paulo afonso zarth - historia agraria do planalto gaucho 1850-1920l-1
TRANSCRIPT
1
HistóriaAgrária
do Planalto Gaúcho1850 – 1920
2
3
1997, Editora UNIJUÍ
Rua do Comércio, 1364
Caixa Postal 675
98700-000 – Ijuí – RS
– Brasil -
Fone: (055) 332-7100, Ramal 217
Fax: (055) 332-7977
e-mail: [email protected]
http://www.unijui.tche.br/unijui/editora/
Capa: Vilson Maurio Mattos
Ca ta lo gação na Fon te :
Biblioteca Central UNIJUÍ
Z36h Zarth, Paulo Afonso
História agrária do planalto gaúcho 1850-1920 /Paulo Afonso Zarth . I ju í : Ed. UNIJUÍ , 1997. - -208 p. -- (Coleção Ciências Sociais).
ISBN 85-85866-60-B
1.História agrária 2.Rio Grande do Sul – Históriaagrária 3.Planalto gaúcho – História agrária 4.Socieda-des agrárias I.Título II.Série.
CDU: 981:316.324.5(816.5)
316.324.5:981(816.5)
981(816.5)"1950/1920".
4
Sumário
APRESENTAÇÃO ................................................................................... 07
INTRODUÇÃO DO TEMA ........................................................................ 08
Fontes e metodologia ............................................................................... 09
CAPÍTULO I – O PLANALTO DO RIO GRANDE DO SUL ........................ 12
A delimitação da região............................................................................. 12
A delimitação do tempo ............................................................................ 14
O brasil meridional ................................................................................... 14
O planalto ................................................................................................ 17
A fronteira política .................................................................................... 18
A fronteira agrícola ................................................................................... 22
Conclusão ............................................................................................... 25
Notas ...................................................................................................... 26
CAPÍTULO II – A APROPRIAÇÃO DA TERRA......................................... 28
O aldeamento dos indígenas ................................................................ ..... 29
A formação das estâncias ......................................................................... 32
A extensão das estâncias.......................................................................... 34
5
O militarismo e a apropriação da terra .................................................. 37
Os ervais e as terras florestais................................ .............................. 40
A legislação agrária ............................................................................... 50
A colonização ........................................................................................ 56
O comércio de terras ............................................................................. 59
A evolução dos preços das terras ......................................................... 65
A ideologia e a mercantilização da terra ............................................... 68
Conclusão................................................................ .............................. 72
Notas...................................................................................................... 73
CAPÍTULO III – O USO DA TERRA ......................................................... 78
A estância ................................................................ .............................. 78
O auto-abastecimento da estância ........................................................ 83
A erva-mate............................................................................................ 85
A produção e o comércio da erva-mate................................................. 88
A agricultura .......................................................................................... 93
A expansão agrícola ................................ .............................................. 99
Conclusão................................................................ ............................ 106
Notas.................................................................................................... 108
CAPÍTULO IV – OS TRABALHADORES ............................................... 111
Os escravos ......................................................................................... 111
A população escrava ........................................................................... 114
As atividades dos escravos................................................................. 115
A transição........................................................................................... 118
Os peões .............................................................................................. 124
Os trabalhadores dos ervais ............................................................... 126
Os colonos ........................................................................................... 129
Conclusão................................................................ ............................ 131
Notas.................................................................................................... 132
6
CONCLUSÃO FINAL............................................................................. 137
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS .......................... 139
ANEXO Nº 1
Relatório da Camara Municipal de Cruz Alta sobre terras
devolutas(1850) .................................................................................. 147
ANEXO Nº 2
Abaixo-assinado ao Imperador D. Pedro II .......................................... 149
ANEXO Nº 3
Artigo do vereador H. Uflacker sobre a indústria agrícola, publicado no
periódico Aurora da Serra, de Cruz Alta (1884)................................ ... 152
ANEXO Nº 4
Processo-crime contra estancieiro por morte e maus-tratos de
escravos .............................................................................................. 155
7
Apresentação
Este trabalho é resultado dos estudos e pesquisas realizadas durante o curso de
mestrado em História na Universidade Federal Fluminense. A redação do texto foi concluída no
início do ano de 1988. Passados tantos anos de sua redação, o texto vem ao público com
pequenas modificações. Acredito que não poderia ser de outra forma, pois re-escrevê-lo
seria tirar-lhe a identidade.
A realização desse trabalho contou com a colaboração financeira da FIDENE-UNIJUl1
e da CAPES, que me concederam uma bolsa de estudos. Durante a realização do curso de
Mestrado, tive a oportunidade de contar com colegas como Raimundo Palhano, amigo
e interlocutor disposto a longas conversas acadêmicas. Foram importantes as aulas e
sugestões dos professores Nilo Bernardes e Maria Bárbara Levy (que infelizmente não estão
mais entre nós); Victor Valla, Pedro Celso Uchoa Cavalcanti, Margarida Moura, Nancy Smith
Naro, João Fragoso, Francisco Carlos Teixeira da Silva e, em especial, Maria Yedda Linhares.
Agradeço, sobretudo, ao professor orientador Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso, de quem
sempre recebi atenção, estímulos e ampla liberdade para escrever. Agradecimento especial
para a companheira Noeli Weschenfelder.
I ju í, Pr imavera de 1997
Paulo Afonso Zarth
1 Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado (FIDENE) é a instituiçãomantenedora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (IJNIJUf), com sede emIjuí, Rio Grande do Sul.
8
Introdução do Tema
A questão agrária, que no momento é objeto de grandes discussões e inspiradora de
lutas, é bastante antiga, no Rio Grande do Sul e no Brasil, e somente perde sua força
nos períodos de repressão e obscuridade que esporadicamente assolam o país. Estudar o
Brasil agrário é, portanto, um trabalho sempre oportuno. Particularmente, estudamos o
processo de ocupação e apropriação da terra no planalto do Rio Grande do Sul, uma região
cuja importância econômica e política – para o período considerado –é secundária se
compararmos com as áreas de plantations. Este é um trabalho de história regional direcionado
para o estudo de um Brasil agrário de segunda classe: o Brasil sem plantation.
São muitas as publicações que tratam dos centros dinâmicos da economia
agroexportadora do país, mas são relativamente poucas as atenções para as regiões agrárias
que se desenvolvem à margem daqueles centros. Essa situação, felizmente, vem sendo
revertida com a publicação de estudos recentes, o que, certamente, permitirá, num futuro
próximo, uma síntese mais consistente da história agrária brasileira.
Tratamos aqui do planalto do Rio Grande do Sul, cujo processo efetivo de ocupação
e apropriação da terra iniciou-se nas primeiras décadas do século XIX e, cem anos mais tarde,
já estava decididamente consolidado. Esse espaço agrário, cuja economia era voltada para
o mercado interno, recebeu poucas atenções da historiografia e foi, ao longo do período,
considerado insignificante e atrasado. Mesmo os tradicionais viajantes europeus daquele
século não lhe deram importância: Arsene Isabelle, francês, viajando pelo sul do Brasil na
década de 1830 escreveu que a serra – assim era conhecido o planalto – era pobre e
subpovoada. Talvez por isso desviou-se dela, não a visitando. Joseph Love, brasilianista dos
anos 1970, citaria aquele viajante para dizer que a serra permanecia subdesenvolvida até
o final do século XIX. Essa é a imagem que encontramos na maioria das obras que tra-
tam da história regional.
Entretanto, é no século XIX, considerado atrasado e subpovoado, que
9
encontramos as origens das atuais estruturas agrária e social da região. Foi naquele
período que se formaram as grandes propriedades pastoris e surgiram os primeiros
camponeses sem terra quando, paradoxalmente, havia milhares de hectares de terras
virgens.
Estudar o século XIX desta região significa trazer à luz a história de uma massa
camponesa de origem luso-brasileira que tem sido pouco considerada e até discriminada
em muitos títulos da bibliografia brasileira. Os camponeses brasileiros conhecidos como
"caboclos" que ocupam, de forma esparsa, grandes áreas do país são considerados – por
uma larga lista bibliográfica – símbolo do atraso e do tradicionalismo, ao contrário dos
imigrantes europeus, apresentados como símbolo do progresso e do trabalho.
Não se trata de um gesto de complacência para esses camponeses discriminados,
mas sim de examinar sua real importância no processo de ocupação da terra, nas relações
de trabalho da agropecuária regional e na própria formação da estrutura social. Afinal, entre
os escravos e os imigrantes havia uma considerável população de camponeses nacionais.
Fontes e Metodologia
Para esse trabalho procuramos reunir dados a partir de novas concepções de
pesquisa, no que se refere a fontes, que se vêm desenvolvendo na historiografia brasileira
recente. Assim, visitamos os inventários post-mortetn, os processos judiciais e as cor-
respondências oficiais das câmaras municipais e do governo provincial/estadual. Desse modo
temos uma visão mais próxima e detalhada da sociedade em estudo. Os inventários do
século XIX são muito ricos em detalhes que nos permitem verificar com muita clareza o que
se produzia no estabelecimento agrícola do falecido, bem como sua condição de vida.
Temos, através desses documentos, a possibilidade de avaliar tanto a riqueza de um grande
estancieiro como o grau de pobreza de um posseiro. Não se pode, infelizmente, dizer o mesmo
dos inventários do século XX. Estes perdem sua riqueza de detalhes e os documentos não
mais contemplam as heranças abaixo de valores determinados; somente as heranças que
atingem certa importância merecem a vistoria de uma comissão de avaliadores do órgão
judiciário, que descreve em detalhes os bens do falecido. Mesmo as grandes heranças
perdem em riqueza descritiva, pois desaparecem muitos itens referentes a detalhes como o
dos utensílios domésticos. Os inventários dos colonos do início do século XX, por
exemplo, limitam-se a arrolar o lote colonial apenas, sem mencionar os instrumentos
agrícolas e os utensílios domésticos e mesmo as pequenas benfeitorias que constavam
10
nos inventários do período imperial.
O registro paroquial de terras de 1855-56 é uma fonte de grande importância para
formar um quadro da estrutura fundiária e do processo de ocupação da terra. Mas esse
registro apresenta alguns problemas que devem ser considerados: os posseiros pobres
raramente comparecem ao páraco para prestar informações; o tamanho da área de terra é
muito imprecisamente indicado e mesmo, na maioria dos casos, não consta informação a
respeito.
Os processos-crime são também de grande relevância para . a compreensão do
cotidiano e principalmente das relações sociais. Esse tipo de documento é um dos
poucos em que aparecem os depoimentos da população pobre. Nele o povo pobre, ainda
que mal, pode falar. O processo decorrente do crime ou da acusação inclui vários
depoimentos de rara importância, incluindo-se tanto o discurso de um grande fazendeiro
como o de pequenos lavradores pobres e mesmo de escravos. Enfim, é nessa fonte que
podemos ler e sentir a presença das camadas pobres da população, raramente perceptíveis
nos relatórios de viajantes estrangeiros, que tanto têm servido de sustentação para a
historiografia brasileira. É nesses documentos que encontramos, por exemplo, a argumen-
tação de um escravo por matar um cidadão que se atreveu com sua mulher, ou de um
escravo que havia matado seu proprietário em outras terras e se refugiado na região, ou
ainda as reclamações de um posseiro em processo de expulsão de sua roça.
As correspondências oficiais das câmaras municipais nos foram muito úteis por
mostrar-nos um quadro da conjuntura econômica e política de cada momento. Encontramos
relatórios detalhados sobre a propriedade da terra, sobre terras devolutas, sobre política
indígena etc. Na câmara municipal do século XIX eram debatidos muitos assuntos do cotidiano
local.
Os relatórios de presidente da província são uma fonte importante mas, de modo
geral, repetem de forma resumida os relatórios das câmaras municipais. A partir da
República, os relatórios do Rio Grande do Sul são escritos por secretaria. Interessaram-
nos, de modo particular, os da Secretaria dos Negócios e Obras Públicas, nos quais são
relatados assuntos relativos à colonização e à apropriação de terras.
Tivemos ainda a oportunidade de contar com algumas publicações importantes, que
nos serviram de fonte primária. Em 1887, um jornalista de Cruz Alta publicou uma Notícia
Descritiva de toda a região. Em 1909, uma volumosa obra veio à luz, escrita por um
advogado e político, presidente da câmara em três mandatos nas décadas de 1860 e 1870.
11
Apesar dos limites que cercam essas obras em termos de confiabilidade e método de ex-
posição, elas são muito úteis, principalmente se considerarmos que os autores tiveram
larga vivência na região.
Além dessas fontes que comentamos, contamos com uma série de outras,
avulsas, como publicações oficiais, jornais e mesmo relatos de viajantes, arquivadas em
diversos locais do país: Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, 2IHGB – Rio de Janeiro,
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Arquivo Público do Rio Grande do Sul, Biblioteca
Pública de Porto Alegre, Museu Antropológico Diretor Pestana, da UNIJUl, Colégio
Santíssima Trindade, de Cruz Alta.
Através do levantamento de dados dos inventários postmortem foi possível
organizar algumas séries estatísticas com informações das próprias unidades produtivas, o
que nos deu segurança maior do que a oferecida pelos relatos dos viajantes, por
exemplo. Assim, conseguimos elaborar quadros com os preços das terras, com a
produção pecuária e agrícola – tanto seu perfil como sua evolução – e com o número, as
condições de vida e o preço dos escravos utilizados em uma estância. Além desses da-
dos que nos permitiram organizar algumas séries, os inventários nos forneceram
informações singulares corno os mecanismos de endividamento e de comercialização e o
padrão de consumo.
Devido ao elevado número de inventários, optamos por recolher uma amostragem,
selecionando o conjunto de documentos relativos a um ano em cada período de cinco. Além
desses, recolhemos os dados de inventários de personagens importantes (grandes
proprietários, chefes políticos, comerciantes), o que implicou examinar praticamente todos.
Para tanto, elaboramos algumas matrizes para facilitar a coleta dos dados e a organização
de séries estatísticas. As séries homogêneas, organizadas a partir dos inventários e de
outras fontes locais, nos permitiram montar um quadro alicerçado nas próprias unidades
produtivas, proporcionando detalhes que outras fontes genéricas não permitem.
2 IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
12
I
O Planalto do Rio Grande do Sul
Nesse capítulo procuramos demonstrar as influências de natureza geográfica que
interferem na análise histórica. Examinamos a posição do Rio Grande do Sul e do planalto
em particular, em relação ao conjunto do país.
A condição de fronteira política do Rio Grande do Sul tem grande relevância para o
processo de ocupação do extremo meridional do Brasil. Essa fronteira brasileira foi palco de
intermináveis conflitos com os povos vizinhos da bacia do Prata, o que lhe deu caráter
fortemente militar com importantes repercussões na ocupação de terras.
Outra característica notória é a dicotomia campo/floresta que caracterizava a
cobertura vegetal original do Sul e que serviu para emoldurar os contornos de processos
diferençados de ocupação e uso da terra.
Por fim, é importante examinarmos como a condição de isolamento em relação aos
centros dinâmicos da economia nacional influenciou o desenvolvimento econômico regional.
A Delimitação da Região
O espaço que delimitamos para o nosso trabalho foi determinado por alguns critérios
que expomos adiante, considerando que não se trata de uma região isolada, mas inserida
numa totalidade que influi decisivamente no interior de seus limites e vice-versa.
Consideraremos ainda alguns aspectos históricos e geográficos relevantes para o processo
de ocupação da região.
Os limites da região que recortamos para esse trabalho são condicionados pela
produção das fontes, ou seja, obedecerão a um critério de ordem institucional. Dessa forma,
esses limites regionais são os limites da jurisdição política das câmaras de vereadores ou das
comarcas da justiça. Isso decorre da centralização desses órgãos administrativos e
13
políticos, que canalizavam todos os documentos relativos à sociedade abrangida pela
delimitação municipal.
Por outro lado, a região apresenta alguns limites físico-geográficos de significativa
importância para essa regionalização. O planalto é limitado ao sul por uma escarpa
acentuada que consistia em grande obstáculo às comunicações ao longo do século XIX.
Considere-se que, naquele século, as condições de transporte eram muito precárias e com
poucas forças para romper obstáculos geográficos como a escarpa do planalto (a "serra", como
os seus habitantes costumam dizer). O trem, a ferrovia, a grande invenção tecnológica em
termos de transporte, somente chegou à região do planalto no fim do século, melhorando
muito a situação. O caminhão automotor, que é ainda mais eficiente para romper esses obs-
táculos, somente passou a circular quando o século XX já ia longe e portanto passando os
limites do tempo de que nos ocupamos nesse trabalho.
Outro limite importante que reforça o recorte que efetuamos localiza-se ao norte e
ao oeste. Nesses lados corre o rio Uruguai, de difícil transposição dados o volume de suas
águas e a sua profundidade. Além desse obstáculo de ordem geográfica (muito significativo no
século XIX, visto que não havia possibilidades econômicas e tecnológicas para fazer pontes de
porte relativamente grande), na margem oposta estavam ou a província de Santa
Catarina ou a República Argentina (esta a oeste), que se constituem em limites regionais
de ordem política. Afora isso, na margem oposta do rio não havia motivos econômicos que
pudessem tornar possível um avanço dessa natureza além do rio. Em tal margem, a
população era rarefeita e praticamente inexistiam povoados que pudessem se tornar motivo
de alguma ligação maior em termos econômicos. As regiões próximas ao rio Uruguai, em
grande parte de sua extensão tanto de um lado como de outro, eram cobertas de densa
floresta e no máximo havia estradas pelas quais eram conduzidas as tropas de gado para as
feiras de Sorocaba, em São Paulo.
Embora denominemos de "planalto" essa região, isso não significa que a delimitação
proposta coincida com o planalto propriamente dito, considerando os aspectos topográficos.
Como os critérios que utilizamos não se limitam às condições naturais e sim levam em
conta forças de ordens institucional e econômica, deixamos de considerar algumas áreas do
extremo oriental do planalto, por não terem muitas ligações com o centro econômico e
político sobre o qual depositamos nossas atenções: Cruz Alta. Os municípios de Vacaria e
Lagoa Vermelha, no lesse do planalto, tinham ligações mais freqüentes com Porto Alegre,
devido à sua proximidade daquela capital, e sobretudo porque essa área fazia parte do
município de Santo Antônio da Patrulha, cuja sede localiza-se próximo ao litoral.
14
A Delimitação do Tempo
O recorte temporal que adotamos nesse trabalho está condicionado à disponibilidade
de fontes e pelo acesso a elas. As fontes relativas ao período em que os jesuítas
dominaram a região, por exemplo, estão espalhadas por vários arquivos da América e da
Europa, o que dificulta a pesquisa. Por outro lado, a ocupação das Missões pelos gaúchos
no início do século XIX constitui um marco muito forte na história do processo de ocupação
e formação da região. A sociedade que se estruturou a partir da tomada das Missões, em
180 rompeu radicalmente com a estrutura agrária e social do período jesuítico que
perdurara até meados do século XVIII.
As fontes que utilizamos nesse trabalho começaram a ser produzidas a partir da
criação do município de Cruz Alta, em 1834. No entanto, tomemos o ano de 1850 como limite
inferior – embora sem muita rigidez – por ser a data da aprovação da lei de terras que
motivou o registro das estâncias pastoris, o que é importante para os propósitos desse
trabalho. Por outro lado, é um ano no qual a província já está normalizada após os dez
anos de guerra civil, a Guerra dos Farrapos, ocorrida entre 1835 e 1845. O limite superior,
1920, é quando o processo de ocupação das terras florestais já está praticamente
consolidado. Restam na década de 1920 poucas áreas a serem comercializadas e as
companhias de terra já abrem frente no oeste catarinense e no sudoeste do Paraná. As
terras ainda devolutas que existem nessa década, por outro lado, serão ocupadas nos
moldes que caracterizam o processo descrito e analisado nos limites desse trabalho.
O Brasil Meridional
Enquanto a ocupação e a exploração portuguesa no nordeste do Brasil tomava
corpo, no século XVI, o atual estado do Rio Grande do Sul passava quase despercebido. Por
mais de um século após sua descoberta pelos europeus, o território sulino permaneceu
desvinculado da agricultura de exportação, como a que se instalara no nordeste brasileiro, pois
não havia na região nenhum atrativo econômico que justificasse alguma iniciativa rentável.
Desse modo, até o final do século XVI, o extremo sul do Brasil atual continuou
povoado por povos indígenas organizados social e economicamente nos moldes
tradicionais da população brasileira anteriores à invasão européia.
Coube aos missionários jesuítas espanhóis a iniciativa de instalar uma nova ordem
econômica e social nos campos sulinos. Aldearam os indígenas e introduziram o gado
15
vacum nas pastagens nativas, fato que iria marcar a história econômica do sul por muitas
décadas. Atrás dos jesuítas vieram os bandeirantes paulistas em busca de indígenas para
escravizar_ Milhares de homens foram enviados aos centros econômicos da colônia
portuguesa consumidores de escravos. As aldeias jesuíticas sofreram dessa forma um
irreparável revés.
O gado multiplicou-se rapidamente, no entanto, apesar da destruição dos
aldeamentos, formando um imenso rebanho. Com esse rebanho é que o Rio Grande do Sul
integrou-se efetivamente ao circuito econômico da colônia no século XVIII, fornecendo
couros, carnes e gado muar para o transporte na zona de mineração das Minas Gerais. Os
campos sulinos a partir disso transformaram-se gradativamente em grandes estâncias de gado.
Os estancieiros formariam uma poderosa classe que dirigiria o Rio Grande do Sul de forma
hegemônica até o princípio do século XX.
No processo de ocupação das terras sulinas pelos estancieiros é muito relevante
considerar os aspectos geográficos do território. De forma especial, as condições
fitogeográficas tiveram um papel importante nesse processo: uma das características da
cobertura vegetal da terra era a dicotomia entre o campo nativo e a floresta. Os campos
cobriam quase toda a parte sul do território e ao norte disputavam o espaço com as árvores
que tinham tendência de avançar sobre aqueles. Os campos nativos ofereciam excelentes
condições para a criação de gado sem maiores dispêndios para a formação das unidades
pastoris – as estâncias.
O gado e o campo nativo forma o cerne da economia riograndense por longo tempo e
foi na imensidão das pastagens nativas que se delimitaram as grandes propriedades
pastoris, povoadas com muito gado e pouco gente, de tal forma que o próprio presidente da
província, Francisco José de Souza Soares Andréa, denunciava, em 1849, que:
"um dos obstáculos que se têm oposto nesta província ao desenvolvimento da
agricultura é a existência de grandes fazendas ou antes de grandes desertos, cujos donos,
cuidando só e mal da criação têm o direito de repelir de seus campos as famílias desvalidas
que não têm aonde se conservar em pé...”1
A estância, conforme a queixa de Soares Andréa denuncia, era um estabelecimento
centrado na atividade pastoril; a agricultura era secundária. Enquanto o gado e os
estancieiros ocupavam os últimos rincões de campo, a zona de matas permanecia relati-
vamente estagnada em termos demográficos e econômicos. O gado era o carro-chefe da
economia e exigia menos trabalho e capital que a agricultura comercial. Seria uma
16
incoerência derrubar matas para introduzir gado, havendo pastagens naturais.
Não por determinismo geográfico simplesmente, mas por fatores conjunturais, o
processo de ocupação do território sulino está estreitamente ligado às condições naturais
da vegetação.2 A elite pastoril sempre teve a iniciativa de empurrar a fronteira gaúcha até
os limites dos campos nativos tornando-os dos espanhóis se preciso fosse e deixando de
lado as florestas, que seriam efetivamente ocupadas por pequenos agricultores. Em função
disso é que nas zonas de campo encontram-se historicamente as grandes propriedades
rurais do Rio Grande do Sul. A densidade demográfica dos municípios pastoris, também
em função disso, sempre foi bem menor do que a dos municípios t ipicamente
agrícolas.
RIO GRANDE DO SUL - VEGETAÇÃO ORIGINAL-FLORESTAS
E CAMPOS NATIVOS
Os municípios dos vales do Sinos de Taquari e do Caí, que tiveram suas origens em
núcleos coloniais de pequenos agricultores, contavam com uma densidade demográfica em
torno de 25 hab/km2 em 1920. Os municípios das fronteiras oeste e sul – B agé,
Uruguaiana, Livramento entre outros próximos – contavam com uma densidade
demográfica que não passava de 5 hab/km2 naquele mesmo ano, apesar de serem seus
núcleos urbanos maiores do que os dos municípios agrícolas. No planalto, o novo
17
município de Ijuí, criado a partir de uma colônia oficial, contavam com uma densidade de 19,87
hab/km2, superando largamente antigos municípios vizinhos corno Cruz Alta, que contava
com um índice de 4,95 hab/km2 apenas, em 1920.3
Ao contrário do nordeste brasileiro, onde, no período colonial açucareiro, o gado foi
expulso para o sertão inóspito em favor da cultura da cana-de-açúcar, o gado sulino foi
privilegiado em detrimento da agricultura, essa, no caso, expulsa para as florestas
inóspitas. O gado no sul era a atividade nobre e o poder político era comandado pelos
pecuaristas que determinavam o processo de ocupação das terras gaúchas.
A agricultura a cargo de pequenos lavradores nas áreas florestais e a pecuária a
cargo de grandes fazendeiros nas zonas de campo formavam uma espécie de divisão do
trabalho na economia local. À agricultura, nesta divisão, cabia um papel inferior diante da
nobreza pastoril.
O Planalto
O planalto, a metade setentrional do Rio Grande do Sul, foi em grande parte
conquistado aos castelhanos em 1801, quando milicianos gaúchos tomaram de assalto o
território das missões. Essa área era sede das antigas reduções jesuíticas – conhecidas
por "Sete Povos das Missões" – que haviam sido destruídas em meados do século XVIII
por portugueses e espanhóis em operação conjunta contra os índios guaranis.
Após a conquista das Missões, seguiram-se lutas entre caudilhos uruguaios e rio-
grandenses até a década de 1820, despovoando e instabilizando a região. Nessas regiões,
alguns estancieiros começaram a instalar-se nos campos de Cruz Alta, transformada em
município e vila em 1834 e que seria, a partir dessa data, o centro político e econômico do
planalto gaúcho durante o século XIX.
O antigo município de Cruz Alta abrangia grande parte do planalto rio-grandense e
tinha uma área aproximada de 60.000 km'. Essa área corresponde a cerca de 20% do
território do Rio Grande do Sul.
As excelentes condições oferecidas pela natureza facilitavam a instalação de
estâncias sem que o estancieiro se preocupasse em investir muito ou em melhorar a
qualidade dos rebanhos. Os verões eram amenizados pela abundante oferta de água da
bem-irrigada região, através dos incontáveis rios e arroios que formam a bacia do Uruguai
e a sub-bacia do Jacuí. O inverno, embora bastante rigoroso, não o era o suficiente para
18
comprometer os rebanhos.
Um aspecto de grande influência na ocupação da região foi a cobertura vegetal.
Como no Rio Grande do Sul de modo geral, a cobertura vegetal do planalto divide-se entre
campos nativos e florestas.
Nas florestas encontra-se a erva-mate, pequena árvore de grande importância
econômica conforme veremos adiante. Nos campos nativos foram instaladas as
estâncias de gado, aproveitando-se as condições naturais propícias e seguindo-se o
modelo geral do Rio Grande. Desse modo, a vila Cruz Alta e as sedes de seus distritos
que se foram emancipando no decorrer do século XIX localizavam-se em áreas de campo.
É o caso de Palmeira das Missões e Passo Fundo.
É no planalto que a dicotomia campo-floresta ou pecuária-pequena agricultura
aparece de forma mais saliente. Nessa região, a mata subtropical entremeia-se com os
campos de tal forma que o contato entre estancieiros e pequenos lavradores é direto, ao
mesmo tempo em que revela as contradições existentes entre dois grupos sociais.
TABELA N° 1 — EVOLUÇÃO DA DIVISÃO MUNICIPAL NA REGIÃO 1834/1918
ANO MUNICÍPIO CRIADO1834 Cruz Alta1857 Passo Fundo1873 Santo Ângelo1874 Palmeira das Missões1875 Soledade1891 Vila Rica (Júlio de
Castilhos)1912 ljuí1918 Erechim
Fonte: FELIZARDO, Júlia Netto. Evolução administrativa do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : InstitutoGaúcho de Reforma Agrária, s/d. p. 13.
A Fronteira Política
A condição de fronteira com os países da bacia do Prata sempre teve um papel
importante para o Rio Grande do Sul. Essa condição fronteiriça era objeto de grande
preocupação para o governo brasileiro e o gaúcho, pois a guerra parecia ser sempre imi-
nente – o que de fato se concretizou várias vezes durante o século XIX. A política das
autoridades nesse sentido consistia em criar núcleos estratégicos de povoamento ao longo
19
da fronteira e assim garantir-se de uma eventual disputa por parte da Argentina, do
Uruguai ou do Paraguai. Essa preocupação tem mais sentido se lembrarmos que o território
das Missões a que nos referimos anteriormente foi tomado aos espanhóis e ao Vice-Reinado
do Prata em 1801, sendo alvo de disputa entre os caudilhos uruguaios, os argentinos e
gaúchos rio-grandenses até o final da década de 1820. Já em 1824, os estrategistas oficiais
tentaram fundar um colônia com imigrantes alemães em São João das Missões. O projeto fra-
cassou pelo isolamento da região em relação ao mercado agrícola, entre outras causas.
Fonte: FELIZARDO, Júlia Netto. Evolução Administrativa do RS. Porto Alegre : Instituto Gaúcho de Reforma
Agrária, s/d.
Os estrategistas do governo imaginaram outras alternativas, como a construção de
uma estrada ao longo da margem esquerda do rio Uruguai, mas inviabilizaram-na o alto
custo da obra e a pouca expectativa em termos de resultados econômicos. Em 1859
projetou-se a instalação de uma colônia militar com contingentes de soldados, como forma
20
de assegurar a manutenção do núcleo. Para efetivar o projeto, o governo criou a
"Comissão para as colônias no Alto Uruguai", que percorreu a região entre abril de 1860 e
outubro de 1862 e forneceu um minucioso relatório e planos de estradas e colônias. Nesse
relatório o comandante da comissão, José Maria Pereira de Campos, justifica a
preocupação militar-estratégica oficial denunciando a presença de supostos militares
paraguaios disfarçados de ervateiros na zona fronteiriça:
"Em 1857, chegou no rincão de Guarita um paraguaio de nome Fernandode Tal com mais cinco homens, inclusive alguns correntinos e portenhoscom o fim de fazer erva-mate, os quais trazendo em carretas armamentos,munições, ferramentas, mantimentos... fizeram um rancho solido, com pregos...Estes homens tornaram-se suspeitos... porque tendo eles trazido ummaterial imenso avaliado em mais de cinco contos de reis, nem por isso seempregavam muito ao trabalho, pois que ajuntando trabalhadores a dois emeio patacões por dia, esses poucos trabalhavam, levando muitos dias semfazerem nada no mato... pareciam sem dúvida alguns serem soldados."'4
Os supostos militares paraguaios foram pressionados pelas autoridades locais e
retiraram-se do local, segundo informa o mesmo relator. Seja procedente ou não a
suposição dos denunciantes, o exemplo demonstra a preocupação com a necessidade de
povoar a região de forma efetiva. É possível, porém, que as acusações contra o paraguaio
tenham-se devido ao desejo de eliminar um concorrente na extração de erva-mate.
A colônia militar do Alto Uruguai somente seria instalada em 1879. Trinta anos
após, sofria sérias dificuldades para manter-se, devido ao isolamento. O mate não era
suficiente para dar sustentação a uma população razoável.
Todas as pretensões de povoamento tiveram que superar o avanço da população até
a fronteira política através do lento processo de incorporação econômica das zonas
florestais que protegem as margens do alto rio Uruguai.
No final do século a pressão demográfica sobre as colônias velhas, situadas nas
proximidades de Porto Alegre e fundadas sob o sistema de pequenas propriedades,
impulsionaram colonos excedentes para as novas áreas disponíveis nas matas do planalto.
Com esses agricultores, somados aos novos imigrantes europeus e aos antigos
agricultores já instalados, o território rio-grandense foi totalmente ocupado de forma
efetiva. As áreas florestais do Alto Uruguai foram definitivamente transformadas em zonas
agrícolas. Os novos contingentes demográficos e a ferrovia, construída na década de 1890,
deram um grande impulso à tímida agricultura local, aproveitando-se da fertilidade natural dos
solos virgens.
21
A distância dessa região em relação aos centros econômicos e a precariedade
dos transportes criavam sérias dificuldades na circulação de mercadorias e para a
dinamização econômica de modo geral. Por outro lado, quanto ao gado, que foi em todo o
século XIX o principal produto, essas adversidades eram menores, pois além de "auto-
transportar-se" (no caso do gado muar) para as feiras de Sorocaba, em São Paulo, o
planalto gaúcho situava-se exatamente no caminho das tropas que procediam de regiões
ainda mais ao sul e portanto mais distantes. A desvantagem, porém, ocorria quando o
gado era vendido nas charqueadas de Pelotas. O presidente da província do Rio Grande
do Sul informava em 1854, a esse respeito, que:
"No município de Cruz Alta calcula-se em 80 mil o número desses animais(mulas) que anualmente se vende, dos quais a quinta parte é produção dopróprio município, os outros são dos diversos municípios da província esobretudo das repúblicas vizinhas invernadas nos campos de Cruz Alta para sedirigirem ao mercado principal da feira de Sorocaba."5
A erva-mate, de grande importância econômica, transportada em carretas de boi,
sofria grandes problemas para chegar aos mercados. Descer a escarpa do planalto, rumo
a Rio Pardo, o entreposto comercial às margens do baixo Jacuí, era algo difícil. Durante todo
o século XIX as autoridades locais e os usuários reclamaram constantemente ao governo
provincial a melhoria dos caminhos ou a construção de novas estradas. Boa parte da erva-
mate era exportada pelo porto de Itaqui, no rio Uruguai, cujo acesso era mais fácil e mais
próximo. "A erva mate da Cruz Alta vende-se em diversos mercados... de todos porém o
mais importante é o de Itaqui d' onde se distribui pelo Uruguai abaixo para os estados
vizinhos e para Buenos Ayres."6, é o que nos informa o presidente da província em seu
relatório de 1854.
O isolamento da região era objeto de grande preocupação dos estancieiros e dos
chefes políticos locais. Tanto que, em 1877, houve a tentativa de emancipar a área,
separando-a da província do Rio Grande do Sul. Na exposição de motivos para a criação da
província das Missões, os separatistas argumentavam o seguinte:
"Há 84 anos que esse território foi desmembrado do Vice-Reinado de BuenosAires passando a incorporar-se ao Brasil, durante esse período longo comquanto tem contribuído para os cofres públicos? Com uma soma, semdúvida, avultadíssima e cujo fato será objeto de nosso estudo e conseqüentedemonstração oportuna – no entretanto, quais os benefícios auferidos e quecorrespondem a tão valioso concurso? O completo abandono – não temos umaponte, uma estrada, um qualquer benefício público, logo aquilo que ar-recadamos – aquilo que produzimos ainda que pouco é razoável queapliquemos em benefício próprio, deixando de contribuir para os desperdíciosda centralização – quando tudo nos falta do necessário."'7
22
A tentativa emancipacionista frustou-se, não havendo consenso entre os
estancieiros sobre a questão, mas revela as grandes dificuldades regionais, principalmente
em termos de transporte. As queixas em relação a estradas foram uma constante durante
várias décadas.
A Fronteira Agrícola
A bibliografia regional, de modo geral, tem caracterizado o planalto gaúcho do século
XIX como área atrasada, que teria passado à condição de zona de fronteira no final do
século, quando fundaram-se várias colônias oficiais e particulares, com imigrantes que
passaram a ser denominados de "pioneiros" da região. Leo Waibel nos escreve que:
"Uma segunda zona pioneira se desenvolveu a partir de 1890 no planaltoocidental do Rio Grande do Sul. Lá foi a construção da estrada de ferrode Porto Alegre a São Paulo, atravessando o Paraná, que tornou possívela colonização desta região remota."'8
O estudo de Waibel, portanto, remonta apenas a 1890, quando os primeiros colonos
imigrantes chegaram. Os habitantes precedentes são desconsiderados.
Jean Roche, um dos autores mais consultados sobre a colonização do Rio Grande do
Sul, ao referir-se à mesma região, escreve:
"Essas colônias oficiais, essencialmente agrícolas, foram abertas emnova zona pioneira, mas convém ressaltar o papel da administração,que não se contentou com fundar estabelecimentos. Interveio durantetoda a fase de exploração, na gestão e no equipamento delas,dotando-as de uma rede de comunicações internas, de um conjunto deedifícios públicos e de escolas, assim como de um cadastro bem emordem; tudo isso traduz, pois, um esforço superior ao que desprenderamos outros Estados do Brasil. Teve de resolver, também, o problemada instalação legal dos intrusos, que haviam precedido a divisão dasterras públicas e se estabelecido aqui e acolá, nas zonas colonizadas."'9
O mesmo autor, falando dos colonizadores, escreve que "na evolução do Rio Grande
do Sul, os colonos teuto-brasileiros não representam tanto uma massa, como uma qualidade
de homens, diferente dos primeiros habitantes, um fermento a que se deve a elaboração de
civilização original..."10
Jean Roche dá muito destaque para a qualidade dos colonizadores, aproximando-se,
23
desse modo, das concepções weberianas de espírito do progresso e, ao referir-se aos
antigos habitantes, deixa implícita a idéia de tradicionalismo. Nesse discurso, o colono
europeu seria o legítimo portador do espírito de progresso do capitalismo ao passo que o
caboclo brasileiro estaria representando o tradicionalismo, o atraso. Nesse particular, Leo
Waibel nos diz que
"...nem o extrativista, nem o caçador; nem o criador de gado podem serconsiderados como pioneiros; apenas o agricultor pode serconsiderado como tal, estando apto a constituir uma zona pioneira esomente ele é capaz de transformar a mata virgem numa paisagemcultural...""11
Essa concepção de fronteira supõe que existem homens eleitos para ocupar
determinado espaço e promover-lhe o progresso.
Os habitantes que já viviam nesse espaço estão condenados ao atraso, por
estarem imbuídos do espírito do tradicionalismo. Tal é o que efetivamente se observa
quando, ao estudarmos as áreas de fronteira, vemos a expulsão desses homens ocorrer
de forma inexorável.
Esse discurso sobre a fronteira pioneira, do qual Leo Waibel é o mais explícito
representante (por tal razão o tomamos como exemplo), expressa uma postura discriminatória
em relação a uma camada da população que geralmente é excluída. A exclusão desses
habitantes, que diversos autores consideram intrusos, obscurece a compreensão da
própria dinâmica do processo de ocupação da terra e da formação dos grupos sociais. Os
posseiros, ditos intrusos, são os primeiros a proletarizar-se e a sujeitar-se ao precário
mercado de trabalho.
