ah! eu sou gaucho! - o nacional e o regional no futebol brasileiro

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  Ah! Eu Sou Gaúcho! O Nacional e o egional no Futebol Brasileio A Sn/' Dm Am nig: iems héu  G Sien 100 i essas M ãfnmee n é  quqe um MuO ms qu se e/ ei e Fmg ( . ) A ve Gêmize muh mi b-eg e / que e siis e 950 em que  se ugi eixu mu s Sem ânim seque i emb esi cs su esen ". mndo ogeir ! d o fo dmiz os dims sociis spcmen no co ieio no é no e ez en sido DM (982) o pmeo h d conoos nopoógico. Segndo ese o o eo pomoe coso Na: Este atig é m versão de um os capílos e minh ssetaçã de mrado, defendd em br d 1998 n Prrm de Pós-Gradaã em Anoia S da UFRGS itita "Par oqe er e e: ertement usti uteo se atir do Gêmo F·B P Agrens e seus te

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A tese de que o futebol dramatiza os dilemas sociais, especialmente no caso brasileiro, não é nova, e talvez tenha sido DaMatta (1982) o primeiro a lhe dar contornos antropológicos. Segundo esse autor, o futebol promoveria a coesão nacional na medida em que permitiria a expressão e o reconhecimento de quem somos e do que somos em detrimento dos outros, os ingleses - e por extensão os europeus -, de cujo esporte nos apropriamos. Noutra perspectiva, o futebol permitiria uma espécie de auto-reflexão. Num país tão extenso geograficamente, socialmente estratificado e culturalmente diversificado, o futebol expressaria as diversidades regionais, as hierarquias sócio-econômicas e as diferenças étnicas e raciais. De acordo com essa segunda perspectiva, já não se poderia mais falar em futebol no singular, e sim em "futebóis" no plural, ou, se se preferir, em "estilos de futebol".

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  • Ah! Eu Sou Gacho! O Nacional e o Regional

    no Futebol Brasileiro Arlei Sande/' Damo

    ,

    A moda antiga: tiremos o chapu pro Grmio. Silenciar 100 mil pessoas no Maracan,francameme, no pra qualquer um.

    MuilO mmos qua/ldo se e/lcara a torcida delirante do Flammgo. ( ... ) Ao ver o Grmio fazer murchar a multido mbro-negra,

    revi a ce/la daquela tarde sinistra de 1950, em que a seleo umguaia deixou a multido prostrada. Sem nimo, sequer, pra ir embora do estdio,

    levando pra casa sua esperana "WrlO. Armando Nogueira!

    A tese de que o futebol dramatiza os dilemas sociais, especialmente no caso brasileiro, no nova, e talvez tenha sido DaMatta (1982) o primeiro a lhe dar contornos antropolgicos. Segundo esse autor, o futebol promoveria a coeso

    NOla: Este artigo uma verso de um dos captulos de minha dissertao de mestrado, defendida em abril de 1998 no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da UFRGS, intitulada "Para o que der e vier: o pertencimento clubstico no futebol brasileiro a partir do Grmio FootBall Porlo Alcgrensc e seus torcedores",

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    nacional na medida em que permitiria a expresso e o reconhecimento de quem somos e do que somos em detrimento dos outros, os ingleses - e por extenso os europeus -, de cujo esporte nos apropriamos. Noutra perspectiva, o futebol permitiria uma espcie de auto-reflexo. Num pas to extenso geograficamente, socialmente estratificado e culturalmente diversificado, o futebol expressaria as diversidades regionais, as hierarquias scio-econmicas e as diferenas tnicas e raciais. De acordo com essa segunda perspectiva, j no se poderia mais falar em futebol no singular, e sim em "futebis" no plural, ou, se se preferir, em "estilos de futebol".

    Admitindo a existncia de um estilo prprio do futebol brasileiro e a vigncia de muitos outros, mais ou menos delimitados a partir de recortes tnicos e regionais, busco neste ensaio identificar os elementos norteadores dos pontos de vista tico e esttico subjacentes aos referidos estilos. No me interessa apresentar aqui qualquer espcie de contestaao ao que dito pelos informantes, e sim confrontar e enunciar as conexes entre determinados estilos de futebol e as categorias socioculturais a eles vinculadas.

    O ponto de partida para essa discusso so as representaes dos torcedores e da crnica esportiva desencadeadas a partir da recente trajetria do Grmio,2 especialmente no perodo de 1995 a 1997, quando o clube conquistou vrios ttulos nacionais e at continentais3 Exaltado por uns mas tripudiado por outros, o "estilo" do Grmio tornou-se polmica nacional, e no apenas entre os futebolistas. Cronistas esportivos, editorialistas e at ministro de Estado se envolveram no debate. Afinal, era o Grmio um time violento? Por trs dessa pergunta simples, num primeiro momento circunscrita ao contexto do prprio futebol, forjaram-se pontos de vista que transcenderam o "ser gremista" ou o "gostar do Grmio". Discutia-se enfaticamente o "ser/gostar dos gachos" e o "ser/gostar do Brasil".

    A invello do estilo brasileiro

    Subjacente ao estilo, qualquer que seja, est a noo de uptura. Ele serve para demarcar, e no raro opor, determinadas vises de mundo, perodos histricos e posies sociais. Logo que o futebol foi trazido da Europa, como smbolo da modernidade, os esforos se concentraram na apreenso da prtica e, principalmente, dos cdigos e valores a ela associados. O importante no era apenas jogar, mas jogar de uma determinada forma, como os ingleses; vestir, torcer, falar, tudo como os ingleses; via de regra, a autenticidade era diretamente proporcional "

    . -a lmnaao. Porm, o gosto pela imitao foi cedendo lugar criatividade e, paulati

    namente, foram sendo produzidas diferenas no apenas na forma de jogar mas

  • AM Eu Sou Garc/ro!

    tambm de torcer. Os contrastes, apesar de evidentes, eram difceis de ser definidos e, acompanhando-se o relato de Mrio Filho (Rodrigues Filho, 1964), v-se que as diferenas foram percebidas tendo o "estilo ingls" como referncia. Se era impossvel caracterizar o novo a partir dele mesmo, pelo menos havia uma certeza: no era ingls.

    Os matches internacionais e, a partir de 1930, as Copas do Mundo acentuaram ainda mais essa diferena. Em 1938, na Frana, o Brasil sequer chegou s finais, mas Lenidas da Silva, artilheiro daquela Copa, "barbarizou" (Cabral e Ostermann, s. d.). Os europeus j sabiam da fora do futebol sul-americano - o Uruguai j havia conquistado duas medalhas olmpicas no futebol e a Copa de 30 -, mas nunca tinham visto nada parecido. O Brasil de Lenidas constitura-se numa novidade: era peculiar, tinha uma maneira de jogar que se destacava de todas as demais, um estilo prprio, brasileiro.

    Para explicar a rpida e bem-sucedida ascenso do futebol no Brasil, bem como seu estilo peculiar, Gilberto Freyre (Rodrigues Filho, 1964, prefcio da la edio) contrasta Domingos da Guia e Lenidas da Silva; o primeiro seria mais clssico, apolneo e europeu, enquanto o segundo estaria mais afeito ao romntico, dionisaco e tropical.

    A capoeiragem e o samba, por exemplo, esto presentes de tal forma no estilo brasileiro de jogar futebol que de um jogador um tanto lgido como Domingos, admirvel em seu modo de jogar mas quase sem floreios - os floreios barrocos to ao gosto brasileiro - ( ... ), Mrio Filho pde dizer que ele est para o nosso futebol como Machado de Assis para a nossa literatura, isto , na situao de uma espcie de ingls desgalIado entre tropicais. Em moderna linguagem sociolgica, na situao de um apolneo entre dionisacos. ( ... ) Mas v algum estudar o fundo de Domingos ou a literatura de Machado que encontrar, decerto, nas razes de cada um, dando-lhes autenticidade brasileira, um pouco de samba, um pouco de molecagem baiana e at um pouco de capoeiragem pernambucana ou malandragem carioca. Com esses resduos que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britnico para tornar-se a dana cheia de surpresas ilIacionais e de variaes dionisacas que .

    A atualidade desse fragmento impressionante e, acrescente-se, ele foi escrito h 50 anos, antes, portanto, de o Brasil ter conquistado as quatro Copas do Mundo e outros tantos torneios que o colocaram numa posio singular em relao aos demais pases em telmos de futebol. O reconhecimento de um estilo singular do futebol brasileiro, tributado a certos "tipos regionais", tornou essa

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    interpretao original e fundante da sociologia, da antropologia e at mesmo de muitos discursos no acadmicos sobre o futebol.

    Em primeiro lugar, deve-se destacar que a nossa identidade futebolstica representada a partir de uma srie de oposies tendo como pano de fundo os europeus; nem poderia ser diferente. Entretanto, ao buscar a autenticidade brasileira, Freyre evoca a molecagem baiana, a capoeiragem pernambucana e a malandragem carioca, excluindo os demais "tipos regionais" que contriburam para dar ao futebol os contornos de brasilidade. Esse recorte significativo no apenas em razo dos "tipos" que elege/exclui, mas porque esse procedimento pressupe uma intencionalidade. Poder-se-ia argumentar que, ao destacar apenas a contribuio da molecagem, da malandragem e da capoeiragem, a anlise de Freyre superficial e politicamente tendenciosa, para no dizer incorreta4 Em contrapartida, a meno de todos os "tipos regionais" exigiria um estudo mais aprofundado; algo despropositado para um prefcio de livro.

    Seja como for, h que se lanar uma indagao acerca de como resultaria o carter "genuinamente" brasileiro se fossem consideradas as contribuies dos mineiros, gachos e paulistas, por exemplo. E, a par das discusses atuais, por que que eles ainda no foram lembrados?

    Se os excludos fossem integrados - esta antes de mais nada uma especulao - provavelmente Freyre seria obrigado a reconhecer o vis apolneo do futebol brasileiro') ou ento admitir que certos "ripos regionais" sao mais originais que outros. Essa hiptese me parece implcita em sua anlise, certamente influenciada pela verso de O negro IW fwebol brasileiro, amplamente disseminada no universo futebolstico. Apesar de preponderante, ela tambm muito contestada.

    Trata-se, antes de mais nada, de um ponto de partida para infindveis discusses que atestam, simultaneamente, a presena de diferenas regionais atualizadas no e pelo futebol e tambm pontos de interseo entre as elaboraes acadntica, meditica e popular.

