convidados, o marido fala

“Você está em segurança comigo”.

Ato IV “Conquering Hero – Herói conquistador” Mitch Hiller é um homem que

possui um grande poder aquisitivo, ao encontrar uma casa pela qual sua esposa se encanta,

o protagonista efetua a compra. O casal se muda para a nova casa e com o tempo tem uma

filha, Gracie (Tessa Allen).

Ato V “Our Happy Family – Nossa Família Feliz”, passado os anos Erin abandona o

seu antigo emprego na lanchonete e se torna uma dona de casa, cuidando de sua filha e

marido. Em uma certa noite a mulher atende o “bip” do marido e descobre que o seu

companheiro está traindo-a.

Ato VI “More Than Enough – Mais que suficiente” Erin confronta o seu marido a

respeito da traição, o mesmo não mostra nenhum remorso pelo que fez e posteriormente bate

no rosto de sua esposa dizendo: “O que foi, não posso bater em você?”. Mitch a espanca e

continua o seu discurso: “Sou um homem, você não tem chances... tem que entender, achei

que entenderia. Ganho o dinheiro aqui, eu faço as regras, certo?” Nota-se que o fato dele ser

homem e possuir força física superior à da mulher significa que a mesma não deve revidar,

porque se o fizer, irá apanhar novamente e que, por ele ser o provedor da família, tem esse

direito.

No dia seguinte, a agredida relata o ocorrido ao encontrar com a sua sogra, que a

questiona sobre o que Erin poderia ter dito ao seu filho para que o mesmo a agredisse. A

protagonista não recebe apoio de sua sogra. Ao procurar o departamento de polícia, explica

ao oficial que uma amiga está sofrendo com violência doméstica, a polícia a instrui sobre o

que pode ser feito perante a lei, no entanto, leva um pouco de tempo até o agressor ser preso.

Ato VII “Get Out – Sair Fora” a protagonista bola um plano para fugir do marido

junto de sua filha. Mitch descobre e Erin é novamente espancada desta vez com tanta

5 O termo ato aqui utilizado tem o mesmo significado em peças de teatro, na qual o ato consiste na divisão da

narração da história por capítulos, assim um livro.

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violência que ela chega a desmaiar. Os seus amigos e antigos companheiros de trabalho

interferem e conseguem salvá-la. Mitch a ameaça dizendo que “se for a polícia, é a sua

palavra contra a minha... E vão encontrar drogas em sua gaveta e no seu carro”. O discurso

machista é reforçado pelo fato do vilão ser homem e a sua palavra ser mais confiável do que

a de uma mulher, sem contar que o mesmo possui muito dinheiro e a esposa não trabalha.

Ato VIII “You Can Run – Você pode correr” Slim tem as suas contas e cartões

bancários cancelados. Passa seus dias com sua filha em hotéis e motéis pagos pelos seus

amigos. Foge para a cidade de Seatle encontrando com um amigo e ex namorado, Joe (Dan

Futterman), o qual tem o seu apartamento revirado e parcialmente destruído por agentes

particulares contratados por Mitch. Joe, ao questionar a sua amiga do porquê dela o ter

procurado, recebe como resposta de que quando esteve com ele foi a última vez que Slim se

sentiu segura”.

Slim procura pelo seu pai Júpiter (Fred Ward), na empresa que ele comanda. É um

homem que ela não conhece e que nega ajuda e paternidade sobre a mesma. Slim deixa um

pingente que pertencia a Júpiter enquanto este estava com a mãe dela e vai embora do local.

Ato IX “New Leaf – Virando a Página” Ao decorrer da trama ela está vivendo com a

sua filha em diferentes cidades em motéis ou abrigos, sempre em fuga. Seu pai, Júpiter, envia

a ela uma alta quantia de dinheiro após ser confrontado pelos mesmos agentes que entraram

no apartamento de Joe. O homem percebe que sua filha está realmente em perigo. Com o

dinheiro, Slim compra uma nova casa e começa a virar a página na sua vida.

Ato X “Take Care – Tome Cuidado” Slim, ao conversar no telefone com sua ex-

sogra, é informada de que Mitch tem amigos na polícia. A mulher ainda diz que Slim está

privando o filho de ser pai e pede que Gracie ligue para ele para que possam conversar. Joe

vai visitar Erin, eles conversam no deck e não percebem que o amigo e contratado de Mitch

para encontrar Slim, Robbie (Noah Wyle), está os vigiando. Posteriormente os amigos vão

para a casa, relembram o passado e se beijam.

A casa de Erin estava sendo observada por Mitch. O vilão entra na residência e

surpreende a protagonista dizendo que a quer de volta e novamente a espanca. Gracie vê a

cena de violência e avança em cima do seu pai tentando proteger a sua mãe, Slim consegue

fugir após soltar gás de pimenta no rosto do homem e corre para fora da casa deixando vários

obstáculos preparados na casa para que possa se evadir. Slim é perseguida no caminho por

Robbie e consegue despistar o mesmo continuando sua fuga em um carro reservado que já

havia deixado preparado.

Após os acontecimentos, a protagonista procura a ajuda de um advogado, o mesmo

diz:

Teve duas chances de ir à polícia, dar queixa, documentar a violência,

ignorou as duas. Isso diz a ele para continuar tentando matá-la [...] quanto

à guarda da Gracie você vai à audiência, se não fosse, perderia a ação e se

tornaria fugitiva, quando for, seu marido dirá que você é viciada em drogas

[...]. Seu agressor tem boas chances de conseguir a guarda [...] como disse,

é muito tarde. Ninguém pode te ajudar. Conscientemente devo dizer que a

audiência de guarda deve ser um truque. Não é ela em si, é um jeito de

achá-la. Colocá-la em um certo lugar e em uma certa hora, de onde ele a

seguirá e irá onde você estiver e vai matá-la6.

6 1h18min.

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Decidida a matar seu ex-esposo, Slim começa a praticar artes marciais com um

professor recomendado por Júpiter. Depois de um rígido treinamento, preparada para

confrontar Mitch, ela vai até a casa onde ele mora, invade a propriedade, faz um

reconhecimento do terreno e planeja o confronto, procura pelas armas de fogo escondidas

na casa as joga fora, esperando que o mesmo retorne ao anoitecer. Chegado o momento do

encontro, ela utiliza do seu treinamento para retribuir toda a violência perpetrada por Mitch

em seu relacionamento. Ela o derrubando do segundo andar da casa sobre uma mesa de

vidro, Mitch está morto. Com a chegada da polícia no local, o oficial diz “Ele está lá dentro?

Armado? É perigoso?” Percebe somente o silêncio enfim dizendo “Parece que você é uma

das que tem sorte”.

Concluindo, o filme tem um caráter de denúncia e crítica ao expor o tema de violência

contra a mulher e violência de gênero. Porém, a única saída apresentada após a protagonista

não ter conseguido auxílio do Estado (polícia e advogados) é a utilização da própria violência

para se ver livre do marido misógino.

Através da narrativa vista, ela reafirma um discurso machista. A representação

fílmica apresenta um elemento masculino que tirará a mulher da situação trágica em que se

encontra, seja na forma de um ex-companheiro (Joe), um familiar (Pai – Júpiter), um colega

de trabalho (Phil) ou como o professor de artes marciais. O filme reforça a imagem da mulher

gentil, doce e frágil e que sempre depende do homem para ser salva.

Bibliografia

ABREU, Jânio J. V.; ANDRADE, T. R. A Compreensão do conceito e categoria Gênero e

sua contribuição para as relações de Gênero na escola.

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GOUVEIA, Halina Cavalcante; SANTOS, Maria Jackeline. A Vida Recomeça Quando a

Violência Termina: Políticas de Enfrentamento à violência contra as Mulheres em Recife.

Recife, 2009. 79 folhas Monografia em Enfermagem – Universidade Federal de

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TRANSGÊNEROS PAULISTANAS NA MIRA DA POLÍCIA CIVIL – A

CONTRAVENÇÃO PENAL DE VADIAGEM NA DITADURA CIVIL MILITAR

Rafael Freitas Ocanha1

Resumo: Em 1976, a Polícia Civil de São Paulo designou o delegado Guido Fonseca para

iniciar um estudo de criminologia com transgêneros femininas (travestis e transexuais), que

visava enquadrá-las no art. 59 da Lei das Contravenções Penais, a chamada vadiagem. Ao

todo, 460 transgêneros da região central de São Paulo foram sindicadas para o estudo.

Encaminhadas à delegacia, deveriam comprovar vínculo empregatício, e eram fichadas em

documento chamado de Termo de Declarações, no qual constavam desde dados pessoais até

os valores pagos pelas roupas e perucas. Uma grande parte das sindicadas trabalhava

registrada durante o dia e se prostituía à noite, criando um empecilho para a formulação de

inquérito por vadiagem. O estudo foi publicado com o título A Prostituição Masculina em

São Paulo, na revista Arquivos, no final de 1977, e recomendava que todas as travestis da

cidade fossem sindicadas com fotografias, para que os juízes pudessem avaliar sua

periculosidade. Esta comunicação tem como objetivo analisar a perseguição e a violência

contra os considerados vadios pela ditadura civil-militar, explicitando as relações de poder

da Polícia Civil perante a classe trabalhadora, por meio da Lei de Contravenções Penais. Ao

traçar a história social do crime e da criminalidade, o artigo realça práticas de

esquadrinhamento da sexualidade julgada criminalizável e associada à pobreza, em São

Paulo.

Palavras-chave: Vadiagem; Transgêneros; Delegado Guido Fonseca.

Transgêneros paulistanas é uma categoria que engloba travestis e transexuais que

residiam ou estavam de passagem pela cidade de São Paulo. Conforme definição de Larisa

Pelúcio (2007), são indivíduos que rompem as barreiras de gênero e moldam seu corpo e

comportamentos conforme sua identidade feminina. No Brasil, os anos de 1970 foram a

década da popularização da terapia hormonal e da chegada da cirurgia de mudança de sexo.

No baile de Carnaval do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1973, diversas travestis

exibiram seus peitos recém-conquistados. Além disso, ocorriam as aplicações de silicone

(tanto o de prótese quanto o de uso industrial) e as cirurgias plásticas, abrindo possibilidades

de construção e desconstrução dos corpos (GREEN, 2000).

O médico Dr. Roberto Farina, primeiro brasileiro a realizar operações de mudança

de sexo, em 1971, e também a expor o tema no XV Congresso Brasileiro de Urologia, em

1975, foi processado pelo Ministério Público por grave lesão corporal. Dr. Farina chegou a

ser condenado em primeira instância, com o veredicto de dois anos de prisão, mas foi

absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Enquanto isso, na Itália, país pioneiro nas

operações de transgenitalização, oito transexuais femininas conseguiram a mudança de nome

no Registro Civil durante a década de 1970 (OESP, 30 mai. 1980 p.26).

Neste período de mudanças das concepções de corpo é decretada a Portaria 390/76

da Delegacia Seccional Centro, que autorizava a prisão de “todos os travestis da região

central da cidade para averiguações” (FONSECA, 1977, p.75). Segundo essa mesma

portaria, o cadastro policial das travestis “deverá ser ilustrado com fotos dos pervertidos,

1 Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

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para que os juízes possam avaliar seu grau de periculosidade”, dando às imagens importância

fundamental no inquérito policial. Além disso, foram realizados estudos de criminologia.

Guido Fonseca descreve um crescimento na prostituição de travestis no Brasil e no mundo.

Green atenta para a mudança de significado que ocorreu nos anos 1970 com a

palavra travesti, que deixara de definir somente homem vestido de mulher para atrelar-se à

prostituição (GREEN, 2000, p.335). Fonseca, que tratava o tema como perversão, explicava

que a causa das poucas cirurgias de transgenitalização eram os lucros obtidos na prostituição

com a penetração de homossexuais passivos (FONSECA, 1977). Havia uma clara

perspectiva da polícia em controlar o mercado de prostituição e estigmatizar o travesti como

sinônimo de prostituição passível de ser combatida como vadiagem.

Além das barreiras expostas no próprio domínio da lei com o reconhecimento das

profissões, havia as exigências burocráticas. Para um cidadão obter a carteira de trabalho,

era necessário apresentar Registro de Identidade, certidão de nascimento e de reservista do

serviço militar obrigatório. Uma parcela da população pobre não tinha acesso a esses

documentos mesmo após décadas da instituição da carteira de trabalho:

Nos anos 1970, as dificuldades ligadas à obtenção da carteira de trabalho

entre os habitantes de favelas permaneciam tão sérias que mereceram

menção no livro de Janice Perlman, The Myth of Marginality – o que nos

sugere que, 40 anos depois da introdução das carteiras de trabalho,

obstáculos puramente burocráticos ainda impediam os cariocas mais

pobres de obtê-las (FISCHER, 2006, p.425).

A interpretação de Fischer mostra como a Lei de Vadiagem era uma forma de

violência sobre as populações mais vulneráveis e sem recursos para cumprir as obrigações

legais. Em 1976, por exemplo, uma equipe especial chefiada pelo delegado Guido Fonseca

é designada para fazer um estudo de criminologia sobre as travestis e a contravenção penal

de vadiagem. Por meio de uma portaria do 4º Distrito Policial, Guido estava autorizado a

abordar todas as travestis das proximidades do Hotel Hilton, área da Boca do Luxo, para

verificar sua comprovação de renda (FONSECA, 1977). A revista Arquivos da Polícia Civil

publicou o estudo em 1977, com circulação interna para todas as delegacias do Estado.

Entre 14 de dezembro de 1976 e 21 de julho de 1977, 460 travestis foram sindicadas

para o estudo, sendo lavrados 62 flagrantes, contabilizando 13,5% do total (FONSECA,

1977). O resultado mostra que 398 delas foram importunadas com interrogatório, sem serem

vadias, e obrigadas a demonstrar comprovação de trabalho com mais exigências que o

restante da população, já que a Portaria 390/1976 da Delegacia Seccional Centro estabelecia

que travestis deveriam apresentar RG e Carteira de Trabalho acompanhada de xerocópia, a

qual era encaminhada pela autoridade policial à delegacia seccional para arquivo destinado

somente a travestis.

Aquelas que não apresentavam os documentos eram encaminhadas ao distrito, onde

aguardavam a formulação de inquérito que, em seguida, tornaria processo por vadiagem.

Quando liberadas, deveriam ir com a maior brevidade possível a uma gráfica providenciar

outra xerocópia para apresentar a polícia, caso fosse parada em uma blitz (FONSECA,

1977).

A imagem também fazia parte dos estudos de criminologia e do inquérito das

travestis: “Sempre que possível, as sindicâncias serão ilustradas com fotografias desses

pervertidos em trajes femininos que estiverem usando na ocasião, para que os MM. Juízes

possam avaliar sua nocividade” (FONSECA, 1977, p.76-77). O texto da Portaria 390/76

institui uma ligação entre a imagem feminina e a nocividade ao atrelar tipo de traje feminino

de travesti à criminalidade. Desta forma, entende-se que o indivíduo processado por

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vadiagem com uma foto em roupas femininas seria mais facilmente condenado do que outro

em vestes masculinas.

Cada travesti fichada era obrigada a assinar um Termo de Declarações, documento

que definia o tipo de profissão, ganho mensal e demais gastos como hormônios e aluguel.

Em cada termo, as informações variavam, sendo profissão e ganho mensal as únicas

constantes. Muitos declaravam que tinham uma profissão no período diurno e que

realizavam programas esporádicos no noturno, ganhando somas superiores a seus salários

regulares com a prostituição. Somente 11% delas declararam não ter nenhuma profissão,

além da prostituição (FONSECA, 1977).

O inquérito era formulado a partir do termo, e as transgêneros consideradas vadias

eram encaminhadas para ser processadas como contraventoras penais em uma das varas

criminais da cidade. Lá, novamente deveriam esclarecer sua comprovação de renda perante

um juiz de direito. Guido Fonseca reproduziu em seu artigo na revista Arquivos da Polícia

Civil (1977) a sentença de um juiz da 2ª Vara Criminal de São Paulo, que condena a travesti

M.H.C por vadiagem:

O réu é pessoa válida para o trabalho, e conforme declarou em fevereiro

do corrente ano aufere renda mensal oriunda de programas carnais que faz

com homens. Provada a habitualidade. Se foi levado a essa condição

porque fugiu de casa aos 10 anos, quando seus pais brigaram, conforme

declarou nesta data, são questões subjetivas que não devem ser analisadas

no âmbito do Direito Penal e sim na ciência conhecida como criminologia.

O prolator deve ater-se ao âmbito do Código Penal e do Código de

Processo Penal. Se foram os pais do acusado, que irresponsavelmente, o

colocaram no mundo e não lhe deram a necessária educação, ou mesmo, o

adequado tratamento médico, não pode o julgador substituir a pessoa do

réu, pela figura de seus pais, colocando-os em co-autoria, também como

réus no presente processo. Apenas, para observar, o mundo está cheio de

pessoas que, embora sem pais, souberam caminhar honestamente pela vida

(FONSECA, 1977, p.79-80).

M.H.C foi condenado a 15 dias de prisão simples, a menor pena para a contravenção

penal de vadiagem, por ser réu primário. A Justiça, neste caso, opera a coisificação do

indivíduo descrita por Marilena Chauí, pois o Estado o reconhece como criminoso sem

reconhecer as particularidades e problemas sociais que o afetaram (CHAUÍ, 1980, p.11).

Para o juiz, a prática da prostituição era uma desonestidade não vinculada à criação

dos pais, desarticulando o argumento da defesa de vitimização por problemas familiares.

Apesar de não ser um crime perante a Justiça, a vadiagem é passível de criminalização por

ser considerada uma imoralidade pelo magistrado.

Concomitantemente com os trabalhos de Guido Fonseca, em maio de 1977, ocorreu

uma reforma no Código Penal que definiu a contravenção de vadiagem e a mendicância

como contravenções inafiançáveis. O jurista Sérgio de Oliveira Médici escreveu um artigo

em O Estado de S. Paulo (1979) comentando a reforma:

A par disso, a nova lei penal procurou evitar a criação de estímulo à

vadiagem e à mendicância. O vadio é considerado elemento pernicioso à

sociedade, por viver como parasita, sem nada produzir de útil ao meio em

que vive. E o que é pior: está sempre próximo da delinquência ou

colaborando para a ocorrência de infrações penais mais graves. E a

vadiagem é elemento integrante dos dois tipos contravencionais

inafiançáveis. O primeiro (art. 59) pune aquele que, habitualmente, se

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entrega à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe

assegure meios bastantes de subsistência; ou que subsiste mediante

ocupação ilícita. O art. 60 considera contravenção à mendicância, por

ociosidade ou cupidez (OESP, 04 fev. 1979, p.58).

A Lei 6416, de 24 de maio de 1977, alterou o Código Penal ao definir que todos os

tipos de infrações penais, como furto, por exemplo, deveriam ser afiançáveis, exceto a

vadiagem e a mendicância. Pelos comentários do jurista publicados em O Estado de S. Paulo

e pela sentença de M.H.C., constata-se que a Justiça tinha como finalidade dar um

julgamento moral ao vadio ao estabelecer uma sentença de condenação ao estilo de vida.

Além de indicar o modelo do trabalhador com carteira de trabalho assinada a ser seguido.

O processo por vadiagem obrigava o vadio a colocar-se no papel pré-estabelecido

de vítima social para a defesa, como M.H.C. ao expor que fugiu de casa aos dez anos para

que o juiz o absolvesse. Também estava implícita a suposta tendência do vadio ao crime. A

condição de suspeito já era o suficiente para o Estado punir com a prisão.

A prostituição é uma atividade muito complexa, com diversas práticas e estigmas

presentes no cotidiano da cidade, e o trottoir2, mesmo sendo somente uma das práticas da

prostituição, guarda sua complexidade e depende de fatores ambientais como hotéis,

apartamentos, drive-ins e locais ermos para estacionar o automóvel. O carro representava a

oportunidade de sair das áreas que costumeiramente sofriam a abordagem da polícia e

também a economia com hotéis, já que a relação sexual poderia ser realizada no interior do

automóvel.

Segundo o delegado Guido Fonseca (1982, p.224), as travestis seguiram o mesmo

caminho das prostitutas e expandiram o trottoir para grandes avenidas de São Paulo. No

levantamento que realizou em 1977, descreveu a seguinte situação:

Pouco a pouco vão se organizando e se infiltrando não só pelas ruas

públicas centrais como também pelas de alguns bairros. As ruas Teodoro

Bayma, Rego Freitas, Major Sertório, Cardoso de Almeida, Heitor

Penteado, Consolação, as Avenidas Dr. Arnaldo, Ipiranga, São Luiz,

Radial Leste, Cruzeiro do Sul, República do Líbano e as Praças da

República, Ibirapuera, etc (FONSECA, 1982, p.224).

Fonseca descreve a área da Rua Teodoro Bayma como um ponto de hegemonia de

travestis sobre as forças policiais até o ano de 1977, quando foram fechadas diversas boates

e montada uma grande operação policial para reprimi-las. Com tais descrições, percebe-se

que a repressão policial gerou uma tendência ao nomadismo dentro das grandes avenidas da

cidade.

Conclui-se que durante a ditadura civil-militar, transgêneros paulistanas tiveram um

tratamento diferenciado pela Polícia Civil, estabelecendo elos de estigmatização com

prostituição e criminalidade. A memória construída por Guido Fonseca sobre esta população

representa o esforço conjunto dos poderes executivo e judiciário, por meio de juízes de

direito e delegados, em controlar as sexualidades que consideravam como pervertidas.

Constata-se o final da década de 1970 como um período de recrudescimento da contravenção

de vadiagem, dando mais poderes à Polícia do governo autoritário perante a população

desempregada ou no mercado informal. Hormônios e cirurgias vieram ao mesmo tempo que

a repressão policial explícita da ditadura civil-militar, gerando cruzadas morais contra

rupturas de paradigmas sociais. 2 Termo em francês utilizado para designar a prostituição de rua.

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Referências

CHAUÍ, Marilena. A não-violência do brasileiro, um mito interessantíssimo. In: GALVÃO,

Walnice Nogueira; PRADO J.R. Bento (orgs.). Almanaque 11: Educação ou Desconversa?

São Paulo: Brasiliense, 1980.

FISCHER, Brodwyn. Direitos por lei ou leis por direito? Pobreza e ambiguidade legal no

Estado Novo. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (Org.). Direitos

e justiças no Brasil: ensaios de história social. Apresentação. Campinas: Editora da

Unicamp, 2006. p.417-456.

FONSECA, Guido. Relatórios da Polícia Civil. São Paulo: Tomo XXX, 1977.

FONSECA, Guido. História da prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha

Universitária, 1982.

GREEN, James. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX.

São Paulo: Editora UNESP, 2000.

GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo. Homossexualismo em São Paulo. São Paulo:

Editora UNESP, 2005.

MISKOLCI & PELÚCIO, Larissa. Fora do sujeito e fora do lugar: reflexões sobre

performatividade a partir de uma etnografia entre travestis. Revista Gênero. Niterói, v. 7, n.

2, p. 255-267, 1. sem., 2007.

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O GOLPE DE 1964: ESCOLA, HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO

HISTORIOGRÁFICA NO ENSINO MÉDIO ESTADUAL DO RIO GRANDE DO

SUL1

Rafael Policeno de Souza2

Resumo: Este texto discute de forma introdutória como o processo histórico da Ditadura

Militar (1964-1985) em geral, e o golpe civil-militar de 1964, em particular, são abordados

na Escola pública (ensino médio). É um esboço bastante geral das impressões e situações

que tenho me deparado na prática docente (fui nomeado através de concurso público para

professor do Estado do Rio Grande do Sul em 26/12/2012, passando a lecionar na rede em

fevereiro de 2013). Logo, a proposta é relacionar essas experiências, com os livros didáticos

utilizados nas escolas em que atuei, bem como verificar de maneira geral o cenário

historiográfico, seus debates e controvérsias, refletindo como uma linha de interpretação

revisionista sobre o Golpe de 1964 tem se consolidado no meio acadêmico e penetrado no

ensino de História. Os dois livros didáticos verificados foram o de Georgina dos Santos,

Jorge Ferreira, Ronaldo Vainfas e Sheila de Castro Faria (2010) e o de Gilberto Cotrim

(2010).

Palavras-chave: Golpe de 1964; Ensino de História; Historiografia.

É lugar comum, ao menos entre os setores progressistas, a necessidade de se

aproveitar datas redondas como os 50 anos do golpe civil-militar de 1964, para fazer uma

reflexão acerca do nosso passado recente em conexão inevitável com o nosso presente, em

perspectiva de um futuro. A existência de uma abundância de publicações, e da atenção da

grande imprensa pelo tema nos últimos tempos, coloca o desafio: buscar discutir as diversas

abordagens, rechaçar seus negacionismos, bem como seus revisionismos sem base teórica.

Trata-se de um cenário de disputa, em que a defesa da História, de seu compromisso

científico com o real, e da defesa da memória com justiça, não podem vacilar. O local

privilegiado dessa defesa consequente é o espaço escolar.

A Escola

É válida uma caracterização geral da escola. A instituição Escola está muito

desacreditada. Este descrédito se expressa de várias maneiras no cotidiano escolar e na

“opinião pública” em geral, mas verdadeiramente se materializa na sala de aula, na relação

professor-aluno. Existe um quadro de falência da Escola pública, não só de sua estrutura

física, mas também dos recursos humanos que a formam e dão “vida” à prática educacional

na escola. As complexidades dos problemas que precisariam ser discutidos não comportam

1 A base do texto foi originalmente produzida como requisito parcial para aprovação na disciplina: Seminário

de História III: (“1964: O Brasil e o Cone Sul da Segurança Nacional – Ensino e Pesquisa”), do curso de

Bacharelado em História, ministrada pelo professor Dr. Enrique Serra Padrós, em 2014/1. Aqui se encontra

revisado e organizado em um espaço menor para fins de publicação. 2 Mestrando em História UFRGS (ingresso 2015/1) vinculado à linha de pesquisa Teoria da História e

Historiografia. Graduado em Licenciatura Plena em História pela FAPA em 2010/2. Professor de História da

rede estadual do RS.

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este espaço, nem se inserem diretamente na proposta do trabalho, mas podemos elencar

questões.

Primeiro, existe uma completa desvalorização do profissional de educação que atua

na rede pública. Isso não apenas na recorrente questão salarial e de condições de trabalho,

se expressa também na implícita consideração de grande parte da sociedade, de que os

educadores (professores e funcionários de escola), são profissionais de “segunda classe”,

que sua prática requer conhecimentos superficiais e limitados. Em segundo lugar, a escola

continua sendo um local pouco atrativo ao seu público, não busca a interação desse público

com a prática de construção ativa do conhecimento, expressa preconceitos e reproduz a

lógica perversa do senso comum, ao não romper com a intolerância, autoritarismo,

individualismo e superficialidade. Pode-se apontar, como parte desse problema estrutural, o

comodismo e certo “cansaço” daqueles que compõe o quadro docente e diretivo da

instituição Escola. Em terceiro lugar, temos o peso da lógica do sistema capitalista, que trata

a escola e atores principais como “interlocutores” da preparação mercadológica, relegando

a uma zona marginal o conceito fundamental da educação, de formação integral da pessoa

humana e de uma construção educacional voltada para a emancipação.

Historiografia e livro didático: aproximação, crítica e possibilidades

Arrisquemos aqui um rápido e incompleto panorama. A linha interpretativa de

Florestan Fernandes, de um Golpe preventivo, permanece como uma das possibilidades de

interpretação dos eventos que culminaram em 1964. Também o trabalho de fôlego de

Dreifuss (1980), que apresenta o bloco de forças da direita brasileira articulado com os

interesses do grande capital multinacional, na preparação, conspiração e derrubada de

Goulart da presidência (MELO, 2014, p.160). Porém, a partir, principalmente, do final da

década de 1980 e início de 1990, a historiografia sobre o Golpe e a Ditadura Militar passou

a ser ampliada não só com novos objetos e temas:

Historiadores como Guilherme dos Santos (1986), Argelina Figueiredo

(1993) e Jorge Ferreira (2003) utilizam uma linha interpretativa que, após

a década de 80, tem maior repercussão na comunidade acadêmica. Trata-

se dos ideais de ação político conjuntural e de falta de compromisso com

a democracia, no sentido de uma sobrevalorização dos aspectos políticos

da conjuntura pré-1964. Santos (1986) expressa a necessidade de aplicar

variáveis políticas aos esquemas explicativos estruturalistas de base

econômica, ressaltando as questões relacionadas à crise conjuntural, que

marcaram a trajetória da República Brasileira no início da década de 1960.

Figueiredo (1993) e Ferreira (2003) destacam a ausência de compromisso

dos segmentos de esquerda e direita com a democracia (CASTEX, 2013,

p.10).

Esta perspectiva historiográfica encontra-se em pleno desenvolvimento, mas não sem

a contestação e a crítica de um setor da academia. Segundo Demian Melo, “Além de

mistificação, tais interpretações pretensamente “novas” na verdade revelam um notório

empobrecimento conceitual e a marca do conservadorismo político na produção acadêmica

dos últimos anos” (MELO, 2014, p. 158). Também o historiador Mário Maestri expõe sua

inconformidade com certa linha revisionista. No artigo “O Homem que encurtou a ditadura

brasileira”3, publicado em 15 de maio de 2014, no Correio da Cidadania, Mário Maestri não

3 Disponível em:

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poupa críticas ao ensaio do renomado historiador Daniel Aarão Reis, (Ditadura e

democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014). A crítica central do artigo de Maestri é

o apego ao formalismo institucional da análise de Daniel Reis, que consegue a façanha de

indicar a Ditadura “mesmo”, apenas entre 1968 (marco: AI5) até 1979 (marco: fim do AI5

e Lei da Anistia).

Pelo espaço limitado da proposta textual desenvolvida, estamos deixando à margem

uma série de outras importantes e controvérsias discussões sobre a temática do Golpe e da

Ditadura. Isso não nos exime de eventuais erros e equívocos, os quais assumimos

responsabilidade. O debate historiográfico é um espaço para compreensão da História. Os

professores da educação básica não podem a ele ficarem alheios. Não podem abster-se da

responsabilidade de pensar a escrita da História. Professor deve ser pesquisador, leitor de

sua ciência. É verdade que a Universidade não se abre para este diálogo necessário, ou

melhor dito; esta abertura ainda é muito tímida e desigual. De todo jeito, não se pode eximir

os professores de sua responsabilidade de pensar e criticar a historiografia produzida, que

cedo ou tarde chegará a eles nos livros didáticos que a escola virá adquirir4.

A efeméride do Golpe civil-militar no livro didático: análise e crítica

Livro no 15

Antecedentes: Os autores buscam dar à conjuntura um aspecto de dissociação entre a

figura do presidente João Goulart e a radicalização política. Isto é, colocam Jango como um

personagem por “fora”, sem força, vitimado por dois lados opostos. Apresenta o cenário

desfavorável e conturbado em que se dá a chegada negociada de Goulart à presidência. É

interessante como atenua o posicionamento dos conservadores frente, por exemplo, à

reforma agrária, ao mesmo tempo em que enfatiza a radicalização da esquerda:

O clima político no país estava acirrado. As organizações de esquerda –

como a UNE, Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a Frente

Parlamentar Nacionalista, as Ligas Camponesas e setores mais radicais do

PTB liderados por Brizola – exigiam a realização de uma reforma agrária

radical. O lema era “reforma agrária na lei ou na marra” (p. 322).

