gaucho ao tradicionalista

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DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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©2009 Ijuí – RS – Brasil Capa: Carga de cavalaria, de Litran (Museu Júlio de Castilhos, Porto Alegre, RS)

Catalogação na Publicação

FIORIN, José Augusto. Do gaúcho ao tradicionalista: imagem, identidade e representação. Ijuí: Sapiens Virtual, 2009.

1. História Cultural 2. Tradicionalismo 3. Gaúcho

José Augusto Fiorin, é professor e pesquisador. Trabalha

na área das Ciências Humanas e Sociais. Graduado em

História, Pós-graduado em Ciências Sociais: especialista em

Sociologia, dedica-se a pesquisa no campo das identidades

culturais e das representações.

Contatos: www.professorfiorin.rg3.net

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APRESENTAÇÃO

O tema central dessa pesquisa é a construção da identidade do tradicionalista rio-grandense do século XX. Para isso verifica-se como ele apropria-se da identidade do gaúcho do século XIX, através de representações de um passado, exaltando, heroicizando e ressignifcando seu caráter histórico.

A investigação ocorre tendo por base a história cultural, onde as noções de identidade, representação, imagem e apropriação propiciam a fundamentação teórica da pesquisa. Nesse contexto, é desenvolvida uma abordagem referente a imagem criada pelos cronistas que visitam e descrevem a Província do Rio Grande de São Pedro durante o século XIX e a imagem criada pelo pintor Jean Baptiste Debret.

Trata-se dos elementos que conduzem a apropriação dessa identidade. Com isso, destaca-se a literatura platina, o romantismo brasileiro de José de Alencar e a expressão dos rio-grandenses Apolinário Porto Alegre e Simões Lopes Neto.

Outro aspecto está na visão da historiografia rio-grandense, na polêmica discussão em torno da matriz do gaúcho rio-grandense x gaucho platino. Nesse contexto o discurso de Moysés Vellinho, o maior defensor de um gaúcho lusitano, sobressai. Verificamos como ocorre a representação do gaúcho idealizado que, posteriormente será exaltado constituindo o modelo do tradicionalista.

No entanto, o caráter saudosista na tentativa de reviver o passado nos parece ser a premissa inicial na constituição desse movimento. Ocorrendo assim, um processo de apropriação de uma identidade cultural. O tradicionalista do século XX tenta reviver o gaúcho do século XIX em sua totalidade de manifestações através de um movimento saudosista, doutrinário e conservador.

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SUMÁRIO Introdução..........................................................08

Capítulo I

Noções de cultura na história cultural.................13 As Representações e a Apropriação......................14 A Identidade e a Tradição.....................................26

Capítulo II

Narrativas: escritos e imagéticas ..........................33 Escritos: Arsène, Dreys e Hilaire..........................36 Imagética do Gaúcho: Debret e Molina.................45

Capítulo III

O processo de construção de uma identidade.......67 A Influência Literária: Platina e Brasileira...........71 Primeiras entidades nativistas e o Positivismo.....79 Visão dos historiadores.......................................83

Capítulo IV

A construção da identidade do tradicionalista.......95 Processo histórico na formação............................99 O sentido e o valor do Tradicionalismo................107 A Carta de Princípios..........................................114

Conclusão...........................................................121 Referências.........................................................124 Anexos ...............................................................130

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INTRODUÇÃO

Na construção de um projeto de modernidade

muitas sociedades visam espelhar-se em um passado

representado como tradicional, cujo espelhamento possa lhe

condicionar os parâmetros necessários a atuação no

cotidiano. Embora hoje, alguns teóricos apontam um

processo de desconstrução dessas identidades, por conta de

uma instância maior, instituída por uma “mundialização da

cultura”, há o antagônico papel desempenhado por aqueles

que visam rememorar o passado, enaltecendo-o, cujo culto

remete a um fator importante de análise.

Com isso, podemos destacar que o Rio Grande do

Sul, por se constituir historicamente em um estado de

fronteira, aponta peculiaridades em suas manifestações

culturais. A cultura possui um significado expressivo nas

manifestações da sociedade rio-grandense. Alguns

habitantes do estado visam identificar-se como

tradicionalistas e buscam no passado elementos que

venham consolidar e justificar essa manifestação.

Hoje, verificamos que houve uma construção

daquilo que tornou-se um dos referenciais da identidade rio-

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grandense, com a simbologia do gaúcho: seja na sua

imagem ou na expressão gentílica. Esse trabalho visa

analisar se houve a apropriação da identidade do gaúcho

histórico do século XIX pelo tradicionalista do século XX. A

reflexão sobre esse assunto surge na tentativa de

caracterizar e demonstrar a que contexto histórico e modelo

de sociedade gaúcho e tradicionalista pertencem.

Para enfatizar o pressuposto levantado, a

abordagem será constituída pela via da cultura, onde a

ênfase e a discussão serão construídas com base na história

cultural e nos estudos culturais. No entanto, analisar a

construção do gaúcho histórico defrontando-o com o

tradicionalista atual torna possível verificar pontos distintos

entre ambos.

E esse caráter de diferenciação é que nos faz

compreender como o gaúcho é (re)inventado e (re)significado

no transcorrer na história. Seja pelos discursos, seja pela

prática política ou pela literatura.

Ao desenvolver esse trabalho, tomou-se como

preocupação inicial em não desenvolver uma crítica

contundente aos ditames e aos propósitos do movimento

tradicionalista. Isso porque, entendemos que esse possui

uma importante função social e por ser uma manifestação

cultural merece ser respeitado e analisado.

Porém, é justamente nesse contexto de análise

que verificamos como ele se apropria de um passado

inexistente condicionando uma representação da imagem

passada, cujo significado será alterado na sociedade atual. A

criação de uma nova imagem a esse tipo social está

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correlacionada a necessidade da criação de um elemento

mítico, que venha possuir um papel de significância.

No primeiro capítulo são tratadas questões teóricas

que remete a compreensão de que conceitos serão

abordados na pesquisa. As noções expressas estão

direcionadas a perspectiva geral do trabalho. Com isso,

tentou-se estabelecer determinadas noções de identidade,

cultura, representação e apropriação. Essa conceituação

possui um caráter significado.

É a partir desses pressupostos teóricos, que a

reflexão acerca da identidade, da imagem e da representação

do gaúcho do século XIX se desenvolvem. Assim, dentro da

perspectiva da história cultural buscou-se construir

elementos enfocando o discursos tantos verbais ou

imagéticos que visam representar o tipo social em questão.

Para caracterizar a imagem e a conseqüente

identidade do gaúcho do século XIX, no segundo capítulo

optou-se por realizar uma análise dos escritos que os

viajantes europeus do século XIX desenvolveram sobre o

tipo social do gaúcho, bem como a imagética representada

por Jean Baptiste Debret.

A discussão sobre os discursos de europeus que

visitaram a Província do Rio Grande de São Pedro durante o

século XIX, somado a visão que a pintura de Debret e

Molina expressaram sobre o gaúcho rio-grandense e platino

demonstram e caracterizam um tipo social com atribuições

distintas daquilo que o movimento cultural da segunda

metade do século XX tenta evocar. Assim, nesse capítulo

temos uma dimensão sob a perspectiva dos europeus, sobre

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o habitante deste território no período delimitado pela

pesquisa.

Para compreender o tipo de identidade criada pelo

tradicionalista do século XX, e, por conseguinte, o próprio

movimento que este irá idolatrar, fez-se necessário enfocar

no capítulo terceiro alguns aspectos que conduzem a

construção dessa identidade tradicional.

Nesse contexto encontramos vários elementos e

manifestações que dão indício e talvez, nos conduzam a

uma compreensão dos condicionantes ao surgimento de um

movimento que visa “preservar a cultura”. Assim tentou-se

compreender aspectos de um processo de transformação do

gaúcho na formulação de um mito romantizado pela

literatura.

A influência literária pode ser considerada um dos

fatores que levam a construção de um outro significado ao

gaúcho. Além disso, o positivismo tão presente na sociedade

rio-grandense durante a República Velha também torna-se

um dos fatores caracterizantes ao culto de uma tradição do

passado.

Além disso, há uma outra equivalência. Trata-se da

construção da identidade regional. Partindo das condições

geradas pela Revolução de 1930 onde sobressai a identidade

do gaúcho, somada a visão que os intelectuais da Revista

Província de São Pedro, principalmente na perspectiva de

Moysés Vellinho, vamos compreender como foi se

construindo outra imagem, aos poucos edificando o sentido

gentílico a expressão: gaúcho rio-grandense.

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E por fim, buscou-se a constituição de uma

identidade do tradicionalista. No capitulo quarto, há a

tentativa da reconstrução de aspectos importantes da

história do tradicionalismo no Rio Grande do Sul, dando

ênfase às principais linhas de ações, teses e princípios que

norteiam o movimento tradicionalista.

Nesse contexto, optou-se por discutir aspectos

ligados a problemática em questão que se diz respeito a

apropriação ou não da identidade do gaúcho pelo

tradicionalista. Assim, o enfoque veio ao encontro à

identidade do gaúcho histórico do século XIX, pontuando a

representação e a apropriação de uma cultura do passado,

bem como o saudosismo expresso nela.

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NOÇÕES DE CULTURA

NA HISTÓRIA

CULTURAL

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AS REPRESENTAÇÕES E A APROPRIAÇÃO

A cultura pode ser entendida como uma mediação

para o mundo. Ela representa as maneiras de sentir e

pensar dos grupos presentes na sociedade. A noção de

cultura é um tema interessante que merece discussão

acentuada. Partindo de seus postulados percebemos a

grande representação que ela possui perpassando pelos

conceitos de unidade e diversidade. A noção de cultura é

construída a partir de nossa diversidade e com isso, constrói

a noção de identidade. A sociedade é então a base para a

existência da cultura, e a cultura só se desenvolve pela

interação social.

A aquisição e a perpetuação da cultura, é uma

processo social, resultante da aprendizagem. Cada

sociedade transmite às novas gerações o patrimônio cultural

que recebeu de seus antepassados. Cada sociedade, elabora

a sua própria cultura ao longo da história e recebe

influências de outras culturas.

Ela pode também ser entendida como um estilo de

vida particular que as sociedades desenvovlvem e que

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caracterizam cada uma delas. Assim os individuos que

compartilham da mesma cultura apresentam o que se

chamamos de identidade cultural. É essa identidade que faz

com que a pessoa se sinta pertencente ao grupo, é por meio

dela que se desenvolve o sentimento de pertencimento.

A antropologia no Brasil tem dificuldade em definir

o que é cultura brasileira. Pensamos a cultura brasileira

fragmentada, em uma unidade ou em várias culturas? Para

entender como ocorre parte desse processo de constituição

cultural, examinaremos a contrução de uma cultura

apresentada como gaúcha, predominante no estado do Rio

Grande do Sul, cujas origens remetem à identidade platina.

Para isso, fazer-se-á necessário destacar dois

distintos momentos de manifestação cultural. O gaúcho –

que configura na campanha do Rio Grande do Sul nos

séculos XVII e XVIII, e o tradicionalista, criado pelo

Movimento Tradicionalista Gaúcho no transcorrer do século

XX. Assim, é pertinente enfocar como o tradicionalista tenta

apropriar-se da identidade do gaúcho e por conseguinte

construir um movimento de preservação da cultura

passada.

Para preservar a identidade de uma cultura frente

à possível difusão de preceitos de outras culturas surge o

etnocentrismo. E é com esse intuíto que o tradicionalista

visa manter o entendimento e relação com outras culturas,

servindo justamente no sentido de manutenção de sua

identidade cultural. Então, a etnologia, por sua vez, vai

tentar dar uma resposta objetiva à velha questão da

diversidade humana.

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O etnocentrismo é o termo técnico para esta visão de coisas onde segundo a qual o nosso próprio grupo é centro de todas as coisas e todos os grupos são medidos e avaliados em relação à ele. Cada grupo apresenta seu próprio orgulho e vaidade, considera-se superior, exalta suas próprias divindades e olha com desprezo às estrangeiras. Cada grupo pensa que seus próprios costumes (folkways) são os únicos válidos e ele observa que os outros grupos têm outros costumes, encara-os com desdém1. (SIMON apud CUCHE, 2002, p.46)

Considerando que a cultura nas ciências sociais

apresenta-se de uma forma bastante complexa, devemos

nos remeter a noção de cultura no que refere-se à produção

histórica. Para Balandier (1955) se a cultura não é um dado,

uma herança que se transmite imutável de geração em

geração, é porque ela é uma produção histórica, isto é, uma

construção que se inscreve na história, e mais precisamente

na história das relações dos grupos sociais entre si.2

É importante perceber que o homem em relação ao

social vai construindo essa perspectiva de cultura. O

cultural não pode ser estudado separado do social, pois

ambos possuem caráter de historicidade. Em relação ao

gaúcho e ao tradicionalista, considerando os distintos

momentos históricos que ambos situam-se, devemos partir

da premissa de que nos apropriamos do que é pronto, ou

1 SIMON, Pierre-Jean. Ethnocentrisme. Pluriel-recherces, cachier n.1,p.57-63. apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru: EDUSC, 2002. 2 BALANDIER, Georges. La nocion de “situation” cloniale. In: Sociologie actuelle de l’Afrique noire. Paris: PUF, 1955.

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construímos o que é nos dado? Será que absorvemos a

cultura de geração em geração? Ou ela é imposta pelo grupo

de convívio?

Burke (2000) deixa evidente que a história cultural

ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo

menos no sentido institucional. Segundo ele não é fácil

responder à pergunta: o que é cultura? Tudo isso porque a

concepção de cultura para historiadores de meados do

século XIX é de que ela era algo que as sociedades tinham

(ou, mais exatamente, que alguns grupos em algumas

sociedades tinham), embora faltasse a outros3.

A concepção universalista de cultura nos remete ao

pensamento de Tylor. Ele enfatiza que a cultura é a

expressão da totalidade da vida social do homem. Ela se

caracteriza por sua dimensão coletiva. Enfim, a cultura é

adquirida e não depende da hereditariedade biológica4. Já

Boas vai defender uma concepção particularista da cultura

destacando que ela é uma tentativa de pensar a diferença.

Para ele o fundamental entre os grupos humanos é de

ordem cultural e não racial5.

Segundo a afirmação de Peter Burke, de que há

dificuldade ao definir o que é cultura, tentamos trazer aqui a

análise funcionalista da cultura, desenvolvida por

Malinovski. Segundo Cuche (2000), Malinovski se opôs a

qualquer tentativa de escrever a história das culturas de

3 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 4 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed.Bauru:EDUSC,2002. p.36 5 Idem. p.41.

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tradição oral. Para ele, é preciso se ater à observação direta

das culturas em seu estado presente, sem buscar a volta de

suas origens, o que representaria um ilusório, pois não

suscetível de prova científica. Com isso, nos remetemos à

funcionalidade do movimento tradicionalista que visa

retornar ao passado para dar sustentabilidade à sua forma

de manifestação cultural no presente.

Para entender como ocorre esta tentativa de

apropriação da identidade do gaúcho pelo tradicionalista,

neste contexto, é fundamental destacar os elementos que os

aproximam. Para isso, partimos do postulado da Nova

História Cultural. Peter Burke6 (2005) explica a emergência,

a partir da década de 1970, de um modo peculiar de

compreender a história, tomando os aspectos culturais do

comportamento humano como centro privilegiado do

conhecimento histórico. Esta emergência vincula, segundo

ele, ao que chama de “virada cultural”: uma guinada sofrida

pelos estudos históricos, abandonando um esquema teórico

generalizante e movendo-se em direção aos valores de

grupos particulares, em locais e períodos específicos.

A história cultural surge com uma proposta de

pensar novos objetos e paradigmas. Romper com

determinadas postulações também faz parte de suas

proposições, pois Chartier (1990) nos diz que durante esse

período demasiado longo, a história da história foi habitada

por “essas seqüências de conceitos saídos de inteligências

desencarnadas”, denunciadas por Lucien Febvre como o

pior defeito da antiga história das idéias. Não obstante, a

6 BURKE,Peter. O que é História Cultural?Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor 2005, 192p.

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história cultural surge como “uma outra maneira de pensar

as evoluções e oposições intelectuais”. 7

Então, a possibilidade de se opor ao pensamento

estabelecido pelo Movimento Tradicionalista, principalmente

no que concerne ao que é histórico e o que é tradicional,

torna-se um objeto interessante de estudo. A história

cultural tal como entendemos, tem como principal objeto

identificar o modo como em diferentes lugares e momentos

uma determinada realidade social é construída, pensada,

dada a ler8.

É importante destacar o que Burke enfatiza. Segundo

ele, as linhas teóricas defendidas pela Nova História

Cultural não são apenas uma nova moda, mas respostas a

fraquezas palpáveis de paradigmas anteriores9. Sobre essa

mesma idéia, Chartier defende que:

O que toda história cultural deve pensar é portanto, indissociavelmente, a diferença pela qual todas as sociedades, por meio de figuras variáveis, separaram. Do quotidiano um domínio particular da atividade humana, e as dependências que inscrevem de múltiplas maneiras a invenção estética e intelectual em suas condições de possibilidade10. (CHARTIER, 1994, p.8)

7 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p.16. 8 Idem. p.17. 9 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.251. 10 CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.

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Outro aspecto importante na Nova História

Cultural, que merece ser mencionado é reservado para o

estudo das representações. Este por sua vez, torna-se um

conceito central. Chartier desenvolve a idéia sobre o

deslocamento da história social da cultura para a história

cultural da sociedade, especialmente a partir da década de

1980.

Assim, a idéia da Nova História Cultural, nos

indica algumas indagações. Como são construídas as

representações do gaúcho? Como a tradição é construída

através das idéias e imagens? Certamente essas premissas

nos condicionam a pensar a sociedade rio-grandense no

momento da conquista/disputa do território pelos reinos

Ibéricos. Momento esse em que consolida-se enquanto

individuo social a imagem do gaúcho. No entanto, em

meados do século XX, o movimento tradicionalista, busca a

idéia de (re)construção, com base em um passado,

construindo assim a representação desse gaúcho através do

tradicionalista.

Chartier (1990) deixa explicito que o objeto de uma

história cultural levada a repensar completamente a relação

tradicionalmente postulada entre o social, identificado com

um real bem real, existindo por si próprio, e as

representações supostas como refletido-o ou dele se

desviando.11

Pensar qual seria a ideologia do grupo de jovens

criadores do Movimento Tradicionalista na década de 1940 é 11 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p.27.

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refletir como se dá a representação do mundo social, pois

Roger Chartier nos diz que essas representações são sempre

determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Neste

caso a representação do tradicionalismo atinge o interesse

de criação e invenção de um grupo de jovens oriundos do

meio rural que buscam na capital do estado, por puro

saudosismo, reviver um passado que não existiu em sua

totalidade.

No Rio Grande do Sul do século XX ocorre o

surgimento um movimento cuja tentativa é a reprodução de

valores forjados pelos antepassados. Devido a isso, a

identidade gaúcha apresenta-se de forma fragmentada, pois

nunca se expressou como uma totalidade. Essa ocorrência é

devido à forma de resgate cultural de um passado presente

no imaginário, porque há a procura da formação de uma

identidade no espaço urbano, cuja construção e

ideologização será de um movimento tradicionalista.

Com isso, ocorrem alguns equívocos na construção

desse paradigma de preservação do passado. A

característica dominante de uma identidade “tradicional” -

em uma sociedade moderna é a diluição da noção de tempo

histórico e do espaço. Onde há a tentativa de viver no núcleo

urbano, a vida ocorrida no campo em um momento onde há

uma reelaboração do passado como o lugar de uma

sociedade tradicional. Entretanto, historicamente, a

sociedade de tipo tradicional nunca existiu no Rio Grande

do Sul.

Na tentativa de construir um modelo tradicional de

preservação dos valores passados, os ideólogos do

movimento buscam a invenção de um lugar - o pago. Isto

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ocorre, porque visam formar um padrão cultural onde as

bases do passado possam construir uma identidade no

presente. Um paradigma criado pelo Movimento

Tradicionalista. Assim, o tradicionalismo é a expressão de

um dos segmentos da modernidade.

A funcionalidade deste movimento tradicionalista

está enquadrada em determinações que vêm exercer

dominação aos tradicionalistas filiados, onde a adequação

do tradicionalista à um código de ética e princípios

estabelecidos estão inteiramente ligados a uma tradição oral

de respeitabilidade. Isso se dá devido ao discurso proferido e

enaltecido dentro das entidades tradicionalistas, onde o

gaúcho do passado – visto agora como herói – sempre

representou estar dentro dos padrões de conduta da

sociedade. Sobre isso, Chartier (1990) ressalta que esta

investigação sobre as representações supõe como estando

sempre colocadas num campo de concorrências e de

competições cujos desafios se enunciam em termos de poder

e dominação.12 Segundo ele, para compreender os

mecanismos pelo qual um grupo impõe, ou tenta impor, a

sua concepção de um mundo social, os valores que são seus

e o seu domínio13.

Outro aspecto essencial, para compreender como

ocorre essa forma de dominação do movimento

tradicionalista aos seus simpatizantes, está ligado à

simbologia. Vários são os ícones representativos dessa

forma visionária de resgate do passado. Cassier define esta a

função simbólica como: 12 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. 13 Idem. p. 17.

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...uma função mediadora que informa as diferentes modalidades de apreensão do real, quer opere por meio dos signos lingüísticos, das figuras mitológicas e da religião, ou dos conceitos do conhecimento cientifico.(...) forma simbólica todas as categorias e todos os processo que constroem o mundo como representação. (CASSIRER, apud CHARTIER p.19)14

A idéia de representar um passado que nunca existiu

– funcionalidade do movimento tradicionalista – é

justamente tentar fazer com que o tradicionalista tenha a

imagem de um gaúcho. Mesmo equivocando-se com o tempo

histórico e com o espaço pelo qual a tradição está sendo

cultuada tal movimento expressa-se em uma ideologização

cujo aparato é evocar a representação como algo ausente.