    Em segundo lugar, e no por acaso, os residuais ao quais Freyre se refere como determinantes do esrilo brasileiro - capazes, inclusive, de contagiar o apolneo Ademir da Guia - esto ligados irracionalidade e s influncias amerndias. Ele toma esses traos como constitutivos do carter brasileiro elevando-os condio de arte barroca. Os regionalismos - nem lodos, verdade -, bem como os negros e os ndios, so trazidos da periferia para o centro. Eles se tornam os portadores daquilo que h de mais genuno e puro no Brasil, so os smbolos do que mais tarde se convencionou chamar "futebol-arte".

    Daquelas poucas linhas contendo diversas oposies produziram-se ou tras tantas que podem ser apreciadas no quadro a seguir.

  • Ali! Eu Sou Gacho!

    o quadro poderia ser mais extenso, na medida em que o futebol se vincula s questes estticas, s idias de valor, subjetividade, e, portanto, por mais discutido que seja, dificilmente alcanar o consenso. Tanto isso verdade que de tempos em tempos o futebol-arte questionado, em geral a partir do modelo europeu e no raro de esteretipos.

    futebol brasileiro

    artstico

    espetculo

    dionisaco

    barroco

    intuitiVO

    natureza

    dom

    rua .

    logo

    individuaJ

    agilidade

    habilidade

    malandro

    candombl/urnbandismo

    futeboJarte

    futebol europeu competitivo

    eficincia

    apolneo

    clssico

    racional

    cultura

    aprendizado

    clube/escola

    esporte

    coletivo

    rigidez fora

    ca.XI3S

    catolicismo/protesLantismo

    futebol-fo

    As controvertidas discusses a esse respeito sempre despertaram o interesse dos brasileiros, como nos meses que antecederam a Copa da Sucia, em 1958. As qualidades tcnicas do selecionado eram indiscutveis, mas, paradoxalmente, isso vinha nos prejudicando. Era senso comum afirmar que tnhamos arte demais e objetividade de menos, o oposto dos europeus e principalmente dos soviticos, que, pensava-se, haviam sido treinados na Sibria com os propagandeados mtodos ultramodernos que impressionavam o mundo durante a Guerra Fria6

    Nelson Rodrigues, por exemplo, afirmou, numa crnica publicada dias antes da Copa, que os brasileiros padeciam do "complexo de vira-latas". No acreditvamos no nosso potencial, colocando-nos, voluntariamente, em posio de inferioridade em relao ao resto do mundo.

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    Em Wembley [ 1954], por que perdemos? Porque, diante do quadro ingls, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi to evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-Iatismo. Na ( ... ) vergonha de 50, ramos superiores aos adversrios. Alm disso, levvamos a van tagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: -porque Obdulio nos tratou a pontaps, como se vira-latas fssemos. Eu vos digo: - o

    problema do escrete no mais de futebol ( ... ). E um problema de f em si mesmo. ( ... ) Insisto: para o escrete, ser ou no ser vira-latas, eis a questo. (Rodrigues, 1993a: 5 1_2)7

    Contudo, bastou a conquista para que, da noite para o dia, se passasse a elogiar aqueles mesmos atributos que na vspera despenavam desconfiana e temor. O xito bem poderia ter sido explicado a partir dos bem-sucedidos mtodos de preparao empregados naquela oportunidade, aliados incontestvel qualidade individual dos atletas brasileiros - Didi, Pel, Garrincha, Nilton Santos, entre outros. Salvo raras excees, o que se fez foi a apologia das individualidades, e de Pel e Garrincha em especial. As qualidades tcnicas de Garrincha, por exemplo, foram descritas como instintivas: "todos ns dependemos do raciocnio ( ... ) ao passo que Garrincha nunca precisou pensar, ( ... ) tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistivel do instinto" (Rodrigues, 1993b: 62-4).

    Anos depois, por ocasio do tricampeonato no Mxico, a apologia do futebol-arte chegaria ao ponto mais elevado de sua escalada. E no apenas em razo do ufanismo propagandista da ditadura militar. Joo Saldanha, o tcnico que classificou o Brasil para a Copa, afirmou - depois de ter sido preterido, verdade - que os jogadores brasileiros eram to habilidosos que dispensavam a presena de um comandante (Mximo, 1996: 85-1 13). Bastava escolher os melhores e dar-lhes liberdade para o Brasil se tornar imbatvel. Enquanto para os demais selecionados o tcnico exercia uma funo primordial, fosse ele um estrategista ou um disciplinador, para os brasileiros sua contribuio era escassa e, na maioria das vezes, prejudicial.

    Passados quatro anos, todas as convices foram abaladas diante da desclassificao do Brasil na Alemanha e do surgimento do "carrossel holands".

    Zagallo se confundiu, pois achava que a Holanda mostrou "algo novo", para depois afirmar que "no houve evoluo no futebol europeu", acabando, durante a Copa, por recair numa afillnativa evolucionista ao dizer que "a raa europia superior". Parreira acompanhou Zagallo em sua perrurbao quando afirmou que "os germanos e eslavos so raas superiores". (Gil, 1994: 105-6)

  • AM Eu 5011 Gacho!

    At mesmo a propaganda militar foi abalada pela derrocada do futebolarte. O bem-sucedidoslogall de quatro anos antes, "Pra frente BrasiV Salve a nossa seleo", e outros tantos que faziam crer ser este um pas jovem, moderno e vencedor foram sugados pelo fracasso futebolstico.

    A prpria fonna de pensar nossa identidade a partir do futebol teve de ser redimensionada. Nesse "drama social", em que todos os arqutipos, palavras e expresses so investigados e apreendidos luz de novos sentidos, nossa "brasilidade futebolstica" que foi afetada. Aquele "mulatismo" passou a ser visto como um obstculo para nossa insero no primeiro mundo do esporte; aquela "malandragem" e "irracionalidade" to elogiadas tornaram-se empecilho ao progresso. (Gil, 1994: 106)

    Em 1978, na Argentina, o vilo foi o futebol burocrtico e militarizado comandado por Cludio Coutinho; tinha fora e disciplina ttica, mas faltava-lhe qualidade. Com Tel Santana, em 1982, fomos "campees morais"; arte demais e competitividade de menos. Em 1986, fomos abatidos pelo "destino", pela imponderabilidade dos penais. J em 1990, na Itlia, o vilo foi o tcnico Sebastio Lazaroni e sua fracassada tentativa de introduzir o "libero" e, por extensao, um modelo "europeizado".

    O ttulo de 1994 amenizou, apenas em parte, as acusaes de "falta de identidade" do selecionado de Carlos Alberto Parreira. Diz-se que ele venceu mas no convenceu. Dunga, o capito do tetra, tornou-se um dos smbolos do futebol brasileiro nos anos 90. Cultuado no Sul mas criticado pela maioria dos cronistas do centro do pas, ele condensou as mazelas da desclassificao na Itlia, em 1990. O "estilo Dunga" -comedido, arrojado, muita fora, pouca criatividade e, acima de tudo, fidelidade s orientaes tticas - foi visto como uma afronta ao futebol-arte. Poucos imaginavam que ele seria novamente capito em 1998, na Frana.

    Colado construo da identidade nacional, o futebol sugere, de um lado, certa vulnerabilidade dessa identidade e, de outro, contradies endmicas em cuja base residem as diversidades micas, regionais e, em dados momentos, raciais. Enquanto no primeiro caso as atualizaes ocorrem, em geral, de quatro em quatro anos, por ocasio das Copas do Mundo, no segundo elas so peInlanentes, desde que se confrontem clubes de regies distintas. Num e noutro caso, o futebol-arte serve de parmetro encompassador das diferenas regionais, evocando juzos acerca das formaes micas, polticas, histricas, sociais e econmicas das unidades federativas. E, como tentarei explicitar a seguir, a partir das diferenas se reforam e atualizam valores regionalistas, incorporando discursos

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    que transcendem o futebol, mas que s ele permite expressar de forma simultaneamente amistosa e contundente.

    A l1JlCI"ao do estilo gacho

    - Dezenove minutos da etapa complementar ( ... ). Luiz Gustavo, dominou, fora da rea, passou pelo marcador, ajeitou, vai pra bomba, atirou, gool; goooooooooooooool! Um gol ma-ra-vi-lho-so ( ... ) Um golao! Eu disse: o Inter depois de sofrer O gol tinha garra, tinha alma, o Inter era o Inter da sua histria e da sua tradio e foi buscar o gol de empate e conseguiu. S6 falta o da vitria agora. ( ... ). Rrre-pi-ta comigo torcedor colorado: o nome do gol Lu-iz Gustavo. Farid!

    - Como diz uma das letras, uma das msicas mais bonitas do Rio Grande: no t morto quem luta e quem peleia. E o colo ...

    - Leandro, uma bomba, goooooooooooooooooool! Do In-ter-na-cional! Portugueses do Rio e de So Paulo, saiam definitivamente da vida colorada! ( ... ) Sen-sa-cional, histrica virada do Internacional! Eu disse: hist6rica, inesquecvel virada colorada em So J anurio. Quando apareceu a garra, a fora, o sangue colorado, a comearam os gols, a comeou a presso, a vieram os golaos e a vin te e um minutos Leandro est fazendo dois a um. Dois para o Inter, um para a Portuguesa!

    - Eu dizia, como diz uma das msicas mais bonitas do Rio Grande: no t morto quem luta e quem peleia ( ... ). Pelo que se pode aferir da locuo dos gols colora dos - lamentando o

    tanto que se perde no processo de converso da oralidade em escrita -, a derrota parcial do Inter no se justificava por falhas tticas ou tcnicas. Tratava-se de um problema de identidade, haja vista que, "quando apareceu a garra, a fora, o sangue colorado, a comearam os gols". A lembrana de Farid, reprter de campo, evocando uma msica gauchesca de domnio popular, no apenas refora a constatao precedente, mas denota que tipo de identidade o Inter havia resgatado quando os gols foram marcados.

    No por acaso, trs das cinco torcidas organizadas do Grmio fazem, no prprio nome, referncia a esses atributos. A Super Raa, a Garra Tricolor e a Fora Azul demonstram que os gremistas, apesar da rivalidade Gre-Nal, partilham determinados traos da identidade colorada e vice-versa. Nos enfrentamentos locais, esses traos tendem a ser sublimados na medida em que, por serem partilhados, perdem seu valor de distino. Entretanto, nas disputas envolvendo

  • Ali! Eu Sou Gmc/ro!

    clubes de outros estados, tais atributos so freqentemente evocados, por ambas as torcidas. Dizem elas que eles fazem parle da lradiiio do flllebol gacho e, portanto, so exclusividade dos times "daqui" Se "outros" tambm os reivindicam, nada mais fazem do que reconhecer o valor do "nosso" estilo de jogar, torcer e pensar o futebol, a poltica, a economia e a autonomia federativa.