E emenda imediatamente no próximo parágrafo:

A reforma agrária era aceita como necessária por diversos setores da

sociedade brasileira, incluindo os conservadores. Afinal, a quantidade de

latifúndios no Brasil era enorme. A grande questão que impedia o consenso

<http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9610:submanchete

150514&catid=72:imagens-rolantes>. Acesso em 20/06/14, às 08:47. 4 O professor deve ser consultado para tal escolha. 5 Livro Nº1 indica a análise do livro: História: O mundo por um fio: do século XX ao XXI, Volume 3, de

Georgina dos Santos, Jorge Ferreira, Ronaldo Vainfas e Sheila de Castro Faria (2010). Esta obra foi utilizada

por mim no ano de 2013 na Escola Estadual de E. M. Guimarães Rosa (Cachoeirinha). Infelizmente, pelo

número de caracteres máximo exigido, estou suprimindo do artigo a análise do Livro: História Global: Brasil

e Geral, de Gilberto Cotrim (2010). Este livro é o que está disponibilizado na escola que estou lecionando

atualmente: Escola Estadual de E. M. Padre Nunes (Gravataí). Também pelo mesmo motivo estou suprimindo

a parte imediatamente subsequente à análise dos livros que conta com o seguinte subtítulo: “Apontamentos

gerais sobre os livros didáticos analisados”. Aos “improváveis” leitores interessados no texto completo, o

contato: <[email protected]>.

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entre as esquerdas e os conservadores era a maneira como a reforma seria

feita [...] (p. 322).

Embora os autores “expliquem” quais são as diferenças que não permitem que a

reforma agrária seja realizada, parece claro a opção por impor à esquerda e aos setores

brizolistas uma característica pejorativa de “radicalização” que impedia um avanço

negociado.

O papel do Ipes-Ibad aparece na narrativa, sua relação com os EUA é apontada pela

obra, bem como seu papel na conspiração contra o governo Goulart. Porém, esta é uma

passagem muito marginal no texto, não é explorada ou contextualizada na obra como parte

da organização golpista que desempenhou papel central. A linearidade com que os

acontecimentos são narrados dá a nítida impressão da inevitabilidade do golpe, que é, em

grande medida, retratado como resultado da radicalização à esquerda, muito embora os

autores não deixem de falar em sociedade polarizada:

O radicalismo político de esquerda e de direita aumentou a partir do

segundo semestre de 1963. Em setembro daquele ano, um grupo de

sargentos tomou Brasília pela força, desgastando muito o governo. No

início do mês seguinte, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, em

entrevista a um jornal norte-americano, insultou o presidente e exigiu que

o governo dos Estados Unidos interviesse no processo político brasileiro

(p. 324).

Quase na sua totalidade, o quadro “pintado” pelos autores enfatiza a polarização e o

antagonismo existente no período. Parece-nos verdadeiro e fundamental, a indicação de que

o período vivia um acirramento da luta de classes, mas isso não aparece no Livro no 1.

Embora os autores apontem constantemente em sua narrativa a dita “radicalização” do

período, a mesma aparece como uma gestação irresponsável das exigências que os setores

progressistas faziam. Existe explícita costura textual para dividir a responsabilização pelo

golpe: esquerda e direita deveriam assumir equanimemente, não havendo uma clara

identificação dos reais protagonistas da conspiração golpista: “Com o enfraquecimento do

governo causado pelo clima de radicalização política e pela crise econômica, começou a se

fortalecer o grupo golpista” (p. 324, grifo meu).

Outro episódio fartamente destacado é o importante comício do dia 13 de março. O

texto mostra as organizações de esquerda que organizaram o evento. Os discursos de

inflamados líderes e, principalmente, o discurso forte de João Goulart, endossam uma

continuidade de análise na linha de inevitabilidade do Golpe, mas principalmente de divisão

de responsabilidades, sempre muito bem assentado no relevo dado ao radicalismo:

O radicalismo tomava conta do cenário político. Enquanto as esquerdas

exigiam a decretação imediata das reformas, as direitas faziam oposição

intransigente. Nesse clima de confronto, a preservação do regime

democrático não foi valorizada pelas partes em conflito (p. 325, grifo

meu).

Finalmente a narrativa sobre os antecedentes encaminha seu fechamento, trazendo as

polêmicas atitudes do presidente Goulart perante a hierarquia militar, com a anistia de um

grupo de marinheiros, bem como o comparecimento a um jantar de sargentos:

[...] Muitos militares, até então politicamente neutros, passaram a apoiar

os colegas que queriam derrubar o presidente. Para piorar, no dia 30 de

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março, Jango compareceu a uma manifestação de sargentos com a presença

dos marinheiros que participaram da rebelião dias antes, o que foi visto

pelos militares como uma provocação inaceitável (p. 325, grifo meu).

É preciso admitir que os elementos acima destacados pelos autores façam parte sim

do cenário do “tempo curto”, que se desenvolvia na conjuntura de instabilidade política de

Jango. Sabe-se do espaço limitado que se precisa respeitar na construção da escrita nos livros

didáticos, e que tal restrição por vezes leve a simplificações que não corroboram para o

entendimento do processo. Todavia, em nossa opinião, é inadmissível que os autores optem

por um fechamento (antecedentes) como este, sem indicar a gama de complexidade

envolvida no processo, sem a preocupação pela ampliação do horizonte interpretativo dos

leitores do seu texto didático.

O Golpe de 1964: O item que trata especificamente do Golpe começa deixando clara

a participação civil:

Na manhã de 31 de março, manchetes das primeiras páginas dos jornais

criticavam duramente João Goulart. Alguns exigiam sua deposição. O

presidente do Congresso Nacional, Auro Moura Andrade, lançou um

manifesto à Nação declarando o rompimento com o governo e apelando

para as Forças Armadas tomarem o poder (p. 327).

É importante que esta relação (o elemento civil) esteja retratada no texto. Falta,

porém, indicar a quem este cenário (deposição de Jango) beneficiaria. Não há dúvidas de

que a conspiração passava por quase toda a imprensa. Seria válido acrescentar elementos

que demonstram os beneficiários imediatos do Golpe. Uma melhor problematização do

grupo que estava ligado ao Ipes-Ibad poderia esclarecer os motivos dos quais derivavam

tamanho apoio de elementos da elite civil à conspiração golpista, assim saindo de um limbo

que deixa espaço para uma perspectiva “providencialista”.

É relatado o deslocamento de tropas do general Olímpio Mourão Filho em Minas

Gerais, autorizado pelo governador Magalhães Pinto, e também indica que o presidente João

Goulart – que detinha condições de deter as tropas golpistas de Morão Filho, “foi alertado

de que, em caso de intervenção federal, o governo mineiro receberia apoio diplomático,

financeiro e militar dos EUA” (p.327). Os autores apontam a participação direta dos EUA

através da Operação Brother Sam. Destaca em números a força-tarefa estadunidense (p.

327). A narrativa prossegue na descrição das tentativas frustradas de Jango em evitar o

Golpe, tentando contatos telefônicos com generais. Informa o apoio decisivo de

governadores de Estados importantes, como o do já mencionado Minas Gerais, mas também

de Guanabara, São Paulo e Rio Grande do Sul. Felizmente, os autores integram à sua

narrativa o fato de o Presidente do Congresso ter declarado vago o cargo de Presidência da

República com João Goulart ainda em território nacional. Talvez, essa questão pudesse ter

sido mais bem desenvolvida no texto didático, pois destacaria e ficaria muito clara a

articulação golpista. Poderia ter-se apontado para a quantidade de dias (não pelo número em

si, mas pelo simbolismo que o mesmo representa) que Goulart permaneceu em solo

brasileiro (o Presidente rumaria para o Uruguai apenas no dia 4 de abril).

Considerações finais

O texto buscou fazer uma análise panorâmica sobre como o conhecimento histórico

do Golpe de 1964 é trabalhado na Escola, através da análise particular de uma obra didática,

adotada por uma das escolas onde atuei. Verificar como se relacionam o conhecimento

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acadêmico em constante produção e a construção historiográfica para o ambiente escolar,

além de como se mesclam com a intenção de pensar os aspectos da constituição do

conhecimento histórico e sua possível ressignificação pelos agentes envolvidos no processo

de ensino-aprendizagem.

Nossa análise demonstrou os inúmeros problemas que as obras didáticas apresentam.

Também indicamos a nossa discordância com algumas abordagens, suas insuficiências e

erros. Não cabe retomar aqui essas críticas, elas estão presentes no corpo do texto, mas

gostaríamos de apontar, nessas considerações finais, o aspecto mais combatido em nossa

narrativa crítica: o encadeamento dos fatos, a inevitabilidade histórica e a consumação de

um desfecho como o único possível, bem como a co-responsabilização das esquerdas, e a

não menção ao caráter de classe do Golpe. A construção de um pensar histórico não pode

naturalizar o processo da constituição histórica. Conforme Josep Fontana:

Temos de elaborar uma visão da história que nos ajude a entender que cada

momento do passado não contém apenas a semente de um futuro pré-

determinado e inescapável, mas sim a de toda uma diversidade de futuros

possíveis, um dos quais pode acabar convertendo-se em dominante, por

razões complexas, sem que isso signifique que é o melhor, nem, por outra

parte, que os outros estejam totalmente descartados. (FONTANA, 1998, p.

275).

A perspectiva do historiador Josep Fontana, por mais polêmica ou pretenciosa que

possa ser, é a perspectiva que entendemos como uma das melhores para o despertar crítico

da consciência histórica na sala de aula. É um desafio instigante e que, de bom grado, já

aceitamos.

Referências

DREIFUSS, René Armand. State, class and the organic elite: the formation of the

entrepreneurial order in Brazil (1961-1965). Glasgow, 1980.

CASTEX, Lilian Costa. Ditadura Militar Brasileira: o conceito substantivo na memória

coletiva e no âmbito escolar. Anais do XI Congresso Nacional de Educação EDUCERE 2013

– PUC-PR. Disponível em <http://educere.pucpr.br/publicacao-em-anais/>. Artigo acessado

em 20/06/14.

COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. Volume 3. São Paulo: Editora

Saraiva, 2010.

FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 2003.

MAESTRI, Mário. O Homem que encurtou a ditadura brasileira. Correio da Cidadania,

publicado em 15 de maio de 2014. Disponível em:

<http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9

610:submanchete150514&catid=72:imagens-rolantes>. Artigo acessado em 20/06/14,

MELO, Demian Bezerra de (Org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo

contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.

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SANTOS, Georgina dos; FERREIRA, Jorge; VAINFAS, Ronaldo; FARIA, Sheila de

Castro. História, O mundo por um fio: do século XX ao XXI. Volume 3. São Paulo: Editora

Saraiva, 2010.

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O ISOLAMENTO POLÍTICO DE FLORES DA CUNHA: O PAPEL DE GETÚLIO

VARGAS

Rafael Saraiva Lapuente1

Resumo: Analisamos, aqui, as manobras do presidente Getúlio Vargas para isolar,

politicamente, Flores da Cunha, governador do Rio Grande do Sul, rompido com o

presidente desde 1935. Partimos da premissa de que Flores da Cunha passou a ser um dos

principais entraves para o golpe do Estado Novo, e Vargas passou a atuar diretamente na

política regional, junto com elementos da FUG e do PRL para retirar seu apoio a Flores da

Cunha no modus vivendi e acuar o governador, deixando-o com minoria no legislativo. Além

disso, buscou aproximações com elementos que, desde 1932, faziam oposição a seu governo,

como João Neves e Lusardo. Isso impediu que Flores da Cunha pudesse resistir política e

militarmente contra Vargas, que, além de não lhe ceder o direito de exercer o Estado de

Guerra, afastou militares simpáticos ao governador, culminando com a federalização da

polícia estadual e a recusa dos aliados do governador em resistir, que o levaram a renunciar

e ser substituído, ainda em regime constitucional, por um interventor, Gen. Daltro Filho,

poucas semanas antes do golpe.

Palavras-chave: FUG; PRL; Estado Novo.

Nosso objetivo é analisar como Vargas atuou para isolar o governador Flores da

Cunha, a partir de 1935, quando este passou a hostilizar o governo central. Nesse sentido,

acreditamos que essa pesquisa contribui para a compreensão das articulações que

desembocaram no golpe do Estado Novo, em 1937, enfatizando, aqui, os antecedentes e as

manobras de Vargas para isolar as resistências civis e militares para o fechamento do regime

constitucional. Desta forma, com um enfoque regional, acreditamos que nosso estudo

“oferece novas óticas de análise do estudo de cunho nacional, podendo apresentar todas as

questões fundamentais da História a partir de um ângulo de visão que faz aflorar o especifico,

o próprio, o particular” (SILVA apud CAPRINI, 2010) nesse processo, afinal, não apenas

no Rio Grande do Sul que o varguismo solapou as oposições ao novo regime.

Contudo, antes de iniciar, achamos necessário retomar os antecedentes da relação

entre Vargas e Flores. Quando o primeiro ascende ao poder central, em 1930, o cargo de

presidente do Rio Grande do Sul foi ocupado pelo segundo, como interventor. Nesse

momento, a política gaúcha estava agregada em uma Frente Única, mas que dura pouco:

logo em seguida, a FUG retira seu apoio ao chefe do governo provisório, em função da

ascensão do tenentismo na política nacional e pela procrastinação em retomar o regime

constitucional, apoiando São Paulo no levante de 9 de julho de 1932.

Esta adesão não contou com Flores da Cunha: o interventor, apesar de oscilar, se

manifestou publicamente pela ordem. Mesmo que a maior parte da elite partidária sulina

tenha se lançado em conflito armado, ele conseguiu conter os motins organizados pelos

rebeldes. Mas, divergindo da orientação de seu partido, o PRR, acaba tendo que fundar uma

nova agremiação: o Partido Republicano Liberal, que daria guarida aos varguistas e floristas.

Em seu primeiro teste, em 1933, o PRL venceu a FUG, com mais de 75% dos votos. Mesmo

que as principais lideranças frenteunistas estivessem exiladas, e fraudes, coerções e

1 Aluno do PPGH/Mestrado da PUCRS, com bolsa integral CAPES.

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violências fossem a tônica do prélio eleitoral, a vitória do PRL significou a projeção de

Flores da Cunha no cenário nacional, ainda mais se considerarmos que em Minas Gerais e

São Paulo, os dois principais estados junto com o Rio Grande do Sul, a oposição a Vargas

foi vitoriosa (CARONE, 1976). A vantagem eleitoral, embora um pouco menor, foi mantida

nas eleições de 1934 e 1935, já com os exilados de volta ao território nacional, anistiados e

atuando nas campanhas eleitorais.

As vitórias eleitorais e a garantia de ordem militar pelo interventor o tornaram um

importante aliado de Vargas, mas que procurava influir na política nacional, intrometendo-

se nos assuntos de outros estados, procurando nomear e promover aliados e amigos em

postos federais e estaduais, assim como remover desafetos, desde simples funcionários até

ministros, se aproveitando de uma situação privilegiada como chefe do estado natal do

presidente, o que significava, sobretudo nos primeiros anos do governo provisório, garantir

a Vargas sua base política. Mas, aos poucos, essa situação de mútua confiança acabaria

afastando os dois para campos opostos. Nesse sentido, a FUG passaria a ser o fiel da balança:

na medida em que se distanciavam, seu apoio era decisivo para os lados em dissídio.

1935-1936: da pacificação com a fuga ao rompimento com Vargas

Em 15 de abril de 1935, Flores da Cunha passa de interventor a governador

constitucional do Rio Grande do Sul. Ou seja, a partir de agora seu posto era garantido pela

constituição, não sendo mais fruto de sua fidelidade ao governo federal. A consequência

dessa nova conjuntura seria uma postura ainda mais impositiva em 1935, mesmo que não

fosse novidade, afinal até na sucessão mineira, em 1933, Flores da Cunha tentou intervir. E,

buscando fortalecer sua posição, buscaria recompor a política gaúcha em uma nova frente

unificada, que, se já havia tentado desde o pós guerra civil (FONTOURA, 1978), aceleraria

esses entendimentos em 1934 e 1935, buscando uma fórmula conciliatória.

Já em abril, ocorrem os primeiros desentendimentos mais ostensivos entre os dois:

durante esse mês, ocorria o debate pelo aumento de soldos aos militares. Flores, desgostoso

com Góis Monteiro na frente do ministério da guerra, estimularia um grupo de militares do

município de Cachoeira-RS a se manifestar contra o ministro. Mesmo que o ministro fosse

favorável ao reajuste, a insubordinação dos militares às punições ordenadas por Góis,

apoiadas em público pelo governador, desmoralizaram o ministro, que, em 1º de maio, pede

demissão (CAMARGO, 1989). Se Flores da Cunha conseguia seu objetivo, por outro lado,

desagradaria a Vargas, que teria confessado a Góis que Flores da Cunha iria “pagar pelo que

fez” (COUTINHO, 1956, p. 265).

Paralelamente, Flores protestaria energicamente contra aquilo que ocorria em Santa

Catarina e no Pará. Sobretudo no primeiro caso, um antigo aliado de Vargas, Aristiliano

Ramos, era derrotado pelo seu primo, Nereu Ramos, que havia pego em armas em 1932 para

combater Getúlio. Todavia, Vargas estava atento ao cenário catarinense, ficando

publicamente neutro, mas articulava com o irmão de Nereu a sua eleição. Afinal, como bem

informou Maciel (AGV, 23.04.1935), parecia mentira a situação do interventor Aristiliano,

“Nereu tirou-lhe tudo, até o presidente do Tribunal Eleitoral, de modo que nem sequer se

poderia tentar o adiamento da convocação da Assembleia Constituinte, para conversar

melhor”. Mesmo assim, Flores da Cunha manteve seu apoio público a Aristiliano, contra

Nereu, lamentando a postura de Vargas em não apoiar o antigo aliado.

Esse desgaste, gradual, torna o rompimento definitivo, em agosto e setembro.

Primeiro, Flores teria sido convidado a participar de um golpe de estado por Vargas,

enquanto este visitava seus pais em São Borja. Depois, durante os festejos do centenário

farroupilha, a visita do presidente ocasionou uma polêmica em público (diferente do “convite

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para o golpe”, que foi privativo): Flores da Cunha intercepta um telegrama entre Vargas e

Vicente Rao, que comprovava a ingerência do Catete na eleição para governador do Rio de

Janeiro, favorecendo o Alm. Protógenes contra Cristóvão Barcellos, este, apoiado pelo

governador gaúcho.

Aqui, havia dois objetivos para Flores, pois ele queria a queda de Rao na pasta da

justiça, assim como obteve a de Góis, e buscava eleger seu candidato nas proximidades do

Catete. E tinha reais chances, pois, mesmo que Protógenes tenha sido o vencedor, foi por um

voto, em meio a tiroteio e ferimento de Barcellos, e de um deputado aliado. Esse episódio

marca o rompimento definitivo entre os dois.

Mas, é aqui que a FUG, rejeitando, ou sendo rejeitada, nas propostas de acordo em

nível estadual para uma pacificação política, procura Vargas para um pacto semelhante, a

Fórmula Santos-Pilla, de cunho parlamentarista. Raul Pilla a levaria até o presidente, que

seria rejeitada por uma junta, que a considerou inconstitucional. Mesmo assim, essa fórmula

possuía o apoio de figuras expressivas da oposição, como Arthur Bernardes, que declarava

ver no governo de gabinete uma solução aconselhável para sair do impasse em que se

encontravam, para “abrir válvulas ao escapamento das paixões”. Além dele, outros líderes,

como Borges de Medeiros, Afrânio de Melo Franco, Armando Salles, entre outros, viam

com simpatia a fórmula (CP, 13, 17, 20 e 24.10.1935).

Todavia, em novembro a conjuntura nacional sofreria modificações significativas. O

levante comunista seria a prerrogativa para que a centralização política se agudizasse na

pauta governamental, com medidas de exceção. Também fortaleceria Rao, que se destacaria

na “caça aos comunistas”, virando um ponto perdido para Flores, pois desde a questão do

Rio de Janeiro, o governador exigia sua demissão, não encontrando eco, servindo “apenas

para desgastar mais sua imagem” (NOLL, 1980, p. 182).

Outrossim, se o regime de gabinete era recusado em nível federal, Flores da Cunha

vê nisso uma boa oportunidade para se aproximar da oposição. Atuando como mediador das

propostas da FUG com o governo federal desde setembro, acompanha de perto os debates

entre as correntes políticas. É válido lembrar que, dentro da minoria federal, a FUG ocupava

a liderança, com João Neves, simbolizando a força que os frenteunistas possuíam não apenas

no Rio Grande do Sul, como única corrente de oposição com representação política, mas

também dentro do cenário nacional.

Após idas e vindas, em 1936, FUG e PRL selam o pacto: o modus vivendi,

formalmente administrativo, estabelecia a figura do presidente do secretariado, reservava à

oposição duas secretarias, e submetia o comparecimento do secretariado à Assembleia

Legislativa (TRINDADE, 1980), entre outros pontos. Mesmo que não fosse um acordo

político – FUG e PRL se mantinham independentes –, originou descontentamento nos dois

grupos, e preocupação para Vargas, que já considerava Flores da Cunha um adversário em

potencial. O presidente vai, sorrateiramente, tentar desestabilizar o pacto estadual através

destes insatisfeitos. Dentro do PRL, contava com dois irmãos, Protásio e Benjamin, que viam

o acordo como uma hostilidade ao Governo Central, e de outros membros do partido, como

Loureiro da Silva. Na FUG, pelo PRR possuía o desagrado de João Neves e de Maurício

Cardoso, no PL, do jovem vereador porto-alegrense Alberto Pasqualini, e, posteriormente,

de Batista Lusardo.

Parece-nos que o pacto era interpretado de diferentes maneiras: para uns, a

aproximação com a oposição estadual poderia significar o agravamento das antipatias ao

governo federal por Flores (que não eram totalmente públicas) e sua adesão às oposições

coligadas, enquanto para outros, poderia representar a cooptação da FUG para o

situacionismo federal, o que gerou questionamentos no meio da minoria em nível nacional,

por isso, as divergências das correntes políticas do estado em contrários e favoráveis ao

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acordo.

O interesse da FUG em cooptar Flores nos parece pouco provável. Mas era evidente

que, sobretudo Raul Pilla, o paladino da pacificação, procurava viabilizar o acordo no Rio

Grande do Sul, não para ser definitivo e restrito ao estado, mas para criar uma circunstância

favorável para um modus vivendi com Vargas. Mas, enquanto a ala de Pilla e Collor

concordam com o pacto regional, Pasqualini e Benjamin vão ser muito ativos para erodi-lo,

a mando de Vargas: o primeiro busca entendimentos com os insatisfeitos dentro da FUG e

do PRL, dentre estes, Maurício Cardoso (PRR) e Loureiro da Silva (PRL), que teriam até

entrado em contato com um plano de ação, detalhado alínea por alínea, e dividido por fases,

que mesmo sem assinaturas, tinha o apoio e anuência de Vargas. Esse plano previa a

dissolução da FUG, aproximação dos descontentes frenteunistas e dissidentes liberais,

declarações públicas de apoio a Vargas e hostilização ao governo estadual, tudo visando à

dissolução do pacto regional. Esse plano, bastante detalhado, já estava pronto e posto em

circulação por Pasqualini em março, ou seja, apenas dois meses após se firmar o pacto rio-

grandense (AGV, 04.1936, GV c 1936.04.08/1; AGV, 12.03.1936, GV c 1936.03.12).

Nesse sentido, é interessante notar que Vargas não se expunha. Delegava sempre a

terceiros que sondassem a conjuntura política regional para cooptar aliados em seu favor.

Foi assim com estes e, também, com Lusardo, que foi convidado por Armando de Alencar

para um churrasco com o presidente, dizendo ao libertador: “eis a sua oportunidade. Foi ele

[Flores da Cunha] que fez aquilo [exílio em 1932], não eu” (CARNEIRO, 1978, p. 194),

cooptando também este a seu favor.

Em abril e maio, a situação pioraria: enquanto as imunidades parlamentares eram

cassadas e prisões dentro da minoria se efetivavam sem a anuência do legislativo, com a

contrariedade conjunta da FUG e PRL, Flores da Cunha desconfia que possa ser preso, e

“foge” do Rio de Janeiro, lançando virulentos ataques contra Vargas na imprensa,

censurados pelo estado de exceção, acusando Vargas de querer se manter no poder. Nesse

mesmo mês o governador começa a formar batalhões militares provisórios (CAMARGO,

1989), observados pelo quarteto informante (Benjamin, Viriato, Serafim e Protásio Vargas),

por Pasqualini e por Loureiro, repassando informações a Vargas.

O pacto ainda resistiria a sua primeira crise, em maio. Contornado por Flores, que

fez declarações consideradas hostis à FUG por Pilla, isso enfraquece o poder do modus

vivendi servir de modelo a ser seguido, inclusive, entre alguns adeptos do acordo. Vargas,

assim, se vê livre de uma pauta em discussão que enfraqueceria o poder executivo, e, na

medida em que é deixado de lado em nível federal, também começa a perder sentido no

estado, já que sua existência, pela FUG, se dava, sobretudo, para comprovar sua viabilidade.

O rompimento ocorre em outubro, um mês depois de a FUG procurar o último

entendimento com Vargas, através de um octólogo, este, aprovado parcialmente pelo PRL.

O ponto final foi Flores da Cunha ter exigido a eleição do deputado A. J. Renner para Vice-

Presidente da Assembleia Legislativa, como uma causa fechada. Nesse momento, a

Dissidência Liberal se expõe. Articulada com a FUG, vota em Alexandre Rosa, derrubando

o candidato florista. Agravando mais o contexto, Flores da Cunha proporia um aditivo no

modus vivendi, em que a FUG deveria comunicar suas deliberações internas para o PRL

(TRINDADE, 1980). Alegando que o modus vivendi era um pacto administrativo, a FUG

recusa a exigência do PRL. Em 15 de outubro, era rompido o pacto regional.

1937: o golpe final

A conjuntura para Flores da Cunha se tornou muito difícil. Com minoria no

legislativo, seria o primeiro governador da república a não ter o parlamento a seu favor,

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realizando violentos ataques a Flores, à sua gestão financeira, e à organização de provisórios,

orientados por Vargas, que se comunicava com Loureiro e Benjamin, sobretudo. Ainda

assim, o governador não deixaria de revidar, armando a Assembleia Legislativa com

capangas (CORTES, 2007), para intimidar os deputados dissidentes e oposicionistas, e

mantendo sua corrida armamentista contra o governo federal, minando o estado com corpos

provisórios disfarçados de trabalhadores rodoviários.

Essa atitude, além de não dar resultados práticos entre os deputados, era vigiada de

perto pela III Região Militar, tanto por Lúcio Esteves, afastado por ser muito diplomata na

avaliação de Benjamin, como por Daltro Filho, este, nomeado por Vargas para isolar

militarmente o Rio Grande do Sul, se prevenindo para uma “guerra civil”. No campo

político, o acirramento da disputa presidencial dividiria o estado em armandistas, apoiados

pelo PRL florista, pela dissidência do PRR que ficou com Flores, liderada por Collor no

novato Partido Republicano Castilhista, e pelas duas cizânias no PL, a Ação Libertadora e a

União Democrática Nacional, enquanto a maioria da FUG e o PRL varguista faziam

campanha para José Américo.

Esse quadro político fracionado, alinhado com a monitoria dos preparativos militares

no Rio Grande do Sul, facilitou que fosse pedido o retorno de armamentos cedidos pelo

exército à Polícia Militar estadual, sem sucesso, para depois dar o xeque-mate no governador

gaúcho, requisitando a federalização da Polícia Militar estadual, quase simultaneamente com

a derrota do pedido de impeachment do governador por um voto. Acuado, sem apoio nem

dentro de seus aliados, com o estado fracionado em várias dissidências, acaba não assinando

a requisição, renunciando e se exilando no Uruguai. Imediatamente, Vargas decreta a

intervenção federal no Rio Grande do Sul, não deixando que um candidato de conciliação

unificasse o PRL novamente dentro da Assembleia Legislativa, seguindo instruções de

Benjamin (VARGAS, 1995).

Considerações finais

Procuramos demonstrar o cenário político regional através da intromissão de Vargas

junto com políticos rio-grandenses. Solapando o poder do governador, na medida em que

este se colocava como oposição à política federal, Vargas jogava com todas as forças

políticas que podia, contanto que contribuísse para erodir a base florista. Afinal, com Flores

da Cunha na frente de um acordo regional, caso se configurasse em uma unidade política,

atrelada à força militar estadual, poderia se formar uma forte resistência às intenções

continuístas e centralizadoras de Vargas. Por sua vez, um Rio Grande do Sul, em peso, dentro

das oposições coligadas significaria uma forte resistência dentro do parlamento ao executivo

federal.

Por isso, Flores da Cunha era um adversário que precisava ser removido. E Vargas

buscou, para isso, criar essa teia de influência no estado, mesmo que seus contatos

englobassem até quem lutou contra seu governo, em armas, em 1932, e seguisse como

oposição, legal, até então. Vencida a maior resistência civil do país contra o Estado Novo,

menos de um mês depois, em 10 de novembro, ocorreria o golpe, seguindo no Uruguai as

perseguições a Flores, observado pelo novo embaixador naquele país, Batista Lusardo,

inimigo em armas do ex-governador desde 1923. Assim como ele, Pasqualini, Loureiro, João

Neves e outros teriam sua aliança contra Flores “recompensada” com cargos políticos, e

Flores seria condenado a um ano de prisão por compra de armas contrabandeadas,

cumprindo 9 meses da pena em 1942, retornado do exílio.

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Referências

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CAPRINI, Aldieris Braz Amorin. Pesquisa em História Regional: Aspectos conceituais e

metodológicos. In: FERNANDES, Luciano de Oliveira (org.). III Simpósio Impérios e

Lugares no Brasil. Mariana: DEHIS/UFOP, 2010.

CARNEIRO, Glauco. Lusardo, o último caudilho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

CARONE, Edgar. A República Nova (1930-1937). Rio de Janeiro/São Paulo: DIFEL, 1976.

CORTÉS, Carlos E. Política Gaúcha (1930-1964). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

COUTINHO, Lourival. O General Góes Depõe... Rio de Janeiro: Coelho Branco Editora,

1956.

FONTOURA, João Neves da. Perfis Parlamentares. (sel. e int. de Hélgio Trindade).

Brasília: Câmara dos Deputados, 1978.

NOLL, Maria Izabel. Partidos e política no Rio Grande do Sul (1928-1937). Dissertação

(Mestrado em Ciência Política), UFRGS, Porto Alegre, 1980.

TRINDADE, Hélgio. Revolução de 30: Partidos e imprensa partidária no RS. Porto Alegre:

L&PM, 1980.

VARGAS, Getúlio. Diário. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV. 1995, vol. II.

Fontes Documentais

AGV, 23.04.1935, CPDOC-FGV, GV c 1935.04.09/2.

______, CPDOC-FGV, GV c 1935.04.10.

AGV, 04.1936, CPDOC-FGV, GV c 1936.04.08/1.

AGV, 12.03.1936, CPDOC-FGV, GV c 1936.03.12.

CORREIO DO POVO (CP), outubro de 1935. Museu Hipólito da Costa/RS.

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ASSESOAR: LUTA POR EDUCAÇÃO POPULAR E REFORMA AGRÁRIA NO

SUDOESTE DO PARANÁ

Ricardo Callegari1

Resumo: Esta apresentação tem o propósito de discutir sobre a atuação da Assesoar e as

articulações dos trabalhadores e agricultores familiares na luta por reforma agrária e pela

educação do campo no Sudoeste do Paraná. O objetivo é compreender como a Associação

de Estudos e Orientação Rural atuou durante os últimos anos. A importância de discutirmos

sobre a luta por educação do campo reside no fato de que desde 2003 foram fechadas mais

de 37 mil escolas no Brasil, e mais de 100 escolas no Paraná só em 2014, isto evidencia

como aos povos do campo tem sido negado a educação. Por outro lado, este debate é

importante para reivindicar a construção de práticas pedagógicas que levem em consideração

a especificidade de cada lugar. Isto é, para que as escolas do campo tenham condições de

construir conhecimentos relacionados às realidades dos alunos que vivem no campo e que

debatam sobre as contradições do agronegócio visando construir um projeto alternativo de

produção camponesa com matrizes agroecológicas. A educação do campo tem um

importante papel na transformação da sociedade. As fontes que utilizaremos para a discussão

e análise serão o Boletim nº 1 de julho de 2015 da Articulação Paranaense por uma Educação

do Campo, no qual a Assesoar faz parte, além dos Cadernos de Educação da Assesoar e da

revista Cambota organizada pela entidade.