Esses pressupostos que apologizam, no caso do sul do Brasil, os imigrantes
europeus, os quais teriam o esperado espírito de progresso mencionado por Max Weber12
é muito presente na historiografia tradicional local, que simplesmente reproduz e divulga
essa concepção.
Outra forma de ver a fronteira se faz necessária para se ter uma real dimensão do
processo de ocupação e apropriação da terra, da formação dos grupos sociais e da própria
produção econômica. É necessário reportar-se aos primeiros ocupantes da terra,
independentemente do sistema produtivo que adotem, pois é nessa fase que são
construídas muitas características que marcarão o espaço, de tal forma que, mesmo com a
imigração posterior de novos colonizadores, estarão ainda presentes.
Valemo-nos aqui de trabalhos como o de José de Souza Martins, que em sua
24
crítica à concepção de fronteira que expusemos e criticamos, sugere a noção de frente de
expansão, na qual "...os participantes dedicam-se principalmente à própria subsistência e
secundariamente à troca do produto que pode ser obtido com os fatores que excedem as
suas necessidades..."13. Essa fase antecede a da "frente pioneira", na qual o processo de
ocupação se "...instaura como empreendimento econômico: empresas imobiliárias,
ferroviárias, comerciais, bancárias, etc., loteiam terras, transportam mercadorias, compram e
vendem, financiam a produção e o comércio..."'14 A frente de expansão e a frente
pioneira são, na verdade, duas fases de um mesmo processo de ocupação de novas
terras e só podemos separá-las para fins de análise. A frente de expansão não está
separada da economia nacional na proporção que se supõe. Embora o mercado seja
reduzido e a propriedade da terra precária, não deixa de existir uma motivação do próprio
mercado, por mais fraco que seja, para o processo de ocupação. No caso particular que
estamos examinando, a erva-mate estimulou milhares de homens a embrenhar-se nas matas,
onde se instalaram como extrativistas e agricultores de subsistência. O mate consistia
numa das raras oportunidades do posseiro alcançar o mercado e dessa forma obter
condições de trocar seu trabalho por mercadoria de consumo ou dinheiro.
Outro estudo recente sobre fronteira, no Brasil, é o do inglês Joe Foweraker, em A
Luta pela Terra. O autor prefere analisar a fronteira a partir de três estágios de
desenvolvimento15:
1° – o estágio "não-capitalista", no qual as atividades estão ligadas ao extrativismo
e as trocas são limitadas. O mercado é precário na região tanto para a terra como para a
produção e o trabalho;
2° – o estágio "pré-capitalista", que "é caracterizado por um aumento da migração
para a região e a intensificação da atividade extrativa. A terra começa a ser vendida e
comprada;
3° – o estágio "capitalista" em que a migração é intensificada e a região integra-se
efetivamente na economia nacional; a agricultura passa a predominar sobre o extrativismo e
dá origem a um crescente mercado de terras e mercadoria. Ao lado da pequena produção
agrícola surge o mercado de trabalho livre. 16
A abordagem de Joe Foweraker sobre a fronteira pioneira é feita através do seu
grau de inserção na economia nacional capitalista. A integração das áreas de fronteira
ocorre de forma gradativa obedecendo a estágios de desenvolvimento.
Essa forma de examinar a fronteira rompe, também, com a forma muito difundida por
25
autores como Leo Waibel. Por exemplo, Joe Foweraker não se preocupa com o espírito de
homem de fronteira mas sim com o desenvolvimento da fronteira em direção ao estágio que
denominou de capitalista, processo esse que se reveste de muita violência, como destaca o
autor.
Embora o processo de ocupação e desenvolvimento da região que estamos
tratando possa ter alguma semelhança com o esquema sugerido por Foweraker, seria
exagero encaixá-lo mecanicamente nos três estágios citados acima. De qualquer forma, o
modelo é útil à medida que oferece condições para caracterizar certos aspectos da
evolução da fronteira referente às relações de produção, ao mercado e à violência
decorrente do próprio processo de ocupação.
Conclusão
O planalto rio-grandense, como todo o extremo Sul do Brasil, constituía-se numa
área em que os objetivos principais do governo português e posteriormente brasileiro eram
de ordem estratégica ou geopolítica. Desse modo, a própria incorporação do planalto à
coroa portuguesa deu-se de forma militar e política. Em função dessas condições, o Sul
brasileiro, embora sendo economicamente periférico, recebia mais atenções, através de
soldos militares e incentivos à formação de estância como forma de garantir o povoamento.
Mesmo com a preocupação governamental em povoar e desenvolver essas
áreas estratégicas, o planalto sofria de grande isolamento em relação aos mercados.
As estradas foram precárias durante o século XIX. O gado, no entanto, sofria menos
essa dificuldade, pelas características do seu transporte realizado na condução das
tropas, do que a erva-mate. Esta, transportada em carretas, enfrentava as agruras da
ausência de estradas. A agricultura não poderia ir além da mera subsistência, pois
jamais poderia competir, nessas condições, com a de outras áreas mais favorecidas
em termos de localização e transporte.
As condições climáticas do Sul de certa forma também contribuíram para a
impossibilidade de instalação de uma agricultura comercial tropical, destinada à
exportação para os mercados europeus do século XIX. Caberia ao Sul produzir
para o mercado interno; produção secundár ia numa economia cent rada na
monocultura de produtos tropicais exportáveis.
A dicotomia campo-floresta contribuiu para a formação de duas formas de
26
estabelecimento rural: as grandes fazendas de gado nas zonas de campo nativo e
a agricultura de subsistência nas áreas de floresta, levada a cabo em pequenas
propriedades.
Notas
1 Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul; Francisco José de
Souza Soares Andréa. Porto Alegre, junho de 1849. Manuscrito MALRS.
2 Ver sobre esse aspecto:
BERNARDES, Nilo. Bases geográficas do povoamento do estado do Rio Grande do Sul. Boletim
Geográfico. Conselho Nacional de Geografia, IBGE, Rio de Janeiro, n° 171, nov.-dez. de 1962
e n.172, jan.-fev. de 1963. Esta obra foi publicada em 1997, pela Editora UNIJUI.
3 Cf. Censo geral do Brasil - 1920 - In: Fundação de Economia e Estatística ( FEE). De
província de São Pedro e estado do Rio Grande do Sul - censos do Rio Grande do Sul - 1803-
1950. Porto Alegre : FEE, 1981. P. 127.
4 Relatório de José Maria P. Campos, chefe da "Comissão para as Colônias no Alto Uruguai".
Cruz Alta, 18 de setembro de 1860. AHRS, códice 285, documento 23.
5 Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, João Lins Vieira
Cansansão do Sinimbu, 2 de outubro de 1854, Porto Alegre. P. 5 1 .
6 Idem.
7 Trecho do memorial da Câmara Municipal de Cruz Alta, citado em ROCHA, Prudêncio.
História de Cruz Alta. 2.ed. Cruz Alta : Mercúrio, 1980. p.90.
8 Cf. WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro : IBGE,
1979. P.282.
9 Cf. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo, 1969.
P.219.
10 Idem. P. 5.
11 Cf. WAIBEL, Leo. Op. cit. P.282.
27
12 Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo : Pioneira,
1983. Pp. 28/50.
13 Cf. MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo : Pioneira, 1975. P.
45.
14 Idem. P. 47.
15 Cf. FOWERAKER, Joe. A luta pela terra. Rio de Janeiro : Zahar, 1982. P. 58.
16 Idem. P. 64.
28
II
A Apropriação da Terra
Na primeira fase da apropriação efetiva da terra na região, iniciada na década de
1820, ocorreu a ocupação dos campos nativos e a formação das estâncias pastoris. Nessa
fase, que marcou o início do latifúndio regional, as principais vítimas foram os indígenas
locais, aos poucos encurralados nas densas florestas que demandam as margens do rio
Uruguai. Apesar da resistência, os grupos indígenas capitularam diante da superioridade dos
invasores. Nessa fase, grosso modo, apenas as áreas cobertas com pastagens naturais
foram apropriadas de forma efetiva pelos fazendeiros, que deixaram de lado as áreas
cobertas de mato entremeadas com os campos.
Na segunda fase, que não sucedeu-se, rigorosamente, à primeira, mas, em parte,
transcorreu concomitante a ela, houve uma frente extrativista que avançou sobre as áreas
florestais em busca de erva-mate. Esses contingentes de coletores de mate eram ao
mesmo tempo pequenos agricultores de subsistência que, por forças circunstâncias, não se
tornaram proprietários das terras que ocupavam e nem dos ervais. Estes eram considerados
públicos e assim administrativos e explorados ao longo do século XIX pela municipalidade.
Por volta da década de 1860, entretanto, quando os latifundiários pecuaristas já não
tinham possibilidades de incorporar novos campos devolutos, iniciou-se um processo de
apropriação das áreas de mato e desse modo explodiu uma série de conflitos entre os
usurpadores e os coletores de erva-mate que até então não possuíam propriedade jurídica
de seus roçados e dos ervais. É nesse instante que a exclusão dos camponeses pobres tem
início, obrigando-os a emigrarem para áreas inóspitas e ainda devolutas ou a tornarem-se
peões de estância em substituição ao escravo negro. Essa apropriação de terras florestais
visava também à venda futura a colonos imigrantes subsidiados pelo governo que, desde
1824, vinham se multiplicando na província. Nesse particular, na década de 1870, a câmara
municipal de Cruz Alta solicitava a vinda de colonos para a região de forma insistente,
como forma de "incrementar a agricultura" nos matos do município.
29
Em 1890, com a vinda dos colonos europeus e das colônias velhas inaugura-se nova
fase na ocupação das terras locais: uma etapa que trouxe grandes contingentes
demográficos para as inúmeras colônias oficiais e particulares que se criaram nas áreas de
mato, valorizando as terras e incrementando o comércio.
O Aldeamento dos Indígenas
Entre as primeiras vítimas da privatização das terras na região estão em primeiro
lugar os indígenas remanescentes das antigas reduções jesuíticas e imigrantes
caingangues de outras áreas do sul do Brasil. Os indígenas do século XIX, no norte
riograndense, ofereceram forte resistência diante dos invasores, terminando, como sempre,
por capitular.
Para ocupar a região os pecuaristas, os extrativistas e os agricultores enfrentaram e
submeteram a população guarani e caingangue numa luta que durou várias décadas e que
de certa forma ainda não se encontra no fim, pois os atuais aldeamentos oficiais continuam
sofrendo pressões por parte de agricultores da região, estranhos à comunidade indígena.
No século XIX, as queixas mais veementes em relação aos indígenas partiam dos
comerciantes de bestas que cruzavam as áreas em que estavam sujeitos aos ataques, dos
indígenas. Para os comerciantes de bestas, para os tropeiros, o índio deveria ser simplesmente
eliminado, pois se constituía em sério obstáculo para o livre-trânsito das tropas de muares
que rumavam à feira de Sorocaba, em São Paulo. Pediam, nesse intuito, providências às
autoridades provinciais e durante longos anos essa questão mereceu um capítulo especial
nos relatórios anuais dos dirigentes da província.
A política oficial em relação ao índio nem sempre concorria com o imediatismo dos
tropeiros e dos estancieiros locais, para os quais tratava-se de resolver o problema a
qualquer custo. O governo imperial e o provincial enxergavam o índio de outra forma,
como elemento povoador da zona fronteiriça com as repúblicas do Prata. Tratava-se,
portanto, de submeter e controlar os nativos e não de eliminá-los. Isso implicava adotar
outras medidas no sentido de garantir a presença dos índios na zona de fronteira, mas de
forma pacífica. O governo estabeleceu uma política de aldeamentos – por via da catequese –
para delimitar o espaço de atuação dos índios e sistematizar o controle da população, utili-
zando-a à medida do possível para os interesses governamentais, integrando-a, por via da
produção, à comunidade regional. Ao mesmo tempo, adotou-se uma forte repressão aos
30
que se negavam a aldear-se ou criavam problemas. No relatório do presidente da província,
em 1852, essa prática em relação ao índio fica explícita:
"...o sistema de força e o de persuasão empregados separadamente para tirar dos
matos os nossos indígenas tem sido ambos improfícuos. Até aqui nos temos limitado: 1°, a
atrair os índios por meio de algumas roupas e ferramentas distribuídas nas aldeias de
Nonohay e Guarita, e a conservá-los ali pelos esforços dos padres jesuítas: de
catequização propriamente dita pouco se tem feito, sem dúvida porque aqueles padres
ignoram a língua, em que deveriam dirigir aos índios as palavras de conversão. – 2° Abater
os índios, perseguí-los e matá-los, quando eles têm feito alguma agressão e a colocar
guardas por algum tempo nos lugares por onde eles tem agredido. Pela simples
enunciação se vê que esses dois sistemas são incompletos; e a experiência os tem
condenado. Os índios recebem roupas e ferramentas e voltam às matas. Batidos e
perseguidos depois da agressão, reaparecem mais hostis em outros lugares, não sendo
possível colocar guardas em todos aqueles por onde eles fazem os seus assaltos ..."1
Como evidencia o relato, essas medidas não davam nos resultados esperados, pois,
fosse qual fosse a estratégia governamental, os indígenas não estavam dispostos a
submeter-se gratuitamente.
Diante dos perigos que sofriam os tropeiros e moradores locais, o governo
tomava medidas preventivas para amenizar a situação, enquanto os resultados esperados
pela política indigenista não tomavam corpo. Dessa forma, em 1846, o Conde de Caxias,
presidente da província, deslocava recursos para esse fim, conforme suas próprias
ordens:
"...para afugentar os bugres selvagens que atacam viajantes nas picadas dos
matos Português e Castelhano ordenei ao Ten. Cel. Antônio Maia, comandante do 2°
batalhão de caçadores e da guarnição de Cruz Alta, que mandasse alargar com mais 20
braças as ditas picadas na extensão de duas léguas e meia pelo mato português e de
meia légua pelo mato castelhano, empregando nesse serviço para maior economia 100
praças do dito batalhão, vencendo a gratificação de 200 reis diários e autorizando-o a chamar
paisanos habituados a esse trabalho:"²
No outro aspecto da estratégia, o de aliciá-los e aldeá-los, o encarregado local sugeria:
"mandar para ali um mestre ferreiro para efeito de ensinar aos índios esse ofício e
encarregar-se de compostura de ferramentas (...).
31
"É indispensável também um professor de primeiras letras e outro de música com
instrumentos próprios, por serem os mesmos muito apaixonados por música e por esse meio
habituá-los para as danças que sobremodo contribuirá para a sua reunião geral e
permanência no aldeamento'.'³
Apesar dos esforços do Diretor dos índios, a modificação do modo de vida da
população indígena não era uma tarefa fácil e por isso o aldeamento das tribos foi uma
longa luta das autoridades encarregadas da questão. Para os indígenas, o aldeamento sig-
nificava perder a liberdade de circular livremente pelas florestas em busca de caça e em
atividades extrativistas de fazer roçados em terras novas num estilo rudimentar mas
racional diante das condições presentes (abundância de terras virgens). Além disso,
alguns grupos indígenas não viam com simpatia a reunião com grupos rivais. De qualquer
modo, o poderio dos estancieiros com a ajuda governamental submeteu a população
indígena confinando-a em áreas florestais e forçando-a a mudar de comportamento. Já em
1849, no relatório do presidente provincial, essa tendência era evidente: "...o acampamento
da Guarita parece ser o mais adiantado dos dous e tem já mandado ao mercado cerca de 500
arrobas de erva-mate tendo plantado dez a doze alqueires de milho...".4
Essa tendência dos indígenas'do aldeamento do Guarita tornarem-se pacíficos
agricultores sedentários e produtores de ervamate para o mercado era o ideal para as
autoridades locais. Mas, evidentemente nem todos os grupos aceitaram essa condição, pre-
ferindo viver em grupos relativamente pequenos mas com bastante mobilidade pelas
florestas do Alto Uruguai. Em 1850, un censo organizado pelo encarregado do aldeamento
dava conta que em Nonoai, onde se pretendia aldear os índios da região, havia vários grupos
assim divididos:5 "Gente de Vitorino Condá", "Gente de Pedro Neiafé", "Gente de
Conhafé", "Gente de Vutuoro", "em Nonoai".
Não é nosso propósito explicar as razões da existência de várias lideranças
indígenas e respectivos grupos, bem como as suas rivalidades, mas o que parece
importante é que, dessa forma, o agrupamento tornava-se extremamente difícil para as
autoridades encarregadas do aldeamento. Por outro lado, esses grupos pequenos tinham
grande mobilidade no interior da floresta, o que tornava também difíceis as medidas
repressivas.
Entretanto, apesar da longa resistência, os grupos indígenas, à medida que a
fronteira agrícola avançava, obrigavam-se a aceitar as imposições e o aldeamento para
poderem manter-se numa região que já não fornecia mais condições de sobrevivência no
32
estilo tradicional de caça e extrativismo associados à agricultura de coivara. Talvez o
escritor e político Evaristo Afonso de Castro, numa publicação de 1 887 , resuma bem a longa
luta entre os indígenas e os invasores, demonstrando o triunfo da política governamental:
"O major Oliveira, na Guarita pode travar relações e catequizar o cacique
Fongue de modo que no decurso de alguns anos pode o governo aldear em Nonoahy os
índios que vagavam nesta província apresentando-se depois os que existiam em Guarapuava,
na província clo Paraná. Assim aldeados esses índios tornaram-se nossos fiéis aliados, po-
rém evitando sempre mesclar-se com a população do país e conservando-se sempre sob a
direção de seu cacique."'6
A Formação das Estâncias
Da mesma forma que nas zonas de ocupação mais antigas do Rio Grande do Sul,
a apropriação das terras no planalto começou pelos campos nativos e com a formação das
estâncias pastoris. Um relatório da câmara municipal de Cruz Alta, datado de 1850, nos
dá uma idéia bastante clara desse processo de ocupação de terras:
"...tendo os antigos padres da Companhia de Jesus fundado as reduções nesses
lugares, então só habitada por índios e fundado os Sete Povos da Missões oriental do Uruguai
fizeram estabelecimentos de agricultura e criação em diversos lugares e abandonaram esses
estabelecimentos quando não eram de vantagem, para colocarem em outros lugares. Visto
que só eles habitavam as ditas Missões. Depois de sua extinção os administradores
espanhóis conservaram o mesmo regime e depois da conquista é que começou a ser habi-
tada estas missões pelos portugueses e julgando-se os administradores e cabildos dos
povos com direito de venderem os terrenos de missões, fizeram vendas não só de al-
guns estabelecimentos que ocuparam, como de terrenos devolutos sobre os quais nem
um direito podiam ter, exceto se considerar-se como pertencente as comunidades dos ín-
dios todo o terreno que formava a antiga província de Missões. Como era mais fácil as
pessoas que vinham se estabelecer nesse lugar comprarem a um cabildo o campo que
precisavam por baixo preço, que obter sesmarias, preferiam a esse expediente até que
sendo o comandante geral de missões autorizado a conceder terrenos devolutos a quem os
queria cultivar, e sendo esse meio ainda mais fácil de obter terrenos a ele se recorriam
todos que queriam obter terrenos. Este concedia a quem pedia desde que pela informação do
comandante do distrito e resposta das áreas confinantes lhe constava estar o terreno
desocupado, sem distinguir se pertenciam ou não a comunidade dos índios.
33
"Por esta razão são muito raros os terrenos obtidos por sesmarias nesse
município, e os únicos títulos que há de propriedade dos terrenos é além da posse, vendas
feitas pelos cabildos dos povos e concessões dos comandantes gerais. Mas pelo que
ficou dito por sem dúvida conhecerá V. Exa. que nem os títulos de vendas feitos pelos
cabildos denota que o terreno foi propriedade dos índios...
"Só que pode saber com alguma exatidão dos prédios que conservaram até a sua
extinção e alguns que ainda há vestígios dos estabelecimentos que tiveram no lugar.
Desses pelas informações que pode obter esta câmara, consta que existe nesse primeiro
distrito as estâncias da Conceição, hoje em poder de Antônio Fernandes de Almeida
e a da Tupanciretã em poder de João Nunes da Silva, da vila de Alegrete e não pode a
câmara obter o conhecimento da extensão dos campos de ditas estâncias e nem dos
títulos por que são possuídas...
"No 8° distrito não pode também esta câmara ter perfeito conhecimento se existia
estabelecimentos dos índios, porém informa que como no segundo distrito, há muitos
campos cujos títulos são compras feitas aos cabildos. Além dos estabelecimentos que foram
dos Povos das Missões, das ruínas dos mesmos povos, telhas e mais objetos que os par-
ticulares terem tirado de ditos povos não consta a esta câmara que haja mais bens alguns
em circunstâncias de serem incorporados aos próprios nacionais. São estas as informações..."7
Conforme o documento, os campos nativos foram conquistados pelos futuros
estancieiros através do simples expediente de obter concessão das autoridades militares
locais. Dessa forma, militares e tropeiros conseguiram a preços irrisórios vastas áreas de
campo nativo que deram origem às grandes estâncias das quais ainda restam resquícios.
A concessão da terra tinha alguma ligação direta com o governo imperial, que poderia
recomendar os beneficiados. Em geral, porém, tudo era articulado em nível local. As
autoridades "vendiam" as terras a militares e tropeiros e certamente a corrupção era
constante. Mas sobretudo o fato das terras serem de fronteira e de população escassa foi o
que estimulou e deixou à vontade as autoridades locais para distribuir terras a quem quisesse.
O interesse dos beneficiários da concessão de terra resumia-se a zonas de campo
nativo e à criação de gado. Isso é justificável se lembrarmos que a região de Cruz Alta era
rota de gados muar e vacum para as feiras paulistas desde o século XVIII. A freguesia do
Divino Espírito Santo da Cruz Alta, criada em 1821 primeira da região serrana, era local de
invernada de gado ao longo do caminho que demandava a província de S. Paulo. Por
34
outro lado, a agricultura nessa área não tinha condições de ir além da mera produção para
subsistência por absoluta falta de pessoal de transporte. Não se podia produzir algo
comercialmente viável como o era a cana-de-açúcar do Nordeste ou o trigo no vale do Rio
Pardo, próximo a Porto Alegre – onde o transporte era fácil e comércio mais intenso.
Em 1850, os campos nativos de toda a região já estavam todos apropriados. Um
relatório da câmara municipal de Cruz Alta, feito a partir de informações dos juízes de Paz
dos distritos, informa detalhadamente as terras devolutas que existiam naquele município
naquela data. Pelo relatório, que descrevemos (Anexo N" 1), pode-se notar que as terras
devolutas eram florestas e tinham grande extensão.8
A Extensão das Estâncias
É consensual na historiografia rio-grandense, que as estâncias pastoris tinham sido
grandes propriedades. A distribuição de sesmarias no século XVIII e no princípio do XIX
tinha como padrão uma área de três léguas de fundo por uma de frente, o que eqüivale a
cerca de treze mil hectares. A pecuária extensiva exigia uma área grande para a
alimentação dos animais de forma natural, aproveitando a pastagem nativa.
São poucas as sesmarias distribuídas na região serrana pois o povoamento efetivo
se iniciou na década de 1820, quando a lei de sesmarias foi abolida pelo Império do Brasil.
A partir de 1822, as terras eram concedidas através de títulos de posse.
O registro paroquial de terras nos dá uma noção da área das propriedades no
município de Cruz Alta. Em um dos livros da paróquia daquele município, os registros
indicam que cerca de 90% dos estabelecimentos tinham área superior a cem hectares e as
propriedades entre 1001 e dez mil hectares representavam mais de 30% do total registrado
com área discriminada. Esses índices são resultantes dos registros que discriminam a área
do estabelecimento, pois de modo geral os informes não mencionam o tamanho da terra
registrada e limitam-se a descrever a localização aproximada.
35
TABELA N" 2 – ÁREA DAS PROPRIEDADES REGISTRADAS EM CRUZ ALTA1855/1856
menos de100ha
menos de1000ha
menos de10.000ha
mais de10.000ha sem especifi-
cação deárea
Wirriero depropriedades
9 72 47 10 144
Fonte: Livro número 6 do registro paroquial de terras da Paróquia do Divino Espírito Santo da Cruz Alta (1855-
1856) – Arquivo Público do Rio Grande do Sul.
Apesar da fragilidade dessa fonte, os dados coincidem com a evidência que nos
indica a historiografia regional referente às demais regiões do Rio Grande do Sul,
sobretudo se considerarmos a estrutura fundiária de anos posteriores, para os quais temos
dados mais precisos. No censo de 1920, as grandes propriedades rurais da região
localizavam-se justamente nos municípios de tradição pastoril e que ainda mantinham essa
atividade de forma hegemônica (Tabela n° 3).
TABELA N° 3 – CENSO DE 1920 – NÚMERO DE ESTABELECIMENTOS RURAIS E SUAÁREA EM ALGUNS MUNICÍPIOS DO RS
Tot.Est.
-41ha
41100
101200
201400 401
100010012000
20015000
50011000
0
1000125000
25001e mais
Cruz Alta 2538 1394 602 222 311 104 49 31 18 5 2
Erechim* 4922 3722 992 154 30 16 6 1 1
Ijuí* 3083 2255 685 103 27 11 1 1
Júlio de Castilhos 1826 770 532 181 119 135 40 30 10 1
Lagoa Vermelha 3641 2002 1012 283 154 126 43 18 3 1
Palmeira 2700 1124 978 276 152 99 40 23 7 1
36
Passo Fundo 3105 1522 941 305 170 98 34 27 5 2 1
Fonte: Recenseamento do Brasil 1920: Agricultura, Rio de Janeiro IBGE, 1927. p. 184191 – Apud "De provínciade São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: censos do RS, 1803-1950. Fundação de Economia eEstatística. Porto Alegre: FEE, 1981.
* Municípios de origem colonial.
Os municípios de Erechim e Ijuí foram fundados a partir da colonização oficial,
obtendo os colonos pequenas propriedades em áreas de mata virgem. Os demais
municípios da tabela tinham cobertura original vegetal de campos nativos na sua maior parte e
foram criados a partir da pecuária iniciada nas primeiras décadas do século XIX. As pequenas
propriedades que aparecem nesses municípios são em significativa parcela decorrentes do
processo de colonização com base na pequena propriedade que nesse período,
desenvolvia-se nas áreas de mato pertencentes aos respectivos municípios
hegemonicamente pastoris. Os núcleos coloniais desses municípios ainda não haviam se
emancipado na data do censo. É o caso das colônias General Osório e Neu Württemberg em
Cruz Alta, por exemplo. As pequenas propriedades concentram-se nos municípios ditos
coloniais; os percentuais indicam cerca de 75% e 73% para Erechim e Ijuí
respectivamente enquanto nos municípios pastoris esse índice oscila entre 41% em Pal-
meira e 54% em Cruz Alta. Nesse último já havia várias colônias instaladas na época do censo,
conforme ressaltamos.
TABELA Nº 4 — PERCENTAGEM DE ESTABELECIMENTOS RURAIS
CONFORME A ÁREA — CENSO DE 1920
Fonte: Recenseamento do Brasil – 1920: Agricultura, Rio de Janeiro – IBGE, 1927. P. 184-191. Apud: Deprovíncia de Silo Pedro a estado do RS-- censos do RS: 18031950, Fundação de Economia e Estatística. Porto
Alegre, 1981.
Por outro lado, é presumível que os pequenos agricultores, os camponeses pobres,
37
não se dirigissem ao pároco local para dar conta das terras que cultivavam. Era comum entre
os agricultores pobres o uso das terras florestais sem a formalidade jurídica da posse;
além disso, praticavam uma agricultura que exigia grande mobilidade para aproveitar os
recursos naturais do solo, através do pousio longo. Esses pequenos agricultores, tais como
os estancieiros, eram posseiros e tinham o direito à propriedade conforme o estabelecido
pelo lei de terras de 1850. A não-habilitação dos posseiros pobres deve-se ao descaso que
faziam da importância do registro; talvez nem mesmo tenham tomado conhecimento de tal
procedimento, já que habitavam as áreas mais distantes da paróquia e pouco freqüentavam a
igreja. Não há, também, garantia de que o pároco tenha divulgado a importância do
registro entre as camadas pobres da população. Enfim, as evidências mostram que os
lavradores pobres não compareceram ao registro paroquial, em sua maioria. A grande
massa de agricultores vivia do extrativismo de erva-mate e os ervais eram da
municipalidade, que concedia os espaços entre as árvores para a agricultura, para que os
lavradores mantivessem os ervais limpos e protegidos.
O Militarismo e a Apropriação da Terra
A apropriação das terras e a formação das estâncias pastoris do sul do Brasil teve
no seu bojo uma forte presença militar. O militar, desde a ocupação do território sulino pela
coroa portuguesa no século XVII, recebia como prêmio áreas de campo corno incentivo para
defender ou conquistar novas áreas dos castelhanos da bacia do Prata. No século XVIII,
esses militares passaram a constituir uma poderosa classe de grandes proprietários –
militares que procuravam expandir a apropriação dos campos nativos em direção às áreas
ocupadas por castelhanos.
Sebalt Rüdiger caracterizava bem esse processo militarista de apropriação das
terras sulinas quando escreve que:
"a colonização ia decorrendo das circunstâncias militaristas dos vais e vens do
expansionismo Luso-espanhol (...), A sociedade sulina devia plasmar-se sob a égide, o
controle de uma classe de estancieiros-soldados. Eles eram originários das tropas do
exército colonial e seus serviços lhes valeram o privilégio de ocuparem sem embaraços os
campos lentamente ganhos ao inimigo, tinham consciência de ganhar aquilo pelo que
lutavam e arriscavam a vida – seu prestígio crescente e inevitável inquietava naturalmente
o governo colonial, mas o limite para uma reação se estreitava tanto mais quanto
permanecia indefinida a pendenga secular com os castelhanos. Não se podia pensar em
38
acabar com a nova classe, senão a guerra seria perdida."'9
O autor faz suas afirmações alicerçado na concessão de terras efetivada no século
XVIII. Nos registros de terra, a maioria dos concessionários é de origem militar.
Obviamente, a ocupação das terras do Sul não se limitou a esse aspecto militar
mas não há dúvidas que o militarismo é um fator importante para analisar esse processo.
Nesse sentido, a conquista das missões em 1801 por milicianos gaúchos confirma as
iniciativas locais de avançar sobre os campos nativos e do estabelecimento de estâncias sob a
égide do militarismo.
A bibliografia a respeito do militarismo dos estancieiros gaúchos é abundante na
historiografia rio-grandense embora faça apologia de um suposto heroísmo dos
estancieiros, o que justificaria a posse dos latifúndios pastoris do ponto de vista moral.
Particularmente na formação das estâncias do planalto, que nos interessa e que é
mais recente, seguiu-se o mesmo modelo. A freguesia do Divino Espírito Santo de Cruz
Alta, instalada em 1821 e emancipada em 1834, teve seus vastos campos apropriados a
partir da conquista das missões em 1801. As autoridades militares do território tomado
aos castelhanos doavam ou vendiam a preços irrisórios os campos a militares e tropeiros.
É notória a presença de militares estancieiros na nominata inaugural da câmara
municipal de Cruz Alta, primeira da região. Um dos vereadores (a título de exemplo), o
alferes Athanagildo Pinto Martins, mais tarde coronel, foi um dos pioneiros na criação de
gado. Segundo uma correspondência do comandante das missões de 1816, o dito alferes
fora
"...encarregado de procurar trânsito para uma estrada, desde o acampamento ou
povoação de ATALAIA – no extremo setentrional dos campos de Guarapuava e 115 léguas de
caminho distante da cidade de São Paulo – para esse país, conforme a ordem que
recebera e vai inclusa por cópia do Ten. Cel. Diogo Pinto de Azevedo Portugal,
comandante em Chefe da Real expedição e conquista de Guarapuava..."'10
Militar e aventureiro, conforme evidencia o documento acima, o alferes – que era
filho de capitão-mor paulista – tornou-se proprietário de grandes extensões de campo. No seu
inventário Post-Mortem constam inúmeras invernadas, escravos, fazendas e um bom
número 'de animais.
Outro vereador da mesma câmara, o ten. cel. Joaquim Thomas da Silva Prado,
39
declarou ao registro paroquial de terras em 1855 a extensão de 39,2 hectares de campos,
obtidos por "despacho de concessão do comandante da fronteira, cel. João Palmeiro em 4 de
abril de 1825.11 Ainda no mesmo registro, o mesmo ten. cel. declarava várias fazendas
em nome de parentes. O seu inventário Post-Mortem, é invejável; constam várias
fazendas, campos, equipamentos e escravos.12 Do mesmo modo, o cel. Vidal José do
Pillar, tido como um dos primeiros fazendeiros locais, deu origem a uma rica família de
chefes políticos e militares.13
A participação das elites locais nas guerras internas do país e nas externas sempre
foi intensa. Na Guerra dos Farrapos, entre 1835 e 1845, a elite local dividiu-se e tomou
parte ativa em ambos os lados. Já na guerra do Paraguai, vários grupos de combatentes
foram formados, chegando a haver escassez de braços nas atividades locais. Em 1867,
em plena guerra, a câmara municipal de Cruz Alta enviava um ofício ao governo
provincial com uma nominata de "cidadãos que têm prestado serviços ou concorrido com
auxílios para a atual campanha contra o Paraguai". O mesmo ofício reclama que um capitão
local ainda não fora condecorado pelos seus serviços como voluntário na guerra, para o
qual organizara um corpo de 120 homens. Os nomes da lista são de tradicionais famílias
locais. Segundo o informe da câmara, tiveram heróica participação no comando de atividades
militares. Evidentemente que a nominata restringe-se aos chefes militares e pouco se faz
referências aos soldados "voluntários", a não ser quando esses desertavam.14
Os nomes desses chefes estancieiros e militares também figuram na comissão
encarregada de compra de cavalos. Não se trata de historiar a participação. O
envolvimento na guerra era uma forma de manter o tradicional prestígio militar e dessa forma
manter o poder de influência nas decisões políticas e econômicas.
Após a guerra contra o Paraguai, o capitão da Guarda Nacional e coronel honorário
do Exército, Tibúrcio Alvares Siqueira Fortes, que participou do conflito como
comandante do sexto Corpo Provisório de uma das divisões militares, foi protagonista de
um disputado processo de apropriação de terras. Na década de 1870, já muitos campos
nativos estavam privatizados. Restavam então avançar sobre os matos devolutos e os ervais
públicos onde viviam agricultores extrativistas pobres. Com o cargo de juiz-comissário do
município de Santo Antônio da Palmeira, encarregado de medir terras devolutas, o dito
capitão passou a demarcar arbitrariamente os ervais em que trabalhavam centenas de
coletores de erva-mate, que faziam ali seus roçados além de exploração do mate.
Evidentemente, a relação entre apropriação de terras e militarismo não é um fenômeno
novo, pois as usurpações, de modo geral, são sempre fruto da força e da arbitrariedade. O que
40
se pode destacar no caso sulino é que os usurpadores de terra procuram ter um respaldo
moral, à medida que se apresentam como defensores da pátria diante dos tradicionais
oponentes estrangeiros da bacia do Prata. Dessa forma, as lutas internas que travam contra a
população desprivilegiada passam despercebidas.
Um exemplo notável dessa postura é o caso do comandante da fronteira do Rio
Grande, em 1774, ao qual o vice-rei português dirigiu a denúncia de que
"...um daqueles escandalosíssimos proprietários que tem feito por esse estranho
modo as maiores usurpações é o coronel Rafael Pinto Bandeira que, fazendo-se absoluto
e temido por todos, em razão do autorizado posto que ocupa e aproveitando-se daqueles
conhecimentos que tem do país, para fazer a sua escolha livremente se acha com a sua
numerosa parentela ocupando grandes extensões de terrenos e os mais bem situados,
estabelecendo com duas largas estâncias para a criação de animais e tirando de outros a
utilidade da venda que faz a diversas pessoas.15
O referido coronel é tido como herói nas lutas contra os espanhóis do século
XVIII. Em sua defesa, o historiador Guilhermino César diria:
"...mas o herói de Tabatingaí, de Santa Tecla e de São Martinho não seria
poupado, depois de tanto servir aos interesses da coroa, nem mesmo em sua honra,
armou-se contra ele um processo-crime, após a expulsão do espanhol sob a acusação de
se ter locupletado com as presas de guerra feitas em Santa Tecla."16
A prática desse herói sulino, sem entrar no mérito de seu heroísmo, foi assumida pelos
fazendeiros do século XIX, porque, grosso modo, a sociedade pastoril do Rio Grande do Sul
pouco udara de um para outro século tanto em termos econômicos como de comportamento.
Daí que muitos estancieiros de Cruz Alta e região tornaram-se "heróis" da guerra do
Paraguai.
Os Ervais e as Terras Florestais
A erva-mate, ao lado da pecuária, foi um dos principais produtos da região serrana
durante o século XIX. Particularmente, o mate tinha especial importância por ser a principal
fonte de recursos das câmaras municipais, através do tributo que incidia sobre a exportação
do produto. Embora o gado fosse o principal produto regional, o tributo sobre sua exportação
para outras províncias ou para o exterior era arrecadado pelo governo provincial.
41
A tabela n° 5, organizada a partir dos demonstrativos das câmaras municipais, ilustra a
importância do mate nas receitas municipais (Ver tabela na página seguinte).
No município de Santo Antônio da Palmeira a arrecadação total dos anos de 1874 a
1880 indica um índice de 58% para a participação do mate na receita.'17
Além desses números, as câmaras municipais, em várias correspondências, deixam
saliente a importância do mate para as receitas dos municípios. Nesse sentido, a câmara
de Cruz Alta, em 1852, informava:
"Todos os ervais encravados nas serras a câmara os tem considerado públicos,
desde que sua instalação em 1835, por meio de suas posturas, fazendo a principal parte
de suas rendas e impostos de 40 reis em arroba que pagam os exportadores, não consentindo
que os particulares se apossem deles como propriedade, permitindo porém a todos o fabrico
da erva."18
Com essa representatividade nas receitas municipais, a extração da erva-mate
recebia muitas atenções da municipalidade, no sentido de manter a produção em níveis
ótimos. Essa atenção aos ervais implicava manter rígido controle sobre o corte do produto
e impedir a destruição das árvores que corriam sérios riscos caso não fossem respeitados
os períodos ideais para a poda. Além da questão da poda em tempo certo, o fogo era um
grande inimigo dos ervais, numa época em que queimar roçados era uma prática cotidiana.