Assim a idéia de representação fica evidente pois

... a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro lado, a representação como exibição de uma presença, como apresentação publica de algo ou de alguém. A representação é um instrumento de um conhecimento mediato que faz por um objeto ausente através de sua substituição por uma imagem, capaz de reconstruir em memória e de o figurar tal como ele é.15 (CHARTIER, 1990, p. 22)

14 CASSIRER, Ernst. La filosophie desenvolvimento formes symboliques. Paris: Minuit, 1972. apud. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p. 19. 15 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p.22.

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Assim, a representação é relacionamento de uma

imagem presente e de um objeto ausente. Fato esse que

pode se estender a representação dada ao Movimento

Tradicionalista Gaúcho e ao gaúcho histórico, pois há uma

grande distinção entre representação e representado,

identificado por Chartier como sendo esta distinção algo

fundamental, pois entre signo e significado é pervertida

pelas formas de teatralização da vida social. (...) Todas elas

têm em vista fazer com que a identidade do ser não seja

outra coisa senão a aparência da representação.16

O Movimento Tradicionalista seria um

condicionante às manifestações de representações coletivas?

Sobre essa perspectiva, em importante artigo intitulado “A

história hoje: dúvidas, desafios, propostas”17 Chartier

ressaltará que as representações coletivas que incorporam

nos indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os

esquemas de percepção e de apreciação a partir dos quais

estes classificam, julgam e agem.

Se por um lado há a evidência do tradicionalista

representar o que o gaúcho constitui, por outro, há a

tentativa de um processo que visa a apropriação da

identidade desse gaúcho. É importante destacar como o

tradicionalista e o próprio Movimento Tradicionalista

orientam suas práticas sociais. Tudo isso porque a

apropriação define o consumo cultural como uma operação

de produção que embora não fabrique nenhum objeto,

16 Idem. p.21. 17 CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.

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assinala a sua presença a partir de maneiras de utilizar os

produtos que lhe são impostos.

Como um segmento urbano, constituído pelos

tradicionalistas, se apropria da idéia e da imagem do gaúcho

habitante da região da campanha, e cria outro significado?

Conforme Chartier em “O mundo como

representação” 18, o sentido que Michel Foucault dá ao

conceito, ao tomar "a apropriação social dos discursos"

como um dos procedimentos maiores através dos quais os

discursos são dominados e confiscados pelos indivíduos ou

instituições. Com isso, há uma facilidade maior de um

determinado controle. E o Movimento Tradicionalista, por

suas vez, adotará essas formas de controle de maneira

especifica aos seus filiados e simpatizantes.

De acordo com essa idéia, podemos destacar a

afirmação de Chartier19 que a apropriação, a nosso ver, visa

uma história social dos usos e das interpretações, referidas

a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas

específicas que as produzem.

Assim, a história que o Movimento Tradicionalista

constrói é uma história voltada às interpretações dos

ideólogos do movimento, que buscam representar, e,

consequentemente apropriar-se somente daquilo que julgam

como válido e significativo no resgate e preservação de uma

identidade. Certamente, não concebem a história como uma

construção coletiva e uma manifestação cultural muito mais 18 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, v.11, n.5,p.173-191,1991. 19 Idem. p. 6.

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ampla do que seus paradigmas de enaltecimentos heróicos e

desvinculações temporais.

A IDENTIDADE E A TRADIÇÃO

A construção do movimento tradicionalista somente

será possível no momento em que possibilita-se as bases

para essa construção. Para isso, um conceito inicial é o de

que o tradicionalista tem uma idéia centrada, com

elementos cartesianos e modelos pré-estabelecidos. O

tradicionalismo tenta criar uma idéia de unidade para assim

desenvolver um processo que visa construir uma identidade.

Para desenvolvermos tais idéias referentes à

identidade, buscamos em Stuart Hall alguns indicativos,

pois em sua obra “Identidades Culturais na pós-

modernidade”20, ele discute a questão da identidade cultural

na chamada modernidade tardia, buscando responder

algumas perguntas como: se há ou não há uma “crise” de

identidade, em que ela consiste e quais suas conseqüências.

Para isso, o autor traz a mudança do conceito de sujeito e

identidade no século XX.

Qual seria a identidade do gaúcho? Os elementos

que constituem a identidade desse habitante histórico do

Rio Grande do Sul seriam os mesmos apresentados pelos

tradicionalistas do século XX? E perante o contexto dessa

modernidade tardia, ou pós-modernidade, qual o lugar da

identidade do tradicionalista no século XXI? Conseguirá

manter pura e genuinamente um conceito de tradição, 20 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.Tradução:Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 4. ed. Rio de Janeiro:DP&A. 2000.

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apoiando-se no passado, sem absorver as manifestações

culturais produzidas pela sociedade do presente? Tais

indagações nos remetem a várias reflexões no que diz

respeito às funções históricas e sociológicas desenvolvida

pelo Movimento Tradicionalista no Rio Grande do Sul.

Na tentativa de compreender esse processo,

percebemos a complexidade que é tentar definir identidade.

Para Hall (2001), o conceito de identidade é

demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e

muito pouco compreendido na ciência social contemporânea

para ser definitivamente posto à prova21.

Outro importante aspecto que merece destaque é o

fato que

... a identidade é formada, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência do momento do nascimento. Existe sempre algo tão “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, esta sempre “em processo”, sempre “sendo formada”22. (HALL, 2001,p.38)

Apesar disso, deve-se destacar o alerta que Cuche

faz. Segundo ele, não se pode, pura e simplesmente

confundir as noções de cultura e de identidade cultural

ainda que as duas tenham uma grande ligação23. O que

21HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. 2000. p.8. 22 Idem p.38. 23 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais.Bauru:EDUSC,2002. p.176.

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ocorre no Rio Grande do Sul, na constituição e consolidação

do Movimento Tradicionalista, é justamente essa confusão.

Confundem cultura com identidade. É imposto, pelo

Movimento Tradicionalista Gaúcho, a construção de uma

identidade, com base na cultura gaúcha, tomando como

referência o passado, enaltecendo-o como heróico.

A postura que o movimento tradicionalista adotará

será um postura de dominação. Esse domínio será

estabelecido por conta de seus manuais, teses, leis e códigos

estabelecidos aos tradicionalistas. Ou seja, ao querer

identificar-se como tradicionalista o individuo deverá aceitar

as normas impostas pelo movimento. Para dessa forma,

manter a identidade cultural do gaúcho. Sobre isso é

importante destacar que há uma história das relações de

força simbólicas, uma história da aceitação ou da rejeição

pelos dominados dos princípios inculcados, das identidades

impostas que visam a assegurar e perpetuar sua

dominação24.

A identidade permite que o indivíduo se localize

dentro da sociedade. Parece que, para o movimento

tradicionalista a identidade, apresenta-se de uma forma

permanente. Assim, de acordo Cuche, esses tradicionalistas

concebem a identidade como um dado que definiria de uma

vez por todas o individuo e que o marcaria de maneira quase

indelével25.

24CHARTIER, Roger. A história hoje, dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 9. 25 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais.Bauru:EDUSC,2002. p.178.

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Se a identidade define o individuo, como o

tradicionalista visa identificar-se como gaúcho?

A identidade é vista como uma condição imanente do indivíduo, definindo-o de maneira estável e definitiva.(...) O individuo é levado a interiorizar os modelos culturais que lhe são impostos, até o ponto de se identificar com seu grupo de origem. (CUCHE, 2002, p.179)

Talvez, seja importante enfatizar a representação do

mito gaúcho, já que não se pode reivindicar uma identidade

cultural autêntica. Para Stuart Hall, o mito fundacional tem

funcionalidade em uma história que localiza a origem da

nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão

distante que eles perdem nas brumas do tempo, não do

tempo “real”, mas do tempo “mítico”26. Além disso, expõe

com muita clareza e propriedade de que não tem qualquer

nação que seja composta de apenas um único povo, uma

única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas,

híbridas culturais.

Com isso, percebemos como ocorre a diluição do

tempo histórico. Os tradicionalistas tentam reviver um

passado que não nunca existiu na forma como interpretam.

Assim, ocorre uma série de equívocos na constituição da

identidade do tradicionalista rio-grandense.

Anthony Giddens27 descreve que há uma expressiva

a distinção entre sociedades tradicionais e modernas. Ou 26 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. 2000. p.55. 27 GIDDENS, Anthony apud HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. 2000.

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seja, o gaúcho pertence a uma sociedade tradicional,

enquanto que o tradicionalista pertence a uma sociedade

moderna. Assim, nas sociedades tradicionais, o passado é

venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e

perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio

de lidar com o tempo e com o espaço, inserindo qualquer

atividade ou experiência particular na continuidade do

passado, presente e futuro, os quais por sua vez, são

estruturados por práticas sociais recorrentes.

No Rio Grande do Sul, com o surgimento do

movimento tradicionalista, ocorre o processo de construção

da tradição gaúcha. Essa tradição será exaltada no sentido

de reviver o que já fora vivido. A transmissão de geração à

geração é fator indispensável na construção da tradição.

Burke em “Variedade de História Cultural” nos diz

que a fachada da tradição talvez massacre a inovação e que

é praticamente impossível escrever a história cultural sem

tradição. Contudo está mais do que na hora de se

abandonar o que se pode chamar de noção tradicional de

tradição, modificando-a para levar em consideração à

adaptação assim como o reconhecimento, e recorrendo às

idéias de teoria da recepção28.

A idéia de construção da tradição é central para

Hobsbawn e Ranger no livro “A Invenção das Tradições29”.

Livro que ajudou a renovar uma das mais tradicionais

28 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.240-1 29 HOBSBAWN, E. (org.). A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

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formas de história cultural, a história da própria tradição.

Provocou grande impacto ao afirmar na introdução que as

tradições “ que parecem ou se apresentam como antigas são

muitas vezes bastante recentes em suas origens, e algumas

vezes são inventadas30.”

Seria a tradição gaúcha uma tradição inventada?

Sobre isso, Hobsbawn (1997) contextualiza que “por tradição

inventada entende-se um conjunto de práticas normalmente

reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais

práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar

certos valores e normas de comportamento através da

repetição, o que implica automaticamente, uma

continuidade em relação ao passado”31.

30 HOBSBAWN, E. (org.). A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.p. 8. 31 Ibidem. p.9.

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DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO

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NARRATIVAS:

ESCRITOS E

IMAGÉTICAS SOBRE O

GAÚCHO

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NARRATIVAS: ESCRITOS E IMAGÉTICAS SOBRE O

GAÚCHO

No transcurso do século XV, considerando uma crise

que afetava várias instâncias da sociedade européia, incide

a tentativa da superação desta, com a aventura da

conquista de novos territórios. Nesse contexto ocorre a

chegada dos europeus na América. Evidentemente que o

choque cultural procede de uma forma expressiva,

considerando o antagonismo existente entre europeus e

americanos.

Os Reinos Ibéricos adotam, através de um processo

de exploração das novas colônias, um pacto entre as

colônias americanas e as metrópoles européias. A retirada

das riquezas aqui existentes era fator predominante para

dar sustentabilidade econômica a sociedade européia.

Contudo, os elementos e os padrões culturais europeus são

impostos aos colonizados, devido o fato dos europeus julgar-

se culturalmente superior.

Neste contexto, a chegada dos portugueses ao Brasil

e a conseqüente apropriação do território no início do século

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XVI fez com que, uma nova dinâmica fosse impregnada. A

atuação dos europeus ocorria quase que exclusivamente em

regiões, que aos seus olhos, fossem atrativas

economicamente.

O Rio Grande do Sul, por sua vez, situado em uma

zona limítrofe, entre as colônias espanholas e a colônia

portuguesa, sofrerá um processo diferenciado na sua

constituição. O interesse pelas terras onde situa-se, decorre

mais que um século após a chegada dos primeiros europeus

no continente. As razões que levam a tal justificativa, está

no fator de não existir madeira ou minérios de fácil extração,

como em outras regiões da América ocorria.

Após um longo período de desinteresse por não

possuir atrativos aos colonizadores, viviam os povos

indígenas organizados em torno de seus elementos culturais

e rituais. Com isso, o interesse pela ocupação do território

onde hoje situa-se o Rio Grande do Sul, procede a partir da

importância que a pecuária representará, junto ao processo

de catequese desenvolvido pelos padres da Companhia de

Jesus nas terras onde hoje é a Região das Missões. É a

partir desse contexto e, considerando a importância que o

rio da Prata possuía como escoadouro dos minérios

retirados na região de Potosí, é que Portugal e Espanha

passam a olhar com outros olhos o território do Rio Grande

do Sul.

O fato de localizar-se em uma região de constante

disputa entre os reinos que ambicionavam seu território faz

com que insurja um tipo social, produto dessa região de

convergência. Esse tipo social por sua vez adotará uma

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postura significativa na construção de uma identidade

cultural.

Para entendermos como ocorre a constituição do tipo

social do gaúcho predominante no século XIX,

examinaremos que tipo de relato os viajantes, provenientes

da Europa, desenvolvem acerca de sua imagem. Com isso,

há a pertinência de se destacar aqui os depoimentos

contidos nas viagens realizadas ao Rio Grande do Sul do

século XIX, do naturalista Auguste de Saint Hilaire, de

Arsène Isabelle e Nicolau Dreys. Além disso, uma

abordagem da imagética sobre o gaúcho, representada na

obra de Jean Baptiste Debret.

É importante destacar que a leitura que esses

viajantes fizeram, em relação ao que viam no Rio Grande do

Sul, representa a construção de uma visão própria daquela

realidade, resultado de um contexto histórico o qual viveram

e viviam naquele momento. Trata-se, dessa forma, de um

discurso não oficial, mas ainda é um discurso, portanto

deve ser analisado pela historiografia como um depoimento

legítimo de uma visão de mundo. Nesse sentido, entendemos

os depoimentos dos viajantes como efeito de um contexto

histórico e, sob esta ótica, se constituindo em fonte para a

compreensão da sociedade de certo período histórico.

Que visões esses viajantes terão do Rio Grande do

Sul? E sobre o tipo social do gaúcho? Certamente o que é

relatado possui dimensões opostas aquilo, que por meio da

representação, tenta-se viver em meados no século XX no

Rio Grande do Sul, que é um movimento tradicionalista e a

expressão gentílica de gaúcho, ao habitante do estado.

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ESCRITOS: ARSÈNE, DREYS E HILAIRE

Durante o século XIX alguns viajantes provindos da

Europa irão visitar as terras onde hoje situa-se o Rio Grande

do Sul. Seus testemunhos tornam-se importantes na

reconstrução do cenário rio-grandense durante este período.

O olhar desses viajantes sob a perspectiva do homem que

habitava essa região é marcado por uma descrição analítica

sobre o tipo social e cultural que predominava na Província.

Ao fazer a abordagem do tipo social do gaúcho sob o

olhar dos viajantes, é importante destacar que tanto Hilaire,

Isabelle e Dreys são apenas “homens de seu tempo”, cujas

abstrações mentais e representações que fazem do mundo

que os cerca estão relacionadas com o seu contexto

histórico-social.

Arsène de Isabelle era um viajante francês.

Naturalista, muito interessado ao estudo da fauna e da

flora, veio para a América às suas próprias custas. Em

1830, viajou para a região do Prata com o desejo de

descrever os aspectos geográficos, geológicos, zoológicos e

botânicos desta região. Viagem essa, que possibilitou os

primeiros escritos sobre o elemento social do gaúcho.

Esteve primeiro no Uruguai e depois dirigiu-se para

Buenos Aires. Nesta cidade, perdeu todo seu capital em

maus negócios financeiros, sendo obrigado a abrir uma

pequena indústria têxtil para depois seguir com sua

expedição pelo interior. Sem alcançar a prosperidade

almejada, deslocou-se para o Uruguai, cruzando pelas terras

rio-grandenses em 1833 e 1834. Retornou à França em

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1835, ocasião em que publicou seus relatos de viagem na

obra Voyage à Buenos Ayres et à Porto Alegre.

Em seu livro Voyage a Buenos-Ayres et a Porto-Alegre

Arsène32 relata a excursão que fez ao Rio Grande entre 1830

e 1834. Ali estão contidas suas impressões sobre a província

do sul, retratando os costumes e as características do povo

da época, inclusive numa rápida passagem sobre a

Revolução Farroupilha no Estado.

Segundo seu relato, a visão que possui do gaúcho é

algo peculiar. Para ele:

... os gaúchos ou habitantes do campo são, em relação a Buenos Aires, o que são os tártaros em relação à China ou os beduínos em relação a Argel. Foi um chefe gaúcho que triunfou do partido de Lavalle e serão os gaúchos que dominarão sempre a cidade, opondo-se a toda inovação útil ao país, até que se ponha em prática o plano de Rivadávia, que consistia em favorecer aos estrangeiros e induzí-los a formar colônias no interior (...) agora, percebo que estou mais próximo dos ´pampas` que da praça da Vitória33. (ARSÈNE, p. 94)

Nicolau Dreys, também era francês, depois de

prestar serviço militar deixa seu país e em 1817 aporta no

Brasil. Percorreu várias Províncias do Império. Antes de

falecer em 1843, nos deixou vários depoimentos sobre sua

visão das províncias brasileiras. Destacamos aqui a Notícia

32 ISABELLE, A. A Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde S.A, 1979. 33 ISABELLE, A. A Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde S.A, 1979, p. 94.

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descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul,

quando faz, sob seu olhar, uma exposição escrita daquilo

que lhe chama atenção no Rio Grande do Sul, considerando

aspectos geográficos, humanos e sociais.

O que é pertinente ressaltar, tomando como

referência os viajantes já citados é que Dreys desenvolverá

uma crítica a obra, e consequentemente à visão que Arsène

terá da província. Segundo Dreys34 não é assim que uma

imaginação judiciosa recebe e transmite as impressões;

infeliz do viajante que, depois de alguns anos de observação,

não lacerou suas primeiras notas; arrisca-se a enganar-se a

si mesmo e enganar os outros.

No entanto, sobre o habitante da Província e mais

especificadamente sobre o tipo social do gaúcho é no

capitulo terceiro, onde discorre sobre a população, que

Nicolau Dreys (1961) nos dá o melhor fruto das suas

observações. Depois de descrever, aquilo nomeado por ele

como população regular, seja o rio-grandense do meio rural

ou das cidades, já nas últimas páginas da Notícia Descritiva,

traça um retrato compreensivo dos famosos “gaúchos de

vida sôlta, ainda não assimilados e em pleno viço de sua

aventura histórica”.

Segundo Augusto Meyer, na nota introdutória da

edição da Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de

São Pedro do Sul, de 1961, editado pelo Instituto Estadual

do Livro, não escapou a Dreys o “traço aculturativo dessa

aventura, e neste passo leva sem dúvida grande vantagem

34 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.

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sôbre a intransigência preconceitual que podemos notar em

tantos autores inclusive Saint Hilaire”35.

Ao descrever sua visão sobre a província, Dreys36

terá impressões não somente do território como também do

elemento social que predomina no Rio Grande do Sul, nesse

contexto. Para ele

...o homem do Rio Grande é geralmente alto, robusto, bem apessoado, e suas feições viris nada perdem por serem quase sempre acompanhadas de uma cor alva, que faz sobressair a preta capilária e o avermelhado das faces, assemelhando-se a primeira vista aos habitantes das regiões montuosas do centro da França. (DREYS, 1961, p.11)

Com isso, Saint Hilaire confirmando as primeiras

impressões, irá concordar plenamente com Dreys. Para

Hilaire37 les hommes étaient généralement très blancs et

avaient des cheveuxet des yeux de la même couleur que les

femmes ; ils étaient grands, bien faits ; ils avaient de

l’aisance, et rien de cette molesse qui caractérise les

Mineurs.

Já Arséne, irá destacar em seu relato que os homens

habitantes dessa região tinham uma característica

significativa de ser apreciada. Na composição desse tipo

social, segundo seu relato, a vestimenta dos homens da

35 MEYER, Augusto. In: Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.Nota introdutória. 36 DREYS, Nicolau. Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.11. 37 SAINT HILAIRE. Viagem ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1936.

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campanha é mais rica que a dos gaúchos argentinos e

orientais. Consiste de sólidas botas, largas bombachas de

veludo azul-celeste, uma jaqueta de pano azul, um amplo

manto de pano e um chapéu de abas muito largas

levantadas dos lados, preso sob o queixo por um barbicacho

que termina em duas borlas.38

Em importante obra sobre a construção social do

gaúcho, intitulada História de uma Palavra, Augusto Meyer

irá dizer que:

Sintomática, por exemplo, é sua reação diante dos gaúchos de vida livre que vagueavam pelos campos da fronteira. Eram na maioria índios ou mestiços e viviam à margem da sociedade organizada, sem moral e sem religião. Muitos brancos haviam adotado os seus costumes, e na Capela de Alegrete, o modo de vida dos proprietários pouco diferia da vida sôlta desses mesmos Garruchos, ou Garuchos, ou Gahuchos, conforme a sua grafia. Mas o seu testemunho parece muito vago, as observações são imprecisas, refletindo certa incompreensão preconceitual do homem histórico e do meio39. (MEYER, 1957, p. 55-57)

O que levanta-se é que o surgimento do tipo social do

gaúcho somente será possível, dentro de um processo de

colonização americana. Os traços culturais predominantes

nos nativos, reais habitantes do território, somando aos

elementos culturais trazidos, principalmente pelos

38 ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Tradução de Teodomiro Tostes. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde,1949. p. 279. 39 MEYER, Augusto. História de uma palavra. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1957. p. 55.

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espanhóis, é que constitui os traços culturais

predominantes no gaúcho.

Nesse contexto, considerando o livre trânsito na

fronteira, é que surge uma identidade cultural desse tipo

social. O fato de existir abundância em pastagens,

possibilitou que o gado, remanescente do período de

destruição das missões, fosse proliferando em abundância.

Na perspectiva de Nicolau Dreys, é importante

destacar o que, sob seu ponto de vista, chama sua atenção,

nesse caso na definição do habitante do território.