Palavras-chave: Educação do campo; Sudoeste; Assesoar.

Introdução

O artigo que o leitor tem em mãos faz parte da pesquisa de doutorado vinculado ao

programa de pós-graduação da Unioeste. Aqui estão presentes alguns elementos sobre a

atuação da Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural2 a respeito da luta por

reforma agrária, especificamente neste artigo, sobre a luta por educação do campo.

O artigo, como supracitado, é parte especifica de um projeto em que visamos

compreender e historicizar a formação dos movimentos sociais de luta pela terra no Sudoeste

do Paraná no período de 1954 a 1985. A pergunta que impulsiona a pesquisa é como era a

organização dos trabalhadores e agricultores familiares nesse período. Por outro lado, a

motivação para empreender a pesquisa está no enquadramento vivido pelos movimentos

sociais de luta pela terra na atualidade. Este processo a que chamamos de enquadramento é

resultado do que? Quais são as disputas que levam a ele? Como compreender

historicamente?

Primeiramente, utilizamos o conceito enquadramento em contraposição a utilização

de desaparecimento ou apassivamento que verificamos em algumas pesquisas.

Compreendemos que estes movimentos sociais não deixaram de existir e também não se

“apassivaram”, mas sofreram processos de criminalização, repressão, foram cercados pelos

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Sociais, da Universidade Estadual

do Oeste do Paraná - Unioeste, Campus Marechal Cândido Rondon. Pesquisa vinculada à Linha de Pesquisa:

Trabalho e Movimentos Sociais, sob orientação do Prof. Dr. Davi Félix Schreiner. Educador Popular pela

Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural. E-mail para contato: <[email protected]>. 2 Usaremos no texto, a partir de agora, somente, ASSESOAR.

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avanços das multinacionais e das relações capitalistas no campo e, em alguns casos,

encaixados em atividades e programas governamentais que acabaram por harmonizar alguns

conflitos. Porém, resistiam em atividades clandestinas ou em, utilizando da contribuição de

James Scott, “discursos ocultos”. Para o autor, “todos os grupos subordinados criam, a partir

da sua experiência de sofrimento, um ‘discurso oculto’ que representa uma crítica ao poder

expressa nas costas dos dominadores” (SCOTT, 2013, p. 19).

Ao utilizarmos o conceito de enquadramento consideramos os “discursos ocultos e

públicos” e, também, os processos de resistência cotidiana construídas pelos trabalhadores

durante o período de 1966 a 1975, que, por mais que não se caracterizaram como

enfrentamento e conflito social “aberto” contribuíram pedagogicamente para a construção e

re-organização dos movimentos sociais.

Acreditamos, através de estudo de caso envolvendo o Sudoeste, que os movimentos

sociais passaram por: a) um período de efervescência que abrange o período de 1951 a 1964;

b) seguido pelo período a que denominamos de enquadramento, 1964 a 1975; c) e de re-

organização, 1975 a 1985, que culminou na organização do Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra em 1985.

Relacionado ao período de efervescência, verificamos a nível nacional o Congresso

da ULTAB em 1961 e a criação da Federação dos Trabalhadores da Lavoura de Maringá,

em1963. Assim como a fundação de 8 Sindicato dos Trabalhadores Rurais no Paraná. Na

região, influenciou também a Revolta dos Posseiros em 1957, que culminou na retirada das

companhias de terra que praticavam a grilagem de terras e exigiam o pagamento das mesmas

pelos posseiros ou os expulsavam. Estes se organizaram e em 1957, se rebelaram

principalmente nas cidades de Francisco Beltrão, Capanema e Santa Antônio do Sudoeste.

O período que compreende as décadas de 1964 a 1975 remete-se ao período de golpe

militar no Brasil e de aumento da repressão aos movimentos sociais. Surgem as Frentes

Agrárias, dentre elas a Paranaense, com o propósito de fundar Sindicatos para combater as

Ligas Camponesas e também os Sindicatos dos Trabalhadores.

Este contexto foi de combate ao comunismo e as organizações dos trabalhadores que

foram enquadrados, passaram a atuar na clandestinidade. É neste mesmo período que é

fundado a ASSESOAR (1966) e a Comissão Pastoral da Terra (1975) que passaram a atuar

na região organizando comunidades de cooperação e organizando alguns Sindicatos como

forma de resistirem contra as expropriações de terras e as violências da ditadura. Este ponto

desenvolveremos nos segundo e terceiro tópicos deste artigo.

O período que compreende os anos de 1975 a 1985 é um contexto de abertura de

novas fronteiras agrícolas, de avanços das relações capitalistas no Sudoeste representada

pela monocultura mecanizada, como detalha o gráfico a seguir:

Gráfico 1. Unidades de tratores na região Sudoeste – 1970/1980

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Gráfico organizado pelo autor a partir de dados do IBGE – Censos agropecuários de 1970 e 1980.

Ao analisar os dados coletados pelos Censos Agropecuários do IBGE de 1970 e 1980

encontramos indícios das mudanças no modo de produzir, principalmente pelo aumento na

quantidade de máquinas como os tratores. No gráfico anterior podemos verificar que em

1970 a quantidade de tratores na região era de 185. Enquanto na década seguinte o número

aumentou significativamente para 4091 tratores. Um aumento superior a 2000% num

período de 10 anos.

Os significados destas novas técnicas e ferramentas de trabalho e produção

representaram, para os trabalhadores rurais, mudanças na forma de viver no campo. Estas

mudanças também acarretaram no aumento do êxodo rural da região. Os anos de 1970

registravam uma população urbana de 80.401 pessoas (19%), enquanto a rural era de

345.959, ou seja, 81%. Já no ano de 1991 as populações urbanas e rurais se equiparam, a

primeira com 225.666 (48%) e a segunda com 252.460 (52%). Houve, no período, uma

diminuição de 29% da população rural.

Estas contradições sociais motivadas pela mecanização do campo trouxeram

elementos que possibilitaram a construção de movimentos sociais na região. Mas não só. A

re-organização dos movimentos de luta pela terra, organizados em nível nacional a partir de

1985, tem sua origem também em práticas sociais organizadas pela ASSESOAR, pela CPT

e pelos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais.

A retomada das ocupações de terras ocorreu em 1983 na região. A ocupação da

fazenda Anoni, no município de Marmeleiro, por 646 famílias, assim como a organização

do Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paraná (MASTES) são resultados

de um longo processo de expropriação sofrido pelos agricultores, mas também, do trabalho

desenvolvido pelos Sindicatos, ASSESOAR e CPT na região.

ASSESOAR e a luta por reforma agrária no Sudoeste do Paraná

Os últimos cinco anos de 1970 e os primeiros cinco da década de 1980 representaram

para os movimentos sociais um processo de re-organização e de enfrentamento aberto a

concentração fundiária na região. A temática da educação popular esteve presente desde os

primeiros anos na ASSESOAR. Outra questão importante de destacar é que ela não está

desvinculada da reforma agrária.

A Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural - criada em 1966, por

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influência da Igreja Católica e fundada por padres belgas que, imbuídos do Concílio

Vaticano II, buscavam uma maior participação dos leigos na igreja e na sociedade e passaram

a contribuir para a educação, formação e orientação para o campo. Porém, é quando ela

rompe com a ala liberal da Igreja Católica, por volta de 1980, que estava ligada a doutrina

racial cristã, é que sua atuação frente aos problemas fundiários se torna mais ativa. Sendo

seus ideais influenciados pela Teologia da Libertação, que existia em quase todo o país desde

1970, ela passa a atuar junto com a CPT e discutir nas Comunidades Eclesiais de Base outras

perspectivas, na maioria das vezes atentando para a importância de uma organização dos

colonos para enfrentar os problemas que eram semelhantes em quase toda a região.

Os trabalhos de formação e de fortalecimentos dos Sindicatos feitos pela

ASSESOAR se davam por meio do aprofundamento de sua assessoria e da potencialização

da educação popular através da formação pastoral em reuniões clandestinas, onde

incentivavam a participação do leigo. Era feito com a produção de materiais em massa, tais

como os Roteiros para Grupos de Reflexão. O número 2, por exemplo, se chama de “A

Religião do Povo” e é de 1977: o objetivo é chamar a atenção para como a igreja é um espaço

de debate político e de lutas sociais. O Nº 4, denominado de “Problemas Rurais”, relaciona

as passagens bíblicas com os problemas de concentração de terra.

Outro documento produzido em massa e que servia como subsidio para a formação

pastoral nas comunidades, foi “Bíblia e Terra” de 1981. Neste material produzido para 12

encontros, faziam uma discussão sobre como “a terra é um dom de Deus” e, por outro lado,

como a propriedade privada era uma barreira as leis de Deus e que não era “conforme o

plano de Deus o fato de muitos agricultores não terem terra, enquanto há tanta terra que não

está sendo cultivada”.

O roteiro nº 1 “Conheça seus direitos – Sindicato” datado de 1979, com material para

26 reuniões, teve grande importância e circulação na região, servindo como importante

material de discussão entre os lavradores das comunidades. O principal objetivo do roteiro

era de discutir sobre a necessidade de união entre os lavradores e agricultores nos sindicatos,

assim como de apresentar como o sindicato é dos trabalhadores e deve servir como

ferramenta de luta destes.

Na década de 1980 os materiais focavam na assessoria organizativa dos Sindicatos

em frequente comunicação com a luta pela terra e contra as barragens, tanto que em alguns

materiais, além das questões referentes a luta dos agricultores contra a ITAIPU, haviam fotos

das grandes assembleias e menções as deliberações de cada uma.

Na mesma década a Associação potencializou os cursos de formação política nos

sindicatos. Focalizou em temas totalizantes numa aproximação de leituras marxistas da

realidade. Os cadernos “Saber é poder 1 e 2”, de 1980, possuem abordagens sobre classe

social, luta de classes, economia política e, pela primeira vez, falam em socialismo. No

primeiro destacam o que chamam de “ferramentas que os dominantes criaram para continuar

com a dominação”, tais como Estado, meios de comunicação, Sindicatos e partidos políticos.

Destacam que são “meios controlados por eles (burgueses)” e que deveriam ser disputados

pelos trabalhadores.

Já no segundo livro a entidade discutiu sobre como deveria ser a organização dos

trabalhadores e a importância que a luta coletiva e organizada teria para a transformação da

sociedade. Porém, o que chama a atenção é a valorização que dá as ferramentas já elaboradas

pelos trabalhadores, como os mutirões e as compras em conjunto. E destaca como estas são

ferramentas que podem ser fortalecidas se organizadas em conjunto com associações,

sindicatos e escolas.

Estes materiais eram debatidos em reuniões das Comunidades Eclesiais de Base ou

nos Sindicatos. Estas reuniões serviam como ponto de junção, tal como desenvolvido por

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Thompson (THOMPSON, 2002, p.10), ao discutir a organização dos movimentos sociais

dos trabalhadores na Inglaterra do século XVIII, e mantinham o povo organizado. As

reuniões, as assembleias e os boletins exerceram importante papel na construção de uma

identidade de classe entre os trabalhadores da região.

Considerações finais

Nestes materiais havia o incentivo ao debate em grupos, como deixa claro a segunda

orientação do roteiro “Conheça seus direitos”: “Esse livro não foi apenas para ser lido pelo

lavrador sozinho em sua casa. Ao contrário, está planejado de modo que facilite a leitura e

troca de ideias entre grupos de lavradores”, esta metodologia incentivava a aproximação, o

diálogo entre os lavradores, e, da mesma forma, politizavam espaços como a igreja.

Outra característica destes materiais eram as frequentes aproximações dos problemas

vividos pelos trabalhadores com as questões da Bíblia e, desta forma, questionavam como

poderiam resolver. Dentro de cada reunião sempre haviam perguntas que deveriam ser

respondidas através dos debates em conjunto.

Concluímos que a luta por terra feita no Sudoeste durante as décadas de 1954 a 1985

passou instantes de efervescência, enquadramento e re-organização, de crise econômica na

pequena agricultura, com um grande processo de endividamento de agricultores, e com um

número cada vez maior de sem terras. Estes contextos trouxeram diferentes formas de

atuação e organização dos Sem Terra e também por parte da Igreja, da CPT, da Assessoar e

de movimentos como MASTES e MST. Algumas destas concepções eram conflitantes e

demonstram a complexidade na relação com os camponeses e sem terras, ao passo que

evidencia a diversa atuação destes movimentos contra o avanço do grande latifúndio.

Bibliografia

CHRIST, Flaviane Monica. Memórias, projetos e lutas na formação histórica do Sindicato

dos Trabalhadores Rurais de São Miguel do Iguaçu/PR (1970-2009). Dissertação (Mestrado

em História, Poder e Práticas Sociais), Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal

Cândido Rondon, 2010.

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THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum – Estudos sobre a cultura popular

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THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de

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“QUEREM APAGAR O LAMPIÃO”

Ronielyssom Cezar Souza Pereira1

Resumo: Esta apresentação é produto de uma avaliação parcial das análises efetuadas sobre

o jornal Lampião da Esquina, um periódico que esteve presente principalmente nas capitais

do Rio de Janeiro e São Paulo, entre os anos de 1978 e 1981. Este jornal era produzido por

alguns profissionais como o artista plástico Darcy Penteado, o então jornalista Aguinaldo

Silva e o escritor João Silvério Trevisan, entre outros sujeitos que decidiram veicular um

periódico destinado às minorias, e de modo muito substancial às homossexualidades, “dando

voz” a estes sujeitos socialmente interditados no que tangia aos direitos sociais que foram

sendo conquistados nas décadas posteriores. Percebemos que a existência do jornal

alternativo Lampião da Esquina está circunscrito no período da ditadura militar no Brasil,

iniciada em 1964, mas cujos efeitos foram sentidos além do ano de 1985, tido como término

oficial do regime. Nessa proposta, não se investiga apenas a forma como o jornal foi

impactado pelos mecanismos repressivos do regime militar, pois isso é exposto pela análise

da edição número 9 do referido jornal. Não obstante, esta proposta visa adentrar na narrativa

do impacto sofrido, apresentada aos leitores, para pinçar as contiguidades de produção de

sentidos sobre direitos humanos, no jornal, opostas aos dessemelhantes atos repressivos e

pressões exercidas pelas autoridades.

Palavras-chave: Imprensa Alternativa; Jornal Lampião da Esquina; Homossexualidade.

Introdução e ressalvas

Este trabalho corresponde aos resultados parciais de algumas análises iniciais sobre

o corpus documental constituído pelas 38 edições do jornal Lampião da Esquina. Visto a

amplitude do material disponível delimitamos a priori focar na edição número 9, de

fevereiro de 1979, recortando para análise a sua matéria de capa em que o jornal estampava

a seguinte manchete: “Moral e Bons Costumes?”, que por sua vez estava na seção

Reportagem do jornal, sendo constituída pela opinião de algumas pessoas da sociedade civil

e por 4 artigos: “Para o Brasil do ano 2000 os ‘bons costumes’ do século XIX”, de Aguinaldo

Silva; “Cada época com sua medida”, por Peter Fry; “Helena Sangirardi dá a receita certa”,

por Francisco Bittencourt; e “‘Ma che cosa é questa?”, escrita por Darcy Penteado.

Antes de voltar a atenção para os artigos que constituem a manchete da referida

edição, é preciso indicar alguns apontamentos sobre o jornal Lampião da Esquina. Este foi

um periódico da imprensa alternativa2 que circulou em várias capitais brasileiras, entre os

1 Mestrando em História na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) com bolsa de

financiamento pela demanda social da CAPES. 2 Para Bernardo Kucinski “o radical de alternativa contém quatro dos significados essenciais dessa imprensa:

o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente

excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos de

1960 e 1970, de protagonizar as transformações sociais que pregavam” (KUCINSKI, 1991, p. 5). Por conta

das diversas possibilidades de sentido, aqui neste trabalho o termo é utilizado no sentido de algo que não está

ligado às políticas dominantes, visto que o jornal Lampião da Esquina não é um jornal constitutivo da grande

imprensa e propõe-se a falar de assuntos que não eram tão bem expostos pela grande imprensa como, por

exemplo, a sexualidade e principalmente a homossexualidade pela perspectiva dos próprios homossexuais,

entre outras temáticas direcionadas a minorias sociais como as mulheres, os negros, os índios entre outros.

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anos de 1978 e 1981, mas de modo muito significativo este jornal esteve presente nas capitais

de Rio de Janeiro e São Paulo, nas quais respectivamente estavam situadas a redação

principal e a principal equipe editorial do jornal.

Outra menção importante a ser considerada é a composição do corpo editorial de

Lampião da Esquina e seus colaboradores, a qual era composta por profissionais

reconhecidos profissionalmente na área em que atuavam como Adão Acosta, Aguinaldo

Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Darcy Penteado, Francisco Bittencourt,

Gasparino Damata, Jean-Claude Bernardet, João Silvério Trevisan e Peter Fry. Sujeitos estes

que por um bom tempo compunham o conselho editorial de Lampião da Esquina. O

diferencial a respeito desse conselho editorial e seus colaboradores se refere ao fato de que

a maioria deles era assumidamente homossexuais, e isso coloca o jornal no patamar de uma

imprensa alternativa politicamente engajada. Se o posicionamento do jornal não se

direcionava exclusivamente para a “luta maior”, isto é, a luta de classes, não significa que

ele não fosse engajado, haja visto que o conselho editorial do jornal se propunha desde sua

edição zero, na página dois no ano de 1978, a dar “voz a todos os grupos injustamente

discriminados”.

Outro aspecto sobre a própria materialidade do jornal se refere à linguagem articulada

na composição dos artigos e notícias que compõem as diversas seções do jornal: Editorial,

Cartas na Mesa, Reportagem, Bixórdia, Esquina, entre outras, lembrando que durante sua

curta existência algumas seções deixaram de existir por algumas edições, retornando após

um longo tempo, já que a periodicidade do jornal, diferentemente da grande imprensa que

era diária, se caracterizava por publicações mensais com o acréscimo de algumas edições

especiais. A linguagem apropriada pelos articulistas do jornal tratava-se de uma linguagem

informal, coloquial, que expunha termos que a grande imprensa costumeiramente não

utilizava, como forma de “dar voz” a sujeitos pertencentes às minorias sociais, especialmente

homossexuais, interditados socialmente, pois dificilmente estes sujeitos teriam voz na

grande imprensa no momento que o país vivia, ou mesmo anteriormente.

Por fim, um aspecto extremamente relevante e que passa de relance no parágrafo

anterior, se refere ao período singular que o Brasil vive durante a curta vida de Lampião da

Esquina, isto é, o período da Ditadura Militar no Brasil. Iniciada através de um golpe militar,

em 1964, que se prolongaria explicitamente por 21 anos, mas cujos efeitos foram sentidos

muito além. E neste contexto o interessante a se considerar, para fins deste trabalho, no que

tange ao período em que a edição analisada está situado, é a questão da censura que os

diversos aparelhos estatais impunham a alguns sujeitos e a algumas imprensas. Haja visto

que neste breve trabalho não há como aprofundar o conhecimento em uma temática tão

extensa sobre a questão da censura em suas diferentes formas, nuances e relações durante a

Ditadura Militar, fica a indicação da obra Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura

militar: espionagem e polícia política, do historiador Carlos Fico, ponto de partida para

aprofundamento na temática.

Rodrigues (2014) nos dá um breve panorama sobre a situação do jornal Lampião da

Esquina frente às censuras, das quais diversos meios de comunicação vinham sendo

atingidas. No que tange a Lampião da Esquina, Rodrigues diz que o jornal já vinha sofrendo

pressões desde agosto de 1978, e se considerarmos que o jornal só havia surgido em abril

daquele mesmo ano, veremos que praticamente desde seu surgimento o jornal já é um alvo

da censura militar, algo que evidentemente já era esperado pelos organizadores visto os

temas que o jornal se propunha a trabalhar. Ainda nesse breve panorama apresentado por

Rodrigues o autor aponta que em 2 de abril de 1979 cinco editores compareceram à sede da

Polícia Federal do Rio de Janeiro para serem indiciados criminalmente, informação esta que

vemos no próprio jornal Lampião da Esquina, na edição de número 12, em maio de 1979.

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Nas edições número 13, 15 e 18, Rodrigues aponta mais informações que mostram a clara

intenção de se fechar o jornal, sendo que durante o encaminhamento para o final do

arquivamento do inquérito contra Lampião da Esquina, os censores chegam a apelar para os

balancetes e livros de contabilidade como forma de encontrar algum motivo para o

fechamento do jornal. A Polícia Federal “pretendia provar que a empresa (o jornal) não tinha

condições de sobreviver” (RODRIGUES, 2014, p. 108).

Tendo em mente esses aspectos imbricados é que nos propomos brevemente a olhar

os artigos considerados para análise, através da Análise de Discurso (AD), porque eles não

são meramente informações direcionadas para um público homossexual, ou de minorias

sociais, bem como também não é uma imprensa alternativa de esquerda ortodoxa

politicamente engajada. Sua relevância só faz sentido ao considerar a situação de interdição

a que lésbicas, gays, bissexuais, transvestis e transgêneros (LGBT) se encontravam atrelados

antes, durante e até mesmo após o período da Ditadura Militar.

Dos “bons costumes” como um pano de fundo transparente para uma crítica à censura

No primeiro artigo a ser considerado, Para o Brasil do ano 2000 os “bons costumes”

do século XIX, o escritor Aguinaldo Silva assume o risco de lançar sérias críticas ao diretor

da Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal, Rogério Nunes, elaborando

um discurso em defesa da homossexualidade e reiterando o direito de visibilidade dos

sujeitos homossexuais. Aguinaldo Silva também denuncia a imagem padrão que se faz dos

homossexuais, segundo a qual eles seriam sujeitos das sombras, como a sapatão e a bicha

louca, mas o autor afirma que se estes estereótipos existem é porque tais sujeitos são

socialmente marcados pelo estigma da diferença quando assumem uma posição política

expressa na sua sexualidade em oposição à heteronormatividade. Segundo Aguinaldo Silva

(1979, p. 5), “essa questão [...] não poderia nunca ser encampada por nós [homossexuais]

porque isso seria aceitar o fato - este sim, imoral - de que a hipocrisia deve obrigatoriamente

fazer parte de nossas vidas”.

O artigo Cada época com sua medida, de Peter Fry, destaca brevemente algumas

diferenciações na concepção de moral em dois ou três períodos distintos. A intenção de Fry

ao escrever este artigo para o jornal Lampião da Esquina é uma crítica que complementa a

posição adotada por Aguinaldo Silva, porque Fry se utiliza dessas diferenciações para tomar

como escopo de sua fala justamente o questionamento sobre o discurso oficial sobre as

sexualidades desviantes do heterossexual. Quando Fry diz que “as regras que dizem respeito

à homossexualidade não pertencem à esfera pública da sociedade, mas sim à esfera privada”

(FRY, 1979, p. 6), ele está pondo em cheque o jogo de posições entre um discurso oficial,

heteronormativo, veiculado na grande imprensa, em contraponto a uma minoria social

interditada, que até então não possuía respaldo legal, que tinha sua sexualidade vista como

uma patologia perante boa parte da situação, porque os dados oficiais para se falar de

homossexualidade ainda eram pautados e influenciados por pesquisas que vigoraram na

primeira metade do século XX.

Já o artigo de Francisco Bittencourt, Helena Sangirardi dá a receita certa, traz uma

breve apresentação sobre quem foi Helena Sangirardi3 para, em seguida, questionar essa

personalidade sobre qual a sua opinião a respeito do tema da manchete, “Moral e bons

costumes?”. Então, tendo aparentemente como pano de fundo uma pergunta sobre “hábitos”,

3 Helena Sangirardi foi jornalista, mestre-cuca fazendo culinária na TV a partir de 1952, animadora cultural

com um programa na TV Tupi, e que, na segunda metade da década de 1940, ficou mais conhecida

popularmente, período este em que ela trabalhava em O Cruzeiro.

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Helena Sangirardi dá sua opinião de modo claro a respeito da censura em suas formas

refinadas colocadas em prática durante o regime militar. Ambos os posicionamentos, de

Bittencourt (1979) e de Helena Sangirardi, problematizam a questão da censura,

principalmente no que tange a grande mídia. Isso leva a pensar e questionar qual a razão para

um debate que ocupa tanto espaço nesse periódico de poucas páginas? Qual a associação

entre o debate sobre a censura na imprensa de modo geral e a proposta inicial de Lampião

da Esquina? Essas perguntas são óbvias, mas a relação entre ambos mantém um elemento

fundamental a ser refletido: a maneira como as imagens e as representações dos diferentes

sujeitos LGBTs eram vinculados na imprensa e até mesmo como a homossexualidade

chamou a atenção dos censores, dos ideólogos e das forças de segurança do regime militar4.

Por fim o último artigo relacionado à matéria de capa da edição número 9 do jornal

Lampião da Esquina, a qual foi escrita por Darcy Penteado, Ma che cosa é questa, vai

apresentar ao público, na medida do possível, boa parte do processo de repressão e censura

que o jornal vem sofrendo desde sua abertura. Este artigo é o ponto alto do jornal, porque é

nele que aparecem denúncias contra a Polícia Federal, no que diz respeito à intenção de se

fechar o jornal Lampião da Esquina. Outro apontamento que o discurso de Darcy Penteado

foca de modo especial, diz respeito às interpretações do que é moralmente aceitável e o que

não é. Neste sentido é praticamente um refinamento dos apontamentos trazidos até então nos

artigos anteriores a esta, supracitados. E é justamente do artigo de Darcy Penteado que aqui

é colocado um fragmento para encaminhar as considerações destas rápidas análises:

Se é para moralizar, partamos de uma premissa honesta: em vez de sair à

caça de bruxas hipotéticas ou procurar com lupas de aumento pelos em

ovos, anulemos a ação perniciosa dos fomentadores de preconceitos, dos

intolerantes, dos interesseiros, dos corruptos. Se os "donos da verdade" se

fazem de cegos e não topam a proposta, não tem importância; o povo

enxergará por eles (PENTEADO, 179, p. 6).

O interessante a notar no fragmento do artigo de Darcy Penteado é que o autor aponta

claramente a perseguição a sujeitos específicos pela ditadura militar, dentre os quais o

segmento LGBT e mais especificamente o jornal Lampião da Esquina é que personificam

as “bruxas hipotéticas” ou os “pelos em ovos”. O autor não quer apenas chamar atenção para

o fato de que a Polícia Federal tentava de diferentes formas censurar, ou ao menos, dificultar

a proposta inicial do jornal. Isso fica mais claro ainda quando se lê a afirmativa de Darcy

Penteado “anulemos a ação perniciosa dos fomentadores de preconceitos, dos intolerantes,

dos interesseiros, dos corruptos”, pois neste fragmento a única coisa que falta é o autor dar

nome aos bois, porque não se trata apenas de uma crítica ao Regime Militar, mas é também

uma crítica a determinados setores da sociedade brasileira como algumas classes

dominantes, donas de importantes meios de comunicação, e que, em certa medida, também

estabeleciam relações muito singulares com o Estado no que tange à censura ou censura

prévia5.

4 Sobre este assunto Benjamim Cowan apresenta algumas informações relevantes para se aprofundar na

compreensão sobre como os ideólogos da ditadura interpretaram a emergência da visibilidade das

homossexualidades, atrelando estas como uma maquinação do Movimento Comunista Internacional. A

respeito desse assunto consultar a obra Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da

verdade, especificamente o capítulo I, escrito por Benjamim Cowan. 5 O trabalho da Historiadora Beatriz Kushnir Cães de Guarda:Jornalistas e Censores, do AI-5 à constituição

de 1988 aponta com clareza de detalhes a relação entre censura e jornalistas de uma perspectiva poucas vezes

pensada nos estudos sobre ditadura. Esta obra contribui em profundidade para rever o jogo de posições que se

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Considerações finais

Há muito que já foi dito com a finalidade de compreender as tramas que envolveram

a questão da censura durante o regime militar no Brasil, contudo é preciso salientar que o

estudo de casos específicos tem se mostrado de grande valia para perceber novas

perspectivas e novos questionamentos a respeito de antigos problemas. Outra consideração

importante a se fazer, diz respeito ao aumento relevante no que tange ao estudo da repressão

a LGBTs durante a ditadura militar, bem como sobre as relações que se estabeleceram entre

este segmento e outras minorias sociais e a sua relação com a própria esquerda no contexto

em questão. Desta forma, em suma, o aprofundamento das pesquisas aponta que são

necessárias pesquisas sobre a censura não apenas durante o período do regime militar no

Brasil, mas antes e após esse evento, tendo em mente tanto o processo de transição quanto a

visibilidade de sujeitos anônimos na historiografia oficial.

Referências bibliográficas

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa.

Página Aberta, 1991.

KUSHNIR, BEATRIZ. Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à constituição de

1988. São Paulo: Boitempo; FAPESP, 2004.

RODRIGUES, Jorge Caê. Um lampião iluminando esquinas escuras da ditadura. In:

Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca pela verdade. GREEN,

James Naylor; QUINALHA, Renan. (Org.). São Carlos: EDUFSCar, 2014.

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Fontes

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de Janeiro, p. 6, fev. 1979.

FRY, Peter. Cada época com sua medida. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, p. 5, fev,

1979.

PENTEADO, Darcy. “Ma che cosa é questa? Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, p. 6,

fev. 1979.

SILVA, Aguinaldo. Para o Brasil do ano 2000 os “bons costumes” do século XIX. Lampião

da Esquina. Rio de Janeiro, p. 5, fev. 1979.

constituía entre Estado e classes dominantes na produção da informação a ser consumida.

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KARL POPPER: SOBRE A TEORIA DA MENTE OBJETIVA - APROXIMAÇÃO

DA TESE DOS TRÊS MUNDOS E O PROCESSO DE COMPREENSÃO DOS

MESMOS COM A INVESTIGAÇÃO DO PESQUISADOR ACERCA DO

RESGATE DA MEMÓRIA DOS MORADORES SOBRE A COLONIZAÇÃO E

FORMAÇÃO DO DISTRITO DO PORTÃO OCOÍ MISSAL/PR

Rosangela Parizotto1

Resumo: O objetivo deste é apresentar uma visão “pluralista” como alternativa à corrente

tradicional dualista – dualidade corpo e mente que Karl Popper explicita no texto Sobre a

Teoria da Mente Objetiva, e a tese dos três mundos: o mundo material (ou dos estados

materiais); o mundo mental (ou dos estados mentais); e o mundo dos inteligíveis (ou dos

objetos de pensamentos possíveis), buscando uma interação com a pesquisa de preservação

da memória da formação do Distrito do Portão Ocoí Missal/PR. As famílias que ocuparam

este espaço geográfico vieram, em sua maioria, dos Estados do Sul do Brasil. Aqui

compraram suas terras, denominadas de posse, havendo muitos conflitos armados,

emboscadas, pois os chamados jagunços impediam o desenvolvimento das comunidades o

que acabou acentuado com a Ditadura Militar. Estas e outras necessidades das famílias em

meio aos conflitos, fez com que ocorresse a construção da Igreja/escola que marca a criação

e posterior transição como instituição pública. Optou-se por pesquisar desde a formação do

Distrito em 1961 até 2015, pois ainda são muitos os moradores que auxiliaram na formação

destas comunidades que fazem parte das mesmas e fazer um recorte temporal seria difícil,

pois no dissociar a história, poderia se perder dados importantes da mesma. Utilizaremos a

pesquisa bibliográfica e a pesquisa de campo, tratados aqui como entrevista semi estruturada.