TABELA N° 5 – PARTICIPAÇÃO DO IMPOSTO SOBRE ERVA-MATE NA RECEITA DO
MUNICÍPIO DE CRUZ ALTA
Imposto sobre aRECEITA exportação deerva-mate(em réis) (em réis)
1860 1 18.531$780 9.916$880 53
1861-62 2 24.760$415 10.060$480 40,6
1865-66 3 8.090$830 5.621$580 69
1870-71* 4 20.8849.218 9.430.992 45
1871-72* 4 24.218.131 9.532.343 391872-73* 4
24.040.468 12.520.940 52Fontes:
1 – Orçamento da receita e da despesa da câmara municipal da vila de Cruz Alta apresentado à assembléiaprovincial no ano de 1860. Porto Alegre, TYP. do Conciliador, 1860 AHRS – CCMCA CX 110 doc 390 A;
42
2 – Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Rio Grande Sul pela Câmarada vila de Cruz Alta. P. Alegre TYP do Mercantil. P. Alegre. 1862. (B.N. );
3 – Relatório da Câmara de Cruz Alta – 11 janeiro 1870 – AHRS CCMCA, CX 159;
4 – Relatório da Câmara de Cruz Alta – 30 de janeiro 1874 – AHRS CCMCA, CX 159.
É pertinente reproduzir alguns itens do código de posturas da câmara municipal de
Santo Antônio da Palmeira redigido em 1875 e que seguia as normas em vigor no município
de Cruz Alta desde 1835, ao qual pertenciam os ervais lá situados antes da emancipação
desse distrito: '19
"ART. 41 – São considerados como públicos todos os ervais dessemunicípio que estiverem descobertos ou possam a se descobrir emterrenos devolutos, onde se poderá colher erva-mate em comum."ART. 42 – Ninguém poderá colher nem fabricar erva-mate sem terobtido licença da câmara que lhe será concedida por intermédio doprocurador e seus fiscais nos distritos onde estiver o erval, a qual terávigor durante o ano que foi concedida. Esta licença será fornecida emtalões assinados pelo procurador da câmara. O contraventorincorrerá em multa de 10$000 e pena de oito dias de cadeia."ART. 43 – É proibido colher erva-mate nos meses de outubro,novembro, dezembro, janeiro e fevereiro."ART. 44 – É proibido colher erva-mate de brote sem ter decorrido de umaa outra poda quatro anos."ART. 46 – É proibido fazer roças contíguas a ervais ou em matos ondetenha erva e queimá-los sem ter feito um ACEIRO pelo menos desete metros bem limpos para impedir incendiar-se o erval. Entende-sepor lugar contíguo ao erval distante das roças ao menos 500 metros."
Existiam ervais privados, sobre os quais a fiscalização era difícil de efetivar-se. As
próprias autoridades tinham receio de tomar medidas, em função do direito de propriedade,
preferindo abster-se. É o que fica explícito nesse ofício dos vereadores cruzaltenses ao
governo provincial em 1850:
"...Releva aqui ponderar a V. Exa. Que nos grandes capões imediatos a serras há
abundância de erva, porém como esta câmara não tenha querido invadir o direito que nela
possam ter os proprietários ou posseiros dos campos, se tem abstido de tomar medidas a
respeito..."20
De qualquer forma, tudo indica que a maior parte dos ervais eram públicos e, a julgar
pelos reclames sobre a má qualidade da erva-mate produzida, a fiscalização de modo geral era
ineficiente.
Por outro lado, se a condição pública dos ervais não foi suficiente para controlar a
qualidade da produção, pelo menos foi eficiente para controlar o acesso à terra. Sendo
43
públicas as terras de ervais nativos, o acesso ao solo era disciplinado pelas câmaras
municipais. Dessa forma, os coletores de mate não eram posseiros no sentido jurídico da
palavra, o que os tomava vulneráveis aos processos de apropriação que iriam se
desenrolar no decorrer do século XIX.
Se a condição de terras públicas permitia o acesso dos agricultores pobres ao
extrativismo e às roças, por outro lado essa mesma condição era muito instável à
medida que a terra estava sujeita a um processo de privatização pelas elites locais, que aos
poucos transformaram os ervateiros em proletários sem terras, forçando-os a emigrar para
áreas inóspitas e devolutas ou a submeter-se à condição de peões das estâncias em
substituição aos escravos.
A privatização dos ervais públicos e das terras de floresta iniciou-se numa fase
posterior à apropriação dos campos nativos. Essa fase foi uma etapa de longa luta na qual os
coletores de erva acabaram por submeter-se à força dos usurpadores que controlavam
várias instâncias do poder público e não vacilavam em usá-las em proveito próprio.
Podemos considerar a década de 1860 como início do avanço que ocorreu sobre as
zonas florestais, em termos de privatização.
É claro que a privatização de terras de mato vinha se desenvolvendo
paralelamente à dos campos, mas até essa data o confronto com pequenos agricultores e
ervateiros era irrelevante, pois os ervais eram públicos e havia abundância de terras
florestais devolutas.
Mas, a partir da Lei de Terras de 1850, regulamentada em 1854, todas as terras
tidas como devolutas tornaram-se objeto de venda pelo governo. A ocupação de terras
não mais poderia ser "mansa e pacífica", na expressão usada na época, mas sim através
da compra. Dessa forma o acesso à terra, do ponto de vista legal, ficou difícil para as
camadas pobres da população camponesa, mas nem tanto para as elites locais, que além de
regularizar suas propriedades procuraram avançar ou incorporar novas áreas onde viviam
muitos posseiros pobres sem poder para reagir.
Na década de 1860 os conflitos entre extrativistas-agricultores e latifundiários
tomam corpo. Em 1862, poucos anos após a regulamentação da Lei de Terras e do registro
paroquial de 185556, uma representação de ervateiros deu queixa à câmara de Cruz Alta
da tentativa de apropriação de terras por parte de usurpadores locais. Diz o documento
"Foi apresentada nesta câmara a petição que a V. Exa. designarão os moradores do
44
erval do Faxinal representando contra o juiz-comissário desse município, o capitão Fran-
cisco José Alves Monteiro por ter procedido irregularmente na medição dos campos de
Monte Alvão, incluindo nessa medição esse erva l sem respei to as pessoas nela
estabelecidas, e tendo esta câmara em data de 4 do corrente oficiado ao mesmo juiz
pedindo-lhe esclarecimentos, esse nem uma atenção prestou ao pedido (...) não sendo a
primeira irregularidade cometida por esse juiz..."21
Essa reclamação dos moradores mostra a flagrante arbitrariedade das autoridades. O
juiz nem sequer se dignou a responder à interpelação da câmara, que por sua vez tinha
interesse em manter o controle dos ervais, conforme já comentamos acima. Por outro lado, o
episódio demonstra o conflito entre os poderes municipais e os imperiais. Nesse caso, o juiz,
ao medir as terras para o fazendeiro, estava amparado na própria lei de terras que autorizava a
legitimação das posses efetuadas de forma mansa e pacífica antes de 1850.
O artigo quinto da Lei número 601 de 18 de setembro de 1850 em seu parágrafo
primeiro diz que:
"...cada terra em posse de cultura ou em campos de criação compreenderá: além do
terreno aproveitado ou do necessário para pastagens dos animais que tiver o posseiro,
outro tanto mais de terreno devoluto que houver contínuo, contanto que em nenhum a
extensão total de posse exceda a de uma sesmaria, para cultura ou criação, igual as últimas
concedidas na mesma comarca ou nas mais vizinhas".22
Evidentemente, no caso, as terras que o fazendeiro pretendia incorporar como
contíguas não eram devolutas, se considerarmos como posseiros os ervateiros
reclamantes. O difícil, no entanto, estava em convencer o juiz e o fazendeiro de que
os ervateiros teriam direito sobre o erval como posseiros ou como usuários de um bem
público. A Lei de Terras, no entanto, tinha uma série de artigos que procuravam impedir
esse tipo de arbitrariedade através da "fixação de editais em lugares públicos" e de audiências
com os confrontantes. Mas, certamente, como fica evidente em vários conflitos dessa
natureza, o juiz fazia pouco caso dos artigos inibidores da arbitrariedade, constantes na
Lei.23 Por outro lado, é pouco provável que a população pobre tivesse conhecimento da lei; e
também eram poucas as possibilidades de reagir diante do poder dos usurpadores, numa
terra e numa época onde a arbitrariedade era prática comum.
A privatização do erval citado acima era uma contradição no sistema de coleta de
mate, à medida que proibia o acesso dos coletores ao produto que até então era
45
regulamentado pelas normas municipais tradicionalmente respeitadas pela população lo-
cal. Os coletores, acostumados com essas normas tradicionais, não tinham a mesma
preocupação ou não tinham condições de privatizar o erva!, sendo-lhes desnecessária
a propriedade jurídica dos terrenos.
Os processos de apropriação jurídica das terras a partir da década de 1860 tendeu
a avançar e a agravar cada vez mais a situa-ção dos posseiros pobres. A condição de
fronteira de boa parte das terras da região permitia a concessão gratuita dos terrenos,
conforme o artigo primeiro da lei de Terras de 1850:
"Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de
compra. Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em
uma zona de dez léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamen te."24
A gratuidade das terras não era suficiente para que os agricultores e os coletores de
mate tivessem o acesso à propriedade: também nessa faixa de fronteira a apropriação era
iniciativa de oportunistas e usurpadores, da mesma forma que em outras áreas fora da zona
fronteiriça.
Um historiador local, reportando-se à Lei de Terras de 1850, que distribuía terras
gratuitamente aos interessados, é preciso ao afirmar que
"...um fator consideravelmente desfavorável resultava das disposições legais. A lei das
terras, com seu regulamento, a par das terras devolutas que o governo fazia, ensejava a
medição das posses dos particulares. Estes deveriam suportar os encargos financeiros
dessa medição, que não seriam poucos. Ao contrário, acontecia que grande parte dos mora-
dores de Campo Novo, com raras exceções se constituía de gente pobre, humilde, sem
recursos, que vivia da exploração dos ervais públicos ou que ocupava seu tempo na con-
dição de simples peão, agregado, ou apenas era fazedor de erva mate para os donos de
engenhos."25
O caso a seguir, num documento da câmara de Santo Antônio da Palmeira de 1877,
demonstra essa situação:
"...constando a esta câmara que foi pelo governo imperial nulificado a concessão feita
na zona de dez lagoas no Alto Uruguai assim considera esta câmara nulos os atos pelo co-
missário ad hoc que mediu parte do 3° distrito desta vila... ficando assim isolados parte dos
habitantes do Campo Novo que não puderam por sua pobreza medir os terrenos que
ocupavam, aliás ocupados aos mesmo tempo. Tendo desta forma despovoado-se o
46
mencionado distrito, em vez de se essenderem no país, passarão a povoar terras no estado
vizinho em número talvez de duzentas almas..."26
Destaca-se nesse documento uma realidade importante no processo de apropriação
de terra: os camponeses pobres não tinham recursos para medir as terras a que teriam
direito legalmente por serem posseiros. Não tinham certamente condições de pagar ao
agrimensor os serviços, e nem de encaminhar a solicitação junto às autoridades
governamentais, que cobravam, por menos que fosse, uma quantia em selos, pela
tramitação e pela legalização dos processos. Em caso de alguma contestação, a
contratação de um advogado seria impossível. Aproveitando-se dessas condições, os
usurpadores requeriam as terras às instâncias superiores e tornavam-se proprietários delas
em detrimento dos posseiros que ali viviam. Não devia ser raro chegar algum sujeito com um
título de proprietário da terra na mão e apresentá-lo aos que realmente ocupavam as terras e
usufruíam delas.
As medições eram obra de um juiz-comissário, que usava sua autoridade para a
privatização de terras em detrimento dos moradores, sem ouvir os apelos da câmara
municipal. Eis aqui uma dessas reclamações municipais ignoradas:
"...constando a esta câmara que se acha o Dr. Acauã juiz-comissário de Passo Fundo
medindo os campos denominado Campo Novo por petições de alguns habitantes do mes-
mo campo, constando porém a esta câmara que o referido campo sempre tem sido
considerado como servidão pública e que fazia parte do patrimônio desta municipalidade,
quando pertencendo a esse município, constando que por mais de uma vez essa
municipalidade ordenou a retirada de porção de animais que diversos moradores tentarão
criar, dentro do referido campo por tanto, querendo esta câmara tomar medidas a
respeito visto que pertencendo anteriormente dito campo à essa municipalidade, hoje deve
ter passado a esta o mesmo domínio, para cujo fim tomou a deliberação pedindo a V. S. dar
a esta câmara o que por ventura possa existir no arquivo dessa.27
O município de Santo Antônio da Palmeira, ao desmembrar-se de Cruz Alta em
1873, diz ter assumido o patrimônio daquele, referente às terras de Campo Novo, bem
como dos ervais. O Campo Novo era um distrito e centro ervateiro do município e portanto
considerado de domínio público. Esse distrito tinha uma pequena área de pastagens naturais
cercada de matas com erva-mate e era utilizada de forma comum pelos ervateiros para
o pastoreio de seus animais.
47
O juiz-comissário que determinou a medição e portanto a usurpação de uma área de
domínio público por fazendeiros e pessoas influentes politicamente, e que articularam a
apropriação diretamente nas instâncias superiores, representa uma política deliberada
nesses anos no sentido de avançar sobre as áreas devolutas, que existiam em abundância na
região. A localização próxima da fronteira, que permitia a pura e simples requisição sem
maiores ônus, levava a que pessoas bem-informadas juridicamente e com poder suficiente
para tanto iniciassem um processo de privatização das terras, entre as quais se incluíam os
ervais que até então haviam sido explorados de forma comum.
Era corrente o confronto entre o poder municipal e o imperial no processo de
privatização das terras. A execução da Lei de Terras era responsabilidade do governo imperial
através da presidência da província, que se encarregava de nomear os juízes-comissários
para atuarem nos municípios. No caso das terras de ervais, as câmaras, por unia
questão política e devido à importância do mate na receita municipal, procuravam manter o
controle e normalmente defendiam os ervateiros.
Um caso típico desse confronto foi uma tentativa de medição dos ervais do Campo
Novo em 1876. Uma representação de moradores denunciou que o juiz-comissário passara
a medir os terrenos "ocupados por mais de três mil almas". Reclamavam ainda os
moradores que
"[o] dito juiz-comissário não tendo ern consideração os graves prejuízos que causa
aos habitantes do sobredito distrito em dividir a meia dúzia de interessados fazendo assim um
prejuízo considerável a Hm' Câmara sobre as rendas do município, visto que os ervais
(...) ficam pertencendo a propriedade particular...28
A defesa dos ervateiros e dos lavradores teve o apoio dos comerciantes de erva-
mate, que possuíam razoável força de barganha em nível municipal, bem como da
municipalidade que tinha consciência da perda do controle dos ervais e de suas conse-
qüências na arrecadação de tributos. Nesse particular, os queixosos não esqueceram de
lembrar a sua importância econômica para o município.
O primeiro nome da lista de signatários é exatamente o do fiscal da erva-mate, José
Duarte da Silva Paran hos, e o apresentante da representação é o juiz de Paz da localidade.
Na batalha jurídica pela posse de terra o poder imperial parecia ter vantagens diante
do diminuto poder municipal. Nessas condições a população ligada ao extrativismo da erva-
mate resolveu apelar diretamente ao imperador num abaixo assinado de 1879. O documento é
longo e exaustivo em suas argumentações, cujas premissas são as seguintes:
48
1°) o governo imperial teria autorizado os moradores ligados ao extrativismo do niare
a usufruírem dos ervais pelo aviso de 20 de maio de 1861;
2°) o juiz-comissário estaria medindo terras de forma criminosa e contra a "disposição
da Lei n° 601 de 18 de setembro de 1850 (a Lei de Terras) artigo 1° que proibiu a aquisição
de terras devolutas";
3°) os habitantes expulsos das terras estariam sujeitos "a mendigar o pão para
suas famílias em país estranho", porque seriam tomados os únicos terrenos que lhes foram
concedidos na "pátria que os viu nascer";
4°) acusam os ricos e poderosos de quererem essender seus domínios e de oprimi-
los pela violência;
5°) denunciam os mecanismos fraudulentos usados para comprovar o direito de
posse dos expropriadores.29
O aviso de 20 de maio de 1861 a que se referem os suplicantes permitia que se
distribuíssem aos coletores de erva-mate os ervais nacionais, nos termos da Lei de Terras
de 1850, mediante as seguintes condições:
1°) serem devolutas as terras em questão;
2°) ser feita a distribuição em lotes conforme as forças de cada família;
3°) serem esses terrenos medidos e demarcados antes da concessão;
4°) o governo deveria aprovar um plano de distribuição das terras e conservação
de matos a ser apresentado pela presidência provincial.
O apelo dos suplicantes enfatiza dois aspectos significativos no processo de
apropriação das terras. O relator, sutilmente, faz referência à possibilidade dos habitantes
mudarem-se para país estranho, no caso, a Argentina, ao mesmo tempo em que lembra a
"valorosa participação" dos habitantes do Rio Grande do Sul nas lutas fronteiriças contra o
Uruguai, o Paraguai e a Argentina. Outro ponto destacado no apelo é a própria Lei de
Terras que, nesse caso, é citada em favor da população pobre, que assina o docu-
mento, no sentido de impedir que falsários, através do simples expediente de pagarem multa
por não terem registro, se apossem da terra.
Para complicar ainda mais a situação dos coletores de erva-mate, a câmara
municipal de Santo Antônio da Palmeira requereu a área em questão como patrimônio
49
municipal em 1877. O pedido da Câmara não foi atendido mas foi mais um entrave à
regularização das ditas terras. Ou seja, o poder municipal era mais um interessado na
disputa pela terra, cujo controle já vinha exercendo através de leis municipais que ficaram
obsoletas diante da Lei de Terras do Império, no momento em que a discussão tomou
caráter de batalha jurídica.
O juiz-comissário, por sua vez, ciente de seu poder e da possibilidade de
manipulação, acusa a câmara municipal de vender terras aos agricultores e iludi-los, pois
as terras não estavam sendo legitimadas. Por outro lado, o juiz encontrou um agitador
entre os habitantes e acusou-o de insuflar o povo contra a Lei. Afirma o juiz Tibúrcio
Alvares de Siqueira Fortes que "...entre algumas das causas resulta o criminoso procedi-
mento de Luiz Minho Flores com suas consecutivas proclamações em diversos pontos do
município onde possa ser ouvido (...) contra as leis que nos regem, aconselha aos posseiros
que não procedam a medida alguma...30
Sem discutir o mérito da acusação do juiz-comissário, não é por acaso que o
ervateiro Luiz Minho Flores foi assassinado em 1881 por um proprietário de terras, que se
defendeu argumentando que a vítima invadira sua propriedade para retirar erva-mate.31 O
mesmo Luiz Minho Flores aparecia novamente nas páginas dos processos judiciais alguns
anos após sua morte, numa ação de despejo impetrada contra sua família. O
responsável pela ação, em seu relatório para a justiça, relata que os "intrusos da fazenda
BOA VISTA", ofereceram "RESISTÊNCIA que tomou o mau caráter de uma sedição". A
ação de despejo impetrada pelos donos da fazenda era contra "Luiz Minho Flores e sua
mulher de quem são prepostos os intrusos resistentes".32
O juiz-comissário protagonista do conflito e que media terras para si próprio,
segundo denúncia dos habitantes locais, tinha uma larga folha de serviços como mi litar.
Participara ativamente da guerra contra o Paraguai e além de capitão ostentava o título de
coronel honorário do exército nacional.
Por outro lado, a disputa de terras não se limitava a uma discussão entre o
poder local e as instâncias superiores do poder. Numa época em que o caciquismo político
era muito forte no Rio Grande do Sul, as lutas de terra passavam também pela luta no
seio da própria oligarquia local, dessa forma saindo parcialmente do terreno de simples
batalha entre grupos sociais diferentes. No exemplo anterior da resistência armada dos
supostos invasores da fazenda Boa Vista, os ditos intrusos eram apoiados por um major com
larga influência política e militar, que teria interesse em "saciar seu ódio contra a família
Borges", proprietária da fazenda, segundo as palavras de um oficial.33
50
Nesse aspecto, a população local estava fortemente atrelada a caudilhos com os
quais estabelecida relações de "favores recíprocos", em que os estancieiros é que levavam
as vantagens: a relação, na verdade, era unilateral. O controle político e militar dos
fazendeiros era inquestionável. Basta lembrar que, durante a guerra do Paraguai e
quando de guerras intestinas, os coronéis locais não tinham grandes dificuldades em
arregimentar soldados para as batalhas, mesmo que muitas batalhas fossem de caráter
político e pessoal. Nesse sentido, o prestígio e o poder de um estancieiro estava muito ligado à
sua capacidade de aliciar homens dispostos a um enfrentamento armado contra qualquer
inimigo possível. Nesse particular, são conhecidas as atrocidades cometidas na Revolução
de 1893, na qual a prática da degola tomou proporções assustadoras.
Além dessa questão dos ervais, após a regulamentação da Lei de Terras, em 1854,
os agricultores pobres passaram a ser sistematicamente controlados pelos interessados na
apropriação das terras. Na década de 1860 e posteriores, os processos na justiça contra
invasão de matos nacionais por pequenos agricultores tornaram-se comuns. Em 1863, por
exemplo, no cartório de Cruz Alta corria processo contra seis agricultores por derrubar o
mato da nação às margens do rio Ijuí: "...à cerca de um ano principiarão a roçar, derrubar e
plantar em matos nacionais sem que esse e aqueles possam dizer que aí tem posse feita
ou comprada..."34
Com todo esse controle político e institucional das elites locais, as terras devolutas
e os ervais públicos perderam espaço gradativarnente para a privatização. Formou-se, desse
modo, uma legião de homens despossuídos em meio à imensidão de terras, numa região
de baixíssima densidade demográfica, á época.
A Legislação Agrária
Há quase consenso na historiografia brasileira de que a Lei de Terras de 18 de
setembro de 1850, além de tentar disciplinar o acesso à terra, veio para impedir ou dificultar a
posse da terra por parte da população pobre e principalmente dos imigrantes que viriam ao
Brasil para atender às exigências do processo de substituição do trabalho escravo
pelo trabalho livre nas zonas cafeicultoras do país.
Essa idéia parte do raciocínio básico segundo o qual "num regime de terras livres
o trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre e terra tinha que ser cativa.35
Essa afirmação de José de Souza Martins, em O Cativeiro da Terra, insere-se dentro dos
pressupostos de H. J. Nieboer (Slavery as an Industrial Systein)36 que classifica as sociedades
em:
51
a) povos com recursos abertos (disponíveis);
b) povos com recursos fechados.
No primeiro caso, a possibilidade de acesso aos meios de subsistência, que estariam
disponíveis, forçaria uma classe dominante, para poder existir, a impor o trabalho
compulsório como forma de conseguir explorar o trabalho de outrem. Isto é, a escravidão
poderia ocorrer naquelas sociedades em que houvesse a possibilidade de um homem prover-
se independente e livremente dos recursos necessários à sua subsistência. No segundo caso,
onde os recursos são escassos e a população depende de um capitalista ou senhor de
terras para sobreviver, não haveria necessidade do trabalho compulsório.
Esse modelo explicativo, apesar de adaptar-se ao caso da cafeicultura brasileira, não
significa que, necessariamente, as coisas teriam que se dar daquela forma. Mas, de
qualquer modo, a Lei de Terras de 1850 parece ter propiciado o efeito desejado para as
elites do café.
Paulo Bessa Antunes, em recente trabalho sobre a propriedade rural no Brasil,
conclui:
"Com a lei n° 601 de 18 de setembro de 1850, foram vedadas todas as
possibilidades de caracterização de uma economia formada pela propriedade familiar.
Embora aparentemente buscando garantir um acesso fácil e democrático à terra aqueles
que o desejassem, a alienação onerosa das terras públicas, de fato, foi mecanismo
profundamente elitista e mantenedor do status quo vigente.37
Por outro lado, no Sul do Brasil, diferentemente de São Paulo, a questão da terra
tinha outro caráter, pelas circunstâncias econômicas e políticas que diferiam bastante
daquelas dos cafeicultores. Primeiro porque as elites gaúchas dedicavam-se à pecuária,
que evidentemente exigia menos mão-de-obra que a cafeicultura, tanto que o fim do tráfico
negreiro em 1850 afetou mais os cafeicultores e nem tanto os pecuaristas do Sul, que até
exportavam escravos para aquele setor.
Para o estancieiro gaúcho o mais importante era ter uma grande área de campo
nativo e muitas cabeças de gado, sendo menos difícil conseguir peões baratos ou
agregados para o trabalho do campo. Isso não significa que a estância pastoril excluísse o
escravo, mas que, em termos relativos, esses eram menos importantes que para um
cafeicultor.
52
Em segundo lugar, os imigrantes recebiam a terra para pagar em longo prazo e
ainda recebiam subsídios para praticarem uma agricultura de subsistência nas áreas
florestais.
No Sul do Brasil, a imigração fazia parte da política de povoamento do extremo Sul
fronteiriço com os países da bacia do Prata, por tratar-se de uma região altamente
estratégica em termos geopolíticos. Ao mesmo tempo, tratava-se de uma política de tornar o
Rio Grande um celeiro para abastecer o mercado das regiões agroexportadoras. Tratava-se,
ainda, de uma política de valorização de terras.
A prisão da terra na zona cafeicultura do país era algo imprescindível para a
implantação do trabalho livre, por ser uma atividade econômica em plena expansão e
exigente de abundante mão-de-obra. Já no Rio Grande do Sul, a principal atividade econômica
ao longo do século XIX, a pecuária extensiva, era um sistema de produção que exigia muita
pastagem natural, mas incomparavelmente menos trabalho que a cafeicultura. Por tal
razão, não se pode pretender que a expansão da pecuária exigisse imigração em massa
para atendê-la, como ocorreu com o café.
Portanto, a Lei de Terras de 1850, que cativou a terra, não foi elaborada pensando-
se em criar dificuldades para o imigrante tornar-se pequeno proprietário no Rio Grande do
Sul. O imigrante sulino não foi convocado para trabalhar nas fazendas de gado como
foram os imigrantes de São Paulo para o café. Ao contrário, os colonos foram chamados
pelo governo provincial e por particulares exatamente para serem pequenos proprietários.
Nesse particular, um militar alemão contemporâneo opinava na década de 1850:
"O governo é muitas vezes acusado de ter a intenção de não criar proprietários de
terras mas apenas atrair ao país trabalhadores brancos para substituir os escravos negros.
Embora tal acusação, depois de terem sido declarados claramente, na lei provincial
número 229 de 4 de novembro de 1851 os princípios da Assembléia Legislativa quanto à
colonização, chegue a raias à tolice, vamos, contudo refutá-la mais detalhadamente...38
De fato, o governo provincial gaúcho, através da lei número 229, estava disposto a
conceder gratuitamente terras aos colonos e também a pagar: "[a] despesa da condução
dos colonos desde o porto do Rio Grande até as colônias e bem assim a que se fizer com
ferramenta e sementes que se lhes suprirá por uma vez somente."(É o que consta no artigo 10
da referida lei).39
Poucos anos após, através da lei número 304, de 1854, as terras passaram a ser
vendidas aos colonos, mas as condições eram bastante facilitadas. Além do apoio técnico
53
oferecido pelo governo, o primeiro pagamento somente seria exigido no fim do terceiro ano
após a sua instalação nos lotes coloniais. Mesmo assim, a cobrança da dívida dos colonos
foi extremamente difícil. A cobrança da terra aos colonos em substituição à gratuidade era
uma forma do governo provincial obter receitas para viabilizar o próprio projeto de
colonização, não se tratando de uma medida para inibir o acesso à propriedade, como
parece ter sido o caso da cafeicultura.
Para o governo provincial gaúcho, de modo particular, a imigração era uma saída
econômica para uma província que produzia para o mercado interno. Em 1853, o mesmo
alemão a que nos referimos acima, Joseph Hõrmeyer, talvez tenha resumido com
bastante precisão a importância dos imigrantes nesse particular:
"As vantagens financeiras que resultam para o Estado pela imigração ressaltam, por
si, aos olhos de cada um. Além do fato de, dessa maneira, entrarem no país dinheiro,
valores (em dinheiro) e trabalhadores, aumentam a produção, consumo, exportação, e
importação, portanto o comércio e conseqüentemente também os impostos aduaneiros de
tal forma que os sacrifícios que o Estado faz para o fomento da imigração em breve lhe serão
recompensados de forma centuplicada.40
Não se pode atribuir um papel rigorosamente determinante à legislação agrária no
processo da ocupação de terras. No período anterior ao da Lei de Terras de 1850, o
regime de posses instituído em 1822 em substituição à Lei de Sesmarias é considerado
juridicamente favorável à população pobre, para o acesso à terra; mas nem por isso a
população efetivamente conseguia apropriar-se da terra. Ruy Cirne Lima, escrevendo
sobre a legislação agrária nos afirma que:
"A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos. A posse é, pelo
contrário, – ao menos em seus primórdios – a pequena propriedade agrícola, criada pela
necessidade, na ausência de providência administrativa sobre a sorte do colono livre e
vitoriosamente firmada pela ocupação...
"Era a ocupação tomando o lugar das concessões do poder público e era igualmente
o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado sobre o senhor de engenhos ou
fazendas, o latifundiário sob o favor da metrópole."41
Entretanto o próprio autor, algumas páginas adiante, aponta claramente as
distorções entre o jurídico e a prática efetiva da apropriação do solo:
"...a humilde posse com cultura efetiva, logo, entretanto se impregnou do espírito
54
latifundiário, que a legislação de sesmarias difundira e fomentara.
"Depois de 1822 sobretudo, data da abolição das sesmarias, as posses passaram a
abranger fazendas inteiras e léguas a fio."42
E por fim, atribuindo à pura questão de mentalidade a existência do latifúndio o
escritor reconhece que "qualquer sistema territorial lhe teria servido para o mesmo fim...43
Evidentemente, a legislação agrária, num Estado exclusivamente agrícola como o
Brasil no século XIX, não poderia ser empecilho para a hegemonia dos latifundiários. E, se
fosse necessário, não seria difícil alterar as leis para adequá-las às novas pretensões dos
mesmos latifundiários, como de fato ocorreu com a lei de 1850. Daí que fossem infrutíferas
as queixas que muitos contemporâneos do século XIX, liberais notadamente, faziam acerca
dos males que o latifúndio acarretava para o pleno desenvolvimento econômico e social da
nação. É o caso do charqueador Antônio José Gonçalves Chaves,44 que escreveu em
1823 uma verdadeira proposta de reforma agrária para o jovem Estado brasileiro. No
mesmo sentido, o presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul denunciava,
em 1849, o latifúndio gaúcho como sério entrave à agricultura e causador da miséria do
povo.45 Outras vozes somaram-se a essas durante todo o século XIX e historiadores
posteriores não deixaram de denunciar o latifúndio e os sistemas agrícolas como irreparável
irracionalidade dos agricultores passados.
A Lei de Terras de 1850, a primeira legislação efetiva das terras do Estado
brasileiro, tinha mecanismos jurídicos tanto para impedir a posse de terras pela população
pobre quanto para criar dificuldades a que os abastados se apossassem de grandes exten-
sões. Mas não impediu, na prática, que grandes extensões fossem apropriadas de forma
ilícita. José de Souza Martins é exato quando nos afirma que, após a Lei de Terras de 1850,
teria surgido:
"Uma verdadeira indústria de falsificação de títulos de propriedade sempre datadas da
época anterior ao registro paroquial, registradas em cartórios oficiais geralmente mediante
suborno dos escrivães e notários...
"Tais procedimentos, porém, eram geralmente inacessíveis ao antigo escravo e ao
imigrante, seja por ignorância das praxes escusas, seja por falta de recursos financeiros
para cobrir despesas judiciais e subornos das autoridades..."46
Para burlar a Lei de Terras, os usurpadores brasileiros eram muito criativos. Um
exemplo dessas fraudes nos é indicado por Warren Dean:
55
"José Teodoro de Souza, emigrando de Minas Gerais a São Paulo em 1856, cercou
cinco posses em la región de Campos Novos de Paranapanema que abarcaban
ochocientas leguas cuadradas (345000.00 km2) com ayuda de um compahero de
immigración que era ei amo político de Botucatu. Aun después de cerrado ei registro
podían todavia coserse páginas nuevas en los libros, o descubrirse espacios en
blanco. Había libros que se perdian o se estropeaban accidentalmente. Un
subterfugio aún más sencillo era declarar ante notario la compra de una posse perteneciente
a un intruso que había residido en esas tierras antes de 1850.47
No Rio Grande do Sul os expedientes ilícitos também eram largamente utilizados. O
presidente do Estado, em 1898, Júlio de Castilhos, é incisivo em denunciar a ineficácia da
legislação para conter os abusos. Afirma o presidente:
"Nas minhas mensagens anuais dirigidas à Assembléia dos representantes tenho
insistentemente relatado as principais ocorrências do serviço de Terras Públicas, exposto
os inúmeros e criminosos abusos que o haviam conspurcado desde longo tempo; a atual
administração do Rio Grande do Sul há posto em prática para estancar as fraudes e
usurpações que estavam ousadamente desfalcando o patrimônio territorial do Estado...
...para formardes um juízo aproximado das fraudes a que estiveram expostos as terras
públicas no antigo regime, basta indicar-vos que em 1881, durante os 28 anos decorridos
após o regulamento de 30 de janeiro de 1854, tinham sido ainda legitimadas posses de cerca
de 50 léguas quadradas! De setembro de 1885 a 15 de novembro de 1889 ficou também
facilmente legitimada a área de 70' léguas quadradas. 48
Do mesmo modo, esses procedimentos usurpadores foram utilizados também na
região que estamos analisando especificamente. Um desses expedientes, segundo uma
denúncia da época, era o pagamento de multa irrisória por não haver registro de posse.49
O usurpador dizia que tinha comprado a terra de um posseiro que afirmava ter ocupado a
terra de forma mansa e pacífica antes de 1850 e que, no entanto, não fora ao registro
paroquial registrá-la como exigia o regulamento de 1854.
É pertinente ressaltar que a política deliberada de propiciar o desenvolvimento de
pequenas propriedades agrícolas era uma política voltada para os imigrantes europeus.
Assim, uma parcela significativa da população regional acabou mesmo sendo atingida
fortemente pela Lei de Terras de 1850. A população de lavradores pobres e coletores de erva-
mate foi por aquele diploma jurídico impedida de apropriar-se do solo. Essa população
acabou sendo utilizada como força de trabalho nas estâncias, após a abolição da
56
escravidão, e nos próprios projetos de colonização como organizadores da infra-
estrutura – estradas, desmatamento... Por essa razão é que os lavradores nacionais
tinham dificuldades de tornar-se proprietários da terra que utilizavam. Os colonos imi-
grantes eram tão ignorantes dos aspectos jurídicos como os caboclos; alguns sequer
conheciam a língua portuguesa; no entanto um funcionário público levava-os até o lote
rural e entregava-o para ser pago em suaves prestações, pois eram esses os agricultores
encarregados do desenvolvimento agrícola e não os caboclos, na política oficial. Essa é a
razão do tratamento diferenciado que recebiam os caboclos brasileiros e que acabaram por
tornar-se sem-terras, intrusos e peões baratos.
A Colonização
A preocupação de criar colônias nas matas do Alto Uruguai como forma de povoar a
fronteira com a Argentina sempre foi um objetivo do governo imperial e provincial durante o
século XIX. Já em 1825 malograra a fundação da colônia de São João das Missões, antiga
redução jesuítica. Depois, a guerra civil que atingiu a província entre 1835 e 1845 estagnou
todos os projetos de colonização com imigrantes europeus.
Na década de 1850 e nas seguintes, várias colônias foram criadas por particulares
e pelo governo, mas sempre em locais relativamente próximos das antigas colônias do vale
do rio dos Sinos. O caminho da colonização estrangeira seguiu um movimento a partir
dos centros econômicos mais sólidos e dinâmicos próximos do litoral (Porto Alegre) e
privilegiava as terras ao longo dos cursos dos rios que davam acesso a Porto Alegre,
capital da província.
Em todo o período imperial a colonização estrangeira não conseguiu atingir as matas
que verdejavam os rios da bacia do Alto Uruguai, tanto que em 1877 a câmara de Cruz Alta,
o centro político e econômico regional, solicitava a vinda de colonos imigrantes e oferecia
gratuitamente 115 lotes aos colonos que quisessem se estabelecer às margens do rio
Ijuí, afluente do Uruguai.50
O pedido e a oferta dos vereadores cruz-altenses não foi suficiente para atrair
colonos. O ministério da Agricultura recusou a oferta dos lotes, argumentando que não havia
condições de mercado para a criação da colônia naquela região.
Na década de 1880 o debate em torno da agricultura e da formação de colônias foi
muito fértil na imprensa regional. O periódico Aurora da Serra publicou vários artigos a partir
57
de 1884 a respeito da necessidade de desenvolver a agricultura e acusava a população
brasileira de negligência e descaso. Um dos artigos assinados por Uflacker H.
proclamava: "abençoado país esse nosso para os vagabundos". Mas, com otimismo,
propunha no mesmo artigo que
"...já é tempo de cuidarmos em medidas sérias e apropriadas que elevem a
indústria agrícola nesta região a altura de que é condigna. Não será em época muito remota
que ela ainda se constituirá em uma das fontes mais ricas do engrandecimento e
prosperidade desta região, e pode estar tão próxima esta época que unicamente depende
em conseguirmos os prolongamentos das vias férreas do norte e do sul desta província até
os pontos principais de nossa região serrana."51
A questão da via férrea, que o autor do artigo lembrava, era fator decisivo para a
viabilidade da expansão agrícola e fundamental para atrair imigrantes. A ausência de
uma rede de transportes eficiente inviabilizava a produção agrícola de gêneros consumidos
no mercado interno pela absoluta desvantagem em relação às colônias próximas aos rios
navegáveis que desciam até o estuário do Guaíba, em Porto Alegre, e dava acesso ao
oceano pelo porto de Rio Grande – por via da Lagoa dos Patos.
A questão agrícola local era normalmente apresentada de forma atrelada à
necessidade de imigrantes. Dessa forma, o mesmo periódico citado exaltava as qualidades
dos colonos alemães e italianos e recomendava precauções de cunho racista como esta:
"...devemos nos precaver com real cuidado na introdução desses últimos (o
italiano) em cujo país superabunda uma parte de população péssima, essa então pode ficar
por lá, já temos de sobra uma massa enorme de libertos e de escravos suficientes para nos
incomodar. Precisamos sim de gente, porém, morigerada de bons costumes e
trabalhadora."52
Apesar dos proclamas dos arautos da imigração, a primeira colônia oficial só seria
fundada em 1890, com aplausos da imprensa local. A fundação de colônias no planalto
coincide com a construção de alguns trechos da ferrovia São Paulo-Rio Grande. E são as
colônias próximas às ferrovias as que mais se destacaram em seu desenvolvimento. Ijuí e
Erechim recebiam intenso fluxo de colonos estrangeiros e das colônias velhas, enquanto as
demais colônias sofriam sérias dificuldades para escoar a produção.