    Em termos genricos, o estilo do futebol gacho resulta da apropriao, por parte dos fucebolistas - sejam eles torcedores, dirigentes, jogadores ou cronistas esportivos -, de um discurso preestabelecido de culto s tradies. Tais discursos, que colocam o Rio Grande do Sul numa posio diferenciada em relao s demais unidades federativas e, at mesmo, em contraposio ao Brasil, resgatam certos aspectos constitutivos da identidade social dos rio-grandenses do sul, "esquecendo-se" de outros tantos a partir dos quais a suposta disjuno desapareceria.

    Nesse rol de desencaixe so evocadas, com maior freqncia, a posio geogrfica, a partir da qual se estabeleceriam intercmbios mltiplos com os pases do Prata (portanto, diferentemente da populao dos demais estados brasileiros, os gachos teriam forte influncia hispnica); a tradio poltica de enfrentamento em relao ao poder central; a presena macia dos imigrantes europeus e, como corolrio, as noes de "civilidade" e "progresso" (que contrastam com o esteretipo rude e antiquado do gacho); a convivncia permanente com os levantes armados; e, finalmente, a prpria "essncia" do gacho, tida como libertina e altiva, tal qual a dos remotos tropeiros forjados na lida com o gado xucro. De todos esses e outros tantos traos formadores da identidade gacha, so justamente os dois ltimos os mais freqentemente evocados. Da Revoluo Farroupilha (1835-45) "Legalidade", que deu sustentao a Joo Goulan aps a renncia de Jnio Quadros, em 1961, passando pela Revoluo Federalista (1893-95), a Coluna Prestes e a Revoluo de 30, somam-se outros confrontos internos ou fronteirios em nome dos quais se afirma ser o gacho um "produto das guerras".8

    Embora tais singularidades tenham sido evidenciadas desde longa data, a partir dos anos 50 elas adquiriram maior visibilidade. Com o surgimento do Movimento Tradicionalista Gacho (M T G), elas passaram por um processo de ressemantizao atravs do qual o gacho adquiriu uma valorizao sem precedentes, algo comparvel transformao operada por Gilberto Freyre em relao mestiagem9 Porm, no sentido inverso; para o MT G vale o autntico, o

    genumo, o puro. Desde o impulso inicial dado por um grupo de estudantes secundaristas,

    com um p na capital e outro no campo, criaram-se, a partir de 1947, inmeros Centros de Tradies Gachas (CTGs) espalhados por todo o estado, pelo Brasil e at no exterior.l No princpio, os "intelectuais do MTG" estavam preocupados

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    to-somente em recriar na cidade um espao de sociabilidade capaz de arrefecer o saudosismo em relao ao mundo rural que haviam deixado para trs. Apesar do fascnio urbano, das ofertas da indstria culrural e das filosofias da moda, faltava-lhes a segurana e o afago da estncia. O resgate da historiografia, a inveno das tradies e do prprio "gacho" vieram depois; a ideologizao tambm.

    Mesmo reconhecendo a importncia e a influncia do MTG no resgate da historiografia e seu sucesso na inveno de tradies, os trabalhos acadmicos tm apontado inmeras contradies em relao ao "modelo" de gacho veiculado pelo movimento. Oliven (1996) demonstra como a exaltao da figura do gacho da campanha, enquanto tipo representativo de todo o estado, exclui mais do que inclui, na medida em que ignora a contribuio dos ndios, negros e imigrantes europeus na construo da identidade regional.

    Seja como for, o MTG conseguiu impor no imaginrio dos gachos sua prpria viso do gauchismo. Como isso se tornou possvel? As razes so muitas, mas a principal delas se deve condio de verossimilhana entre as representaoes do Rio Grande do Sul como um estado diferenciado dos demais, idias estas anteriores ao MTG, e os smbolos e ideologias veiculados por ele. De acordo com Oliven (1992: 65),

    faz parte dessa relao autonomia-isolamento utilizar um discurso que afirma que o Rio Grande do Sul est simultaneamente em situao calamitosa e de grande vitalidade. O que chama a ateno como so recorrentes os temas que ocupam os gachos em perodos to diversos. H uma constante evocao e atualizao das peculiaridades do estado e da fragilidade de sua relao com o resto do Brasil. O Rio Grande do Sul pode ser visto como um estado onde o regionalismo constantemente reposto em situaes histricas, econmicas e polticas novas. Mas, embora as conjunturas sejam novas e a roupagem dos discursos se modernize, o substrato bsico sobre o qual estes discursos repousam surpreendentemente semelhante. Nesse sentido, poder-se-ia afi,mar que o gauchismo um caso bem-sucedido de regionalismo, na medida em que consegue veicular reivindicaes polticas que seriam comuns a todo um estado. A continuidade e vigncia desse discurso regionalista indicam que as significaes produzidas por ele tm uma forte adequao s representaes da identidade gacha.

    Disseminado em quase todas as instituies gachas e perpetuado desde os primrdios do sculo passado, o discurso regionalista est presente tambm

    no futebol. E evidente que existem torcedores, da dupla Gre-Nal ou de clubes do interior, menos suscetveis ao substrato do gauchismo, embora este possa ser

  • Ah! Eu Sou Gacho!

    considerado hegemnico. O gacho altivo, valente e destemido, o centauro dos pampas cujo mito se tomou ideologia com a atuao do MTG, tambm o esteretipo que orienta, ao longe, as manifestaes dos torcedores e, principalmente, os discursos mediticos.

    Se a legitimidade do gauchismo foi conquistada, entre outros fatores, pela sua capacidade de pinar do processo histrico episdios a partir dos quais o regionalismo pde ser apresentado como verossmil - e sempre que no os encontra, os cria -, o mesmo ocorre no universo futebolstico. Nessa perspectiva, o isolamento geogrfico constitui-se, mais urna vez, no eixo central a partir do qual o futebol gacho estaria em situao desvantajosa em relao ao Brasil, especialmente aos clubes do Rio de Janeiro e de So Paulo. Para sustentar essa tese, so evocadas as grandes distncias, as longas viagens e o desgaste fsico aos quais os clubes daqui estariam submetidos quando necessitam jogar no Norte e N ardeste brasileiros. Outros fatores como o clima hostil- frio, chuvoso etc. - e, por extenso, os gramados enlameados do interior do estado, exigiriam mais nfase na preparao fsica dos jogadores em detrimento da tcnica e, conseqentemente, isso teria sido determinante para o estilo diferenciado do futebol gacho, mais europeu e portenho do que propriamente brasileiro.

    Ao suposto isolamento geogrfico acrescenta-se urna srie de razes polticas - ao dos lobistas, parcialidade dos dirigentes da CBF e at mesmo o fato de esta estar sediada no Rio de Janeiro -a partir das quais os clubes, jogadores e dirigentes gachos estariam pelmanentemente em situao desvantajosa.

    No entanto, os prprios gachos esquecem-se, com freqncia, de que representaram o Brasil e conquistaram, em 1956, o 11 Campeonato Pan-Americano realizado no Mxico. A base dessa representao era colora da, tal qual aquela que foi Olimpada de Los Angeles, em 1984, e voltou com medalha de prata. Entre os tetracampees mundiais estavam Taffarel, Gilmar, Branco e Dunga, todos gachos, e Mrcio Santos, com passagem pelo Internacional; em 70, no Mxico, Everaldo, lateral-esquerdo do Grmio, foi titular de Zagallo; e Luiz Carvalho, centroavante gremista, s no foi Copa de 34 Rorque declinou do convite alegando "inadiveis compromissos profissionais".

    Os mesmos gachos lembram-se, porm, que Falco foi preterido por Cludio Coutinho em 1978; que Leo, na poca goleiro do Grmio, no foi convocado por Tel Santana em 82 e, como se isso no bastasse, Paulo Isidoro, tambm gremista, ficou no banco de reservas. Pior ainda foi em 86, quando o mesmo Tel, pouco antes do embarque para o Mxico, desconvocou Renato, do Grmio, alegando indisciplina.

    Mas nada enrubesce tanto os brios gachos como as questes envolvendo arbitragem. Haroldo de Souza, narrador da Rdio Guaba e primeiro suplente legislativo do PTB, afirma que

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    a maioria dos rbitros brasileiros so cobras-mmuJadas ( ... ), exceo de uns trs ou quatro. ( ... ) A maioria das vezes, quando vai decidir um jogo de nacional que envolve principalmente o futebol cariaca e o fUtebol do Rio Grande do Sul, o rbitro procurado, ah isso ! ( ... ) Sempre, semlfe, vai ter algum problema com a arbitragem porque ela vem sob encomenda.

    Ibsen Pinheiro, ex-deputado e atual vice-presidente de futebol do Internacional, afirma desconhecer qualquer prova formal evidenciando a manipulao das arbitragens. Porm, acredita que a margem de interpretao que excede as regras administrada pelos rbitros de acordo com a convenincia; na dvida, apita-se favoravelmente ao mais influente.

    ,

    E mais fcil errar CO/ltra o Grmio ou o lmernacional do que CO/ltra Flamrngo ou Corinthians, menos arriscado para a carreira de um rbitro ( ... ). Agora, isso da natureza das coisas! O Rio de Janeiro tem mais

    ,

    influncia que Porto Alegre. E como ns nos queixarmos quando o N ew York ,

    Times faz comemrios desfavorveis ao Brasil. ( ... ) E natural que Rio e So Paulo preponderem na imprensa, na rmda, na escolha da CBF, do juiz ( ... ). E se voc vai no imenar (RS), o que dizem os dirigentes do interior? Ah no, eles roubam pra dupla Gre-Nal! E mais fcil errar a favor da dupla Gre-Nal do que a favor de um clube do interiar? Em temws. No confronto direto sim, mas na medida em que o confronto interessa ao outro grande, a no pode errar a favor do gra,uJe contra o outro grande. Ento, aqui, a rivalidade Gre-Nal compensa, de certa fomza, possveis equvocos em relao aos mais fracos .

    E interessante notar como Ibsen "naturaliza" as diferenas regionais e a influncia poltica. Surpreendentemente, essa regra no se confirmaria no caso do Rio Grande do Sul. Aqui a polarizao Gre-Nal e, portanto, a competitividade tornariam as arbitragens transparentes.13 De qualquer modo, excetuando-se a conquista do Renner em 1954, a dupla Gre-N aI deteve a hegemonia estadual entre 1936 e 1997.