Palavras-chave: Formação das Comunidades; Memórias Oral e Escrita; Identidade;

Ditadura Militar

Sobre Karl Popper

Karl Raimund Popper nasceu em Viena, em 28 de julho de 1902. Filho de judeus, a

família de seu pai advogado viera da Boêmia, a mãe era pianista. Foi criado em um ambiente

progressista e depois da 1ª Guerra envolveu-se na reforma socialista e em círculos de

discussão da nova filosofia científica de cunho positivista, que ele passou a criticar de uma

perspectiva inicialmente kantiana. Emigrou para a Nova Zelândia em 1937, e ganhou fama

com seu livro de filosofia política, A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945). Estabeleceu-

se na Inglaterra em 1946, onde publicou vários trabalhos importantes. Em 1979 lançou sua

Autobiografia Intelectual, que é imprecisa em diversos pontos. Faleceu em 1994.

Identificação da pesquisa

O trabalho em si procura abordar a relação da pesquisa do investigador com o texto

de Karl Popper, pesquisa esta que tem como objetivo buscar como se deu a formação da

Comunidade do Portão Ocoí e suas comunidades adjacentes que hoje formam o Distrito do

1 Mestranda 2014/2015 em Educação – Linha de Pesquisa: História da Educação – Na Universidade Estadual

do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de Cascavel/PR.

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Portão Ocoí, que pertence ao município de Missal/PR. As famílias dos pioneiros, em sua

maioria, ainda moram nestas localidades, bem como alguns deles ainda vivem. Não há

histórico documentado das mesmas, somente conversas informais sobre as dificuldades

encontradas com a colonização em meio a Ditadura Militar. Sendo assim, através das

memórias orais, buscou-se informações relevantes que trazem as dificuldades que estas

famílias, que prezam a palavra ‘pioneiro’, tiveram para “adentrar no antigo sertão”2.

Esta pesquisa já se iniciou quando das leituras primárias realizadas pelo investigador,

e pretende-se consolidá-la até meados de 2015, sendo que o objetivo principal é resgatar a

história das Comunidades que compõem o Distrito do Portão Ocoí, suas tradições e aspectos

culturais e educacionais, desde sua colonização em 1961 até 2015, visando estabelecer um

sentimento de respeito e preservação, valorizando os colonizadores e seus moradores atuais.

A escolha das fontes deu-se a partir das já existentes (no máximo quatro referencias),

e esta falta de fontes é uma das justificativas desta investigação, ou seja, a ausência de relatos

documentados dos moradores sobre a colonização e formação do Distrito do Portão Ocoí

Missal/PR. Conforme relatos orais passados de geração em geração, por volta de 1960, estas

comunidades começaram a ser ocupadas, aos arredores do Rio Ocoy3 que divide os

municípios de Medianeira e Missal. Assim, a pequena vila de Portão Ocoí se formou antes

mesmo do lançamento da inauguração e colonização da cidade de Missal/PR (1963), bem

como a construção de escolas, onde nelas aos domingos as famílias se reuniam também para

rezar. Portanto, com esta pesquisa busca-se, além da valorização destas pessoas tão

importantes para a atualidade, dar a este lugar o seu valor histórico para as próximas

gerações, de forma documentada.

Abordagem a partir do ponto de vista de Karl Popper

Popper destaca que “todo o nosso conhecimento é impregnado de teoria, inclusive

nossas observações” (POPPER 1975, p. 75). Não existem dados puros, fatos neutros que

sejam livres de teoria.

Assim, Popper construiu a teoria dos três mundos para explicar o problema da relação

corpo-mente, e embora esta teoria dos três mundos não explique essa relação na totalidade,

dá-lhe pelo menos um sentido que pode ajudar a perceber este dualismo ou interação entre

o corpo e a mente. Segundo Popper, trata-se do problema mais profundo e mais difícil da

filosofia, o problema central da metafísica moderna. Como o homem é um ser espiritual, um

ego, uma mente que se encontra intimamente ligada a um corpo sujeito às leis da física, ele

encerra em si mesmo e também o problema da liberdade humana, que em todos os aspectos,

incluindo político, é um problema fundamental; encerrando o problema da posição do

homem no mundo físico, no cosmos físico, que é o mundo um (1) de Popper. Esta teoria foi

desenvolvida em oposição às doutrinas do materialismo, baseada numa definição especial

da realidade, segundo a qual algo é real se puder afetar o comportamento de um objeto de

grande escala. Temos, portanto, o mundo um (1), que é o mundo dos acontecimentos físicos,

onde se incluem substâncias, campos, todas as coisas materiais.

No mundo dois (2) se inclui o mundo dos acontecimentos mentais, da experiência

consciente, perceptiva, visual, auditiva, mundo este onde se está o cérebro humano com

todos os seus processos da consciência humana. Por último, o mundo três (3), que é o mundo

2 Frase do Hino do Município de Missal disponível em:

<http://www.missal.pr.gov.br/prefeitura/html/main.jsp?cat=mun&pg=hino>. 3 Quando se trata do Rio, Ocoy se escreve com Y. Quando da Comunidade, Ocoí é escrita com I. Esta mudança

foi realizada pelos vereadores com projeto votado em sessão da Câmara.

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das criações objetivas da mente humana, ou melhor dizendo, o mundo dos produtos da mente

humana como as expressões linguísticas, os registos duradouros da realização humana,

intelectual, bibliotecas, museus, ornamentos e utensílios. Ou seja, na teoria dos três mundos,

Popper separa o mundo das coisas materiais, do mundo subjetivo dos processos mentais e

do mundo dos produtos da atividade dos organismos, onde estariam os produtos culturais.

Segundo Popper, uma grande parte do mundo três (3) consiste em objetos do mundo

um (1) transformados pelo mundo dois (2). Um exemplo citado por ele: uma peça musical é

mais do que um objeto do mundo um (1) e é real porque a sua existência pode afetar o

comportamento de objetos físicos de grande escala. Mas isto só é possível devido à

intervenção de uma mente humana consciente. Sem uma mente, o mundo três (3) não é real,

mas tem o potencial de ser real. É preciso ler isto à luz das interpretações quânticas, segundo

as quais os resultados das medições são reais apenas quando são observados.

No mundo um (1), as substâncias invisíveis são reais (por exemplo, o ar), porque

podem afetar outros objetos visíveis. No mundo dois (2), os estados do cérebro são reais,

enviam sinais através das linhas nervosas, fazem contrair os músculos que batem numa bola

do mundo um (1). As entidades do mundo três (3) não são apenas objetos físicos nem estados

cerebrais. Histórias, mitos, peças musicais, teoremas matemáticos ou teorias científicas,

todos eles necessitam da intervenção de uma mente humana autoconsciente para se tornarem

reais.

Portanto, o fato é que a epistemologia precisa da separação e da interação entre o

mundo um (1), mundo dois (2) e mundo três (3), para poder ser plenamente compreendida,

e tal separação entre mundos precisa de pelo menos um dualismo interacionista, que na

verdade, é um pluralismo interacionista, para ser coerente. Nas palavras de Popper (1975, p.

24): “[…] os resultados da física moderna sugerem que a ideia de substância ou essência

deve ser esquecida. Eles sugerem que não há uma entidade provida de auto identidade que

resista a todas as mudanças no tempo”.

Assim, o processo de recriação nos coloca em contato com os objetos do mundo três

(3), mundo que é criação do homem e que não existia antes do homem o criar. Ou seja, se

considerarmos o mundo dois (2) e o mundo três (3) como nada mais do que aspectos do

mundo um (1), assim como é comumente defendido pela filosofia da mente contemporânea,

a epistemologia de Popper perde largamente o seu poder argumentativo e pode, até certa

medida, ser considerada refutada. Porém, Popper deixa isto bem claro: não só pretende

defender o dualismo como também o interacionismo, pois se houver uma mente

independente do corpo, mas ainda assim ela não puder causar nada neste corpo, o ser humano

permanece tendo o funcionamento de uma máquina.

Discussão do tema pesquisado a partir das ideias de Popper

Buscamos relacionar o tema pesquisado com a Teoria de Popper, que afirma que o

mundo um (1), é o mundo dos acontecimentos físicos, onde se incluem substâncias, campos,

todas as coisas materiais, com os acontecimentos da época da colonização do Distrito de

Portão Ocoí – Missal/PR. Ou seja, no início da década de 60, no século passado, com a vinda

dos imigrantes em busca de terra própria, visando o povoamento e à exploração da terra por

meio de atividades agrárias, com o objetivo de povoar esta região paranaense ainda

considerada deserta e também para dar continuidade à agricultura familiar empreendida pela

pequena propriedade desde os primórdios da imigração europeia realizada no sul do país,

distribuindo-se de forma que hoje ainda pode-se perceber que no Distrito do Portão Ocoí, a

grande maioria das famílias são de descendentes italianos e brasileiros.

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Na ocupação e colonização do Oeste do Paraná, a Casa Escolar Particular mais

comum foi a Escola dos Colonos. Este tipo de escola originou-se da própria índole dos

descendentes de imigrantes europeus. Os grupos coloniais não esperavam que o poder

público resolvesse o problema da educação; eles construíam sua escola, contratavam e

pagavam seu professor e produziam a educação por eles percebida como necessária, como

afirma Emer (2004, p.10). No povoado do Portão Ocoí a escola foi construída entre 1964 e

1965.

Porém, os colonizadores trouxeram consigo os costumes, a sua cultura, a sua forma

de plantar e colher, se vestir, ou seja, o mundo da consciência. Entre estes diferentes povos

incorporou-se as diferentes atividades, as trocas de experiências, e os relatos apontam que

as primeiras colheitas, devido a insegurança causada pelos ‘jagunços’, eram realizadas em

grupos, desde o plantio até a colheita, organizaram-se e trabalham juntos, para sentirem-se

protegidos.

Assim, com as dificuldades vem à necessidade de tomar atitudes juntos para

vencerem os obstáculos, e nascem as pequenas comunidades, onde deixam a vila do Portão

Ocoí e em grupos colonizam outros espaços próximos, formando as demais comunidades

que hoje pertencem ao Distrito.

Devido às terras de posses, a falta de materiais (foices, serrotes, machados), as feras

da mata, as emboscadas de jagunços, e tantas outras dificuldades, precisaram criar

mecanismos para superarem tais obstáculos. Alguns colonizadores comentam que os

conflitos entre jagunços e agricultores foram muitos. A comunidade de São Sebastião até

pouco tempo atrás (e há ainda quem a denomine) era chamada de ‘Pito Aceso’, pois ali houve

embates e muito derramamento de sangue nas lutas em que os colonos precisavam provar

que as terras que haviam comprado e pago eram deles. Houve muitos casos de documentação

em duplicidade e assim, foram muitas as famílias que sofreram com a perda do genitor e/ou

dos filhos mais velhos nesta luta desigual. Desigual por que enquanto os colonos lutavam

com foice e machado, os jagunços tinham armas de fogo.

Mas, a ‘escolinha’, como costumam falar nos relatos orais, era o ponto em que se

reuniam periodicamente para trocas de ideias, buscando saídas para as dificuldades. E assim,

em grupos, foram se auxiliando e construindo as moradias dos colonos, a Igreja em cada

comunidade, e entre eles escolheram seus representantes, pois havia se instaurado no Brasil

em 1964 o Regime Militar4. Há relatos que em um determinado dia aproximadamente 150

policiais vieram a cavalo e em jipes para dar apoio aos jagunços. Neste dia, conta o professor

Gabriel Delazari5 que, percebendo a movimentação na vila do Portão Ocoí, foi conversar

com alguns policiais que estavam reunidos só aguardando a ordem do Superior para seguir

pelas estradas em meio a mata rumo a Comunidade de Pito Aceso, e lá descobriu o intuito

dos mesmos que era dar apoio aos jagunços. Delazari pediu ajuda à professora Olga Chechi

e esta saiu por trás da escola, num ‘carreiro em meio a mata’ e comunicou alguns membros

da comunidade, que logo trataram de dispersar a conversa sobre ação dos policiais que iriam

agir retirando os colonos das terras desta comunidade. Assim, as mulheres e as crianças

foram levadas para a casa de conhecidos de outras comunidades e os homens se

embrenharam na mata. Ao chegarem às primeiras residências e não havendo ninguém, os

policiais puseram fogo em algumas casas e paióis e se retiraram.

4 Regime instaurado em 1º de abril de 1964 e que durou até 15 de março de 1985. De caráter autoritário e

nacionalista, teve início com o golpe militar que derrubou o governo de João Goulart, o então presidente

democraticamente eleito. 5 Entrevista realizada em Setembro de 2014.

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Ou seja, conforme a teoria de Popper, o mundo três (3) é o mundo das criações

objetivas da mente humana. Assim, o trabalho do pesquisador será transformar os relatos

dos colonizadores em dados documentados, visando expor a todos as expressões linguísticas,

os registros das atividades humana, intelectual, bibliotecas, museus, ornamentos e utensílios,

visando sistematizar os relatos orais em escritos formais.

Conclusões provisórias possíveis

Dos três mundos de Popper, observa-se que apenas o mundo dois (2) está ao alcance

do Homem. Porém, ele pode moldar a racionalidade e adequar o seu pensamento à realidade,

ou seja, ir descobrindo a Verdade. Portanto, a função do pesquisador comparando-se aos

mundos de Popper, será o de interagir com a bibliografia existentes, com as memórias orais,

objetos, os acontecimentos físicos, refletir sobre os costumes, a cultura existente na época,

as fotografias, a religiosidade, as festas, e transformar em dados estas práticas humanas, e,

assim, resgatar a história das Comunidades que compõem o Distrito do Portão Ocoí, suas

tradições, aspectos culturais e educacionais, desde sua colonização em 1961 até 2015,

visando estabelecer um sentimento de respeito e preservação, valorizando os ‘colonizadores’

e seus moradores atuais.

Com a pesquisa até então, podemos afirmar que existem duas histórias dos

colonizadores: a que vem dos meios oficiais, principalmente dos históricos do município

(página eletrônica oficial da Prefeitura Municipal e do Livro Didático utilizado nas turmas

do 4º Ano do Ensino Fundamental); e a que vem da representação popular, a partir dos

depoimentos orais colhidos dos “pioneiros”.

Observa-se nestas entrevistas, a desconstrução desta história de pioneirismo, e desta

memória presente na oralidade dos entrevistados, emerge outro contexto, cheio de conflitos,

mas que não se sabe por que razões não são divulgados na bibliografia até então disposta

para pesquisa. Estas conclusões são parciais, visto que a pesquisa está em andamento, a qual

busca evidenciar os objetivos de produção do conhecimento histórico e sua articulação com

a memória.

Referências

DELAZARI, Gabriel. Entrevista concedida a Rosangela Parizotto em de setembro de 2014.

EMER, Ivo Oss. Aspectos históricos da educação regional. Cascavel, 2004. Mímeo.

LUNKES, Gisela. Conhecendo Missal: geografia e história (4º ano). 2ª ed. Marechal

Cândido Rondon: Germânica, 2014. 68 p.

POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Trad. de Milton

Amado. BeloHorizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975.

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“A CRISE DO SUBPRIME” UMA ANÁLISE CONJUNTURAL DA REVISTA VEJA

EM 2008

Sabrina Rodrigues Marques1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a posição favorável e a defesa que a revista

Veja faz do capitalismo durante a crise do Subprime em 2008, nos Estados Unidos, e que

continha como pano de fundo um discurso anticomunista. Além disso, buscou-se sempre

evidenciar o discurso neoliberal e globalizante que Veja traz consigo. A pesquisa tem como

finalidade evidenciar como se dá a construção de um pensamento único em favor do

capitalismo. Veja constituiu-se como um grande grupo midiático, que atua no Brasil desde

1968. Este estudo expressou-se porque em 1989 a revista comemorou sobre a vitória do

capitalismo, demonstrando que a Queda do Muro de Berlim tornou-se o símbolo do fracasso

do comunismo e o fim da história. O estudo acerca deste tema será por meio de matérias,

notícias e artigos, porém, o trabalho não possui qualquer intenção de fazer uma análise

estritamente econômica, mas, têm-se a necessidade de perpassar por análises conjunturais

do capital e do neoliberalismo dentro de uma produção historiográfica. Sendo assim, além

de toda análise historiográfica, procuramos também considerar os discursos utilizados pela

revista Veja dentro dos editoriais por economistas e jornalistas, e como se dá a criação de

um consenso nacional e internacional sobre a crise.

Palavras-chave: Revista Veja; Discurso Anticomunista; Crise do Capitalismo.

Introdução

Este trabalho tem como objetivo analisar a posição favorável e a defesa que a revista

Veja faz do capitalismo durante a crise do Subprime em 2008, nos Estados Unidos, e que

continha como pano de fundo um discurso anticomunista e a justificação de um projeto

neoliberal.

A pesquisa tem o intuito de analisar historicamente a crise de 2008 dentro da revista

Veja. O estudo acerca deste tema será por meio de matérias, notícias e artigos, averiguando

os desfechos dos governos americano e brasileiro, os impactos causados por essa crise no

Brasil, cunhando como os movimentos sociais e o acirramento da luta de classes fica

evidente dentro do sistema capitalista.

A revista Veja constituiu-se como um grande grupo midiático, que atua no Brasil

desde 1968. Sendo assim, a pesquisa parte da análise de algumas sessões dentro do editorial

da Revista Veja. Procurou-se também analisar os discursos utilizados por economistas e

jornalistas, e como se dá a criação de um consenso nacional e internacional. Além disso,

buscamos sempre evidenciar o discurso neoliberal e globalizante que Veja traz consigo. Por

conseguinte, o trabalho não possui qualquer intenção de fazer uma análise estritamente

econômica, mas, há necessidade de perpassar por análises estruturais e conjunturais do

capital e do neoliberalismo dentro de uma produção historiográfica.

Para compreender o período entre 1989 a 2009, precisa-se situar a Veja durante a

“instauração do capitalismo”, evidenciando o seu discurso anticomunista e a criação de um

pensamento único. Assim, dentro deste trabalho, teve-se a necessidade de expor algumas

1 E-mail: <[email protected]>, Mestranda em História pela UNIOESTE. Bolsista pela Capes

(Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal do Nível Superior).

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análises de historiadores sobre a produção marxista e as soluções buscadas por essa esquerda

mundial mantendo-se na luta anticapitalista e anticomunista.

O artigo será dissertado no primeiro momento, a partir da análise do contexto da

Crise do Subprime nos EUA dentro da revista Veja. Entretanto, sempre destacando o

discurso que Veja utilizou dentro do seu próprio editorial no período de 2008. O enfoque do

trabalho será que a revista realizará apenas uma análise conjuntural e não uma análise

estrutural do sistema, ou seja, que Veja procurará culpados pela crise do Subprime,

descolando a realidade estadunidense da realidade brasileira, afirmando que mesmo com o

sistema em crise, o Brasil estava em pleno vapor econômico e que não era culpa do sistema

capitalista, e sim de quem o gerenciava, banalizando todos problemas estruturais que o

sistema reproduz.

No segundo momento do artigo, iremos averiguar como a Revista não só produz e

reproduz a defesa de um projeto neoliberal como também coloca seus leitores dentro de uma

“lógica do Capital”, afirmando que não há outra alternativa.

“A crise do Subprime na Revista Veja em 2008”

O estudo tem como proposta evidenciar como se dá a construção de um discurso

neoliberal em favor do capitalismo. Veja, no decorrer do ano de 2008, fará uma cobertura

integral da crise financeira dos EUA, explicando ponto a ponto do porquê está acontecendo

essa crise e quem são os culpados.

A crise do Subprime, como afirma Carcanholo, foi a maior expansão da riqueza

(fictícia), elevação da oferta de capital monetário, durante a primeira baixa no ciclo desse

mercado (principalmente a partir do subprime) se deu quando as elevações da inadimplência

nas hipotecas, junto com a elevação das taxas de juros americanas, redundaram na redução

dos preços dos imóveis e da oferta de crédito imobiliário, o que elevou ainda mais a

inadimplência (CARCANHOLO; CAMPANÁRIO; DIERCKXSENS; HERRERA;

JARQUIN; NAKATANI, 2010, p. 35). Era a manifestação da crise (financeira) atual porque

passava o capitalismo. Sendo assim, Carcanholo infere que:

Essa crise cíclica do capitalismo, seria uma grande crise estrutural no

marco de uma “Crise da Civilização”, com o potencial de redesenhar a

geografia socioeconômica e a história planetária. Trata-se do

encadeamento de múltiplas crises começando com a financeira e

econômica, com a qual convergem muitas outras. Todas essas crises juntas

operam hoje ao mesmo tempo em um cenário no qual concorrem as outras

tão ou mais graves que a própria crise econômica. Dentre elas a ecológica,

acentuada pelo muito provável aquecimento global, a energética e dos

recursos naturais: a agrícola e alimentar que ameaça os povos mais

marginalizados deste planeta. A ética e ideológica, pois as ideias, a

racionalidade e os princípios morais derivados da própria racionalidade

econômica que sempre deram sustentação ao injusto modelo de civilização

atual, também entraram em crise (CARCANHOLO; CAMPANÁRIO;

DIERCKXSENS; HERRERA; JARQUIN; NAKATANI, 2010, p. 11).

O discurso neoliberal serve para a revista Veja legitimar suas posições e soluções,

mesmo que o sistema esteja em crise, é afirmado dentro do discurso da revista que o

capitalismo propõe o crescimento econômico ao mundo capitalista, produzindo capital e

gerando lucro. Durante o ano de 2008, Veja mostrará que mesmo os EUA em crise, o

capitalismo brasileiro estava em expansão, e que mais pessoas estavam ficando milionárias.

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Podemos ver este exemplo publicado em uma das matérias: “OS HERÓIS DO

CAPITALISMO, entre investidores e empreendedores, em 2007 o Brasil produz 164

milionários por dia. E o melhor é que essa bonança veio para ficar” (Veja. 23/01/2008, p.

54).

A crise do capitalismo é um desdobramento das contradições do capitalismo que

provocaram a atual crise estrutural, no processo de acumulação do capital. Sendo assim, a

revista Veja se apropria do discurso de que, apesar da realidade de crise econômica que os

EUA estão passando, o Brasil não se encontrava na mesma situação, ou seja, que o país

estava bem estruturado e com um grande espírito empreendedor, diferenciando o sistema

capitalista do Brasil com o sistema capitalista do EUA, conforme o exemplo desta matéria:

O CAPITALISMO BRASILEIRO

O espetacular boom do mercado de capitais no Brasil nos últimos anos está

revolucionando a maneira de pensar dos empresários brasileiros. Paira no

ar a sensação de que negócios bem estruturados podem se viabilizar dentro

de única cadeia financeira inédita no país. Extremamente poderosa essa

sensação liberta um espírito empreendedor e capitalista até há pouco tempo

desconhecido em nossas praias. Trata-se de um esboço de um Brasil novo,

mais estável, globalizado e competitivo. Faz parte de um modelo de nação

mais livre e aberta que oferece uma alternativa de desenvolvimento viável

se apoiado por um estado eficiente e justo (Veja.23/01/2008, p. 62).

A análise conjuntural que Veja faz da crise do Capitalismo, será por meios dos fatos

ocorridos durante todo o ano de 2008 nos EUA, evidenciando como o sistema se rearticula,

procurando soluções dentro da própria lógica do sistema, afirmando que o capitalismo cria

um antídoto natural, sempre retornando no seu fluxo original e restabelecendo a ordem do

curso do lucro.

Porém, o artigo que vamos expor deixa claro que mesmo o sistema curando suas

feridas, a má gestão do país americano causou toda essa crise financeira, colocando em

evidência os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, e que devido a tudo isso a

Bolsa de Valores já colocava em evidência que os americanos teriam que enfrentar uma

ressaca incômoda:

O ANTÍDOTO NATURAL

O mercado americano já começa a curar as feridas de seus próprios

excessos- O ano de 2008 contou inundado de informações negativas sobre

o desempenho da economia americana. As bolsas de valores amargaram os

piores dias desde os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, e

cresceram as apostas na tese de que os Estados Unidos entrarão em

recessão — arrastando, assim, parte considerável do mundo. Tudo indica

que os americanos foram longe demais durante os anos de euforia e terão

de enfrentar no mínimo, uma ressaca incômoda. Para evitar o pior, FED, o

banco central do país, já injetou 130 bilhões de dólares no sistema

financeiro. Ele teme um credit crunch, como é chamada a forte contração

de crédito em que nem os bons pagadores conseguem obter financiamento.

Em um ambiente de preços baixos, investidores e consumidores começam

a enxergar oportunidades de negócio onde a maioria só vê crise. Com isso,

estimulam o comércio e ajudam naturalmente o país mais rico do mundo a

se reerguer. Essa é a lógica renovadora que faz do capitalismo o dínamo

mais poderoso de geração de riquezas. E a essa lógica que se refere a

seguinte frase, dita na semana passada pelo presidente George. W. Bush:

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“A genialidade de nosso sistema que ele consegue absorver choques e

emergir ainda mais forte” (Veja. 20/02/2008, p. 90).

Entretanto, na perspectiva do filósofo Mészáros, o capitalismo sofre crises estruturais

e cíclicas. É o que Marx escrevia em O Capital, que “as crises fazem parte integrante da

dinâmica contraditória da reprodução ampliada do capital, concebido como uma relação

social de produção” (Apud. NAKATANI; HERRERA, 2015, p.3). Sendo assim, Mészaros

afirma que o sistema capitalista atua na disjunção da necessidade e que para tornar ampliação

do sistema, foi necessário separar o valor de uso do valor de troca. Isto fica evidente a partir

da premissa do filósofo húngaro:

A disjunção de necessidade e produção de riqueza- A completa

subordinação das necessidades humanas à reprodução de valor de troca –

no interesse do auto realização ampliada do capital – tem sido o traço

marcante do sistema do capital desde o seu início. Para tornar a produção

de riqueza a finalidade da humanidade, foi necessário separar o valor de

uso do valor de troca, sob a supremacia do último. O capital estava

orientado para a produção e a reprodução ampliada do valor de troca, e,

portanto, poderia se adiantar à demanda existente por uma extensão

significativa e agir como um estímulo poderoso para ela. A organização e

a divisão do trabalho tinham que ser fundamentalmente diferentes em

sociedades nas quais o valor de uso e a necessidade exerciam as funções

reguladoras decisivas. Todo o sistema de necessidades humanas, junto com

suas condições de satisfação, é radicalmente alterado no curso das

transformações históricas (MÉSZÁROS, 2011, p.608).

Porém, a crise dos subprime em 2008, se desdobra em uma crise dos mercados

financeiros internacionais, resultando em uma crise econômica mundial. Essa nova crise

estrutural é resultado das contradições do sistema capitalista. Sabe-se que a Veja se pauta

dentro da lógica do Capital. Sabe-se que Marx afirmava que a competividade dos indivíduos

dentro do sistema capitalistas consiste:

A competição separa os indivíduos uns dos outros, não apenas a burguesia,

mas mais ainda os trabalhadores, apesar do fato de os unir. Daí que todo

poder organizado que paira acima e contra estes indivíduos isolados, que

vivem em condições que diariamente reproduzem este isolamento, pode

ser superado apenas após longas lutas. Exigir o oposto seria o equivalente

a exigir que a competição não existisse nesta época definida da história, ou

que os indivíduos devessem banir de suas mentes as condições sobre as

quais, no seu isolamento, não têm nenhum controle (MÉSZÁROS, 2011,

p.604).

Além de Veja reproduzir a lógica do capital na reprodução e acumulação aos seus

leitores, apresenta a competividade como uma prerrogativa para a sobrevivência dentro do

sistema. Contudo, “Marx afirmava, que se o capital aumentar de 100 para 1000, então 1000

é o novo ponto de partida. Os próprios lucros e juros se transformam por sua vez em capital.

A mais-valia aparece agora simplesmente como pressuposto, como se incluído na sua

composição mais simples” (MÉSZÁROS, 2011, p.602).

Vejamos um dos exemplos que a Revista transmite aos seus leitores, a lógica do

milionário ser melhor do que ser um assassino ou morrer dentro do trânsito. A revista sequer

tem algum cuidado em seus diálogos, legitimando toda a lógica do sistema capitalista e

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criando uma falsa verdade, comparando reprodução do lucro do capital com a reprodução

de um milionário:

SER MILIONÁRIO É TER UMA POUPANÇA E QUIVALENTE A 1

MILHÃO DE DÓLARES 100 em cada 100.000 brasileiros já são

milionários. Em 2007, 60 000 brasileiros acumularam seu primeiro milhão.

Isso significa que a probabilidade de se tornar milionário no Brasil é: 22%

maior que a de ser assassinado 50% maior que a de morrer em um acidente

de trânsito (Veja. 23/01/2008, p. 55).

Sendo assim, Veja afirmava em meio a uma crise estrutural do sistema, que mesmo

com todas essas crises econômicas, o mercado se restabelecia, estimulando o comércio e

criando oportunidades. No entanto, a revista não esclarece que o sistema capitalista precisa

produzir excedentes, por meio da competividade dos indivíduos e a estimulação da pobreza.

Bibliografia

BRILHANTE, Matilde de Lima. “Práticas e negociações [políticas] na grande imprensa de

Fortaleza (1928-1990)”. Revista Albuquerque. V.5. Nº 9. 2013. UFMS.

CARCANHOLO, Reinaldo, A; CAMPANÁRIO, Paulo; DIERCKXSENS, Wim;

HERRERA, Remy; JARQUIN, Antônio; NAKATANI, Paulo. Século XXI: Crise de uma

civilização Fim da História ou Começo de uma nova História? CEPEC (Centro Popular de

Estudos Contemporâneos). 2010. Goiânia.

GALEANO, Eduardo. Los media justifican los fines. Le Monde Diplomatique. Editora:

Tema Debate. 1998.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. Editora Boitempo.

Edição 5º. 2005.

MÉSZÁROS, István. Para além do Capital. Editora Boitempo. 2011.

MORAES, Roque e GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise Textual Discursiva. Ijuí: Ed.

Unijuí, 2007.

NAKATANI, Paulo; HERRERA, Remy. Crise Financeira ou de Superprodução? Revista La

Penseé. 2015. Disponível em: <http://resistir.info/>.

SILVA, Carla Luciana. Queda do Muro de Berlim e Morte do Comunismo em Veja. Revista

Luta de Classes. Edição Nº 9. 2010.

Revista Veja. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>. Ano: 2008.

TRAVERSO, Enzo. Marx, a História e os historiadores. Uma relação a se reinventar. Revista

Luta de Classes. Edição Nº 9. 2010.

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BLOCO DE PODER, CONTROLE POLÍTICO E OS LIMITES DA

“REDEMOCRATIZAÇÃO”: UMA ANÁLISE DO MOVIMENTO DIRETAS JÁ EM

CAMPO GRANDE – MS

Samuel Fernando da Silva Junior1

Resumo: A presente pesquisa analisa o movimento “Diretas Já” em Campo Grande – MS,

compreendido no período de 1984. O projeto de distensão/abertura política, conhecido

também como um projeto de “redemocratização”, arquitetado durante os governos Geisel e

Figueiredo, foi apoiado e negociado por alguns partidos políticos burgueses, principalmente

pelo PMDB que, na primeira metade da década de 1980, articulou um projeto de dominação

política, se consolidando no movimento Diretas Já e, posteriormente, no Colégio Eleitoral.