Além dessas questões de mercado e de projetos de desenvolvimento agrícola, o
sentido da imigração consistia sobretudo numa estratégia de valorização das terras, o
que explica, entre outros motivos, a insistência nos imigrantes em detrimento dos lavradores
58
nacionais.
Outro aspecto importante considerado pelas autoridades locais para justificar a
necessidade de imigrantes, e que também se relaciona com a política de valorização de
terras, é o isolamento da região. A colonização se fazia necessária para amenizar o
relativo isolamento regional. As queixas nesse sentido eram tantas que alguns estancieiros
locais e políticos chegaram a propor a autonomia política da região através da criação da
Província das Missões. 53
Se uma colônia agrícola de imigrantes nos moldes das tradicionais do vale dos
Sinos era inviável em função do isolamento e da impossibilidade de realizar-se a produção
agrícola, o governo, no entanto, preocupado com a condição fronteiriça do Alto Uruguai,
tomou a iniciativa de fundar uma colônia militar. Essa colônia era uma espécie de
colonização agrícola desenvolvida por homens fardados. O governo demarcou uma área de
treze mil hectares às margens do rio Uruguai, dividiu-os em lotes rurais e urbanos e
distribuiu-os entre os soldados do exército.
A expectativa oficial era de que esse núcleo colonizador pudesse expandir o
povoamento da área e desse modo atingir o objetivo militar de povoar de forma densa a
região fronteiriça com a Argentina. Trinta anos após a fundação da colônia, que ocorreu
oficialmente em 1879, a situação dos habitantes era bastante precária. Um relatório oficial
em 1913, quando a colônia ganhou status civil, informa o seguinte quadro:
"Visitei os principais pontos colonizados ... as casas em que moram são simples
abrigos. Sente-se que tem havido desânimo em toda a colônia. Os colonos em geral nutrem
a esperança de, com o regime civil, melhore a sua situação...
"O pessoal colono, em sua maioria, composto de ex-praças do exército não é mau; é
ordeiro e trabalhador mas não sabe trabalhar na agricultura...54
Esse tipo de colônia tinha, evidentemente, um propósito puramente estratégico e
vinha sendo cogitado desde os primeiros anos do Império. A comissão encarregada de criar
essa mesma colônia havia iniciado seus trabalhos em 1862 e somente quinze anos mais
tarde é que foi possível efetivar a sua fundação.
As colônias que interessavam aos donos das terras agrícolas monopolizadas eram,
porém, as tradicionalmente desenvolvidas nas região do vale dos Sinos, do Jacuí, onde os
colonos prosperavam com a produção agrícola e as terras próximas adquiriam preços cada
vez mais elevados. Nesse sentido, as primeiras colônias oficiais, fundadas na região,
59
datam de 1890 e 1891 – colônia Ijuí e colônia Guarani. Os lotes coloniais eram
previamente demarcados, inclusive os lotes urbanos que formariam as futuras cidades. De
modo geral, a demarcação dos lotes era feita através de linhas retas formando um traçado
uniforme e simétrico com terrenos retangulares de 250 m x 1000 m. Ou seja, 25 hectares ou
"uma colônia", como se convencionou chamar popularmente esses lotes.
Esse modelo de distribuição de lotes não levava em conta os cursos da água,
criando dificuldades para alguns lotes pois os riachos eram de extrema importância para a
unidade agrícola. Mais tarde, outras demarcações passaram a considerar as condições
topográficas, os cursos d'água e as estradas. É o caso da colônia Santa Rosa.
A ocupação espontânea de certas áreas por pequenos lavradores, tanto imigrantes
como antigos agricultores nacionais, levou também à formação de um modelo irregular, sem
princípio organizativo e sem padrão de tamanho dos lotes. É o caso de algumas áreas
próximas ao rio Uruguai.
O Comércio de Terras
Com a vinda de colonos estimulados pelas iniciativas oficiais da fundação de
colônias como as de Ijuí e Guarani, as terras próximas a esses núcleos oficiais passaram
a ser objeto de comercialização pelos proprietários de grandes áreas de mata virgem, que
as dividiam em pequenos lotes, seguindo o padrão da colonização oficial (cerca de 25
hectares).
Os loteamentos rurais particulares eram anunciados através de jornais comumente
lidos pelos colonos, nos quais nos foi possível verificar a dimensão e os detalhes do comércio
de terras. Servimo-nos especialmente do periódico Die Serra Post e de sua versão em
português, Correio Serrano, que era largamente lido nas colônias alemãs do Sul. Os
alemães ou os seus descendentes eram os principais compradores de terras, por serem os
mais antigos no Estado: sua população havia crescido além da capacidade de absorção
dos lotes coloniais, levando em consideração o modelo de agricultura praticada.
Um anúncio de 1917, quando a colonização oficial já havia se consolidado na
região, oferece terras próximas à colônia Ijuí nos seguintes termos:
"as colônias do Sr. Germano Hoffmeister no município de Ijuí; situadas na margem
do rio Conceição apresentam a cada comprador vantagens extraordinárias: Pelas grandes
possibilidades de venda de seus produtos, pela proximidade da estação ferroviária e da
60
vila (duas horas só). Pela fertilidade das terras destas colônias com bastante e excelente
água como também pela abundância de madeiras de lei. Em vista da baratez da terra, de
modo que também colonos menos ricos podem comprar terra fertilíssima a preços
baratos. Quem quiser ver as colônias tem condução gratuita. Compradores queiram dirigir-se
ao Sr. Emílio Scherer ...55
Nota-se no anúncio a importância da ferrovia, sem a qual a produção teria dificuldades
de escoamento. Nesse particular, fica evidente que a colonização e a agricultura
desenvolvida nesses núcleos eram estreitamente veiculadas ao mercado de alimentos do
país. Outros anúncios de colônias sempre destacam a localização em relação à ferrovia
São Paulo-Rio Grande, principalmente as do município de Passo Fundo, por onde a ferrovia
passava:
"Empresa colônia Barro, Lace & Rosa & Cia. – Comunicamos a todos os
compradores de terras que temos mais de 1000 colônias em parte medidas e em parte em
medição de modo que a extensão e o progresso de nossa colônia estão garantidos. Nossa
estrada de rodagem da estação Barro para a nova sede Três Arroios ficará pronta ainda
esse mês. A situação é bela e pitoresca. As colônias perto da sede já estão vendidas;
com exceção das chácaras cuja medição está em serviço. Em conseqüência de tudo isto um
desenvolvimento ligeiro e favorável está assegurado. Para as igrejas e escolas cuida-se
suficientemente. Uma linha telefônica está em construção. A estrada de rodagem seguirá
imediatamente para norte e oeste e para as colônias novamente medidas. Como a
colônia pertence a esse Estado 'e fica muito distante do lar de amotinações nos Estados
vizinhos uma inquietação é completamente impossível e o desenvolvimento pacífico está
garantido.56
As possíveis amotinações que o anúncio comenta refere-se à guerra do Contestado,
que abalou por vários anos os estados do Paraná e Santa Catarina e cujo motor era,
justamente, a disputa de terras ao longo da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, que se achava
em construção na década de 1910.
Nota-se também a preocupação da empresa em informar que o espaço para a igreja e
a escola estavam garantidos, o que era de grande importância para os agricultores, em geral
muito devotos.
Essa preocupação da empresa com a religiosidade dos colonos era importante para
atrair compradores e explicitava a experiência da companhia colonizadora em tratar com os
costumes e a espiritualidade daqueles. Num desses anúncios, uma empresa oferecia terras
61
em colônias específicas para seguidores das religiões protestante ou católica:
"Colônias = Bom Retiro, São Pedro (só para católicos) – Frankonia (só para
protestantes). Bom Retiro é situada na estrada de ferro São Paulo/Rio Grande perto da
estação Herval (Santa Catarina), perto da União da Vitória. Carazinho, Out. 1917. H.
Haecker & Cia."57
Com a multiplicação de companhias colonizadoras e o incremento do mercado de
terras, os preços evidentemente dispararam e finalmente os monopolizadores da
propriedade puderam realizar a venda das áreas florestais que haviam incorporado ao
patrimônio próprio depois de lutarem contra os posseiros nas repartições oficiais ou, quando
necessário, apelando para a pura e simples violência.
O comércio de terras desenvolvia-se através das companhias colonizadoras,
que compravam grandes áreas de terras de um fazendeiro que as havia monopolizado
anteriormente e as negociava com os colonos em pequenos lotes.
O jornal Correio Serrano, em 1918, noticiava:
"Os Srs. João Seering e Jacinto Gomes, em Passo Fundo compraram dois mil lotes de
terras e matos pertencentes à fazenda Guarany e situados no 6° distrito daquele município,
afim de serem colonizadores.58
Afora o comércio realizado através das empresas colonizadoras, as quais
geralmente criavam núcleos com certa infra-estrutura, grande quantidade de terras era
vendida diretamente pelos grandes proprietários próximas aos núcleos coloniais oficiais e
particulares já instalados.
Os negociantes de terra também compravam as terras do Estado a preços
módicos e as revendiam aos colonos imigrantes. Um desses negociantes da região foi
Hermann Meyer, que fundou várias colônias particulares com imigrantes alemães. No
relatório da Comissão de Terras, com sede em Ijuí, o engenheiro Augusto Pestana informa que
"...foi vendida ao Dr. Hermann Meyer uma área de 26629513 m2 (2662 hectares)
discriminadas entre os arroios Fiuza e Palmeira junto a colônia Neu Württemberg
pertencente ao mesmo Dr. Meyer."59
Em 1900, um negociante de terras entrou em disputa com o Estado pela posse de
urna área de matos devolutos que o protagonista insistia em provar que havia sido de
posseiros que, embora não tendo título, tinham direito à propriedade. Nesse caso, o pre-
62
tendente da terra alegava que comprara a área dos moradores, os quais eram arrolados
como testemunhas do processo. Diz um relatório de 26 de junho de 1900, da Comissão
de Verificação de Posses em Ijuí, que "foram discriminados os matos desse pontão de serra
que pertencem ao Estado e de que pretendiam apossar-se os Sr. Kruel e Lima ( ) foi feito o
recenseamento completo dos moradores de tais matos tomando as indicações necessárias
para poder-se mais tarde julgar do direito dos mesmos posseiros."60
Os pretendentes perderam o processo para o Estado, mas o que fica explícita
nesse caso é a presença de moradores caboclos que, ou foram usados pelos
pretendentes para apossarem-se da terra e nesse caso estariam vendendo suas posses aos
negociantes, certamente por preços irrisórios, ou, caso não fossem efetivamente posseiros,
como julgou o Estado, eram portanto homens desprovidos de terra e que tiveram que dar
lugar para os colonos a quem o governo vendeu as terras posteriormente.
Tomamos corno exemplo de comerciante de terras o empresário alemão Hermann
Meyer, que teve grande atuação no mercado imobiliário da região. Esse empresário era um
editor em Leipzig, sócio do "Instituto Bibliográfico", importante editora alemã. Formando em
Geografia e Economia, Meyer viera ao Brasil para uma excursão ao Xingu, na Amazônia, da
qual participaram alguns teuto-riograndenses que seriam futuros sócios seus no comércio
de terras no Rio Grande do Sul.
Hermann Meyer, através de seus sócios, passou a investir capital na compra e na
colonização de terras. Adquiriu várias áreas de terra virgem nos municípios de Palmeira
das Missões e Cruz Alta por seu procurador Carlos Dhein, fundando várias colônias com
colonos alemães e teuto-riograndenses. A principal colônia desse empresário foi a "Neu-
Württemberg", no município de Cruz Alta, de que temos razoáveis informações e
documentos.61
Vamos seguir alguns passos desse empresário germânico, para exemplificar corno
se processava o comércio de terras, ou a colonização, como preferiam dizer as
empresas. Em 1897, Hermann Meyer efetivara sua primeira compra em Palmeira das
Missões. Seu procurador comprara a posse de Maria Rita do Es-pírito Santo, com cerca de
1,8 mil hectares, pela quantia de 15:500$000 réis, ou seja, 8$525 réis por hectare.
Nessa área fundou a colônia "Xingu", a primeira de uma série de outras.
Nos anos seguintes as compras continuaram. Em 1898, foram compradas as
terras da futura colônia Neu-Württemberg, a principal da empresa e que se usava como
propaganda em prospectos e postais na Alemanha e nas colônias velhas do Vale dos
63
Sinos. Essa colônia localizava-se próxima à ferrovia Cruz Alta-Passo Fundo; os lotes
foram comprados do Estado e de particulares pecuaristas, que haviam incorporado ao
seu patrimônio os matos contíguos aos campos nativos. Para a colonização, somente eram
utilizadas as terras florestais, aproveitando a fertilidade natural e os preços baixos. Essas
áreas de mato pouco valiam para os pecuaristas.
Numa visita a Cruz Alta em 1898, Hermann Meyer foi recebido com grandiosa
festa. Ele próprio informa a respeito dessa recepção:
"Quando o trem entrou na estação de Cruz Alta, começou a pipocar em todos os
cantos. Foguetes estouraram e uma banda tocou um dobrado alegre. A plataforma estava
literalmente tomada por enorme multidão. (...) Em poucos segundos conhecia as mais
altas autoridades da cidade. A música silenciou, todos tiraram os chapéus, embora
chovesse torrencialmente, e fui saudado com um solene discurso, no qual me chamaram
de distinto explorador, colonizador e amigo da terra ilustríssima do Rio Grande do Sul, atri-
buindo-me, ainda qualidades e virtudes as quais nem sonhara.62
Não poderia haver melhor recepção para um grande empresário, cuja maior
virtude certamente era a de ter capital para investir no comércio imobiliário, nas terras
florestais ociosas.
Para revender as terras em forma de lotes coloniais, era necessário muita propaganda;
os colonos eram disputados pelas companhias colonizadoras nos navios, nos hotéis. Os lotes
oferecidos seguiam o padrão regional: 25 hectares — uma colônia, como se convencionou
chamá-los — a preços que iam de setecentos mil réis em Boi Preto e um conto de réis
em Neu Winttemberg, ou seja, 28 e quarenta mil réis o hectare, respectivamente (1901). Em
1912, urna colônia já valia entre dois e 3,5 contos de réis — oitenta a 140 mil réis por hectare.
As colônias eram vendidas em prestações anuais, o que dava origem a situações
difíceis quando as safras agrícolas sofriam intempéries ou adversidades do mercado. Os
ânimos dos empresários e dos colonos se acirravam e as contradições surgiram em forma
de conflitos. Desse modo, as relações entre os colonos e a empresa colonizadora nem
sempre eram harmônicas. Entre 1900 e 1905, os colonos de Neu-Württemberg, liderados
pelo moleiro Wagner, empreenderam grande campanha contra a empresa de Meyer por
razões da precariedade da infra-estrutura e pela incerteza de conseguir o título definitivo
da propriedade, estando as terras em litígio. Esses problemas administrativos seriam
resolvidos com a contratação de um pastor evangélico de WürttembergHermann Faulhaber —
amigo pessoal de Meyer, que se empenhou ativamente como administrador da colônia e
64
tornou-se, ele próprio, um empresário de terras com atuação no Rio Grande do Sul e em
Santa Catarina.
Apesar de supostas adversidades para a empresa colonizadora "Doutor Hermann
Meyer", que teve no seu início um sócio desonesto (que desviou dinheiro para o bem
próprio) e sofreu outros percalços de ordem administrativa, os resultados finais foram
bastante favoráveis. Durante a Primeira Guerra Mundial a empresa de Hermann Meyer
na Alemanha sofrera dificuldades imensas em função do conflito e coube à sua empresa rio-
grandense cobrir seus déficits. Meyer, que tantas vezes se queixava do pouco rendimento da
empresa de colonização, afirmava após a guerra:
"Quem pensaria que o Brasil, minha preocupação de tantos anos, viria a ser minha
salvação?"63
Nessa época, grandes somas de dinheiro eram enviadas para a Alemanha para
atender às dificuldades de Meyer. Nada mau para um capitalista que poucas vezes viria para
examinar seus investimentos, e que controlava uma empresa através de telegramas do além-
mar a seus prepostos no Rio Grande do Sul.
As empresas colonizadoras eram muitas no Rio Grande do Sul, no início do século
XX, inclusive com atuação nos estados do Paraná e de Santa Catarina, para onde
seguiam colonos das colônias velhas do Sul. Entre as empresas de meros objetivos co-
merciais, havia as que se intitulavam filantrópicas, cujos objetivos eram de ordem étnica e
política. Um exemplo desse tipo de empresa, mas que também operou em especulação
empresária de terras como as outras, foi a Jewish Colonization Association, que comprou
93850 hectares em Passo Fundo para povoá-la com imigrantes judeus. Essa empresa judaica
era de capitalistas de Paris e Londres, criada em 1891 nessa cidade inglesa com capital
inicial de vinte mil ações de duzentas libras cada. O principal sócio da companhia era o barão
Maurice de Hirsch, de Paris, e entre seus sócios estava lorde Rotshchild. Os objetivos da
empresa, segundo a versão oficial, era atender à comunidade judaica internacional com
dificuldades nos países anti-semitas, e com esse propósito foram fundadas várias
colônias na América. A principal colônia sulina dessa empresa foi a "Philippson", próxima à
cidade de Santa Maria, criada em 1902. Em 1909, a mesma empresa comprou as terras em
Passo Fundo para a segunda colônia, a "Quatro Irmãos". A fazenda foi dividida
parcialmente em lotes coloniais e dotada de infra-estrutura para receber os imigrantes
judeus de vários países, entre os quais a Rússia, a Argentina e ainda a Bessarábia. Cada
família recebia uma unidade de 150 hectares de campo com casa, animais, instrumentos
agrícolas etc.. A terra deveria ser paga em até vinte anos.64
65
Esses colonos judeus passaram a explorar a madeira (extração e comércio),
abundantes nas terras loteadas e na região toda. Poucos desses colonos seguiram o ramo
da agricultura, preferindo atividades mais compensadores nas cidades.
A Evolução dos Preços das Terras
Não há estatísticas oficiais referentes ao preço das terras, mas a partir dos
inventariospost-rnortem foi possível elaborar uma série de preços de terras com certo grau de
precisão, embora haja limites que dificultam a apreensão segura desses preços. Um dos
principais problemas dessas fontes é a imprecisão ou a omissão da área das
propriedades. Tais quais os registros paroquiais de 1 855-1 85 6, os inventários, em
muitos casos, limitam-se a informar o local da propriedade, sem determinar a sua área.
Essa fonte nos permite observar a evolução aproximada dos preços desde que essa evolução
seja compatível com outras referências lógicas que autorizem acreditar nas eventuais
modificações da série. Por exemplo, é natural que os preços subam quando ocorre uma
expansão demográfica ou quando uma ferrovia é construída nas proximidades.
Outro aspecto a considerar no preço das terras é a disparidade entre os
valores atribuídos aos campos de qualidades diferentes em áreas próximas e que não é
captada pelo inventário, pois esse não traz referências à qualidade do campo. O preço de
um campo sofria a influência do tipo de gramínea predominante na propriedade. Nesse
aspecto, os campos são classificados em "campos limpos" e "campos sujos". A topografia
e a disponibilidade de água também entram em consideração na avaliação do campo,
além da distância das sedes distritais ou da ferrovia, quando esta existe.
Feitas essas ressalvas e considerações, elaboramos uma tabela de preços capaz
de apreender a evolução dos preços das terras ao longo do período.
TABELA Nº 6 – PREÇO DAS TERRAS DE CAMPO NATIVO NO PLANALTO GAÚCHO
(réis/hectare)
ANO Preço Mínimoem réis
Preço MínimoDeflacionado
Preço Máximoem réis
Preço MáximoDeflacionado
1851 $500 $500 $500 $5001856 $550 $520 1$800 1$7011861 1$800 1$577 2$300 2$0151866 $640 $532 5$500 4$573
66
1871 $600 $495 8$600 7$0961876 1$000 $869 4$400 3$8211881 $820 $617 5$500 4$1391886 3$600 2$301 3$600 2$3011891 3$000 l$536 14$600 7$4751896 2$100 $649 22$000 6$8491901 2$400 $940 20$600 7$9991906 8$600 4$787 20$600 11$4681911 7$500 4$149 34$400 19$0321916 14$000 5$773 41$500 17$113
Fonte: Inventário Post-Morrem. Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões - Arquivo Público doEstado - Porto Alegre / RS
Na década de 1850 era possível comprar campo nativo pelo um preço máximo de
1,8 mil réis o hectare ou a 550 réis um campo de qualidade inferior. Pode-se observar que ao
longo do período os preços subiram estrondosamente, mesmo considerando a inflação
da moeda. No final do século, quando ocorreu forte expansão demográfica por força da
imigração, os preços tiveram forte elevação. Se considerarmos os preços máximos, dos
melhores campos, temos uma alta real de mais de 1000% no período. Nos anos
subseqüentes os preços continuam a subir numa média considerável. Por isso, em 1911
atingem 34 mil réis o hectare e 41,5 mil réis em 1916, ou cinqüenta mil réis em 1921.
Deve-se acrescentar que, no final do século XIX, além da forte imigração, foi
inaugurada a ferrovia ligando a região aos centros econômicos de Porto Alegre e
Pelotas, entre outros, e no início do século XX a mesma ferrovia alcançava Curitiba e São
Paulo. Ou seja, a ferrovia São Paulo-Rio Grande atravessava a região.
Os preços mínimos das piores áreas também evoluem, mas não na mesma
proporção, o que é natural, pois são terras de precária utilização econômica. As terras de
melhor preço no século XIX, considerando as condições técnicas do trabalho da terra eram:
os campos com pastagens naturais e com boa água, e também matos com ervais e matos em
geral, pois a agricultura praticamente se limitava ao aproveitamento da fertilidade natural
da floresta através cio sistema de pousio longo. Esta última somente passou a ter preço
considerável à medida que a densidade demográfica subia e, de forma especial, seus
preços dispararam quando começou o surto de colonização com colonos estrangeiros ou
de outras áreas de antiga colonização do Rio Grande, onde a densidade
demográfica era muito elevada para o modelo de agricultura que se praticava. Enfim, as
terras de preço mínimo que aparecem na tabela são aquelas que não se enquadram na
67
classificação anterior, ou seja, são terras com campo nativo mas de qualidade inferior
e provavelmente muito dobradas e rochosas, insuficientes para o pastoreio, portanto, e
totalmente descartáveis para a agricultura.
Em termos comparativos, a erva-mate, um dos principais produtos da região, manteve
seu preço quase estagnado ao longo do século XIX. Desconsiderando breves oscilações,
o valor da arroba de mate girava em torno de 2,5 mil réis e somente no princípio do século
XX seu preço atingiu cerca de cinco mil réis, ou seja, um acréscimo de 100%; pouco, em
relação aos mais de 1000% da elevação do preço das terras.65
Os preços das terras de mato ou lavradias foi impossível de arrolar ou organizar em
séries pela insuficiência das informações disponíveis nos inventários. São raros os casos
em que as terras de mato ou as lavradias estão discriminadas quanto à área, o que
demonstra a primazia dos campos e da pecuária sobre a agricultura praticada naquela
região. Normalmente o inventário refere-se a uma "posse de matos" ou uma "área" de
matos ou de terras lavradias, cujos valores são baixos. Não constando a extensão, é-nos
impossível calcular o preço por hectare. Mas o descaso com que aparecem no rol dos bens
de raiz do inventariado e o pouco valor relativo atribuído nos convencem de que o valor
era bastante baixo. Além disso é lógico que o preço de terras abundantes situadas onde a
agricultura era estritamente de subsistência, com pouquíssima circulação e mercado, onde
predominava a pecuária e o extrativismo de mate, deveria ser necessariamente baixo.
Com a "colonização" da região por imigrantes da Europa e das antigas colônias
alemãs e italianas, os preços das terras de cultura ou de matos subiram
extraordinariamente. Prevendo o aumento dos preços das terras por força exclusiva do
monopólio os usurpadores locais trataram de privatizar o maior número possível de
hectares para revender aos futuros compradores que, efetivamente, surgiriam na forma de
colonos imigrantes, os quais reuniam algum capital pela venda de excedentes agrícolas nas
áreas próximas a Porto Alegre, por exemplo, e investiam em novas terras férteis nas matas
do planalto. Da mesma forma, os agricultores das colônias oficiais como Ijuí e Erechim, por
exemplo, à medida que conseguiam poupar algum dinheiro, compravam pequenos lotes
para garantir o "futuro de seus filhos", ou ainda vendiam suas terras bem-localizadas e já
valorizadas pela infra-estrutura desenvolvida e compravam um área bem maior nas novas
colônias particulares que se multiplicavam pelo sul do Brasil por iniciativa dos especuladores
de terra.
As terras de cultura ou de matas de pouco valor no século XIX (o século da
pecuária e do extrativismo de mate) passaram a ter preços elevados no século XX. Esse
68
tipo de terra era negociado em lotes pequenos, medindo em torno de 25 hectares. Esse
tamanho-padrão chegou a constituir-se em unidade de medida entre os agricultores da região,
ou seja, por "uma colônia" entendia-se 25 hectares. Na condição de pequena propriedade
ou pequena área, o preço de cada unidade dependia ainda mais fortemente das condições
topográficas, da existência de água e da distância dos canais de escoamento da produção
– estradas, ferrovias e casas comerciais.
Se, no período imediatamente anterior ao da criação de núcleos coloniais e da
construção da ferrovia, a terra de cultura ou de matos tinha um preço irrisório, a partir desses
eventos os seus preços cresceram enormemente. Em 1901, na colônia de Cadeado, um
hectare valia cerca de quatorze mil réis; em Ijuí, colônia próxima, em 1913 os preços
atingiam a média de cinqüenta mil réis o hectare; ern 1926, os números indicam valores
de 15 mil e 214 mil réis na colônia General Osório, com condições idênticas às daquelas.66
A Ideologia e a Mercantilização da Terra
A historiografia rio-grandense de modo geral pretende mostrar a imigração e a
colonização das áreas florestais do Rio Grande como principal motor de avanço da fronteira
agrícola, chegando, nos casos mais apologéticos, a supor que os imigrantes eram
verdadeiros heróis, combatendo as selvas e arrancando dali a riqueza agrícola.
Um autor francês, em minucioso e já clássico estudo sobre a imigração alemã no
Rio Grande, chega a inspirar lirismo quando escreve:
TABELA Ni' 7 - POPULAÇÃO DO PLANALTO GAÚCHO E DO RIO GRANDE DO SUL
ANOPlanalto ( a) Rio Grande do Sul ( b) a/b =%
1846 7.492' 149.3634 5,01847 6.750 2 118.882 4 5,71848 9.346 2 187.082 4 5,01857 34.692 3 282.444 4 12,31862 45.000 4 370.446 4 12,11872 41.462 3 434.813 2 9,51890 101.030 2 897.455 2 11,31900 128.140 2 1.149.0702 11:1
69
1920 292.470 2 1.993.368 214,7
Fonte:
I. Quadro da população nacional livre organizado pelo encarregado da estatística segundo listas paroquiais.AHRS. Lata 531.
2.De província de São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: censos (1803-1950). Porto Alegre : FEE, 1981.
3.Relatório de Joaquim A. F. Leão, presidente da província. 5 de novembro de 1859. Porto Alegre : MALRS.
4.CAMARGO, Antônio Eleutherio. Quadro estatístico da província de São Pedro do Rio Grande do Sul.Porto Alegre : Tipografia do Jornal do Comércio, 1868.
5.Censo geral do Brasil (1872). Rio de Janeiro : IBGE.
"Qualquer que seja nosso esforço de imaginação, custa-nos imaginar os
sentimentos que oprimiam os imigrantes pos tos na floresta virgem. O comboio de mulas era
dividido. As bagagens haviam sido amontoadas à beira da picada. Esta era a única brecha
aberta na mata, apenas um túnel de três ou quatro metros de largura onde tropeçavam
nas raízes e nos cepos, onde se feriam no fio das hastes cortadas acima do solo. De um a
outro lado, elevavam-se árvores monstruosas, estreitavam-se os arbustos e as plantas do
sub-bosque, enlaçavam- se os cipós. Era a obscuridade misteriosa a umidade sufocante do
dia, a ameaça confusa da noite, a angústia e o desespero.67
Para alguns autores de duvidosa postura de frente ao racismo ou ao etnocentrismo,
e na opinião dos arautos da imigração no século XIX, a qualidade do imigrante era
fundamental; o alemão em particular era visto como o mais eficaz e competente desbra-
vador de terras virgens. Nesse sentido, conforme já citamos anteriormente, em Cruz. Alta, na
década de 1880, um articulista de um periódico local insistia na vinda desses imigrantes por
serem os de melhor qualidade para o trabalho agrícola. Nesse caso, é interessante a
justificativa que alguns historiadores dão para a fracassada colônia de São João das
Missões, na região missioneira, que foi fundada em 1825 e que redundou no maior fracasso
desse tipo de empreendimento colonizador. O historiador Aurélio Porto, em seu Trabalho
Alemão na Rio Grande do Sul, atribui o fracasso da colônia à péssima qualidade dos colonos
para lá enviados, ao contrário dos colonos da bem-sucedida São Leopoldo, próxima à ca-
pital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Diz o autor:
"Nas sumacas Ligeira e Delfina, despejara Schaeffer, no Rio Grande do Sul, parte dos
elementos indesejáveis, que angariara na Alemanha. Eram indivíduos de toda a espécie.
Datam daí os atritos e dissídios que convulsionaram a família germânica que fundara São
Leopoldo. Quando penetra ali essa vasa da colonização, irrompem logo as desordens. Os
primeiros colonos, elementos da ordem e do trabalho, vem do-se de momento, envolvidos em
lamentáveis questiúnculas e quebrada a tranqüilidade que tinha existido até aquele
70
instante, dirigem-se as autoridades apelando, em nome da boa harmonia da Colônia,
separem os recém vindos, que não lhes mereciam apreço, por serem homens que não
sabiam se conduzir.68
Esses colonos foram enviados para as longínquas Missões, distantes dos mercados
agrícolas, onde a agricultura somente era possível para a subsistência e não como forma de
exploração comercial. Ao contrário, São Leopoldo teve seu sucesso graças à proximidade de
Porto Alegre. As colônias do Planalto ou Missões, para onde foram enviados os "alemães
indesejáveis" da década de 1820, somente se desenvolveriam no final do século XIX, quando
ferrovias como a São Paulo-Rio Grande permitiriam o escoamento da produção para um
mercado interno nacional cada vez mais dinâmico e em expansão. Isso explica também a
fraca agricultura dos lavradores nacionais, de que reclamavam os defensores da
colonização.
Ao transferir o fracasso da colônia São João das Missões, na década de 1820,
para a qualidade do colono alemão, que nesse caso, excepcionalmente, seria de "má
qualidade" ao contrário da maioria de seu compatriotas, o autor justifica também a usurpação
e a especulação de terras de que foram vítimas os antigos agricultores nacionais, esses
também considerados de "qualidade inferior" e incompetentes para a atividade agrícola.
Era o discurso oficial da era da colonização.
Com essas observações queremos evidenciar que a colonização tinha um caráter
excludente e também nos permite entender melhor a pura e simples versão tradicional de
que o avanço da fronteira é algo heróico e obra de homens empreendedores e trabalhadores
que, de forma natural, empurram a fronteira adiante como um farmer americano. Nessa
versão, a especulação de terras aparece de modo muito tímido ou mesmo desaparece sob
a idéia de avanço natural de colonos sobre terras livres e inexploradas que estariam à espera
desses homens decididos e corajosos.
Na realidade, quando o colono imigrante ou filho desse chega à zona de fronteira
agrícola, encontra uma população local que lhe servirá de mão-de-obra barata para
desmatar, para abrir estradas e para construir, inclusive as ferrovias que escoarão os
excedentes agrícolas daqueles. As indústrias de madeira certamente não utilizavam
apenas colonos para derrubar e transportar ou serrar milhares de árvores, que eram
exportadas para o Uruguai ou a Argentina.
As terras, quando o colono chegava, não eram tão livres como se poderia imaginar.
Afora os indígenas, há muito encurralados nas pequenas reservas, havia milhares de
71
caboclos que, aos poucos, foram também encurralados nas áreas mais distantes e inós-
pitas, ou submetidos ao assalariamento precário nas serrarias, nas empresas oficiais
encarregadas da infra-estrutura das colônias oficiais ou particulares que seriam vendidas
aos laboriosos colonos temos, italianos e tantos outros. Um anúncio de 1918, de uma
empresa encarregada de abrir uma estrada rumo às margens do Uruguai, em plena
floresta, contratava peões trabalhadores a 2$300 réis por dia para aquele empreendimento,
cujo proprietário também passou em seguida a vender lotes coloniais para os colonos:
"No trabalho da estrada para a colônia do mel, no município de Palmeira, o Senhor
Antônio Mariano Zanato precisa de muitos trabalhadores. Pagando 2$000 até 2$300 por
dia a dinheiro livre, não paga comida em dias de chuva nem nos domingos."69
O autor do anúncio não se estava dirigindo apenas aos colonos, pois esses se
ocupavam em trabalhar em suas propriedades, mas também à massa de homens sem-
terras que se havia formado na região. Um exemplo notável da existência de uma população
despossuída consta num relatório oficial de 1913. Diz o relator:
"A cinco léguas e a NE da vila da Palmeira há um núcleo colonial de cerca de
duzentas famílias, no lugar... Fortaleza, à margem esquerda do rio da Várzea... São em
sua maior parte Intrusos ali estabelecidos durante o último período revolucionário.70
O relator, que se refere à Revolução de 1893-95, que assolou a região, envolvendo
fazendeiros com posturas políticas diferentes e que arrastavam em suas fileiras todos os
homens possíveis, sugere que o Estado legitime as terras dos ditos intrusos.
A presença dos chamados intrusos, que constantemente eram enxotados pelos
proprietários legais das terras, é uma constante nos relatórios oficiais e nos relatos de
colonizadores que, ironicamente, se autoproclamam de "pioneiros".
Outro relatório informa e solicita ao governo que:
"Convém também e com urgência, regularizar o estabelecimento de grande número
de nacionais que prestaram serviços na defesa da República e se estabeleceram na
margem direita do rio Ijuí onde é imprescindível fazer a verificação das medições efetuadas
pelo Banco Iniciador de Melhoramentos, dos quais não existem mais vestígios, legalizando
ao mesmo tempo os direitos de grande número de posseiros que naquela zona não estão
reconhecidos como proprietários das terras que ocupam."71
Atribuir o sucesso da empresa agrícola na região exclusivamente à obra dos colonos
72
imigrantes é incorrer num erro capaz de mascarar o processo de ocupação e apropriação das
terras na fronteira agrícola. Não se trata apenas de uma questão ideológica com objetivos
enaltecedores do trabalho desta ou daquela etnia em detrimento de outra, mas sim de
analisar a questão da fronteira sob outro prisma que não seja excludente e nem apoiado
na análise étnica ou numa expansão pura e simples da pressão demográfica das áreas mais
antigas de colonização no Rio Grande, que, nesse sentido e nessa forma de analisar,
estariam fadadas a emigrar para novas áreas. Isso é uma explicação cujo centro está fora
da fronteira.
Nesse trabalho, propomos ver a fronteira agrícola de outro prisma. Incluímos,
portanto, urna análise dos contingentes que foram efetivamente os pioneiros, no caso os
caboclos extrativistas de mate e pequenos agricultores. Incluímos na análise, também,
como forma fundamental de expropriação, a privatização da terra pelos especuladores, bem
corno seu incentivo à imigração com o objetivo de criar mercado para a terra e valorizá-la.
Nesse caso, as colônias oficiais em terras devolutas serviam de ponta de lança para a
imigração generalizada de colonos que logo transbordariam os núcleos oficiais para
avançar e comprar terras dos especuladores.
Conclusão
É nítida a presença do militarismo, diretamente ou indiretamente, no processo de
apropriação da terra na região. As primeiras áreas foram concedidas a aventureiros e
militares que, ao longo do século XIX, mantiveram-se fiéis à tradição militar dos es-
tancieiros gaúchos, formando milícias particulares dispostas a qualquer tipo de luta.
Esse poder militar, associado ao poder político, deu condições para a apropriação de terras
públicas e para a usurpação de terras da massa de lavradores pobres, os quais se viram
gradativamente na condição de sem-terras em meio aos latifúndios improdutivos.
Nas terras de pastagens nativas perpetuaram-se, ao longo do tempo, os latifúndios
pastoris, enquanto as áreas florestais transformaram-se em zonas de pequenas propriedades
agrícolas. Essas áreas de mata ocupadas por extrativistas e lavradores pobres foram aos
poucos privatizadas por usurpadores poderosos locais através dos mais diversos
expedientes e, mais tarde, foram revendidas aos imigrantes europeus através das
companhias de colonização. Isso com exceção de algumas terras públicas, repassadas di-
retamente aos colonos pelo Estado. No final do período de que tratamos neste trabalho,
podemos observar com nitidez a presença do velho latifúndio pastoril; de uma massa de
73
colonos de origem européia dedicada à agricultura nas áreas florestais; e de uma massa de
lavradores nacionais pobre e sem terra.
A presença de agricultores imigrantes europeus, solicitada pelas próprias
autoridades locais, parece ser paradoxal quando havia considerável população de
camponeses nacionais. No entanto, essa população foi utilizada como mão-de-obra para a
construção da infra-estrutura nos empreendimentos das companhias de colonização e
para as atividades das estâncias de gado.
A solicitada imigração dos colonos europeus, amparada por um discurso ideológico
em torno do espírito de trabalho, foi parte de uma estratégia, na qual coube àqueles o
papel de agricultores para o mercado interno e, principalmente, o de compradores das
terras florestais ociosas em mãos dos estancieiros. Aos lavradores nacionais, os caboclos,
foi reservado o trabalho nas estâncias pastoris em substituição ao escravo e nas
companhias de colonização, além de formarem as fileiras das milícias particulares dos
chefes políticos locais.
Em relação à legislação agrária, a Lei de Terras de 1850 e suas regulamentações
posteriores tinham em seu bojo o propósito de impossibilitar o acesso à terra por parte de
uma camada pobre da população, como forma de garantir mão-de-obra barata para os
cafezais paulistas, dentro do processo de extinção do trabalho compulsório. Não tiveram,
entretanto, esse mesmo efeito ou objetivo no Sul do país, em função das diferentes
características da economia regional. O monopólio da terra na região serrana gaú-cha não se
propunha apenas gerar urna massa de desamparados, sujeitos ao assalariamento nas
estâncias, simplesmente. Esse monopólio da terra significava a possibilidade de vendê-la no
mercado que seria proporcionado por colonos pequenos proprietários, dando seqüência a
uma larga experiência desse tipo de negócio nas áreas mais antigas do Rio Grande do
Sul. Por outro lado, a legislação não foi obstáculo para os grandes latifundiários, que não
hesitavam em usar expedientes fraudulentos e arbitrários.