... os gaúchos aparecem geralmente sem mulheres e manifestam mesmo pouca atração para elas, felizmente para seus vizinhos, a quem sua multiplicação, acompanhada de desejos tumultuosos, poderia causar desassossêgo: formados origináriamente do contato com a raça branca com os indígenas, eles se recrutam incessantemente dos mesmos produtos, e ainda de todos os indivíduos que nessas imediações nascem, sem ordem e sem destino, com gôsto tão geral de uma fácil e de perfeita liberdade.40 (DREYS, 1961, p.160)

Com isso, Dreys trás presente o traço aculturativo na

formação do gaúcho, a pouca atração para as mulheres e,

principalmente, a idéia de liberdade. A imagem de gaúcho

aqui representada por Dreys torna-se interessante. A vida

desprendida e o pouco apego e interesse com as mulheres,

vem confrontar com a concepção criada em torno do mito 40 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.160.

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gaúcho. A literatura regionalista, por exemplo, promove a

exaltação desse mito, colocando-se dentro da noção de uma

sociedade patriarcal, que fora desenvolvida no Rio Grande

do Sul, onde o gaúcho é apresentado como homem viril.

Assim percebe-se o conflito que há entre a descrição de

Dreys e aquilo com que o tradicionalista do século XX tenta

demonstrar como padrão de masculinidade.

Além disso, Dreys segue dizendo que sem chefes,

sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm da moral social,

senão idéias vulgares e, sobretudo uma sorte da probidade

condicional que os leva a respeitar a propriedade

condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem

os emprega, ou neles deposita confiança: entregues ao jogo

com furor, êsse vício, que parecem praticar como um meio

de encher o vácuo de seus dias, é a fonte dos roubos, e às

vezes das mortes que cometem. Joga o gaúcho tudo que

possui, dinheiro, cavalo, armas, vestidos, e sai do jogo

inteiramente ou quase nu41. Nesse parâmetro fica evidente o

arquétipo de liberdade vivido pelo gaúcho. A carência da

instituição de normatizações que regulamente a vida na

Província também deve ser enfatizada. Isso ocorre porque

sem lei a moral social do gaúcho é relacionada à

vulgarização de suas idéias bem como a atração por roubos

e constantes contrabandos na fronteira Brasil, Argentina e

Uruguai.

Auguste de Saint Hilaire, de 1816 a 1822, percorreu

o centro e o sul do Brasil, registrando em seus relatos de

viagens, publicados a partir de 1830, os costumes e as

41 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.160.

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condições de vida no Brasil. Chega ao Rio Grande do Sul em

meados de 1820 trazendo uma carta de apresentação da

corte, dirigida às autoridades locais, que lhe conferia o posto

de coronel, prerrogativa de que pouco se valeu, mas poderia,

dada as circunstâncias da época, ter sido de muita utilidade

ao longo roteiro que iria cumprir percorrendo 1.500

quilômetros, de carreta ou a cavalo durante nove meses.

Ao chegar ao Rio Grande do Sul, em sua viagem pela

Província, Hilaire irá dizer que “dada conhecida índole dos

gaúchos, é possível imaginar que, proclamada a

independência, aproveitaram-se os primeiros momentos de

desordem para a pilhagem do gado nas estâncias

portuguesas, e os portugueses a seu turno promoviam

arreadas nas estâncias espanholas”42.

Muitos estudos surgiram em torno da presença de

Saint Hilaire na Província. Sem dúvida, que seus relatos

foram imprescindíveis não só para conhecer aspectos da

flora rio-grandense, como para conhecer as configurações,

que sob seu olhar, esse território possuía. Sobre o tipo social

do gaúcho, ele desenvolverá um conceito interessante de ser

analisado. Ao relatar o contato que teve com um habitante

do território, e posteriormente sua impressão sobre o fato,

Hilaire43 descreveu:

Talvez tenha ele julgado que esse seria o melhor meio de se ver livre de mim; talvez tenha sido leviandade, falta de reflexão, negligência, e sou tentado a acreditar que

42 SAINT HILAIRE. Auguste Viagem ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1936, p.77. 43 Idem, p. 78.

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esse homem, apesar de ser branco, pertence aos habitantes dessa região que têm costumes semelhantes ao dos gaúchos. (HILAIRE, 1936, p. 78)

Outro depoimento, onde estão expressas as

primeiras impressões registradas sobre o tipo social do

gaúcho, é do viajante europeu, Felix de Azara, que por volta

de 1780 descreveu o tipo social platino. Madaline Nichols44,

que estudou a obra de Azara, dirá que:

Além do dito povo, há naquela região, e principalmente nas proximidades de Montevidéu e Maldonado, uma outra classe de gente, mui apropriadamente chamados gaúchos ou gaudérios. (...)Sua nudez, suas barbas crescidas, seu cabelo sempre despenteado, sua sujeira e brutalidade de sua aparência os tornam horríveis de ver. Por nenhum motivo ou interesse querem eles trabalhar para alguém, e além de serem ladrões, também raptam mulheres. E essas levam para os matos e vivem com elas em choças, abatendo gado bravio para seu sustento. (NICHOLS, 1953, p. 30).

Partindo da visão que Félix Azara desenvolverá sobre

o gaúcho, o que há de notoriedade é a representação de um

outro modelo de imagem, com alguns elementos que

aproximam o gaúcho platino do gaúcho rio-grandense. O

caráter depreciativo , em torno do tipo social do gaúcho

exposto por Nichols nos remonta a idéia de um elemento

social incivilizado, cujos traços característicos de barbárie

aparecem naturalmente. Porém, se considerarmos o relato

44 NICHOLS, Madaline Wallis. El Gaucho. Buenos Aires. Ediciones Peuser, 1953, p. 30.

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que os viajantes fizeram da Província, e mais

detalhadamente, a forma como caracterizaram a imagem do

tipo social do gaúcho, vamos perceber que o gaúcho aqui

apresentado como histórico é diferente do gaúcho

representado como tradicionalista.

IMAGÉTICA DO GAÚCHO: DEBRET E MOLINA

A representação do gaúcho do século XIX está

presente nos discursos escritos dos viajantes europeus, que

estando na Província, retrataram o modo de organização e

vida desse habitante. Além disso, um outro modelo

representativo, passando pela via da imagética, torna-se

imprescindível e deve ser analisado. A imagem construída

do gaúcho através da pintura nós dá outra dimensão

simbólica e cultural da representação desse tipo social.

Na perspectiva da História Cultural, Canabarro45

(2004) ressaltará que esta trabalha com as diferentes formas

de apropriação dos discursos de textos (verbais e não

verbais) e da produção do sentido, sendo diferenciado pelas

posições que os atores ocupam socialmente. Nesta

perspectiva, nos mostrando algumas dependências da vida

cultural, que aparecem nas diferentes formas de

apropriação, mediadas pela representação. Assim torna-se

claro o que os elementos descritos pelos viajantes do século

XIX queriam retratar e representar sobre o Rio Grande do

Sul.

45 CANABARRO, Ivo dos Santos. A construção da cultura fotográfica no sul do Brasil: imagens de uma sociedade de imigração. 2004, 314 f. tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. p. 17.

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Embora constituindo um texto não verbal, as

imagéticas sobre o gaúcho também são representadas nesse

contexto. Um elemento que merece destaque, considerando

essa noção, cujos escritos nos remetem a reconstruir a

identidade e a imagem do gaúcho sob a perspectiva dos

viajantes europeus, é justamente buscar qual a imagética

que o gaúcho representa. Para isso, buscamos na vasta obra

do pintor francês Jean Baptiste Debret, os pressupostos e

elementos que permitem-nos aproximar de uma forma mais

especifica e redirecionar o olhar sobre o gaúcho rio-

grandense, e na obra de Florêncio Molina Campos sobre o

gaucho platino. Porém, também se fará necessário investigar

como ocorre a evolução da indumentária rio-grandense. Isso

porque, a imagem e a conseqüente identidade do gaúcho,

estão ligadas a esta construção histórica e imagética.

A imagética que Debret nos dará sobre o gaúcho é

expressiva. Foi um pintor que esteve no Brasil com a Missão

Artística Francesa46. Chegou ao Rio de Janeiro em 1816,

dedicando-se ao ensino das artes e à organização da

Academia de Belas Artes, onde figura entre os alunos

fundadores da classe de pintura. Voltou à França em 1831,

onde pouco tempo depois publicou Viagem pitoresca e

histórica ao Brasil. Contribuiu de modo decisivo para uma

história pictórica do Brasil urbano e escravocrata do início

do século XIX.

As fontes imagéticas permitem ir muito além das meras descrições, porque trazem

46 Missão Artística Francesa, grupo de pintores, escultores e arquitetos que dom João VI trouxe da França, em 1816, com a finalidade de desenvolver as atividades artísticas no Brasil e fundar uma escola de ciências, artes e ofícios.

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expressões de realidades vividas em outros tempos. Da mesma forma, devido a diversidade de informações que as fotografias apresentam, uma vez que estas registram distintas situações de vivências dos atores individuais e coletivos, possibilitam o entendimento das diferenças sociais dos grupos, revelando questões que dizem respeito à sua atuação em um determinado contexto histórico47. (CANABARRO, 2004, pg. 17).

Em suas telas, Debret retratou não apenas a

paisagem, mas sobretudo, a sociedade brasileira,

destacando a forte presença dos escravos. Ao regressar à

França em 1831, logo publicou o álbum Voyage pittoresque

et historique au Brésil, ou Séjour d’un artiste français au

Brásil depuis 1816 jusqu’en 1831 (1834-1839).

A seguir, algumas imagens coletadas da obra de

Debret, que visam representar imageticamente o tipo social

do gaúcho48.

ÍNDIO GUARANI CIVILIZADO

FIGURA 1

47 CANABARRO, Ivo dos Santos. A construção da cultura fotográfica no sul do Brasil: imagens de uma sociedade de imigração. 2004, 314 f. tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. p. 17. 48 Obras disponíveis em DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, l989, v.2.

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CHARRUA CIVILIZADO

FIGURA 2

VIAJANTES DA PROVÍNCIA DO RIO

FIGURA 3

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ARMAZÉM DE CARNE SECA

FIGURA 4

As aquarelas de Debret, representadas aqui pela

imagética que o mesmo constrói sobre o gaúcho, vêm de

encontro com os depoimentos descritos pelos outros

viajantes europeus. Assim, a similaridade do gaucho platino

e do gaúcho lusitano é nítida em virtude da indefinição

fronteiriça e da semelhança do modelo econômico.

Na figura 1, percebemos que no centro da cena se

encontra um índio da tribo Guarani, que Debret, optou por

designar a imagem de “Índio Guarani Civilizado”. A idéia de

civilidade perpassa o fator aculturativo. Ou seja, o nativo

estar trajando vestes seguindo o padrão europeu e o modelo

imposto pelos colonizadores. Além disso, essa imagem

também representa, de como o cavalo torna-se

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indispensável às atividades cotidianas. Algo curioso que está

nesta representação é o fato do índio estar com vestes de

estancieiro. Não era comum um nativo estar vestindo-se

dessa maneira durante o século XIX. O indicativo é que, o

Guarani representado, seja uma espécie de peão de

confiança de algum estancieiro, considerando suas

habilidades e destreza com a montaria.

O cavalo torna-se fundamental na constituição

econômica da Província. Ele que havia se proliferado em

abundância, fora trazido pelos espanhóis no processo de

colonização. Assim, também na figura 2 vamos perceber que

o cavalo se faz presente. Ainda é visível a quantidade de

adereços junto aos índios charruas. Boleadeiras, laços,

esporas, pala, etc. O detalhe está no chapéu de feltro que

até então era usado somente pelos estancieiros e

charqueadores. Percebe-se que em segundo plano, os aperos

de montaria estão ao chão e o cavalo está pastando

provavelmente cansado de mais um dia de serviço. Ao fundo

outros índios peões levando o gado a algum lugar.

Nessas imagens a percepção que temos sobre o tipo

social do gaúcho rio-grandense é que sob a visão de Debret,

esse elemento se constitui com base indígena. A imagem

representada é de um individuo trabalhador, interessado

com as atividades econômicas. De acordo Leenhardt49

(2006) enquanto documentarista Debret se revela ótimo,

mas como pintor ele não consegue captar e representar a

coerência do todo.

49 LEENHARDT, Jacques. Imagem e história em uma viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret: o enterro de um filho de um rei negro. In: LOPES, Antônio Herculano. História e linguagens: texto imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. p. 126.

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O que Debret vai enfocar na figura 3 é passagem de

alguns viajantes pela Província. Aqui fica evidente a

condição social como determinante. O tipo de chapéu usado

pelos indivíduos que estão acompanhando a senhora,

usando vestido longo à moda européia, é diferente dos

chapéus representados nas figuras 1 e 2. Outro fator é a

pessoa que vem logo atrás não estar montando um cavalo e

sim uma mula, diferente daquelas que aparecem em

primeiro plano.

A precisão das estruturas que organizam o ambiente

da figura 4 é interessante. À frente encontra-se um

indivíduo de origem indígena. Porém o que é representado

por Debret é uma espécie de venda. Pode-se perceber a

presença de inúmeros mantimentos necessários à

subsistência dos habitantes da Província, principalmente o

produto impulsionador da economia rio-grandense durante

o século XIX: o charque.

Outro fator que merece destaque, diz respeito à

indumentária do tipo social predominante no Rio Grande do

Sul. Tendo a idéia da representação imagética de Debret

sobre a Província, faz-se necessário destacar como o tipo

social do gaúcho veste-se.

Um dos elementos constituidores da imagem e

conseqüentemente da identidade do tipo social do gaúcho,

perpassa pelo seu modo de vestir. A história cultural por

sua vez busca representar esse padrão de vestimenta como

elemento importante de investigação e interpretação

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histórica. De acordo com Fagundes50 (1985) na “evolução da

Indumentária Gaúcha”, há trajes fundamentais que

constroem uma identificação ao gaúcho, e, a cada um deles

corresponde uma indumentária feminina.

Na figura 5, vamos perceber o tipo de vestimenta que

alguns índios após o primeiro contato com os europeus

passaram a utilizar. Há clareza nos traços aculturativos

dessa imagem. Ou seja, o índio já possui o laço e as

boleadeiras como instrumento de trabalho. Já a índia,

aparece nessa representação com roupas seguindo modelo

europeu. Isso demonstra a proximidade com a cultura

européia dominadora aos povos nativos na América. Outro

aspecto que merece destaque está no elemento do

cristianismo presente. A cruz ao peito representa a aceitação

de um deus com moldes cristão/catolicista. Ainda é

interessante verificar a utilização do chiripá pelo homem.

Era uma espécie de saia, constituída por um retângulo de

pano enrolado na cintura, até os joelhos. Isso ajudava na

montaria.

Assim, podemos ressaltar que de peças da

indumentária ibérica, de peças da indumentária indígena, o

gaúcho foi constituindo sua própria indumentária. E

inevitavelmente a construção de sua identidade cultural

está diretamente ligada a construção de sua imagem.

Segundo Fagundes (1985), os Missioneiros se

vestiam, conforme severa moral jesuítica. Passaram a usar

os calções europeus e em seguida a camisa, introduzida nas 50 FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1985.

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missões pelo Padre Antônio Sepp. Usavam, ainda, uma peça

de indumentária não européia, proximamente indígena - "el

poncho". Essa peça de indumentária não existia no Rio

Grande do Sul antes da chegada do branco, pois os nossos

índios pré-missioneiros não teciam e nem fiavam.

A seguir apresentam-se imagens coletadas, que

abordam a evolução das vestimentas no estado do Rio

Grande do Sul, onde as mesmas aparecem em seqüência51.

TRAJE INDÍGENA

FIGURA 5

51 Iconografia disponível em FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor,1985.

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PEÃO DAS VACARIAS E CHINA DAS VACARIAS

(1750-1820)

GAÚCHO COM CHIRIPÁ FARROUPILHA E MULHER

GAÚCHA (1820-1865)

PATRÃO DAS VACARIAS E ESPOSA

CHARQUEADOR E ESTANCIEIRA GAÚCHA

(1750-1820) (1750-1820)

FIGURA 7FIGURA 6

FIGURA 8 FIGURA 9

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A evolução da imagem do gaúcho varia de acordo

com a adaptação das vestes. Considerando a influência

européia e, posteriormente a condição econômica e social

predominante no Rio Grande do Sul da época, é que vamos

perceber algumas variáveis. A primeira variável está nas

figuras 6 e 7. Possuímos nessas imagens a representação da

elite estancieira do Rio Grande do Sul. Homens e mulheres

com modelos europeus, adaptados socialmente ao clima e ao

elemento econômico preponderante na Província.

Compreendemos que evidentemente, o fator

econômico do Charqueador e do denominado Patrão das

Vacarias sobressai no que concerne à imagética

representada. Trajava-se basicamente à européia, com a

braga e as ceroulas de crivo. Segundo Fagundes52 (1985),

passou a usar também a bota de garrão de potro53, invenção

gauchesca típica. Igualmente o cinturão-guaiaca, o lenço de

pescoço, o pala indígena, a tira de pano prendendo os

cabelos, o chapéu de pança de burro, etc. Em relação à

figura feminina, Fagundes segue dizendo que a mulher

desse rico estancieiro, usava botinhas fechadas, meias

brancas ou de cor, longos vestidos de seda ou veludo,

botinhas fechadas, mantilha, chale ou sobrepeliz, grande

52 FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor,1985. 53 As botas mais comuns eram as de garrão-de-potro, que eram retiradas de vacas, burros e éguas (raramente era usado o couro de potro, que lhe deu o nome). Essas botas eram lonqueadas ou perdiam o pêlo com o uso. Em uso, as botas não duravam mais de 2 meses. Normalmente, eram feitas com o couro das pernas traseiras do animal que dão botas maiores. As que eram tiradas das patas dianteiras, muitas vezes eram cortadas na ponta e no calcanhar, ficando o usuário com os dedos do pé e o calcanhar de fora. Acima da barriga da perna, era ajustada por meio de tranças ou tentos.

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travessa prendendo os cabelos enrolados e o infaltável leque.

Ou seja, os padrões europeus preponderaram na construção

dessa imagem de gaúcho.

Porém ressalta-se que esse tipo de vestimenta e

conseqüente imagem criada, é restringida a um número

mínimo de rio-grandenses. Um elemento que vem em

contraposição a condição social já apresentada é a

representação do peão. O peão é o responsável pelo trabalho

diário com o gado, dando fundamentação econômica à

Província. Nesse contexto a figura 8 nos mostra que tipo de

imagem esse peão representa. Segundo Fagundes, o traje do

peão das vacarias destinava-se a proteger o usuário e a não

atrapalhar a sua atividade - caçar o gado e cavalgar.

Normalmente, este gaúcho só usava o chiripá primitivo54 e

um pala enfiado na cabeça.

E segue descrevendo que o chiripá, em pouco tempo,

assumiria uma cor indistinta de múgria - cor de esfregão. À

cintura, faixa larga, negra, ou cinturão de bolsas, tipo

guaiaca, adaptado para levar moedas, palhas e fumo e, mais

tarde, cédulas, relógio e até pistola. Ainda à cintura, as

infaltáveis armas desse homem: as boleadeiras, a faca

flamenga ou a adaga e, mais raramente, o facão. E sempre à

mão, a lança - de peleia ou de trabalho. Em relação à

camisa, quando contava com uma, era de algodão branco ou

riscado, sem botões, apenas com cadarços nos punhos, com

gola imensa e mangas largas. Pala55, não faltava,

54 Pano enrolado como saia, até os joelhos, meio aberto na frente, para facilitar a equitação e mesmo o caminhar do homem. 55 Tem origem indígena. Pode ser de lã ou algodão, quando proteje contra o frio, ou de seda, quando proteje contra o calor. É sempre retangular com franjas nos quatro lados. A gola do pala é um simples talho, por onde o homem enfia o pescoço.

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comumente, o de lã - chamado "bichará" - em cores

naturais, e mais raramente o de algodão e o de seda que aos

poucos vão aparecendo. Logo, também surge o poncho56

redondo, de cor azul e forrado de baeta vermelha.

O peão das vacarias, representado na figura 8, não

era de muito luxo. Só usava ceroulas de crivo nas

aglomerações urbanas. Ademais, andava de pernas nuas

como os índios. À cabeça, usava a fita dos índios, prendendo

os cabelos - que os platinos chamam "vincha" - e também o

lenço, como touca, atado à nuca.

Como podemos perceber nessa mesma imagem, a

mulher vestia-se pobremente: nada mais que uma saia

comprida, rodada, de cor escura e blusa clara ou desbotada

com o tempo. Pés e pernas descobertas, na maioria das

vezes. Por baixo, apenas usava bombachinhas, que eram as

calças femininas da época.

De acordo com Antônio Augusto Fagundes há uma

outra variante no século XIX, em relação à constituição da

indumentária rio-grandense. Segundo ele, será abdicado os

padrões de vestimentas já relatados e incorporado ao que ele

chamará de “Traje Gaúcho”. Isso ocorrerá no contexto da

Revolução Farroupilha. Ou seja, o homem utilizando Chiripá

Farroupilha57 e a mulher Saia e Casaquinho como

56 Tem origem inteiramente gauchesca. É feito, invariavelmente, de lã grossa. Quase sempre é azul escuro, forrado de baeta vermelha, mas também existem de outras combinações de cores. O poncho tem a forma circular ou ovalada. Só preteje contra o frio e a chuva. A gola é alta, abotoada e há um peitilho na frente do poncho. 57 Cabe ressaltar que as botas são, ainda, a bota forte, comum, a bota russilhona e a bota de garrão, inteira ou de meio pé. À cintura, faixa preta e guaiaca, de uma ou duas fivelas. Camisa sem botões, de gola, e mangas largas. Usavam jaleco, de lã ou mesmo veludo, e às vezes, a jaqueta, com

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verificamos na figura 9. Este período é dominado por um

chiripá que substituiu o anterior, que não é adequado à

equitação, mas para o homem que anda a pé. O chiripá

dessa nova fase é em forma de grande fralda, passada por

entre as pernas. Este adapta-se bem ao ato de cavalgar e

essa é certamente a explicação para o seu aparecimento.

Com isso, fica claro que o Chiripá Primitivo era de origem

indígena.