Desse modo, nosso objetivo geral é analisar como o bloco de poder foi pontualmente se

modificando no período da “transição democrática”, evidenciando um controle político

burguês frente à mobilização de massa e, concomitantemente, estabelecendo um limite no

processo de transição. No contexto Sul-Matogrossense, analisaremos se houve um

alinhamento do então governador Wilson Barbosa Martins (PMDB), no processo de

dominação política burguesa frente às Diretas Já em Campo Grande. Para ajudar na

compreensão teórica de bloco de poder, utilizamos o conceito de bloco histórico de Antonio

Gramsci. Para a pesquisa das Diretas Já em Campo Grande, utilizamos como objeto de

análise dois jornais locais: Jornal da Manhã e Diário da Serra, bem como os estudos

específicos de Vanderlei Elias Nery, David Maciel e Maria José de Rezende sobre o

movimento Diretas Já. Desse modo, pretendemos evidenciar uma dominação política

burguesa frente às Diretas Já em Campo Grande e como o bloco de poder buscou

legitimidade política e popular no processo de transição.

Palavras-chave: Redemocratização; Diretas Já; Bloco de Poder.

O conceito do bloco de poder

Para entender o bloco de poder em uma perspectiva teórica, faz-se necessário a

concepção de Antonio Gramsci de bloco histórico que é a formação de uma unidade entre a

estrutura – conjunto das relações materiais – e superestrutura – conjunto de relações culturais

e ideológicas –: “unidade dos contrários e dos distintos” (GRAMSCI, 1978, p. 12). Diante

da formação do bloco histórico, estabelecem-se as relações entre os intelectuais, que são

agentes da superestrutura, estes podem possuir capacidades de elaborar ideologias para a

classe que representam, e organizam as relações sociais buscando a homogeneidade e

consensualidade. Desse modo, segundo Gramsci:

Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial

no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um

modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão

homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo

econômico, mas também no social e no político (GRAMSCI, 1979, p. 3 e

4, grifo nosso).

1 Graduando em História-Licenciatura pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

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Portanto, é na formação do bloco histórico que se consolida os grupos hegemônicos.

Assim, no período no qual propomos a análise, verifica-se uma crise de hegemonia2 dos

grupos hegemônicos dentro do próprio bloco de poder, uma vez que os interesses burgueses

(empresariado) muitas vezes não coincidiam com os setores militares ou da tecnoburocracia

(REZENDE, 1996, p. 13), ou seja, não havia consenso dentro do próprio núcleo de poder.

Essa crise de hegemonia dentro do bloco de poder acaba se tornando, a partir da distensão

política (1974-1979), uma crise de legitimidade, possuindo como um setor agravante a

própria situação econômica do Brasil, que após o período do “milagre econômico” entrou

em um longo processo de recessão.

É neste bojo que precisamos entender o conceito de Estado, entendido por Gramsci

como uma consolidação do poder da classe dominante sobre os demais setores sociais,

entendendo que Estado é uma união entre a sociedade civil e sociedade política:

O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo,

destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo,

mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados

como força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de

todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado

concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida

estatal é concebida como uma contínua formação e superação de

equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo

fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que

os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até determinado ponto,

ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo (GRAMSCI,

2000, p. 41-42. Grifo nosso).

Portanto, em um âmbito geral, utilizamos o conceito bloco de poder para designar

um conjunto de relações estabelecidas entre setores da sociedade civil (burguesia,

latifundiários e outros representantes empresariais) com a sociedade política ou militares

pós-1964 para definirem um “novo” modelo político e econômico brasileiro. Maria José de

Rezende acentuou algumas características do bloco de poder durante o governo de exceção:

Os setores mais modernos da economia, ou seja, as frações da classe

burguesa que controlam o capital financeiro, industrial e comercial, os

militares e a tecnoburocracia (civil e militar), que atuaram não apenas

sobre a estrutura econômica e política, mas também sobre o modo de

pensar, sobre as orientações ideológicas etc., compunham o que se

denominou o bloco de poder. A noção de bloco de poder refere-se ao

conjunto de relações estabelecidas entre alguns setores dominantes para

garantir a reprodução de determinados interesses de classe (REZENDE,

1996, p. 13. Grifo nosso).

2 A Hegemonia em Gramsci se dá na simbiose entre sociedade civil e sociedade política. Este conceito é

permeado por dois modos de dominação: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população

à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente”

do prestígio (e portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função

no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que

não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos

momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, 1979, p.

11). Cabe destacar que, estas duas formas de dominação, não necessariamente são exercidas de forma separada,

ambas se complementam e podem ser executadas de forma concomitante.

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284

Em Campo Grande, o bloco de poder regional que estava ligado ao Wilson Barbosa

Martins (vencedor da eleição de 1982 pelo PMDB) e sua cúpula política, era formado

basicamente por: uma fração da classe latifundiária tradicional na qual Wilson Barbosa

Martins foi oriundo; e setores de significante influência, composta por uma fração da

burguesia agrária responsável pela modernização da agricultura Sul-Matogrossense

(BITTAR, 1998, p. 40).

Diretas Já em Campo Grande, a dominação política e os limites da “redemocratização”

Para evidenciar a concepção de dominação política frente ao movimento Diretas Já

em Campo Grande, analisaremos alguns acontecimentos antes do dia 24 de março de 1984

(dia do principal comício). Durante o período de mobilização foram criados grupos que

representariam os mais diferentes setores da sociedade – comitê da mulher, setor jovem,

grupo estudantil, comitê pró-Diretas, entre outros. Desse modo, no decorrer das análises

feitas por meio de dois jornais locais (Jornal da Manhã e Diário da Serra), verificamos que

estes grupos tinham direção e forte vínculo partidário com o PMDB.

No dia dezesseis de março de 1984 ocorreu uma grande mobilização: de estudantes

secundaristas, de acadêmicos da antiga Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso

(FUCMT) – atual Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) –, da Universidade Federal

de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da União Campograndense de Estudantes (UCE). Esses

grupos se reuniram na Praça Ari Coelho e fizeram uma passeata pelo centro da capital

(MANHÃ, 1984, p. 10). Tinham como iniciativa mostrar total apoio da classe estudantil às

eleições diretas para presidente da República e, exigiram melhorias no sistema de ensino

estadual, pois, durante o último governo do pedessista Pedro Pedrossian, as escolas ficaram

em sua maioria sucateadas e os salários desvalorizados.

Neste bloco de estudantes universitários e estudantes do ensino básico, havia o grupo

que participava do comitê pró-Diretas, vinculado ao PMDB. Este grupo era responsável pela

divulgação dos comícios que haveria no Estado de Mato Grosso do Sul, sobretudo em

Campo Grande (SERRA, 1984, p 06).

A campanha pelas Diretas em Campo Grande, contou com uma relevante

participação do setor educacional pois, tanto os professores, quanto os alunos, não se sentiam

representados pelo regime que causou significantes espoliações a esses setores.

Um grupo denominado de “Comitê da Mulher” teve ampla participação na

divulgação do principal dia da mobilização, 24 de março de 1984. Este grupo distribuía

encartes com a propaganda do movimento Diretas Já, para conscientizar e estimular a

participação da população no comício. Este grupo em Mato Grosso do Sul tinha uma direção

estritamente partidária. As mulheres que estavam em destaque, neste comitê, eram as esposas

dos políticos ligados ao PMDB, corroborando:

Com a participação de uma grande multidão, foram realizadas ontem duas

passeatas nas principais ruas e avenidas de Campo Grande, reivindicando

pelo estabelecimento de eleições diretas para Presidente da República. A

primeira aconteceu às 12 horas, promovida pelo Comitê Pró-Diretas da

Mulher, onde contou com a participação da dona Nelly Martins, esposa do

governador Wilson Barbosa Martins, como também das esposas de

deputados estaduais, federais e de secretários do Estado (SERRA, 1984, p.

2).

Uma outra contribuição, do jornal Diário da Serra, fornece indícios desta direção

partidária que foi o Comitê da Mulher em Campo Grande:

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285

Para discutir a participação da mulher na campanha pela restauração das

eleições diretas, a esposa do deputado Jonatan Barbosa, do PMDB, Ana

Leda Fernandes Barbosa, fez na sua residência o chá pelas diretas,

reunindo quase todas as esposas de deputados estaduais, federais e

secretários do Estado (SERRA, 1984, p. 06).

Para haver maior êxito no controle do movimento, foi necessário criar comissões que

davam conta da maioria das esferas populares, por exemplo: (JPMDB) o setor jovem do

PMDB, o Comitê Pró-Diretas (organizava a estrutura das mobilizações e fazia o repasse do

dinheiro para os chamados “Comícios Monstros”) e o próprio Comitê da Mulher.

A participação das mulheres não se resumia apenas no comitê partidário direcionado

por uma elite política. No período da “transição democrática” havia os mais variados grupos

de mulheres que defendiam variadas causas:

[...] no período da transição democrática brasileira. Esses movimentos

tinham propostas diversas. Alguns grupos de mulheres estavam focados na

questão das necessidades dos bairros, outros relacionados ao sindicalismo,

outros específicos da questão feminista, outros ainda, estavam ligados aos

partidos políticos (DUARTE, 2011, p. 55).

Neste sentido, conseguimos perceber quanto o movimento pelas Diretas foi

heterogêneo, pois dentro do próprio grupo das mulheres haviam as mais diversas

reivindicações. Isto evidencia a ideia que as mobilizações pelo sufrágio imediato não

aspiravam somente o voto direto, e sim, as mais diversas mudanças (questão da fome, aguda

desigualdade social, melhores salários etc.). Porém, os setores políticos burgueses com o

apoio da mídia, conseguiram canalizar estes pedidos de mudanças para uma única

reivindicação pontual, o voto direto.

O JPMDB (setor jovem) foi um grande articulador em Campo Grande, pois a criação

do comitê pró-Diretas, foi de responsabilidade da “juventude peemedebista”. Como ressalta

Waldir Neves Barbosa3, em entrevista com o Jornal da Manhã, “O movimento pró-Diretas

foi lançado por nós, ou seja, o Setor Jovem do PMDB e hoje é com satisfação que vem o

engajamento dos mais diversos setores da comunidade nessa importante luta” (MANHÃ,

1984, p. 02). Este setor jovem do PMDB foi encarregado de percorrer vários municípios do

estado para a divulgação da campanha, convidando os vários municípios do estado de MS

para o principal dia da mobilização que seria no dia 24 de março de 1984. Em outras

palavras:

Segundo Waldir, o Setor Jovem do PMDB começou o trabalho no estado

dia 24 de setembro do ano passado e percorreram 15 cidades promovendo

atos públicos e procurando conscientizar a população na participação dessa

luta. Mesmo reconhecendo que não tiveram nenhum tipo de apoio,

conseguiram fazer com que o povo aceitasse o movimento não como de

um partido “mas de todos indistintamente” (MANHÃ, 1984, p. 2).

3 Foi diretor da União Campograndense de Estudantes (UCE). Nessa época, participou como um dos

fundadores da União Sul-Matogrossense de Estudantes Secundaristas (USMES) e da Juventude do PMDB

(JPMDB), da qual foi também presidente. Militante ativo, foi um dos principais coordenadores do Movimento

Estudantil em Mato Grosso do Sul da campanha “Diretas Já”.

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Como nos grandes estados do Brasil governados pelo PMDB e pela oposição

burguesa – São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná –, em Mato Grosso do Sul o

PMDB canalizou as reivindicações populares à sua dominação. A direção burguesa não

queria que a mobilização popular pelas Diretas Já atingisse determinado grau de autonomia,

havia certo receio que o movimento transcendesse o limite burguês de transição pelo alto e

por meio do consenso.

Em Mato Grosso do Sul, o PMDB com apoio de algumas frações da classe burguesa

local controlou e manipulou o movimento. O objetivo do PMDB na campanha Diretas Já, a

posteriori, era conseguir legitimidade popular para uma possível eleição indireta via Colégio

Eleitoral. Portanto, de acordo com Vanderlei Elias Nery:

Uma vez que, em nosso entendimento, a campanha Diretas Já tinha um

potencial de aprofundar o processo de transição, ampliando os direitos

políticos e sociais, reforçando políticas de caráter antimonopolista e anti-

imperialista, esta foi, desde o início, canalizada pela oposição burguesa

para a aprovação da emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional que,

ao não ser aprovada, fez com que as Diretas Já servissem apenas como

forma de a oposição negociar com o governo e o PDS a sucessão

presidencial (NERY, 2014 p. 261).

A verticalização do movimento Diretas Já, colocado em prática pelo bloco de poder

em conjunto com a staff peemedebista – incluindo grupos políticos do PDS e da Aliança

Democrática (MACIEL, 2014, p. 270) – tinham como intuito encampar toda reinvindicação

popular que ultrapassasse os desejos burgueses e a tutela oferecida pelos militares, como

afirma Maria José de Rezende: “No período de 1980 a 1984, ficava evidente que os setores

dominantes detonavam um conjunto de medidas para impedir que a participação dos

dominados se tornasse um poderoso instrumento de poder e pressão” (REZENDE, 1996, p.

209).

Não obstante, para reforçar a suposta “legitimidade” burguesa via eleição indireta, o

PMDB, pós derrota da Emenda Dante de Oliveira (25 de abril de 1984), lançou o movimento

pró-Tancredo. A transição – como no período da distensão e da abertura – foi amplamente

planejada pelos setores militares e seguido à risca pelos setores políticos burgueses que

aspiravam o poder político hegemônico pós-ditadura:

A transição política seguiu inicialmente o roteiro proposto pelo General

Golbery do Couto e Silva, tropeçou em várias circunstâncias concretas e

mudou de rumo, sem necessariamente desviar-se do sentido proposto

inicialmente, de um processo controlado pelas elites políticas que,

mediante pactos na cúpula, impedissem a intervenção autônoma das forças

populares. A eleição do presidente que devia guiar a transição por meio do

Colégio Eleitoral foi uma forma de estabelecer um pacto político de elite.

As forças do regime anterior se comprometiam a aceitar a decisão tomada

pelo Colégio Eleitoral e a oposição se comprometia a governar o país

conforme as normas de transição definidas pelo governo militar que

concluía seu mandato (SADER, 1990, p. 55).

Contudo, de forma bastante resumida, verificamos o quão tutelado foi a transição

política que, planejada pelo topo, a marginalização dos movimentos sociais, principalmente

das Diretas Já, foi propositalmente articulada por setores políticos burgueses que

angariavam a sucessão presidencial em 1985. Estes setores não queriam que as expressões

populares transcendessem as vontades políticas burguesas. Em Campo Grande, houveram

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inúmeras evidências de dominação política, o PMDB conseguiu usar as mobilizações

populares das Diretas para justificar a sua legitimidade no período pós-ditadura, por outro

lado, confirmou o continuísmo e mostraram ser completamente flexíveis à tutela oferecida

pelos militares no período da abertura política e da “Nova República”.

Referências

BITTAR, Marisa. Estado, educação e transição democrática em Mato Grosso do Sul.

Campo Grande: Ed. UFMS, 1998.

DUARTE, Rafaela. Diretas Já em Santa Catarina: o movimento de redemocratização nos

texto e imagens dos jornais O Estado, A notícia e Jornal de Santa Catarina (1984). 135 f.

Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e

Ciências Humanas, 2011.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, volume

III, 2000.

_________________. Os Intelectuais e a organização da cultura. 3ª Edição. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1979.

_________________. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 3ª Edição. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1978.

MACIEL, David. A Aliança Democrática e a transição política no Brasil. In: PINHEIRO,

Milton (org.). Ditadura: o que resta da transição. São Paulo: Boitempo, 2014.

NERY, Vanderlei Elias. Diretas Já: mobilização de massas com direção burguesa. In:

PINHEIRO, Milton (org.). Ditadura: o que resta da transição. São Paulo: Boitempo, 2014.

REZENDE, Marina José de. A transição como forma de dominação política. Londrina: Ed.

UEL, 1996.

SADER, Emir. A transição no Brasil: da ditadura à democracia? 9ª Edição. São Paulo: Atual,

1990.

Fontes

Diário da Serra, Campo Grande, 17 mar, 1984, n° 5.659.

Diário da Serra, Campo Grande, 11 mar, 1984, n° 5.654.

Jornal da Manhã: Campo Grande, 21 mar, 1984, nº 2.919.

Jornal da Manhã: Campo Grande, 15 mar, 1984, nº 2.914.

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DITADURA NO OESTE PARANAENSE. UMA ANÁLISE ACERCA DA

REPRESSÃO SOFRIDA PELOS EXPROPRIADOS, NA CIDADE DE GUAÍRA-PR,

BEM COMO SUAS LUTAS, DURANTE A CONSTRUÇÃO DA USINA

HIDROELÉTRICA ITAIPU BINACIONAL (1970 A 1990)

Simone de Souza Corrêa1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma reflexão acerca da atuação

da Ditadura Civil Militar e das lutas sociais que ocorreram na cidade de Guaíra/PR, no

período de 1970 a 1990, antes, durante e depois da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu

Binacional. Os expropriados pela Itaipu, bem como os membros do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais (não patronal), e os membros da Comissão Pastoral da Terra - CPT/PR,

sofreram forte repressão por parte dos órgãos da Ditadura Civil Militar. Nesse período o

Estado se articulou utilizando tantos os meios de comunicação, quanto os meios de repressão

militar para garantir a execução de seu projeto faraônico, tanto em dimensão quanto em

consequências drásticas aos expropriados. A imprensa contribui para a disseminação de uma

ideologia positiva acerca do projeto, ocultando as consequências desastrosas do projeto

sofridas pelos expropriados. A repressão, bem como a organização e luta, foi marcante na

cidade de Guaíra, e tais experiências e lutas sociais faziam parte de uma nova forma de

participação popular na cidade, muitas vezes silenciada. Nosso trabalho teve por base as

experiências dos expropriados da Itaipu, ou seja, dos agricultores familiares, pescadores,

ilhéus e ribeirinhos, a atuação da CPT/PR e a do STR.

Palavras-chave: Ditadura; Expropriados; Guaíra/PR.

Guaíra e a sua “passividade”

A construção da Itaipu, mesmo tendo ocorrido há mais de trinta anos, ainda é

questionado por muitos pesquisadores, que buscam compreender a “passividade” da cidade

de Guaíra em relação à construção da Itaipu.

Um historiador que buscou entender a “passividade” de Guaíra, é Osny Duarte

Pereira. Em seu trabalho Itaipu: prós e contras, ele analisa a passividade de Guaíra no

período e acaba por elencar três fatores para entendê-la. Segundo ele, os fatores são,

primeiramente, a falta de representação política na cidade. O segundo fator, seria que a

população não tinha dimensão do tamanho do projeto e não acreditavam que realmente as

Sete Quedas iria desaparecer. O terceiro fator seria em relação às muitas promessas que

foram feitas pela Itaipu aos moradores das áreas que seriam atingidas, a fim de desviar a

atenção da população e evitar manifestações (PEREIRA, 1974).

É importante ressaltar também que, em 1964, houve o Golpe Militar e, com o início

da Ditadura, foi mantido o limite de Faixa de Fronteiras Internacional em 150 km. Todos os

municípios localizados no interior desta área perderam autonomia, ou seja, foram

considerados “área de segurança nacional”, pelo Decreto-Lei, nº 5449 (04/06/1968). Guaíra

estava entre esses municípios e, posteriormente, teve seu interventor nomeado pelo Governo

do Paraná, mediante aprovação prévia do Presidente da República, sendo o Sr. Kurt Hasper,

que já era prefeito de Guaíra e continuou na função até 1984, sendo designado pelos

1 Graduada em 2013 no curso de Licenciatura plena em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná

– UNIOESTE

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militares, correndo o risco de ser exonerado do cargo quando não cumprisse as ordens

superiores, o que não ocorreu em dezesseis anos. Isso, segundo Barbosa (2003, p. 23), “leva

a entender que Kurt sempre comungou com a Ditadura Militar”.

O país vivia em um período de forte repressão por parte dos militares, e podemos

dizer que Guaíra sentia mais de perto tal repressão, pois havia uma base do exército na

cidade. Dessa forma, a cidade de Guaíra sempre foi vigiada de perto, por ser área de

segurança nacional e de interesse do país, que temia perder território para os países vizinhos.

Com a nomeação do Prefeito Kurt Hasper, por vinte anos, essa vigilância militar na cidade

se acirrou ainda mais. Diante do exposto, é possível ter uma ideia de como era o clima de

terror e vigilância que os moradores da cidade enfrentavam diariamente.

Segundo Lima (2006, p. 333),

O regime militar brasileiro se constitui no principal fator de facilitação para

que os avanços e manobras políticas se concretizassem. Líder na América

do Sul, através da força e do aval norte-americano, o Brasil pôde realizar

o sonho de desenvolvimento e progresso, sem avaliar, contudo, as

consequências dessas ações. Enquanto o país ostentava um modelo

peculiar de modernização, a imensa maioria de sua população não recebia

nem as migalhas da festa. Não chegou até ela o ‘milagre brasileiro’. Além

disso, algumas regiões foram privilegiadas, e detrimento de outras.

O segundo fator exposto por Pereira (1974), mencionado anteriormente, era que tanto

as autoridades como a população de Guaíra não tinham idéia da real dimensão do projeto de

Itaipu, e não acreditavam que Sete Quedas pudesse desaparecer para sempre. Havia um sigilo

em torno do projeto, como se fosse uma trama de uma estratégia de guerra. Nas palavras de

Lima (2006, p. 333), “os primeiros comentários surgidos na imprensa e no parlamento

criticavam, antes de tudo, o sigilo sobre um dos projetos de maior vulto e importância no

futuro do Brasil”.

Esse sigilo também é exposto na análise acerca das consequências de Itaipu para a

cidade de Guaíra, realizada por Maia (1997). Segundo ele,

Tudo foi planejado dentro dos escritórios da Itaipu, sem levar em conta os

manifestos que ocorriam na época, com os movimentos anti-construção de

Itaipu, ou seja, os movimentos dos agricultores, que não queriam perder

suas terras (MAIA, 1997, p. 13).

Além do sigilo em torno do projeto, o Estado fez uso dos meios de comunicação para

confundir e desinformar a população e evitar maiores manifestações. “As campanhas de

publicidade encomendadas por Itaipu, na época, visavam, abafar os movimentos que os

agricultores faziam por justiça e por preços justos pela terra” (MAIA, 1997, p. 14).

Isso se dava devido a interesses da classe dominante que usavam os meios de

comunicação para manipular e desinformar a população. Fontes (2010), em seu trabalho de

análise dos meios de comunicação, ou seja, os aparelhos privados de hegemonia, destaca

que

Os aparelhos privados de hegemonia, em grande parte ligados aos próprios

setores dominantes e expressando interesses corporativos empresariais,

uma vez que seletividade repressiva e autocrática estrangulara as vias de

crescimento das entidades organizativas populares (FONTES, 2010, p.

224).

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No início das construções, “a população não acreditava que Sete Quedas chegaria ao

fim e, ainda, as informações detalhadas sobre o projeto não era aberto ao grande público”

(MAIA, 1997, p. 27). Muitos são os depoimentos em relação a essa crença de que Sete

Quedas não seria submersa. Deve-se levar em conta que a população da cidade, em sua

maioria, pessoas muito simples, nunca tinham visto uma obra deste tamanho e, levando em

consideração a altura das quedas e sua extensão, muitos não acreditavam que isso ocorreria.

É o que expõe o arqueólogo Igor Chmy, (no documentário Onde Você Estava?) que

acompanhou de perto o processo de extinção de Sete Quedas. Segundo ele, “Os moradores

não acreditavam que a água subiria tanto que atingissem os pontos onde estavam e

inundassem as Sete Quedas”2.

O sigilo em torno da construção e a falta de informação dos moradores também são

mencionados pelo Sr. Edson Galvão (no documentário Onde você estava?), onde ele

comenta que “Não se falava em inundação e sim, construção de uma barragem”3.

Em uma matéria publicada no Jornal Ilha Grande, em dezembro de 1981, com o

Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guaíra, Sr. Calixto Rodrigues de

Freitas, esta expõe a questão da falta de informação acerca do projeto e o descaso da Itaipu

para com os moradores da Cidade. A matéria narra que mesmo ele sendo representante dos

trabalhadores e expropriados, não estava sendo devidamente informado sobre o projeto.

O Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guaíra Calixto

Rodrigues de Freitas disse que tem sido procurado por grande número de

posseiros das ilhas do rio Paraná, para obterem informações, sendo difícil

obterem informações por parte da Eletrosul porque não dá qualquer

satisfação e quando os representantes dos trabalhadores rurais deveria ser

informado4.

A Ditadura buscou realizar um trabalho de propaganda muito intenso, a fim de

confundir e desinformar muito mais a população guairense. Segundo Mazzarollo,

Os prefeitos (interventores nomeados pelo poder central) dos municípios

atingidos, insensíveis aos dramas que Itaipu estava causando aos seus

domínios, gastaram polpudas verbas das prefeituras falidas com

mensagens de exaltação ao feito por meio da imprensa. A Rede Globo de

Televisão acertava diretamente com a Presidência da República a

exclusividade das imagens do espetáculo. A imprensa nacional e

internacional deslocara-se a Foz do Iguaçu em busca de manchetes de

primeira página, mas os que buscaram respostas a questões políticas,

sociais e econômicas em torno da obra saíram frustrados. Tudo teria sido

fantástico e festivo, não fosse a revelação de outra face da moeda pelos

milhares de proprietários da área que Itaipu começava a expulsar de seu

chão (MAZZAROLLO, 1980, p. 65).

O terceiro ponto apresentado por Pereira (1974) é em relação às promessas e

manobras da Itaipu, onde ele menciona que

2 Produção independente. Onde você estava? Sete Quedas. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=tK3A9ZeBh-cb>. Acessado em 10/09/2013. 3 Idem. 4 ENTREVISTA com o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guaíra. Jornal ilha Grande,

Guaíra, ano 2, nº 84, 12 de dezembro de 1981, p.5.

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Itaipu prometeu que através das Centrais Elétricas do Sul do Brasil –

ELETROSUL, seria construída em Guaíra uma outra usina hidrelétrica.

Essa usina também conteria uma ponte que ligaria a cidade de Guaíra, do

Paraná à cidade de Mundo Novo, no Mao Grosso do Sul. Das promessas

feitas, ficaram em Guaíra apenas as instalações da vila que a ELETROSUL

construiu para os operários e a ponte que se arrastava por mais de 10 anos

para ser concluída. […] Quando Itaipu propôs esse projeto para Guaíra,

tinham como objetivo desviar a atenção das autoridades da cidade para o

problema da submersão das Sete Quedas e com o projeto Ilha Grande

visavam minimizar essa perda para a cidade. Talvez essas promessas

expliquem a passividade das autoridades e da população guairense diante

do eminente fim de Sete Quedas (PEREIRA, 1974, p. 227 apud MAIA,

1997, p. 22).

Tudo o que já foi exposto até o presente momento pode, de certa forma, explicar a

chamada “passividade” dos moradores de Guaíra. A história do município, que sempre

esteve envolto à questão agrária, como disputa de fronteiras e territórios, tem também a

vigilância militar sempre constante nesse período, tendo em vista que Guaíra é território de

fronteira e pertencente a áreas de Segurança Nacional.

Guaíra: Censura e Repressão

Apesar de alguns trabalhos destacarem a passividade de Guaíra, houve sim

manifestações contra a construção da Itaipu e também muita luta junto aos expropriados,

para que as consequências da criação do lago não se tornassem ainda piores do que foram.

O que não houve foi a veiculação dessa resistência pela mídia.

A censura na cidade de Guaíra é narrada pelo morador e pescador da cidade na época,

o Sr. João Mandi. Segundo ele, “era época de Ditadura Militar. Você não tinha como se

manifestar muito, se falasse alguma coisa, também, o pessoal já vinha e dissipava o

movimento, então não era fácil5”.

Muitas pessoas temiam serem acusadas de subversivas, o que podia resultar em

detenção, com base na Lei de Segurança Nacional, ou coisa pior: serem incluídos nas

estatísticas de milhares de mortos e desaparecidos.

Mesmo assim, muitos moradores de Guaíra lutaram até onde puderam em favor do

expropriados, destacando-se, entre essas pessoas, os membros da CPT (de Guaíra) e,

principalmente, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guaíra.

Mesmo estando à frente das mobilizações, ao observar as atas do Sindicato, não

encontramos nada que comentasse sobre alguma mobilização, ou sobre Itaipu. Mas o que

nos chamou a atenção é que, até o ano de 1986, em todas as Atas das Assembleias e eleições,

no final, sempre constava que um relatório das principais ocorrências do ano anterior deveria

ser encaminhado para ser aprovado pelo Ministério do Trabalho e, ainda, que as Atas sempre

tinham que ser encaminhadas à Delegacia Regional do Trabalho para a aprovação, e depois

encaminhadas de volta com o parecer. Isso explica a ausência desse assunto nas atas. Essa

era uma manobra do Sindicato, pois não constando em suas atas nada sobre

encaminhamentos de manifestações e organização dos trabalhadores, poderiam continuar

com o Sindicato aberto para se reunirem, sem levantarem suspeitas. Havia sim organização,

mas na informalidade e até mesmo fora do Sindicato.

5 Produção independente. Onde você estava? Sete Quedas. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=tK3A9ZeBh-cb>. Acessado em 10/09/2013.

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Reinaldo, em sua entrevista, comenta sobre a repressão. Tanto na entrevista

realizada no ano de 2011, como na de 2012, ele comenta sobre o caso. Segundo ele,

Mais outra questão daí, não podia fazer nada, por causa da repressão. Nós

tentamos aqui, junto com a igreja fazer um movimento, infelizmente fomos

barrados e assim, barrados mesmo, diretamente, se vocês fizerem isso aí,

vai dar problema sério. E daí? Então, como diz o ditado, tivemos que

engolir goela abaixo, ninguém podia fazer manifestação. E se tentasse, eles

reprimiam mesmo, no duro. Então, menina, na época, nós tivemos grande

dificuldades, como eu tava falando antes, eu falei antes, tinha os problemas

sérios também, nós tínhamos uma… organizamos um grupo aqui no

Sindicato e organizamos. […] havia um temor lá dentro, de tão feio que

ficou aquilo, portanto muita gente foi embora na época. E, então, nós do

Sindicato também fomos obrigado também a ficar quieto, que ia fazer? Se

eu começo a revidar e tentar organizar, o que ia acontecer? O que ia

acontecer? O que eles iam fazer comigo? Não precisa nem pensar o que ia,

o que podia acontecer comigo. Se as autoridades não tavam disposto, eu ia

tá? Sozinho? Mais fácil eliminar um que, né. Então guria, nós tivemos sério

problemas aqui (PAZ, Reinaldo de Oliveira Paz, 68 anos. Guaíra/PR,

2012).

Tanto fizemos pressão, como também fomos pressionados pela Polícia,

que é o Estado né, e aqueles grupos, aqueles órgãos que não queriam se dar

o luxo de dizer que nós tínhamos razão, e às vezes viam que tinham razão,

mas queriam colocar coisa da cabeça deles (PAZ, Reinaldo de Oliveira

Paz, 68 anos. Guaíra/PR, 2011).

Nessas entrevistas, é possível perceber o quanto esse episódio foi difícil e marcante

para ele, e que ainda está vivo na lembrança, como se fosse um caso que ocorrera há poucos

dias, mesmo já tendo passado mais de trinta anos.

A repressão também é narrada pela Sra. Judith. Ela comenta que as pessoas que

participavam do movimento, como o Sr. Reinaldo, outras pessoas e até ela mesma, sofreram

com a Ditadura. Sua fala é um tanto confusa, e algumas coisas não são ditas claramente,

outras ela deixa no ar, terminando várias vezes a frase com um “né”, e algumas frases

iniciadas não são concluídas. Segundo ela,

Olha, a repressão era tipo anônimo. Chegava os bilhetinhos e dizia, né,

chegava os bilhetinhos na porta dele e dizia oh seu camisa vermelha,

porque ele usava uma camisa vermelha, e eu perguntava, Frei Luiz, mas

porque a camisa vermelha? É o sangue do espírito santo, eu visto vermelho

por isso, porque todo o dia eu recebo um bilhetinho anônimo debaixo da

porta dizendo que eu só tinha tantos dias pra viver, né. E daí, e foi assim.