    Nem os temas atuais como a economia de mercado e a globalizao modificam o substrato regionalista, como se pode perceber numa crnica de Paulo Sant'Ana - torcedor gremista e colunista de Zero Hora - publicada aps o Grmio vs Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro de 1996.

    O Grmio ganhou do grande Palmeiras da Parmalat, do Palmeiras globalizado, do Palmeiras privatizado, do Palmeiras neoliberalizado. O Grmio ganhou do maior time do Brasil, com certeza do maior time da Amrica, o Grmio passou por uma prova de fogo na maior cidade da Amrica do Sul, esta So Paulo de eSlUante progresso, que assistiu inteira ontem, juntamente com todo o Brasil, a uma verdade

  • Ali! Eu Sou Gacho!

    irrefutvel: O Grmio com justia e propriedade o maior time do Brasil, para orgulho de ns gachos, que temos assistido nos ltimos anos a esta equipe estupenda do Grmio encher de civismo todos os filhos da Provncia de So Pedro.14

    Sant' Ana se refere ao "Palmeiras da Parmalat" e no ao Palmeiras-P3IInalat, o que, nas entrelinhas, faz crer que a propalada co-gesto, segundo o seu ponto de vista, no passa de uma apropriao do clube pela multinacional. De outra parte, como se j no bastassem o isolamento geogrfico, a desf3vorveI correlao de foras polticas e as contingncias prprias do jogo, o Grmio, "orgulho de ns gachos", estaria, agora, enfrentando os interesses econmicos decorrentes da globalizao e do neoliberalismo. E o mais importante: venceu-os.

    Mas o que ocorre quando se d o inverso? Dir-se- que existe uma conspirao, um "esquema Parmalat" orquestrado para beneficiar o Palmeiras, como afilInou Fbio Koff - ex-presidente do Grmio e atual presidente do Clube dos Treze -, em junho de 1996, depois da desclassificao do Grmio pela Copa do Brasil. Se, de um lado, tais declaraes serviram para reconfortar os gremistas, de outro, geraram indignao.

    Segundo Pasquale Cipro Neto, apresentador do programa "N ossa lngua portuguesa", da TV Cultura:

    O futebol um terreno propcio a um grande nmero de declaraes infelizes, grosseiras. Pouca gente sabe perder. E pouca gente sabe ganhar. ( ... ) Desde que a Parmalat assumiu a co-gesto do Palmeiras, corre boca pequena que existe o "esquema PalInala!", que d ao Palmeiras ttulos que nOlmalmente ele no conseguiria. Cu.) No fosse o "esquema", o velho Palestra no teria ganho nem sequer um mlo. No sou escoteiro, no sou ingnuo para achar que no existe

    ,

    corrupo no futebol. E claro que existe, e existir. Mas s um bobo ainda no se convenceu de que no existe o tal esquema. Vejamos. O Grmio foi o grande prejudicado em Porto Alegre, certo? Enado. Quem assistiu ao jogo viu que deveriam ter sido expulsos trs gremistas. C ... ) No viu quem no quis. Mas, depois que o tira-teima da Globo mostrou que o terceiro gol do Grmio foi bom, pronto! Foi o esquema Parmalat! Fico pensando por que s se fala em esquema Parmalat. Por que no se fala em esquema Renner? O Grmio, no melhor estilo subdesenvolvido, faz o diabo no Olmpico, seu estdio no interditado ( ... ).15 Embora inocente a Pannalat, Pasquale admite que existe corrupo no

    futebol mas, em ltima instncia, ela estaria paraofair-play tal qual a vulgaridade, a grosseria e a violncia; marcas do "melhor estilo subdesenvolvido" adotado pelo Grmio.

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    E evidente que adjetivos dessa natureza provocaram a ira dos gremistas e at dos colorados, na medida em que, mais dia menos dia, sero eles que estaro evocando as diferenas regionais e sendo acusados de subdesenvolvidos. Porm, como possvel contestar tais adjetivaes se o discurso regionalista reivindica sua prpria marginalidade? Como resolver esse paradoxo?

    O culto s tradies transfOlma cada conquista numa verdadeira epopia emprestando ao futebol uma gama variada de elementos com forte apelo emocionai. Nesse caso, a tarefa dos mediadores - narradores, cronistas etc. - consiste em captar no gauchismo determinados residuais e adapt-los s conquistas futebolsticas.

    Milagre! Milagre! Milagre!

    Depois de quase morto no Maracan de 100 mil flamenguistas, ressuscitou a garra farrapa do Grmio, ressurgiu a fiam a maragata e chimanga do Grmio, a tradio gacha da fora, garra, combatividade, a alma ancestral da bravura gacha foi mostrada e lavada no gramado do maior estdio do mundo. Que vitria, que ttulo, que extraordinria demonstrao de obstinao, de f no destino de vitria, que danao incrvel no corpo e no esprito diante da adversidade ( . . . ).

    Fantstico Grmio, ( ... ) no d mais para nenhum paulista, nenhum carioca, nenhum brasileiro contestar esta grandeza gigantesca de um time provinciano, que aora ganha o Brasil como j ganhou duas vezes a Amrica e o Mundo.l

    Se o futebol, em si mesmo, "no transmite mensagem", " uma seqncia de jogadas sem sentido em sua totalidade", como afirma Gumbrecht,l7 ento preciso dot-lo de algo que o transcenda. Ganhar e perder podem ser consideradas contingncias do jogo e, como tal, prestam-se apenas para tomar claro quem perde ou ganha e o qu. Se o tradicionalismo empresta subsdios aos discursos enunciados no futebol, este ltimo mostra-se generoso pela fOI ma com que opera tal discursividade.

    Atravs do enfrentamento e, portanto, da disjuno, o futebol permite uma comparao entre "ns", os gachos, e os "outros", sejam eles cariocas, paulistas ou brasileiros em geral.

    Enquanto os CTGs, por exemplo, promovem o culto prpria identidade, os times gachos possibilitam mostrar aos "outros" no apenas quem ou o que "somos", mas quo poderosos "ns somos". E nessa complementaridade que reside a fora do regionalismo e, mais especificamente, da parceria gauchismo-futebol.

  • Ahl Eu Sou Gachol

    E1Icaixes e desencaixes do estilo gacho 110 futebol-arte

    Se se pretendesse lima definio abrangente acerca do impacto das recentes conquistas do Grmio no cenrio nacional e continental, poder-se-ia afilmar que estas se caracterizaram como um mal-estar no futebol-arte. Esse mal-estar foi decorrente da eficcia de um estilo de jogo considerado diferente e, em detellllinados momentos, oposto ao brasileiro. Para os adeptos do "futebolarte", o dilema consistia em como e onde enquadrar o estilo adotado pelo Grmio, j que esse clube, sendo gacho, era brasileiro mas, paradoxalmente, afrontava uma concepo de futebol que , em si mesma, sinnimo de brasilidade. J os defensores do estilo gremista tinham a dificil tarefu de fazer crer aos primeiros que o Grmio, apesar das diferenas, ainda era um time brasileiro. Mas, como reivindicar essa incluso se eles prprios sugeriam a incompatibilidade das diferenas? Eis a razo das disputas, e a seguir se ver como esse jogo se processou nas arquibancadas e na midia.18

    o mal-estar atravs da imprensa

    No primeiro semestre de 1995, quando o Grmio iniciou sua ascenso, ocorreu um fato que pode ser tomado como paradigmtico. Era um jogo entre Grmio e So Paulo, pelas quartas-de-final da Copa do Brasil. L pela metade do segundo tempo, quando o Grmio marcou o segundo gol, os torcedores da arquibancada se puseram em p para, ao invs de reverenciar os jogadores gremistas, xingar os so-palllinos. Um pequeno grupo iniciou o coro: "Uh, uh, uh, paulista pau 7Ul cu!" Antes que o coro se tomasse unssono, um torcedor tentou

    ,

    corrigir o que, segundo ele, constitua um equvoco: "E so-pauli7Ul, no paulista!" Os demais, porm, simplesmente no lhe deram ouvidos.

    O xingamento no se constitua propriamente num equvoco, consideradas as crticas que o Grmio vinha sofrendo no centro do pas, especialmente na mdia paulista. Era em razo dessas opinies adversas que os torcedores se insurgiam, e no apenas contra o time do So Paulo. O Grmio j tinha eliminado o Palmeiras num jogo mmultuado no Parque Antrtica, em So Paulo; desclassificado o prprio So Paulo, de Tel, e o Flamengo, de Wanderley Luxemburgo, em jogos marcados por expulses e incidentes extra-campo. Quando chegou s finais, diante do Corinthians, o Grmio j tinha contra si uma opinio nada favorvel, como fica evidente neste comentrio de Tel Santana:

    A final da Copa do Brasil reveste-se de importncia porque vale uma vaga para a Taa Libertadores. A deciso entre Corinthians e Grmio, que tem gerado muitas discusses entre os aficcionados pelo futebol, est virando lima "gulla". Como eu defendo o futebol

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    limpo, bem jogado, no posso concordar com um clima assim. ( ... ) O Grmio um bom time, mas, em diversas ocasies, toma-se violento. Tanto verdade que, em quase toda partida, algum jogador gremista expulso. 19

    Se a acusao de violento dirigida a um atleta gera polmica, muito mais controversa a mesma acusao extensiva equipe. Inimigo declarado dos gremistas, desde o vestirio at as arquibancadas, e alheio s objees, Tel culpabilizou o tcnico Luiz Felipe, seu colega de profisso, pelo comportamento do time. Depois da deciso, vencida pelo Corinthians, voltou carga.

    Continuo batendo na mesma tecla: futebol no se ganha fora de campo. ( ... ) Eles tm uma boa equipe, mas ela poderia ser melhor aproveitada. Jogando futebol, o Grmio poderia ter tido melhor sorte. ( ... ) O time gacho um reflexo do Luiz Felipe, seu treinador. Na poca em que ele era jogador, sempre foi considerado um atleta violento. Tinha pouca tcnica e fazia muitas jogadas agressivas. O Grmio, em cenas ocasies, mostra-se uma equipe desleal ( ... ).

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    Para legitimar sua posio, quela altura muito contestada pela mdia porto-a1egiense, Tel evocou sua experincia e englobou, no rol dos violentos, o futebol gacho como um todo.