Notas
1 Relatório do vice-presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Luiz A. L. de
Oliveira Bel lo, na abertura da Assembléia Provincial em primeiro de outubro de 1852. Porto
Alegre, Tipografia do Mercantil, 1852.
2 Relatório com que abriu a primeira sessão ordinária da segunda legislatura da província de
São Pedro do Rio Grande do Sul no dia primeiro de março de 1846 o Exmo. Sr. Conde de
74
Caxias. Porto Alegre, Tipografia I. J. I.opes, 1846. P. 21.
3 Relatório de José Joaquim de Andrade Neves, diretor-geral dos índios ao Ministro do Império.
Rio Pardo, abril de 1854. (Manuscrito - Biblioteca Nacional - BN, Rio de Janeiro, 1.32.14. 14)
4 Cf. relatório do tenente-general Francisco José de Souza Andréa na abertura da Assembléia
Provincial de primeiro de Junho de 1849. P. 12.
5, 6 CASTRO, Evaristo Affonso de. Notícia descritiva da região missioneira. Cruz Alta :
Tipografia do Comercial, 1887. P. 30.
7 Cf. ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta ao presidente da província. 16 de janeiro de 1850
(Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul - AHRS; Correspondência da Câmara Municipal de Cruz
Alta - CCMCA. Cx. 110).
8 Idem (Ver Anexo n° 1.).
9 RÜDIGER, Sebalt. Colonização e propriedades de terras no Rio Grande do Sul, século XVIII.
Porto Alegre : Instituto Estadual do Livro, 1965. P. 70.
10 Apud, SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Porto Alegre : 13els, 1974.
P 104.
11 Cf. Registro Paroquial de Terras. Paróquia do Divino Espírito Santo da Cruz Alta.
1855 e 1856. Arquivo Público do Rio Grande do Sul - APRS. Porto Alegre.
12 Inventário post-mortem de Joaquim Thomas da Silva Prado. Cartório de Órfãos e Ausentes
de Cruz Alta. Maço 3, n° 67 - APRS.
13 Cf. PILAR ROSA, Izaltina Vidal do. Cruz Alta. Rio de Janeiro : Tipo Editor, 1981. (Esta
obra contém uma biografia da família Pilar, a qual pertence à autora).
14 Cf. correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da Província. 6 de maio
de 1867. AHRS. Cx. 116. Doc. 482.
15 Cf. ofício do vice-rei Luiz de Vasconcelos a Martinho de Melo e Castro. In: Corcino Medeiros
dos Santos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul - Séc. XVIII. Brasília : Nacional e INL,
1984. P. 49.
16 Cf. CÉSAR, Guilhermino. Histórico do Rio Grande do Sul. São Paulo : Brasil Ed., 1981. P.
198.
17 Cf. correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira (Palmeira das
Missões) ao governo da província - AHRS. Cx. 116.
18 Idem.
75
19 Código de Posturas de Santo Antônio da Palmeira (Palmeira das Missões) - AHRS. Lata 124.
Maço 97.
20 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da província. Cx. 116.
21 Idem. Cx. 159. Doc. 422.
22 Lei n° 601 de 18 de setembro de 1850. In: Coletânea da legislação agrária do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre : Secretaria da Agricultura do RS, 1961. E 6.
23 Ver o Decreto n° 1318, de 30 de janeiro de 1854. Idem, p. 13.
24 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da província. Cx. 116.
25 Cf. BINDÉ, Wilmar Campos. Apontamentos para a história de Campo Novo. Santo Angelo,
1985. P. 104.
26 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira - AHRS. Cx. 116.
27 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira - AHRS. Cx. 116.
Doc. 18 a.
28 Idem, Doc. 20.
29 Abaixo-assin ido ao Imperador do Brasil D. Pedro II - 24 de maio de 1879. AHRS. Lata 124.
Doc. 75 A. Maço 97.
30 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira - AHRS. Cx. 116.
Doc. 87.
31 Cartório do Civil e Crime de Santo Antônio da Palmeira. AHRS. Maço. 01. N° 10.
32 Corresponcléneia da Justiça de Santo Antônio da Palmeira-AHRS. Maço 16. Lata 124.
33 Idem.
34 Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Maço 45. N° 1778.
35 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 2.ed. São Paulo : Hucitec, 1981.
P. 32.
36 Citado por HOETINK, H. Slavery and race relations in the Americas. New York : Harper &
Row, 1973. PP. 76/83.
37 ANTUNES, Paulo Bessa. A propriedade rural no Brasil. Rio de Janeiro : OAB/ RJ, 1985. P.
143.
38 HORMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul em 1850: descrição da província do Rio Grande
do Sul no Brasil meridional. Porto Alegre : D. C. Luzatto e Edunisul. Tradução de Heinrich A. W.
76
Bunse, 1986. P. 85.
39 Lei n° 229 de 4 de dezembro de 1851. In: HORMEYER, J. Op. Cit. P. 114.
40 HORMEYER, Joseph. Op. Cit. P. 85.
41 CIRNE LIMA, Ruy. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas: Porto
Alegre : Sulina, 1954. P. 47.
42 Idem, p. 54. " Idem, p. 54.
43 Idem, p. 54. " Idem, p. 54.
44 CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias económico-políticas sobre a administração
pública do Brasil. Porto Alegre : Cia União de Seguros Gerais, 1978. PP. 79/99. Edição fae-
simile da publicação da Tipografia Nacional, Rio de Janeiro, 1823).
45 Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Francisco José de
Souza Soares Andréa. Porto Alegre, Museu da Assembléia Legislativa do RS - MALRS, 1849.
(Manuscrito).
46 MARTINS, José de Souza. Op. Cit. P. 29.
47 DEAN, Warren. Latifundios y política agrária en el Brasil del siglo XIX. In: FLORESCANO,
Enrique. Haciendas, latinfundios y plantaciones en América Latina. México : Siglo XXI, 1975.
48 Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Secretaria
da Agricultura, 1961. P. 24.
49 Cf. abaixo-assinado ao imperador. Palmeira, 24 de maio de 1879. AHRS. Cx. 116. Doc. 70 A.
50 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta. AHRS. Cx. 116. Doc. 568.
51 Cf. Aurora da Serra. Cruz Alta, dezembro de 1884. N° 1. Ano 2. PP. 99-100.
52 Aurora da Serra. Cruz Alta. Abril de 1886. NI' 4. P. 1.
53 Cf. ROCHA, Prudêncio. História de Cruz Alta. Mercúrio, 1962. P. 90.
54 Relatório de Lindolpho A. Rodrigues da Silva. 30 junho 1913. AHRS. Cód. 219. Manuscrito.
55 Correio Serrano, 5 novembro 1917. P. 2. Ijuí.
56 Idem, p. 3. " Idem, p. 4.
58 Idem, 24 junho 1918. P. 2.
59 Relatório do engenheiro Augusto Pestana - 31 junho 1902. In: Relatório dos Negócios
das Obras Públicas. Porto Alegre : MALRS. P. 37.
60 Relatório dos Negócios das Obras Públicas. Porto Alegre. 31 julho 1900. P. 69. (MALRS)
77
61 As informações sobre Hermann Meyer e sua empresa forma retiradas de:
FAUSEL, Erich. De Elsenau a Panambi: desenvolvimento da colônia NeuWürttemberg, fundada
pelo dr. Hermann Meyer. In: cinqüentenário de Panambi -s/ed., 1949. PP. 3-36 e
FAULHABERSTIFTUNG. Neu-Württemberg: eine siedlung deutscher in Rio Grande do Sul,
Brasilien. Stuttgart : Ausland und Heimat Verlags. 1933.
62 FAULHABERSTIFTUNG. Op. Cit., 7 (Tradução).
63 FAUSEL, Erich. Op. Cit.
64 Cf. BACK, Léon. A imigração judaica. In: Enciclopédia Rio-Grandense. 5° V. Klaus Becker
(Org.). Canoas : Regional, 1958. PP. 271-280.
65 Ao longo do século XIX, os preços da erva-mate indicados nos inventários postmortem de
Cruz Alta, Passo Fundo e Santo Antônio da Palmeira, oscilavam em tomo de 1$500 e 3$000
réis. Na década de 1910 a lista de preços agrícolas do jornal Correio Serrano indica 5$000 rs
(1917) (por arroba).
" Os preços referentes às colônias Ijuhy e General Osório estão indicados nos inventários post-
mortem do Cartório de Cruz Alta e Ijuí. O preço referente à colônia do Cadeado está indicado em
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo, s. d. P. 54.
ROCHE, Jean. Op. Cit. P. 52.
68 Aurélio. O trabalho alemão e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Gráfica S. Terezinha, s.
d. P. 86.
69 Correio Serrano. 14 de junho 1918. P. 3.
70 Relatório de Lindolpho A. Rodrigues da Silva. 30 junho 1913.
71 Relatório dos Negócios e Obras Públicas. 31 de julho 1889. p. 55.
78
III
USO DA TERRA
A economia regional durante o século XIX esteve assentada na pecuária e no
extrativismo da erva-mate, e sustentada por uma agricultura de subsistência.
Examinamos a organização desses três setores neste capítulo no que se refere: às
técnicas agrícolas; à dimensão e ao uso das propriedades; às ligações com o mercado.
A agricultura, que recebeu grande impulso no final do século, é examinada a partir
da influência das expansões demográfica e do mercado. As técnicas agrícolas utilizadas
pelos agricultores locais são observadas a partir das teses expostas por Ester Boserup em
Evolução Agrária e Pressão Demográfica, que demonstram a racionalidade intrínseca de
sistemas de cultivo considerados arcaicos e irracionais quando visto sob a ótica das
modernas técnicas de cultivo desenvolvidas pelo universo agronômico.
A Estância
A pecuária representou durante todo o século XIX a principal atividade econômica
do planalto gaúcho. Mais especificamente as estâncias típicas do planalto criavam gado
bovino, cavalar, muar e ovino. A participação relativa de cada um desses tipos de animais
pode ser vista no gráfico que elaboramos abaixo, a partir de uma série de inventários post-
mortem de estancieiros da região. Devido ao grande número de inventários,
recolhemos uma amostragem, selecionando o conjunto de documentos relativos a um
ano em cada período de cinco anos.
79
GRÁFICO Nº 01 – PERFIL DA PRODUÇÃO PECUÁRIA NO PLANALTO GAÚCHO SEGUNDO UMAAMOSTRAGEM ELABORADA A PARTIR DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM. %
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%100%
1851 1856 1861 1866 1871 1876 1881 1886 1891
Vacum Cavalar Muar Ovino
Fonte: Cartório dos municípios de Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões. Arquivo Público do RioGrande do Sul. Porto Alegre.
Como se pode observar nesse gráfico, a tendência é de crescimento relativo do gado
bovino e decréscimo relativo de cavalares e muares, enquanto a ovelha aparece de forma
pouco significativa. O gado bovino em 1851 representava cerca de 37% do plantel de
animais das estâncias, enquanto os cavalares chegavam próximo dos 50%. Os muares
ficavam em torno de 12% e as ovelhas com cerca de 3% apenas. Nos anos seguintes, o
gado bovino, na situação de superioridade, mantém certa estabilidade até a década de
1880, quando cresce bruscamente, atingindo uma participação relativa de mais de 90%,
em 1891. Os cavalares, por sua vez, mantém certa estabilidade, também, durante esse
período, logo abaixo do gado vacum, mas tendem a perder sua importância na década de
1890, quando atingem um índice relativo de apenas 7%.
Convém assinalar que a produção de muares estava estreitamente ligada à criação de
fêmeas cavalares – as éguas – que são as matrizes para a criação daqueles, a partir do
cruzamento com o burro. Dessa forma, os animais cavalares que aparecem no gráfico são
na maioria matrizes destinadas à criação de mulas, estas de extrema importância no mercado
da época. Ou seja, os cavalares, na verdade, não tinham a importância da mula no mercado.
Essas condições podem induzir a erros de avaliação e creditar exagerada participação de
animais cavalares em relação aos muares, em termos de importância comercial. Por isso,
nos inventários postmortem é mais provável que se encontre maior quantidade de éguas do
que de mulas. A importância das bestas em termos econômicos pode ser medida pelo preço:
80
uma mula era vendida, em 1861, pelo preço médio de quinze mil réis e uma égua valia em
torno de 2,5 mil réis. Assim, podemos afirmar que o gado vacum e o gado muar eram os mais
importantes animais comercializados pelas estâncias, até o final do século XIX.
Para reforçar os dados do gráfico, apresentamos outras evidências para dar
sustentação ao perfil de animais nele representado.
Tomamos o perfil de duas estâncias em períodos diferentes. Em 1866 o plantei da
fazenda Estrela de Germano Rodrigues da Silva no segundo distrito de Cruz Alta
apresentava o seguinte perfil:
GRÁFICO Nº 02 – PERFIL DO PLANTEL DE ANIMAIS DA FAZENDA ESTRELA – CRUZ ALTA – %
48%
22%18% 15%
0%10%20%
30%40%
50%60%70%
80%90%
100%
BOVINO CAVALAR MUAR OVINO
BOVINO CAVALAR MUAR OVINO
Fonte: Inventário post-portem de Germano Rodrigues da Silva – Cartório de Órfãos e Ausentes deCruz Alta -- Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Maço 4, n° 101. Porto Alegre
As várias estâncias do Barão de Ibicuhy, sediadas em vários municípios da região,
mantinham um plantei muito semelhante ao da fazenda Estrela no ano do falecimento do
proprietário (1879).
GRÁFICO Nº 03 – PERFIL DO PLANTEL DOS ANIMAIS DAS FAZENDAS DO BARÃO DO IBICUHY – 1879
50%37%
15%
0%10%20%30%40%50%60%70%80%90%
100%
BOVINO CAVALAR MUAR
BOVINO CAVALAR MUAR
Fonte: Inventário do barão do lbicuhy – Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz Alta –Arquivo Público do RioGrande do Sul. Maço 9, n° 245. Porto Alegre, 1879.
81
A ausência de ovelhas nas estâncias do Barão evidencia a pouca importância
desses animais nas fazendas do século XIX nessa região.
Uma estatística oficial, de 1920, confirma a tendência indicada no gráfico
número 1, de declínio dos muares e da ascensão relativa dos bovinos. Naquele ano, 1920,
mesmo as ovelhas, com uma participação de 13% do plantel regional, superaram as mulas,
estas com apenas 6% (Ver gráfico na página seguinte.).
GRÁFICO Nº 04 – PERFIL DO PLANTEL DOS ANIMAIS NOS MUNICÍPIOS DO PLANALTO – 1920(Participação relativa)
68%
15%10%
16%
0%10%20%
30%40%50%
60%70%80%
90%100%
BOVINO CAVALAR MUAR OVINO
BOVINO CAVALAR MUAR OVINO
Fonte: Anuário estatístico do estado do RS – 1921. Secretaria de Negócios do Interior e Exterior – Gráfica d'AFederação. Porto Alegre. 1922. p. 341-360. (Os dados referem-se aos municípios do Planalto).
A mula, que foi por longo tempo objeto de intenso comércio nas feiras de Sorocaba
em São Paulo, teve seu ciclo encerrado no final do século XIX. Alfredo Ellis Júnior em seu
trabalho sobre o tema conclui que o "ciclo do muar nasceu com a abertura da estrada do Rio
Grande do Sul a São Paulo em 1724 e terminou em 1875, mais ou menos, com o advento da
ferrovia.1
Em 1885, as exportações dos municípios de Cruz Alta e Palmeira das Missões
demonstram a supremacia do gado bovino em relação aos muares. Foram exportadas dez
mil bestas contra vinte mil a 22 mil reses em Cruz Alta e duas mil a três mil bestas contra
cinco mil a seis mil reses em Palmeira.2 Trinta anos antes o presidente da província afirmava
em seu relatório de 1853 que em Cruz Alta "as principais produções são mulas e erva mate.3
Os sintomas de decadência do comércio de muares já se pronunciavam na década de
1860. O relatório da Câmara Municipal de Cruz Alta de 1862 queixava-se que "quando da
última feira de Sorocaba (SP) foi extraordinária a baixa de preços, não fazendo diferença
alguma dos custos das tropas invernadas nesta província".4
82
A Câmara sugeriu que "a diminuição por alguns anos, ao menos, da taxa
estabelecida por cada besta exportada é urna necessidade para que todo não cesse esse
ramo de comércio".5
Um comentário feito na década de 1880 ilustra a situação do comércio de gado da
região:
"O comércio de exportação de mulas foi uma das principais fontes de riqueza desta
região, que anualmente enviava para a feira, em Sorocaba, São Paulo, muitos milhares
desses animais, que ali eram reputados por bom preço, todavia ainda que esse ramo tenha
decaído um pouco, contudo ainda é de grande interesse e vantagem.
"A exportação de gado vacum para as charqueadas da província e principalmente
de Pelotas constitui o ramo mais seguro de comércio de animais, tendo todos os anos
saído em maior ou menor escala, o que não se dá com o das mulas que é muito sujeito a
paralisação ou pouca demanda.6
Quanto à qualidade das raças do gado vacum, houve pouca preocupação entre os
estancieiros do século XIX. São poucas as referências nesse sentido. Uma dessas raras
informações indica que no município de Cruz Alta alguns estancieiros teriam mandado vir
melhores touros de São Paulo e Minais Gerais, e também cavalos. É uma informação
muito vaga e não dá motivos para se dizer que houvesse uma política de melhora de raças.
Em 1919, o governo gaúcho criou o "Posto Zootécnico" em Porto Alegre, cujo objetivo
era melhorar a qualidade do rebanho através da importação de touros reprodutores, baseando-
se na experiência dos criadores do Uruguai e da Argentina.7
Os banheiros carrapaticidas do Rio Grande do Sul sornavam 166 em 1916, 374
em 1917, 400 em 1918 e 470 em 1919. Esses banheiros, porém, localizavam-se todos na
zona sul do Estado (Bagé, Santana do Livramento...).8
Apesar de algum esforço isolado no sentido de melhoria do rebanho quanto à sua
raça, em 1917 o quadro pecuário informa que a raça crioula, considerada tradicional e
rudimentar, continuava com larga participação no total do rebanho. É o que nos informa
uma publicação de 1917 elaborada para a exposição nacional de pecuária do Rio de Janeiro:
83
TABELA N" 8 — RAÇAS DE GADO NO RIO GRANDE DO SUL EM 191 7
RAÇAS CABEÇAS %
Crioula 6.604.790 82Hereford 644.565 aDurham 402.863 5Outras 404.854 5TOTAL 8.057.062 100
Fonte: Repartição Estatística do Estado do Rio Grande do Sul. Trabalho executado para a Exposição Nacional dePecuária do Rio de Janeiro — 13 de maio de 1917. Porto Alegre, Globo, 1917. P.37.
Como se pode observar, a maior parte do gado gaúcho (82%) era de raça crioula, ou
seja, o gado tradicional e considerado de qualidade inferior. Essa situação é perfeitamente
compreensível se considerarmos que a pecuária sulina era produzida em grandes
propriedades com pastagens nativas, onde o baixo rendimento do gado comum em relação
a outras raças mais nobres era compensado pelo simples aumento do plantel ou pelo
maior tempo de engorda, não compensando investir capital em importação de touros e
matrizes e mesmo investir em cuidados sanitários que exigissem despesas com insumos e
mão-de-obra.
O Auto-Abastecimento da Estância
Embora uma estância do século XIX fosse um estabelecimento hegemonicamente
pastoril, seus proprietários procuravam manter auto-suficiência alimentar. Peões ou
escravos eram utilizados para roças e criação de pequenos animais domésticos. Com esse
propósito, o Conde de Piratini instruía seu capataz da Estância da Música corri as seguintes
recomendações:
"Artigo 11. Fará plantar bastante milho, feijão, abóboras, e hortaliças e algum trigo,
para que haja de tudo fartura afim de poupar-se muitas carniações.
"Artigo 30. Os escravos podem plantar e criar galinhas, tendo milho para as
sustentar.
"Artigo 37. Criar alguns porcos fazendo-se para isso pequeno curral com coberta
para agasalhar e mesmo para evitar que haja lama no mesmo curral.
84
"Artigo 38. Criarem-se galinhas, perus e marrecos, fazendo-se um galinheiro para
que estejam agasalhadas as ditas aves.9
No artigo 8 de suas instruções, o conde propõe ainda que o posteiro deve ter o
auxílio de um escravo e que "deve plantar" nesses postos.
O viajante francês Saint-Hilaire, por seu turno, define uma estância como "uma
propriedade onde podem existir algumas culturas porém ocupando-se principalmente à criação
de gado".'10
Afora essa produção interna, através de escravos, as estâncias eram abastecidas
por lavradores independentes residentes na própria estância ou nas suas vizinhanças-. O
proprietário da Fazenda Estrela, falecido em 1866, contava entre seus devedores alguns
lavradores nessas condições. Por exemplo: "Custódio Aires Martins, lavrador, morador da
estância deve 49$000 réis e Clarimundo José Pereira, lavrador, vizinho da estância
deve 54$260 réis.11 Esse proprietário, apesar de ter uma enorme área e cerca de 3,6 mil
cabeças de gado, contava com apenas três escravos, o que supõe que utilizava
trabalhadores livres para abastecer a estância bem como para os serviços pastoris.
No interior da estância a produção agrícola livre era conduzida pelos peões
posteiros, agregados que cuidavam do gado em pontos estratégicos longe da sede da
propriedade, em troca do direito de plantar e de alguma remuneração. Quanto aos lavrado-
res vizinhos das estâncias, eram freqüentes os conflitos entre estes e os estancieiros. Os
lavradores pobres normalmente não tinham títulos de terras e sofriam constantes
investidas dos seus vizinhos mais poderosos com a intenção de aumentar ainda mais seus
domínios.
Por outro lado, embora extremamente fraco, o mercado de produtos agrícolas existiu
através de agricultores pobres da região. Mais tarde, já no final do século, esse
mercado intensificou-se fortemente com a instalação de núcleos coloniais e a conseqüente
expansão da produção agrícola.
O auto-abastecimento das estâncias possibilitava enfrentar, sem grandes
transtornos, as adversidades do mercado pecuário.
Essa auto-suficiência permitia que, durante uma baixa de preços do gado, fosse
possível reter os animais no campo por certo tempo ou ainda a venda reduzida de
cabeças, conforme as necessidades imediatas. E mesmo que o estancieiro vendesse seus
animais por preços relativamente baixos, não correria o risco de ir à falência.
85
Por outro lado, a agricultura não era alvo de preocupação quanto à produtividade,
pois não ia ao mercado e tampouco interessava como era produzida a subsistência. O
importante era que fosse suficiente para o abastecimento interno.
O auto-abastecimento das estâncias perdeu sua importância no final do século. A
libertação dos escravos fez com que muitos cativos que nas fazendas cuidavam das roças
migrassem para as cidades. "Ficavam nas estâncias somente os negros campeiros,
laçadores, peleadores e domadores que preferiam continuar naquela lida ativa..."12 Ao
mesmo tempo, a partir da década de 1890 assiste-se a uma grande expansão da agricultura
regional ocasionada pelo súbito aumento de trabalhadores agrícolas imigrados da Europa
e das colônias velhas:
"As estâncias deixaram de auto abastecer-se. A agricultura era absorvida pelos
colonos que tomavam conta das terras de mato das serras onde os estancieiros faziam
suas roças. A agricultura nas estâncias passou a ser em pequenas lavouras caseiras
(...). Passou assim o ruralismo a adquirir produtos das colônias, de onde vinham suas
carretas carregadas de milho, alfafa, etc...13
A Erva-Mate
A erveira, a Ilex paraguaiensis, é uma árvore nativa do sul da América: no Planalto
gaúcho os ervais nativos eram abundantes, principalmente nas matas do Alto Uruguai. O
extrativismo da erva-mate nessa região vem desde a época das reduções jesuíticas do
século XVII. A expulsão dos padres da Companhia de Jesus e a destruição dos povos
indígenas desorganizaram a exploração do produto. Na década de 1830, quando o território
consolidou-se como patrimônio brasileiro ao mesmo tempo e que o governo paraguaio
suspendeu a exportação de mate, houve uma corrida ao ervais da região. Muitos desses
ervais precisaram ser descobertos no interior da floresta onde os extrativistas deveriam
bater-se com os indígenas.
Em 1850, a coleta de erva-mate já tinha grande importância econômica, empregando
milhares de pessoas, e era o principal item de arrecadação tributária municipal do
município de Cruz Alta, em cujo território encontravam-se os ervais. Na década de 1870,
o índice de participação do imposto sobre exportação do mate atingia mais de 50% da
arrecadação dos municípios da região ervateira.14
A produção do mate ao longo do período 1850-1920, que estamos examinando,
86
assentou-se fundamentalmente na oferta dos ervais nativos. O cultivo só mereceu iniciativas
importantes no começo do século XX.
As câmaras municipais criaram regulamento para disciplinar o extrativismo dos
ervais púbicos, com o objetivo de evitar a depredação das plantas, as falsificações do produto
e manter sob controle a tributação. Pelos artigos 41 e 42 do código de posturas do
município de Santo Antônio da Palmeira eram considerados corno públicos os ervais deste
município e os coletores deveriam requerer licença para extrair o mate: "Pela licença de que
trata o presente artigo, pagará o requerente dois mil réis". Na ocasião, o requerente era
"obrigado a declarar no ato de tirar a licença o número de trabalhadores de que se
compõem a comitiva com indicação do lugar onde tem de fabricar erva, sob pena de pagar
a multa de cinco mil réis."
Outros artigos expressam a política municipal de controle do extrativismo:
"Art. 47 – É proibido colher erva mate em erva! público que pelo seu estado de
ruína tenha a Câmara interdito sua colheita...
"Art. 48 – É proibido fabricar erva mate de outra folha que não seja a legítima ou
misturada com a legítima, outra qualidade de folha. (A erva falsa será queimada e o
contraventor incorrerá em multa e cadeia).
"Art. 49 – É proibido expor à venda ou exportar erva mate podre ou corrompida (a
erva será queimada).
"Art. 50 – Toda pessoa que tiver e possa conservar limpo ervais nos matos
devolutos tem especial preferência no fabrico da erva mate, de conformidade com o
disposto nos artigos 42, 43, 44, 45 e seus parágrafos do presente código."15
O artigo 41 indica o caráter comum da exploração dos ervais. Qualquer indivíduo
poderia se habilitar para o extrativismo do mate, respeitando as normas da câmara e
pagando a devida taxa para concessão de licença. O artigo 42 expressa o controle político
e econômico do extrativismo, o que significa certo atrelamento dos extrativistas ao comando
dos chefes políticos locais.
No mesmo regulamento fica implícita a condição de camponês do extrativista. O
artigo 46 chama a atenção e estabelece punições ao coletor de mate que não observar as
regras de prevenção de incêndios cujas causas geralmente tinham origem nas tradicionais
queimadas nas roças dos lavradores descuidados. O artigo 50, por outro lado, oferece
87
vantagens ao coletor que cuidar do erva], mantendo-o limpo.
O período de recesso do extrativismo previsto no artigo 43 coincide com as estações
próprias para o cultivo de verão, quandoa população dedicava-se à agricultura de
subsistência plantando milho e feijão – os principais produtos agrícolas consumidos na
região.
Apesar do código disciplinador, as fraudes na qualidade do produto e o desrespeito ao
intervalo de quatro anos entre uma poda e outra , eram comuns. A fa ls i f icação do
produto, que desprestigiava a erva brasileira no mercado externo, bem como sua
péssima qualidade, por má-elaboração e descuidos, eram uma preocupação bastante antiga
no Rio Grande do Sul. Já em 1823, Antônio José Gonçalves Chaves, um charqueador
progressista de Pelotas, alertava em suas Memórias Ecônomo-Políticas sobre este problema:
"A erva que se conhecer proveniente de caúna ou outra planta nociva à saúde, ou que
tem alguma mistura perigosa, a que foi molhada no paiol ou por algum outro princípio tem
podridão, será declarada sem valor e lançada ao mar e tudo isto com as cautelas
necessárias.16
Ilemetério José Velloso da Silveira, recordando sua atuação na câmara municipal
de Cruz Alta, como vereador e presidente, escreveu em 1909:
"Tendo de organizar o código de posturas estabelecemos penas muito severas
para a colheita e preparação espontânea e até sobre a falsificação da erva mate.
"Pouco adiantamos com isso, pois mudando de domicílio, continuou o comunismo e
então já não se guardava o interstício de quatro anos de uma colheita à outra o que fez
definhar e morrer muitas árvores, tendo sido preciso as câmaras dos novos municípios de
Palmeira e Santo Ângelo, declarar interditos por três ou quatro anos os importantes ervais
de Campo Novo, Nuncorá, Galpões, Santa Rosa e outros, embora com uma tal medida
vissem diminuir o mais importante ramo de sua receita.17
Nos cartórios de Cruz Alta e Palmeira das Missões não são raros os processos
contra os contraventores. O acesso relativamente fácil aos ervais estimulava os
coletores a se arriscarem a colher o produto nos meses proibidos.
Na era republicana, os ervais públicos que escaparam ao processo de privatização
passaram a ser arrendados pelo governo estadual a grandes industrialistas do mate, que
exploravam o erval com trabalhadores assalariados. Em 1908, os arrendatários pagavam
88
ao governo trezentos réis por arroba de mate.'18
No início deste século começaram as plantações de ervais. O cultivo da erveira,
embora fosse conhecido desde o período jesuítico, praticamente não se desenvolveu no
século XIX. Havia, é certo, problemas em dominar a técnica de germinação da semente,
o que limitava as iniciativas nesse sentido. Em 1918, em Erechim, por exemplo, Oscar
Oliveira César plantou 56 mil mudas de erveiras que lhe custaram 10:000$000 réis, prevendo
urna produção de oitenta mil arrobas por safra, que lhe renderiam 240:000$000 réis ao
preço daquele ano. 19
A Produção e o Comércio da Erva-MateA produção rio-grandense do mate além de abastecer o mercado interno regional era
exportada aos países platinos. Em 1851, no inventário do proprietário de engenho Luiz
Perié, constam vários nomes de devedores seus de Montevidéu, Buenos Aires e da província
de Paraná (Argentina).
Temístocles Linhares afirma, na sua História Econômica do Mate:
"De 1° de julho de 1857 a 30 de junho de 1858 pelo porto de Itaqui, pequena
cidade às margens do rio Uruguai, saíram por via fluvial, com destino à Argentina,
1324593 kg de mate."20
O mate exportado pelo porto de Itaqui era procedente dos ervais de Cruz Alta. O
relatório do presidente da província de 1854 nos diz:
"A erva-mate da Cruz Alta vende-se em diversos mercados, conforme a vizinhança do
lugar em que é fabricada. De todos porém o mais importante é o de Itaqui, donde se distri-
bui pelo Uruguai abaixo para os estados vizinhos e para Buenos Aires."21
As estatísticas sobre a produção e a exportação de erva-mate são muito frágeis,
pois muito produto era contrabandeado para os países vizinhos que eram de acesso
relativamente fácil para os produtos sulinos. Da mesma forma, certamente muito produto
vendido no mercado interno era comercializado à margem dos levantamentos estatísticos e
sem pagar impostos.
Do Rio Grande do Sul, existe uma estatística das exportações' organizada por
Florêncio de Abreu para o período 18561920,22 mas são dados que apresentam
distorções, se compararmos com outras fontes. No quadro do autor, o ano de 1871, por
89
exemplo, apresenta uma forte queda nas exportações ao mesmo tempo em que ocorre
uma forte elevação dos preços: o que é oposto aos dados recolhidos nos relatórios
municipais da região onde consta um aumento de produção, a preços estáveis; o que
parece lógico, se considerarmos que nesse ano a guerra do Paraguai (que atingiu diretamente
a região) já havia terminado.
Enfim, as estatísticas prontas, sem a citação de fontes como no caso acima, devem
ser analisadas com cuidado. No nosso caso, preferimos elaborar um quadro a partir de
fontes basicamente locais, o qual, apesar das dificuldades inerentes, tem bastante con-
cordância com a conjuntura política e econômica do período.
TABELA N° 9 – ALGUNS INDICADORES SOBRE PRODUÇÃO DE ERVA-MATE NO PLANALTO
Fonte:
1 Cf. DICTIONNAIRE UNIVERSSEL, Theorique et pratique du comrnerce et de la navegation. Paris, v.II. p.594. Apud. LINHARES, Ternístoles. Op. Cit. P. 105.
2 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta. AHRS. Cx. 110.
3. CAMARGO, A . E. Quadro estatístico da província de S. Pedro do RGS. Porto Alegre. 1868. P.112.
4. CASTRO, Evaristo A . Op. 'it. P. 38.
O volume de mate na região dependia da disponibilidade de mão-obra, da
conservação dos ervais; eventualmente alguma intempérie poderia prejudicar a safra.
Durante a guerra do Paraguai foi notória a diminuição da produção pela falta de braços, já
90
que os trabalhadores foram recrutados para o conflito pelos coronéis locais. O descuido
com a erveira poderia levar à sua ruína. Esse problema esteve marcado pelas constantes
queixas e medidas repressivas das câmaras municipais contra os coletores do mate que
burlavam as normas e não respeitavam o tempo entre uma e outra poda, além de colherem
fora da época. O prazo entre uma e outra poda é de quatro anos; a colheita em tempo menor
prejudica sensivelmente a planta. Alguma geada fora dos meses normais de ocorrência ou
alguma seca prolongada poderiam determinar queda da produção.
Quanto aos preços não há como atribuir-lhes grande influência na produção da
erva-mate. Sendo a ervateira nativa e permanente, urna baixa de preços não era
suficiente para impedir a coleta, pois essa operação não implicava em investimentos. De
qualquer forma, o trabalhador dos ervais desde o início recebia um salário muito baixo,
mas era uma das poucas formas de se obter algum ingresso de dinheiro.
Em relação à qualidade do produto, embora não se tenha registrado diminuição na
produção, foi um fator de grande importância no que se refere à exportação e aos preços
obtidos. Na década de 1870, a produção do mate no Paraná foi alvo de grande melhoria
técnica, que lhe permitiu grande competitividade no mercado:
"O terceiro ciclo é o que inaugura entre 1875 e 1880, com o deslocamento dos
engenhos para o planalto curitibano e as novas técnicas de industrialização introduzidas
pelo engenheiro inventor Francisco de Camargo Pinto, que permitiram à indústria
paranaense suplantar de todo os seus congêneres do Rio Grande do Sul e do Paraguai,
tomando o nosso mate preferido nos mercados uruguaio, argentino e chileno.23
A invenção tecnológica dos paranaenses consistia em eliminar a ação da fumaça
na erva, que a deixava com gosto desagradável; na substituição do Burrão de couro pela
barrica de pinho e na utilização dediversos aparelhos mecânicos que tornavam mais eficientes
a produção, como o moedor mecânico e o misturador mecânico.
A má qualidade do mate rio-grandense e as suas conseqüências são
expressas pelo jornalista cruz-altense Evaristo Affonso de Castro na sua publicação de
1887:
"...a erva-mate foi e ainda é o ramo de maior exportação do município e chegou
atingir uma cifra enorme, de milhares de arrobas anualmente, mas a imperfeição no
fabrico e o mau acondicionamento fez decair este produto.24
O "termo de arremate de impostos" da câmara de Cruz Alta confirma a prática de
91
fraude no fabrico do produto:
"...nos casos em que a erva-mate exportada seja apreendida como falsificada e
como tal destruída será pago, a ele arrematante, pelo condutor ou exportador a taxa
correspondente ao mesmo de arrobas apreendidas."25
Um observador contemporâneo deixou uma detalhada descrição do modo como
era produzido o mate nos carijos da região no último quartel do século XIX. Inácio
Capistrano Cardoso, o autor, narra com minúcias a tecnologia do fabrico da erva bem
como aspectos referentes ao trabalho e ao comércio.26 A descrição do autor deixa
claro o baixíssimo nível tecnológico do extrativismo, assim como o baixo índice de capital
investido. Essa forma rudimentar de exploração da erva-mate foi hegemônica até o início do
século atual. Os carijos eram marca característica do extrativismo.
A simplicidade do carijo e dos investimentos de trabalho permitiam que o extrati vista
pudesse produzir sem despender recursos financeiros com aquisição de equipamentos
melhores. Ou seja, todo o processo de coleta e preparo da erva, antes de chegar ao
engenho, era realizado numa instalação construída com material recolhido diretamente da
floresta, da mesma forma que todos os equipamentos de trabalho. Apenas o machado e o
facão eram comprados. Assim, para construir o carijo eram necessários apenas troncos e
capim amarrados com cipós. Os cestos para carregar o produto do carijo ao engenho eram
feitos de taquara durante o processo de secagem da erva.
A coleta da erva-mate, desse modo, não exigia praticamente nenhum investimento:
dependia apenas do trabalho. Essa situação permitia a produção do mate a custos muito
baixos conforme comenta e denuncia o relato. Isso é possível se lembrarmos que a
subsistência do trabalhador era produzida por ele próprio na entressafra, quando
assumia a sua condição de camponês.
O barbaquá, um sistema que elimina o contato das folhas de mate com a fumaça
e que substituiu o carijo, somente passou a ser utilizado com certa regularidade no século
XX, apesar de ser conhecido no Paraná desde a década de 1860.27 Esse melhoramento
técnico foi fruto de comerciantes e proprietários de engenho que passaram a comprar o mate
na sua forma natural. O coletor, nesse novo sistema, apenas cortava os galhos da ervateira
e os conduzia ao barbaquá, dispensando o tratamento no carijo. Ou seja, o barbaquá
exige que o coletor leve a erva até o local em que está instalado, ao passo que o carijo vai até
o erval. Dada a sua simplicidade, os ervateiros construíram vários carijos nas proximidades
dos arvais. O barbaquá, uma instalação mais sofisticada, exige certo capital, não pode
92
ser construído nas mesmas proporções. Esse processo de preparo da erva-mate exige
melhoria no sistema de transportes para permitir acesso da erva colhida ao barbaquá, pois
o mate não pode permanecer por muito tempo sem o tratamento do carijo ou do barbaquá.
A introdução do barbaquá ocorreu no mesmo momento em que a expansão da
comercialização das terras e a instalação de colônias agrícolas oportunizavam a abertura
de novas estradas e intensificavam o uso de carroças.