E os Bispos, ele sendo um Frei muito trabalhador, muito bom, a Irmã Clara

foi muito ameaçada, a Irmã Clara foi ameaçada porque, porque nós

tínhamos um trabalho assim Simone, porque os Freis Franciscanos, depois

de vinte e cinco anos, foi mandado afastar-se, porque os poderosos né, os

poderosos não quiseram mais eles aqui, porque eles estavam fazendo

muito. […] Então foi aonde eu entrei na luta com eles né. [...] E a gente

tinha até medo de. As minhas filhas até brigavam muito comigo, eu não

perdia nenhuma Romaria das Terras, eu tava em todas, filmaram

(GIORDANI, Judith Ferreira da Silva, 73 anos. Guaíra/PR, 2012).

Como Mazarollo resume de maneira clara e sucinta, “a Itaipu representou o poder

das elites dominantes, enquanto que os expropriados atuaram como classe dominada, sem

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ter tido muitas opções de luta pelos direitos que lhes cabia” (MAZAROLLO, 1980, p. 7).

Conclusão

O regime militar brasileiro se constituiu no principal fator de facilitação para que tais

avanços e manobras políticas se concretizassem, pois reprimiu as manifestações e a lutas dos

expropriados e daqueles que eram contra o projeto de Itaipu. O que houve em Guaíra, não

foi uma população passiva diante dos fatos, mas sim uma população reprimida pela Ditadura

Civil Militar.

A forte repressão na cidade, por parte dos militares, dificultou as manifestações

contra o fim de Sete Quedas e também em relação às lutas por indenizações justas. A

organização e comunicação entre os militantes eram realizadas informalmente e por meio de

materiais de vinculação interna produzidos pela CPT, que realizava um trabalho de

conscientização, ajudando os expropriados, já o Sindicato dos Trabalhadores Rurais

encampava as lutas, atuando como um órgão de representação dos expropriados.

Enquanto o país ostentava um modelo peculiar de modernização, mediante o discurso

do Brasil moderno e gigante, a maioria da população não recebia a vantagens dessa

modernização. Pelo contrário, sofria as consequências catastróficas que Itaipu gerou.

Guaíra/PR foi o município que mais sofreu com a construção da Usina, pois, além da grande

área inundada e consequente expropriação de milhares de pessoas, perdeu também as Sete

Quedas, um importante patrimônio ambiental que gerava renda para grande parte da

população da cidade.

A Itaipu representou o poder das elites. As vantagens ficaram para alguns

representantes da classe dominante, e os prejuízos ficaram para os expropriados, ou seja, da

classe dominada. Essa situação se insere na lógica implacável do capitalismo, na qual a

riqueza e os benefícios são para poucos, e a pobreza e as consequências ruins são para a

grande maioria pobre da população.

Referências bibliográficas

BARBOSA, M. H. Memória do Regime Militar. 2003. (Monografia de conclusão de curso

em história) Marechal Cândido Rondon: Unioeste, 2003.

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LIMA, I. T. C. Itaipu: as faces de um mega projeto de desenvolvimento. Niterói: Germânica,

2006.

MAIA, M. C. Itaipu e suas consequências em Guaíra. 1997. Monografia de conclusão de

curso de graduação em História.

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1980.

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PAZ, Reinaldo de Oliveira, 68 anos. Entrevista concedida a Simone de Souza Corrêa.

Guaíra/PR, 30 de agosto de 2011. Gravação em áudio e vídeo, 1 dvd, 18 min.

PAZ, Reinaldo de Oliveira, 68 anos. Entrevista concedida a Simone de Souza Corrêa.

Guaíra/PR, 28 de novembro de 2012. Gravação em áudio e vídeo, 1 dvd, 45 min.

PEREIRA, O. Itaipu: Prós e contras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

Produção independente. Onde você estava? Sete Quedas. 2012. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=tK3A9ZeBh-cb>. Acessado em 10/09/2013.

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ADEMAT: DAS PÁGINAS DE O MATOGROSSENSE À AÇÃO PARAMILITAR

EM CAMPO GRANDE (1963-1964)

Thaís Fleck Olegário1

Resumo: O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) foi fundando no final da

década de 1950. Criado como uma instituição de classe, tinha por objetivo ampliar a

influência do empresariado multinacional e associado, e ao mesmo tempo, servir como canal

de militância política destes grupos. As seções regionais do IBAD faziam as divulgações na

imprensa local, do conteúdo ideológico disseminado pelo complexo IPES/IBAD/ESG,

adequado às pautas regionais. Estes grupos também eram responsáveis pela orientação e

organização das elites locais. Em Campo Grande, no sul do antigo estado de Mato Grosso,

em abril de 1963, foi criada a Ação Democrática Mato-Grossense (ADEMAT), sendo filiada

ao IBAD. Era composta por latifundiários, médicos, advogados, comerciantes, jornalistas,

entre outros. Até o golpe de 1964, a Ação atuava através de divulgações ideológicas

anticomunistas, no jornal O Matogrossense, pautados na Doutrina de Segurança Nacional.

Mesmo após a suspenção das atividades do IBAD pelo governo Goulart – diante da

comprovação do financiamento desta instituição por corporações estadunidenses –, a

ADEMAT permaneceu ativa, tendo apenas encerrado suas publicações semanais na

imprensa local. Após o golpe de 1964, a Ação passou a ser o principal grupo de repressão

paramilitar do estado.

Palavras-chave: ADEMAT; Imprensa; Ação Paramilitar.

A criação da Ação Democrática Mato-Grossense

A Ação Democrática Mato-Grossense (ADEMAT)2 foi criada em abril de 1963,

sendo ligada ao IBAD. Era composta por latifundiários, médicos, advogados, comerciantes,

jornalistas, entre outros. Assim como o IBAD, a Ação possuía orientação teórica pautada na

Doutrina de Segurança Nacional (DSN)3. Nesse sentido, em relação ao surgimento da Ação,

Demósthenes Martins4, pontua:

À proporção que a ação solerte dos comunistas avança no trabalho de

desintegração da democracia, as forças civis e militares se apresentam

também, para defende-la. Em Campo Grande, a ADEMAT – Ação

Democrática Matogrossense – ganhava prosélitos em todos os escalões de

sua população, preparando-se para a luta, sem distinção de classe e

legendas partidárias (MARTINS, 1980, p.239).

1 Graduanda do curso de História-Licenciatura pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Esta pesquisa é um resultado parcial do Trabalho de Conclusão de Curso, realizado sob a orientação do Prof.

Dr. Jorge Christian Fernandez. 2 Grafaremos com “a” maiúsculo a palavra ação, quando estivermos nos referindo à ADEMAT. 3 A Doutrina de Segurança Nacional (DSN) é entendida a partir da obra A Ideologia de Segurança Nacional

(1978), de Joseph Comblin, nela o autor demonstra o papel central dos Estados Unidos na elaboração da

doutrina. A DSN consistia em um elaborado corpo teórico doutrinário que fundamentava a necessidade de

segurança interna das nações, frente à ameaça comunista. 4 Advogado, político campo-grandense e membro da ADEMAT. A obra memorialística citada, A poeira da

Jornada: Memórias, publicada em 1980, integra um discurso de legitimação do golpe de 1964, como uma

“Revolução” em nome da democracia.

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Propondo que as “forças civis e militares” só haviam se articulado por causa do

“avanço comunista”, Demósthenes aponta a criação da ADEMAT como um movimento de

determinação heroica, destinado à defesa da democracia. Além disso, quando o autor destaca

“preparando-se para a luta, sem distinção de classe e legendas partidárias”, fica evidente a

relação, com a proposta da DSN, de criar-se a imagem de uma nação coesa, no qual a luta

de classes desaparece, dando lugar ao objetivo em comum: o combate ao comunismo. Como

exposto por Padrós:

Segundo os princípios da DSN, o cidadão não se realizava em função do

seu pertencimento a uma determinada classe social, mas era a identidade e

a consciência de pertencimento a uma comunidade nacional coesa o que o

potencializava e viabilizava a satisfação das suas demandas (PADRÓS,

2004, p.45).

A formação inicial da ADEMAT, contou com membros de diversos partidos, dentre

os quais estavam o PSP, a UDN, o PSD e o PTB (A NOITE, 09/04/1963, p.2). A composição

pluripartidária da Ação permite duas proposições de análise, primeiramente, que a Ação

visava se apresentar à sociedade campo-grandense como uma organização democrática5, daí

a importância de incluir membros de vários partidos.

Neste sentido, para manter a face democrática da Ação, os membros da ADEMAT

procuravam desvincular nomes de importantes latifundiários do estado, da direção da

organização, como se pode verificar na notícia de 30 de janeiro de 1964, do Jornal O Estado

de Mato Grosso6, em que foi feita uma crítica ao jornal Última Hora, devido à publicação

por este, de artigo que relacionava a direção das atividades da Ação Democrática

Matogrossense ao latifundiário Lúdio Coelho (O ESTADO DE MATO GROSSO,

30/01/1964, p.1).

O texto exposto pelo periódico é notadamente contraditório, pois, como apontado por

Arakaki, a família Coelho possuía ligações com a criação da Ação: “Em Mato Grosso, o

movimento Ação Democrática Matogrossense (ADEMAT), sediado em Campo Grande,

teve como precursores a família Coelho, latifundiários udenistas, uma das famílias

detentoras de grandes extensões de terra no Estado” (ARAKAKI, 2008, p. 56).

Em segundo lugar, a criação pluripartidária, poderia estar focada na condensação dos

interesses em comum da elite campo-grandense, visto que a orientação político-ideológica

da ADEMAT não se distanciava daquela fomentada nas cúpulas do IBAD – aos olhos do

empresariado que deu origem ao instituto, a elite estava fragmentada7, e precisava unir-se

em prol de objetivos em comum. A pauta de objetivos em comum incluía a modernização

da estrutura produtiva, viabilizando o projeto desenvolvimentista gestado pelas elites desde

a década de 1950, bem como, o combate ao comunismo.

Enquanto o IBAD servia como canal para militância do empresariado, a ADEMAT,

por outro lado, representava as elites agrárias do sul de Mato Grosso. Pode-se notar, por

exemplo, que o pano de fundo dos discursos públicos da ADEMAT, era a Reforma Agrária.

5 Em âmbito nacional, a face democrática criada pelo IBAD possibilitava tanto a omissão das atividades

secretas de conspiração, quanto à legalidade às ações políticas do instituto (Cf. DREIFUSS, 1981, p.101-107). 6 Notícia espelho de uma publicação do jornal O Correio de Estado. 7 Faz-se esta proposição, considerando a exposição de Dreifuss, em relação às estatísticas apresentadas pelo

dirigente do IBAD, Ivan Hasslocher, de que 70% das classes empresariais estavam na categoria

“inconscientes”, e os membros do instituto estariam dentro dos “elementos conscientes” que representavam

4% (Cf. DREIFUSS, p.165-166).

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Neste sentido, assim como o IBAD, a Ação estaria agindo em função da orientação e

organização de uma classe. Como apontado por Leite:

Os temores em relação às propostas do governo Goulart fizeram com que

a “elite bovinocultora”, composta por grandes criadores de gado, herdeiros

da oligarquia, proprietários de grandes fazendas do Mato Grosso,

realizasse ações para preservar seus interesses, conservando as velhas

estruturas econômicas e de poder na região. Neste sentido, todas as

possibilidades de atuação contrária às reformas deveriam ser utilizadas,

pois os riscos de perda de espaço eram maiores a cada dia que passava na

visão dos líderes políticos e oligárquicos. Esses líderes agiram para barrar

as possíveis mudanças criando grupos de discussão e entidades patronais,

orientando veladamente os fazendeiros a adquirirem armas para um

eventual conflito armado. Combatia-se em dois fronts: nos debates de

ideais e nos bastidores, por meio de articulações políticas e paramilitares

(LEITE, 2009, p.64).

A ADEMAT nas páginas de O Matogrossense

Em abril de 1963, a ADEMAT, começou a publicar semanalmente uma coluna no

Jornal O Matogrossense. Os artigos possuíam textos extensos, que se estendiam em duas

páginas, normalmente iniciavam na primeira e terminavam na quarta página. As publicações

eram assinadas em nome da Ação, sendo poucas vezes, nominal a integrantes isolados. A

coluna ficava localizada abaixo do cabeçalho do jornal, na primeira página, apresentada

como manchete, o que demonstra sua importância dentro do periódico.

O Jornal O Matogrossense foi fundado em 26 de agosto de 1949, em comemoração

ao aniversário da cidade de Campo Grande, no antigo estado de Mato Grosso. O jornal

pertencia à Gráfica Editora Matogrossense Ltda. e possuía edições matutinas, com uma

circulação de aproximadamente três mil cópias diárias, com quatro páginas cada, em formato

standart. (O MATOGROSSENSE, 16/04/1963, p.1).

O periódico foi utilizado pela ADEMAT, para expor seu posicionamento político e

a partir disso, atrair simpatias aos objetivos da Ação, bem como captar novos integrantes. A

utilização do jornal como veículo para este fim é possível, a partir do entendimento de que

os jornais podem vir a se tornar uma “arma de poder”, pois o conteúdo veiculado, está

relacionado aos interesses dos proprietários dos jornais, como exposto por Capelato:

Nos Estados liberais, a Constituição garante a todos a liberdade de

expressar sua opinião e de obter informações. A imprensa é o veículo

apropriado para esses fins. Todos são livres e iguais perante a lei, mas na

prática uns são mais livres e mais iguais. Ocorre então que, neste mundo

desigual a informação, direito de todos, transforma-se numa arma de poder

manipulada pelos poderosos [...]. Nesta situação onde se mesclam o

público e o privado, os direitos dos cidadãos se confundem com os do dono

do jornal (CAPELATO, 1988, p.18).

As publicações foram realizadas de abril a novembro de 1963, e eram dividas em três

principais assuntos: o anticomunismo, principalmente em relação a Cuba, o “bom”

capitalismo, e a Reforma Agrária. Neste trabalho, será dado enfoque ao posicionamento da

Ação em relação à Reforma Agrária.

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O combate à reforma agrária: A mobilização das elites de Campo Grande

Em 20 de julho de 1963, a ADEMAT realizou uma palestra, durante a noite de gala

oferecida aos visitantes da XXV Exposição Agropecuária e Feira de Amostras de Mato

Grosso (O MATOGROSSENSE, 30/07/1963, p.1), destacando qual era o tipo de reforma

agrária pretendida pela Ação. Em exposição, o Deputado Federal Armando Falcão, propõe:

A reforma agrária que os brasileiros querem é a reforma agrária cristã, é a

reforma agrária democrática, é a reforma agrária da Igreja Católica, e não

a reforma agrária do Dr. Leonel Brizzola, e muito menos a reforma agrária

do cunhado do Dr. Leonel Brizzola. [...] Nosso esforço, e conosco da Ação

Democrática Mato-Grossense, é justamente esclarecer o povo, para que ele

não se iluda com as pregações demagógicas, não impressione com as

promessas ilusórias, com os sonhos de um paraíso que jamais será atingido.

Devemos orientar-nos pelo bom-senso, pela voz da Igreja Católica, pelo

ensinamento dos nossos homens democratas, porque estes, sim, conhecem

o assunto, conhecem a realidade nacional, conhecem as necessidades do

homem do campo e objetivam dar ao homem do campo um estatuto legal

capaz de garantir-lhe uma atividade pacífica e produtiva e uma

prosperidade racional e perene (BRASIL OESTE, jul. 1963, nº 83, p. 41-

42).

O discurso foi transmitido via radio e transcrito pela revista Brasil Oeste. Nota-se a

proposição de uma reforma agrária “cristã” e “democrática”, em contraposição ao projeto de

Goulart. A maior parte dos membros da ADEMAT eram latifundiários do sul do antigo

Estado de Mato Grosso, e a reforma agrária, representava de longe, o tema de maior

intocabilidade para eles. Na palestra citada, a Ação é destacada como instrumento destinado

a “esclarecer” o povo, a respeito dos “objetivos comunistas” por trás das reformas de base

de Goulart.

Outro aspecto, presente no discurso dos membros da Ação, é a sua auto intitulação

como “homens democratas”, representando-se como esclarecidos sobre o regime político,

bem como sobre a reforma agrária. É importante destacar este ponto, pois, durante uma das

publicações da ADEMAT, no jornal O Matogrossense, intitulada “Reforma Agrária: O

Golpe Traidor Comunista”, a Ação transcreve um discurso do Secretário Geral do Partido

Comunista Chinês8 e isto é feito, deixando-se erros gramaticais de concordância, para indicar

que os “comunistas” eram menos “esclarecidos” que os ditos “homens democratas” da

ADEMAT, conforme publicação:

‘Reforma Agrária’ - O Golpe Traidor Comunista. A Verdadeira opinião da

Igreja de Cristo, pelas Palavras do Arcebispo de DIAMANTINA. A – No

mundo; Nos países onde há uma grande população agrícola o comunismo

vê na Reforma Agrária “um elemento essencial na luta pelo poder. O

homem do campo, seja o médio ou pequeno, é um enorme obstáculo para

a revolução. Seu senso agudo de dono da terra seu espírito religioso, seu

aférro às tradições, fazem dele um inimigo tenaz da revolução. Mas ao lado

do obstáculo, o comunismo vê as possibilidades que o campo oferece. No

campo existe necessariamente o assalariado. Existe o minifundiário e o

pequeno proprietário. A tática comunista na luta de classes procura lançar

os assalariados contra os patrões, e os sem terras, ou donos de pequenas

8 O nome referido na publicação é Lin-Chao-Tchi, sendo a correta correspondência Liu Chao-Tsi.

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glebas, contra os médios e grandes proprietários. Grita-se até cansar os

pulmões: “Latifúndio Latifúndio” “Reforma Agrária” “Reforma Agrária”

cria-se um clima e motivo, irracional açulam-se os assalariados prometem-

se lhes terras e propriedades envolvem-se os legisladores numa gritaria

nacional. […] Ouvi o que diz um dos grandes mestres do comunismo: A

Reforma Agrária é uma luta sistemática e selvagem contra o feudalismo...

Sua meta não é da terra aos camponeses pobre, nem aliviar sua miséria.

Isto é ideal de filantropos e não de marxista... O verdadeiro objetivo da

reforma agrária é a libertação das forças do pais” (Lin-Chao-Tchi)

Secretário Geral do Partido Comunista Chinês mensagem de 14 de 1950…

Eis os objetivos excusos (sic) da Reforma Agrária (O MATOGROSSENSE,

17 e 18/06/1963, p.1 e 4).

Na realidade construída pela ADEMAT era necessário destacar que a Reforma

Agrária apenas afetaria o “produtor de pequeno e médio porte”, mesmo que tal Reforma,

constituísse uma ameaça real aos latifundiários. Enquanto buscava ampliação de suas bases,

a Ação não pretendia ser relacionada a uma organização de interesses exclusivos de

latifundiários, por isso, se apresentava como um grupo de “homens democratas” a serviço

também dos pequenos e médios proprietários de terras.

Em agosto de 1963 as atividades do IBAD foram suspensas pelo governo Goulart,

diante dos resultados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada para

investigação da ilegalidade das ações políticas do IBAD durante as eleições de 1962, bem

como, do financiamento desta instituição por corporações estadunidenses, Dreifuss aponta

que:

O envolvimento do capital estrangeiro, em particular, e o da empresa

privada, em geral, nos assuntos políticos foi de tamanho significado no

contexto da época que induziu a criação de uma Comissão Parlamentar de

Inquérito – CPI para investigar o problema. A CPI fez sindicância no modo

de o IBAD proceder e sua suposta intromissão nos assuntos políticos

através de meios ilegais, especialmente nas eleições de outubro de 1962

para o Congresso. Investigou-se também o IPES. O IBAD foi fechado por

haver sido considerado culpado de corrupção política (DREIFUSS, 1981,

p.207).

Contudo a ADEMAT permaneceu ativa, tendo apenas encerrado suas publicações

semanais na imprensa local. Após o golpe de 1964, a Ação passou a ser o principal grupo de

repressão paramilitar do estado. Apesar da ação paramilitar ter sido intensificada a partir do

golpe, nota-se que desde o seu surgimento a Ação já trazia o cerne da luta armada, como

evidenciado, por Martins: “ADEMAT (Ação Democrática Mato-Grossense), organização

surgida para combater a ação comunizante do Presidente João Goulart, inclusive no campo

da luta armada” (MARTINS, 1980, p. 250).

Neste sentido, Silva aponta que no transcorrer do ano de 1964 era comum ver os

militantes da Ação portando metralhadoras e outras armas, e que este grupo agia em conjunto

as forças militares, realizando prisões, e ataques diretos, com utilização de violência contra

seus opositores. Os ataques ao jornal O Democrata, periódico ligado ao Partido Comunista

Brasileiro (PCB) e dirigido por José Roberto de Vasconcelos, por exemplo, são atribuídos a

ADEMAT (SILVA, 2005, p.128).

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Considerações finais

Buscou-se realizar uma abordagem inicial sobre o que era a ADEMAT – uma

instituição civil que atuava sob a bandeira da defesa da democracia, porém, na prática agia

em prol das demandas da classe que havia lhe dado origem, a dos grandes proprietários de

terras do sul de Mato Grosso. A Ação atuou ativamente para desestabilização do governo

Goulart, e conspirou para o golpe de 1964.

As matrizes ideológicas da Ação surgiram em meio a Guerra Fria. Os membros da

elite civil encontraram na Doutrina de Segurança Nacional os objetivos a serem defendidos,

e seu principal inimigo: o comunismo. O anticomunismo era seu principal argumento, lhe

fornecia sustentação às ações injustificáveis, como barrar a Reforma Agrária, ou destruir as

instalações de um Jornal.

O que era a ADEMAT em 1963? Sem dúvidas uma organização civil que atuava na

divulgação ideológica, por meio de publicações no jornal O Matogrossense, de caráter

anticomunista e desestabilizador. O que se tornou após o golpe de 1964? Um grupo de

repressão paramilitar; porém esta é uma pergunta que deverá ser investigada profundamente

em futuras abordagens sobre o tema.

Fontes Citadas

CAMARGO, Francisco. Ação Democrática Matogrossense. Brasil Oeste. São Paulo, jul.

1963. nº 83, p. 41-42. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: Rio de Janeiro. Disponível

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Biblioteca Nacional: Rio de Janeiro. Disponível em:

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Jornal O Estado de Mato Grosso. Notícia de Jornal Paulistano sobre Lúdio Coelho. 30 jan.

1964. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: Rio de janeiro. Disponível em:

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Jornal O Matogrossense. 16 abr. 1963. Edição 3.449. Arquivo Histórico de Campo Grande:

Campo Grande, MS.

Jornal O Matogrossense. 17/18 jun. 1963. Edição 3.497. Arquivo Histórico de Campo

Grande: Campo Grande, MS.

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Campo Grande, MS.

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CAPELATO, Maria Helena Rolim. A Imprensa na história do Brasil. São Paulo:

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DREIFUSS, René Armand. 1964 A conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de

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LEITE, Eudes Fernando. Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia, nos entremeios de uma

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MARTINS, Demósthenes. A poeira da jornada: memórias. São Paulo: Ed. Resenha

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RELAÇÕES DE GÊNERO NO CONTEXTO DE EMANCIPAÇÃO DA CIDADE DE

CASCAVEL – PARANÁ

Thaluan Rafael Debarba Baumbach1

RESUMO: A presente pesquisa visa analisar algumas obras que retratam a história da

cidade de Cascavel (PR), com foco entre as décadas de 1950-1970. Nosso intuito foi discutir

sobre as relações de gênero presentes na cidade de Cascavel, contidas nos livros: Cascavel

– a História, de Alceu Sperança, e Terra, Sangue e Ambição: a gênese de Cascavel, de

Vander Piaia. Nesse contexto, os resultados apontam que, no período da emancipação do

município de Cascavel, a representatividade feminina é pouco abordada. Assim sendo, nossa

proposta é apresentar tais passagens a fim de visualizar como se estabeleciam as relações de

gênero.

Palavras-chave: Relações de gênero; Cascavel-Paraná; Representatividade feminina.

Introdução

A presente pesquisa, de cunho qualitativo, visa apresentar e discutir algumas

passagens que abordam as relações de gênero contidas em dois livros que fazem parte do

acervo bibliográfico referente à história de Cascavel (PR). Tais livros são: (i) Cascavel: a

História (SPERANÇA, 1992); (ii) Terra, Sangue e Ambição: a gênese de Cascavel (PIAIA,

2013). Por meio de uma análise destes livros, apresentaremos aspectos referentes à

emancipação da cidade de Cascavel. Posteriormente, iremos apresentar um breve relato

sobre a história política contextualizando nosso estudo para, por fim, apresentar e discutir as

relações de gênero propriamente ditas.

Nesse sentido, em 1951 Cascavel teve sua emancipação política. Nos primeiros dias

do novo município a modernidade passou a transparecer por meio da instalação de alguns

serviços que estariam à disposição da sociedade. Nessa época, Cascavel teve sua primeira

eleição para comandar o executivo do município. Assim, foi eleito José Neves Formighieri

como o primeiro prefeito de Cascavel. O que nos chamou a atenção foi como tal informação

foi difundida no livro de Alceu Sperança. Consta a imagem da família (Pai, mãe e filho) com

a legenda: “Primeiro prefeito de Cascavel, José Neves Formighieri, com esposa e filho”

(p.149). Tal legenda, imbuída em nossa proposta de análise, referencia o nome e o cargo do

homem, mas sequer comenta-se o nome da “primeira-dama” da cidade. Desse modo:

A desigualdade de gênero, como outras formas de diferenciação social,

trata-se de um fenômeno estrutural com raízes complexas e instituído

social e culturalmente de tal forma, que se processa cotidianamente de

maneira quase imperceptível e com isso é disseminada deliberadamente,

ou não, por certas instituições sociais como escola, família, sistema de

saúde, igreja, etc. (CABRAL, 1998, p. 3).

1Graduando em Pedagogia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná/UNIOESTE. Bolsista de Iniciação

Cientifica/Fundação Araucária. Membro do grupo de Pesquisas em Educação, Imaginário e Formação de

professores – IMAGINAR. Membro do grupo de Pesquisas em Formação de Professor para o ensino de

Ciências e Matemática – FOPECIM. E-mail: <[email protected]>.

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Nesse sentido iniciamos nosso estudo, buscando apresentar analogias entre a

problemática das relações de gênero. Para tal análise, faz-se necessário uma síntese –

situando o leitor – sobre a composição histórica da atual capital do Oeste do Paraná2, oriunda

das terras que pertenciam à Foz do Iguaçu, até a sua emancipação em 1952.

Aspectos da emancipação da cidade de Cascavel

Em 14 de dezembro de 1951, Cascavel teve sua emancipação política por meio da

Lei Estadual nº 790/51. Nos primeiros dias do novo município foi instalado o serviço de

auto-falante que daria origem à Rádio Colméia, na época, intitulada “A voz do Comércio”.

Tal serviço divulgava avisos, informes publicitários e tocava marchinhas militares. Através

da “Voz do comércio”, também, eram divulgados os debates da câmara municipal. O ano de

1952 foi de enorme importância para o município. Concomitantemente, o Estado paranaense

havia registrado o início da produção de soja, sendo produzidas 43 toneladas. Segundo

Sperança (1902): “Em Cascavel, o primeiro plantador oficial de soja foi o agricultor Getúlio

Fernandes, semeando em sua propriedade uma saca fornecida pelo secretário municipal

Celso Formighieri Sperança” (p. 153-154).

O primeiro ano de Cascavel como município foi marcado, também, pela inauguração

do aeroporto. Conforme Sperança (1992), em reflexo aos esforços do padre Luiz Louise, em

parceria com o diretor da Real Aerovia e as autoridades estaduais e municipais, na data de

11 de Janeiro de 1953 foi estabelecido em Cascavel o aeroporto. Posteriormente, foi

estabelecido o serviço rodoviário, em seis de abril do mesmo ano. Foi um período de muitas

conquistas para os pioneiros: como o primeiro hospital (Nossa Senhora Aparecida) e o

primeiro jornal diário (Diário do Oeste). Em 11 de agosto foi estabelecida a nomenclatura

para as ruas da cidade, sendo elas: Avenida Brasil, Rua Paraná, Rua Pernambuco, Rua Minas

Gerais, Rua Rio Grande do Sul, Rua São Paulo, Rua Santa Catarina, Rua Rio de Janeiro,

Avenida Moisés Lupion, Rua Othon Mader, Rua Ademar Barros, Rua do Governador Bento

Munhoz e Rua Manoel Ribas. Ficou estabelecido também que, para o futuro, todas as ruas

que fossem abertas paralelamente à Avenida Brasil tomariam nomes de Estados e, quando

não mais houvesse, tomariam nomes de territórios nacionais. O ano de 1953 marcou o

município também no que diz respeito à educação pública. Em seu primeiro aniversário foi

fundado a primeira escola, o atual Colégio Estadual Eleodoro Ébano Pereira.

No que diz respeito à movimentação econômica do ano de 1953 para Cascavel, foi

registrado, paralelamente à indústria madeireira, que estava em seu auge, um esforço em

implantar a cultura do café. Segundo Sperança (1992), o café foi muito importante nos anos

iniciais do município: “O café não deu apenas o primeiro Banco de Cascavel, mas também

provocou à implantação de uma unidade da Companhia Paranaense de Silos e Armazéns

(COPASA), mais tarde colocada a disposição das crescentes safras de cereais de Cascavel”

(p. 163). Além do café, que apesar de ter originado o primeiro banco (Banco Banquiri), não

prosperou, pois a região não era propícia para o cultivo do café. Cascavel ainda era

fornecedor de carne suína para a região Oeste do Paraná.

Nesse contexto, a cidade de Cascavel passou a se tornar um eixo de escoamento da

produção, devido ao seu potencial produtivo e sua posição geográfica. Dessa forma,

evidenciou a necessidade de modernizar as rodovias para transporte de tal produção. Nesse

período, Cascavel contrastava sua crescente urbanização com a dificuldade no transporte

para escoamento de produção. Com isso, em 22 de novembro de 1961, foi transferido o

2 Cascavel é conhecida como a Capital do Oeste Paranaense, por ser o polo econômico da região e um dos

maiores municípios do Paraná.

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Distrito Rodoviário para Cascavel, com o intuito de ramificar os serviços de transporte. Isso

refletiu no transporte público da cidade, como diz Sperança:

Os transportes urbanos tiveram início em 1961, com serviços na Avenida

Brasil e Rua Treze de Maio. A empresa Transportes Coletivos Cascavel,

pertencente a Rubens Lopes e Agenor Miotto, utilizava somente Kombi,

que progressivamente foram substituídas pelo ônibus (SPERANÇA,

1992, p. 201).

Fica evidente a presença do transporte e a pavimentação da Avenida Brasil que, para

a época, equivalia à BR-277 e à rua treze de Maio. A importância desse transporte para a

cidade era imensurável em relação ao progresso da época. No que diz respeito à BR-277,

ocorriam o escoamento da produção e a ligação entre Guarapuava e Foz do Iguaçu. Para a

rua Treze de Maio, alguns metros além do seu fim, havia o estabelecimento das casas de

prostituição. Em especial, a casa da “Tia Chiquinha3”.