    Futebol no violncia. Futebol espetculo. ( ... ) Em 1977, quando fui trabalhar no Grmio, encontrei o futebol gacho numa situao triste. Quando se enfrentavam, os jogadores de Grmio e Internacional no se preocupavam em jogar, mas apenas em dar pontaps e em reclamar do rbitro. Consegui convencer meus jogadores a mudarem de atitude, mas os do Internacional continuaram com a mesma mentalidade. Por isso, naquele ano fomos camyees estaduais, interrompendo uma srie de oito ttulos do nosso rival. I

    ,

    A acusao de violncia segue uma espcie de "efeito domin". Tel inicialmente contesta os jogadores, mais tarde o tcnico e os dirigentes e, por extenso o clube, at chegar ao futebol gacho. Ao evocar sua experincia como tcnico do Grmio em 1977, ele est, simultaneamente, sugerindo que os gachos sempre estiveram s voltas com o antijogo e colocando-se na posio de um moralizador exgeno, como se os gachos, por conta prpria, fossem incapazes de perceber seus equvocos.

    Na verdade, Tel no era o nico a tripudiar o estilo gremista. Marcos Augusto Gonalves, editor da Folha, tomou um depoimento de Luiz Felipe, veiculado no programa "Carto Verde",

    22 para exemplificar a competitividade

    exacerbada no universo futebolstico.

  • Ah! Eu Sou Gacho!

    Queiram ou no seus fs, entre os quais me incluo, o fato que o futebol - o jogo em si e a rede de discursos e prticas que o envolve - vem se mostrando no uma metfora, mas um verdadeiro prolongamento da guena. No interessa o "romantismo" da tcnica e da fantasia. Interessa o "hiper-realismo" da vitria, o esquema militarmente cumprido ( ... ). Que ganhe meu pas e meu time, no o fu tebol. No domingo, por exemplo, ouviu-se na TV o senhor que treina o Grmio (ti me que se no vence por pontos vence por nocaute) dizer que o violento jogador Bernardo foi o artfice das recentes conquistas do Corinthians,

    no o requintado Marcelinho. E essa a cabea vitoriosa do futebol amai. E esse universo violentamente competitivo, sectrio, machista e chauvinista que empresta mscaras para cobrir os rostos revoltados e sem identidade social dessa legio ( ... ) que cresce nas franjas do admirvel e

    I d . 23 crue mun o novo em que vivemos.

    A condenao do "futebol amai" no constimi novidade, tampouco a conrundncia da argio. Deve-se ressaltar, porm, o uso do depoimento de Luiz Felipe para exemplificar as prticas e discursos "hiper-realistas" que, segundo Marcos Augusto, seriam responsveis pela onda de violncia entre as torcidas organizadas em So Paulo.24 Mesmo que sua apropriao seja legtima, importante destacar o fato de a crnica ter sido publicada exatamente no dia subseqente conquista da Libenadores da Amrica pelo Grmio. Em outras palavras, a chamada da Rede Globo, "o Grmio o Brasil na Libertadores", parece no ter tido boa receptividade, pelo menos para aqueles que, como Marcos Augusto, prefeririam ver outra "cabea vitoriosa". E, diga-se de passagem, eram muitos, se considerarmos a opinio de Paulo Renato Souza, ministro da Educao e filho de um ex-presidente do Grmio.

    Ao acompanhar jogos do Grmio por rdios e TVs de So Paulo e do Rio, tenho a impresso de que esto se referindo a um time estrangeiro. Contra o Flamengo, o locutor de uma emissora de alcance nacional deixou escapar um "nossa sorte que fulano (do time do Rio, claro) est bem na cobertura". Nossa sorte, ora vejam! Agora, a mdia do centro do pas elegeu a violncia como o pior defeito do futebol do Sul. ( ... ) Falta objetividade cobertura do futebol, que coloca o regonal acima do sentimento nacional. Talvez isso acontea at mesmo no Sul.25

    Paulo Renato evoca pelo menos dois aspectos importantes presentes nos debates da poca. O primeiro a acusao de violncia dirigida ao Grmio e ao futebol do Rio Grande do Sul, amplamente disseminada no centro do pas. Segundo Paulo Renato, a "falta de objetividade" na imprensa estaria criando uma

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    espcie de esteretipo pouco condizente com os gachos. O segundo, corolrio do primeiro e, na minha perspectiva, o ponto central das discusses, evoca o desencaixe do Grmio do futebol nacional - "tenho a impresso de que esto se referindo a um time estrangeiro".

    Nem todos, no cenrro do pas, contestavam o Grmio. Matinas Suzuki J r., por exemplo, percebia certos mritos no estilo gremista. Depois da deciso em Tquio entre Grmio e Ajax, Matinas prenunciou o desmantelamento do time e fez questo de que "se ficar o mito de um time violento, ser injusto. Ele deveria ser lembrado por ter sido um time de disciplina ttica, que . . d " U se poSICIonava e marcava mo ernamente .

    Moderno? Era tudo o que os gremistas reivindicavam. Porm, em seu balano futebolstico de 1995, o j citado Marcos Augusto Gonalves fez o

    seguinte comentano:

    Muitos acrescentariam ao rol dos avanos a competitividade demonstrada pelo Grmio. Aqui, prefiro ser cego com Ray Charles ou Stevie Wonder e lcido como Tosto ( ... ). Esse negcio de time de "pegada" pode funcionar, mas no ser da mentalidade do "full-contact" que o futebol brasileiro extrair suas vantagens comparativas. Certo, Danrlei?27

    O ano de 1996 parecia iniciar nada favorvel imagem do clube gacho; pelo tom da crtica era custoso acreditar que 95 tivesse acabado. A acusao de violento, que havia deslocado o Grmio no apenas do futebol-arte mas do futebol e do esporte como um todo, voltaria tona. O estilo gremista, para muitos um antiestilo - j que falar em estilo violento deveras complicado - se caracterizava, na viso de seus crticos, como uma espcie de verso futebolstica do punk: agressivo, subdesenvolvido, enfim, um tremendo "mau gosto".

    No acho que o time do Grmio seja apenas viril, va-

    lente, "pegador", como querem alguns. E tambm desleal. Foi um prazer v-lo batido pela Portuguesa, enredado na ttica de Candinho, um tcnico ponderado, que no visto nas derrotas gritando ameaas e palavres na margem do campo. Se o Grmio vencer a Portuguesa no jogo de hoje, em seu campo, que o faa na bola e no nas canelas do adversrio ou jurando transfolmar o saco do juiz e dos bandeirinhas em boleadeiras, tch.28

    r Mais adiante, Aldir Blanc afirmava ser tambm vascano, clube carioca fundado por portugueses, e preferir "a eliminao com Carlos Gellnano e Edmundo a ser campeo com dois paraguaios na zaga"; caso do Grmio, que mantinha entre seus quadros Arce e Rivarola.

  • Ah! Eu Sou Gacho!

    Pra encenar, parodio canhestramente o estilo inimitvel de Nelson Rodrigues, patrono dos cronistas tresloucados: cada vez que um atleta do Grmio d um carrinho desleal nos difanos tornozelos do adversrio, vejo em campo, de camisa tarjada de negro, o general Ganastazu Mdici, mutilando a grama, testa de uma tropa de centauros torturadores, com fenaduras superfaruradas.29

    A Porruguesa foi derrotada, mas isso no impediu que Aldir Blanc voltasse, no domingo seguinte, culpabiJizando o rbitro por terpemtido jogadas desleais.

    Vocs pensam que eu ia sair de fininho? De jeito nenhum. No retiro uma s6 palavra da crnica de domingo passado.( ... ) Ainda no primeiro tempo, um atrela do Grmio fez uma falta e, com o jogador da Lusa estendido no cho, outro gremacho-ch, se no me engano o inotvel Dinho, foi chegando com um jeito sonso e pisou em cheio na mo do adversrio. Coisa de crpula, de canalha, de pilantra. Jogo que segue e outro jogador da Portuguesa cai ( ... ). Pois no que um broncocentauro passou, tranqilamente, pisando no corpo do jogador cado? ( ... ) Um terceiro: um gremsculo cometeu um carrinho, com as duas patas levantadas a 1 metro do cho ( ... ) que acertou pra valer joelho, coxa, virilha, etc., do jogador luso, e nada. Trs momentos vergonhosos para o futebol brasileiro ( ... ). No foram "jogadas viris no calor do embate" ou outra desculpa esfanapada qualquer. Foram agresses, duas delas premeditadas, imorais, sujas. E nada.30

    Ao contrrio da maioria dos profissionais da crnica esportiva, que geralmente omitem a paixo clubstica pois se pretendem imparciais, Blanc manifesta claramente sua inclinao pelos clubes lusitanos - Porruguesa e Vasco. Talvez por essa razo - ele se posiciona como torcedor - suas crnicas no contenham meias-palavras e por isso mesmo so reveladoras. Os termos utilizados para se referir aos "atretas" gremistas - "gremsculos", "broncocentauros" etc. - tocam fundo na questo da masculinidade e, ao suscitar uma comparao entre o estilo gtemista e a figura do ditador Mdici, ele ridiculariza tambm o esteretipo do gacho, excessivamente msculo e, como tal, grosseiro.

    Apesar da acidez dos crticos, pouco a pouco o Grmio foi sendo reconhecido como algo mais que "um time violento" e, portanto, essa acusao perderia legitimidade. Contudo, permaneceria uma tenso em torno dos adjetivos e, por extenso, do enquadramento ao qual seu estilo haveria de ser submetido.

    O diabo que o estilo do Grmio me lembra sua anttese, em matria de brilho - o drible de Garrincha. Todo mundo sabia de cor

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    e salteado quais os movimentos que faria, sempre para a direita. E ningum conseguia impedi-lo de repetir a jogada hipntica e fatal. Assim o Grmio. Joga fechadinho, durssimo na marcao, partindo para os contragolpes que culminam invariavelmente no cruzamento para o cabeceio de Jardel. E assim vai o Grmio construindo sua legenda.31

    Esta crnica traduz o que se poderia considerar uma opinio generali-zada sobre o estilo gremista. Ele era eficiente e, portanto, era bom. Mas era tambm a anttese de Garrincha, um dos smbolos do futebol-arte e, sendo assim, no era belo.