A mulher, nesta época, usava saia e casaquinho com

discretas rendas e enfeites. Tinham as pernas cobertas com

meias. Usavam cabelo solto ou trançado, para as solteiras e

em coque para as senhoras. Os sapatos eram fechados e

discretos. Como jóias apenas um camafeu ou broche. Ao

pescoço vinha muitas vezes o fichú.

Assim, podemos perceber como ocorre a tentativa da

construção de uma imagem de gaúcho, seja pela visão que

Debret obtém do Rio Grande do Sul ou pela transformação

que a indumentária gaúcha obteve através do tempo. Fica

evidente que, os elementos que ajudarão na construção da

imagem de gaúcho rio-grandense, perpassam pelo fator

aculturativo de índios e europeus, ajudando a construir a

sua identidade.

Após analisado a visão que Debret possui da

Província e, como evolui a imagem do gaúcho rio-grandense

em relação a sua indumentária, dentro desse contexto

torna-se interessante verificar brevemente como se constitui

gola e manga de casaco, terminando na cintura, fechado à frente por grandes botões ou moedas.

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o tipo social do gaucho platino, considerando as

proximidades da fronteiras e a mesma matriz cultural.

GAUCHO EM FINAIS DO SÉCULO

FIGURA 10

O gaucho platino por sua vez apresentará

semelhanças culturais ao gaúcho rio-grandense conforme a

figura anterior58. Segundo Ibáñez,59 (1964), gaucho fruto de

la mezcla de sangres española e indígena, comenzó a forjar

su original personalidad en las primitivas vaquerías de la

colonia. Allí aprendió a desempeñar las tareas de ganadería

con singular destreza y fundió su cuerpo con el de su

inseparable compañero: el caballo. Pasaba la mayor parte de

su vida sobre el lomo de su pingo, por eso siempre detestó la

agricultura, que lo obligaba a estar de pie.

58 Iconografia disponível em IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel, 1964 p. 59. 59IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel, 1964. pg.48.

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A impressão desenvolvida em relação a sua conduta

social complementa os depoimentos dos viajantes europeus

no Rio Grande do Sul.

La extensión de la llanura pampeana fue la que terminó de moldear su conducta. Es independiente, de vida errante y costumbres sencillas. Esa libertad con que enfrenta la vida le traería aparejados muchos disgustos. Por mucho tiempo se lo marginó, llegándole su reivindicación con el paso del tiempo, al punto de convertirse la palabra gaucho en sinónimo de rectitud de carácter y nobleza de corazón60. (IBANEZ, 1964,p.56)

A representação imagética sobre o gaúcho platino

está presente na obra de Florencio Molina Campos61. Fue

un dibujante y pintor conocido por sus típicos dibujos

costumbristas de la pampa argentina. Sus dibujos y

pinturas rememoran con un toque humorístico típicas

viñetas gauchescas. De aire caricaturesco y, a menudo,

"naif", su dibujo, inspirado principalmente en el mundo

gauchesco, refleja a un observador agudo de la realidad

nacional.

60 IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel, 1964. pg.56. 61 Disponível em http://www.molinacampos.org

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Na seqüência, algumas representações da obra de

Florencio Molina Campos, onde constrói uma imagem do

gaucho platino62.

JINETEANDO

FIGURA 11

P'AL POBLAO

FIGURA 12

62Iconografia disponível em http://www.me.gov.ar/efeme/tradicion/lamela.html http://www.molinacamposzg.com.ar/obrasdispo.htm

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YO TAMBIÉN FUÍ COMO ESE LOCO

FIGURA 13

HUAMPELEN

FIGURA 14

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De acordo Vellinho63 (1970) pontos de parecença

entre tipos sociais do gaúcho rio-grandense e do gaúcho

platino existem, sem dúvida, mas se restringem às

peculiaridades decorrentes do mesmo sistema básico de

atividades – o pastoreio, desenvolvido em um cenário físico

semelhante e parcialmente fundado, em ambos os lados, na

experiência e nas práticas do campeador nativo.

Reverbel64, também destaca os elementos de

proximidade e disparidade entre o gaúcho rio-grandense e o

gaúcho platino. Para ele

Não há identidade entre o gaúcho rio-grandense e o gaúcho platino. Trata-se de tipos sociais diferenciados, histórica, sociológica e culturalmente. Mas há pontos de aproximação, aspectos semelhantes, contatos, interpenetrações. Afinal, a família é a mesma. Ambos se formaram e dependem da sociedade pastoris, geograficamente contíguas. (REVERBEL, 1996, p.103)

Os depoimentos dos viajantes, com explicações e

aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e

mais enriquecida compreensão do passado. A representação

imagética de Debret remete a forma, que ele, viu e

interpretou. A imagem que Molina Campos representa do

gaucho platino, nada mais é do que produto de sua

perspectiva artística. Temos que cuidar, porém, para não

63 VELLINHO, Moysés. Capitania d’el Rei. Porto Alegre: globo, 1970, p. 144. 2 ed. 64 REVERBEL, Carlos. O gaúcho: aspectos de sua formação no Rio Grande e no Rio da Prata. Porto Alegre: L&PM,1996, p. 103.

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cairmos na armadilha de aceitarmos as suas descrições e

informações como sendo a própria e única realidade.

Elas se constituem de representações, reinvenções de

realidades, produzidas a partir da visão de um sujeito. São

imagens que se constituem em representações do real,

elaboradas a partir de componentes ideológicos de pessoas

dotadas de equipamentos culturais próprios e que trazem

um patrimônio anterior que condiciona o modo de observar

e entender o empírico.

Na visão dos viajantes, no Rio Grande do Sul, como

um todo, era motivo de estranhamento. As diferentes regiões

eram vistas através do filtro de sua própria cultura, mas

eles escreveram crônicas sobre os aspectos vistos ou vividos

bastante significativos para pensar o contexto do período.

Esses relatos foram muitas vezes desprezados pelos

historiadores por não serem construídos cientificamente,

por não apresentarem provas documentais. Entretanto, nos

últimos anos, passou-se a valorizar estes depoimentos como

testemunhos de época. Assim, os relatos dos viajantes, base

desta discussão, foram escolhidos por apresentarem pontos

de vista semelhantes, porém com significados claros com

relação ao gaúcho.

A imagética que Debret e Molina Campos constroem

sobre o gaúcho e as crônicas escritas por Saint Hilaire,

Arsène Isabelle e Nicolau Dreys mostram a visão de homens

oriundos de uma outra realidade. Referendados por outros

parâmetros de historicidade, que mostram no exterior certa

imagem da região meridional da América do Sul e levam as

discussões e debates sobre as condições de trabalho, de

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Page 63: Gaucho Ao Tradicionalista

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cultura e do desenvolvimento do Rio Grande do Sul . Dessa

forma o gaúcho constrói sua representação. Tal simbolismo

se fortalecerá tornando-se ainda mais significativo, a partir

da segunda metade do século XX, quando busca-se através

de uma tentativa saudosista reviver o passado através de

um movimento tradicionalista ocorrendo uma reinvenção do

gaúcho.

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Page 64: Gaucho Ao Tradicionalista

DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO

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O PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO DE UMA

IDENTIDADE GAÚCHA

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O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE

GAÚCHA

Dentre as perspectivas da história cultural, a noção

de identidade possui um papel importante. A abrangência

de seu significado, entre tantos aspectos, demonstra como

ela define os indivíduos. A construção identitária de

determinado povo e, por conseguinte, determinada

sociedade, vem representar elementos característicos de

suas manifestações culturais. Então, cultura e identidade

possuem um vínculo específico no que se refere à

construção de um modelo social.

No caso do Rio Grande do Sul, ocorre de forma

emblemática a tentativa de (re) surgimento de uma

identificação com o passado. Essa edificação vem de

encontro com os postulados que nos levam a refletir sobre a

origem e essência do gaúcho histórico. Este, porém,

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apresenta uma identidade que segundo Cuche65(2002),

permite que o indivíduo se localize em um sistema social e

seja localizado socialmente. Contudo, ocorrerá um processo

que tende a transformar a identidade do tipo social do

gaúcho já apresentado.

No âmbito da construção de uma identidade gaúcha

torna-se pertinente destacar a contribuição do estudo de

Stuart Hall sobre as identidades culturais na pós-

modernidade. Para ele a identidade é um conceito histórico e

móvel. Seu caráter de historicidade e de mobilidade está

presente na construção de uma importante configuração na

tentativa de entender o sujeito moderno. A identidade, no

entanto pode ser classificada como uma forma de

representação. Para isso ele destaca três noções de

identidade:

a – sujeito do Iluminismo; b – sujeito sociológico; c - sujeito pós-moderno. A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com as outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava... O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu-real”, mas este é formado e modificado num diálogo continuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa concepção sociológica,

65 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru: EDUSC,2002. p.177.

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preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” entre o mundo pessoal e o mundo privado. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo, que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural.66(HALL, 2001,p.10-12)

A partir da classificação que Hall estabelece à

identidade, é que podemos compreender como a identidade

do gaúcho processa sua construção. Esse valor do passado

representado de forma simbólica prepondera por meio de

um movimento saudosista a amplificação e a dimensão

social da representação da imagem do gaúcho. Isso ocorre

porque o sujeito se define por meio desta identidade e,

através dela inicia um processo de criação desenvolvendo

modelos de comportamentos. Tudo isso decorre na

constituição de um sujeito que cria a identidade em si e a

identidade para si.

Considerando os escritos e as imagéticas já

descritas, que criam uma imagem de gaúcho, torna-se útil

verificar como ocorre a tentativa de consolidar

definitivamente uma identidade ao habitante do Rio Grande

do Sul. Para efetuar a consolidação da identidade rio-

grandense, far-se-á necessário compreender o processo que

levará a essa construção.

66 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.10-12.

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Podemos caracterizar vários momentos e movimentos

que levam a edificação da identidade gaúcha, para

finalmente se constituir a identidade tradicionalista. A

construção de uma identidade dentro desse contexto visa

representar um modelo de sujeito e de vivência estabelecida

em um contexto histórico, defendido como tradicional.

Ao refletir sobre a condição do Rio Grande do Sul no

final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX,

verificamos a influência da literatura, tanto platina quanto a

brasileira, que conduzem à construção romantizada do mito

gaúcho. Essa concepção fornecerá moldes à constituição do

movimento tradicionalista, e conseqüentemente, a exaltação

de um passado que não existiu da forma como os

tradicionalistas identificam.

Aliado à influência da literatura, verificaremos o

surgimento das primeiras entidades nativistas, que visavam

à preservação e a conservação dos valores passados. A

imagem de gaúcho reconstruída nesse contexto como

veremos adiante, está intimamente ligada à construção do

mito: o herói defensor das fronteiras, o homem de honra.

Parecendo-nos que haverá uma ressignificação de sua

identidade.

Além disso, a organização política desenvolvida pelo

estado do Rio Grande do Sul, é importante na construção de

uma nova identidade regional. Pois alicerçado com ideais do

positivismo comtiano e a política castilhista/borgista, nos

dão a dimensão dos elementos de conservação cultural

presentes na sociedade rio-grandense. Isso tudo

impulsionará criando algumas condições para a eclosão do

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movimento tradicionalista organizado que terá seu ponto

inicial no pós Segunda Guerra Mundial.

No entanto, considerando a imagem de gaúcho,

também será pertinente desenvolver uma análise da

historiografia rio-grandense, onde Moysés Vellinho, ao

dirigir a Revista Província de São Pedro, torna-se o

intelectual mais influente na defesa de um gaúcho rio-

grandense em contraposição do gaucho platino.

A INFLUÊNCIA LITERÁRIA: PLATINA E BRASILEIRA

Em relação ao tipo social do gaúcho já caracterizado,

podemos partir da premissa básica de que o mesmo sofrerá

alterações quanto à concepção de sua identidade. Entre

tantos fatores que condicionam que o gaúcho histórico, já

apresentado, seja gradualmente “substituído” ou,

reconstruído o seu sentido, está a literatura. No âmbito

literário, enfoca-se tanto a influência que a literatura

platina, principalmente com a obra de José Hernandez,

intitulado “El Gaúcho”, quanto à literatura brasileira. Esta,

através de um processo interessante de ser analisado, irá

proporcionar as reais dimensões imaginárias, na construção

mitológica de bravura e honradez ao gaúcho.

A construção da imagem do gaúcho perpassa

indiscutivelmente pela literatura. A romantização do gaúcho

é um elemento fundamental, para compreender como essa

imagem é reconstruída e refigurada. Sendo que, a partir

dessas pressuposições é que o tradicionalista do século XX

constituirá sua identidade. Construindo assim uma

representação do gaúcho.

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Dentro da fase romântica da literatura brasileira,

vamos encontrar o escritor José de Alencar. Ele através de

seus escritos, vai desenvolver uma visão do regionalismo

brasileiro. Com isso, escreverá uma obra intitulada “O

Gaúcho”67, tratando evidentemente, sobre o habitante da

então Província do Rio Grande do Sul.

Sua obra no final do século XIX, sofrerá críticas

severas, principalmente ao fato de desenvolver uma

narrativa, sem ao menos conhecer o Rio Grande do Sul e

fundamentalmente a figura do gaúcho. Tanto que, quando

foi publicado, em 1870, o romance “regionalista” do autor

cearense provocou indignação aos escritores nativistas

gaúchos.

Em contraposição a esta tentativa de caracterização

do habitante do estado pelo escritor cearense, no Rio

Grande do Sul, ocorrerá a indignação de alguns escritores e

intelectuais. Dentre eles destaca-se a figura de Apolinário

Porto-Alegre e Simões Lopes Neto, que também na

literatura, elevarão a imagem de um gaúcho semelhante ao

de José de Alencar, porém, a notória diferença será a

exaltação dada.

Esses elementos são importantes de destacar, pois a

obra de Apolinário Porto-Alegre foi influenciada por José de

Alencar. Apolinário, no entanto segue as mesmas linhas

literárias de Alencar. Já em “O Vaqueano”68, ele pretende

analisar o temperamento do gaúcho tradicional, cujos

indícios identitários verificamos no capitulo anterior. Assim, 67 ALENCAR, José de. O gaúcho. São Paulo : Ática, 1998. 68 PORTO-ALEGRE, Apolinário. O vaqueano. Editora Três. Rio de Janeiro, 1973.

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ele coloca em cena uma nova imagem com uma

representação ressignificada do vaqueano rio-grandense.

Esse romance de Apolinário Porto-Alegre constitui-se

com grande importância histórica, pois é considerado o

marco inicial da literatura sul-rio-grandense. Devido a isso,

surgiriam outros escritores seguindo a mesma linhagem,

estilo e linguagem. Entre os quais destaca-se Simões Lopes

Neto.

Guilhermino César69, na sua História da Literatura

do Rio Grande do Sul, conclui da seguinte maneira o

capítulo dedicado a Apolinário Porto-Alegre:

É de extraordinária simpatia esse professor e jornalista provinciano, empenhado em realizar algo de substancialmente nativo, aprofundando as ligações da arte com o meio e a experiência de vida do seu torrão. Raras vezes, na história do pensamento brasileiro, ter-se-á visto um homem tão bem dotado para tarefas tão diversas. Interessado por todos os aspectos da cultura, não chegou, é certo, a produzir obra harmoniosa. Nele, o que impressiona e domina é o conjunto. E pelo conjunto de seus trabalhos - que apontaram rumos à literatura regional talvez mais orgânica do Brasil - Apolinário Porto-Alegre há de ser lembrado como um dos grandes vultos nacionais.70 (CÉSAR, 1956, p 56)

A obra de José de Alencar sobre o gaúcho rio-

grandense repercute e denota ampla repercussão nacional.

69 CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul. 1737-1902. Porto Alegre: Globo, 1956. 70 Idem, p. 56.

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Logo após Apolinário Porto-Alegre, inspirado no modelo e no

estilo literário, publicou O Vaqueano, mas acrescentou-lhe a

observação direta do meio. Ou seja, o cotidiano da vida do

gaúcho rio-grandense. Ele é, portanto, o legítimo fundador

do regionalismo literário rio-grandense, que nesse momento

deixa de ser mero sentimento coletivo e se expressa como

simbologia expressiva na ressignificação do gaúcho.

Com base em “O vaqueano”, chegamos a observação

de que sua figura, descrita por Apolinário, se “fizera

indispensável ao contexto social do pampa: funcionava como

guia de viajantes e forasteiros por conhecer os caminhos e

atalhos, possuidor de habilidade e destreza, ignorante do

perigo” 71.

Assim, o regionalismo gaúcho muito deve a

Apolinário Porto Alegre. A construção de seu romance legou

um tema e inaugurou uma tradição. Tradição essa que será

enfatizada de forma significativa pelo Movimento

Tradicionalista no transcurso da segunda metade do século

XX. Porém as bases começam a se constituírem. Isso ocorre,

porque o personagem do vaqueano sintetiza todos os

atributos do “guasca”. Isso também, será enfatizado de

forma interessante pelo sucessor dessa linhagem literária:

Simões Lopes Neto.

Se Apolinário lança as bases do regionalismo rio-

grandense, é Simões Lopes Neto quem amplifica esse estado:

71 PORTO-ALEGRE, Apolinário. O vaqueano. Editora Três. Rio de Janeiro, 1973.

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É necessário reconhecer nos Contos gauchescos e nas Lendas do Sul uma característica documentária que vai da linguagem dialetal aí incorporada até a fixação de um código ético específico, passando pelo registro histórico e a fotografia duma tipologia social. Tudo isto concorre para a definição do texto dentro do regionalismo. Tal era a tendência predominante não só no Rio Grande do Sul, mas em grande parte da literatura brasileira neste período. O naturalismo de Euclides da Cunha, após a publicação de Os sertões, em 1902, abrira uma vertente (...) a literatura assumira programaticamente a documentação e a interpretação da realidade circundante. No caso de Simões Lopes Neto acrescentou-lhe ainda a ideologia que, desde o romantismo, propiciara ao gaúcho uma aura heróica. Na convergência desses elementos culturais surgiu Blau Nunes, o vaqueano, no pórtico dos Contos gauchescos.72 (HEIDRICH, 2005, p. 215).

Visto hoje, como um dos expoentes do Movimento

Tradicionalista no Rio Grande do Sul, Simões Lopes Neto

manteve no universo imaginário de sua ficção, o modelo

deste gaúcho tradicional, idealizado no imaginário popular e

por todos os escritores regionalistas que o precederam. Em

sua obra faz uma minuciosa descrição de usos, costumes e

hábitos que identificam uma região culturalmente

demarcada, a campanha.

72 HEIDRICH, Álvaro Luiz. Aspectos culturais da construção da regionalidade gaúcha. In: Rio Grande do Sul – Paisagens e Territórios em Transformação. p. 215 – 232. Editora da UFRGS, Porto Alegre, 2005.

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Não é lícito, portanto, sonegar a literatura de Simões Lopes Neto à tradição do regionalismo. Essa tradição afirmou-se na própria formação de uma província insulada por muito tempo das grandes transformações ocorridas no centro do país durante o século XIX e envolvida quase sempre nas guerras em defesa da fronteira ou em revoluções internas que alcançaram o nosso século. Confirmou-se na produção literária, precedente à ficção simoniana, onde é possível localizar a herança de José de Alencar transmitida nas páginas d'O gaúcho para a geração romântica do Partenon Literário e mantida desde O vaqueano de Apolinário Porto Alegre até Ruínas vivas de Alcides Maya. Homem da cidade, portador de refinada cultura, o escritor pelotense conhecia muito bem estes antecedentes. A compilação do cancioneiro, em 1910, mergulhou-o, por outro lado, no folclore e na raiz popular. Vamos encontrá-lo agora na confluência destes fatores: ele é um caudatário do sentimento e da tradição instaurados pelo regionalismo.73 ( CHAVES, 1982, p.12).

Quanto à contribuição da literatura platina na

construção do gaúcho, podemos considerar que a obra de

José Hernandez, representa as bases da formação do tipo

social do gaucho. No século XIX, escreve Martín Fierro, um

poema narrativo da vida de um gaúcho. Foi publicado com o

título “El gaucho Martín Fierro”, e continuação, “La Vuelta

de Martín Fierro”. Constitui-se como uma importante obra

literária de grande popularidade na Argentina, dando as

bases para a construção da identidade do gaucho platino,

onde muitos desses aspectos são apropriados pelos

73 CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: regionalismo & literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 12

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regionalistas rio-grandenses na construção de sua

literatura.

Ao longo de toda a obra “Martín Fierro”74 de

Hernándes, o que vemos acontecer é a apresentação em

forma de testemunho por “el gaucho” que vive e revive a

história real da Argentina. Colocando como evidência a

memória nacional e a formação deste como conseqüência de

um processo histórico, verificamos também a busca da

construção da identidade nacional Argentina.

Alguns trechos desse poema nos dão à dimensão

caracterizante do gaucho platino.

(Trecho do Poema)

No me hago al lao de la güeya

aunque vengan degollando;

con los blandos yo soy blando

y soy duro con los duros,

y ninguno en un apuro

me ha visto andar tutubiando.

(Tradução)

Não saio fora dos trilhos

nem que venham degolando;

c'os brandos sou sempre brando,

e sou duro com os duros,

e ninguém, noutros apuros,

me viu andar titubeando.

En el peligro qué Cristo!

El corazón se me enancha.

pues toda la tierra es cancha,

y de esto naides se asombre:

el que si tiene por hombre

donde quiera hace pata hancha

Ante o perigo — por Cristo! —,

meu coração não remancha:

qualquer chão p 'ra mim é cancha;

e nisso senztido tomem:

quem se tenha por bem homem

faz pé firme e não se plancha.

74 Hernández, José. Martín Fierro. Tradução de J. O. Nogueira Leiria, Porto Alegre:Martíns Livreiro, 1991.

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Soe gaucho, y entiéndanló

Como mi lengua lo esplica:

para mi la tierra es chica

y pudiera ser mayor;

ni la víbora me pica

ni quema mi frente el sol.

Sou gaúcho! — Entendam bem

como meu canto o explica:

a terra ante mim se achica

e pudera ser maior;

nem a víbora me pica,

nem me queima a fronte o sol.