Os engenhos de beneficiamento da erva-mate também constituíam-se ao longo do
século num equipamento bastante simples. Consistiam em uma série de pilões movidos por
força hidráulica aproveitando-se os cursos d'água. Tomamos uma descrição de um viajante em
1867:
"Tosco bastante é ainda o sistema pelo qual remoem a erva, servindo-se de engenhos
de dez a doze pilões com enormes rodas de moinhos e eixos, movidos pelas águas dos
lageados, os quais conduzem com muito desperdício. Servem-se também de monjolo, o
qual é um pilão com um braço em forma de colher, a qual enchendo o faz levantar recaindo
o pilão logo que o receptáculo derrama a água. Creio que não alcançam moer duas
arrobas de erva por dia por esse modo.28
A relativa rudimentaridade da produção gaúcha mereceu o seguinte comentário de
Temístocles Linhares:
"O que não se compreende é o descaso ali reinante quanto à forma primitiva por que
se fazem as operações de preparo do mate, quer na parte da produção propriamente dita
(...) como na parte do beneficiamento, em monjolos e soques que até há bem pouco
tempo deixaram muito a desejar...29
Os engenhos de mate eram urna espécie de monjolo melhorado. Mas esses
estabelecimentos movidos a água eram numerosos; em Campo Novo, em 1860, existiam
dezoito engenhos de "socar erva" numa área relativamente pequena. Evidentemente que
apesar de rudimentares esses estabelecimentos exigiam capital suficiente para excluir os
coletores pobres de mate.30
Um "engenho" de moer erva bem-equipado, o do francês Luís Perié, falecido em
1851, foi avaliado em seiscentos mil réis. Outros engenhos, avaliados entre 1851 e 1882,
ficavam entre quatrocentos mil e 450 mil réis.31
Esse quadro tecnológico da produção e do beneficiamento do mate parece ter
93
perdurado até o início do século XX. Além das referências ao "barbaquá", não existem
outras que dêem notícias de alguma inovação substancial no setor. Por outro lado, a
depredação dos ervais nativos foi compensada pelo cultivo de novos ervais pela iniciativa
privada, conforme já referimos anteriormente.
A Agricultura
A produção agrícola regional pode ser dividida em duas etapas básicas. O período
que se estende até 1890 é marcado pela produção estritamente local. Nos dois setores
básicos da economia - pecuária e extrativismo — havia quase auto-suficiência agrícola; as
estâncias mantinham roças para auto-abastecimento, e os extrativistas de mate eram ao
mesmo tempo agricultores. Dessa forma, o mercado para produtos agrícolas era, sem
dúvida, bastante diminuto para impulsionar qualquer intensificação no setor. As vilas eram
pequenas, e a possibilidade de colocar cereais em mercados importantes como Porto Alegre,
por exemplo, era praticamente inexistente em decorrência sobretudo das dificuldades de
transporte.
Num segundo momento, a partir dos últimos anos do século passado, a agricultura
recebeu significativo impulso e passou a conquistar lugar de grande importância na
economia local. Uma das forças que permitiu esse impulso foi a construção da ferrovia que
possibilitou o acesso aos mercados agrícolas importantes do sul do Brasil.
Paralelamente, a existência de grandes áreas agricultáveis devolutas ou passíveis de
compra por preços módicos trouxe à região um forte contingente de agricultores estran-
geiros e provenientes das áreas agrícolas antigas do Estado. Esses dois fatores — o
aumento populacional e o acesso ao mercado —permitiram grande expansão da produção
agrícola regional, sobretudo em termos quantitativos, pela incorporação de florestas
virgens e pelo maior número de trabalhadores na agricultura.
Numa publicação de 1887, Evaristo Affonso de Castro, uni jornalista cruz,-altense,
descrevia assim a agricultura serrana, do ponto de vista técnico:
"O nosso agricultor, depois de derrubar a machado e foice o mato, deixam-no secar e
então prendem-lhe fogo, logo que caem as primeiras chuvas, fazem a plantação, cavando a
terra com um pau chamado saraquá, depositam nesse buraco a semente que trazem consigo
no embornal a tiracolo, que chamam samblará, feito isso a roça não demanda mais tra-
balho senão no tempo da colheita...32
94
Na década de 1880, a agricultura e suas técnicas foram amplamente discutidas
através da imprensa da região serrana. A prática agrícola utilizada pelos caboclos,
conforme descrição acima, era condenada energicamente como atrasada e inferior a dos imi-
grantes alemães e italianos que cultivavam em outras áreas da província.
O periódico Aurora da Serra, de Cruz Alta, publicou um artigo muito significativo,
nesse sentido, do vereador H. Uflacker, onde se faz uma análise da agricultura regional.
Transcrevemos em anexo (n° 3), o artigo, datado em 1884, para termos urna idéia do que
pensava a elite local sobre a agricultura cabocla do século XIX.33
O artigo de Uflacker aborda enfaticamente a questão da ignorância da população
lavradora nacional, que não conhecia ou não queria conhecer as técnicas agrícolas
desenvolvidas pelo universo agronômico. E essa ignorância teria origem na qualidade do
lavrador nacional, taxado pelo autor de "indolente" e "vagabundo". Esse discurso é
harmonioso com a orquestra de apologistas do trabalho imigrante – alemão e italiano do
norte, principalmente – que soava rotineiramente nas páginas da imprensa.
A segunda abordagem do autor é a questão dos transportes. Mesmo sem se
aprofundar sobre o assunto, a ferrovia é apresentada como de fundamental importância
para a expansão agrícola. Esse deveria ser o item principal de qualquer análise, pois evi-
dentemente era mais decisivo do que o autor imaginava. O terceiro aspecto observado pelo
autor é de ordem ecológica. Uflacker denuncia a derrubada de matos de forma
indiscriminada; ele previu, com bastante precisão, que em cinqüenta anos a floresta estaria
totalmente liquidada, o que de fato aconteceu.
"Qual é a razão desse fenômeno?", perguntou o autor do artigo sobre o atraso
da agricultura serrana. Ele mesmo respondeu à pergunta, atribuindo-o à ignorância dos
lavradores em relação à tecnologia agrícola. No entanto, mesmo os imigrantes, em seus
primeiros anos de agricultura, não iam além do tradicional lavrador nacional. Isso desautoriza
atribuir apenas a questões culturais o sucesso ou insucesso técnico da agricultura.
A produção nos moldes rudimentares, tão condenada por todos, obedecia a uma
racionalidade própria, diversa do moderno saber agronômico. Ver a agricultura regional com
óculos das modernas técnicas agronômicas significa ter uma visão anacrônica, diferente do
que enxergam os próprios lavradores. Essa disparidade é que leva os inadvertidos a
escandalizarem-se com o tradicional cultivo indígena.
Anos mais tarde, após a publicação do artigo de Uflacker, o geógrafo alemão Leo
Waibel, em viagem de estudos, ficaria escandalizado quando observara que os laboriosos
95
germânicos praticavam, em vários locais, uma agricultura tipicamente cabocla, tornando-se
alemães "caboclizados", na expressão do autor:
"Especialmente nas áreas montanhosas, de povoamento antigo, e nas regiões
remotas, muitos colonos alemães, italianos e polacos e ucranianos tornaram-se
verdadeiros caboclos, gente extremamente pobre, com muito pouca ou nenhuma
educação...34
Condenar técnicas agrícolas ou sistemas agrícolas rudimentares não era difícil para
qualquer pessoa razoavelmente instruída no século XIX, quando a agronomia já ia longe em
seus avanços tecnológicos. Não tão simples é explicar por que os lavradores persistiam
nesses sistemas; e, não se pode concordar com as explicações de cunho culturalista.
Ester Boserup, em sua importante obra Evolução Agrária e Pressão Demográfica, nos
ajuda a entender a lógica da agricultura tradicional dos agricultores locais. Para a autora, o
uso do fogo e o cultivo com bastão é uma técnica que requer muito pouco trabalho em
relação aos métodos intensivos de cultivo; e, por outro lado, o acréscimo de tempo de
trabalho necessário para novas técnicas pode não trazer resultados compensadores.
Referindo-se às tentativas de introdução de métodos intensivos entre algumas comunidades
africanas, a autora conclui que:
"Assim, pode ser um sólido raciocínio econômico, e não a indolência, o que induz a
comunidade de cultivadores que utiliza o sistema de pousio longo a recusar o abandono
do fogo e do machado quando se lhes oferece ajuda para que adotem o cultivo com arado..."35
A agricultura rudimentar, baseada no fogo, praticada pelos lavradores serranos era,
portanto, uma atitude lógica, se considerarmos a grande disponibilidade de terras virgens
que permitiam um cultivo com pousio longo ou arbustivo, analisados por Ester Boserup.
Esse sistema de cultivo somente tornou-se inviável na região, à medida que as terras
foram sendo privatizadas – impedindo o acesso fácil costumeiro – e a densidade demográfica
foi crescendo, principalmente após a forte imigração no final do século.
Embora os lavradores fossem expulsos da terra, já a partir da década de 1860, por
muito tempo houve a possibilidade de utilizarem florestas virgens para sua agricultura de
subsistência, na condição de "invasores" de matos nacionais, ou como agregados de
estancieiros proprietários de grandes áreas de mato.
Quanto ao saraquá, o bastão primitivo, seu uso era decorrente da impossibilidade
de arar terras recobertas de troncos ainda não-apodrecidos. Não se tratava de
96
desconhecimento do arado, pois esse era utilizado na região sempre que fosse possível, da
mesma forma que a enxada. O saraquá, em roças novas, era o instrumento agrícola
apropriado para plantar entre os troncos na terra fértil, virgem e fofa. Boserup analisa nesse
sentido:
"Trabalhar com um arado primitivo é trabalho árduo para o camponês e para o animal;
além do trabalho de arar, o camponês terá de cuidar dos animais. A menos que ele mante-
nha um rebanho grande de animais domésticos e empenhe muito trabalho na coleta,
preparação e distribuição do esterco sobre os campos, é provável que a produção por hec-
tare seja menor nos sistemas de pousio curto e cultivo anual do que no de pousio florestal.36
O rendimento da produção nas áreas virgens era, logicamente, bastante
elevado. Os imigrantes do início do século XX ficavam maravilhados com os enormes pés de
milho que cresciam nas roças novas conquistadas à floresta.
Jean Roche, baseado em informações de viajantes e em alguns dados estatísticos
oficiais informa que o milho rendia entre oitenta e duzentos grãos por cada grão plantado,
numa média de 120; o feijão rendia entre trinta e cinqüenta; o trigo entre vinte e oitenta; a
cevada entre dez e vinte e a batata rendia de dez a vinte por cada batata plantada.37
Uma estatística oficial sobre a produção de Passo Fundo em 1858-59 nos
fornece os seguintes resultados (em alqueires colhidos por alqueires plantados).38
Milho = 100; Feijão = 22,8; Trigo = 12 ; Batata = 12; Amendoim = 7
Pode parecer paradoxal que, numa região centrada economicamente na pecuária, não
se tenha usado o esterco animal para adubar as plantações e, dessa forma, empreender um
sistema mais moderno de cultivo. Para compreendermos esse fenômeno, devemos levar ern
consideração alguns aspectos fundamentais: Primeiramente, embora houvesse grande
quantidade de animais para uso de adubo orgânico, ainda assim o sistema de cultivo em
pousio longo era mais rentável, por utilizar a fertilidade natural da floresta virgem e
demandar muito menos trabalho. Também nesse caso, não se trata de desconhecimento
ou ignorância dos lavradores, pois essa técnica de cultivo era conhecida e utilizada em
áreas de campo nativo do sul da província.
Em segundo lugar, as estâncias tinham como prioridade a criação de gado e não
utilizavam, salvo exceções, o seu gado para auxiliar a agricultura, praticamente inexistente
nesses estabelecimentos. Os agricultores cultivavam nas áreas de mato às quais tinham
acesso ocorrendo uma dissociação muito nítida entre pecuária e agricultura. De um lado
97
os pecuaristas e seus campos povoados de gado, exclusivamente; de outro, os
lavradores, pobres, sem gado, produzindo cereais nas áreas florestais. Não se trata de
um problema unicamente estrutural, pois a agricultura, por questões de mercado, era
desprezível para os estancieiros, sendo a pecuária, indubitavelmente, o melhor
negócio. Os pecuaristas preferiam comprar os cereais dos lavradores pobres, ou cultivá-
los em pequenas roças com escravos ou agregados.
A sugestão do articulista do Aurora da Serra de ocupar os campos para a agricultura,
usando adubos e arados, como sugeria a moderna agronomia da época, não tinha muitas
razões para ser acatada. A utilização dos campos nativos pela agricultura significava retirar
o espaço do principal produto regional, o gado, em benefício de urna atividade
economicamente secundária e sem mercado ou sem competitividade. Da mesma forma, não
teria muito sentido econômico despender grande quantidade de trabalho em desmatar a
floresta para introduzir pastagens e gado, havendo campos com pastagens nativas. Eis
porque o que pode parecer um problema estrutural é, na verdade, uma situação
determinada por circunstâncias econômicas e políticas pró-pecuária. Nessa situação, fica
clara a postura dos estancieiros e dos lavradores pobres ao procederem de forma lógica,
respeitando as circunstâncias regionais e dessa forma ignorando as técnicas agrícolas
consideradas mais racionais e modernas pela agronomia contemporânea.
O geógrafo Raymond Pebayle fez uma análise desse fenômeno em Os Difíceis
Encontros de Duas Sociedades Rurais, atribuindo a dissociação entre a agricultura e a
pecuária a aspectos culturais:
"...essas duas sociedades rurais são opostas por suas origens étnicas, por suas
tradições culturais e suas mentalidades. A aristocracia local foi sempre constituída pelos
estancieiros. Esses homens rudes e fatigados das violentas técnicas de pecuária de uma
outra época, afeitos a deslocamentos e já curiosos a respeito das novidades técnicas de seus
vizinhos da Prata, rejeitaram maciçamente o arado, a inovação agrícola e as terras de
floresta.39
Mesmo considerando as vantagens que a maior integração entre agricultura e
pecuária poderia propiciar, Raymond Pebayle atribui essa atitude à mentalidade do
fazendeiro:
"Em verdade, essa lacuna se explica simplesmente por uma atitude característica dos
grandes criadores, que nunca sonharam entender-se com seus humildes vizinhos agriculto-
res com o fim de limitar uma mortalidade hibernal nos rebanhos, o qual lhes parece, aliás,
98
bastante normal."40
Nesse último caso, o autor francês refere-se à possibilidade do pecuarista utilizar a
resteva dos cultivos agrícolas como alimentação do gado nos meses de inverno quando os
pastos nativos são prejudicados pelas geadas e pelo frio. A perda de algumas cabeças de
gado e o emagrecimento dos animais poderiam ser contornados com um menor número de
cabeças por área de pastos. A engorda dos animais recupera essa situação nos meses das
estações mais favoráveis, sem maiores dispêndios.
Para o estancieiro dedicar-se à agricultura, deveria necessariamente contratar mão-
de-obra, que inviabilizaria a atividade, pois a produção agrícola do Rio Grande do Sul ao
longo do século XIX e deste – em todo o período que estamos examinando neste trabalho –
era realizada por pequenos proprietários baseados no trabalho familiar. A produção agrícola
gaúcha era voltada para o mercado interno, produção de subsistência, sem as mínimas
condições de concorrer comercialmente com as vantagens da cafeicultura paulista, por
exemplo, cujos rendimentos da exportação permitiam comprar escravos ou, mais tarde, pagar
salários aos trabalhadores. Mesmo para os pequenos proprietários, a realização da
produção no mercado era bastante difícil e instável.
Por outro lado, a agricultura cabocla era muito frágil. Na ausência de
armazenamento, as adversidades climáticas colocavam em difícil situação os lavradores:
"A câmara não tem meios de socorrer à pobreza que está morrendo de fome neste
município, não há sementes para novas plantações de cereais; pedimos providências à
V. Excelência bem como solução do ofício da câmara de 13 de setembro findo. Paço da
câmara municipal da Palmeira 2 de novembro de 1888."41
A câmara de Cruz Alta também enviou ofício com o mesmo teor, informando que já
haviam ocorrido algumas mortes em conseqüência da fome decorrente da seca que assolou
toda a região.42
As secas não são comuns nessa região, mas quando ocorrem, causam sérios
problemas à agricultura e aos lavradores, como aconteceu nas fortes secas de 1877 e 1888,
por exemplo. Essas adversidades climáticas atingiam menos os fazendeiros, que possuíam
lagoas e riachos perenes em suas terras, o que amenizava os efeitos da seca sobre o
gado. Além de alimentar-se com o gado, o estancieiro comprava o pouco cereal existente
nas mãos de algum lavrador pobre.
99
A Expansão Agrícola
Na década de 1890 os tão esperados imigrantes começaram a se instalar nas zonas
florestais do planalto. As ofertas do governo, os preços baixos das terras e a construção
da ferrovia eram bons motivos para os colonos abrirem suas roças nas matas virgens.
Mas no que se refere às técnicas agrícolas, os colonos adotaram, em princípio, as
mesmas técnicas dos desprestigiados agricultores nacionais precedentes. Os colonos
imigrantes que povoaram as colônias serranas, assim como seus colegas das demais
colônias gaúchas e os caboclos, pouco utilizaram-se das modernas técnicas agrícolas
ditadas pela ciência agronômica.
Na colônia Ijuí, seis anos após sua instalação, os colonos possuíam 29 arados para
as 1088 explorações agrícolas e 1350 cabeças de gado vacum (1,2 por exploração), 964
cavalos (menos de uni animal por unidade), e não usavam adubos de forma sistemática.43 A
agricultura dos colonos-imigrantes, assim como a dos seus precedentes caboclos, tinha
como característica a queimada e a rotação de terras, aproveitando a fertilidade natural
do solo virgem.
O tradicional sistema de cultivo dos colonos é comentado e analisado em diversas
obras que tratam da agricultura colonial sulina. Jean Roche, escreveu, nesse sentido:
"A necessidade de dobrar-se à técnica do desflorestamento forçou o europeu a cair ao
nível do índio ou do caboclo. Era certamente uma regressão, mas sem ela não podia haver so-
brevivência na frente florestal."44
Leo Waibel, geógrafo alemão, em seu estudo sobre as colônias alemãs do sul do
Brasil, não escondeu seu espanto quando constatou que seus compatriotas praticavam uma
agricultura rudimentar:
"A maioria das colônias do planalto do Rio Grande do Sul está em estado
deplorável. A primeira geração de colonos que devastou as matas no decênio de 1890 e
que, depois de alguns anos de pioneirismo, estabeleceu o sistema de rotação de terras
melhorada, tornou-se logo próspera e constitui boas propriedades. A segunda geração
aplicou as mesmas práticas agrícolas, daí resultando que os seus padrões econômicos
baixaram consideravelmente, e a terceira geração, ou teve que se mudar para outro
lugar ou se tornou cabocla. O número de caboclos europeus é surpreendentemente
elevado, mesmo em colônias que há 25 anos eram consideradas como colônias modelo.45
100
Não se tratava, portanto, apenas de urna questão cultural o uso ou não de
tecnologias agronômicas modernas na agricultura local, e sim das circunstâncias oferecidas
pelos condicionantes da produção. Da mesma maneira que os caboclos, os imigrantes uti-
lizaram largamente a fertilidade natural das florestas virgens enquanto isso foi possível.
Waibel, em sua observação minuciosa sobre os sistemas agrícolas dos colonos
imigrantes, classificou-os em três sistemas fundamentais. Ao primeiro estágio do
desenvolvimento da agricultura nas terras florestais da fronteira ele dominou estágio de
rotação de terras primitivo. Nesse estágio o agricultor plantou produtos de subsistência e
criou porcos de modo muito parecido com o dos indígenas; as trocas mercantis foram poucas e
realizaram-se através de um único comerciante local.46 No segundo estágio, do sistema de
rotação de terras melhorado, o comércio foi mais ativo e a produção aumentou e especializou-
se, mas não ocorreu a adubação das terras, o que levou ao esgotamento do solo em poucos
anos. A terra esgotada ou em via de esgotamento é deixada em pousio até recuperar a
fertilidade natural. O terceiro estágio, do sistema de rotação de cultura combinada com
criação de gado, foi pouco utilizado, devido aos limites impostos pelo pequeno tamanho
dos lotes rurais. Os poucos produtores que atingiram esse estágio "tornaram-se prósperos
colonos.47 As suas simpatias pelos colonos alemães e a comparação com o Middle West
norte-americano levaram-no a indignar-se com o estado "deplorável" dos seus
compatriotas quanto às suas condições de vida e quanto aos sistemas agrícolas utilizados.
Sugeriu a ocupação dos campos naturais do sul como única forma de melhorar as condi-
ções de produção agrícola, através de um consórcio lavoura / pecuária que permitisse a
adubação do solo. Uma proposta ingênua, pois os pecuaristas jamais entregariam seus
campos aos colonos. Os pecuaristas, tradicionais donos do poder, já no início da imi-
gração levaram os imigrantes a ocuparem as florestas, que não lhes interessava explorar
diretamente. A reprodução dos camponeses se daria pela incorporação de novas terras
florestais até esgotarem-se todas as reservas, e, posteriormente, pela emigração para os
outros estados.
Da mesma forma, o geógrafo francês Raimond Pebayle analisa a agricultura do Rio
Grande do Sul e os seus sistemas agrícolas, apontando os seus defeitos e as suas possíveis
causas. Os problemas básicos seriam o reduzido tamanho dos lotes rurais, as dificuldades de
transporte e a espoliação pelos comerciantes, além da existência da fronteira agrícola
aberta que permitia a reprodução dos sistemas agrícolas através da incorporação de
novas terras virgens e baratas. Pebayle insiste no dualismo campo/floresta como responsável
pela impossibilidade de adotar a tradicional combinação pecuária-lavoura praticada nos
Estados Unidos com resultados eficientes. Entretanto, ele reconhece que se trata de um
101
problema estrutural, historicamente formado e de difícil solução.48
Jean Roche, ao estudar a presença dos alemães no Rio Grande do Sul nos
forneceu rico e detalhado material sobre os sistemas agrícolas. Roche procurou situar os
sistemas de cultivo dentro das condições a que foram submetidos os agricultores ale-
mães. Daí que a agricultura praticamente idêntica à dos caboclos, desenvolvida nos primeiros
anos, era a única forma viável, dadas as condições impostas. Roche viu também a iminência
do esgotamento dos solos, decorrente dos sistemas agrícolas utilizados, como inevitável
na maior parte das áreas rurais, pela existência da fronteira aberta e pela inviabilidade de
inversão de capital na terra.
Roche classificou a agricultura rio-grandense em fases de desenvolvimento. Partindo
da subsistência, no início da ocupação da colônia, na segunda fase os colonos já
exportavam produtos, e na terceira fase especializavam-se em algum produto de boa acei-
tação no mercado. Na última fase, a colônia entra em declínio pelo esgotamento do solo
resultante dos sistemas depredatórios de cultivo empregados. A inversão de capital na
terra seria inexistente, pois o agricultor preferia comprar terras na fronteira. Além disso, a
acumulação de capital (primitiva) ocorria nas mãos dos comerciantes, através de
mecanismo de preços. Tanto Roche como Pebayle argumentam que a agricultura
mecanizada, que exige capitais, teria origem na iniciativa urbana: comerciantes, profis-
sionais liberais e industriais teriam investido capital no cultivo do arroz e do trigo. Isso
supõe que a mudança do sistema agrícola teria de vir da iniciativa de inverter capital na terra.
Na verdade, a modernização da agricultura foi um fenômeno conjuntural e bastante complexo,
pois envolveu mudanças na política agrícola do Estado, e, em nível local, envolveu também
condições peculiares como topografia, estrutura fundiária e acesso ao mercado.
Em relação aos sistemas agrícolas apontadas por Leo Waibel, Jean Roche é enfático
ao afirmar que "não existem senão apenas dois estágios agrícolas – um é a depredação e o
outro é através da adubação."49 A adubação com estrume de gado era inviável nas pequenas
propriedades agrícolas, pois o adubo fornecido pelos animais dificilmente superaria a
própria área por eles ocupada.
Não há dúvidas que o problema crucial que atinge a agricultura rudimentar é o
esgotamento do solo. Nesse particular, os camponeses europeus do século XVIII, com suas
terras esgotadas pelo cultivo milenar, enfrentavam o problema com adubação feita com
estrume de gado, principalmente, e pela introdução de novas plantas – os tubérculos, por
exemplo. Mais tarde, na segunda metade do século XIX, a agricultura européia
praticamente aboliu o pousio da terra através dos adubos químicos.
102
Mas, no planalto do Rio Grande do Sul, no período que se estende até 1920, o
esgotamento do solo, apesar de iminente, não havia ainda colocado em xeque a
produção local. A colônia Erechim produziu em 1920 quatro vezes mais milho que em 1916,
aumentando esse índice ainda mais nos anos posteriores. A colônia Ijuí teve
comportamento semelhante; a produção de milho, a principal da agricultura sulina, cresceu,
nessa colônia, de 1174 toneladas em 1896 para 48180 toneladas em 1920. Em ambas as
colônias, outros produtos tiveram comportamento semelhante.50
Esse crescimento foi possível pela incorporação de novas áreas de cultivo
conquistadas à mata virgem.
Quanto à expansão da produção agrícola regional na virada do século, as
estatísticas a demonstram largamente. Tomemos alguns dados como exemplo: as
estatísticas de 1917 apontam o município de Passo Fundo como o primeiro na produção de
batata-inglesa, feijão preto e milho. Esse município era atravessado pela ferrovia São
Paulo-Rio Grande, e muitos núcleos coloniais já estavam aí instalados (Erechim, por
exemplo).
TABELA N° 10 - PRODUÇÃO AGRÍCOLA DE PASSO FUNDO EM 1917
Fonte: ROCHE, Jean. Op. Cit. p. 303-305
A tabela abaixo nos fornece outras indicações sobre o volume da produção agrícola
regional.
103
TABELA N° 11 - PRINCIPAIS PRODUTOS AGRÍCOLAS EM ALGUNS MUNICÍPIOS
DO PLANALTO - 1920 (em toneladas)
Fonte: RECENSEAMENTO do.Brasti - 1920: Agricultura. Rio de Janeiro, IBGE, 1927. p. 86-89 e 312-317. Apud.FEE. Op. Cit. p. 203
Esses números equivalem, em termos comparativos, acerca de 20% da produção
de milho de todo os Estado; 15% do feijão; 5% da mandioca; 4% da batata-inglesa e 15%
da cana-de-açúcar, no ano 1920.
A produção de suínos, associada à produção de milho, o principal produto agrícola
do Sul durante as décadas que imediatamente antecederam e as que sucederam o início do
século XX, garantia grande participação ao Planalto nas estatísticas de 1 920 (Ver tabela
12).
TABELA N" 12 - REBANHO DE SUÍNOS NO PLANALTO - 1921
Fonte: Anuário Estatísticos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Secretaria dos Negócios doInterior e Exterior, 1922. p. 348
104
Esses números eqüivalem a 17,8% do total do rebanho gaúcho, que era de
6.038.800 cabeças.
Essa expansão da produção agrícola, a partir da virada do século, coincidindo com
a fundação de inúmeras colônias de imigrantes, serviu aos apologistas da imigração para
confirmar as hipóteses em torno da superioridade dos imigrantes em relação aos
lavradores nacionais. O sucesso da agricultura regional deve, no entanto, ser atribuído a
outros fatores que não os aspectos culturais dos agricultores. Não há dúvidas que à ferrovia
deve-se em grande parte esse sucesso, pois colocou os produtores em contato com o
mercado agrícola nacional. Nesse particular, a rápida ascensão econômica dos núcleos
coloniais de Ijuí e Erechim é bom exemplo. Por outro lado, o grande contingente
demográfico que se instalou na região permitiu a expansão da produção em função do
aumento do número de agricultores em atividade.
Acrescenta-se a esses aspectos o sólido apoio oficial, que se fazia através da
administração colonial que dirigia os núcleos agrícolas formados por imigrantes, propiciando a
construção de estradas, pontes e até mesmo alimentando os colonos recém-chegados.
Podemos observar na obra de Jean Roche sobre as colônias alemãs do planalto que
a expansão agrícola está ligada à expansão demográfica e à melhoria dos transportes.
Sobre o volume de produção o autor informa:
"...o aumento, porém, das colheitas corresponde ao da superfície cultivada. Entre
1910 e 1911, a população passou de 7600 para 25000 habitantes; a área cultivada, de
51000 para 170000 hectares; a produção de 1800 para 5000 contos.51
É nítida a expansão agrícola em termos quantitativos, ou seja, pela incorporação
de novas áreas à agricultura. A forma como essas áreas eram incorporadas, do ponto de
vista técnico, era através da tradicional técnica de queimadas dos caboclos e pelas mesmas
razões que abordamos anteriormente.
Quanto aos transportes, Jean Roche enfatiza a sua grande importância para o
desenvolvimento dos núcleos coloniais e da agricultura. Sobre a colônia Ijuí, o autor descreve
que
...os lotes foram ligados por 205 quilômetros de estradas, 39 quilômetros de
rodovias e uma ponte que permitia a saída dos produtos agrícolas até a estação de
estrada de ferro mais próxima: Cruz Alta. A abertura da via férrea em 1911, fez dobrar a
produção e triplicar a exportação. O desenvolvimento da agricultura, favorecido pela Guerra
105
Mundial continuou até 1924."52
A respeito da colônia Erechim, o autor atribui seu sucesso à ferrovia: "Erechim ficará,
pelo menos, como um dos exemplos mais significativos de impulso demográfico que se deve
à colonização. É verdade que esta se realizou ao longo da via férrea Santa Maria – São Paulo,
o que lhe permitia escoar imediatamente os produtos agrícolas com facilidade excepcional
na história das colônias rio-grandenses."53
A fertilidade natural dos solos virgens, associada à expansão demográfica – via
imigração – e ao acesso ao mercado – via ferrovia –, foram os fatores responsáveis pelo
grande incremento agrícola regional a partir da virada do século.
Até a década de 1920, o aumento do volume de produção agrícola regional deve-se à
expansão quantitativa da agricultura. O uso de adubos era inexistente e a iminência do
esgotamento do solo era previsível. Por outro lado, se a fertilidade natural do solo dispensava
o uso de adubos, a expansão quantitativa da produção para atender às possibilidades do
mercado exigia mais trabalho. Nesse sentido, os agricultores recorriam a inovações
tecnológicas para melhorar o desempenho do trabalho, tão logo o apodrecimento dos
troncos e das raízes de árvores derrubadas permitisse a utilização de implementos agrícolas.
O censo de 1920 demonstra a utilização de inúmeros implementos agrícolas
que multiplicavam a capacidade de trabalho dos lavradores.
TABELA N" 13 – INSTRUMENTOS AGRÍCOLAS NA AGRICULTURA DE ALGUNS
MUNICÍPIOS DO PLANALTO – 1920
Fonte: RECENSEAMENTO do Brasil 1920. Agricultura. Rio de Janeiro. IBGE, 1927. PP. 82-83. Apud. FEE.Op. Cit. P. 198.
106
Na última tabela notam-se os números menores do município de Palmeira, cuja
colonização em 1920 estava apenas em seu início: daí o menor número de implementos
utilizados em relação aos demais municípios que iniciaram a colonização alguns anos
antes. O mesmo município de Palmeira era também, na data do censo, o mais afastado da
ferrovia e, portanto, encontrava maior dificuldade em escoar a produção, o que
desestimulava a compra de implementos.
Por outro lado, o uso de implementos agrícolas e o conseqüente aumento de
rendimento do trabalho em cada unidade produtiva permitia suprir ou amenizar a queda
do rendimento dos grãos, diante da ausência de adubos.
Conclusão
A agricultura regional pode ser dividida em duas fases importantes. A primeira inicia-se
juntamente com o extrativismo de erva-mate e com a pecuária, e se estende até o final do
século XIX. Outra fase tem início na última década do século XIX com o surto demográfico
decorrente da imigração de colonos da Europa e das colônias velhas gaúchas, ao mesmo
tempo em que a ferrovia alcança a região, ligando-a aos principais centros econômicos do
país.
A primeira fase caracteriza-se por uma agricultura voltada exclusivamente para a
subsistência dos extrativistas e das estâncias de gado, além de abastecer o pequeno
mercado local.
O tradicional expediente de queimar a mata e a ausência de adubos, características
dessa fase, consiste numa forma natural de desenvolver a agricultura em áreas
florestais, à medida que exige menos trabalho e menos capital, dois elementos escassos
nos limites do espaço e do tempo que estamos abordando. Nesse sentido, as observações de
Ester Boserup em Evolução Agrária e Pressão Demográfica estão corretas e muito nos
contribuíram para ver por outro ângulo a suposta irracionalidade da agricultura dita
tradicional. Ou seja, a alegação da ignorância dos lavradores locais diante de modernas
técnicas agronômicas tem um propósito ideológico e político, à medida que serve para
justificar a expulsão dos caboclos e a comercialização de terras com os imigrantes; ou
então, na obra de diversos autores, trata-se de uma visão distorcida do fenômeno que
procura analisar a agricultura em condições determinadas através de uma concepção ideal
e inadequada de agronomia e economia rural: a agricultura tradicional dos lavradores só é
irracional se a olharmos com os óculos da moderna agronomia desenvolvida em locais de
107
grande intensificação do uso do solo, geralmente estimulada por um sólido mercado agrí-
cola.
A segunda fase caracteriza-se justamente pela expansão agrícola. É uma
expansão sobretudo quantitativa, possibilitada pelo aumento demográfico decorrente da
imigração e pelo acesso ao mercado garantido pela ferrovia. Nessa fase, as lavouras são
preparadas pelo sistema de queimadas, tal qual o faziam os caboclos. No entanto, os
limites estreitos dos lotes rurais e o estímulo do mercado levam esses produtores a
intensificarem o uso do solo de forma gradativa. Depois de quatro ou cinco anos da
derrubada da floresta, os colonos passam a utilizar implementos como arados, ceifadores
e grades que lhes permitem produzir mais para o mercado. Mas o adubo, elemento principal
da agricultura intensiva que permite a eliminação do pousio, não é utilizado, o que de certa
forma seria antieconômico, pois tornaria mais caros os produtos em relação aos que eram
produzidos com a utilização da fertilidade natural das terras virgens, cuja incorporação
ocorria de forma gradativa e, portanto, concomitantemente com o esgotamento de solos de
áreas próximas. Isto é, ao mesmo tempo em que alguns agricultores esgotam seus solos,
outros abrem novas roças em terras virgens. Desse modo, os solos esgotados são
deixados em pousio ao mesmo tempo em que se faz rotação de culturas para amenizar
os efeitos do esgotamento: o milho é substituído pela mandioca, um tubérculo com
grande capacidade de produção em solos pobres e que serve para alimentar o porco.
Nessa fase, a banha de porco se constitui no principal produto de comercialização dos
agricultores locais.
Em relação à produção de erva-mate, é uru extrativismo principalmente organizado em
uma fase de pouquíssima utilização de capital, na qual os produtores eram antes de tudo
camponeses que produziam a própria subsistência e os ervais eram públicos, mas com
tendência de privatização no decorrer do período.
A condição de camponeses dos coletores de erva-mate permitia que a
remuneração do trabalho fosse muito baixa. Ao mesmo tempo, todo o processo de
extrativismo e transformação parcial do produto era realizado de forma rudimentar, que não
exigia praticamente nenhum capital invertido. Os engenhos, que davam o acabamento final
ao produto, eram também muito simples, mas exigiam certo investimento, o que excluiu os
lavradores pobres e os submeteu às condições impostas pelos proprietários de engenho e
pelos comerciantes.
As estâncias pastoris, por sua vez, mantiveram-se fiéis às suas origens, ao longo
do período. Tendo como característica o uso extensivo das pastagens nativas, esses
108
estabelecimentos eram de baixo índice de capitalização e muito conservadores em rela-
ção às inovações tecnológicas. Tanto que, atualmente, são exatamente estâncias
pastoris as principais áreas improdutivas reivindicadas pelos agricultores sem-terras do
Rio Grande do Sul.
Notas
1 Cf. GOULART, José Alípio. Tropas e tropeiros na formação do Brasil. Rio de Janeiro :
Conquista, 1961. P.14I.
2 Cf. CASTRO, E. A . Op. Cit. P.76.
3 Cf. Relatório do Presidente da Província de São Pedro do RGS. J.L .Cansansão de Sinimbú.
Porto Alegre, 6 de outubro de 1853. P.51 (B.N).
4 Cf. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul pela Câmara Municipal da Vila de Cruz Alta. Porto Alegre, Tipografia do
Comercial, 1862. P.12 (B.N).
5 Cf. Idem. P. 12
6 Cf. CASTRO, E. A . Op. Cit. P281.
7 Cf. ABREU, Florêncio, Retrospecto econômico e financeiro do estado do Rio Grande do Sul –
1822-1922. In: Revista do Arquivo Público do RS. Dezembro de 1922, n° 8. P.227.
8 Cf. Idem. P. 228
9 Cf. Instruções do Conde de Piratini ao capataz da Estância da Música. In: CÉSAR,
Guilhermino. O conde de Piratini e a estância da música. Porto Alegre e Caxias do Sul.
UCS/EST, 1978. PP. 33/47.
10 Cf. SAINT-HILAIRE, A .Op. Cit. R139.
11 Cf. Inventário de Germano Rodrigues da Silva. Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz Alta.
Março 4, n° 101, APRS.
12 Cf. GOMES, Aristides de Moraes. Fundação e evolução das estâncias serranas. Cruz Alta : A.
Dal Forno, 1966. P.344.
13 Cf. Idem. P. 167
14 Ver capítulo 3 deste trabalho.
15 Cf. Código de Posturas do Município de Santo Antônio da Palmeira. 1875. Esse código é
cópia do Código de Cruz Alta que regulamenta esses ervais antes da criação do município
109
da Palmeira. AHRS. Lata 124.
16 Cf. Gonçalves Chaves, A. J. Op. Cit. P199.
17 Cf. VELLOSO DA SILVEIRA, H. J. Op. Cit. P.141.
18 Cf. CUNHA, Ernesto A. L. Rio Grande do Sul: contribuição para o estado de suas condições
econômicas. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1908. P. 199 (BN).
19 Cf. Correio Serrano. 21/06/1918. R5.
20 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 105.
21 Cf. Relatório do Presidente da Província de São Pedro do RGS, J. L. Cansansão de Sinimbú.
2 de outubro de 1854. Porto Alegre.
22 Cf. ABREU, Florêncio de. Op. Cit. PP. 310-311.
23 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 172.
24 Cf. CASTRO, E. A . Op. Cit. P.76.
25 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta 17 de abril de 1866. AHRS. Cx. 159.