    Pois o Grmio um campeo muito peculiar, cuja fora maior, alm da tradio, repousa num treinador competente e num elenco unido at a morte. Olha-se o Grmio como um todo, uma combinao de setores e fatores que quase sempre d certo. No se v individualidade, exatamente porque ela se anula em funo do conjunto. As estrelas no brilham. S o Grmio.32

    Como se percebe, h elogios tradio, competncia do treinador e, principalmente, coletividade. "No se v individualidade, exatamente porque ela se anula em funo do conjunto" mais do que uma simples constatao. Mesmo que implicitamente, o estilo gremista deslocado do cenrio nacional. Ao contrrio do futebol-arte, o sucesso do Grmio reside na coletividade, no esprito de grupo, na superao, na solidariedade e em outros tantos valores que, se no anulam as individualidades, colocam-nas em segundo plano.33 "As estrelas no brilham", o Grmio no tem "garrinchas", "lenidas" e "deners" ou, se os tem, trata de convenc-los a pr seus talentos disposio da coletividade.

    Opinio partilhada, desde sempre, pelos cronistas gachos e expressa, mais tarde, por Ruy Carlos OsteIDlann - comentarista esportivo da Rdio Gacha e cronista de Zero Hora.

    Poucas dimenses vitoriosas de um time servem mais a esse momento difuso do futebol brasileiro. O time do Grmio no tem um asno consumado, de altssima voltagem tcnica como os principais brasileiros tm ou imaginam ter. Tem, ao contrrio, um grupo que sabe jogar basicamente o futebol, tem boa tcnica, mas que s se vale disso depois de ter quebrado a resistncia ofensiva do adversrio e se assegu-

    rado de que a bola o primeiro triunfo dos times vitoriosos. E essa identidade de guena, luta e afirmao coletiva que est concedendo ao Grmio as benesses de jogos encruados resolvidos positivamente, pelo regulamento ou pelo escore, na unha. A unha prdiga do jogo.34

  • Ah! Eu Sou Gacho!

    Na verdade, seja por intl:I1ndio de seus dirigentes, comisso tcnica e jogadores, ou mesmo dos torcedores e da crnica gacha, o Grmio nunca pretendeu ser reconhecido como um prottipo do futebol-arte. Muito pelo contrrio, os qualificativos empregados siruavam-no do lado direito do quadro "futebol europeu vs futebol brasileiro" apresentado anteriormente. Nessa perspectiva, o Grmio era o mais europeu e, por extenso, moderno, e tambm o mais ponenho e, conseqentemente, obsoleto dos times brasileiros. Isso no significa que o futebol dos vizinhos uruguaios e argentinos, com os quais os brasileiros rivalizam desde o princpio do sculo, seja considerado antiquado. O que sempre se diz que eles so competitivos a ponto de usar dispositivos contrrios ao fair-p/ay. E o Grmio era 11m exemplo dessa competitividade, por vezes excessiva, incompavel com o futebol-arte que caracteriza a "tradio" brasileira.

    De qualquer forma, o Grmio se colocou, intencionalmente, numa posio de enfrentamento do que poderia ser denominado status quo do nosso futebol. Se existia algum tipo de reivindicao nessa atirude, e isso me parece evidente, ela tinha por base a alir mao das diferenas, e, considerando-se que o Grmio foi exitoso dentro de campo, tal reivindicao, ouvida de muitos torcedores, poderia ser resumida da seguinte forma: ns, gremistas, representantes dos gachos, somos diferenteS porque teT/U)S uma concepo singular do futebol e, simultaneamente, somos os melhores na medido em que nosso estilo ateSta sua eficcia na razo direta das conquistaS do GrmIJ.

    Nos ltimos anos o Grmio foi o representante do Rio Grande do Sul, mas esse raciocnio extensivo tambm ao Internacional e, vez por outra, ao Juvenrude. O, se se preferir, ao xito de qualquer clube gacho.

    As vitrias de Inter e Grmio sobre Botafogo e Vasco da Gama, sbado, foram a reafil mao plena de uma idia moderna de se jogar futebol contra outra, superada e desprezvel por conter a negao do principal objetivo de uma disputa que venc-la. A perplexidade desencantada, venida pelas emissoras de rdio do Rio de Janeiro sobre a campanha do Internacional, mostra que os colegas cariocas no so bons alunos. Desde 1 975, quando o Inter desbancou o Fluminense, considerado um time quase insupervel na velha cone, o futebol gacho vem repetindo lies que no conseguem sensibili7J!r a festiva comunidade carioca. S no sbado foram duas, uma no Maracan e outra no Olmpico. Uma conformada e antiga expresso popular fala em "pobre, mas caf bem doce", o que equivale a "perder, mas jogando bonito". O futebol gacho mais ragmtico. Prefere "vencer, mesmo jogando feio". Questo de gosto.

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    E de onde provm esse pragmatismo to ao gosto dos gachos, que lhes "autorinl" manifestaes ufanistas como esta? A sobreposio entre as representaes veiculadas pelo futebol e aquelas dissemidas pelo tradicionalismo so notrias. Basta con6 ontar o slogan "Grosso no, tradicionalista" com "Violento nao, pegador". O primeiro pode ser observado nos automveis de muitos dos freqentadores de CfGs, ao passo que o ltimo ouvia-se da boca daqueles que contestavam as acusaes dirigidas ao Grmio. Segundo estes ltimos, o Grmio no era violento: era viril, raudo, pegador. ... Estava, portanto, no limiar tnue que separa a busca da vitria da busca a qualquer preo. E aqueles que no compreendem o "estilo gacho" so freqentemente chamados de romnticos, obsoletos, festivos e outros qualificativos do gnero, todos eles de cunho pejorativo. Eles veriam o espetculo e to-somente o espetculo, ao passo que os "verdadeiros" entendedores saberiam contemplar tambm o esforo dos bastidores, do cotidiano e, no futebol, o treinamento intensivo traduzido nos resultados e na eficcia. Em uma s palavra: "trabalho". Nesse particular, o descompasso entre aqueles que desdenhavam o Grmio e os que o aplaudiam tambm o resultado de um olhar distanciado, de espectador, e outro, prximo, de torcedor. Os prprios gremistas - e os gachos no to colorados - admitiam que seu time no era l essas coisas, no tinha um toque de bola refinado, bom de se ver, mas cumpria o seu objetivo, que era vencer, e quando no o fazia, muitas vezes por deficincia tcnica, ainda assim era aclamado pelo empenho, pela dedicao, pela bravura, enfim, por elementos quaisquer, desde que satisfizessem a condio de verossimilhana com o gauchismo.

    O mitar nas arquibancadas

    De maneira geral, as vozes torcedoras, quando ouvidas em separado, tratavam de contestar as acusaes de violncia dirigidas ao Grmio, usando, basiCllmente, os mesmos argumentos veiculados pela mdia; ou, quem sabe, a mdia que se apropriava da fala torcedora. Se os pontos de vista tomados

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    individualmente so imponantes, mais ainda so as manifestaes coletivas. E nelas que reside a diferena entre o que pensam os torcedores e um dirigente ou cronista isoladamente. A rigor, o substrato pode ser o mesmo, mas existe uma distncia muito grande entre, por exemplo, um xingamento evocado por este ou aquele indivduo e o mesmo insulto dito pelo estdio todo.

    Depois da derrota para o Corinthians na Copa do Brasil em 95, no auge das acusaes, os gI1!mistas protagoninlram ouuo episdio que marcaria a recente trajetria do time.36 Findo o jogo decisivo, pde-se ouvir os gritos da torcida

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    corinthiana presente no estdio - "E, campeo! E, campeo!" - e o foguetrio colorado fora dele. Mas isso foi apenas um instante, uma frao de tempo

  • Ah! Eu Sou Gacho!

    imediatamente aps o apito do final. Em seguida os torcedores gremistas comearam a aplaudir e, rapidamente, o hino do clube, de autoria de Lupicnio Rodrigues, foi sufocando a festa colora da e corinthiana: 't a p ns iremos/ Para o que der e vier/ Mas o cerw que ns eSUlremos/ Com o Grmw onde o Grmio estiver. "

    Se levado em considerao apenas o aspecto clubstico, ainda assim a manifestao dos gremistas merece destaque. No sempre que a frustrao da derrota possibilita a coeso, e mais raro ainda ver o coro do perdedor, dos

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    "sofredores", calar o ufanismo dos vitoriosos. E bem verdade que quase todos os hinos dos clubes trazem uma mensagem de fidelidade, e at se diz que o bom torcedor se conhece na derrota. Porm, o mais comum que esse sofrimento se expresse pelo silncio.

    Mas, parafraseando HelenaJ r., citado anteriormente, o Grmio no tinha apenas "um time unido at a morte", tinha uma torcida que estava com o time "para o que desse e viesse". Ambos estavam unidos pela reciprocidade prpria dos atletas e torcedores, mediados pelo clube, mas tambm pelo sentimento de excluso e auto-excluso. No auge das crticas, os atletas eram violentos, e o comportamento dos torcedores, embora ningum ousasse expressar publicamente, era no mnimo bizarro. Afinal, quem aplaudiria Dinho saindo expulso de campo seno a torcida gremista? Como poderia algum projetar sua identidade tendo como dolo um "broncocentauro", um "atreta"? Na concepo dos gremistas seu time nunca seria belo, e naquela deciso da Copa do Brasil nem bom havia sido. Ainda assim, o pacto foi firmado e, quer queiram quer no, todos os clubes que passaram pelo Olmpico sofreram com o rigor do jogo e da arquibancada.

    Um segundo episdio que merece ser destacado ocorreu no primeiro jogo pelas finais do Campeonato Brasileiro de 1996, quando o Grmio enfrentou a Portuguesa no Morumbi, em So Paulo. Os torcedores saram de Porto Alegre escaldados com a manchete de capa do jornal Gazela Esportiva: "CUIDADO, RODRIGO! Craque da Lusa tem apanhado muito e agora vai pegar Dinho & Cia.".37

    Na chegada capital paulista, os gremistas ainda teriam o dissabor de serem informados de que nenhum atleta do Grmio, nem mesmo Paulo Nunes, havia side convocado por Zagallo para o ltimo amistoso da seleo. Depois do jogo, enquanto aguardavam os torcedores da Lusa sarem do Morumbi, surgiu, beira do gramado, um senhor de cbelos brancos que os gremistas supuseram ser Zagallo. A reao foi imediata: 'o, 00, 00, Paulo Nunes seleo!" Seria apenas uma justa reivindicao, na medida em que Paulo Nunes era um dos artilheiros da competio. Em seguida porm, passaram aos xingamentos: "Recordar viver, a Nigria acabou com vocs!" Pois bem, a Nigria desclassificou o Brasil nas

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    Olimpadas em 1996 e muitos foram os que consideraram justa a derrota. At a nada .de mais. Mas por que "vocs"? Por acaso os gremistas no so brasileiros e como tal no haviam, tambm eles, sido derrotados? Em tellllOS; o coro seguinte esclareceria o "vocs':: "Ar-gen-ti-na! Ar-gen-ti-na!" O 9uarto cntico seria ainda mais conrundente: uIs, fs, fs, o Rio Grande meu pafs! Is, fs, fs o Rio Grande meu pafs!" E assim prosseguiram at a sada do Morumbi.