Nací como nace el peje

en el fundo de la mar:

naides puede quitar aquello que

Dios me dió:

lo que al mundo truje yo

del mundo lo he de llevar.75

Nasci como nasce o peixe

nas profundezas do mar;

ninguém me pode tirar

aquilo que Deus me deu:

o que aqui tenho de meu,

do mundo o hei de levar.

Nesse contexto ele é representado por Martín Fierro

como um gaucho sofredor que vive entre a violência e a

crueldade, onde possui autoridade própria sobre sua vida e

seus interesses.

Certamente o século XIX, que transformou o “el

gaucho” em figura mítica do personagem não ocorreu por

acaso. A inclusão de Martín Fierro no universo mítico da

identidade Argentina, surge mais do que uma figura, como

um símbolo épico, que retrata os sentimentos do herói

gaúcho, a revolta contra a civilização dominante e a

nostalgia do herói diante da Planície dos Pampas.

É possível compreender esse fenômeno, justamente

através do valioso instrumento cultural, representado pela

75 Hernández, José. Martín Fierro. Tradução de J. O. Nogueira Leiria, Porto Alegre: Martíns Livreiro, 1991.

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literatura. As obras narram o caráter independente, heróico

e sacrificado dos habitantes dos pampas, e os situam como

os verdadeiros representantes do caráter argentino. Para os

escritores da época, o gaúcho deixava de ser um homem

“fora da lei” para converter-se em herói nacional, buscando

uma interpretação da história Argentina. E no Rio Grande

do Sul, não tentarão fazer o mesmo com o gaúcho rio-

grandense?

PRIMEIRAS ENTIDADES NATIVISTAS E O POSITIVISMO

Antes de examinarmos a constituição do Movimento

Tradicionalista organizado, faz-se necessário investigar

como ocorrem as primeiras manifestações da exaltação da

cultura rio-grandense, como o passado é tentado a ser

reconstituído no âmbito presente.

No final do século XIX e na primeira metade do

século XX é que essas entidades surgirão com um propósito

único: exaltar a imagem do gaúcho histórico ressignificando

sua identidade. Isso tudo será possível, compreendendo a

dimensão da política positivista impregnada pelos

governantes do Rio Grande do Sul no princípio da

República.

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Esse ciclo de entidades, 76 segundo Ruben Oliven77,

tanto o Partenon Literário como o Grêmio Gaúcho, tinham a

preocupação com a questão da tradição e da modernidade.

Ao mesmo tempo em que tinham como modelo o que se

considerava mais avançado na Europa culta (o positivismo

comtiano)78, o Partenon evocava a figura do tradicional

gaúcho e louvava seus abalados valores.

Mas o mesmo não se projetou como elemento de

composição do nacional. Além de, a história gaúcha

valorizar fatos não comuns às demais regiões brasileiras,

como por exemplo, o contato fronteiriço, além de o estado

sulino opor-se politicamente a duas importantes regiões, as

outras formulações eram de cunho mais apropriados ao

nacionalismo no âmbito da cultura. Apresentavam

elementos de tradição comuns, antepunham-se como elo de

preservação e entendimento, e projetavam a expansão do

moderno, da cidade e do industrialismo.

76 A primeira tentativa de organização do tradicionalismo surge em 1898 com a criação do Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, por João Cezimbra Jacques. Alguns autores afirmam que Cezimbra Jacques agiu influenciado pelo Partenon Literário que reunia a elite cultural de sua época. Outros clubes gaúchos são fundados pelo interior do Estado. Segundo Hélio Mouro Mariante em História do Tradicionalismo Rio-grandense, foram a União Gaúcha de Pelotas, Centro Gaúcho de Bagé, Grêmio Gaúcho de Santa Maria, Sociedade Gaúcha de Lomba Grande de São Leopoldo (hoje pertencente ao município de Novo Hamburgo) e Clube Farroupilha de Ijuí. Segundo Moro Mariante este sentimento nativista impregnado na criação das entidades de preservação do regionalismo tem a influência do Uruguai que conta com sua entidade tradicionalista La Crioula, fundada por Elias Regules, em 1894. 77 OLIVEN, Ruben. O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Vértice: ANPOCS, 3(9): 3-14. fev. 1989 78 A idéia de conservar melhorando, estava presente nos discursos oficiais dos políticos rio-grandenses. Tudo isso faz com surja esse movimento embrionário do Movimento Tradicionalista. Tanto que ocorre a defesa, no jornal “A Federação” por parte do presidente do estado o Sr. Julio Prates de Castilhos de que 20 de setembro seria o dia do gaúcho.

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O Rio Grande do Sul ofereceu a distinção cultural

para compor a coexistência e em termos de contribuição

para o futuro firmou-se nos princípios republicanos

positivistas. A construção das identidades próprias dos

estados coexistiu com a produção do ideário nacional.

No estado sulino ele é difuso num personagem que

muitos podem assumí-lo: o gaúcho. Tal figura, na origem

desprezada por seu caráter bandoleiro, após a sua

assimilação como peão de estância, ou guerreiro nos

enfrentamentos como as Revoluções Farroupilha,

Federalista, a Guerra do Paraguai, passou a ser cultuado

como o tipo representativo do Pampa79.

A implantação do mito completou sua vestimenta,

incluindo-lhe adereços enobrecedores, bem como passou à

descrição de seus hábitos e costumes, filtrando o estilo

bárbaro e enobrecendo o rústico. Compondo assim, outra

figura, diferente daquela inicial narrada pelos viajantes

europeus na Província do Rio Grande de São Pedro e

pintadas por Jean Baptiste Debret.

Os atributos e peculiaridades que fazem parte do

simbolismo ressaltam, por exemplo, a valentia, a bravura, a

qualidade de defensor, de fidelidade a uma causa ou paixão,

ser guerreiro e livre. Tal identidade cabe-lhe por sua

condição inicial de trabalhador na estância, que vagueia por

campos de horizonte aberto, pela necessidade da valentia

para a defesa do “seu” território e do gado que é sua razão 79 GONZAGA, Sergius. As mentiras sobre o gaúcho: primeiras contribuições da Literatura. In: ___; DACANAL, José Hildebrando (orgs.). RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996. p. 113-132.

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de sustento, por ter paixão de sua condição e, por tudo isso,

ser fiel ao estancieiro que lhe aparece como igual, posto que

também é “gaúcho”. A personificação geográfica e histórica

enaltece a condição fronteiriça, vinculada à idéia de defesa e

do desejo de ser nacional.

No Rio Grande do Sul a ênfase das peculiaridades e a simultânea afirmação de pertencimento ao Brasil constitui um dos principais suportes da construção social da identidade gaúcha que é constantemente evocada, atualizada e reposta.80 (OLIVEN,1989, p. 3).

Tal ênfase deve ser considerada por seu aspecto

contundente e pelo próprio regionalismo, na tentativa de

uma inserção nacional. Não há contradição, mas apenas

uma inerência capaz de distingui-lo do nacionalismo. A

afirmação de pertencimento, ao emanar orgulho da sua

condição coloca-se numa posição diversa da simples

subordinação. Constitui dessa forma, um tipo especial de

identidade territorial, inserido noutra mais abrangente. A

existência dessa identidade regional fundamenta-se quando

as vantagens de pertencimento à nação. Faz parte de uma

estratégia que visa, ao menos relativamente, a autonomia

interna e a força no conjunto nacional.

Mas nem por isso coloca-se a morte do regionalismo

como sistema amplo. Além da literatura, o regionalismo de

expressão popular e cancioneiro, bem como o culto de

80 OLIVEN, Ruben. O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Vértice: ANPOCS, 3(9): 3-14. fev. 1989.

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tradições permaneciam fortes. A identidade cultural de

referência já há tempo ligara-se ao gauchismo. Apesar da

sua decadência na literatura, o gaúcho, de personagem

extraída do povo, retornava a ele com auxílio institucional.

Aquilo que Simões Lopes Neto e os demais escritores

regionalistas haviam registrado tornou-se o discurso e o

hábito dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs).

A partir de 1920 generalizou-se o “esforço para criar

uma imagem do Rio Grande do Sul que se assemelhe à do

Brasil”, juntamente com o de valorizar a sua originalidade.81

VISÃO DOS HISTORIADORES: UMA IDENTIDADE RIO-

GRANDENSE

As circunstâncias históricas levaram o Estado do Rio

Grande do Sul a inserir-se culturalmente ao conjunto

nacional? De um lado a existência do estigma da não

brasilidade e a necessidade de acessar ao poder central, e de

outro, o surgimento de novos segmentos sociais dominantes

e de diversa origem cultural, são as razões que

fundamentam a necessidade de uma atuação mais efetiva

no campo da afirmação da identidade regional?

São essas as indagações que nos fazem refletir de

forma análoga sobre a condição histórica do Rio Grande do

Sul. Nesse paradigma é fundamental a análise em torno da

historiografia rio-grandense, mais especificadamente sobre a

81 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS, 1992. p. 20.

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influência da Revista Província de São Pedro e da

representatividade que Moysés Vellinho possuiu nesse

contexto na tentativa de construir um gaúcho rio-grandense

diferenciado do gaucho platino.

Ao analisar aspectos da historiografia rio-grandense,

vamos perceber como os intelectuais do estado irão

posicionar-se quanto ao lugar do gaúcho no cenário rio-

grandense. Espaço esse que emerge uma discussão acirrada

acerca de sua origem. Afinal, o gaúcho seria rio-grandense

ou platino?

Partindo desses pressupostos Ieda Gutfreind, irá

desenvolver uma análise significativa sobre a designação do

que é o gaúcho para os mais influentes historiadores e

intelectuais do Rio Grande do Sul no contexto do conflito da

matriz lusitana com a matriz platina. Para um melhor

entendimento sobre sua análise, destacamos o seguinte

quadro:

De acordo Gutfreind82 (1992):

ALFREDO

VARELLA

Pampa uma unidade. Gaúcho

uruguaio, argentino e rio-grandense

com semelhanças.

JOÃO PINTO

DA SILVA

Gaúcho rio-grandense distinto do

gaúcho platino, embora exista identidade

do meio físico e moral. Diferenças

raciais. Gaúcho platino “gaucho malo”.

Não houve caudilhismo.

82 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992.p. 12-13.

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RUBENS DE

BARCELLOS

Os hábitos e os costumes dos campeiros

do Rio Grande do Sul em nada se

distinguem dos usos e práticas dos

gaúchos orientais.

AURÉLIO

PORTO

Filho sedentário do pampa

SOUZA DOCCA

Gaúcho brasileiro é diferente do gaucho

platino. Semelhanças existentes vieram

do indígena charrua e minuano. Gaúcho

rio-grandense – mestiçagem com

indígena foi pequena.

OTHELO ROSA

Gaúcho rio-grandense diferente do

gaucho platino, desde a tessitura étnica,

não era nômade, tinha senso de ordem,

disciplina, capacidade de sacrifício,

inexistia conflito campo e cidade.

MOYSÉS

VELLINHO

Gaúcho rio-grandense era diferente do

gaucho platino. Pouca mescla com o

indígena. Gaúcho rio-grandense era

descendente da massa dos pioneiros de

Laguna e dos bandeirantes.

MANOELITO

DE ORNELLAS

O autor parte do pampa que engloba o

Brasil, parte do Rio Grande do Sul,

Argentina e Uruguai. Não nega influência

árabe espanhola nos trabalhos e

costumes do gaúcho rio-grandense, mas

não aceita ser integrado entre os povos

castelhanos.

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Com isso percebemos as diferentes imagens

defendidas pelos historiadores citados. Porém, iremos notar

que a maior influência será o discurso da matriz lusitana

defendido forma enfática e eficaz por Moysés Vellinho.

Segundo Gutfreind83 (1991) a atuação e a produção

historiográfica de Moysés Vellinho dirá que elas se

aprofundam na história sul rio-grandense a partir de 1920.

Essa conjuntura histórica é fundamental para o

entendimento do lançamento e êxito de uma historiografia

centrada na idéia de nacionalidade. A história está tão

próxima dos desígnos políticos que se torna seu apêndice. É

nessa época que se agrega aos vocábulos “gaúcho” e “Rio

Grande” o vocábulo “brasileiro”.

No entanto, decore dessas duas matrizes (platina e

lusa), uma série de divergências, totais ou parciais, em

torno da identidade cultural do gaúcho rio-grandense,

diferenciando-o do uruguaio e do argentino. Segundo Ieda

Gutfreind84 (1991) são essas tendências se constituem em

momentos importantes, pois criam e destroem

representações acerca da história do Rio Grande do Sul.

Um outro fator que já fora mencionado, que merece

ser retomado é sobre a influência positivista. Isso recai

sobre a atuação do IHGRS (Instituto Histórico e Geográfico

do Rio Grande do Sul) na década de 1920. Ieda Gutfreind85,

por sua vez, insiste em afirmar que a influência do

83 GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História.1991.p. 04. 84 Idem. p. 01. 85 Idem p. 06.

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positivismo comtiano foi flagrante entre os membros do

IHGRS, porém, a caracterização mais correta que se pode

dar à produção historiográfica de seus membros é a do

ecletismo teórico, sem significativa discriminação filosófica.

Assim, muitos historiadores tentaram um modelo de prática

histórica inspirada na doutrina comtiana. Onde o modelo de

preservar e conservar manifestava-se com clareza. E é sob

este signo que irá emergir o movimento tradicionalista.

Com isso, podemos constatar que as matrizes

referidas anteriormente apresentaram polêmicas entre si,

extrapolando o ambiente do Instituto e chegando ao grande

público. No entanto, apesar dessas diferenças, ambas

defenderam, no pós 1920, uma história político-ideológica

de alto teor nacionalista.

Nesse contexto, Ieda Gutfreind nos dirá que:

Moysés Vellinho foi um representante à altura desta ideologia (liberal e nacionalista) e o extremado nacionalismo que defendia lhe permitiu rechaçar as idéias de opção histórica do Rio Grande do Sul em tornar-se brasileiro, defendia por alguns intelectuais sulinos como, por exemplo, Manoelito de Ornellas e Othelo Rosa. Para Vellinho, eram as condições histórico-políticas que faziam o Rio Grande do Sul brasileiro, daí não ser uma opção, mas uma vocação histórica86. (GUTFREIND, 1991, p.11)

86 GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991. p. 11.

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Várias discussões emergiam dentro desse cenário. A

tese da lusitanidade parecia ganhar força expressiva no

discurso de Moysés Vellinho. Não seria, pois, o caso de

submeter a uma cuidadosa revisão o conceito de gaúcho

como expressão do tipo social rio-grandense, posto que o

‘gaúcho’ e o ‘rio-grandense’, são hoje designações

equivalentes.

Moysés Vellinho por sua vez genereralizava o termo gaúcho em seu sentido gentílico, considerando todo sul rio-grandense um gaúcho. Para ele, existia um gaúcho que, se necessário fosse, trocaria “o colarinho pelo lenço”, passando a empunhar a lança de combate em prol da luta que lhe desse justiça. Assim, diametralmente oposto a Barcellos, Vellinho não diferenciava o tipo social rio-grandense na zona da campanha.87 (GUTFREIND, 1992, p. 32-33)

Ao desenvolver uma análise da obra do influente

escritor Alcides Maya, Moysés Vellinho88 deixa claro que

gaúcho denominava, agora, o “homem representativo do

brasileiro que vivia na extremadura meridional do país” e

não o habitante da campanha, área extensa de produção

pecuária. Vellinho via o gaúcho da obra literária de Maya

como o tradicional, de capa e espada, daí o pessimismo do

autor, que se contradizia com a evolução rio-grandense,

vista em franco desenvolvimento.

87 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992.p. 12-13. 88 VELLINHO, Moysés. Alcides Maya: a expressão literária e o sentido sociológico de sua obra. In: Letras da Província. Apud. GUTFREUD, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991.

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Assim, segundo Gutfreind, para Vellinho:

O gaúcho tinha que ser brasileiro, daí porque, na sua evolução histórica, ele se transfigurara, desaparecendo o que possuía de ‘dispersivo’, de ‘circunstancial’, de ‘desintegrante’, vocábulos utilizados pelo autor para destacar a emergência de um novo, um outro gaúcho, resultante do ‘espírito de aventura dos pioneiros e do animo sereno e ordeiro do ilhéu açoriano’. (GUTFREIND, 1991, p.13)

A percepção que temos é que Vellinho insiste na

utilização do vocábulo gaúcho no sentido gentílico. No

entanto, deixou claro, no editorial da Revista Província de

São Pedro89 que reconhecia como gaúcho a figura da região

da campanha, o ‘nosso tipo tradicional’. Segundo ele

“dessangra em largas porções sua geografia humana à vista

do imemorial abandono em que viveu suas populações,

particularmente os que porvêm do ciclo heróico da ocupação

e das velhas pugnas da fronteira...”.90E ainda, desenvolve

uma crítica, nesse mesmo texto, à literatura ufanista que

mitologizava o gaúcho. Tudo isso por querer, segundo

89 Através dessa revista, de 1945 à 1957, Moysés Vellinho veiculou seu discurso ideológico. Cada editorial era uma tomada de posição e uma afirmação de luta. Vellinho colocou sua concepção de nacionalidade através do desenvolvimento regional e reafirmava a necessidade de guardar ‘do perigo de um tradicionalismo estreito e das pieguices do saudosismo’. In: GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 82-83. 90 VELLINHO, Moysés. Revista Província de São Pedro. Editorial nº 5. Porto Alegre: 1945.

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Gutfreind91 sobrepor o vocábulo gentílico ao tipo

representativo da zona da pecuária...

Já no editorial número XX da mesma Revista ele

destaca que “o famigerado caudilhismo rio-grandense não

passa de um fantasma” e longamente discorreu, refutando

as “alusões ora frontais ou capciosas do uso do termo

gaúcho sulino”92.

Para Vellinho, como para os outros historiadores, as

relações entre o Rio Grande do Sul e a área platina teriam

sido sempre relações de antagonismo e de oposição,

resultantes das lutas de dois Impérios, o espanhol e o

português, que disputavam áreas afins. 93

Outro aspecto que merece ser enfatizado na

construção da identidade rio-grandense, está ligado às

condições do momento em que passa o Brasil e o próprio Rio

Grande do Sul. Constituindo uma imagem de gaúcho,

tornando o gaúcho universal e unificando-o em uma só

identidade. Ieda Gutfreind94 irá dizer que isso reflete tanto

o interesse como as necessidades da classe dominante, onde

os demais membros do corpo social sul-rio-grandense

passaram a considerar também como seus tais interesses e

necessidades e o Rio Grande do Sul iniciava sua marcha em

91GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991.p. 20. 92 VELLINHO, Moysés. Revista Província de São Pedro. Editorial nº 20. Porto Alegre: s.d. 93GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense contemporânea e a tese da lusitanidade de Moysés Vellinho. Porto Alegre: Caderno do Curso em Pós-Graduação em História. 1991.p. 32. 94GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 36.

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direção à liderança nacional. Caracterizado pela revolução

de 193095.

Se há elementos similiares do tipo social do gaúcho

do Rio Grande do Sul com o gaucho platino e, considerando

todo o processo de rejeição por parte de alguns intelectuais,

cabe agora verificarmos como ocorrerá a construção do

discurso historiográfico lusitano.

Ieda Gutfreind nos diz que:

Aurélio Porto é posto como o lançador desta tendência historiográfica que se intensifica a partir dos anos 20. Souza Docca dá continuidade e desloca o discurso, tornando-o mais convincente. Othelo Rosa expande e aprofunda a matriz lusitana, cabendo a Moysés Vellinho seu aprimoramento lingüístico e literário.96 (GUTFREIND, 1992 p.37)

Desenvolvendo uma leitura da obra de Moysés

Vellinho, iremos perceber que o mesmo permanece centrado

no conceito de gaúcho e, sugere seu uso no sentido

gentílico: “não seria, pois, o caso de submeter a uma

cuidadosa revisão o conceito de gaúcho como expressão do

tipo social rio-grandense, posto que o ‘gaúcho’ e ‘rio-

grandense do sul’ são hoje distinções equivalentes”. Para

Moysés Vellinho o tipo tradicional, inerte dentro de seus

95 Destaca-se que Moysés Vellinho participou dos preparativos da revolução de 1930, estando muito próximo de seu grande articulador, Oswaldo Aranha. Após a vitória da revolução, seguiu para o rio de janeiro, porém retornou ao sul um ano depois. In: GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 80. 96 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 37.

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hábitos em desuso e de seu esplendor de lenda, esse, pouco

interessa à sociologia. Assim a impressão que ele nos dá é

que a imagem de gaúcho é reconstruída nesse contexto, sem

considerar o gaúcho histórico, primitivo habitante do

território. Ou seja, tais afirmações nos levam à hipótese de

que o gaúcho fora reinventado.

Ieda Gutfreind97 segue referendando essa idéia

apresentada, dizendo que para Vellinho o gaúcho tinha que

ser brasileiro, daí porque, na sua evolução histórica, ele se

transfigurara, desaparecendo o que possuía de ‘dispersivo’,

de ‘circunstancial’, de ‘desintegrante’, vocábulos utilizados

pelo autor para destacar a emergência de um novo, um

outro gaúcho.

Podemos considerar que ele fora, o critico literário, o

político e o historiador que funde-se numa só pessoa,

apregoou abertamente uma nova maneira de pensar e de

agir no Rio Grande do Sul, alardeando otimismo e a crença

nas capacidades e potencialidades do estado.

A principal argumentação em torno da idéia de

lusitanidade do gaúcho, afastando-se de vez com a matriz

platina está no fato de que:

Moysés Vellinho, seguindo a vertente historiográfica já percorrida por Souza Docca e Othelo Rosa e pela grande parcela de historiadores sulinos, identificava gaúchos distintos, peculiarizando o sul-riograndense. No entanto, nesse mesmo texto, demonstrou, em seu final, que o gaúcho do Rio Grande do

97 GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade,1992, p. 79.

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Sul e a área da campanha teriam passado por uma evolução. (...) Via esse gaúcho libertando-se de seus ‘caracteres primitivos’ acabando por absorver todos os rio-grandenses, quer aqueles que se identificassem com a terra por ‘filiação histórica’, quer por ‘aculturação’, ou ‘adesão afetiva’.98 (GUTFREIND, 1992, p.98).