Representatividade do feminino nas obras analisadas

Diversas relações de gênero ocorrem devido às distinções de poder estabelecidas

culturalmente entre homens e mulheres. Para discorrer sobre essa temática, primeiramente,

se faz necessário conceituar o que é gênero. Nesse sentido, concordamos com os

pressupostos de Abreu e Andrade (2010), que apresentam o conceito de gênero como um

elemento produzido em meio a relações sociais que se fundamentam em diferentes

perceptivas entre os sexos, constituindo a formação social e histórica dos sexos. Nesse

sentido, cada indivíduo nasce com seu sexo físico, o que o caracteriza como homem ou

mulher, mas sua identidade de gênero é social, ou seja, masculino ou feminino. Desse modo,

as relações de gênero conforme Abreu e Andrade “são determinadas pelo contexto social,

cultural, político e econômico. Enquanto sexo é determinado pela natureza, pela biologia, o

gênero é construído historicamente sendo, portanto, variável e mutável” (ABREU;

ANDRADE, 2010, p. 3). Portanto, as relações de gênero estão baseadas na apropriação

cultural da sociedade em que vivemos, com moldes na autoridade paterna por meio da

supremacia da figura masculina.

Por muito tempo, tal campo de estudo foi negligenciado. Contudo, com a nova

história política, tais relações passam a ser foco de diferentes historiadores. Segundo Abreu

e Andrade: “O campo de estudo do gênero surgiu com os movimentos de mulheres. Iniciou

sem prestígio acadêmico, depois foi ganhando autonomia de campo de pesquisa acadêmica,

atingindo hoje status mais consistente” (ABREU; ANDRADE, 2010, p.2). Desse modo, a

partir da década de 1920, alguns estudos surgiram abordando essa temática. Nesse período

surge a Escola des Annales que foi um movimento de renovação da historiografia iniciado

na França, fundado por Marc Bloch e Lucien Febvre. Em sua primeira geração, a escola

estigmatizou a história política como factual. Na sua segunda geração, Braudel4, relegou os

fatos políticos ao “tempo curto”. Culmina na terceira geração a busca de modelos e

sustentação teórica para repensar as relações Estado-sociedade, impostos pelo seu interesse

em renovar o estudo do político, possibilitando, assim, novas concepções sobre temas pouco 3 Para mais informações acerca da casa da “Tia Chiquinha” recomendamos o artigo “Entre relatos e

representações: A prostituição nos primórdios da capital do Oeste do Paraná” (ALVES; BAUMBACH,

MALACARNE, 2015). Tal artigo traz depoimentos dos pioneiros, onde são expressas as representações

pessoais dos depoentes sobre o local. 4 Foi um dos mais importantes representantes da chamada “escola dos Annales”.

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frequentados pela historiografia: os poderes, os saberes enquanto poderes, as instituições

supostamente não políticas, as práticas discursivas, etc.

O estudo do político vai compreender a partir daí não mais apenas a política

em seu sentido tradicional, mas, em nível das representações sociais ou

coletivas, os imaginários sociais, a memória ou memórias coletivas, a

mentalidade, bem como, as diversas pratica discursivas associadas ao

poder (FALCON, 1997, p. 76).

O estudo do político passa a compreender não apenas a política em seu sentido

tradicional, mas, em níveis de representações sociais e coletivas, as mentalidades, bem como

as diversas práticas discursivas associadas ao poder. A possibilidade de uma nova história

política resultou de condicionantes muito diversos, aos quais poderia chamar de históricos,

epistemológicos e disciplinares. Os fatores históricos mencionados compõem uma estrutura

explicativa em três etapas: o advento da sociedade pós-industrial, o retorno do acontecimento

como notícia e a percepção aguda do caráter eminentemente político das decisões

governamentais compreendidas na designação de políticas públicas, a universalização da

burocracia e a programação de vastos setores das atividades sociais. Como consequência, as

decisões propriamente políticas recobram importância, adquirem um peso específico muito

grande, levando a uma politização inevitável dos acontecimentos, atitudes, comportamentos,

ideias e discursos.

Assim, com a interdisciplinaridade que trazia contribuições metodológicas, novos

objetos, problemas e abordagens passaram a entrar em foco, como jornais e revistas, além

de temas antes ignorados, buscando compreender a presença do poder em obras referentes

ao cotidiano, magia e sexualidade, como comenta Falcon (1997). Dessa forma, o livro de

Sperança, interpreta a historiografia da região Oeste do Paraná deixando transparecer,

embora que brevemente, por meio de citações e impressões, a representatividade feminina.

Com o mesmo foco Piaia aborda a representatividade feminina por meio do perfil cultural

caboclo.

Vander Piaia infere, em seu livro, sobre a temática da prostituição feminina: “A

Cortesã Chiquinha havia estabelecido seu prostibulo nas imediações da Rua 13 de Maio, na

região do atual Bairro Country” (PIAIA, 2013, p. 185). Contudo, pouco é relatado sobre o

assunto. Há o relato de do médico que trabalhava no local. Diz ele:

Eu fui escolhido pela chefa das mulheres [a cafetina Chiquinha] como o

médico preferido para atendê-las, e frequentemente eu era chamado para

fazer atendimentos, e ela achava que tinha que fazer um exame para

prevenção de doenças venéreas. Ela mandava também que tais moças

comparecessem no consultório para serem examinadas. Em suma, eram

pessoas agradáveis… Que trabalhavam bem (PIAIA, 2013, p.184).

Dr. Moacir Jorge, relata que a casa, embora muito frequentada, não servisse apenas

para relações sexuais com as meretrizes, mas também para relações econômicas e sociais

entre os frequentadores. O local era de renome significativo para a história da região. Quem

frequentava a casa era considerado socialmente, principalmente porque além do local ter

sido frequentado por pessoas socialmente de grande moral, tinha uma arquitetura agradável

e limpeza impecável, o que o diferenciava dos demais prostíbulos da época. A utilização do

depoimento do Dr. Moacir Jorge pelo autor induz sobre a temática da prostituição feminina,

o olhar de algo a ser controlado. Nesse sentido o autor infere sobre a história local o conceito

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e as impressões de que era notável na sociedade cascavelense a utilização dos bordeis para

entretenimento.

Ademais, Sperança cita o nome de Eliza Aparecida Vieira Simioni (p. 227), quanto

à nova formação da Câmara de vereadores em 1968. Com uma breve pesquisa, foi possível

encontrar algumas informações quanto à pessoa de Simioni. De acordo com uma edição do

jornal Hoje5, publicada em 7 de novembro de 2013, Simioni era ginecologista e foi a primeira

médica a trabalhar em Cascavel, “Desafiando o machismo reinante na época”, como cita o

Jornal (p. 6). Além disso, foi eleita a primeira vereadora em 1968.

As relações de gênero são produto de um processo pedagógico que se inicia

no nascimento e continua ao longo de toda a vida, reforçando a

desigualdade existente entre homens e mulheres, principalmente em torno

a quatro eixos: a sexualidade, a reprodução, a divisão sexual do trabalho e

o âmbito público/cidadania (CABRAL, 1998, p.1).

Como se sabe, a muito (e até atualmente), a mulher é vista como inferior e encaixada

em determinadas atividades e locais preestabelecidos por “normas” patriarcais. Os empregos

tidos como “mais importantes”, normalmente eram ocupados por homens, sendo raros os

casos de “médicas”, “advogadas” e “vereadoras” na época citada. Tal concepção é talhada

nas mentes dos indivíduos desde crianças, onde a brincadeira de meninas está relacionada

ao lar e criação de filhos (bonecas), enquanto a dos meninos relaciona-se a profissões tidas

como “masculinas”. Assim, em uma época repleta de conceitos morais, uma mulher que

adentrasse na política, como o caso de Simioni, era vista como algo inusitado.

Compreender as relações de gênero e a diferenciação encontra-se em pequenos

detalhes, que, infelizmente, passam-se despercebidos. Obviamente, de acordo com a história

tradicional, o maior foco será sempre para o indivíduo que ocupa um cargo de poder, e neste

caso, notamos que, praticamente nos dois livros, não há menção relativamente relevante dos

nomes das mulheres que influenciaram e participaram da vida política da cidade, e quando

se obtém tal análise, encontra-se em citações singelas, como o caso da primeira vereadora

“mulher” da cidade, e da chefa do prostíbulo mais conhecido do local.

Considerações finais

Assim como em outras cidades da região Oeste do Paraná, a história de Cascavel

perpassa em meios de relações de poder e articulações político-econômicas. Sendo que, no

ano de 1951, além de Cascavel, Toledo, Guaíra e Guaraniaçu tiveram sua emancipação

decretada pelo governo do Estado. Constituindo os primeiros municípios a terem sua

emancipação decretada na região Oeste do Paraná.

Nesse contexto, trabalhar com gênero em uma época em que os costumes

aproximam-se das correntes tradicionalistas, como propõe o recorte deste artigo, torna-se

um desafio, pois, entre outros fatores, sua bibliografia tende a manter-se no âmbito do

tradicionalismo. Tal ação causa dificuldades na tentativa de ver-se tal história por outras

perspectivas, como por exemplo, a perspectiva da “história vista de baixo6”, que possui

5 <http://www.jhoje.com.br/Paginas/20131107/local.pdf>. 6 A importância da história vista de baixo é mais profunda do que apenas propiciar aos historiadores uma

oportunidade para mostrar que eles podem ser imaginativos e inovadores. Ela proporciona também um meio

para reintegrar sua história aos grupos sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham

conhecimento da existência de sua história. [...] A história vista de baixo pode desempenhar um papel

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espaço no âmbito acadêmico com as renovações que ocorrem neste ambiente. No entanto,

como citado no decorrer da análise, foi mencionado à meretriz, seu papel na sociedade e,

segundo relatos, que trabalhavam de maneira satisfatória, como comentou o médico que

atendia as mulheres do prostíbulo de Dona Chiquinha.

Assim sendo, notamos certa negligência em relação às discussões de gênero, nas

obras analisadas, tornando necessário uma análise mais atenta para compreender que a

representatividade feminina adentrava no cenário das relações de poder, tanto na política

(como mencionamos o caso da vereadora), quanto em âmbito social (como ocorreu através

da representatividade de Dona Chiquinha).

Referências

ABREU, J. J. V.; ANDRADE, T. R. A compreensão do conceito e categoria gênero e sua

contribuição para as relações de gênero na escola. In: VI Encontro de Pesquisa em Educação

da UFPI, 2010, Piauí. Anais... Piauí: PPGED/UFPI, 2010. p. 1-14.

BAUMBACH, T. R. D.; ALVES, F. L.; MALACARNE, V. Entre relatos e representações:

a prostituição feminina nos primórdios da capital do Oeste do Paraná. In: Anais da XII

Semana Acadêmica de História: História e Arte, 2015, Marechal Cândido Rondon.

Literatura, Música e Cinema, 2015. v. 1. p. 182-192.

PIAIA, V. Terra sangue e ambição: a gênese de Cascavel. Cascavel: Edunioeste, 2013.

SPERANÇA, A. A. Cascavel: A História. Curitiba: Lagarto, 1992.

JULLIARD, Jacques. A política. In: LE GOFF, Jacques (org.). História: novas abordagens.

Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1976.

FALCON, Francisco. História e poder. IN: CARDOSO, C.F. e VAINFAS, R. Domínios da

História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.

CABRAL, F.; DÍAZ, M. Relações de gênero. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE

EDUCAÇÃO DEBELO HORIZONTE; FUNDAÇÃO ODEBRECHT. Cadernos

afetividade e sexualidade na educação: um novo olhar. Belo Horizonte: Gráfica e Editora

Rona Ltda, 1998. p. 142-150.

SHARPE, Jim. “A História Vista de Baixo”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História:

novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.

importante neste processo, recordando-nos que nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas,

primeiros-ministros ou generais (SHARPE, 1992, p. 59-60).

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CONTO E CRÔNICA: UM OLHAR SOBRE A CIDADE TRAÇADA/VIVIDA

Vanusa de Souza1

Resumo: A urbanização cria uma Hong Kong por mês, uma verdadeira revolução, rápida e

emergente, iniciada na segunda metade do século XX e que se estende em ritmo acelerado

no início do século XXI. As cidades representam a chave para o desenvolvimento. Esse

pressuposto acompanhou as coordenadas de reforma urbanística de políticos brasileiros em

diferentes momentos históricos. A partir disso, um paralelo das desigualdades entre as

cidades pode evidenciar os maiores custos da revolução urbana forjada nesses moldes. À

aceleração somou-se a crise do Estado, que tirou dos governos muito de seu poder de

investimento em infraestrutura e serviços sociais. Como resultado, para uma parcela

crescente da população, a vida urbana passou a ser sinônimo de desemprego, violência,

favelas, congestionamentos, poluição. Então, pergunta-se: Em qual cidade habito? O que

significa estar no mundo e captar o lugar que se vive? Na tessitura entre Literatura e

Sociedade, a localização geográfica pode ser um lugar de contemplação do mundo? Nesse

sentido, o objetivo desta comunicação oral é propor um debate através da leitura e

compreensão do conto “Domingo em Porto Alegre”, de Sérgio Faraco, escritor e ensaísta, e

da crônica “A cidade traçada”, de Joaquim Fonseca, artista plástico e escritor, sobre a

Literatura e o espaço de pertencimento no mundo globalizado das tecnologias e ao mesmo

tempo da exclusão. O estudo seguirá as proposições de Sandra Jatahy Pesavento, Néstor

García Canclini, Beatriz Sarlo, Michèle Petit, Rildo Cosson e Antonio Candido, para a

mediação da leitura literária sobre o tema cidade na Educação Básica.

Palavras-chave: Literatura; cidade; mediação literária.

Introdução

Este trabalho foi pensado e elaborado a partir do surgimento de algumas inquietações

sobre o espaço urbano, que vem crescendo aceleradamente desde o final do século XX e

início do século XXI. Essa constatação desencadeou questionamentos quanto ao papel do

professor mediador da leitura literária na Educação Básica, no sentido de pensar na

relevância desse tema para os alunos, pois a cidade tem sido um espaço mais significativo

para os artistas e produtores de cultura.

A pesquisa bibliográfica aqui apresentada apontará algumas reflexões sobre o

reconhecimento do espaço de pertencimento percebido enquanto contraponto aos lugares de

exclusão impostos pela cultura fragmentada da contemporaneidade.

Essa tarefa baseia-se, basicamente, na leitura do Conto “Domingo em Porto Alegre”,

de Sérgio Faraco, escritor e ensaísta, e da crônica “A cidade traçada”, de Joaquim Fonseca,

artista plástico e escritor, buscando reunir aspectos importantes da cidade em seu espaço de

urbanização, desenvolvimento social, econômico e cultural.

Assim, na leitura e estudo das narrativas propostas, utilizaremos uma abordagem

transdisciplinar, uma vez que o referido tema, para que seja proposto como trabalho de

pesquisa voltado ao ensino, necessita do aporte de vários teóricos. Para as alusões à cidade,

nos reportaremos aos estudos de Sandra Jatahy Pesavento, Néstor García Canclini, Beatriz 1 Aluna do Programa de Mestrado Profissional em Letras-PROFLETRAS-UNIOESTE-campus de Cascavel,

sob orientação da Profª Drª Denise Scolari Vieira. Email: <[email protected]>.

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Sarlo. Já para a análise da Leitura Literária nas escolas, são relevantes os trabalhos de

Michèle Petit, Rildo Cosson e, para as proposições sobre o campo Literário no Brasil, surgem

as referências a Antonio Candido. Dessa forma, para a mediação da leitura literária sobre o

tema cidade na Educação Básica, objetiva-se potencializar a percepção de que a literatura

não se reduz, unicamente, à leitura de fruição, mas também, como possibilidade de

experimentação do prazer estético capaz de resgatar cenários, modos de pensar, agir, de ver

o mundo, de falar sobre o mundo, de visualizar a riqueza e a beleza da linguagem.

Considerações sobre o ensino de Literatura

O Ensino da literatura é um tema cadente e mundial, embora haja posições

governamentais que afetem seu ensino nas escolas, pois, atualmente, observa-se que ele está

resumido apenas à leitura de fruição, conforme muitos teóricos têm percebido e orientado a

respeito.

Assim, a sua reformulação enquanto disciplina escolar e universitária é tema urgente,

também no Brasil, pois, infelizmente, em virtude de matrizes curriculares implantadas pelo

Ministério da Educação (MEC), propugnaram a redução das aulas de Língua Portuguesa,

substituindo-as por outras disciplinas obrigatórias. Tal medida, conduzida ao ensino da

Literatura no ensino Fundamental e Médio, ocasionou um problema que vem interferindo na

aquisição de competências mínimas exigidas para a leitura e escrita.

Observa-se a Literatura sendo concebida como algo cada vez mais raro nos

documentos oficiais da educação, o que vem dificultando a leitura e a organização dos textos

dos alunos. Conforme destaca Leyla Perrone-Moisés:

[…] Esse desprestígio tem numerosas razões: vivemos na época da

informação coletiva e rápida, e a leitura literária é uma atividade solitária

e lenta; o relativismo cultural dominante põe em cheque as antigas tabelas

de valores, sem as substituir por novas; respostas simples às grandes

questões filosóficas e existenciais passaram a ser buscadas, por aqueles que

ainda leem, em manuais de auto-ajuda, mais reconfortantes do que os

textos literários (PERRONE-MOISÉS, 2006, p.27).

Dessa forma, o que se percebe é o ensino de uma Literatura considerada mais

dirigível, mais fácil, com informações externas às obras e aos textos, substituindo-se os

textos plenos por simulacros como resumos e paráfrases, ou seja, a Literatura está a um plano

de insignificância nas preocupações pedagógicas no Ensino Fundamental e Médio,

entendida apenas como atrativo lúdico, supérfluo, como disciplina que distrai.

Nas escolas e na sociedade como um todo temos vivenciado o que Rildo Cosson

(COSSON, 2007, p.23) chama de “falência do ensino da literatura”, leitura que não está

sendo ensinada para garantir a função essencial de “construir e reconstruir a palavra que nos

humaniza”, pois é a partir desse processo que vamos mudando nossa forma de ver o mundo

e a nós mesmos, e também vamos realizando a apropriação de formas mais elaboradas de

produções humanas, como dos discursos, sejam orais ou escritos.

E, ainda, quando facilitamos o ensino de literatura, não significa oferecer ao aluno

exatamente o que ele deseja, o que lhe dá prazer imediato, o que confirma suas opiniões e

gostos individuais. Ao ouvir o aluno, precisamos compreender o patamar de conhecimentos

em que ele se encontra, o repertório de que ele dispõe, não para respeitar e confirmar sua

individualidade irredutível, mas para, a partir desses dados, estimulá-lo a ascender a um

patamar mais amplo, na construção da subjetividade. Respeitar o aluno é considerá-lo apto

a adquirir maiores conhecimentos e competências.

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O professor tem possibilidade de começar daquilo que o aluno já conhece para o que

ele desconhece, a fim de proporcionar o crescimento do leitor por meio da ampliação de seus

horizontes de leitura. A escola deve ser o lugar do novo e do velho, o trivial e o estético, o

simples e o complexo e toda a miríade de textos que faz da leitura literária uma atividade de

prazer e conhecimento singulares.

No trabalho em sala de aula, podemos perceber que a linguagem está

ininterruptamente nos constituindo, na mesma medida em que a constituímos e, portanto, a

leitura de um texto passa a ser bem mais do que uma simples investigação do seu conteúdo,

da sua semântica, para se tornar uma reflexão sobre aspectos pragmáticos e discursivos que

constitui essa materialidade linguística. Esses elementos fazem a linguagem ser aquilo que

é, pois são aspectos que a faz estar imersa em um processo histórico, sendo constituída por

muitas realidades e constituindo outras tantas.

Michèle Petit (2008) nos mostra que a literatura é uma das bases para a formação

humana e para a construção de uma sociedade mais justa. Afinal, é através da integração

com o nosso mundo interior que podemos nos relacionar, de maneira mais ética, solidária e

crítica com o mundo exterior, assumindo, assim, uma postura mais ativa na construção de

nossa própria história.

A cidade que vemos

É indispensável que a literatura faça parte do cotidiano das crianças, adolescentes,

jovens e adultos, por abordar diferentes temas que tendem a nos impulsionar e a perceber a

linguagem de algumas narrativas, especialmente porque focalizam um espaço onde há

vivências, criação de horizontes, limites e fronteiras. Ao vislumbrarmos o espaço,

pretendemos focar na cidade, especialmente, de uma grande cidade, pois ali habitam muitos

imaginários, representações que nós fazemos do real, elaborações simbólicas do que

observamos e do que nos intimida, espanta e que desejaríamos que existisse.

As cidades projetam uma sequência de acontecimentos. O discurso urbano, o texto

literário, a narrativa do historiador, os artigos de jornal, e outros tantos registros de

linguagem, são todos representações do real e, no caso, recriam a cidade. Muitos discursos

e imagens do urbano são capazes de migrar no tempo e no espaço. Logo, a cidade deve ser

analisada a partir daquilo que ela representa para cada indivíduo, visto que muitos escritores

vivem nesse espaço e a representam em suas obras literárias. Concernente a isso, a professora

e historiadora Sandra Jatahy Pesavento aborda a cidade como o lugar do homem. A cidade

é sempre um desafio, “uma personificação da modernidade, que atrai e seduz, mas, ao

mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar” (PESAVENTO, 2002, p.231).

A literatura contemporânea se tornou eminentemente urbana. A brasileira é um

exemplo claro. A cidade tornou-se o espaço cultural mais significativo para os artistas e

produtores de cultura hoje. É uma verdadeira arena de inúmeras narrações. Isso é nítido ao

observarmos a literatura modernista brasileira, como poemas de Mário de Andrade, de

Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, ou, ainda, narrativas

de Lima Barreto, com o cenário de grafias urbanas. Essa cidade da multidão, que tem a rua

como traço forte de sua cultura, passa a ser não só o cenário, mas a grande personagem de

muitas narrativas, ou a presença encorpada em muitos poemas.

No início do século XX, surge a figura do Flâneur Baudeleriano, pela qual artistas

valiam-se, na qualidade de espectador dessa cidade febril em transformação, para anunciá-

la nas diversas obras. Eles recorriam à cidade, caminhando e percebendo os seus

significados, relacionando-a à representação do desastre, da catástrofe, como metáforas-

chave da modernidade, das constantes transformações. A cidade fala aos seus habitantes, nós

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falamos com nossa cidade, a sentimos e a olhamos.

Nesse sentido, na tessitura entre Literatura e Sociedade, a localização geográfica

pode ser um lugar de contemplação do mundo? Como perceber a relação da Literatura e o

espaço como um fator de reflexão e retomada de ideologias na construção do pensamento?

Essas questões permitem repensar o espaço como infinidades de alternativas significantes

para a formação da identidade e da diversidade. A cidade fala com seus habitantes e,

consequentemente, os habitantes falam com sua cidade.

Assinala o Antropólogo Néstor García Canclini que o novo modo de habitar do

homem, neste século, é tecnocrática e consumista, mais do que o citadino, porque os valores

que colocam o homem na sua cidade e lhe conferem identidade já não são nacionais,

regionais, raciais ou religiosos, senão marcas de objetos de consumo, formas de dinheiro

eletrônico, contas bancárias, poder aquisitivo e, em certas ocasiões, também, preferências

musicais ou desportivas, e que a viagem é um dos modos típicos de habitar contemporâneo.

Exemplificando, os arranha-céus simbolizam, no imaginário urbano, um dos ícones

do repúdio, significado de uma civilização que constrói na altura material de sua arquitetura

a soberba de uma vida desumanizadora e alienante. O grande fenômeno da globalização

demonstra as grandes metrópoles estreitamente ligadas à representação do desastre, da

catástrofe, como metáforas chaves da modernidade.

Contextualizando a cidade de Joaquim da Fonseca

Joaquim da Fonseca é ilustrador e dividiu com o escritor Luís Fernando Veríssimo a

autoria do livro “Traçando Porto Alegre”, em que se combinam textos do segundo e

imagens/desenhos do primeiro.

O texto “A cidade traçada” é uma espécie de apresentação do livro e é, no fundo,

uma crônica sobre a cidade. Ao contrário de características sarcásticas e humorísticas,

marcadas geralmente por narrações, essa crônica é predominantemente lírica, descrevendo

a cidade de “Porto Alegre” com mais de quarenta adjetivos e metáforas, que a qualificam

como uma urbe que sofreu mudanças radicais com o passar do tempo. No final, tece uma

justificativa para o livro em que os dois autores, Veríssimo e Fonseca, traçaram essa cidade,

considerada, hoje, tão gigantesca e impetuosa.

Dentre os inúmeros adjetivos presentes na crônica, citamos alguns mais relevantes:

provinciana, avançadinha, lânguida, fogosa, manhosa, romântica, ciumenta, ponto de

referência, opiniática, exigente, atribuídos a Porto Alegre, enfatizando a ideia de

desenvolvimento rápido, contínuo, que se lança ao alto em pontas de concreto. Assim,

Pesavento destaca:

A visão que se tem da cidade de Porto Alegre que tenta configurar-se

enquanto metrópole é bipolar, transita pelos paradigmas da metrópole, com

o seu agito, a multidão, as atrações da rua, o luxo, a ostentação, o prazer

fácil, o povo apreensivo e nervoso (PESAVENTO, 2002, p.310).

Conforme a historiadora descreve, notamos que, no jogo das palavras, a crônica

explora o imenso potencial expressivo que a língua nos oferece. Com o planejamento urbano,

essa grande Metrópole perde algumas características do passado, como o bonde, o rolo

compressor, o ar tradicional que lembrava Buenos Aires. Rapidamente foi se tornando

interesseira, foi ganhando outras coisas que a fazem moderna, adulta e madura, como a Feira

do Livro, Espaços de Cultura, Museus, Teatros, Galerias de Arte, etc.

Enfim, seu ritmo de urbanização continuará forte nas próximas décadas, expressando

valores de sua cultura e materializando novas interpretações e sentidos que serão atribuídos

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a novas experiências e conquistas literalmente dinâmicas e peleadoras.

Contextualizando a cidade de Sérgio Faraco

O Escritor e ensaísta gaúcho Sérgio Faraco narra, também, com um certo lirismo, o

passeio dominical de uma família pobre pelo centro e pelo parque da cidade de Porto Alegre.

No conto, há uma relação entre o real, o fictício e o imaginário. Como afirma

Wolfgang Iser:

Como o texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote na

descrição desse real, então o seu componente fictício não tem o caráter de

uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um

imaginário (ISER, 2002, p.957).

O texto ficcional normalmente está repleto de muitos fragmentos identificáveis do

mundo real, e isso tem fortemente caracterizado a Literatura, desde o início da modernidade.

[...] as ficções não só existem como textos ficcionais; elas desempenham

um papel importante tanto nas atividades do conhecimento, da ação e do

comportamento, quanto no estabelecimento de instituições, sociedades, de

visões de mundo (ISER, 2002, p.970).

Iser destaca a importância de perceber o conto como um texto que provoca no leitor

uma reformulação do mundo formulado, permitindo que tal acontecimento seja

experimentado, processando o imaginário em um espaço real.

Nesse contexto, Faraco apresenta a sua obra “Domingo em Porto Alegre”, escrita em

1991, com um narrador em terceira pessoa, observador. Logo na abertura do conto, percebe-

se que o espaço (Porto Alegre) é um elemento significativo, crucial, porque as ações de uma

família (pai, mãe e duas filhas), que sai de casa em um domingo para um passeio pela

Metrópole, permitem com que, através de diálogos no decorrer do passeio, se concretizem

muitas imagens que estavam abstratas apenas no imaginário daqueles sujeitos.

As vitrines do Bom Fim, o Parque da Redenção, o Alto Petrópolis, o Recanto Chinês,

os passes para o carrossel e o retorno no “dragão de lata” (trem), desnuda um urbano com

muitos encantos destinados a alguns privilegiados, acentuando as disparidades sociais e

ressaltando um processo de negação da esfera pública, da sua diversidade, principalmente

das variáveis sócio econômicas que no final do conto, após o encantador passeio de domingo,

a família retorna alegre e ao mesmo tempo triste, porque aquele dia tão especial estava

terminando e o mundo real os esperava no próximo amanhecer.

Infelizmente, a maioria dos centros urbanos brasileiros permanecem desconhecidos

pelos seus próprios habitantes, isso é resultado da globalização que fortalece as

desigualdades, excluindo muitos do privilégio de desfrutar desse espaço em todas as suas

dimensões.

Considerações finais

A revolução urbana é um dos fenômenos da segunda metade do Século XX. Como

resultado, a cidade tem se organizado em diferentes grupos e classes sociais, o que vem

disseminando ideologias e projetos sociais em constantes transformações. É imprescindível

refletir sobre os processos de transição e os elementos de ruptura com o passado em que a

cidade vem se constituindo, percebendo, também, os limites que a compõe com uma

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sociedade tão hegemônica e, muitas vezes, formada de alguns grupos tão distantes do

progresso e do seu desenvolvimento acelerado.

Nessa perspectiva, é necessário repensar as mudanças ocorridas na configuração

urbana, sob o enfoque do impacto socioeconômico, como uma mudança do cenário em que

está organizada, com um crescimento desordenado que distancia as pessoas, ocasionando

não somente mudanças de hábitos, mas também configurando gerações individualistas,

materialistas, desprovidas de valores éticos, morais, políticos, etc.

Concernente a isso, apesar das previsões de que as novas tecnologias de informação

e a acumulação de problemas nas metrópoles implicariam a desarticulação da vida urbana,

a cidade absorveu as mudanças e ainda é o motor do desenvolvimento econômico e

científico, conforme pode ser percebida nas representações literárias da crônica “A cidade

traçada”, de Joaquim da Fonseca, e do conto “Domingo em Porto Alegre”, de Sérgio Faraco,

que nos faz compreender como esse espaço tornou-se esteticamente idealizado e, ao mesmo

tempo, realista, refletindo a condição dos seres urbanos.

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AS COMISSÕES DA VERDADE NAS UNIVERSIDADES E O OBJETIVO DE

ASSEGURAR O DIRETO À MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA REFERENTE

AO PERÍODO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Veridiana Bertelli Ferreira de Oliveira1

Resumo: Ainda que tardiamente, em 2012 foi constituída a Comissão Nacional da Verdade

no Brasil e, partindo da mesma lógica, foram constituídas as Comissões da Verdade em

diversas universidades brasileiras, como UnB, Unicamp, UNESP, PUC-SP, USP e UFSC,

por exemplo. A implantação da ditadura civil-militar (1964-1985) deu uma nova dinâmica à

sociedade brasileira e, portanto, às Universidades. Ainda que conectada aos objetivos de

reprodução social, a Universidade é também espaço onde se manifestam as contradições

fundamentais da sociedade, e a Universidade brasileira na década de 1960 servia como

espaço de organização dos movimentos sociais e de produção de conhecimento crítico e

progressista. Seus agentes, principalmente estudantes e professores, pressionavam pela

democratização da universidade e da sociedade, o que só seria possível rompendo com o

padrão de desenvolvimento dependente. Para controlar então os setores organizados e

críticos, foi instituído todo um sistema repressivo, que incluiu a formação de órgãos de

inteligência internos às instituições (Assessorias Especiais de Segurança e Informação).

Nesse sentido, analisaremos até que ponto as Comissões da Verdade instituídas na Unicamp

e UnB, que já finalizaram seus trabalhos, atingiram o objetivo de assegurar o direito à

memória, verdade e justiça a partir de suas próprias conclusões, verificando também sua

relação com a disputa pela memória social presente hoje.

Palavras-chave: Universidade; Ditadura Civil-Militar; Comissão da Verdade.

Este artigo insere-se na discussão sobre as consequências da ditadura civil-militar de

1964 na dinâmica da universidade brasileira. A implantação da ditadura civil-militar deu uma

nova dinâmica à sociedade brasileira, que

[…] não foi estudada nas dimensões mais profundas das suas

consequências. Por exemplo, é ausente uma avaliação do seu enraizamento

como cultura do medo e conformismo social. Assim como a ótica do dia-

a-dia dos seus prisioneiros como uma memória viva é demasiadamente

incompleta em Santa Catarina e nos outros estados do país, onde um

público curioso por conhecer aquele período político reclama pela

memória de seus protagonistas – é um assunto de inconcluso debate, pois

relacionado à consolidação da democracia (MEMORIAL DOS DIREITOS

HUMANOS, grifos nossos).