    Como interpretar manifestaes dessa narureza? Estariam os ideais separatistas latentes na culrura gacha de tal forma que na primeira oporrunidade seriam manifestos?

    A resposta seria dada pelos prprios torcedores alguns meses depois, mas, posso adiantar desde logo, no se trata propriamente de uma reivindicao separatista, mesmo que muitos afirmem j terem sonhado com a Repblica do Pampa ou, quem sabe, com uma fuso englobando Paran e Santa Catarina.

    O auge da escalada gremista, que coincidiu tambm com o fechamento de 11m ciclo vitorioso depois do qual o clube mergulharia numa crise tcnica e administrativa, foi desencadeado com a conquista da Copa do Brasil de 1997. O rirual festivo seguiu, em linhas gerais, o mesmo de quando o Grmio foi campeo da Libertadores, em 95. S que dessa vez os aspectos regionais eram mais evidentes, em parte porque o derrotado havia sido o Flamengo e, acima de rudo, um carioca, e em parte porque a Copa do Brasil , de fato, uma competio voltada para a arualizao das rivalidades regionais.

    Depois do empate com o Corinthians no Olmpico, que classificou o Grmio para as finais, pde-se ouvir, como em outras tantas oporrunidades, o coro: "Uh, uh, uh, paulista pau no cu!" No era corinthiano, e dessa vez ningum contestou. O Corinthians, patrocinado pelo Banco Excel-Econmico, representava o mesmo que o Palmeiras-Palmalat nos anos anteriores. Venc-los sempre foi lima faanha, e o Grmio o fizera novamente.

    Na sada do estdio, os alto-falantes do Olmpico, que sempre anunciam o hino do clube aps os jogos, dessa vez reproduziram "Querncia Amada", uma msica gravada na dcada de 70 por Teixeirinha e recentemente relanada por Osvaldir e Carlos Magro.

    Embora a maioria dos gremistas, mesmo os mais antigos, s cantassem a primeira e a ltima estrofes, a letra merece ser reproduzida na ntegra, pela peculiaridade com que expressa o "amor ao Rio Grande".

    I Quem quiser saber quem sou Olha para o cu azul E grita junto comigo Viva o Rio Grande do Sul

    II O leno me identifica Qual a minha procedncia Da provncia de So Pedro Padroeiro da querncia

  • III Oh meu Rio Gmnde De encantos mil Disposto a tudo Pelo Bmsil

    V Bero de Flores da Cunha E de Borges de Medeiros Term de Getlio Vargas Presidente Bmsileiro

    VII Te quero tanto TOlIo gacho Morrer por ti Me dou ao luxo

    IX Meu como pequeno Porque Deus me fez assim O Rio Gmnde bem maior Mas cabe dentro de mim

    XI Deus gacho De espom e mango Foi marngato Ou foi chimango

    AlI! Eu Sou Galcho!

    IV Querncia amada Dos parreimis Da uva vem o vinho Do povo vem o carinho Bondade nunca demais

    VI Eu sou da mesma vertente Que Deus sade me mande Que eu possa ver muitos anos O cu azul do Rio Grande

    VIII Querncia am ada Plancie, sellas Os braos que me puxa Da linda mulher gacha Beleza da minha ten a

    x Sou da gemo mais nova Poeta bem macho e guapo Nas minhas veias escorre O sangue heri de faI rapo

    XII Querncia amada Meu cu de anl Este Rio Gmnde gigante Mais uma estrela brilhante Na bandeim do Bmsil

    Embom haja, na letra de "Querncia amada", referncias indiretas s cores do Grmio ("cu azul"1 "cu de anil"; estrofes I, VI e XII), certamente no em esse o motivo pelo qual a msica em to apreciada naquele contexto. Em o auge, pode-se dizer, da evocao simultnea do gremismo e do gauchismo. O "amor ao clube", por exemplo, em muito se parece com o "amor ao Rio Grnnde" (estrofes lI, VI, VII e IX), e desse "amor" resulta a evocao das "belezas do Rio Grnnde" (estrofes lI, III, IV e VIII) que, a rigor, podem ser associadas grnndeza

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    do Grmio. H na letra um jogo entre sentimentos contraditrios que tambm estavam muito presentes entre os gremistas. O "amor ao Rio Grande" se faz sentir no culto a Borges de Medeiros e a Flores da Cunha (estrofe V) - governantes autoritrios, lderes que dominaram a poltica local nas primeiras dcadas deste sculo -, na idolatria dos farrapos (estrofe X) e de chimangos (federalistas) e maragatos (republicanos) (estrofe XI). A estrofe VII sugere que o amor pelo Rio Grande ("Te quero tanto/ TOllo gacho") vale a prpria vida ("Morrer por til Me dou o luxo"). Tambm faz crer que pelo Brasil que essa entrega se justifica, como na estrofe II (''Oh meu Rio Grande/ De encantos mil! Disposto a tudo/ Pelo Brasil"). A auto-excluso, to presente nos xingamentos a "Zagallo", depois do jogo com a Portuguesa, no Morumbi, pode ser comparada referncia "provncia" na estrofe 11 ("Qual a minha procedncia! Da provncia de So Pedro"). Por isso se exaltou tanto a vitria do Grmio pois, no fundo, as conquistas nacionais, em 1996 e 1997, representavam a realizao do desejo de reconhecimento frente aos demais torcedores, mdia do centro do pas, enfim, ao Brasil como um todo. O culto "pegada", "raa" e s "tradies", que por vezes tornou o estilo do Grmio um antiestilo, mas que, tempos depois, foi exaltado, talvez tenha a ver com as recorrentes afirmaes de que os gachos sempre esto dispostos guerra (estrofe X) mas, simultaneamente, so representados como cordiais e hospitaleiros (estrofe IV). Gremismo e gauchismo se fundem, finalmente, na medida em que, atravs do Grmio, "Este Rio Grande gigante" tornara-se "Mais uma estrela brilhante/ Na bandeira do Brasil". Hobsbawm (1990: 171) estava absolutamente correto quando afilmou que "a imaginria comunidade de milhes parece mais real na forma de um time de onze pessoas com nomes. O indivduo, aquele que apenas torce, torna-se o prprio smbolo de sua nao [regio, federao, provn-

    . 'd d ]" ela, Cl a e... . No deixa de ser inusitado ouvir-se jovens e adolescentes cantarem, a

    todo pulmo, uma msica inicialmente gravada h mais de duas dcadas, e por Teixeirinha, um cantor/compositor tido como "brega" por jovens urbanos de qualquer poca. Talvez o slogan dos bailesjimks cariocas combinasse melhor com o pblico preponderantemente jovem dos gremistas em geral e das torcidas organizadas em panicular. "Ah! eu t maluco!" havia-se tornado mania nacional, inclusive nos estdios de futebol. Era imperioso que os gremistas tambm o adotassem, mas no haveria a uma espcie de imitao?

    ,

    E verdade que os torcedores nunca se importaram muito com esse tipo de apropriao, mas nesse caso, porque a deciso da Copa do Brasil/97 era contra o Flamengo - segundo os gremistas e colorados, nenhum outro clube representa

    ,

    to bem o futebol-arte como o Flamengo -, o plgio seria evidente. E impossvel saber de quem partiu a idia, mas o ceno que naquele jogo do Olmpico o "Ah!

  • Ali! Eu Sou Gacho!

    Eu I maluco!" j se transformara em "Ah! Eu s gacho!". E a consagrao definitiva viria dois dias depois, no Maracan.

    Na noite de quinta-feira, as ruas de Porto Alegre foram tomadas de gremistas. Portando bandeiras do clube, os torcedores festejavam aos gritos de

    "E, tricampeo!" e "Ah! Eu s gacho!". Entre as bandeiras do Grmio podia-se observar tambm as do Rio Grande do Sul e at mesmo do Brasil, juntas ou separadas. "O Laador", monumento-smbolo da cidade, inspirado em Paixo Crtes, gacho-smbolo do tradicionalismo, foi coberto com uma enoIlne bandeira gremista.

    O Grmio era, segundo a manchete do Correio do PtlVO, "dono do Brasil",38 com dois ttulos nacionais conquistados num perodo de seis meses. A festa era dos gremistas, mas os cnticos e os smbolos eram mltiplos; as manifestaes evocavam a identidade clubstica e tambm o gauchismo. O Grmio se encaixara no futebol nacional. E pelo caminho mais rduo, qual seja, contestando o "futebol-arte". Agora ningum ousaria evocar as mximas do separatismo, pois, em se tratando de futebol, tripudiar o "outro" to importante quanto cultuar a prpria identidade. E para tripudiar preciso, antes de mais nada, estar prximo, encaixado.

    Encen ava-se, entao, um ciclo vitorioso do Grmio. O futebol opera uma temporalidade cclica, um constante perde e ganha. J o gauchismo, mais inclinado linearidade cumulativa, preserva um substrato que precisa ser constantemente atualizado e, assim sendo, nada impede que o Inter, em breve, passe a desempenhar esse papel.

    Essa complementariedade entre futebol (evento) e gauchismo (estrutura), tal como a apresentei, poderia ser aprofundada luz da noo de "estrutura da conjuntura" sugerida por Marshall Sahlins (1990). Por hora, preciso deixar claro, ao menos, que a noao de "substrato", referindo-se ideologia do gauchismo - agregada ou no ao futebol-, no deve ser entendida como acabada, enrijecida ou prxima de qualquer perspectiva que remonte os deteIlninismos geogrficos, tnicos ou raciais. Trata-se de um residual, evidentemente. Mas de um residual socialmente elaborado ao longo do processo histrico e, como espero ter demonstrado, permanentemente atualizado, inclusive atravs dos eventos futebolsticos.

    As conquistas do Grmio permitiram a manifestao e at mesmo o ufanismo desses residuais. Talvez se pudesse, num momento de crise do futebol gacho, verificar justamente o inverso. Ou seja, o questionamento desses mesmos valores que, entre 1995 e 1997, foram to exaltados.