Com isso, uma das afirmações segundo a leitura de

Ieda Gutfreind na obra de Moysés Vellinho, consiste em

destacar que do Rio Grande do Sul sempre foi um pedaço,

desde o berço, um pedaço do Brasil, o Brasil que cresceu de

si mesmo. Para ela, em relação à produção historiográfica,

Vellinho fora um ideólogo eficiente na construção da

identidade lusitana para o Rio Grande do Sul.

Assim, temos clareza de alguns aspectos que se

tornaram evidentes. O primeiro deles é que noção de

identidade configura-se a partir da noção de representação.

Contudo, verificamos como ocorre a representação do

gaúcho idealizado que, posteriormente verificaremos como

será exaltado constituindo o modelo do tradicionalista. Além

disso, é evidente a representação a partir da literatura como

elemento de romantização do gaúcho na consolidação de um

caráter de heroicidade. O positivismo também pode ser

agrupado a esses fatores que dão uma dimensão da

conservação de um valor passado. E por fim, a

representação a partir dos historiadores. Esse elemento nos

deixou claro a opção da criação de um modelo rio-grandense

do gaúcho em contraposição do modelo platino.

98 Idem p. 98.

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DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO

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A CONSTRUÇÃO DA

IDENTIDADE DO

TRADICIONALISTA

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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO TRADICIONALISTA

Se no século XIX houve o surgimento do tipo social

do gaúcho, já caracterizado através da imagem representada

por Jean Baptiste Debret e reconstruído através dos

discursos e narrativas dos viajantes europeus do período,

agora cabe-nos verificar como ocorre a construção da

identidade do tradicionalista. Porém, entendemos que esta

identidade somente emergirá devido a fatores apresentados

no capitulo anterior. São esses fatores que nos dão a

dimensão de como ocorre o deslocamento da identidade do

gaúcho histórico, para ocorrer a consolidação da identidade

do tradicionalista.

A identidade do tradicionalista está atrelada ao

surgimento de um movimento tradicionalista. É necessário

partir da idéia de que esse movimento será constituído no

meio urbano, justamente no transcurso de um processo de

urbanização, provocado pelo êxodo rural. No entanto o

caráter saudosista na tentativa de reviver o passado nos

parece ser a premissa inicial na constituição desse

movimento cultural.

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Porém, se analisarmos como ocorrerá a evolução

histórica do Movimento Tradicionalista no Rio Grande do

Sul, iremos perceber distintos momentos. A verificação

desses vários momentos nos possibilita entender

fundamentos de sua história e conseqüentemente o

transcurso de sua consolidação.

O marco de construção do movimento será o pós

Segunda Guerra Mundial. Segundo alguns ideólogos do

movimento tradicionalista, é a preocupação com agentes

externos, no sentido da imposição de elementos culturais e

padrões norte-americanos, é que, emerge esse movimento

no Rio Grande do Sul. Com vistas em valorizar e propor um

resgate das manifestações culturais produzidas no Rio

Grande do Sul, segundo a perspectiva dos tradicionalistas.

Entre o meio tradicionalista há alguns conceitos, que

merecem ser ressaltados por sua magnitude e por seu

universo ideológico tentativa de reviver o passado e

implantar uma cultura denominada gaúcha e tradicional.

Assim o conjunto de idéias, usos, memórias, recordações e

símbolos conservados pelos tempos e pelas gerações.

Se a tradição representa a memória cultural de um

povo, e sua funcionalidade é transmitir os valores passados,

cabe-nos questionar que valores essa tradição denominada

gaúcha visa reviver. Até que ponto reviver um passado

impondo caráter de heroicidade, moldando uma nova

identidade ao habitante do território e recriando seu

significado é válido?

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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Antes mesmo do processo de constituição do

Movimento Tradicionalista, Augusto Meyer, em artigo no

Correio do Povo de 2 de junho de 1927 assim manifestou-

se:

Tradição é desejo de claridade. Chega um momento na vida em que o homem, ante as flutuações do seu espírito, quer chegar a uma "estrada real" no meio dos mil "sendeiros" que abrem aos seus olhos cobiçosos o fascínio da aventura. A Tradição é justamente essa força que nunca admite as imposições individuais. Ela obriga à humildade, como tudo o que está acima e além do homem. Quando muito, a Tradição quer ser adivinhada em suas formas e penetrada com a inteligência. E a inteligência, nesse caso, é o amor pela terra. O qual, nem procura justificar-se. Mas procura ser, afirmando.99 (MEYER, 1927).

Barbosa Lessa100 (1983), em seu trabalho Caráter

Cíclico do Tradicionalismo, referindo-se a tradição exalta-a

dizendo ser ela um culto que se renova. Assim, podemos

afirmar ser a linguagem o veículo de transmissão da

tradição, sendo ela o elemento fundamental de qualquer

sociedade, de qualquer povo.

Entre os ideólogos que ressignificam a identidade do

gaúcho, agora com molde tradicionalista, temos a figura de

Glaucus Saraiva como um dos expoentes. Este, junto com

Paixão Cortes e Barbosa Lessa, irá constituir o fundamento

99 MEYER, Augusto. O que é tradição. Jornal Correio do Povo. 1927. 100 LESSA, Barbosa. Caráter Cíclico do Tradicionalismo. Porto Alegre: Cadernos do IGTF, 1983.

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geral e a linha de constituição do movimento. Sobre o

conceito de tradição, Saraiva101, em uma obra intitulada

Manual do Tradicionalista, no dirá que tradição é o todo que

reúne em seu bojo a história política, cultural, social e

demais ciências e artes nativas, que nos caracterizam e

definem como região e povo. Não é o passado, fixação e

psicose dos saudosistas. É o presente como fruto sazonado

de sementes escolhidas. É o futuro, como árvore frondosa

que seguirá dando frutos e sombra amiga às gerações do

porvir.

Afora a designação “Manual”102, visando nos moldes

positivistas exercem influências sobre o que é certo e o que é

errado, condicionando os tradicionalista a exercerem a

aceitação, o equívoco está justamente em elencar como

aspectos tradicionais apenas determinadas estruturas da

sociedade rio-grandense e rejeitando a totalidade das

relações provindas da história do Rio Grande do Sul.

Que elemento cultural o tradicionalista visa

construir? Como iniciará e se consolidará esse processo?

Qual o valor e o sentido desse movimento? Com que

princípio emergirá essa manifestação cultural? Afinal,

haverá a representação e a conseqüente apropriação da

identidade do gaúcho pelo tradicionalista? Certamente,

essas questões nos levam a refletir a funcionalidade e a

estrutura desse movimento tanto no seu aspecto histórico

101 SARAIVA, Glaucus. Manual do tradicionalista. Porto Alegre: Martins Livreiro, s.d. 102 Em relação a esse aspecto, Paixão Cortes e Barbosa Lessa lançaram o Manual das danças gaúchas, estabelecendo quais eram as danças rio-grandenses, suas coreografias, partituras, etc. Condicionando todas as entidades filiadas ao Movimento Tradicionalista Gaúcho, seguirem esse padrão como sendo o histórico, tradicional e correto.

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quanto no seu modelo de ressignificação de uma identidade

cultural.

PROCESSO HISTÓRICO NA FORMAÇÃO DO MOVIMENTO

TRADICIONALISTA GAÚCHO

Os primeiros momentos, na tentativa de construção

de um movimento tradicionalista iniciam no final do século

XIX e na primeira metade do século XX. Essa fase

embrionária que vai da fundação do Grêmio Gaúcho de

Porto Alegre (1898) ao Clube Farroupilha de Ijuí (1943), já

destacada anteriormente, possui conotações um pouco

diferente daquelas levantadas pelos tradicionalistas após a

Segunda Guerra Mundial.

Com isso no ano de 1947 ocorre o início desse

movimento através de jovens oriundos do interior do estado

do Rio Grande do Sul, agora radicados em Porto Alegre,

representantes do Grêmio Estudantil do Colégio Júlio de

Castilhos:

A partir de 1947, com a criação do Departamento de Tradições Gaúchas do Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos de Porto Alegre, o tradicionalismo passou a organizar-se. O galpão chegou a cidade, com a fundação em 1948, do primeiro Centro de Tradições Gaúchas – o 35 CTG. Apesar da resistência urbana, os usos e costumes campeiros autênticos, alicerçados em suas pilchas e cantigas sem requintes e corporificados na habilidade de seus peões, foram chegando. Era o inicio de uma jornada espontânea (...) o tradicionalismo nasceu com a criação de uma consciência regional e sacramentou-se no surgimento dos Centro de Tradições Gaúchas

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(...) Era a busca para uma cultura própria.103 (LAMBERTY, 1996, p. 9)

A idéia expressa na obra de Lamberty nos deixa claro

as razões que levaram o surgimento do movimento

tradicionalista. A ambivalência entre campo e cidade estaria

suprida revivendo na cidade, por meio dos Centros de

Tradições Gaúchas, a vida do campo. Porém, ao identificar

que o tradicionalismo nasce de uma consciência regional, há

indícios da ocorrência de um grande equivoco: a instituição

dos moldes da região da campanha como sendo os únicos

aceitáveis por esse movimento. Ou seja, outras regiões do

estado, outras manifestações culturais e outros tipos

constituintes de identidades, ao menos a priori, nos indicam

que são esquecidas ou não cultuadas dentro do propósito

tradicionalista. Sendo assim, somente o gaúcho da região da

campanha o elemento predominante desse movimento.

A constituição do movimento tradicionalista no Rio

Grande do Sul, até se constituir em movimento organizado

perpassa por distintos momentos. Em 24 de abril de 1948,

marca o início da trajetória histórica do tradicionalismo

organizado, ocasião em que um grupo de jovens, com

espírito cívico aguçado, fundou o “35 Centro de Tradições

Gaúchas”, em Porto Alegre, motivando a proliferação de

inúmeros outros núcleos de preservação da tradição

gaúcha; 1º a 4 de julho de 1954, é arregimentado a partir do

1º Congresso Tradicionalista, em Santa Maria, onde

aconteceu a reflexão sobre a importância do tradicionalismo,

com a aprovação da tese “O Sentido e o Valor do

Tradicionalismo” de Luiz Carlos Barbosa Lessa; 17 a 20 de

103 LAMBERTY, Salvador F. ABC do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1996. 5ªed.

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dezembro de1959, é institucionalizado em Cachoeira do Sul

com a criação do Conselho Coordenador, durante o VI

Congresso Tradicionalista, bem como João Cezimbra

Jacques foi escolhido Patrono do Tradicionalismo; 28 de

outubro de 1966, em Tramandaí, por ocasião do XII

Congresso tradicionalista, foi oficialmente criado o

Movimento Tradicionalista Gaúcho como entidade federativa

e com personalidade jurídica. Nesta mesma data, foi

adotado o “Brasão de Armas do Tradicionalismo”, que

constitui-se atualmente na logomarca do Movimento

Tradicionalista Gaúcho104.

Cyro Dutra Ferreira em seu livro 35 CTG: o

pioneiro105 nos diz que no fim da Segunda Guerra Mundial,

o mundo ocidental, encontra-se com grande influência

exercida pela posição dos Estados Unidos. Tornou-se,

assim, o principal centro de irradiação da moda, da cultura

e as elites urbanas, principalmente os jovens, começaram a

imitar o americano "way of life". Com rapidez, a juventude

voltava as costas para as suas raízes culturais, e os

intelectuais rio-grandenses demonstravam sua insatisfação

com aquele estado de coisas, e tinham a consciência de que

as pressões do modismo americano sufocava a cultura local,

o Rio Grande, de resto, o mundo todo.

Nesse contexto, o Brasil que estava saindo da

ditadura de Getúlio Vargas, nos indica da necessidade da

afirmação de uma identidade regional. Segundo Ferreira,

104 Disponível em http://www.mtg.org.br/historia.html. 105 FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG: o pioneiro. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1992, 111 p.

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perdia-se o sentimento de culto às tradições; nossas raízes

estavam ao esquecimento, adormecidas, reflexo da proibição

de demonstrações de amor ao regional. Bandeiras e Hinos

dos estados foram, simbolicamente, queimados em

cerimônia no Rio de Janeiro e, diante de tudo isso, os

gaúchos estavam acomodados àquela situação, apáticos,

sem iniciativa.

Outro aspecto muito exaltado por meio dos

tradicionalistas é justamente em relação a aqueles que

constituíram os primeiros passos do movimento. Ferreira106

nos deixa exposto que em agosto de 1947, em Porto Alegre,

eclodiu forte uma proposta de esperança, onde a liberdade e

o amor à terra tinha vez e lugar. Jovens estudantes,

oriundos no meio rural, de todas as classes sociais,

liderados por Paixão Cortes, criam um Departamento de

Tradições Gaúchas no Colégio Júlio de Castilhos, com a

finalidade de preservar as tradições gaúchas, mas também

desenvolver e proporcionar uma revitalização da cultura rio-

grandense, interligando-se e valorizando-a no contexto da

cultura brasileira. Dentro deste espírito é que surge a Ronda

Crioula107, estendendo-se do dia 7 ao dia 20 de setembro, as

106 FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG: o pioneiro. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1992, p. 58.

107 Como haviam decidido, no dia 7 de setembro, à meia noite, antes de extinto o "Fogo Simbólico da Pátria", Paixão Cortes, na companhia de Fernando Machado Vieira e Cyro Dutra Ferreira, retirou a hoje cinqüentenária "Chama Crioula", que ardeu em um candeeiro crioulo até a meia noite do dia 20 de setembro, quando foi extinta no Teresópolis Tênis Clube, onde se realizava o primeiro Baile Gaúcho, por eles organizado. Durante a Ronda Crioula, os jovens pioneiros realizaram intervenções em programas da Rádio Farroupilha, entraram em contato com o escritor Manoelito de Ornelas, o qual noticiou os acontecimentos da Ronda pelo Jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Com a Ronda, outros jovens companheiros foram se agregando às comemorações: Barbosa Lessa,

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datas mais significativas para os gaúchos. Coroando assim

os propósitos do positivismo quanto a exaltação cívica de

datas.

Entusiasmados com a idéia procuraram a Liga de

Defesa Nacional, e contataram o então Major Darcy Vignolli,

responsável pela organização das festividades da "Semana

da Pátria". Assim, lhe expressaram o desejo do grupo de se

associarem aos festejos, propondo a possibilidade de ser

retirada uma centelha do "Fogo Simbólico da Pátria" para

transformá-la em "Chama Crioula", como símbolo da união

indissolúvel entre Rio Grande do Sul e Brasil e simbolizar o

20 de setembro na mesma magnitude de 7 de setembro.

Nessa oportunidade, Paixão Cortes recebeu o convite

para montar uma guarda de gaúchos pilchados em honra ao

“herói” farrapo. David Canabarro, que seria transladado de

Santana do Livramento para Porto Alegre. Paixão Cortes,

para atender o honroso convite, reuniu um piquete de oito

gaúchos bem pilchados e, no dia 5 de setembro de 1947,

prestaram a homenagem a Canabarro. Esse piquete é hoje

conhecido como o Grupo dos Oito, ou Piquete da Tradição.

Primeira semente que seria semeada no ano seguinte, na

criação do "35" CTG.

Antonio João de Sá Siqueira, Fernando Machado

Vieira, João Machado Vieira, Cilso Araújo Campos, Ciro

Dias da Costa, Orlando Jorge Degrazzia, Cyro Dutra Ferreira

Wilmar Santana, Glaucus Saraiva, Flávio Krebs, Ivo Sanguinetti e outros tantos. Após o sucesso da Ronda, mas principalmente pela decisão tomada em manterem-se unidos para matear e prosear, o que se realizava na casa de Paixão Cortes.

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e João Carlos Paixão Cortes, seu líder. Durante o cortejo, o

"Grupo dos Oito", os jovens estudantes, conduziam as

bandeiras do Brasil, do Rio Grande e do Colégio Júlio de

Castilhos.

Figura 15 – Fotografia do Grupo dos oito cavalarianos

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Figuras 16 e 17 – Fotografia dos jovens integrantes da Ronda Crioula no culto ás tradições do Rio Grande do Sul

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Partindo do relato apresentado e das imagens

expostas percebemos a forma que o movimento

tradicionalista inicia sua organização. As figura 15, 16 e

17108 fazem referência a este importante momento histórico

na construção do tradicionalista. Observamos que estas

imagens, agora representadas pela fotografia, que visam

demonstrar o tradicionalista, diferem-se em muitos aspectos

da imagem pintada por Debret no século XIX, que visava

representar o gaúcho habitante da Província. Assim, essas

imagens nos dão a dimensão de como ocorre a construção

de uma identidade com moldes e características um tanto

diferenciadas do gaúcho histórico.

Talvez isso ocorra porque a noção de tradição é

semelhante, mas não exatamente idêntica à idéia de

continuidade. Demonstrando assim que a análise da

tradição possibilita que se entenda melhor a inovação

cultural. Ou seja, o tradicionalista reinventa o gaúcho.

Segundo Olivem109, os fundadores desse movimento

eram jovens vindos do interior, descendentes de pequenos

proprietários rurais, ou de estancieiros em processo de

descenso social. E torna-se categórico ao afirmar que seu

objetivo é preservar a identidade cultural do estado

ameaçada pela introdução de novos valores, usos e

costumes da modernização.110

108 Fotografias disponíveis em folder comemorativo aos 50 Anos da ronda Crioula – Movimento Tradicionalista Gaúcho/RS. 109 OLIVEN, Rubens George . A criação do Gaúcho. In: Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Cortez,1984, p.57. 110 Idem. p.59.

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Em outro artigo “Em busca do tempo perdido”,111

Olivem reafirma a idéia já exposta destacando que em 1948

surgiu em Porto Alegre o 35 CTG, primeiro centro de

tradições gaúchas, cujo nome evocava a Revolução

Farroupilha deflagrada em 1835. Fundado principalmente

por estudantes secundários oriundos das áreas pastoris,

onde se praticava a pecuária em grandes latifúndios, ele

serviu de modelo a centenas de centros semelhantes, que se

espalharam pelo Rio Grande do Sul e por outros estados.

Assim, edificação desse movimento construtor de

uma identidade cultural ao gaúcho está consolidado. Porém,

as linhas que visam afirmar essa identidade serão

verificadas ao destacar quais as razões que o mesmo se

fundamenta e, por conseguinte, qual a sua valoração como

expoente de uma cultura e criador de uma nova identidade

tradicional.

O SENTIDO E O VALOR DO TRADICIONALISMO

Constituída a idéia de um determinado culto a

tradição, vamos verificar se de fato corre a apropriação da

identidade do gaúcho histórico pelo tradicionalista. Para

isso, é interessante verificarmos o que é este movimento

tradicionalista no que se refere a sua constituição cultural.

111OLIVEN. Rubens George. Em busca do tempo perdido. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_15/rbcs15_03.html

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De acordo os pressupostos do Movimento

Tradicionalista Gaúcho, podemos definir o tradicionalismo

como um estado de consciência, que busca preservar as

boas coisas do passado, sem conflitar com o progresso,

através do cultuar, vivenciar e preservar o patrimônio sócio-

cultural do povo gaúcho. É a sociedade que defende,

preserva, cultua e divulga a tradição gaúcha, que congrega

defensores dos costumes, dos hábitos, da cultura, dos

valores do gaúcho. O tradicionalismo tem uma filosofia de

atuação, tem objetivos expressos nas teses “O sentido e o

valor do tradicionalismo” de Luiz Carlos Barbosa Lessa e na

“Carta de Princípios” de Glaucus Saraiva. Além disso, o

tradicionalismo é um movimento planificado e

regulamentado, com uma administração decentralizada,

através das Regiões Tradicionalistas, que coordenam os

pólos sociais e culturais, que são as entidades

tradicionalistas, conhecidas como Centro de Tradições

Gaúchas e entidades a fins filiadas ao MTG. Toda esta

estrutura organizacional é administrativa, é orientada e

coordenada pelo MTG, através do Conselho Diretor e

Coordenadorias Regionais.

Por ser uma sociedade, depende da atuação de cada

tradicionalista., que é o grande soldado, o maior e

imprescindível responsável pelo cultuar e divulgar a

tradição, ou seja, a gama patrimonial gaúcha. O

tradicionalista é um “homo sapiens”, ou seja, é o ser que

sabe que sabe, é o ser que está no mundo com ciência, com

sabedoria, dotado de inteligência, é um ser pensante e

eminentemente social.112

112 Disponível em: http:// www.mtg.org.br.

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Com o movimento da Ronda Crioula e com a

fundação do 35 Centro de Tradições Gaúchas, o

tradicionalismo ganha suas primeiras formas. A defesa de

um gaúcho lusitano contrapondo a matriz platina é um dos

principais discursos da historiografia rio-grandense, como já

verificamos. Então se há a aceitação de um gaúcho rio-

grandense até tornar-se expressão gentílica e se há a

construção de um movimento cultural que visa construir

uma identidade regional, o que nos resta é examinarmos

qual linha filosófica e sociológica que esse movimento irá

trilhar.

Ao reunirem-se anualmente em congressos, os

tradicionalistas irão criar as principais diretrizes do

movimento. Porém, é no primeiro Congresso realizado em

1954 na cidade de Santa Maria, que um dos mais

respeitados ideólogos do movimento irá defender de forma

inusitada qual o sentido e qual o valor do Tradicionalismo.

Essa importante tese defendida por Barbosa Lessa,

vem representar o ideal tradicionalista na construção de

uma cultura gaúcha de valorização do passado. Logo nas

primeiras linhas desse texto ele fará uma defesa excepcional

do por que um movimento.