Doc. 474.
26 Cf. Descrição de Inácio Capistrano Cardoso. Transcrito por VELLOSO DA SILVEIRA,
H. J. Op. Cit. PR 139-141.
27 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 130 e VELLOSO DA SILVEIRA, Op. Cit. P.142.
28 Cf. SCHUTEL, Henrique Ambauer. Itinerário de Cruz Alta ao Campo Novo. Citado por BINDÉ,
Wilmar C. Op. Cit. P. 133.
29 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 108.
30 Cf. Relatório de José Maria P. de Campos ao presidente da província do Rio Grande do Sul.
Cruz Alta, 13 de julho de 1860. AHRS. Cód. 285.
31 Cf. Inventários Post-Mortem de Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões. APRS.
32 Cf. CASTRO. E. A. Op. Cit. P. 280.
33 Cf. Aurora da Serra. Cruz Alta. Dezembro 1884. PP. 99/100. (Ver Anexo n° 3)
34 Cf. WAIBEL, L. Op. Cit. P. 246
35 Cf. BOSERUP, Ester. Evolução agrária e pressão demográfica. São Paulo : Hucitec/ Polis,
1987. P. 77.
36 Cf. Idem. P. 34
37 Cf. ROCHE, J. Op. Cit. P. 265.
110
38 Cf. FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA (FEE). Op. Cit. P65.
39 Cf. PEBAYLE, Raymond. Os difíceis encontros entre duas sociedades Rurais. Boletim
Geográfico do RS. Porto Alegre, 1975. N° 18. P.3.
40 Idem. P. 7.
41 Cf. Of'ício da Câmara Municipal da Vila da Palmeira ao governo da província. 2 de
novembro de 1888. AHRS. Cx. 116.
42 Cf. Correspondência da Câmara Municipal da Cruz Alta. 7 de novembro de 1888. AHRS.
Cx. 110.
43 Cf. Relatório da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas. Porto Alegre, julho de 1897.
P. 15 - MALRS.
44 Cf. ROCHE, J. Op. Cit. P. 53.
45 Cf. WAIBEL, L. Op. Cd. P. 252.
46 Cf. WAIBEL, L. Op. Cit. p 253.
47 Cf. WAIBEL, L. Op. Cit. PP. 253-254.
48 Cf. PEBAYLE, R. Op. Cit. P. 3.
49 Cf. ROCHE, J. Op. Cit. P. 291.
50 Idem. P. 291.
51 Idem. P. 280.
52 Idem. PP. 279-280:
53 Idem. P. 281.
111
IV
Os Trabalhadores
Neste capítulo examinamos as diversas categorias de trabalhadores rurais que
atuaram na sociedade regional, bem como suas relações com as classes dominantes.
Iniciamos com os escravos, fazendo algumas considerações críticas necessárias diante
da existência de uma vasta bibliografia regional que aborda o tema com grandes distorções
em favor de teses extremamente ideologizadas, principalmente no que diz respeito à
condição de vida do escravo gaúcho. Ao mesmo tempo examinamos algumas suposições que
versam sobre a questão da irracionalidade da escravidão. Tratamos também de caracterizar
as atividades dos cativos.
Além dos escravos, havia um contingente de trabalhadores livres, dedicados ao
extrativismo e à agricultura de subsistência, que aos poucos foram submetidos aos
estancieiros, tomando o lugar dos cativos.
Por fim, tratamos dos colonos europeus, que imigraram no final do século e deram
nova configuração à estrutura social e política da região.
Os Escravos
Quando se trata da escravidão negra no sul do Brasil, o primeiro aspecto que
chama atenção é forma extremamente ideológica como a historiografia regional tem
abordado a questão. De um lado, muitos autores praticamente ignoram o escravo negro,
em suas considerações sobre a sociedade gaúcha, como se fosse ele insignificante na
formação social do Rio Grande do Sul, a qual estaria, para esses autores, formada apenas
por homens brancos e por indígenas. De outro lado, algumas obras tratam de apresentar o
escravo gaúcho como um indivíduo que vivia em quase liberdade, de forma bastante
112
diferente dos cativos do Nordeste açucareiro ou dos cafezais paulistas; e isto seria
decorrente, supostamente, da atividade pastoril que predominou no Sul durante o período
escravista.¹
As obras de divulgação dessas teses altamente ideológicas são abundantes na
bibliografia regional. Mas ultimamente novas publicações vêm tratando de desmistificar
aquilo que foi amplamente divulgado por aquela historiografia tradicional. Uma das
primeiras e bem-construídas, obras críticas a essa suposta democracia racial e rural sulina
é a de Fernando Henrique Cardoso, em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional,
publicada em 1962.²
Mas mesmo com a divulgação de novos textos sobre a escravidão sulina, os
quais criticam as teses tradicionais, ainda aparecem publicações que voltam a insistir na
velha apologia de uma pretensa democracia racial. Numa tese de mestrado, publicada
recentemente, em 1985, a autora, querendo demonstrar o espírito democrático dos gaúchos
em relação à escravidão, escreveu esta máxima na conclusão do trabalho: "sobressai o
Rio Grande do Sul, assim, também no final da batalha pelos direitos humanos do negro,
ratificando mais uma vez, as tradições tão consagradas de justiça e liberdade do povo gaúcho.³
A escravidão em si mesma já é uma terrível arbitrariedade contra a liberdade dos
homens e, sendo assim, é difícil conciliar democracia e escravidão. Tanto no Rio Grande do
Sul, como em qualquer outra região escravista, os senhores não só mantinham pessoas
cativas, como iam além dos estreitos limites de respeito ao escravo. Nos arquivos da
justiça gaúcha não é difícil encontrarmos processos-crime que denunciam as atrocidades
que muitos senhores de escravos cometiam contra os cativos.
No caso do planalto gaúcho, a situação não poderia ser diferente. Para ilustrar as
arbitrariedades, situadas além da própria escravidão, recolhemos um processo, de 1877,
contra um estancieiro cruz-altense, que chega a ser comovente pelo barbarismo praticado
contra os cativos: morte de criança por espancamento; impedimento de amamentar recém-
nascido, com morte conseqüente, são algumas das denúncias contidas no processo
conduzido por um promotor visivelmente engajado na luta contra a instituição escravista4
(Ver no anexo n° 4 o texto na íntegra).
Por sua vez, o escravo à medida do possível procurava reagir contra a servidão
imposta. Embora não se tenha notícias de grandes rebeliões na região, como ocorreram
em outras regiões do país, é comum encontrarmos atos de rebeldia individual nos
cartórios da justiça gaúcha. Aliás, um observador alemão da década de 1850, referindo-se
113
ao escravo gaúcho, comentou:
"Castigo duros não são convenientes diante da obstinação dos negros, porque
então eles se tornam muitas vezes incorrigíveis, sendo o dono obrigado a vendê-lo
rapidamente e com prejuízos, para que a ovelha sarnosa não contamine todo o rebanho..."5
No planalto gaúcho, casos de "ovelhas sarnosas", na expressão do autor alemão,
são encontrados nas páginas dos processos-crime da justiça local. Sem querer inventariar
esses casos, o que não é o propósito deste texto, citamos, a título de exemplo, o caso do
escravo Salvador, do distrito de Campo Novo, no município de Palmeira das Missões. Ao
morrer seu proprietário, em 1866, alguns credores exigiram que a justiça leiloasse o único bem
disponível do falecido, em mãos da viúva: o escravo Salvador, pardo, 25 anos, avaliado em
oitocentos mil réis. Salvador insurgiu-se contra a medida afirmando publicamente, segundo
as palavras de um indignado credor, que "...no caso de ter que servir alguém; que fugirá
para o Estado Oriental...". A viúva tentou alforriá-lo, pois assim poderia contar com seus
serviços, já que não se negava a ficar com ela, mas não teve sucesso. Salvador foi a
leilão em Cruz Alta, mas somente apareceu um comprador do décimo pregão, meses
depois do primeiro edital.6
Recentemente, a historiografia brasileira, e a regional de modo particular, têm
produzido várias obras denunciando as atrocidades da escravidão, mostrando as lutas dos
cativos e fazendo um verdadeiro levantamento das rebeliões coletivas e individuais isto é,
revelando a resistência do escravo à servidão. É urna historiografia que, em muitos
casos, tem um objetivo imediatista, no sentido de instrumentalizar a população para a luta
contra a discriminação racial e social, o que do ponto de vista da análise histórica é
questionável.7
Neste texto, sem querer fazer a apologia do escravo oprimido, apenas tratamos de
evidenciar, com alguns exemplos, que a escravidão local foi idêntica ao que tem sido
apontado pela historiografia recente, no que se refere às relações senhor-escravo.8 No
nosso caso, estes comentários se fazem necessários diante de uma historiografia regional
bastante difundida que ignora o negro e divulga a falsa idéia de uma democracia racial e de
um bem-estar do cativo sulino.
Mas, demonstrar as arbitrariedades da escravidão ou a insubmissão do negro
escravo não é suficiente para compreendermos a sociedade escravista. Trataremos,
portanto, a seguir, de examinar o papel do escravo no trabalho das estâncias e as condi-
ções em que ocorreu a transição para o trabalho livre na região.
114
A População Escrava
A população escrava regional era significativa ainda na década de 1860,
considerando que há vários anos o Brasil não recebia novos escravos do continente
africano, por força da repressão ao tráfico negreiro. Por outro lado, neste contexto, a
escassez de braços nas plantações de café em São Paulo e Rio de Janeiro atraíam com
muita força os cativos da regiões periféricas do país. Considere-se ainda que o Rio Grande do
Sul há muito tempo estabelecera uma política de imigração com amplos incentivos aos
colonos europeus, através da concessão de terras em condições vantajosas.
No caso específico do planalto, o índice de participação de escravos no conjunto
populacional estava abaixo da média da província, conforme observa-se na tabela 14. Este
fenômeno deve ser atribuído às características da economia regional, baseada na pe-
cuária extensiva, ao contrário de outras áreas onde havia charqueada com grande
número de trabalhadores cativos. É o caso do município de Jaguarão, centro charqueador
que contava com um percentual de 38,89% de escravos em sua população no ano de
1858. Pelotas, outro importante centro produtor de charque, registrava, no mesmo ano, um
índice de 37,13%.9
TABELA N° 14 - POPULAÇÃO ESCRAVA REGIONAL E PARTICIPAÇÃO NO TOTAL DAPOPULAÇÃO
Fonte:1.Relatório do Presidente da Província: Joaquim A . F. Leão. Porto Alegre, novembro 1859.2.CAMARGO, A .E. Quadro estatístico da província de São Pedro do RGS. Porto Alegre, Tipografia do
Comercial, 1868.3.Censo Geral do Brasil. IBGE, Rio de Janeiro. Biblioteca do IBGE (Microfilme 3A0/ 81 – BICEN 003 -- 81).
A queda da participação relativa dos cativos no total da população gaúcha e regional,
nos anos seguintes, insere-se na conjuntura nacional favorável a essa diminuição, seja
pelo fim do tráfico, seja pela imigração da população livre européia. Também se deve
considerar que, no decorrer do século, houve uma oferta cada vez maior de mão-de-obra
115
livre proveniente do processo de comercialização da terra, ao mesmo tempo em que as
estâncias, pelas suas características, não aumentavam a demanda de trabalhadores.
Assim, com o cessamento do tráfico de escravos africanos, o Rio Grande passou a exportar
cativos para São Paulo.10
A diminuição da população absoluta na região, em 1872, pode ser vista, além das
possíveis distorções da estatística, como resultado da guerra contra o Paraguai, na qual
participaram ativamente os estancieiros da região com vários batalhões de soldados
recrutados entre o povo.11 Quanto à diminuição do número de escravos, ela pode ser
atribuída à sua exportação para outras regiões, já que não eram imprescindíveis nessa
data; e também é possível que muitos homens cativos tenham marchado para a guerra,
com seus proprietários; além disso, outros fatores de menor importância podem ter
contribuído para isso: mortes sem reposição (as crianças nascidas nessa época eram
livres pela lei de 1871); alforrias, fugas... ou uma distorção na estatística.
As Atividades dos Escravos
Os escravos de urna estância típica regional podem ser classificados, em relação ao
trabalho, em "roceiros", "campeiros" e "domésticos". Os primeiros eram os lavradores da
subsistência do pessoal da estância, além de prestarem outros serviços. Os campeiros
tratavam do trabalho pastoril propriamente dito e eram considerados mais habilidosos e
melhores qualitativamente. A última categoria, os domésticos, da qual a maior parte
eram mulheres, cuidava dos serviços rotineiros das casas e adjacências.
Os escravos roceiros aparecem com muita freqüência nos inventários post-morrem dos
estancieiros locais, quando trazem informações sobre a profissão dos cativos. Um exame
dos inventários de 1876 nos indica que dos 42 escravos de diversos estancieiros, três eram
campeiros; treze eram roceiros; dez eram domésticos e dezesseis não tinham suas
profissões indicadas. Os domésticos eram todos mulheres e os sem profissão eram na
maioria crianças. O censo oficial de 1872 indica para o município de Passo Fundo 299
escravos lavradores (roceiros), entre os quais dezoito mulheres, sete criadores e 225
domésticos; destes, 163 mulheres; 472 não tinham profissão indicada.12
Os escravos roceiros eram, provavelmente, a maioria entre a população cativa.
Nota-se a presença forte de escravos em estâncias com atividades agrícolas importantes
ao lado da pecuária: um grande estancieiro, falecido em 1856, era proprietário de dezoito
escravos — um número relativamente alto para a região —, possuía milhares de hectares de
116
campo e produzia farinha de mandioca. O seu inventário aponta "urna data de terras lavradias
com mandioca, canaviais, plantações e capoeiras", no valor de 550 mil réis.13 Além disso, a
estância mantinha urna atafona para fabricar farinha de mandioca, produto bastante consumido
na região. Esse estancieiro desenvolvia atividades agrícolas paralelas à pecuária, produzindo
farinha para o pequeno mercado local, utilizando escravos. Outros estancieiros, que
possuíam atafonas para produção de farinha de mandioca, também contavam com um
número relativamente significativo de escravos, o que reforça a idéia da utilização destes nas
atividades agrícolas da estância.
O estancieiro Aristides de Moraes Gomes, em seu livro a respeito das estâncias
serranas — uma espécie de memórias da família do autor - comenta que "os negros cativos
faziam cercas, trabalhavam em olarias, no campo, e nas lavouras"14. O autor lembra ainda
que, quando correu a abolição, somente os negros campeiros ficaram nas estâncias,
faltando então braços para as roças e os demais serviços braçais.15
A presença de escravos nas atividades agrícolas como ocupação principal pode ser
notada nesta observação do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, referindo-se a uma
estância próxima ao povoado de Santa Maria: "...o dono da casa e seus filhos cuidam do
gado e os negros tratam da plantação.16
Num estudo recente sobre o escravo gaúcho, Mario Maestri Filho faz afirmação que
coincide com o exposto anteriormente, referindo-se à presença de cativos nas estâncias, ele
escreveu:
"Se era uma fazenda mista – agropecuária – possivelmente o negro trabalharia na
terra. Ainda que fosse uma estância dedicada à criação, ela geralmente não dispensava
uma pequena exploração agrícola subsidiária. Nela seria ocupado, com prioridade, o
escravo.17
Quanto aos campeiros, estes eram encarregados do pastoreio do gado e das
demais atividades ligadas à criação, as quais exigiam bastantes habilidade e resistência.
Um bom trabalhador de campo deveria ter bastante prática no trabalho e um bom conheci-
mento dos detalhes que cercam a atividade pastoril. Os cativos campeiros eram, portanto,
muito valorizados e considerados os melhores da estância. Aristides de Moraes Gomes
lembra que somente estes ficaram nas fazendas após a abolição, conforme já mencionamos.
Um exemplo da importância desse tipo de escravo nos é dado pelo arrendatário da
Estância da Música, confiscada pelo governo revolucionário farrapo em 1840:
"De novo tenho a rogar eu a estância da Música por 3.450$ réis anuais me
117
reservaram de dita fazenda na comissão de Alegrete quatro escravos tendo ela
unicamente seis campeiros e quatro roceiros, e deram ordem ao comandante de polícia o
capitão Antônio Garcêz de Morais para apartar os quatro escravos reservados sendo estes
dos mais moços e por conseqüência dos campeiros, vindo-me a ficar unicamente os quatro
roceiros e dois campeiros; e V. Exc. não ignora a dificuldade que hoje se encontra em ter
peões nas estâncias e a falta que eles fazem...18
Os escravos campeiros eram "os mais moços" e, então, os mais importantes, por
substituírem os peões, os quais era impossível de encontrar devido à guerra civil da
província. Os inventários confirmam essa tendência; os escravos classificados como
"campeiros" não ultrapassavam os 36 anos de idade, enquanto os roceiros, embora tivessem
entre eles também jovens, avançavam até sessenta anos e mais.
A distinção entre os escravos a partir de suas funções e habilidades individuais fica
explícita nesta recomendação do Conde de Piratini ao capataz:
"Artigo 45 – Dará uma muda de roupa de algodão a cada um dos escravos que lá
estão, advertindo que as três mudas das mais pequenas que vão são para os moleques
Claudino, Evaristo e Moisés, e vão também quatro ponches para serem dados aos
negros Domingos Pernc2.; José Bolieiro, Manuel Aguiar e Mathias Campeiro, sendo o
deste forrado de baeta.19
A recomendação indica ao melhor o melhor, o que está de acordo com a atividade
principal da fazenda: a pecuária. Ao escravo campeiro, portanto, um privilégio de usar o
ponche forrado de breta.
Além dessas duas atividades dos escravos negros – pecuária e agricultura muitos
davam conta dos serviços domésticos; mulheres, geralmente. O Barão do Ibicuhy, em sua
residência na vila da Cruz Alta, mantinha cinco escravos para os serviços da casa, sendo
quatro mulheres, entre 29 e 37 anos, e um menino de treze anos. Nas suas estâncias
possuía mais 29 escravos.20
Afora as atividades agropastoris e domésticas, os escravos do planalto eram
utilizados para outras atividades: José Manoel Lucas Annes, falecido em 1881, empregava
quatro escravos "oleiros" em sua olaria de Cruz Alta conforme consta em seu inventário
post-mortem.21 Outro caso de escravos trabalhando em olarias aparece no inventário de
Cristiano Uflacker, proprietário de uma olaria de fabrico de tijolos, também em Cruz Alta.
Embora não conste nominalmente a profissão de seus escravos, como no caso anterior, esse
proprietário possuía um plantei de onze escravos.22
118
Fica difícil precisar com segurança em que atividades os cativos eram mais
usados. As informações estatísticas são escassas e muito vagas, quando encontradas.
No censo de 1872, a maioria dos escravos aparece classificada como "sem profissão", o
que se deve antes a uma falta de informação do que à falta de profissão propriamente dita.
Mas, de qualquer forma, numa estância pastoril que, além da criação, plantava para
subsistência, os cativos poderiam trabalhar tanto no pastoreio como na agricultura.
Convém lembrar que as atividades de lavrador e campeiro não eram exclusividade dos
escravos; ao lado destes, havia os peões livres.
Outro aspecto difícil de verificar, nas fontes consultadas, é o caráter das roças
cultivadas pelos cativos. Sabe-se que, em todo o Brasil, os escravos tinham tempo livre para
dedicarem-se às suas roças particulares, cujos resultados poderiam ser objeto de livre
utilização, dependendo do acordo estabelecido entre os senhores e os escravos.23 É certo,
no entanto, que grande parte dos cativos locais trabalhavam em lavouras de subsistência.
Para o Rio Grande do Sul, como um todo, temos uma referência nas instruções do Conde de
Piratini para o capataz da Estância da Música – um documento raro entre os estancieiros
gaúchos, ao que tudo indica, pouco afeitos à contabilidade e à regras escritas. No artigo
oitavo das instruções, o conde recomenda ao posteiro e ao escravo que plantem nos
postos da estância sob sua responsabilidade:
"...em cada um dos ditos postos haverá uma manada de éguas mansas para o
serviço necessário; quatro vacas para leite, um escravo para ajudar o pastoreio, e o mais
que possam por conta da Estância, dando-se-lhes para isso o mantimento necessário, além
do que devem plantar!24
A recomendação do conde, no sentido de plantar, está relacionada com a intenção de
poupar a matança de animais para alimentação dos trabalhadores, conforme recomenda
explicitamente em seu artigo n° 11:
"Fará plantar bastante milho, feijão, abóboras e hortaliças e algum trigo, para que
haja de tudo fartura afim de poupar-se as muitas carniações.25
O artigo n° 30, é bastante claro em relação à oportunidade dos escravos em
manter plantações e criar animais domésticos: "Os escravos podem plantar, e criar galinhas,
tendo milho para ás sustentar.26
119
A Transição
A transição do escravismo a outras formas de trabalho, no Brasil, tem sido abordada de
duas formas básicas. Urna vertente teórica é a que trata de explicar a irracionalidade
econômica do escravismo. Desse modo de analisar a escravidão, o seu fim teve êxito quando
setores progressistas da sociedade brasileira – principalmente os fazendeiros paulistas –
aderiam à campanha abolicionista no sentido de fazer avançar as relações capitalistas de
produção, as quais seriam mais lucrativas. Essa postura estaria, segundo os argumentos
desta tese, circunscrita ao fim do tráfico de escravos africanos e ao advento da imigração de
trabalhadores livres.
No Rio Grande do Sul, Fernando Henrique Cardoso, um dos principais
estudiosos do tema, seguindo essa linha historiográfica, apontou a ineficácia das
charqueadas gaúchas escravistas em relação às suas concorrentes platinas, sob
trabalho livre. No mesmo sentido o autor afirmou que a imigração seria uma proposta
que ultrapassava a problemática da falta de braços decorrente do fim do tráfico.
"A atitude pró-imigração, portanto, era engendrada por um conjunto de
motivos que, se incluíam a escassez de escravos disponíveis, não se restringia a
essa questão; abrangendo tanto a vontade consciente de progresso, quanto o que
nela já está implícito, a crítica às condições sociais e econômicas da produção
escravocrata." (Grifo meu)27
E s s a p o s t u r a é c r i t i c a d a p o r u m a n o v a v e r t e n t e historiográfica: Ciro
Flamarion Santana Cardoso demonstra que a suposta irracionalidade da empresa
escravista apregoada por autores como Fernando Henrique Cardoso, para o
caso das charqueadas gaúchas, não tem procedência. Sobre esse caso, argumenta
aquele:
"Em circunstâncias determinadas uma produção levada a cabo com mão-
de-obra escrava pode competir por muito tempo, com êxito, com a produção
similar realizada com assalariados.28
Em apoio a essa afirmativa, o autor lembra uma série de exemplos sobre a
questão da concorrência entre escravismo e trabalho livre – o açúcar cubano
produzido por escravos competiu com o açúcar de beterraba europeu, por exemplo.
E sobre a incapacidade de racionalização da produção escravista também lembra
alguns casos no sentido contrário. A produção de café do Rio de Janeiro, quando do
120
cessamento do tráfico de escravos em 1850, por exemplo, sofreu consideráveis inovações
tecnológicas.29
Jacob Gorender também se alinha a essa visão historiográfica crítica, dando
exemplos da capacidade das empresas escravistas inovar tecnologicamente quando
necessário. Enfatiza, ainda, de modo particular, que a idéia da modernidade dos
fazendeiros paulistas, defendida por vários autores, não tem consistência.30
Não se pretende avançar nessa discussão; aliás, nesse sentido há um bom
trabalho de Vi lma Paraíso Ferreira Almada –Escravismo e Transição: o Espírito
Santo, 1850/1888 – onde essas duas correntes explicativas sobre a transição são
muito bem abordadas, e no qual baseamos este texto.31
Para o nosso propósito neste trabalho, queremos lembrar apenas que a
abolição da escravidão no Rio Grande do Sul e de modo especial no planalto não
foi decorrência de uma suposta irracionalidade empresarial e tampouco a
imigração deve-se à vontade consciente de progresso de alguns i luminados
riograndenses, imbuídos supostamente de espírito capitalista. Conforme
examinamos no capítulo três deste trabalho, a imigração solicitada pela câmara de
Cruz Alta tinha como um dos seus propósitos a comercialização de terras. Quanto ao
trabalho escravo, a oferta de mão-de-obra livre na região permitiu substituir o es-
cravo na década de 1880 sem grandes traumas.
Por outro lado, o fim do escravismo nas estâncias da região não levou a uma
maior racionalidade ou eficiência em função do trabalho livre. A estância serrana,
com o trabalho livre, não sofreu alterações tecnológicas signif icativas em
decorrência das novas relações de trabalho. Aliás, as estâncias no decorrer do pe-
ríodo escravista utilizaram tanto o trabalho escravo como o trabalho livre
concomitantemente. A estância, antes de tudo, é um lati fúndio com baixo índice de
capitalização e pouco afeito a inovações tecnológicas, independentemente da forma como
explora seus trabalhadores.
A questão da abolição da escravatura foi levantada, em nível local, na década de
1870, acompanhando o comportamento da política nacional. Assim, no início dos anos 70
foram fundadas sociedades abolicionistas em Cruz Alta e Passo Fundo. Os defensores da
emancipação dos cativos eram profissionais liberais, intelectuais, comerciantes e políticos
ligados ao partido liberal, que defendia a abolição em seu programa. As sociedades
abolicionistas tiveram uma atuação relativamente apática naquela década, quando a Lei do
121
Ventre Livre esfriou o debate em torno da questão.
Na década de 1880, o problema da escravidão voltou a ser discutido com bastante
vigor; em Cruz Alta, uma nova sociedade engajou-se na campanha abolicionista – o clube
literário Aurora da Serra. Diante da inexorável abolição que se desenhava para um futuro
próximo e diante das medidas oficiais contra a instituição escravista, os estancieiros
libertavam seus cativos mas mantinham-nos sob cláusula de serviços e, dessa forma,
conseguiam ganhar tempo numa batalha na qual a derrota anunciava-se iminente. Era
mais uma alternativa, entre as muitas utilizadas pelos escravocratas, para manter o
trabalho compulsório. Margaret Marchiori Bakos, em sua obra sobre abolição no Rio
Grande do Sul, comenta nesse sentido:
"As libertações, no biênio de 1883-1885 satisfazem os escravocratas, pois respeitam
o direito de propriedade, libertando o escravo, porém mantendo o trabalho servil por
prazos variáveis de um até cinco anos. O liberto retorna ao trabalho compulsório e o senhor, se
tinha alforriado muitos escravos, além da fama de generoso, recebe um título
nobiliárquico ou uma condecoração do Império.32
Nos inventários post-rnortem os libertos são computados entre os bens
semoventes dos estancieiros falecidos sob o título de "serviços dos libertos"; ou seja, no
caso do estancieiro Francisco Modesto Franco, falecido em 1886, o auto de avaliação indica
"os serviços dos libertos: João, de 21 anos, por 4, 3 anos, calculado à base de 8$000 réis
mensais, totalizando 510$000 réis Anita, com 19 anos, pelo mesmo período foi avaliada em
48$000 réis.33
Esse expediente, de arrolar os serviços de libertos entre os bens do inventariado
nos autos de avaliação, era utilizado também para o caso das crianças libertas pela Lei do
Ventre Livre de 1871. Entre os bens de Carolina do Prado Terra, falecida em 1881,
encontramos avaliados sob expressão "os serviços do", o escravo José, de oito anos (liberto
pela lei de 1871, portanto), por 500$000 réis; João, de seis anos, por 500$000 réis; Roberto,
quatro anos, por 400$000 réis, e Maurícia, com menos de um ano, por 100$000 réis.34 Nota-
se que os preços ficam um pouco aquém ao de um escravo jovem, avaliados naquele ano
em torno de 800$000 réis. Tomemos outro inventário, mais explícito nesse sentido. Entre os
escravos de Christiano Uflacker, falecido em 1872, foram avaliados alguns libertos do
seguinte modo: "Salvador, filho de Joana, liberto segundo a lei, de três meses de idade,
avaliarão os serviços por cinqüenta mil réis; os serviços do escravo Veríssimo, filho da
escrava Maria, segundo a lei liberto, avaliarão pela quantia de cinqüenta mil réis."35
Observa-se que os avaliadores citam o liberto como escravo, no caso de Veríssimo: uma
122
sutileza que demonstra o futuro da criança que, embora liberta, por muito tempo estaria
sujeita ao trabalho compulsório, o que aliás, a própria lei de 1871 permitia através de seus
mecanismos. Quanto aos preços, eram muito próximos aos indicados para as crianças
nascidas antes da lei.
Por outro lado, no que se refere à ligação entre fim da escravidão e imigração de
homens livres, houve bastante discussão no Rio Grande do Sul, assim como nas demais
regiões do país. A preocupação de povoar o país com imigrantes brancos, europeus de
preferência, nasceu junto com o Império brasileiro, senão antes; já em 1824, no que se
refere ao sul do Brasil, foi fundada uma colônia de imigrantes alemães, aos quais se
seguiriam tantos outros europeus ao longo do século. No planalto gaúcho, de modo
particular, os imigrantes eram solicitados pelos vereadores cruzaltenses na década de
1860, mas a reivindicação somente seria concretizada em 1890, conforme analisamos nos
capítulos anteriores.
Entretanto, a imigração na região não deve ser entendida simplesmente como uma
alternativa para substituir os escravos africanos, como o era para os cafezais paulistas,
onde faltavam braços, diante do cessamento do tráfico negreiro. No sul, os europeus vieram
para trabalhar de forma autônoma, em pequenas propriedades, produzindo para o mercado
interno, ao contrário dos que chegavam aos cafezais, onde a preocupação era a de
expandir as grandes plantações para exportação.
De forma específica, no planalto não havia charqueadas que dependessem fortemente
de escravos, como em Pelotas, por exemplo. Também não havia necessidade premente de
mudar um sistema de produção atrasado para um moderno, como sugerem os partidários de
uma possível irracionalidade do escravismo no século XIX. Nunca se discutiu a
possibilidade, ou melhor, a necessidade de trabalhadores livres nas estâncias para poder
desenvolvê-las, mesmo porque esses estabelecimentos desde sua formação já contavam
com esse tipo de trabalhador ao lado dos escravos. Ou seja, não havia reivindicações de
imigrantes para trabalhar nas estâncias, a principal un idade produtiva regional.
Os imigrantes eram solicitados para serem agricultores nas áreas de mata virgem,
de forma paralela às estâncias pastoris. E esse pedido das elites locais tinha entre seus
objetivos a venda e a valorização das terras florestais da região em posse de estancieiros
mesmo. Além desse objetivo imediatista, não há dúvidas de que a expansão agrícola da
região traria maior dinamização do mercado regional e, dessa forma, beneficiaria os
comerciantes e o próprio município enquanto tal.
123
No entanto, a migração só poderia se efetivar através de circunstâncias concretas
que a permitissem. No caso, o apoio imigrantista contava com a possibilidade de
comercialização de terras, como de fato ocorreu, e pela expansão da ferrovia até a
região, que permitiu o acesso ao mercado e, portanto, oportunizou a comercialização das
terras com os colonos. Essa mesma tentativa de trazer colonos não foi concretizada
anteriormente, exatamente pelo desinteresse destes em plantar numa região sem con-
dições de escoamento da produção.
O apoio à imigração na região era, portanto, uma postura cujos objetivos partiam
do princípio da necessidade de povoar a região com novos contingentes demográficos, os
quais tivessem possibilidade real de comprar terras, ou de receber apoio oficial para tanto
e, ainda, que tivessem condições de produzir excedentes em curto espaço de tempo através
da exploração agrícola.
A imigração e o fim da escravidão não têm, na região, uma ligação estreita. A questão
da mão-de-obra para as estâncias foi resolvida pela ampliação do uso de trabalhadores
livres que já existiam. Com a imigração e o súbito aumento da população regional
associado à população cabocla, foi possível o surgimento de um mercado regional de mão-
de-obra. Os caboclos, despossuídos de terras, sujeitavam-se a trabalhar como peões nas
estâncias por salários relativamente baixos ou, ainda, como agregados, com a
possibilidade de plantar para subsistência no interior da fazenda.
A pecuária, como se sabe, não era urna atividade que precisa-se de grandes
contingentes de trabalhadores fixos. Dessa forma, não era difícil recrutar nas horas de
maior volume de trabalho, alguns lavradores livres das vizinhanças em troca de alguma
remuneração baixa, inclusive a troco somente de carne.
Por outro lado, a colonização permitiu aliviar a estância da produção de subsistência ao
estabelecer trocas entre os colonos.
Estes forneciam alimentos em troca de animais; ou seja, embora muito frágil, a
expansão da agricultura com os imigrantes permitiu o surgimento de um mercado
agropecuário local.
124
Os PeõesDesde o começo da formação das estâncias do planalto, aparece a figura do peão,
homem que trabalhava ao lado de escravos. Os peões eram os homens livres que
trabalhavam sob salários e dividiam-se em várias categorias, conforme a atividades desem-
penhadas. Os peões campeiros eram geralmente solteiros e viviam nos galpões das
estâncias; recebiam salário fixo, tinham grande habilidade para lidar com o gado e mantinham
certo espírito de independência, embora submetidos ao comando dos estancieiros que os
recrutavam para as batalhas em conflitos civis ou guerras externas. No entanto, esses homens
tinham grande mobilidade: mudavam de emprego por desentendimento com o patrão; por
brigas nos povoados; por acompanharem uma tropeada etc. Os primeiros peões campeiros
do planalto procediam dos campos da fronteira sudoeste do Rio Grande de onde vinham
acompanhando tropas de gado rumo a São Paulo, ou fugindo por motivos particulares, ou
mesmo fugindo das guerras civis e externas que atingiam com mais intensidade aquela
região: a guerra contra o Uruguai na década de 1820; a guerra dos farrapos; a guerra contra
Rosas, em 1851. A função do peão campeiro não raro era desempenhada por algum escravo
habilidoso.
O trabalhador livre serrano encontrava emprego ainda com os tropeiros que
conduziam tropas de gado para as charqueadas de Pelotas ou para as feiras de Sorocaba
em São Paulo. Esse era um emprego instável, pois as tropeadas eram realizadas poucas
vezes no ano. Os carreteiros, que se dedicavam ao transporte de mercadorias em carretas,
também empregavam peões. Na própria estância havia possibilidades de emprego em outras
atividades consideradas menos nobres como o do peão caseiro, que cuidava dos serviços
cotidianos ligados à casa e ao galpão do estabelecimento.
Um tipo de trabalhador dos grandes estabelecimentos era o "peão posteiro",
encarregado de vigiar o gado em pontos estratégicos da estância: os "postos". Esse
trabalhador, na descrição do estancieiro Aristides de Moraes Gomes, era "um peão bom que
constituía família ou caboclo de fora com boa recomendação.36 Esse homem de confiança
cultivava pequenas lavouras; criava alguns animais domésticos; fazia queijo com leite de
vacas mansas que o estancieiro cedia e, conforme sua habilidade, fazia utensílios de uso
cotidiano como laços de couro, cangalhas etc. Dependendo do acordo com o estancieiro,
esse peão recebia salário regular ou, o que era mais comum, sua remuneração era o direito
de fazer sua roça na estância, o que lhe permitia prestar serviços esporádicos sob
pagamento de diárias, receber carne para sua alimentação e, se tivesse filhos, estes
tinham a oportunidade de trabalhar na estância de forma temporária ou permanente.
125
Como domador de potros poderia obter algum cavalo em retribuição.
Uma das principais categorias de trabalhadores rurais era a dos que se dedicavam
às roças. Embora a agricultura das estâncias utilizasse o trabalho escravo, os peões roceiros
formavam um contigente de trabalhadores muito pobres e estreitamente atrelados ao
estancieiro. O estancieiro Aristides de Moraes Gomes em suas memórias sobre as
estâncias serranas nos dá uma boa descrição desses homens:
"Houve outra categoria de peões, também saídos das estâncias. Quando os
estancieiros faziam plantações nas roças das serras, deixavam lá escoivarando roças
para trigo e feijão e cuidando o paiol caboclos geralmente casados e que não dariam bons
campeiros. Lá eles caçavam, melavam, tinham uma vaca para tirar leite, um matungo, o
sustento e o ordenado da estância. Como eram muitos os estancieiros que procediam
assim, foi aumentando o número de roceiros. Na maioria não voltavam para a estância,
preferiam ficar por lá trabalhando por conta própria, empreitando roçadas, tirando
madeira, falquejando ou serrando em estaleiro tabuinhas para cobrir a casa etc...
"Os patrões cediam-lhes uma ou duas quartas de terra para plantarem. Mas isto eles
só faziam depois de terminarem as empreitadas do contrato (...). Aquela gente foi aumentando
formando-se uma espécie de casta, os serranos. Criavam os filhos na miséria (...) quando a
miséria era muita iam na velha estância pedir vaca para tirar leite (...) um matungo para
ir na venda ou uma rêzinha aleijada para carnear. As patroas davam-lhes roupas para as
crianças; queijo, uma lata de marmelada, um pouco de açúcar ou farinha. Eles levavam-
lhes uns favos de mel, de tabuna que era remédio, ou de oropa, ou um bichinho que
pegavam no mato...37
Como se pode observar, o autor-estancieiro conseguiu descrever com muitos
detalhes significativos a situação desse tipo de trabalhador, que formava uma legião de
despossuídos numa região onde havia abundância de terras. É notória a dependência do
caboclo para com o estancieiro, o qual o atrela com favores como a doação de uma vaca,
roupas, carnes, etc. que consistem numa forma de endividamento que, além de sua
natureza econômica, cria uma dívida moral. Afora esses favores alienantes, o caboclo
tinha possibilidade de prestar serviços nas horas de maior demanda do trabalho
pastoril em troca de algum dinheiro ou de produtos.
Para o estancieiro, esses homens formavam uma vasta reserva de mão-de-obra
barata, além de abastecerem a estância de cereais. Também eram esses homens que
formavam os exércitos dos estancieiros para suas batalhas em conflitos civis ou
126
externos:
"Quando iam para uma revolução, era lá na costa da serra que revolucionários e
mais precisamente os capitães provisórios iam reunir a caboclada para organizar seus
esquadrões."38
Os principais conflitos armados nos quais os estancieiros e seus exércitos
participaram foram: a guerra contra o Paraguai –1865 a 1870; a revolução de 1893-95; a
revolução de 1923. Afora essas guerras que envolveram grande número de homens, houve
vários conflitos isolados entre os próprios coronéis locais, que mantinham em atividade as
forças militares particulares recrutadas entre a população pobre.