Para iniciar então este debate, parto dos relatórios finais de duas Comissões que já

entregaram seus relatórios, a da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de

Campinas (Unicamp). São Comissões da Verdade instituídas pelas próprias universidades,

ou seja, institucionalmente constituídas, e que seguem a lógica instituída a partir da formação

da Comissão Nacional da Verdade em abril de 2012. Pois, como nos alerta Le Goff, “... a

memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e em 1 Mestranda em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon

– PR.

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desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder

ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção” (LE GOFF, 1996, p. 475).

Neste sentido, a constituição da Comissão da Verdade para investigar as violações de

direitos humanos, principalmente do período compreendido entre 1964 e 1985, está inserida

num contexto de tentativa de democratização da memória social. Pois “[…] os

esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação

da memória coletiva. O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar

os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em

retraimento, ora em transbordamento” (LE GOFF, 1996, p. 426).

Para atingir os objetivos de “verdade, memória e justiça” seria necessário que, para

além da denúncia das violações dos direitos humanos e “dar voz” aos atingidos direta ou

indiretamente pelo Terrorismo de Estado, as Comissões também revelassem quem foram os

agentes civis ou militares que financiaram, se beneficiaram e perpetraram esse capítulo

tenebroso que durou 21 anos em nosso país. No limite das Comissões, ainda seria necessário

que as disputas de classe pela memória, ainda presentes hoje, fossem averiguadas e

estudadas.

Filio-me às interpretações de que o golpe de 1964 foi organizado e orquestrado por

setores empresariais e militares num processo de exacerbação de conflitos e antagonismos

sociais e interrompeu um processo de democratização da sociedade brasileira. Nesse

contexto, o que víamos, a partir a década de 1950, segundo Boris Fausto (2001), foi uma

progressiva organização de movimentos rurais de trabalhadores, a radicalização do

movimento estudantil através da União Nacional dos Estudantes (UNE), a formação de

setores de esquerda ligados à Igreja Católica, além da organização do movimento operário.

Temos ocupações de terra, greves e grandes manifestações no período.

Nos anos de 1961-64 evidenciou-se um crescente divórcio entre as

tendências do poder econômico, dominado pelo capital monopolista, e as

tendências do poder político, dominado pela aliança populista. Cresceu

bastante a politização das classes subalternas, na cidade e no campo.

Parecem ter surgido inclusive condições pré-revolucionárias no país.

Diante dessa situação, as forças burguesas e conservadoras nacionais, com

apoio do imperialismo, depuseram o governo do presidente Goulart.

Vencia econômica e politicamente o grande capital (IANNI, 1984, p. 62).

Segundo Caio Navarro de Toledo (2004), nos anos 60 diferentes setores políticos

(conservadores, liberais, nacionalistas, comunistas e socialistas) formulavam publicamente

suas propostas e o golpe de 1964 representou um golpe contra as reformas por um lado, e

um golpe contra a incipiente democracia que nascera em 1945, por outro.

Se por um lado o golpe interrompeu o processo de democratização da sociedade

brasileira, por outro completou o ciclo da revolução burguesa brasileira, pois

[…] no fundo da crise do poder burguês estava a necessidade histórico-

social de adaptação da burguesia brasileira ao industrialismo intensivo não

sob uma evolução que acelerasse e aprofundasse a revolução nacional,

como ocorria sob o capitalismo competitivo. Porém, ao contrário, sob uma

evolução que agravava o desenvolvimento desigual interno e intensificava

a dominação imperialista externa, pois ambos teriam de ser,

irremediavelmente, os ossos, a carne e os nervos do industrialismo

intensivo. Ao superar essa crise, a burguesia brasileira torna-se uma

“burguesia madura”, apta a [...] completar o ciclo da Revolução Burguesa,

mas sob e dentro do capitalismo dependente (FERNANDES, 1976, p. 319).

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Corroborando a interpretação de uma burguesia nativa integrada heterogeneamente

e de forma associada com interesses originados em outros países, Virgínia Fontes (2010)

afirma que a burguesia “no ruminar de antigas contradições, atualiza as heranças das formas

de dominação pregressas, das quais se instaura como herdeira. Assim, retoma os traços de

uma colonização que a independência política jamais intentou seriamente ultrapassar, como

as formas persistentes de racismo e a recriação de sua subalternidade no âmbito cultural”

(FONTES, 2010, p. 311-312, grifos nossos). Ou seja, como bem afirma Mészáros,

A educação institucionalizada […] serviu ao propósito de não só fornecer

os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão

do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de

valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver

nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja na forma internalizada […]

ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e

implacavelmente impostas (MÉSZÁROS, 2005, p. 35).

Mas foi o próprio desenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil que exigiu,

segundo Katia Lima, a ampliação do acesso à educação superior, seja para a qualificação da

força de trabalho, seja para a difusão da concepção burguesa de mundo. Por isso, a burguesia

tomou para si o processo de reforma universitária e passou a conduzi-lo a partir de sua

perspectiva. Ao mesmo tempo, para controlar os setores organizados e críticos, instituiu um

sistema repressivo interno às instituições.

Foram vários os sistemas repressivos instalados para garantir a manutenção do status

quo. Carlos Fico (2001) distingue três deles, desenvolvidos ou aperfeiçoados pela Ditadura:

o sistema de informações foi estabelecido através do “Sistema Nacional de Informações”

(SISNI); o de segurança foi estabelecido com o “Sistema de Segurança Interna no País”

(SISSEGIN). Carlos Fico distingue entre os dois setores, que embora correlacionados, eram

normatizados, coordenados e executados em esferas diferentes: as atividades de informação

(espionagem), desenvolvidas pelo SISNI e as de segurança (repressão) pelo SISSEGIN. A

criação a partir de 1967 do Centro de Informações do Exército foi o início da reformulação

do sistema de informações da ditadura (FIGUEIREDO, 2005, p. 154) e o início da formação

da comunidade de informações. Neste momento são reformuladas as Seções de Defesa

Nacional, criadas em 1934 por Getúlio Vargas, e com isso foram rebatizadas de Divisões de

Segurança e Informações (DSI) e funcionavam como um minisserviço secreto no âmbito dos

Ministérios civis, ganhando capilaridade. Ainda nessa reformulação, são criadas as

Assessorias de Segurança e Informação (ASI) ou Assessoria Especial de Segurança e

Informação (AESI). Segundo Lucas (2005), eram dois os objetivos para as DSIs e ASIs:

fortalecer o sistema de informações e servir para empregar militares da ativa, da reserva,

parentes e amigos.

Nesse sentido, a Comissão da UnB constatou a formação da ASI, que ligada a outros

setores da própria instituição, como a DSI do MEC e outros setores externos, e a Polícia

Federal, cumpriram um papel de vigilância e repressão. Inclusive na gestão do então reitor

Cristovão Buarque (1985-1989) foram identificados documentos que vieram a compor o

fundo ASI-UnB, e:

Importa observar que a ASI/UnB ligava-se, administrativamente, ao

Gabinete do Reitor, mas funcionalmente, ainda que subordinada ao Reitor,

estava também sob a supervisão do Diretor da Divisão de Segurança e

Informação do Ministério da Educação e Cultura (DSI/MEC). À DSI/MEC

a ASI/UnB apresentava relatórios de atividade com regularidade que

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chegava a ser mensal; com frequência ainda maior, respondia a incontáveis

Pedidos de Busca e Informação, relacionados a fatos e pessoas (em certos

momentos de crise, como em 1977, essa atividade era mesmo diária).

Outras atividades de destaque para a ASI eram aquelas ligadas ao controle

sobre professores, funcionários técnico-administrativos e estudantes. São,

de fato, abundantes na documentação arquivada, sendo citados, a título de

exemplo, na introdução da Cronologia deste Relatório Final, vários

expedientes de consulta e registro sobre viagens ao exterior para

participação em congressos, conferências e outros eventos acadêmicos,

tanto quanto em pesquisas científicas. Da mesma forma, constam muitos

estudantes, sobre a bibliografia usada e sobre livros não recomendados, e

mesmo sobre organização ou participação em eventos locais (RELATÓRIO

UnB, 2015, p. 228).

Apesar de estar conectada aos objetivos de reprodução do sistema sociometabólico,

a Universidade é também espaço das contradições fundamentais da sociedade, e a

universidade brasileira na década de 1960 servia como espaço de organização do movimento

estudantil e dos professores críticos e progressistas, que pressionavam pela democratização

da universidade e da sociedade, o que só seria possível rompendo com o padrão de

desenvolvimento dependente. Coabitou nas universidades a cooptação e a coerção!

Este caráter contestatório e de resistência fica explícito nos Relatórios das duas

comissões quando apresentam as graves violações aos direitos humanos, e quando

identificam alguns casos emblemáticos.

Mas o fato do processo de transição ter sido “lento, gradual e seguro” e feito a partir

“de cima”, uma “transição transada”, acarretou na não punição dos responsáveis pelos

crimes de Estado e na inalteração na estrutura burocrática-repressiva da máquina estatal.

Apesar do questionamento dos setores organizados na defesa dos direitos humanos, continua

vigorando a interpretação que iguala a resistência ao Terrorismo de Estado (TDE)2. Como

afirma em seu próprio Relatório,

Passados cinquenta e um anos do golpe de Estado perpetrado pelas Forças

Armadas contra o regime democrático que se consolidava no Brasil, é

inegável o legado destrutivo da ditadura militar (1964-1985). As faixas e

cartazes erguidos nas recentes manifestações de rua em várias partes do

país, por meio dos quais se reivindica intervenção militar, parecem

evidenciar que ainda é precária a memória social sobre esse importante

momento da história política brasileira (RELATÓRIO UNICAMP, 2015,

p. 4, grifos nossos).

Poderíamos citar inúmeros exemplos de como a estrutura das Forças Armadas

continuam vigorando contra o “inimigo interno”, desde as intervenções militares nas favelas

(UPPs), a criminalização dos movimentos sociais, assassinatos de lideranças de movimentos

sociais até às chacinas nos centros urbanos, para citar exemplos recentes noticiados na

imprensa. Mas a sobrevivência desse aparato continua presente também nas universidades

brasileiras, desde sua legislação até sua estrutura burocrática administrativa e de poder.

Se as ASIs foram extintas formalmente, continuaram os dispositivos presentes na

2 Segundo Padrós, “é uma violência que atinge indiscriminadamente comportamentos não pré-fixados, nos

quais se manifesta, ou se pretende manifestar, mesmo de maneira indireta e incerta, uma crítica ou algum grau

de oposição. Além disso, trata-se de uma violência com altas doses de brutalidade, o que produz o medo

irracional na população” (PADRÓS, 2005, p. 74).

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legislação universitária, na criminalização ao movimento estudantil, de técnicos e

professores, e inclusive as invasões de forças militares em campus universitário, como é

citado em ambos Relatórios.

A partir de fontes orais e documentais (arquivos das universidades, de outros órgãos

que faziam parte da repressão, de jornais) e de análises bibliográficas, as Comissões fizeram

seu trabalho, que ficou assim estruturado: a Comissão Anísio Teixeira de Verdade e Justiça

da UnB apresentou seu relatório em Abril de 2015, da mesma forma que o da Comissão da

Memória e Verdade “Octavio Ianni” da Unicamp. O relatório da UnB está dividido em cinco

partes: um sumário onde é feita a apresentação e os objetivos da Comissão, a metodologia

adotada, os entrevistados, a discussão sobre a justiça de transição e a UnB como um projeto

interrompido. Na parte I é feita uma narrativa cronológica, que enfoca as lutas e resistências

e as violações aos direitos humanos. A parte II organiza-se por eixos temáticos, que enfocam

a estrutura repressiva, a resistência e as torturas; e na parte III são apresentados três casos

emblemáticos: Paulo de Tarso, Honestino Guimarães e Ieda Santos. Finalmente, são

apresentadas as conclusões e recomendações.

O relatório da Unicamp é organizado de forma parecida ao da UnB, mas inclui um

documento escrito por Caio Navarro de Toledo defendendo a constituição de uma Comissão

da Verdade. Além disso, organiza-se em três partes: dos efeitos da ditadura sobre a

comunidade, que engloba as lutas, resistências e violações aos direitos humanos; uma linha

do tempo com uma organização cronológica e finalmente as recomendações.

Nos Relatório da UnB se reconhece que “uma comissão de verdade é inerentemente

vulnerável a limitações politicamente impostas. Sua estrutura, financiamento, mandato,

suporte político, pessoas, acesso a informações e força do relatório final são largamente

determinados pelas forças políticas do momento” (RELATÓRIO UNB, 2015, p. 17, grifos

nossos). E esta é a principal limitação das Comissões na disputa pela memória social, pois,

segundo Enzo Traverso (2012), a obsessão pelo “dever de memória” acaba tendendo a se

tornar uma forma retórica e reformista, pois a luta pela memória coletiva faz parte da luta

pelo poder das classes.

Fica em evidência a sua grande limitação ao não identificar e questionar a gestão

empresarial na forma de escolha dos reitores (ainda vigora a lista tríplice enviada ao MEC

para decisão final), na composição de seus órgãos deliberativos, nos financiadores civis,

além da não identificação dos infiltrados, delatores, e todos aqueles que de alguma forma

colaboraram ou se beneficiaram com a consolidação do projeto burguês. Isso permite que

agentes que contribuíram direta ou indiretamente continuem exercendo poder e

reproduzindo a lógica conservadora dentro e fora das instituições. Mas essa lacuna ultrapassa

o trabalho dessas Comissões, e é uma disputa pela memória social que ainda está inconclusa.

Traverso (2012), ao discutir o período do nazismo, critica a expressão “superar o

passado” como uma mistificação que procura virar a página e apagá-la da memória social,

ou a “reconciliação” como a reabilitação dos culpados no momento em que as práticas da

ditadura continuam fazendo parte do nosso presente. É necessário que a memória erija-se

não apenas contra o esquecimento, mas contra o regime político que oculta e nega o crime

no presente. Essa é a principal limitação das Comissões.

Mas, apesar disso, com as dificuldades em acessar determinados documentos, e com

a negativa por parte de determinados agentes que colaboraram com a vigilância e repressão

em dar seus depoimentos, em uma etapa inicial, as Comissões cumpriram sua função de

resgate da memória daqueles que resistiram. Além disso, apresentaram as diferentes formas

de violação dos direitos humanos, desde as intervenções nas reitorias, as invasões dos

campus, as prisões e desaparecimentos de membros da comunidade universitária, até as

pressões para que professores se demitissem, além das demissões e aposentadorias

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compulsórias, a inelegibilidade de estudantes, a proibição de organização e manifestação, a

influência dos financiadores civis em determinadas decisões, e o clima de medo. E,

principalmente, ao apresentarem os relatos daqueles que se contrapuseram e resistiram (e

suas diferentes formas de resistência).

Como as próprias Comissões reconhecem, foi um trabalho inicial e inconcluso, cheio

de limitações, mas cujo material coletado estará à disposição para novas investigações. É na

disputa pela consciência social e de projeto de sociedade que a relação com esse passado

continua sendo construída.

Bibliografia

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A CENSURA E A ARTE COMO RESISTÊNCIA E PROTESTO CONTRA O AI-5

Victor Hugo de Oliveira Pinto1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o período da produção artística em

relação à promulgação da Censura por parte do AI-5 e do Decreto-Lei 1.077/70. Durante o

Governo de Emilio Garrastazu Médici, esse Decreto-Lei tinha como objetivo calar qualquer

potencial subversivo ideológico que circulasse contra o regime na época, já com o AI-5.

Entretanto, é através do Decreto-Lei 1.077/70 que a Lei de Segurança Nacional se estende à

esfera da cultura, com proibição de circulação de revistas, de jornais e de qualquer outro

material que “ofendesse” a normatividade do regime militar. A Lei não conseguiu calar

artistas que, por sua vez, realizaram exposições e obras de arte que faziam críticas severas

contra a censura e contra a própria normatividade do regime civil-militar. Apesar do slogan

de “salvar o país do comunismo”, que justificou a instauração de perseguições políticas

contra qualquer tipo de oposição ao regime civil-militar, não conseguiu abafar por completo

a efervescência cultural que já existia, a partir de 1964. O período de 1968 em diante, em

especial depois do decreto 1.077/70, é rico em manifestações artísticas subversivas, como,

por exemplo, os circuitos interligados de Cildo Meirelles, que insere ideias contrárias ao

regime a partir da inclusão de mensagens contestatórias em objetos de grande circulação. O

objetivo deste trabalho é mostrar como a arte pode ser um instrumento de politização e

conscientização das pessoas, podendo ser também um instrumento de enfrentamento

ideológico, tendo como exemplo a arte produzida durante o AI-5 e a censura.

Palavras-chave: Censura; protesto; resistência.

Fundamentação

O Regime civil-militar iniciado em 1964 se aprofunda com o seu fechamento em

1968. A partir do AI-5, conhecido como “golpe dentro do golpe”, a perseguição torna-se

indiscriminada, pois o Estado estende a doutrina de segurança nacional para todos os demais

setores da sociedade. Na cultura, estabelece a censura. A repressão se torna generalizada,

pois, na medida em que a Lei de Segurança Nacional passa a estar presente em todas as

esferas da sociedade, o Estado de exceção que marca o autoritarismo e, mais adiante, o

tecnicismo (marcado pelas decisões verticais e sem nenhuma busca de consenso por parte

da sociedade), passa a ser legitimado pela institucionalização da doutrina de segurança

nacional. Como consequência, há a generalização da perseguição política e da associação de

qualquer opinião contrária ao regime como pressão contra a ordem:

[...] o processo coercitivo de desmobilização política desencadeado em

1964 contra a esquerda transbordara primeiro contra uma parte da

militância liberal, depois contra as próprias lideranças conservadoras que

pretendiam sustentar projetos pessoais e políticos independentes. Em 1970,

no apogeu, transforma-se num fenômeno de mutilação e desmoralização

da elite nacional. Esse ciclo, percorrido em seis anos, não obedeceu a

doutrinas, planos ou estratégias. Foi produto de uma anarquia institucional

na qual cada avanço da desmobilização saqueou um pedaço das

1 Graduado em Licenciatura em Educação Artística pela UFRJ. Mestrando em Educação pela UFF.

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instituições nacionais. Todos fizeram isso acreditando que no final

sobrariam instrumentos suficientes para assegurar-lhes uma parcela de

poder [...] (GASPARI, 2004, p. 226).

A partir da repressão institucionalizada pelo golpe civil-militar de 1964, os setores

reacionários passam a se constituir como um bloco hegemônico no poder. O Poder

Legislativo e o Poder Judiciário passam a estar em comum acordo e hegemonizados pelas

doutrinas de segurança nacional e de inserção do Brasil ao capital internacional do Poder

Executivo, agora representado pelas correntes reacionárias das Forças Armadas. Em

contrapartida, a esquerda encontrava-se dividida.

Com a consolidação do regime civil-militar frente a uma esquerda esfacelada e

isolada diante das suas divergências internas, o regime não encontrou dificuldades para a

implantação do seu projeto de sociedade, que, por sua vez, se expressou na cultura, na

economia, na educação e na política. O país ingressa num modelo político-econômico

facilitador do aparecimento dos monopólios industriais apoiados pelas políticas de isenção

fiscal, formação de mão de obra barata e investimentos massivos na atividade exportadora.

Portanto, a partir do golpe de 1964 e a nova situação do país, houve também mudanças nos

aspectos referentes à área da cultura, na medida em que

[...] o ingresso do Brasil na época do capitalismo Monopolista de Estado

(CME) – ingresso facilitado e impulsionado pelo regime militar – trouxe

alterações importantes na esfera da superestrutura, tanto no Estado em

sentido restrito quanto no conjunto de organismos da sociedade civil; e isso

não poderia deixar de ter consequências no terreno da produção cultural

[...] (COUTINHO, 2005, p. 68, 69).

No contexto do ingresso do Brasil na economia capitalista internacional a partir de

um modelo de capitalismo associado (dependente), o governo militar conseguiu a partir da

sua política econômica, modernizar o sistema de telecomunicações. No fim dos anos de

1960, surgem as grandes emissoras de TV e rádio, fruto do crescimento econômico e

marcando o desenvolvimento do poder de consumo da sociedade. A partir desse crescimento

da cultura de massa, em pleno AI-5, começa a ser constituída a relação entre as instâncias

de poder e a cultura. Portanto,

[...] nem só de “crítica” vivia a cultura brasileira dos anos 1970. Os novos

tempos de repressão e censura, aliados a uma certa facilidade de produção

e consumo, estimularam o crescimento de um mercado cultural marcado

pela difusão de produtos de entretenimento, sobretudo na música popular

[...] (NAPOLITANO, 2014, p. 173, 174).

Com o crescimento das grandes mídias e da cultura de massa, assim como o acesso

aos meios de comunicação, as informações passavam a circular com mais rapidez. Diante

dessa conjuntura, o governo estende o AI-5 à cultura a partir do dispositivo da censura, assim

estabelecendo a relação entre as instâncias de poder e a produção cultural. A censura foi um

mecanismo encontrado pelo regime de modo a manter a legitimidade do governo ditatorial

a partir do controle da informação e propaganda ideológica do regime civil-militar. O regime

civil-militar começa a integrar as diversas demandas, a incorporar as organizações e

manifestações da sociedade ao seu controle, e o AI-5 foi a tentativa dessa integração visando

claramente o controle e a tentativa de enfraquecer, e até mesmo eliminar, a autonomia da

sociedade civil. Por esse motivo,

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[...] A prática sistemática da censura, aliada a um claro terrorismo

ideológico, pode ser considerada como a face aberta da “política cultural”

vigente após 1964 e, em particular, no período posterior a 1968, ou seja, a

decretação do AI-5. Seria simplista reduzir a isso o quadro das relações

entre a cultura e a sociedade nos últimos anos; mas seria ainda mais

perigoso esquecer que tal face condicionou, através certamente de

múltiplas mediações, a totalidade da produção cultural sob a vigência do

regime militar [...] (COUTINHO, 2005, p. 69).

A partir do aprofundamento e extensão da Lei de Segurança nacional para todas as

esferas da sociedade, o regime civil-militar, durante o Governo Médici, decide instaurar o

Decreto-Lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que define o seguinte:

[...] CONSIDERANDO que a Constituição da República, no artigo 153, §

8º dispõe que não serão toleradas as publicações e exteriorizações

contrárias à moral e aos costumes; CONSIDERANDO que essa norma visa

a proteger a instituição da família, preserva-lhe os valores éticos e

assegurar a formação sadia e digna da mocidade; CONSIDERANDO,

todavia, que algumas revistas fazem publicações obscenas e canais de

televisão executam programas contrários à moral e aos bons costumes;

CONSIDERANDO que se tem generalizado a divulgação de livros que

ofendem frontalmente à moral comum; CONSIDERANDO que tais

publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre

e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira;

CONSIDERANDO que o emprego desses meios de comunicação obedece

a um plano subversivo, que põe em risco a segurança

nacional. DECRETA: Art. 1 Não serão toleradas as publicações e

exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que

sejam os meios de comunicação. Art. 2 Caberá ao Ministério da Justiça,

através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar

necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de

matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior [...]

(DECRETO1.077/10).

Tal medida gerou reação imediata de jornais e de revistas que, por sua vez, iniciaram

uma série de protestos contra a censura. Sendo que o meio que mais reagiu contrariamente

foram os artistas. Com a vinculação da cultura à Lei de Segurança Nacional pelo AI-5, que

estabeleceu a censura, e o seu aprofundamento na área da cultura, muitos artistas passaram

a fazer da produção artística um veículo de protesto. Enfim,

[...] o AI-5 só não foi um presente de natal porque eles não quiseram

esperar, mas a reação deste grupo de artistas também foi rápida nem foram

absorvidos pelo sistema, como ocorreria pouco depois com outra geração,

e nem foi colocado sob controle tão facilmente, mas apenas a custos

bastante altos: a censura e a repressão não fizeram esperar. Durante dois

anos, 1969 e 1970 (um pouco antes e um pouco depois também), aqueles

artistas empreenderam uma resistência inédita às condições opressivas do

momento e, se não entraram pela luta armada, promoveram uma espécie

de arte armada, ou de luta artística, como se preferir, que ainda ecoou

durante muito tempo entre nós.

Era o início da arte conceitual, uma arte em que não era tanto o que se

fazia, mas o próprio ato de fazer e com que ideias se fazia. E fazer

compulsivamente, não dando nunca ao inimigo a oportunidade de parar

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para descansar. Alguns, como Wanda Pimentel, Ascânio MMM e

Raymundo Colares permaneciam em um campo ainda preso à forma e à

construção, embora com uma postura bastante radical. Outros partiram

para uma área até então considerada bem pouco artística. Antônio Manuel,

em protesto por ter sido recusado no Salão de Arte Moderna (ele era a obra,

o que hoje em dia muitos ainda fazem como se fosse inédito), se despiu

diante da multidão que lotava o MAM na cerimônia de abertura, Barrio

mostrava suas trouxas de carne ensangüentada, enquanto Luiz Alphonsus

ateava fogo a longas tiras de plástico, e assim por diante. Era um a barbárie

civilizatória que se instituía para combater uma civilização barbarizante.

Era preciso fazer a realidade falar mais alto aos olhos do espectador, e para

isso todos os meios valiam [...] (ROELS; SANTOS, 2006, p. 183 e 184).

A arte produzida com teor político e claramente contrária às arbitrariedades do

Estado de exceção, aprofundado pelo AI-5 em 1968, não era divulgada pelos meios de

comunicação. A arte que se desdobra de 1964 até 1971, considerada como arte conceitual,

tinha um cunho político de resistência à censura. Obviamente, essa produção artística não

era noticiada nos cadernos de arte dos jornais de grande circulação; nenhuma alusão a Cildo

Meireles ou Antonio Manuel.

Esses artistas passaram a inovar na construção de uma arte que, ao mesmo tempo em

que apelava contra a censura, chamava os indivíduos a participar da obra artística. Na medida

em que o espectador passava a interagir com a obra de arte, passava a experimentar novas

linguagens para além do visual, pois também tocava a obra, como os bólides de Hélio

Oiticica, por exemplo. A partir da incorporação dos novos materiais, que até então eram

inimagináveis na composição de uma obra plástica, por parte de Hélio Oiticica, passa a

construir a ressignificação da própria linguagem artística que, por sua vez, não se restringe

mais às sensações visuais, pois passa a se estender para os outros sentidos, em especial para

o tato. Com a sua “Arte ambiental”, Hélio Oiticica passa a construir novos objetos que estão

para além da escultura e da tela. Sendo assim,

[...] Arte ambiental é como Oiticica chamou sua arte. Não é com efeito

outra coisa. Nela nada é isolado. Não há uma obra que se aprecie em si

mesma, como um quadro. O conjunto perceptivo sensorial domina. Nesse

conjunto criou o artista uma “hierarquia de ordens” – relevos, núcleos,

bólides (“parangolés”) – “todas dirigidas para a criação de um mundo

ambiental”. Foi durante a iniciação ao samba que o artista passou da

experiência visual, em sua pureza, para uma experiência do tato, do

movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes

resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da

sensorialidade [...] (PEDROSA, 2006, p. 144).

A partir dessa nova atitude do artista frente ao fazer artístico e sua finalidade, agora

expandida para o tato, representava uma ruptura com o apreço dos concretistas pela

finalidade visual pura da confecção da obra de arte. Com os neoconcretos, em especial os

trabalhos de Lygia Clarck, essa aristocracia da visualidade começa a ser desconstruída. Hélio

Oiticica aprofunda o seu trabalho voltado para a experiência corporal através dos novos

objetos denominados como “bólides” e “parangolés”. Assim,

[...] o artista passa às mãos que tateiam e mergulham, por vezes

enluvadas, em pó, em carvão, em conchas, a mensagem de rigor, de luxo

e exaltação que a visão nos dava. Assim ela deu a volta toda ao círculo da

gama sensorial-tátil, motora. A ambiência é a saturação do virtual,

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sensória.

O artista vê agora, pela primeira vez, em face de outra realidade, o mundo

da consciência, dos estados da alma, o mundo dos valores. Tudo tem de ser

enquadrado num comportamento significativo. Com efeito, a pura e crua

totalidade sensorial, tão detalhadamente procurada e tão decisivamente

importante na arte de Oiticica, é afinal marejada pela transcendência a

outro ambiente. Neste, o artista, máquina sensorial absoluta, baqueia

vencido pelo homem, convulsivamente preso nas paixões sujas do ego e na

trágica dialética do encontro […] (PEDROSA, 2006, p. 145).

A busca da fruição pelo corpo é resultante de uma atitude de inconformismo dos

artistas frente à forma tradicional pela qual a obra de arte era concebida, isto é, como

elemento puramente visual. Também representava inconformismo diante do circuito de arte

– galerias, mercado de arte, museus –, existia uma resistência, por parte dos artistas da época,

em relação à própria institucionalização da arte. Daí o fato de trabalharem com materiais de

pouca durabilidade. Portanto,

[...] a expressão desse inconformismo absoluto é a sua homenagem a

“Cara de cavalo”, verdadeiro monumento de autêntica beleza patética,

para a qual os valores plásticos por fim não foram supremos. Caixa sem

tampa, coberta pudicamente por uma tela que é preciso se levantar para ver

o fundo, é forrada nas suas paredes internas com reproduções da foto

aparecida nos jornais da época, em que “Cara de cavalo” aparece, de face

cravada de balas, ao chão, braços abertos como um crucificado. Aqui é o

conteúdo emocional que absorve o artista, explícito já agora em palavras

[...] (PEDROSA, 2006, p.145).

As produções artísticas desde então buscavam arrancar a passividade do espectador

e imiscuí-lo no contato com a obra a partir do tato e da sensorialidade. Desse modo, fazendo

com que o fruidor seja, agora, participante da obra de arte. A arte passa a conduzir a pessoa

não mais ao estado de observação, mas sim à mudança no estado de comportamento.

Conclusão

Essa nova percepção do que seria arte, não mais assimilada à contemplação, mas

inserindo o indivíduo – antes resumido ao contemplador da obra –, agora transformado em

experimentador, passa a fazer da obra de arte um instrumento de ressignificação dos valores,

de abertura do sujeito para novas possibilidades diante da sua interação com o mundo e capaz

de ressignificar linguagens a partir da ressignificação dada aos objetos presentes nos bólides

e parangolés. A Antiarte de Oiticica tinha como objetivo propor ao indivíduo que seja sujeito

da obra, assim tratando-se de uma mudança de significado não só da composição como

também do caráter dado ao que se concebia como arte até então. A arte não é mais elaborada

pelo artista, mas está no mundo, pois não existe mais nada na arte que a vida e o mundo não

possam mais oferecer. Desse modo, ao artista cabe agora dar significados, ressignificar e

reificar a linguagem contida no que existe no mundo.

A partir dessa exposição, concluo que a arte desse período, ao resistir à censura, apela

para novas sensações e novas possibilidades do indivíduo em perceber-se no mundo. A partir

disso, o indivíduo pode ter meios para reinventar a sua realidade, na medida em que

descondiciona o processo de fruição mecânico e simplesmente visual. Passa a ter a

experiência poética com a obra de arte. Poética no sentido de criar novas linguagens e meios

de comunicação. Era exatamente esse o caráter potencialmente subversivo dos artistas desse

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período, porque feria a normatização do regime civil-militar e o modelo de sociedade

uniforme que desejava implementar através das sucessivas tentativas de calar qualquer

opinião divergente à sua ordem tecnocrática.

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