Na vida humana, a sociedade - mais que o indivíduo - constitui a principal força na luta pela existência. Mas, para que o grupo social funcione como unidade, é necessário que os indivíduos que o compõem possuam modos de agir e de pensar coletivamente. Isto é conseguido através da "herança social" ou da "cultura". Graças à cultura comum, os membros de uma sociedade possuem a

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unidade psicológica que lhes permite viverem em conjunto, com um mínimo de confusão. A cultura, assim, tem por finalidade adaptar o indivíduo não só ao seu ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade. Toda a cultura inclui uma série de técnicas que ensinam ao indivíduo, desde a infância, a maneira como comportar-se na vida grupal. E graças à Tradição, essa cultura se transmite de uma geração a outra, capacitando sempre os novos indivíduos a uma pronta integração na vida em sociedade113. (LESSA, 1954)

A idéia de Barbosa Lessa, na perpetuação da cultura é

um marco interessante na concepção do movimento

tradicionalista. Com isso, nos parece que os indivíduos

somente adeptos a esse movimento, que nesse contexto

surge, são dotados de cultura. O fica evidente que, segundo

seu discurso, a integração da vida em sociedade perpassa

pela cultura. Mas nesse caso, uma cultura denominada

gaúcha, tradição referendada por um culto saudosista de

exaltação do passado.

Além disso, ele justificará que analisando tais

circunstâncias, mestres da moderna Sociologia chegaram à

conclusão de que problemas sociais cruciantes da

atualidade são causados, ou incentivados, pelo relaxamento

do controle dos costumes e noções tradicionais de cada

cultura114. Ou seja, para Barbosa Lessa, a solução para os

problemas da sociedade na década de 1950, perpassava

diretamente a necessidade da retomada dos valores

113 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Disponível em http://www.mtg.org.br. 114 Idem.

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tradicionais. Certamente a influência de uma formação e de

uma sociedade positivista que o Rio Grande do Sul vivera

por décadas estava presente no seu discurso.

Quais seriam os elementos atrativos do

tradicionalismo? Porque a esse movimento ocorre adesão de

milhões de pessoas procurando identificar-se com uma

matriz de em passado tradicional em pleno transcurso da

sociedade moderna? Barbosa Lessa, ainda em 1954 irá dizer

que através da atividade artística, literária, recreativa ou

esportiva, que o caracteriza - sempre realçando os motivos

tradicionais do Rio Grande do Sul - o Tradicionalismo

procura, mais que tudo, reforçar o núcleo da cultura rio-

grandense, tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo

e sem apoio dentro do caos de nossa época115.

Além disso, ele segue comentando a importância da

constituição dos Centros de Tradições Gaúchas por

representarem o núcleo dessa apropriação. Para Lessa116,

através dos Centros de Tradições, o Tradicionalismo procura

entregar ao indivíduo uma agremiação com as mesmas

características do "grupo local" que ele perdeu ou teme

perder: o " pago". Mais que o seu "pago", o pago das

gerações que o precederam.

O que seria um Centro de Tradições Gaúchas? Que

tipo de função e responsabilidade social e cultural que uma

entidade como essa possui? Cada Centro de Tradições

Gaúchas, em si, é um novo "Grupo Local". E à medida que

surgem novos Centros, em todos os municípios do Rio

115 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Disponível em http://www.mtg.org.br. 116 Idem.

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Grande do Sul, vai o Tradicionalismo confundindo-se com o

Regionalismo, pois opera para que todos os indivíduos que

compõem a Região sintam os mesmos interesses, os

mesmos afetos, e desta forma reintegrem a unidade

psicológica da sociedade regional. E com isso o

Tradicionalismo pode se transformar na maior força política

do Rio Grande do Sul. Para evitar confusão de "política" com

"política partidária", expressemo-nos assim: O

Tradicionalismo pode constituir-se na maior força a auxiliar

o Estado na resolução dos problemas cruciais da

coletividade117.

Outro aspecto que torna-se importante verificar,

refere-se a identidade criada a partir desse movimento. No

entanto, a identidade originada é uma identidade regional,

cujos indicativos de tradicionalidade estão presentes de

maneira simbólica e rituais. Assim, para justificar o sentido

do tradicionalismo, Barbosa Lessa define que.

O Tradicionalismo consiste numa EXPERIÊNCIA do povo rio-grandense, no sentido de auxiliar as forças que pugnam pelo melhor funcionamento da engrenagem da sociedade. Como toda experiência social, não proporciona efeitos imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é que virá dizer do acerto ou não desta campanha cultural. De qualquer forma, as gerações do futuro é que poderão indicar, com intensidade, os efeitos desta nossa - por enquanto - pálida experiência. E ao dizermos isso, estamos acentuando o erro daqueles que acreditam ser o Tradicionalismo uma tentativa estéril de "retorno ao passado". A

117 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Disponível em http://www.mtg.org.br.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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realidade é justamente o oposto: o Tradicionalismo constrói para o futuro.(LESSA, 1954)

Outro ponto que Barbosa Lessa ressalta está exposto

no fato de que o tradicionalismo é um movimento, cuja ação

ocorre dentro da psicologia coletiva e seu elemento

dinamizador realiza-se por intermédio dos Centros de

Tradições Gaúchas, agremiações de cunho popular que têm

por fim estudar, divulgar e fazer com que o povo “viva” as

tradições rio-grandenses. Perceberemos então, que segundo

sua idéia, o tradicionalismo deve ser um movimento

nitidamente popular, não simplesmente intelectual.

Além desses importantes fundamentos, que nos

oportunizam uma dimensão desse tradicionalista, está no

fato de pensarmos a simbologia desse movimento. Depois de

explicitado que tipo de reviver os tradicionalistas impõe à

sociedade, há outro aspecto que merece ser destacado. Esse

aspecto está ligado à construção da simbologia e

conseqüentemente a ligação da simbologia do gaúcho com o

estado do Rio Grande do Sul. É justamente nesse período

que será planejada e edificada a estátua do laçador.

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Essa estátua118, além de

ser um dos símbolos de Porto

Alegre, representa um rio-

grandense vestindo roupas

tradicionais. Essa indumentária

retrata as vestes do gaúcho

histórico, habitante do Rio

Grande do Sul, em outro período

histórico. Medindo 4,45m de

altura, todo em bronze, o Laçador

foi inaugurado no dia 20 de

setembro de 1958. O responsável

pelo seu projeto e execução foi o

escultor Antonio Caringi.

No entanto, é pertinente

refletir sobre essa obra e sobre seu

momento de inauguração. Caringi

adota Paixão Cortês como o

modelo da obra. Este, que por sua vez, é um dos ideólogos

do Movimento Tradicionalista, precursor do movimento de

1947. Inaugurada em 1958, a Estátua dá uma dimensão

maior a representação da identidade do rio-grandense. Em

um primeiro instante, localizada próxima ao Aeroporto

Salgado Filho, ela representa de forma clara, que o

habitante do Rio Grande do Sul é o gaúcho. Sobreposta a

idéia do rio-grandense, com esse elemento simbólico,

Figura 18 Laç

legre-Estatura do ador

RS Porto A

118 Fotografia disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Est%C3%A1tua_do_La%C3%A7ador.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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percebemos então, como ocorre a afirmação da identidade

de um gaúcho vestindo botas e bombachas como o

habitante característico do estado. Porém, o que se fortalece

é a construção da identidade do tradicionalista, que através

dessa simbologia, recria sua imagem e adere simpatizantes.

A CARTA DE PRINCÍPIOS: MATRIZ DO MOVIMENTO

TRADICIONALISTA

No transcurso da história do tradicionalismo no Rio

Grande do Sul, percebemos a influência de vários momento

específicos. Até então, verificamos como ele se constitui

historicamente, que tipo de influência ele exerce e quais os

fundamentos que o norteiam. A tese do sentido e da

expressão do valor desse segmento tradicional, é retomada

em muitos pontos, quando que, por meio da tentativa de

desenvolver um movimento organizado, desenvolve-se

princípios que devam nortear as ações de todos os

tradicionalistas.

Essa carta, que como o próprio nome ressalta, está

expresso o sentido desse movimento de caráter tradicional, é

a representação dos ideais dos tradicionalistas. Escrita por

Glaucus Saraiva, considerado pelos tradicionalistas,

extremamente inteligente e com a mente de certa forma

avançada para a época, se sensibilizou e, por ser muito

reservado, fez de forma solitária um documento que, depois

de concluído, foi apresentado como sugestão a ser seguido

pelos tradicionalistas. Ela fora aprovada em 1961, e a partir

deste momento ela se institucionaliza como sendo uma lei a

ser cumprida pelas entidades e pelos tradicionalistas.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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As razões para seu surgimento, com forma de regular

as ações dos tradicionalistas, está expresso dentro da

perspectiva de que seus efeitos foram para nortear um rumo

a ser seguido, pois na época o que prevalecia eram as

contradições, onde cada CTG procurava inclinar-se para seu

lado, fazendo com que não existisse unanimidade.

Uma entidade tradicionalista pode ser descrita como

uma formação social na qual são definidas de maneira

específica as relações existentes entre os sujeitos sociais e

em que as dependências recíprocas que ligam os indivíduos

uns aos outros engendram códigos e comportamentos

originais119.

É importante ressaltar que entre seus aspectos

filosóficos, a Carta de Princípios do Movimento

Tradicionalista Gaúcho busca fundamentar as razões da

ação do movimento tradicionalista. Entre vários artigos

ressaltamos os seguintes, para uma noção clara do que os

tradicionalistas pretendem exaltar enquanto movimento

cultural.

Art. 5º- Criar barreiras aos fatores e idéias, que nos vêm pelos veículos normais de propaganda e que sejam diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e pendores naturais do nosso povo.(...) Art. 7º- Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da herança social e através de reações emocionais etc.; criar, em nossos grupos sociais uma unidade psicológica, com modos

119 ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Trad. por Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p 8.

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de agir e pensar coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio, para a reação em conjunto frente aos problemas comuns. (...) Art. 9º - Lutar pelos direitos humanos de liberdade, igualdade e humanidade. (...) Art. 10- Respeitar e fazer respeitar seus postulados iniciais, que têm como característica essencial absoluta independência de sectarismo político, religioso e racial. (...)Art. 18- Incentivar, todas formas de divulgação e propaganda, o uso sadio dos autênticos motivos regionais. (...)Art. 25- Pugnar pela independência psicológica e ideológica do nosso povo. 120(SARAIVA, 2007)

Com isso, aos poucos os tradicionalistas foram

aceitando-a e começaram a perceber que ela só ajudaria o

movimento a crescer e que seu objetivo não era obrigar e

sim orientar dentro de seu caráter doutrinador. Ou seja,

estabelecer quais são os vínculos e as verdades que o

movimento deveria seguir.

Hoje, essa carta integra o Regulamento do Estatuto

do MTG e é a primeira diretriz aprovada no tradicionalismo.

Porém, continua sendo de conhecimento restrito dentro do

movimento, tendo este prospecto sofrido sensíveis alterações

nos últimos anos, devido a importância dada pelo

Movimento Tradicionalista Gaúcho.

Segundo Paixão Cortes, a Carta de Princípios do

Tradicionalismo é resultado de um momento de inspiração e

120 SARAIVA, Galucus. Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Disponível em http://www.mtg.org.br.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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qualquer modificação no seu conteúdo, seria destruir seu

valor, como símbolo já aceitos a longos anos. É válida ainda

hoje, a preocupação é viável a sua implantação no seio

Tradicionalista.121

Além da função doutrinadora expressa na carta de

princípios, o Movimento Tradicionalista Gaúcho se regula

através de um código de ética. Averiguar a importância e o

significado desse instrumento também é importante, na

tentativa de definir uma identidade ao tradicionalista.

Porém o que percebemos é que há a tentativa de

constituir uma identidade ao tradicionalista. No entanto, os

métodos para que esse padrão identitário seja constituído

perpassa pelo viés da doutrinação da Carta de Princípios.

Segundo Cuche, a identidade cultural aparece como uma

modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada

na diferença cultural... Não há uma identidade em si, nem

mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em

relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteridade são

ligadas e estão em relação dialética. A identificação

acompanha a diferenciação. Ainda afirma, que são os

próprios membros de um grupo que atribuem uma

significação a sua vinculação, em função da situação

relacional em que se encontram.122 Dessa forma,

percebemos como se constitui, ao menos em parte, a

identidade do tradicionalista.

121 CORTES, Paixão, Tradicionalismo gauchesco: nascer, causas & momentos. Caxias do Sul: Lorigraf 1995, p. 110 122 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru:EDUSC, 1999, p. 183.

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Em seu artigo terceiro, o Código de Ética

Tradicionalista, que se constitui-se num regramento

orientador da conduta social dos tradicionalistas, deixa

claro a idéia de que o tradicionalista prima pela observância

de postura compatível com os princípios da dignidade,

urbanidade, sociabilidade e moralidade, aplicando-se para

sua observância, subsidiariamente, as diretrizes esculpidas

no Estatuto e Regulamentos do Movimento Tradicionalista

Gaúcho.123

Além disso, expressa-se em relação aos deveres dos

tradicionalista. No capitulo III, artigo quarto, ele ressalta:

Art. 4º. - São deveres dos Tradicionalistas: I - observar e fazer observar a Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho; II - cumprir e fazer cumprir o Estatuto, o Regulamento e demais regramentos existentes ou que venham a ser instituído; III - preservar, em sua conduta social, a honra, a nobreza, a dignidade, a retidão de caráter, próprias aos cidadãos conscientes das suas obrigações; IV - zelar e velar pela reputação pessoal e da sua condição de tradicionalista; V - primar pelo decoro, lealdade e boa-fé, quer no meio tradicionalista, quer no âmbito da sociedade; VI - zelar pelo bom nome do Movimento Tradicionalista Gaúcho; VII - desempenhar com honestidade, dedicação e isenção os cargos a que for guindado nas entidades filiadas, em comissões temporárias e/ou órgãos do Movimento Tradicionalista Gaúcho; VIII - não se valer da causa tradicionalista para promoção pessoal, em detrimento dos

123 Código de Ética Tradicionalista: disponível em http://www.mtg.org.br/etica.doc.

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princípios orientadores do tradicionalismo; IX - defender, valorizar e promover a tradição gaúcha.124

Assim, há a notoridade do Movimento Tradicionalista

no Rio Grande do Sul. Através de um rígido controle na

manifestação cultural, o que pareceu claro é uma

determinada imposição daquilo que é certo e errado. Ou

seja, através de elementos de seleção cultural, os

tradicionalistas, são obrigados a seguir determinadas

regras. Esse elemento de normatização da cultura,

expressa-se devido ao alto teor saudosista que o movimento

se constitui.

Um aspecto, que deve-se deixar explicito, diz respeito

a importante função social que o Movimento Tradicionalista

possui na atual conjuntura social. Porém, a problemática

maior está inserida dentro de um contexto histórico alterado

pelos ideais tradicionalista. A ressignificação de um passado

histórico, dando caráter de heroicidade aos habitantes do

território, enaltecer somente os elementos culturais da

região da campanha do Rio Grande do Sul, são alguns

aspectos que merecem uma reflexão amplificada em relação

a esse movimento cultural.

124 Idem.

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CONCLUSÃO

Nessa pesquisa partimos da premissa em investigar

se ocorre na prática, através de um movimento, a

apropriação de identidade do gaúcho do século XIX pelo

tradicionalista do século XX. Com isso, verificamos vários

pontos específicos de caráter histórico, sociológico e

antropológico quanto a constituição ou não dessa

identidade. Vários pressupostos foram ressaltados e vários

paradigmas trazidos com a finalidade de compreensão da

magnitude e do significado cultural que o movimento

tradicionalista possui na sociedade atual. No entanto,

pensar os elementos culturais revividos pelos

tradicionalistas, com base nas condições históricas dos

habitantes do Rio Grande do Sul tornou-se algo instigador e

desafiador.

A importância da cultura no conjunto das relações

sociais entre os sujeitos constituintes dessa sociedade

apresenta-se de forma amplificada. Tal aspecto vem ao

encontro de um fenômeno mais amplo, caracterizado por

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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uma ordem global através dos ditames impostos pela

globalização. No entanto, quando as fronteiras são rompidas

culturalmente, quando há a ineficácia e a conseqüente

desconstrução da concepção estado-nação, o conceito de

nacionalismo entra em crise e na mesma proporcionalidade

o conceito de tradição. Assim, buscar construir uma

identidade tradicional em pleno contexto de uma

modernidade tardia ou pós-modernidade, como alguns se

arriscam a teorizar, é algo que vem à contramão da lógica

impregnada pela “mundialização da cultura”.

Se o caráter histórico do gaúcho é reconstituído em

outra sociedade, em outra época e em outro contexto, é

porque percebemos que houve em um determinado

momento histórico, a necessidade da criação de uma

identidade regional. O mito desse gaúcho histórico,

caudilho, aguerrido, defensor do território, dotado de

honrarias, perpetua no imaginário rio-grandense. No

entanto, o tradicionalista busca espelhar-se nos conflitos

travados no território para constituir um dos pressupostos

justificativos da sua cultura. Com isso, há a presença

notória do sentido heróico com uma determinada projeção

às gerações mais jovens de tradicionalistas. Para assim, o

movimento aderir cada vez mais sujeitos e garantir sua

vitalidade.

Porém, no Rio Grande do Sul, percebemos que há

uma forte influência daqueles que buscam exaltar o

passado. Dentro de uma esfera global, o sentido tradicional

entra em decadência. Esse conflito gera um determinado

mal-estar até mesmo aos grupos tradicionais. Isso ocorre

porque o Movimento Tradicionalista Gaúcho, através de sua

doutrina impõe um controle rigoroso determinando que

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112200

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elementos culturais do passado o tradicionalista deve aderir.

Porém, nesse contexto de globalização, onde a influência de

outras culturas são percebidas, sentidas e vivenciadas de

forma expressiva, nos parece que o tradicionalismo cada vez

mais renova seus mecanismos de controle, para impor e

determinar o que deve ser cultuado, impossibilitando novas

manifestações culturais que não vêm seguir os seus

pressupostos ideológicos.

Refletir acerca da história cultural e dos estudos

culturais sobre a cultura e a identidade gaúcha, consolidou-

se como uma via interessante. Com base nos relatos e

imagens de quem passou pelo Rio Grande do Sul durante o

século XIX, podemos perceber e notar como caracterizava-se

o tipo social do gaúcho. É nítida sua influência com o tipo

social platino, porém o interessante é perceber como no

século XX, o tradicionalista se apropria da identidade de um

século anterior dando um caráter e uma significação

diferente da histórica.

Contudo, através dessa pesquisa, conseguiu-se

responder a hipótese levantada. De fato, há a apropriação

da identidade do gaúcho pelo tradicionalista. Apropriação

essa, que constitui um novo modelo de homem, totalmente

diferenciado daquele histórico. Essa imagem é construída

com significados distintos do significado histórico do

gaúcho. Isso ocorre porque o Movimento Tradicionalista

Gaúcho se edifica como um dos maiores segmentos

culturais e tradicionais do planeta. Porém com um caráter

saudosista, doutrinário e conservador.

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ANEXO I

CARTA DE PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO

TRADICIONALISTA GAÚCHO

A "Carta de Princípios" atualmente em vigor foi

aprovada no VIII Congresso Tradicionalista, levado a efeito

no período de 20 a 23 de julho de 1961, no CTG "O Fogão

Gaúcho" em Taquara, e fixa os seguintes objetivos do

Movimento Tradicionalista Gaúcho:

I - Auxiliar o Estado na solução dos seus problemas

fundamentais e na conquista do bem coletivo.

II - Cultuar e difundir nossa História, nossa

formação social, nosso folclore, enfim, nossa Tradição, como

substância basilar da nacionalidade.

III - Promover, no meio do nosso povo, uma retomada

de consciência dos valores morais do gaúcho.

IV - Facilitar e cooperar com a evolução e o

progresso, buscando a harmonia social, criando a

consciência do valor coletivo, combatendo o

enfraquecimento da cultura comum e a desagregação que

daí resulta.

V - Criar barreiras aos fatores e idéias que nos vem

pelos veículos normais de propaganda e que sejam

diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e

pendores naturais do nosso povo.

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VI - Preservar o nosso patrimônio sociológico

representado, principalmente, pelo linguajar, vestimenta,

arte culinária, forma de lides e artes populares.

VII - Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da

herança social e através da prática e divulgação dos hábitos

locais, noção de valores, príncipios morais, reações

emocionais, etc.; criar em nossos grupos sociais uma

unidade psicológica, com modos de agir e pensar

coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio,

para a reação em conjunto frente aos problemas comuns.

VIII - Estimular e incentivar o processo aculturativo

do elemento imigrante e seus descendentes.

IX - Lutar pelos direitos humanos de Liberdade,

Igualdade e Humanidade.

X - Respeitar e fazer respeitar seus postulados

iniciais, que têm como característica essencial a absoluta

independência de sectarismos político, religioso e racial.

XI - Acatar e respeitar as leis e poderes públicos

legalmente constituídos, enquanto se mantiverem dentro

dos princípios do regime democrático vigente.

XII - Evitar todas as formas de vaidade e

personalismo que buscam no Movimento Tradicionalista

veículo para projeção em proveito próprio.

XIII - Evitar toda e qualquer manifestação em

proveito próprio.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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XIV - Evitar atitudes pessoais ou coletivas que

deslustrem e venham em detrimento dos princípios da

formação moral do gaúcho.

XV - Evitar que núcleos tradicionalistas adotem

nomes de pessoas vivas.

XVI - Repudiar todas as manifestações e formas

negativas de exploração direta ou indireta do Movimento

Tradicionalista.

XVII - Prestigiar e estimular quaisquer iniciativas

que, sincera e honestamente, queiram perseguir objetivos

correlatos com os do tradicionalismo.

XVIII - Incentivar, em todas as formas de divulgação

e propaganda, o uso sadio dos autênticos motivos regionais.

XIX - Influir na literatura, artes clássicas e populares

e outras formas de expressão espiritual de nossa gente, no

sentido de que se voltem para os temas nativistas.

XX - Zelar pela pureza e fidelidade dos nossos

costumes autênticos, combatendo todas as manifestações

individuais ou coletivas, que artificializem ou

descaracterizem as nossas coisas tradicionais.

XXI - Estimular e amparar as células que fazem

parte de seu organismo social.

XXII - Procurar penetrar a atuar nas instituições

públicas e privadas, principalmente nos colégios e no seio

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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do povo, buscando conquistar para o Movimento

Tradicionalista Gaúcho a boa vontade e a participação dos

representantes de todas as classes e profissões dignas.