    Ocorre que esta justamente a especificidade do futebol. Como linguagem, ele expressa as particularidades de cada estilo e permite, tambm, veicular mensagens que dizem respeito esfera mais ampla da sociedade. O

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    futebol no cria fatos novos, a no ser para si prprio. O que faz, enquanto um frum polmico e absorvente, habitado pelo xtase do culto e do xingamento, permitir que sejam expressos, coletivamente, determinados sentimentos acerca do "eu" e do "outro". Talvez porque no existam outros fruns apropriados. Ou porque tais sentimentos devam ser expressos de uma maneira que s o futebol possibilita, na medida em que faz a "seriedade" passar por "brincadeira".

    De qualquer modo, no se pode reduzir essas brincadeiras a meras "coisas do futebol". A reivindicao regionalista, especialmente no caso dos gachos, no alheia aos espordicos movimentos separatistas que pipocam aqui e acol. O fato de estes ltimos terem sido reprimidos pelos prprios gachos, de uns tempos para c com maior veemncia do que outrora, no significa que as diferenas regionais tenham perdido sua fora, seu valor identitrio. "Pegar em atInas" coisa do passado. Agora, dificilmente se ver o Grmio, o Inter ou o J uvenrude vencerem os "outros" sem que seja evocada, concomitantemente, a "bravura", a "garra" e a "virilidade" que, se cr, caracterizam o "eslo gacho". E desgraado ser aquele jogador ou time que no satisfizer essa condio de verossimilhana.

    Notas

    1. "Silncio no Maracan", O Estado de So Pauw, 25/5/97.

    Z. O Grmio Foot-BaU Pono Alegrense foi fundado em 1903 por jovens pertencentes s camadas mdia e alta, em sua esmagadora maioria germanos ou descendentes, e desde os anos 10 rivaliza localmente com o Spon Club Internacional, fundado por imigrantes paulistas e jovens de menor prestgio na sociedade pono-alegrense. Embora o Inter s tenha admicido neglos no time muitos anos depois de sua fundao, o fez cerca de duas dcadas antes do Grmio. Essa diferena acentuou ainda mais a identificao j existente dos colorados como pertencentes ao clube "do povo" e dos gremistas como sendo "de elite".

    Ainda hoje essas diferenas so evocadas em cnticos e xingamentos, embora pesquisas de opinio indiquem no existir qualquer diferena nesse sentido.

    3. A saber: Campeo da Copa do Brasil, 1994 e 1997; Campeo Brasileiro, 1996; Campeo da Libenadores da Amrica, 1995; Campeo da Recopa Sul-Americana, 1996; alm de Campeo Gacho, 1995 e 1996, e ganhador de vicecampeonatos e Outros torneios de

    -menor expressa0.

    4. Se meus infonnaotes, especialmente aqueles que advogam a marginalizao dos gachos (cf. o restante do texto), soubessem da imponncia de Gilbeno Freyre na fonnao da intelligentsia brasileira e de sua contribuio para a

  • compreenso do nosso futebol, cenamente no hesitariam: r'T vendo, ele nos deixou de fura!" 5. Ao abordar a questo da fonnao do Estado nacional e das diver.;idades regionais, em "Unidade e diver.;idade, nao e regio", Freyre (1971) deixa transparecer alguns pontos confonnes noo de brasiJidade expressa no prefcio de O negro no futebol brasileiro. Em detenninado momento, afuma que os estados de So Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul "desenvolveram-se em alguma coisa semelhante a partidos polticos, com prejuzos para a unidade e para o desenvolvimento barmnico do Brasil" (p. 89). Logo abaixo, critica a demasiada autonomia poltica dessas unidades federativas, em vinude da qual, por ocasio de uma viagem a Minas Gerais - o mesmo valendo para So Paulo e para o Rio Grande do Sul -, bavia ficado com a "impresso de ter estado nllma Prssia brasileira" (p. 89). Para Freyre, portanto, "os brasileiros do Nordeste - das zonas ridas e semi-ridas dessa regio ou sub-regio - so como os primeiros paulistas, tipicamente caboclos, ou indgenas, e mais teluricamente e tradicionalmente brasileiros pelo esprito e pela conduta do que qualquer outro tipo regional" (p. 94). Cf. tambm Marcos Alves de SOllza (19%).

    6. Sobre os preparativos do Brasil para aquela Copa - "at as supersties eram cumpridas com rigor cientfico" - e o temor diante do cieotificismo sovitico, cf. Ruy Castro (1995), especialmente "O Sputnik fulminado".

    7. E interessante notar como a metfora dos vira-latas - segundo o Aurlio, "co de rua, sem raa determinada" - lembra as leses evolucionistas da virada do sculo. Ao contrrio de Gilberto Freyre, que v na miscigenao um dos aspectos positivos da fonnao do "carter brasileiro", Nelson Rodrigues, no fundo,

    Ah! Eu Sou Gacho!

    culpabiliza-a pela nossa suposta frouxido. "Complexo de vira-latas" foi publicada na Manc/l$lc Esportiva em 31/5/58 e posterionnente reeditada em Rodrigues (1993a). Sobre a derrota em 1950 e a estigmatizao dos jogadores negros, cf. entre outros Leite Lopes (1992). 8. Cf. Francisco Jos Oliveira Vianna, in Rubem Oliven (1992: 51).

    9. Cf. Renato Ortiz (1994: 3644): "Da raa cultura: a mestiagem e o nacional".

    J o. De acordo com dados recentes, existem mais de 1.800 Centros de Tradies Gacbas (CfGs) espalhados pelo Rio Grande do Sul (1.350), Paran (231), Santa Catarina (120) e Regio Centro-Oeste (68) - estados com presena marcante de imigrantes gachos -, por outros estados (47) e at no exterior (2). U. Zero Hura, 15/9/1997. lI. Cf. Histria Rusrrada da Grmio, nO 3, p. l I.

    12 Sempre que houver itlico, trata-se de depoimentos obtidos em entrevistas gravadas, com exceo de cnticos e xingamentos coletivos, reproduzidos do dirio de campo.

    13. Ao comentar a instalao da Ford no Rio Grande do Sul, anunciada recentemente, Lasier Martins, ncora da Rdio Gacha, lembrou a "tradio" competitiva desse estado. Segundo ele, a chegada da Ford era salutar na medida em que criaria uma rivalidade com a General Motors, anunciada no incio de 1997, e, assim sendo, consolidaria uma tradio_ de bipolaridade que viria desde cbimangos e maragatos, passando por PTB e UDN at o Gre-NaI. Para ele, essa bipolaridade seria um dos elementos que explicariam a lisura e a pujana dos gachos, na poltica, no futebol e agora tambm na economia (Programa Gacba Reprter, 1/10/97).

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    estudos histricos 1 999 - 23

    14. Cf. Zero Hora, 2/12/96. 15. Cf. Folha i So Paulo, 21/6/96 . 16. Cf. Paulo Sant' Ana in Zero Hora, 23/5/97.

    1 7. Cf. Folha de So Paulo, 24/9/97. 18. Quando me refiro s arquibancadas, tenho em mente a torcida gremista, especialmente suas manifestaes coletivas, sejam elas advindas das ruas, das excurses ou mesmo do Estdio Olmpico. J em relao "mdia", gostaria de fazer algumas consideraes. Em primeiro lugar, devo deixar claro que pano do princpio de que os discursos no futebol se caracterizam por uma espcie de circularidade, de tal forma que dirigentes, cronistas e torcedores se comunicam entre si e, ponanto, a atuao de uns e outros no pode ser dissociada. Em segundo lugar, devo advertir o leitor de que tentarei evitar ao mximo o uso de termos genricos como "imprensa gacha", "paulista", "opinies do eeorro do pas" e assim por diante. Quando isso no for possvel, entenda-se por "imprensa/mdia gacha" os jornais Zero Hora e Correio do Povo, as rdios e Tvs Gacha, Guaba e Bandeirantes. E, por "imprensa/mdia paulista", os jornais Folha de So Paulo, O Estado de So Paulo e Gazeta Esportiva ; os programas "Apito Final", da Rede Bandeirantes, e "Carto Verde", da TV Cultura. 19. Cf. Folha de So Paulo, 18/6/95. 20. Cf. Folha de So Palllo, 25/6/95. 21. Cf. Folha de So Paulo, 30n/95. 22. Programa exibido pela TV Cultura em 27/8/95. 23. Cf. Folha de So Paulo, 31/8/95. 24. Sobre a questo da violncia entre as torcidas organizadas em So Paulo, cf. Luiz Henrique Toledo ( 1996). 25. Cf. Folha de So Palllo, 21/6/95.

    26. Cf. Folha de So Paulo, 30/1 1/95. 27. Cf. Folha de So Paulo, 4/1/96. 28. Cf. Aldir Rlanc, in O Estado de So Paulo, 15/12/96. 29. Idem, ibidem. 30. Cf. O Estado de So Paulo, 22/12/96. 31. Cf. Folha de So Paulo, 15/5/96. 32. Cf. Alberto Helena Jr., in Folha de So Paulo, 18/12/96. 33. Marinas Suzuki sugeriu, inclusive, "um paralelismo" entre esse "esprito de solidariedade" e "o comportamento poltico-social do gacho, nico na vida brasileira" (cf. Folha de So Paulo, 3/8/95). Para alguns o "esprito de solidariedade", a partir do qual os talentos individuais eram negligenciados em funo da coletividade, explicaria o faro de o Grmio, apesar de campeo brasileiro, no ter nenhum atleta convocado para a seleo; ao contrrio do Palmeiras que, mesmo eliminado, teve seis de seus jogadores solicitados por Zagallo. Para outros, como Juca Kfouri, estava-se cometendo injustia com o Grmio; chegou at a ironizar: "o Grmio deveria pedir inscrio no Campeonato Alemo, porque parece que no considerado um time brasileiro" (cf. Folha de So Paulo, 13/12/97).

    34. Cf. Zero Hora, 24/5/97. 35. Cf. Wianey Carlet, comentarista esportivo da Rdio Gacha e colunista de Zero Hora, in Zero Hora, 8/9/97. 36. O volante Dinho, um dos smbolos daquele time, afirmou que, de todos as manifestaes dos torcedores, incluindo aquelas por ocasio das conquistas, esta teria sido a que tocou mais fundo nos jogadores. Cf. Grmio: corao e raa, vdeo produzido pelo cineasta Carlos Gerbase a pedido do prprio Grmio. 37. Cf. Gazeta Esportiva, 10/12/96. 38. Cf. Correio do Povo, 24/5/97.

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