XXIII - Comemorar e respeitar as datas, efemérides e

vultos nacionais e, particularmente o dia 20 de setembro,

como data máxima do Rio Grande do Sul.

XXIV - Lutar para que seja instituído, oficialmente, o

Dia do Gaúcho, em paridade de condições com o Dia do

Colono e outros "Dias" respeitados publicamente.

XXV - Pugnar pela independência psicológica e

ideológica do nosso povo.

XXVI - Revalidar e reafirmar os valores fundamentais

da nossa formação, apontando às novas gerações rumos

definidos de cultura, civismo e nacionalidade.

XXVII - Procurar o despertamento da consciência

para o espírito cívico de unidade e amor à Pátria.

XXVIII - Pugnar pela fraternidade e maior

aproximação dos povos americanos.

XXIX - Buscar, finalmente, a conquista de um estágio de

força social que lhe dê ressonância nos Poderes Públicos e

nas Classes Rio-Grandenses para atuar real, poderosa e

eficientemente, no levantamento dos padrões de moral e de

vida do nosso Estado, rumando, fortalecido, para o campo e

homem rural, suas raízes primordiais, cumprindo, assim,

sua alta distinação histórica em nossa Pátria.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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ANEXO II

TESE O SENTIDO E O VALOR DO TRADICIONALISMO

BARBOSA LESSA

Na vida humana, a sociedade - mais que o

indivíduo - constitui a principal força na luta pela

existência. Mas, para que o grupo social funcione como

unidade, é necessário que os indivíduos que o compõem

possuam modos de agir e de pensar coletivamente. Isto é

conseguido através da "herança social" ou da "cultura".

Graças à cultura comum, os membros de uma sociedade

possuem a unidade psicológica que lhes permite viverem em

conjunto, com um mínimo de confusão. A cultura, assim,

tem por finalidade adaptar o indivíduo não só ao seu

ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade.

Toda a cultura inclui uma série de técnicas que ensinam ao

indivíduo, desde a infância, a maneira como comportar-se

na vida grupal. E graças à Tradição, essa cultura se

transmite de uma geração a outra, capacitando sempre os

novos indivíduos a uma pronta integração na vida em

sociedade.

I - A DESINTEGRAÇÃO DE NOSSA SOCIEDADE

A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo

um assustador processo de desintegração. Incluídas nesse

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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panorama geral, a cultura e a sociedade de quaisquer dos

povos ocidentais, necessariamente, apresentam, com maior

ou menor intensidade, idêntica dissolução. É nos grandes

centros urbanos que esse fenômeno se desenha mais nítido,

através das estatísticas sempre crescentes de crime,

divórcio, suicídio, adultério, delinqüência juvenil e outros

índices de desintegração social.

Analisando tais circunstâncias, mestres da

moderna Sociologia chegaram à conclusão de que problemas

sociais cruciantes da atualidade são causados, ou

incentivados, pelo relaxamento do controle dos costumes e

noções tradicionais de cada cultura.

II - OS DOIS FATORES DE DESINTEGRAÇÃO

Sociólogos de renome afirmam que a desintegração

social, característica de nossa época, é devida a dois fatores:

Primeiro: o enfraquecimento das culturas locais.

Segundo: o desaparecimento gradativo dos "Grupos

Locais" comunidades transmissoras de cultura.

Analisemos, então, esses dois fatores.

a) O ENFRAQUECIMENTO DO NÚCLEO

CULTURAL

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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A cultura de qualquer sociedade se compõe de

duas partes. Há um núcleo sólido, de certa forma estável,

constituído pelo PATRIMÔNIO TRADICIONAL. Nesse núcleo

se concentram aqueles inúmeros hábitos, princípios morais,

valores, associações e reações emocionais partilhados por

TODOS os membros de determinada sociedade (como a

linguagem, a indumentária típica, os princípios

fundamentais de moral, etc. ou ainda, por TODOS os

membros de certas categorias de indivíduos, dentro da

sociedade (como as ocupações reservadas só às mulheres ou

só aos homens, as reações emocionais típicas de todos os

velhos ou de todas as crianças, bem como os conhecimentos

técnicos reservados aos ferreiros, aos médicos, aos

agricultores, etc.). Tais elementos culturais contribuem para

o bem-estar da coletividade, pois o indivíduo fica sabendo

como comportar-se em grupo, e qual o comportamento que

pode esperar dos outros("expectativas de comportamento").

Em suma: o cerne cultural dá, aos indivíduos, a unidade

psicológica essencial ao funcionamento da sociedade.

Mas, cercando o núcleo, existe uma zona fluída e

instável, constituída por elementos culturais chamados, em

sociologia, Alternativas, e que são traços partilhados apenas

por ALGUNS indivíduos, representando diferentes reações

às mesmas situações, ou diferentes técnicas para alcançar

os mesmos fins. (Certa pessoa viaja a cavalo, fazendo o

mesmo percurso que outra prefere realizar em carroça; certa

pessoa sente-se tremendamente ofendida se alguém faz

"crítica" a um defeito físico seu, enquanto outra se comporta

resignadamente face a tais críticas; etc.)

É esta zona de Alternativas que permite à cultura

crescer e acomodar-se aos avanços de uma civilização.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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Evidentemente, quanto maior for o entrechoque com

culturas diversas, maior será a possibilidade de adoção de

novas Alternativas, por parte dos membros de uma

sociedade.

Quando a cultura de determinado povo é invadida

por novos hábitos e novas idéias, duas coisas podem

ocorrer: se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente

e forte, a sociedade só tem a lucrar com o referido contato,

pois sabe analisar, escolher e integrar em seio aqueles

traços culturais novos que, dentre muitos, realmente sejam

benéficos à coletividade; se , porém, a cultura invadida não

é predominante e forte, a confusão social é inevitável: idéias

e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural,

desnorteando os indivíduos, e fazendo-os titubear entre as

crença e valores mais antagônicos. Quem mais sofre com

essa confusão social - acentua o sociólogo Donal Pierson -

são as crianças e os adolescentes, os responsáveis pela

sociedade do porvir.

Crescendo nessas circunstâncias, a criança não

sabe como agir, não é capaz de assumir, em seu espírito,

qualquer expectativa clara de comportamento. E assim se

originam, entre outros, os problemas da delinqüência

juvenil, resultados de uma desintegração social.

Pois bem. Devido ao surto surpreendente do

maquinismo em nossos dias, bem como da facilidade de

intercâmbio cultural entre os mais diversos povos, observa-

se que o núcleo das culturas locais ou regionais vai se

reduzindo gradativamente, a ponto de se ver sufocado pela

zona das Alternativas. E a fluidez naturalmente se acentua,

à medida que as sociedades mantêm novos contatos com

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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traços culturais diferentes ou antagônicos, introduzidos por

viajantes ou imigrantes, ou difundidos por livros, imprensa,

cinema, etc. Nossa civilização, antes alicerçada num núcleo

sólido e coerente, transformou-se numa variedades de

Alternativas, entre as quais o indivíduo tem que escolher..

Sem ampla comunidade de hábitos e de idéias, porém, os

indivíduos não reagem com unidade a certos estímulos, nem

podem cooperar eficientemente. Daí os conflitos de ordem

moral que afligem o indivíduo, fazendo atarantar-se sem

saber quais as opiniões e os valores que merecem

acatamento.

Essa insegurança reflete-se imediatamente na

sociedade como um todo e, consequentemente no Estado,

pois, conforme ensina Ralph Linton "embora os problemas

de organizar e governar Estados nunca tenham sido

perfeitamente resolvidos, uma coisa parece certa: se os

cidadãos tiverem interesses e culturas comuns, com a

vontade unificada que daí advém, quase qualquer tipo de

organização formal de governo funcionará eficientemente;

mas se isso não se verificar, nenhuma elaboração e padrões

formais de governo, nenhuma multiplicação de lei, produzirá

um Estado eficiente ou cidadãos satisfeitos".

b) O DESAPARECIMENTO DOS "GRUPOS

LOCAIS"

As duas unidades mais sociais mais importantes,

como transmissoras de cultura, são a "família" e o "grupo

local". Através dessas duas unidades, o indivíduo recebe,

com maior intensidade, a sua "herança social".

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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São exemplos de "grupo local", em nossa

sociedade, o "vizindário" ou "pago" das populações rurais,

bem como as pequenas vilas do interior, ou ainda (um

exemplo do passado) os bairros com vida própria das

cidades de há alguns anos atrás.

Por "grupo local" entende-se o agregado de famílias

e de indivíduos avulsos que vivem juntos em certa área,

compartilhando hábitos e noções comuns.

Embora não tenha organização formal (como o

distrito ou o município), o "grupo local" é a unidade social

autêntica. O "pago", por exemplo, influencia a vida dos seus

membros, estabelece limites à vida social (quais as famílias

que podem ser convidadas para as festas) , mantém elevado

grau de cooperação entre os indivíduos, pois todos devem se

auxiliar (antigos trabalhos de puxirão) e cada qual tem

consciência desse dever de auxílio mútuo. O Indivíduo

conhece perfeitamente os costumes e os princípios morais

instituídos pelo seu "pago"; além disso, há um conhecimento

íntimo entre os membros de um mesmo "pago" (conhecem-

se até os animais objetos pertencentes aos vizinhos). Todas

essas circunstâncias influem para que o "grupo local" se

constitua numa potente barragem para as transgressões à

ordem pública ou à moral (furto, sedução, adultério, etc.).

Ademais, embora não tenha um meio de reação formal(como

a polícia), o "grupo local encerra grande força punitiva,

através de medidas como a perda de prestígio, o ridículo, o

ostracismo. Certamente já depreendemos, então, a grande

importância de que se reveste o "grupo local" para assegurar

a normalidade da vida comum, segundo os padrões

culturais instituídos pelo grupo.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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Acresce notar o seguinte: o integrar-se a um "grupo

local" constitui verdadeira NECESSIDADE PSICOLÓGICA

para o indivíduo normal. Este precisa de uma unidade social

coesa, maior que a família, dentro da qual sinta que outros

indivíduos são seus amigos, que compartilham suas idéias e

hábitos. Tanto é verdade que o indivíduo se sente inseguro

quando se vê só entre estranhos.

Pois bem. O enfraquecimento da vida grupal -

conforme acentuou Ralph Linton - é outra característica de

nossa época. As unidades sociais pequenas estão

gradativamente desaparecendo, e cedendo lugar às massas

de indivíduos. Nas zonas rurais, os "grupos locais" ainda

conservam um pouco de sua função como portadores de

cultura; mas, em geral - devido ao afluxo de Alternativas -

os jovens discordam dos padrões culturais antigos;

acontece, porém, que a sociedade mais ampla - com a qual o

jovem entra em contato por meio da imprensa, do rádio e

cinema - ainda não têm padrões coerentes de vida para

oferecer-lhes. Daí a insegurança que começa a notar-se em

nossa sociedade rural.

Se nas zonas rurais se percebe apenas uma

insegurança incipiente, apenas o relaxamento das forças do

"grupo local" , o que se percebe nas cidades é a

desintegração total dessas forças. A mudança de padrões

culturais, em nossos dias, tem sido tão rápida que, em

geral, o adulto de hoje teve sua infância condicionada à vida

segundo as bases do "grupo local". Ensinaram-lhe a esperar

dos seus vizinhos encorajamento e apoio moral; e quando

esses vizinhos se afastam, o indivíduo se sente perdido. Ele

escolhe entre muitas Alternativas, mas não dispõe de meios

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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para estabelecer contato com outros que tenham feito,

escolha semelhante.

Sem o apoio de um grupo que pense do mesmo

modo, é - lhe impossível sentir-se seguro a respeito de

qualquer assunto. E assim o indivíduo torna-se presa fácil

de qualquer propaganda insistente, (quer seja a má

propaganda, quer seja a boa propaganda).

Por isso, Ralph Linton escreveu "A cidade moderna,

com sua multiplicidade de organizações de toda a espécie,

dá a imagem de uma massa de indivíduos que perderam

seus "grupos locais" e estão tentando, de maneira tateante,

substituí-los por alguma outra coisa. De todos os lados

surgem novos tipos de agrupamentos, mas até agora nada

foi encontrado, que pareça capaz de assumir as principais

funções do "grupo local". Ser membro do Rotary Club, por

exemplo, não substitui adequadamente a posse de vizinhos

e amigos tal como se verifica nos grupos locais".

O MOVIMENTO TRADICIONALISTA RIO -

GRANDENSE

O movimento tradicionalista rio-grandense - que

vem se desenvolvendo desde 1947, com características

especialíssimas - visa precisamente combater os dois

reconhecidos fatores de desintegração social. O fundamento

científico deste movimento encontra-se na seguinte

afirmação sociológica: "Qualquer sociedade poderá evitar a

dissolução enquanto for capaz de manter a integridade de

seu núcleo cultural. Desajustamentos, nesse núcleo,

produzem conflitos entre indivíduos que compõem a

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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sociedade, pois esses vêm a preferir valores diferentes,

resultando, então, a perda da unidade psicológica essencial

ao funcionamento eficiente de qualquer sociedade".

Através da atividade artística, literária, recreativa

ou esportiva, que o caracteriza - sempre realçando os

motivos tradicionais do Rio Grande do Sul - o

Tradicionalismo procura, mais que tudo, reforçar o núcleo

da cultura rio-grandense, tendo em vista o indivíduo que

tateia sem rumo e sem apoio dentro do caos de nossa época.

E, através dos Centros de Tradições, o

Tradicionalismo procura entregar ao indivíduo uma

agremiação com as mesmas características do "grupo local"

que ele perdeu ou teme perder: o " pago". Mais que o seu

"pago", o pago das gerações que o precederam.

Cada Centro de Tradições Gaúchas, em si, é um

novo "Grupo Local". E à medida que surgem novos Centros,

em todos os municípios do Rio Grande do Sul, vai o

Tradicionalismo confundindo-se com o Regionalismo, pois

opera para que todos os indivíduos que compõem a Região

sintam os mesmos interesses, os mesmos afetos, e desta

forma reintegrem a unidade psicológica da sociedade

regional. E com isso o Tradicionalismo pode se transformar

na maior força política do Rio Grande do Sul. Para evitar

confusão de "política" com "política partidária", expressemo-

nos assim: O Tradicionalismo pode constituir-se na maior

força a auxiliar o Estado na resolução dos problemas

cruciais da coletividade.

Para compreendermos tal afirmativa, basta repetir

a transcrição já feita: "Se os cidadãos tiverem interesses e

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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culturas comuns, com vontade unificada que daí advém,

quase qualquer tipo de organização formal de governo

funcionará eficientemente. Mas, se isso não se verificar,

nenhuma elaboração de padrões formais de governo,

nenhuma multiplicação de lei, produzirá um Estado

eficiente ou cidadãos satisfeitos.

O SENTIDO DO TRADICIONALISMO

O Tradicionalismo consiste numa EXPERIÊNCIA

do povo rio-grandense, no sentido de auxiliar as forças que

pugnam pelo melhor funcionamento da engrenagem da

sociedade. Como toda experiência social, não proporciona

efeitos imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é

que virá dizer do acerto ou não desta campanha cultural. De

qualquer forma, as gerações do futuro é que poderão

indicar, com intensidade, os efeitos desta nossa - por

enquanto - pálida experiência. E ao dizermos isso, estamos

acentuando o erro daqueles que acreditam ser o

Tradicionalismo uma tentativa estéril de "retorno ao

passado". A realidade é justamente o oposto: o

Tradicionalismo constrói para o futuro.

Feitas estas considerações preliminares, podemos

tentar um conceito do movimento tradicionalista. E então

diremos:

"Tradicionalismo é o movimento popular que visa

auxiliar o Estado na consecução do bem coletivo, através de

ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba de tal

finalidade) com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura:

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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graças ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na

vida comum".

CARACTERÍSTICAS DO TRADICIONALISMO

Mais do que uma teoria, o Tradicionalismo é um

movimento. Age dentro da psicologia coletiva. Sua dinâmica

realiza-se por intermédio dos Centros de Tradições Gaúchas,

agremiações de cunho popular que têm por fim estudar,

divulgar e fazer com que o povo "viva" as tradições rio-

grandenses.

O Tradicionalismo deve ser um movimento

nitidamente POPULAR, não simplesmente intelectual. É

verdade que o tradicionalismo continuará sendo

compreendido, em sua finalidade última, apenas por uma

minoria intelectual. Mas, para vencer, é fundamental que

seja sentido e desenvolvido no seio das camadas populares,

isto é, nas canchas de carreiras, nos auditórios de

radioemissoras, nos festivais e bailes populares, na "Festas

do Divino" e de "Navegantes", etc.

Para alcançar seus fins, o Tradicionalismo serve-se

do Folclore, da Sociologia, da Arte, da Literatura, do

Esporte, da Recreação, etc. Tradicionalismo não se

confunde, pois, com Folclore, Literatura, Teatro, etc. Tudo

isso constitui MEIOS para que o Tradicionalismo alcance

seus fins. Não se deve confundir o Tradicionalismo, que é

um movimento,, com o Folclore, a História, a Sociologia,

etc., que são ciências. Não se deve confundir o folclorista,

por exemplo, com o tradicionalista: aquele é o estudioso de

uma ciência, este é o soldado de um movimento. Os

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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Tradicionalistas não precisam tratar cientificamente o

folclore; estarão agindo eficientemente se servirem dos

estudos dos folcloristas, como base de ação, e assim

reafirmarem as vivências folclóricas no próprio seio do povo.

AS DUAS GRANDES QUESTÕES DO

TRADICIONALISMO

Existem duas questões importantíssimas, que de

maneira nenhuma podem ser descuidadas pelos

tradicionalistas, sob pena deste esforço cultural se

desenhar, de antemão, como uma experiência fracassada.

a) ATENÇÃO ESPECIAL ÀS NOVAS GERAÇÕES

Deve, o Tradicionalismo, operar com intensidade

no setor infantil ou educacional, para que o movimento

tradicionalista não desapareça com a nossa geração. Porque

nós - os tradicionalistas de primeira arrancada - entramos

para os Centros de Tradições Gaúchas movidos pela

necessidade psicológica de encontrar o "grupo local" que

havíamos perdido ou que temíamos perder. Mas as gerações

novas não chegaram a conhecer o grupo local como unidade

social autêntica, e somente seguirão nossos passos por força

de impulsos que a educação lhes ministrar.

Por isso não temo afirmar que o dia mais glorioso

para o movimento tradicionalista será aquele em que a

classe de Professores Primários do Rio Grande do Sul -

consciente do sentido profundo desse gesto, e não por

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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simples atitude de simpatia - oferecer seu decisivo apoio a

esta campanha cultural.

Aliás, não se concebe que as Escolas Primárias

continuem por mais tempo apartadas do movimento

tradicionalista. Pois a maneira mais segura de garantir à

criança o seu ajustamento à sociedade é precisamente fazer

com que ela receba, de modo intensivo, aquela massa de

hábitos, valores, associações e reações emocionais - o

patrimônio tradicional, em suma - imprescindíveis para que

o indivíduo se integre eficientemente na cultura comum.

b) ASSISTÊNCIA AO HOMEM DO CAMPO

A idéia nuclear das Tradições Gaúchas é a figura

do campeiro das nossas estâncias. Por isso, é sumamente

necessário que o Tradicionalismo ampare social e

moralmente o homem do campo, para que um dia não se

chegue à situação paradoxal de manter-se uma Tradição de

fantasia, em que se tecessem hinos de louvor ao "Monarca

das Coxilhas", ao "Centauro dos Pampas", e esse gaúcho

fosse um desajustado social, um pária lutando febrilmente

pela própria subsistência. A nossa cultura somente poderá

se impor sobre as outras culturas, no entrechoque

inevitável, se for suficientemente prestigiosa. Daí a razão por

que precisamos mostrar às novas gerações - bem como

àqueles que, vindos de terras distantes, acorrerem à nossa

querência - que as tradições gaúchas são REALMENTE

belas, e que o gaúcho merece realmente a nossa admiração.

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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O TRADICIONALISMO COMO FORÇA

ECONÔMICA

Prestigiando as tradições gaúchas e prestando

assistência moral e social ao homem do campo, o

Tradicionalismo estará contribuindo de maneira inestimável

para a solução do problema que ora sufoca a nossa vida

econômica: o êxodo rural, a crise agrícola. É que, dentre as

principais causas do êxodo rural, encontramos uma que

foge ao âmbito dos fenômenos econômicos. Para proteger o

homem do campo, e fazer com que ele permaneça no meio

rural, não basta que o Estado lhe forneça meios econômicos

mais seguros. Se o campesino acaso julgar que o lugar que

lhe está reservado na sociedade encontra-se nas cidades, ele

será um desajustado enquanto não realizar seu sonho de

transferir-se para a cidade. Este fenômeno prende-se ao

conceito sociológico de "status", que é a posição social de

uma pessoa em relação a todas as outras com quem está em

contato. Se "os outros" demonstram que certo indivíduo

ocupa um "status" digno, ele fica satisfeito; mas se "os

outros" demonstram o contrário, ele é, inconscientemente,

levado a demonstrar habilidade, e, nesse afã, sempre deseja

competir com os indivíduos que considera superiores,

jamais com aqueles que considera inferiores. Assim sendo,

se o campesino se considera inferior ao citadino, mais cedo

ou mais tarde tentará procurar a cidade, para ali competir

com quem lhe rouba a posição social.

Prestigiando as tradições gaúchas, e prestando

assistência moral e social ao homem do campo, o

Tradicionalismo estará convencendo o campesino da

dignidade e importância do seu "status". Estará, em suma,

pondo em prática aquilo que o sanitarista Belizário Penna

JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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JOSÉ AUGUSTO FIORIN

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um dia salientou, mais ou menos nestes termos: "O Brasil é

o país onde mais se fala em valorização. Valorização do café

brasileiro, do dinheiro brasileiro, do algodão brasileiro, do

boi brasileiro. Somente não se pensa na mais urgente e

importante valorização: a do Homem brasileiro, a qual, por

si só, estaria conduzindo a todas as outras".