Até o final do século, a hegemonia dos estancieiros era indiscutível. A pecuária e os
pecuaristas detinham um inquestionável poder sobre a população local: peões de estância,
extrativistas de erva-mate ou agricultores independentes, todos estavam sujeitos às
determinações dos coronéis. Esse atrelamento é compreensível se observamos que,
apesar da relativa abundância de terras virgens, os lavradores tinham poucas condições
de realizar sua produção agrícola no mercado. Os poucos núcleos urbanos da imensa
região rural não davam para sustentar um mercado agrícola significativo. A exportação era
inviável pelas precárias condições de transporte.
A agricultura, nessa situação, não oferecia condições para que uma família de
lavradores pudesse manter-se em nível de vida razoável. Para o ingresso de recursos para
consumo de produtos não-agrícolas – instrumentos de trabalho; vestimenta... –, dependia
do extrativismo da erva-mate ou das estâncias de gado, ou seja, todos os caminhos
levavam ao coronel-estancieiro, caminhos que começaram a ser construídos juntamente com a
instalação das primeiras estâncias.
Os Trabalhadores dos Ervais
A atividade extrativista baseou-se fundamentalmente no trabalhador l ivre com
assalariamento temporário sujeito ao endividamento. Esse trabalhador temporário vivia
nos meses de entressafra como camponês típico e desse modo não dependia exclusivamente
do extrativismo do mate para sua alimentação.
As evidências do assalariamento dos trabalhadores dos ervais são muitas:
Temístocles Linhares, em sua História Econômica do Mate, comenta que:
127
"Em meados do século passado, no Rio Grande do Sul, havia muita gente
trabalhando com mate. Só nas Missões brasileiras, no ano de 1856, o número de pessoas
chegam à 6000, ganhando em média dois patacões por dia, ou seja, um salário de
4$000... 39
Um relatório oficial de 1860 informa que alguns ervateiros paraguaios pagavam aos
trabalhadores "dois e meio patacões por dia e este pouco trabalhavam levando muitos
dias sem fazerem nada no mato...”40 O preço, considerado elevado, pelo comentário e
a referência ao pouco trabalho, foi usado como argumento para acusar os paraguaios
de espiões que se acobertavam no extrativismo.
Nessa mesma década, a de 1860, um fiscal do mate autuou quatro peões de um
ervateiro por colher erva-mate sem devida licença:
"...declarando-se os mesmos multados que a erva assim fabricada pertencia a
Pedro Paggi, de quem são peões assalariados, e nesse ato comparecendo o dito Paggi,
declarou pertencer-lhe a dita erva assim como os peões encontrados em seu carijo..."41
Para os lavradores pobres, o trabalho nos ervais representava uma das poucas
oportunidades de adquirir algum dinheiro para compra de instrumentos de trabalho e bens de
consumo. As compras, provavelmente, eram realizadas na casa comercial do próprio
negociante do mate e, dessa forma, os peões ficavam atrelados aos negociantes por um
mecanismo de endividamento.
No inventário do francês Luiz Perié, falecido em 1851, dono de um engenho no erval
do Santo Cristo, estão anotados cerca de uma centena de nomes de devedores. As
dívidas estão anotadas em produto. Joaquim Manoel da Silva, por exemplo, devia-lhe
"40 arrobas e 16 libras de erva-mate...". Outros devedores, de Buenos Aires, Montevidéu
e São Borja, deviam-lhe em dinheiro. Estes eram os compradores do mercado platino.42
O mate, nessa época, chegou a ser utilizado como padrão de referência para contas
nas áreas ervateiras. Um carpinteiro cobrava em produto sua dívida referente ao caixão de
defunto que fizera para o falecido Luiz Perié, referido anteriormente: "João Cazes, mestre
carpinteiro... possui entre os bens do finado Perié a quantia de vinte e quatro arrobas de
erva-mate ensurrada, importe do caixão que lhe fez para sepultar o falecido."43
Em outros inventários, como no de Antônio Pereira Borges, estancieiro e proprietário
de um engenho de erva-mate em Campo Novo, o número de devedores também é significativo.
Nesse inventário, de 1864, as dívidas estão anotadas em dinheiro.44
128
Durante o Império, as câmaras municipais concediam licenças para a colheita da
erva-mate sob o pagamento de certa quantia em dinheiro — 2$000 réis em 1874. O
requerente, de posse da licença, contratava outros lavradores para ajudá-lo em troca de pa-
gamento de salários, ou em regime de parceria. O código de Posturas de Palmeira das
Missões, nesse sentido, exigia: "O requerente é obrigado a declarar no ato de tirar a licença
o número de trabalhadores de que se compõe a comitiva.45
Esses requerentes portadores de licença eram uma espécie de intermediários
entre o dono do engenho e os trabalhadores, sendo eles mesmos coletores de mate,
pois trabalhavam diretamente com seus parceiros ou empregados no extrativismo.
Nos ervais privados, o extrativismo seguia o mesmo sistema: o proprietário
pagava salários para a coleta ou arrendava o erval para algum ervateiro, que se
encarregava de agenciar os trabalhadores necessários.
Mais tarde, com o advento da República, os ervais públicos passaram a ser
controlados pelo governo estadual. Este os arrendava a empresários, que contratavam
trabalhadores da mesma forma. Nessa época, o número de peões disponíveis no mercado de
trabalho já era bastante numeroso devido ao aumento populacional e à privatização de grande
parte dos ervais públicos.
No início do século XX, os jornais anunciavam em suas páginas a oferta de
empregos a salários de 2$000 réis e 2$500 réis por dia.46
Além do extrativismo, os coletores de erva-mate eram agricultores independentes. A
coleta do mate é uma atividade de inverno, permitindo que o lavrador tivesse
disponibilidade de tempo para as plantações de verão, as principais. Essa atividade agrí-
cola era executada sob a forma de mutirão, expediente tradicional em todo o Brasil rural.
Affonso Evaristo de Castro, escritor e jornalista de Cruz Alta, descreveu o preparo de uma
roça em 1887:
"...o que quer fazer uma roça e derrubada de matos convida a todos seus vizinhos e
amigos para um putchirão, em dia determinado para cujo efeito, pelo hábito transmitido a eles
pelos guaranis, todos se prestam voluntariamente no dia aprazado e se apresentam
todos munidos de suas foices de roça e machados, e no dia seguinte de madrugada
começam o trabalho com afam, trabalhando todos em comum cada um no seu eito,
durante todo o dia, cada qual empenhando-se em distinguir-se dos outros no trabalho; ao
por do sol concluem com o putchirão e se dirigem ao paiol, onde os espera uma lauta ceia com
bebidas alcoólicas e um carramanchão ornado de muitas moças, para o fandango,
129
acompanhado de canto em dueto de melodias melancólicas usadas pelos sertanejos.47
O mutirão ou "putchirão" utilizado pelos lavradores – extrativistas é um
expediente largamente utilizado pelos lavradores de todo o Brasil. Desse modo, um
agricultor individual resolve o problema da execução de trabalhos que exigem muita mão-de-
obra – como uma derrubada ou uma colheita – trocando serviços com seus vizinhos. O
beneficiado do mutirão, naturalmente, ajuda outro vizinho nas mesmas condições.48
Os Colonos
Os colonos que se instalaram nas colônias oficiais e particulares praticavam uma
agricultura fundada no trabalho familiar. Da mesma forma que os trabalhadores caboclos, o
mutirão era largamente utilizado por esses novos agricultores da região.
No entanto, os colonos estavam sujeitos a novas formas de relações sociais, diversas
daquelas a que estavam sujeitos os agricultores caboclos. Novas formas de organização do
sistema produtivo iniciaram-se com a expansão agrícola do final do século. Enquanto o
lavrador caboclo estava estreitamente ligado ao estancieiro ou comerciante de mate – os
quais poderiam ser as mesmas pessoas – o colono imigrante foi submetido ao controle eco-
nômico dos comerciantes de produto agrícolas que tinham interesses distintos dos
interesses dos estancieiros.
O colono escapava ao tradicional controle dos estancieiros e chefes políticos locais,
que impunham ao lavrador caboclo urna sólida dominação política e econômica. Essa situação
é nítida quando examinamos a arregimentação militar que arrastava os caboclos para as
guerras entre as oligarquias gaúchas que assolavam periodicamente o Rio Grande do Sul.
Os colonos, nesses conflitos, mantinham neutralidade e, não raro, a defendiam com armas
na mão. Por outro lado, não interessava aos comerciantes locais e mesmo aos administradores
oficiais, ou particulares, da colônia a desarticulação da produção agrícola, sobre a qual
estavam depositados os interesses econômicos do processo de "colonização" da região. Uma
desorganização na produção agrícola regional poderia comprometer seriamente o próprio
pagamento dos lotes rurais vendidos aos agricultores imigrantes, além de infligir prejuízos
ao comércio de produtos agrícolas.
Na revolução de 1923 – urna guerra civil entre as oligarquias gaúchas – a colônia
de Neu-Württemberg ilustra muito bem a postura dos colonos diante desse tipo de conflito:
"Em íntima colaboração com as autoridades civis e militares, organizou-se
130
imediatamente o Selbstschutz (serviço de defesa própria) que em breve atingiu oitocentos e
noventa e três homens em força ativa, havendo ainda uma reserva de 110 homens mais
velhos. Contava portanto ao todo 1000 homens. De 26 de agosto de 1923 até 23 de
dezembro do mesmo ano vigiavam-se diariamente 20 estradas de acesso ao interior da
colônia. Cavavam-se trincheiras e ergueram-se obstáculos junto às pontes; autos e
caminhões faziam o transporte rápido das tropas, estafetas e tiros de rojões alarmavam a
população e grupos de cavaleiros formavam patrulhas ligeiras. Colonos novos e antigos,
brasileiros de origem germânica e de origem lusa e estrangeiros participaram com igual
entusiasmo na nobre cruzada...49
A nova organização econômica local rompeu com a estrutura social em que os
lavradores caboclos estavam fortemente atrelados aos coronéis-estancieiros. Com a expansão
da agricultura e a importância do comércio de produtos coloniais, tendeu a impor-se um
novo padrão de relações sociais, no qual a exploração do trabalho do agricultor se fazia
através do comércio. Um padre polonês que trabalhou na colônia Ijuí escrevia a esse
respeito, em 1898:
"Pode-se afirmar abertamente que o colono nos seus primeiros três anos
trabalhava exclusivamente para o negociante e até hoje é obrigado a carrear os seus
míseros vinténs para os bolsos de outros europeus que nos são absolutamente estranhos
pela nacionalidade e idioma. Além disso, estes gatunos zombam dos poloneses,
arrancando-lhes antecipadamente todo o dinheiro possível, fixando os preços dos
produtos agrícolas e não lhes pagando em espécie, deixando ao colono apenas a
seguinte alternativa, receber qualquer coisa pelos seus produtos; ou deixá-los
simplesmente em troca de outras mercadorias.50
A opinião do padre Antônio Cuber é dada com muito rigor. Refere-se aos
comerciantes alemães com os quais o pároco não tinha nenhuma simpatia; uma antipatia
vinda da Europa e reforçada, no caso da colônia de Ijuí, pelos motivos aludidos pelo religio-
so. Mas, apesar da paixão no discurso do padre polonês, é certo que havia a exploração
do comércio, independentemente da origem étnica dos comerciantes.
No mesmo sentido, Leo Waibel é enfático ao se referir ao papel do comerciante
nas colônias: "O seu contato principal (o colono) é com o vendista; o vendeiro da
vizinhança; que enriquece enquanto os laboriosos colonos vegetam numa existência mi-
serável.51
A biografia de um grande comerciante e chefe político de Ijuí nos traz muitas e
131
preciosas informações sobre o papel das casas de comércio. Antônio Soares de Barros,
o coronel Dico, instalou-se na colônia de Ijuí em 1890, mesmo ano em que foi fundada. Dico
começou com uma pequena venda, em sociedade com um irmão residente em Cruz Alta, o
qual se encarregava dos negócios naquela praça.
Num trecho da obra, o biógrafo mostra com muita clareza o papel do comerciante na
dinâmica da produção agrícola regional:
"...ele não é exclusivamente o vendedor de mercadorias ou o comprador e
revendedor de gêneros coloniais. Ele é mais que isso, é o financiador das safras futuras. É
ele que provê o colono de gêneros alimentícios, de roupas, de remédios se necessário,
de ferramentas indispensáveis ao seu trabalho (...) quando a messe é farta, lucra o
negociante, o agricultor; e consumidor, e quando falha a colheita, por geada prematura ou
tardia, por chuva demais, ou seca, por gafanhoto, por praga ou doença do colono ou de
sua família, que acontece ao comerciante? Têm ele de "surtir" novamente o colono com
gêneros de primeira necessidade, financiar-lhe nova safra, adiantando-lhe até dinheiro...52
O biógrafo foi muito claro ao definir o papel do comerciante, embora faça a apologia
desse papel. É evidente a condição monopsônica da casa comercial que nessa condição
ditava os preços agrícolas como transparece na queixa do padre polonês. Ao colher a
safra, o agricultor já estava comprometido com o comerciante e obrigado a entregar-lhe a
produção nas condições impostas, para pagar-lhe o adiantamento dado em forma de
mercadorias. No caso de um desastre agrícola, o colono ficava sujeito por vários anos aos
empréstimos da casa comercial.
Tem procedência, também, a queixa do padre Cuber quanto ao pagamento das
safras. O agricultor deixava seu crédito em conta corrente na casa comercial, beneficiando
novamente o comerciante, que utilizava o dinheiro do colono.
Conclusão
A presença de escravos no planalto foi significativa, principalmente se considerarmos
que fixavam-se em estâncias pastoris, as quais demandavam relativamente pouco trabalho
em comparação com as plantations. A sua importância relativa decrescia à medida que
aumentava a oferta de mão-de-obra livre. Assim, na década de 1880, quando a instituição
escravista vivia seus últimos momentos, os estancieiros não tiveram maiores dificuldades
em substituir seus cativos por trabalhadores livres. Aliás, trabalhadores livres já eram
132
utilizados concomitantemente com os escravos.
A imigração européia, que se iniciou justamente quando expirava a escravidão,
não tem relação direta com esse evento. O imigrante em nenhum momento substitui o
escravo no trabalho pastoril, e sim, dedicou-se à agricultura em pequenas propriedades,
numa atividade paralela à pecuária tradicional. Indiretamente, a imigração dos colonos
contribuiu para acelerar a ocupação das terras dos posseiros nacionais e, em
conseqüência, aumentar a oferta de trabalhadores livres para as estâncias.
Nessas condições, a transição do escravismo para o trabalho livre não significou
uma ruptura drástica na organização da produção pecuária. Tampouco, implicou inovações
tecnológicas ou uma racionalização econômica superior, como se poderia supor: a
estância continuou operando com pouco investimento de capital, mantendo certa
independência de aquisições externas através do aproveitamento dos recursos naturais e da
exploração de trabalhadores, quer fossem agregados ou peões assalariados.
Os colonos imigrantes que se estabeleceram como agricultores em pequenas
propriedades constituíram-se numa nova classe na estrutura sócio-política da região. Os
colonos consolidaram-se como classe desatrelada do tradicional coronelismo, o qual,
entretanto, continuou aliciando lavradores nacionais pobres para o trabalho pastoril e
para a formação de milícias particulares. Com esse controle militar e político, os
coronéis-estancieiros mantiveram-se no poder por muitos anos, apesar da expansão
da agricultura.
Notas
1 Um dos suportes básicos do argumento da suposta boa-vida do escravo gaúcho está neste
trecho do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, que percorreu o Rio Grande do Sul na
década de 1820:
"Tive já oportunidade de referir ao fato de serem vendidos aqui os negros imprestáveis dos
habitantes do Rio de Janeiro; quando querem intimidar um negro ameaçam-no de enviá-lo para
o Rio Grande, entretanto, não há, em todo o Brasil, lugar onde os escravos sejam mais felizes
que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos, mantém-se próximos
deles e tratam-os com menos desprezo. O escravo come carne à vontade, não é mal vestido,
não anda a pé e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos cousa mais sadia que
fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais que Os cercam uma superioridade consoladora de
sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos."
133
Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul - 1820/1821. Belo Horizonte e
São Paulo : Itatiaia= USP, 1974. p. 47.
2 Ver: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. 2.ed.
Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1977.
No capítulo II, o autor comenta detalhadamente essa bibliografia tradicional, analisando o
caráter ideológico que a reveste. Assim, achamos desnecessário repetir aqui uma análise crítica
dessa bibliografia, o que, por outro lado, não é o propósito deste texto. No entanto, a crítica à
historiografia tradicional é importante, pois mesmo Jean Roche, um autor não engajado na
apologia aos estancieiros gaúchos, omite os escravos negros na sua volumosa obra sobre a
colonização alemã. Referindo-se à formação social do Rio Grande do Sul, o autor afirma:
"...haviam, portanto, duas classes sociais, a dos estancieiros e a dos peões" (Roche, Jean. Op.
Cit. P. 34).
3 Cf. MONTI, Verônica A. O abolicionismo: sua hora decisiva no RS - 1884. Porto Alegre :
Martins Livreiro, 1985. P.165.
4 Cf. Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Março 48. N° 1912.
5 Cf. HORMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850 -descrição da província do Rio
Grande do Sul no Brasil meridional. Porto Alegre : D. C Luzzatto e EduniSul, 1986. P. 78. (Obra
publicada pela primeira vez em 1854, na Alemanha)
6 Cf. Inventário post-mortem de Joaquim da Cruz Moreira. Cartório de Órfãos e Ausentes de
Cruz Alta, 1866. APRS. Março 3. N° 95.
7 Ver comentário crítico nesse sentido em CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou
camponês. São Paulo : Brasiliense, 1987. PP. 14-29.
8 Ver, por exemplo, o excelente trabalho de KÁTIA DE QUEIRÓS MATTOSO. Ser escravo no
Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1982.
9 Cf. Relatório do presidente da província do RS, Joaquim Antão Fernandes Leão. Porto Alegre :
Tipografia do Correio do Sul, Novembro de 1859.
10 Sobre o tráfico interno de escravos, há um importante trabalho de CONRAD, Robert Edgar.
Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1985. PP. 187-207.
11 Sobre a participação da população local na guerra contra o Paraguai, ver ROCHA, Prudêncio.
Op. Cit. PP. 74-83. (O autor transcreve naquelas páginas alguns documentos relativos ao
134
recrutamento e à formação de pessoal e formação de batalhões de combatentes.).
12 Recenseamento geral do Brasil - 1872: IBGE. Rio de Janeiro - Biblioteca do IBGE - Rio.
(Microfilme 340/81 - BICEN 003-81)
13 Cf. Inventário do tenente coronel Joaquim Thomaz da Silva Prado. Cartório de Órfãos e
Ausentes de Cruz Alta, 1856. APRS. Março 3. N° 67.
14 Cf. GOMES, Aristides de Moraes. Fundação e evolução das estâncias serranas. Cruz Alta : A.
Dal Forno Editor, 1966, p. 247. (Essa obra é uma espécie de memória da família do estancieiro
que se estabeleceu na região no início do século XIX).
15 Idem, p. 133.
16 Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste, Op Cit., p. 179
17 Cf. MAESTRI F°, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre e Caxias do Sul :
EST/UCS, 1984. P. 50.
18 As Instruções do Conde de Piratini ao Capataz da Estância da Música foram escolhidas e
comentadas por CESÁR, Guilhermino, O Conde de Piratini e a Estância da Música. Porto
Alegre e Caxias do Sul, EST/UCS, 1978. P. 66.
19 Idem, p. 46.
20 Cf. Inventário post-rnortein do Barão do Ibicuhy (Francisco de Paula e Silva). Cartório de
Órfãos e Ausentes de Cruz Alta, 1879. APRS. Maço 9. N° 245.
21 Cf. Inventário post-mortem de José Manoel Luccas. Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz
Alta. 1881. APRS. Março 10. N° 269.
22 Cf. Inventário post-mortem de Christiano Uflaker. Idem. Maço 6. N° 159.
23 Ver o recente estudo de. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou camponês?
São Paulo :. Brasiliense, 1987.
24 Em, CESÁR, Guilhermino. Op. Cit., p. 41.
25 Idem, p. 40.
26 Idem, p. 43.
27 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. Op. Cit., p. 194.
135
28 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A Afro-América: a escravidão no Novo Mundo. São
Paulo : Brasiliense, p. 85.
29 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis :
Vozes, 1979. P. 164.
30 Cf. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo • Ática, 1978. PP. 579580.
31 Cf. ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. RS: escravismo e transição - o Espírito Santo -
1850-1888. Rio de Janeiro : GRAAL, 1984. (Ver capítulo 1).
32 Cf. BAKOS, Margaret Marchiori Escravismo e abolição. Porto Alegre : Mercado Aberto,
1982. P. 39.
33 Cf. Inventário post-mortern do major Francisco Modesto Franco, 1886. Cartório de Órgãos e
Ausentes de Cruz Alta. APRS. Maço 9, N° 3.
34 Cf. Inventário post-rnortem de Carolina do Prado Terra, I 8 8 1 . Cartório da Provedoria de
Cruz Alta. APRS. Maço I . 1\1° 18.
35 Cf. Inventário post-mortem de Christiano Uflacker. Cartório de Órgãos e Ausentes de Cruz
Alta. Maço 6. N° 159. APRS.
36 Cf. GOMES, Aristides de Moraes. Op. Cit. P. 56.
37 Idem, pp. 249/250.
38 Idem, p. 250.
39 Cf. LINHARES, Temístocles. História econômica do mate. Rio de Janeiro : José Olympio,
1965. P. 105.
40 Cf. Cartório de José Maria Pereira Campos, Cruz Alta. 18 de setembro de 1860. AHRS.
Cód. 285.
41Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta, processo ri° 1016. Março 31. AHRS.
42 Cf. Inventário de Luiz Perié. Cartório de Órgãos e Ausentes de Cruz Alta. APRS. Maço n° 2,
n° 179. 1851.
43 Idem.
44 Cf. Inventário de Antônio Pereira Borges. Cartório Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Maço
136
1, n° 42.
45 Cf. Código de postura do município de Palmeira. Artigo 42 § 2° AHRS. Cx. 110.
46 Cf. Correio Serrano. 4 de Junho de 1918.
47 Cf. CASTRO, Evaristo Affonso. Notícia descritiva da região missioneira. Cruz Alta :
Tipografia do Comercial, 1887. P. 278.
48 Um dos principais estudos sobre o mutirão brasileiro é o de CÂNDIDO, Antônio. Os
parceiros do Rio Bonito. São Paulo : Duas Cidades, 1977.
49 Cf. FAUSEL, Erich. De Elsenhau a Panambi. In: Cinqüentenário de Panambi. S/ Ed., 1949.
P. 35.
50 Cf. CUBER, Antônio. Nas margens do Uruguai. Ijuí : Museu Antropológico Diretor
Pestana, 1979. P. 16. (Tradução do original em polonês publicado no Kalendarz Polski,
Porto Alegre, 1898.
51 Cf. WAIBEL, Leo. Op. Cit. P. 247.
52 Cf. 60 anos dentro de uma empresa: 1890-1950, casa Dico. Porto Alegre : Globo, 1951. P.
137
Conclusão Final
Para concluir faremos algumas observações de caráter geral sobre o trabalho, visto
que já elaboramos conclusões específicas em cada capítulo.
Um dos propósitos deste estudo é desvendar alguns aspectos da história regional
do Rio Grande do Sul que permanecem obscuros na historiografia local. A região do
planalto, a serra, é vista como atrasada e subpovoada ao longo do século XIX e essa imagem
baseia-se fundamentalmente nas opiniões dos tradicionais viajantes daquele século, os
quais, aliás, deram pouca atenção a ela. Nesse particular, a escolha de novas fontes foi
decisiva para conseguirmos construir uma imagem renovada do planalto no século XIX.
Essas fontes foram sobretudo os inventários post-mortem e as correspondências das câmaras
municipais.
Com base na mencionada documentação, confirmamos, de um modo geral, as
hipóteses que havíamos levantado no projeto da pesquisa. Conseguimos ricos detalhes
sobre a formação do latifúndio pastoril, bem como acerca do processo de apropriação da terra
e da produção agropecuária. Quanto ao processo de transição, também foi iluminado por
uma boa documentação, permitindo-nos observar as especificidades da região no que se
refere ao tema. Os senhores de escravo locais conseguiram, através de diversos
mecanismos, formar uma oferta de mão-de-obra livre para substituir seus cativos por
lavradores nacionais. Nesse sentido, a imigração que ocorreu após 1890 não teve relação
direta com o emancipacionismo.
Um dos pontos em que seria necessário avançar mais é o que se refere ao
caráter da agricultura dos escravos no interior das estâncias. As fontes dão conta que os
cativos eram responsáveis pela subsistência dos estabelecimentos, mas são pobres em
relação à existência da "brecha camponesa". Os dados disponíveis indicam, no entanto,
ser provável o caráter camponês da lavoura escrava. Vimos que isso fica claro nas
138
recomendações do Conde de Piratini, por exemplo. Seria útil, no futuro, uma nova busca
de fontes e dados para enriquecer esse aspecto de nossa problemática.
Por fim, ficou evidente que as bases da atual estrutura agrária da região foram
lançadas no início do século XIX quando começou o processo de ocupação e
apropriação da terra. E essas bases são, atualmente, fator incidente na situação de uma
população rural pobre que luta pela modificação da distribuição das terras locais, onde
antigos estancieiros mantêm seus latifúndios.
139
Referências Bibliográficase Documentais
1. Fontes primárias
1.1. Manuscritas
1 - Abaixo assinado ao Imperador D. Pedro II . 24 de maio de 1879. Santo Antonio da
Palmeira. AHRS. Lata 124.Maço 97.
2 - Correspondência da Justiça de Santo Antonio da Palmeira. AHRS. Lata 124.
3 - Correspondências das câmaras municipais de Cruz Alta, Palmeira das Missões e Passo
fundo . 1835/1889. AHRS
4 - Inventários Post-mortem . Cartórios dos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões e
Passo fundo . 1835/1921. AHRS
5 - Livro do registro paroquial de terras da paróquia do divino Espírito Santo da Cruz Alta.
1855/56. APRS.
6 - Processos-crime dos cartórios do civil e crime de Cruz Alta,
Santo Ângelo e Palmeira das Missões. APRS. 1850-1900
7 - Relatório do diretor geral dos índios, José Maria Pereira de Campos para o
presidente da província do RS. 13 de julho de 1860. AHRS. Cód. 285.
8 - Relatório de José Joaquim de Andrade Neves, diretor geral dos índios ao
ministro do império. Rio Pardo, abril de 1854. Biblioteca nacional. I 32.14.14
9 - Relatório de José Maria Pereira de Campos, chefe da comissão para as colônias
do Alto Uruguai. Cruz Alta. 18 de setembro de 1860. AHRS. Códice 285.
10 - Relatório de Lindolpho A. Rodrigues da Silva. 30 de junho de 1913. AHRS. códice
219.
140
11 - Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Ten.
Cel. Francisco José de Souza soares Andréa, na abertura da assembléia provincial
no dia 1 de junho de 1843. (Biblioteca Nacional)
1.2. Impressas
1 - Repartição de Estatística do Estado do RGS. Trabalho executado para a Exposição
Nacional de Pecuária do Rio de Janeiro. Porto Alegre : Globo, 1917. (Biblioteca Pública de
Porto Alegre).
2 - CAMARGO, Antônio Eleutherio de. Quadro estatístico da província de São Pedro do
Rio Grande do Sul - 1868. Porto Alegre : Tipografia do Jornal do Comércio, 1868.
(Biblioteca Pública de Porto Alegre).
3 - CASTRO, Evaristo Affonso de. Notícia descritiva da região missioneira. Cruz Alta :
Tipografia do Comercial. 1887.
4 - Relatório do presidente da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, João Lins Vieira
Cansansão de Sinimbu, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 2 de outubro de
1854. Porto Alegre : Tipografia do Mercantil. 1854.
5 - Relatório do vice-presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Luis Alves
Leite de Oliveira Bello, na abertura da Assembléia Provincial, em 1° de outubro de 1852. Porto
Alegre : Tipografia do Mercantil, 1852.
6 - Relatório do presidente da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, João Lins Vieira
Cansansão de Sinimbu, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 6 de outubro de
1853. Porto Alegre : Tipografia do Mercantil. 1853.
7 - Relatório com que abriu a primeira sessão ordinária da segunda legislatura da província de
São Pedro do Rio Grande do Sul, no dia 1° de março de 1846, o exm° sr. Conde de Caxias. Porto
Alegre : Tipografia I.J. Lopes, 1846.
8 - Relatório dos negócios das obras públicas, por João José Pereira Parobé. Porto
Alegre : Museu da Assembléia Legislativa (Relatórios de 1895 até 1902).
1.3. Jornais1 - Die Serra-Post, Cruz Alta, 1911.
2 - Correio Serrano, Ijuí, 1917-1920
3 - Aurora da Serra, Cruz Alta, 1884-1886.
141
2. Fontes Secundárias
1 - ABREU, Florêncio. Retrospecto econômico e financeiro do estado do Rio Grande
do Sul. 1822-1922. Porto Alegre : Revista do Arquivo Público do RS, dezembro, 1922.
2 - ALMADA, Vilma Paraíso Pereira de. Escravismo e transição: o Espírito Santo
(1850/1888). Rio de Janeiro : GRAAL, 1984.
3 - ANTUNES, Paulo Bessa. A propriedade rural do Brasil. Rio de Janeiro : OAB-RJ, 1985.
4 - BACK, Leon. A imigração judaica. In: Enciclopédia riograndense. Canoas :
Regional, 1958. V.5.
5 - BAKOS, Margarete Marchiori. RS: Escravismo e abolição. Porto Alegre : Mercado
Aberto, 1982.
6 -BERNARDES, Nilo. Bases geográf icas do povoamento do
Estado do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro : IBGE. Boletim
Geográfico n° 171, novembro-dezembro, 1962, e n° 172, ja-
neiro-fevereiro, 1963.
7 -BINDÉ, Wilmar Campos. Apontamentos para a história de Campo Novo. Santo Ângelo,
s/ed., 1985.
8 -BLOCK, Marc. Ur historia rural francesa. Barcelona : Crítica, 1978.
9 -BOSERUP, Ester. Evolução agrária e pressão demográfica. São Paulo : Hucitec e Polis,
1987.
10 - CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. 2.ed. São Paulo : Duas Cidades,
1982.
11 - CANO, Wilsorn. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo : T. A .
Queiroz, 1983.
12 - CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou camponês? O proto-
campesinato negro nas Américas. São Paulo : Brasiliense, 1987.
13 - ---------- . Agricultura, escravidão e capital ismo. Petrópolis : Vozes, 1979.
14 - CARDOSO, Ciro Flamarion Santana, BRIGNOLI, Hector Perez. Os métodos da
história. Rio de Janeiro : GRAAL, 1979
15 - ______ . A Afro-América: a escravidão no Novo Mundo. São Paulo : Brasiliense,
1982.
142
16- CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2.ed.
Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1977.
17 - CASA, Dico. 60 anos dentro de uma empresa. Porto Alegre : Globo, 1951.
18 - CÉSAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música. Porto Alegre e Caxias
do Sul : EST e UCS, 1978.
19 - ______ . História do Rio Grande do Sul. São Paulo : Brasil, 1981.
20 - CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a
administração pública do Brasil. Porto Alegre : Cia. União de Seguros Gerais, Coleção
ERNS. 1978 (Edição Fac-Simile da Publicação da Tipografia Nacional, Rio de
Janeiro, 1923).
21 - CIRNE LIMA, Ruy. Pequena história territorial do Brasil. Porto Alegre : Sulina, 1954.
22 - CLAUSS, Romualdo. Evolução histórico-geográfica de Tucunduva. Prefeitura
Municipal de Tucunduva, 1982.
23 - COLETÂNEA da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre :
Secretaria da Agricultura, 1961.
24 - CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo
: Brasiliense, 1985.
25 - CUBER, Antônio. Nas rrzargens do Uruguai. Ijuí, Museu Antropológico Diretor Pestana,
1979.
26 - CUNHA, Ernesto Antônio Lassance. Rio Grande do Sul: contribuição para o estudo
de suas condições econômicas. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1908.
27 - DACANAL, José, GONZAGA, Sergius (Org.). RS: imigração e colonização. Porto
Alegre : Mercado Aberto, 1979.
28 - ____ . RS: economia e política. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1979.
29 - FREYS, Nicolau. Notícia descritiva da província de São Pedro do Sul. Porto Alegre :
Globo/IEL, 1961.
30 - FAULHABERSTIFTUNG_ Neu-Württernberg: eine siedlung deutscher in Rio Grande do
Sul –Brasilien, Stuttgart : Ausland und Heimat Verlag, 1933.
31 - FAUSEL, Erich. De Elsenau e Panambi : desenvolvimento da colônia Neu-
Württemberg, fundada pelo dr. Hermann Meyer. In: Cinqüentenário de Panambi. Ijuí,
s/d., 1949.
143
32 - FELIZARDO, Infla. Netto. Evolução administrativa do estado do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre : Instituto Gaúcho de Reforma Agrária, 1918.
33 - FLORESCANO, Enrique. Haciendas, lat i fúndios y plantaciones en America
Latina. 2.ed. México : Siglo XXI, 1978.
34 - FOWERAKER, Joe. A luta pela terra. Rio de Janeiro : Zahar, 1982.
35 - FRAGOSO, João Luiz R. e t a l l i . Aspectos teór ico -metodológicos da
pesquisa em história agrária. Rio de Janeiro : UFRRJ 1983 (Mimeografado).
36 - FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 2.ed.
São Paulo : Ática, 1976.
37 - DE PROVÍNCIA de São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: censos do RS –
1803-1950. Porto Alegre, Fundação de Economia e Estatística, 1981.
38 - GAY, João Pedro. Invasão paraguaia. Porto Alegre e Caxias do Sul : EST, IGL,
UCS, 1980 (primeira publicação data de 1867, pela Typographia Imperial, Rio de Janeiro).
39 - GOMES, Aristides de Moraes. Fundação e evolução das estâncias serranas. Cruz
Alta : A. Dal Forno Editor, 1966.
40 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo : Ática, 1978.
41 - GOULART, José Alipio. Tropas e tropeiros na formação do Brasil. Rio de Janeiro :
Conquista, 1961.
42 - HOETINK, Harry. Slavery and race relations in the Americas. New York : Harper
& Row, 1973.
43 - HORMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul em 1850: descrição da província do
Rio Grande do Sul no Brasil meridional. Porto Alegre : D. C. Luzzatto e Edunisul.
Tradução de Heinrich A. W. Bunse, 1986.
44 - HUTTER, Lucy Maffei e NOGUEIRA, Arlinda Rocha. A colonização em São
Pedro do Rio Grande do Sul durante o império (1824-1889). Porto Alegre :
Guaruja/DAC/SEC, 1975.
45 - ILLA FONT, Juarez Miguel. Serra do Erechim: tempos heróicos. Erechim : Gráfica
Carraro, 1983.
46 - ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul — 183234. Porto Alegre : Martins
Livreiro, 1983.
47 - KLIEMANN, Luiza Schmitz. RS: terra e poder: história da questão agrária. Porto
Alegre : Mercado Aberto, 1986.
144
48 - LANDO, Aldair Marli & BARROS, Eliane Cruxên. A colonização Alemã no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre : Movimento, 1983.
49 - LAYTANO, Dante. Origem da propriedade privada no Rio Grande do Sul. Porto Alegre :
Martins Livreiro, 1983.
50 - LIMA, Josino dos Santos. A cidade de Cruz Alta. Porto Alegre : Globo, 1931.
51 - LINHARES, Maria Yedda L., SILVA, Francisco Carlos Teixeira. História da
agricultura brasileira. São Paulo : Brasiliense, 1981.
52 - _____ . Subsistência e sistemas agrários na colônia: urna discussão. Revista
Estudos Econômicos. São Paulo : IPE, USP, 1983. V. 13.
53 - LINHARES, Temístocles. História econômica do mate. Rio de Janeiro : José Olympio,
1969.
54 - LINDMAN, Carl Axel Magnus. A vegetação no Rio Grande do Sul. Belo Horizonte : Itatiaia,
São Paulo : Edusp. 1974 (Fac-Simile da edição de 1906, Porto Alegre).
55 - LOVE, Joseph L. O regionalismo gaúcho. São Paulo : Perspectiva, 1975.
56 - MAESTRI, FQ, Mário José. O escravo no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre e Caxias do Sul : EST e UCS, 1984.
57 - MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo : Pioneira, 1975.
58 - A imigração e a crise do Brasil agrário. São Paulo : Brasiliense, 1973.
59 - O cativeiro da terra. São Paulo : Hucitec, 1981.
60 - MARTINS, José de Souza. Del escravo lo asalariado en las haciendas de café, 1880-1914:
la gênesis del trabajador volante. In: SANCHEZ ALBORNOZ, Nicolás. Población y Mano de
obra en America Latina. Madrid : Alianza, 1985.
61 - MARX, Karl. El capital. 8.ed. México : Siglo XXI, 1979. 3 T. 8 v.
62 - MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1982.
63 - MONGBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo : Hucitec e Polis,
1984.
64 - MONTI, Verônica A. O abolicionismo: sua hora decisiva no RS – 1884. Porto Alegre :
Martins Livreiro, 1985.
65 - MONTOYA, Antônio Luiz. Conquista espiritual, feita pelos religiosos da Companhia de
Jesus nas províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Porto Alegre : Martins Livreiro,
1985.
145
66 - MOOG, Viana. Bandeirantes e pioneiros. 13.ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira,
1981.
67 - PEBAILE, Raymond. Os difíceis encontros entre duas sociedades rurais. Boletim
Geográfico do RS. Porto Alegre, n° 18, 1978.
68 - PETRONE, Maria Thereza Schorer. O imigrante e a pequena propriedade. 2.ed. São
Paulo : Brasiliense, 1984.
69 - PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. A política rio-grandense no II império – 1868-1882.
Porto Alegre : UFRGS, 1974.
70 - PILLAR ROSA, Izaltina Vidal do. Cruz Alta. Rio de Janeiro : Tipo Editor, 1981.
71 - PINHEIRO, Paulo Sérgio (coord.). Trabalho escravo, economia e sociedade. Rio de
Janeiro : Paz e Terra, 1984.
72 - PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da província de São Pedro. 4.ed.
Petrópolis : Vozes e MEC, 1978.
73 - POMMER, Leon. Os conflitos da bacia do Prata. São Paulo : Brasiliense, 1979.
74 - PORTO, Aurélio. O trabalho alemão e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Gráfica Santa
Terezinha.
75 - PRADO Jr., Caio. História econômica do Brasil. 23.ed. São Paulo : Brasiliense, 1981.
76 - ROCHA, Prudêncio. História de Cruz Alta. Cruz Alta : Merc6rio, 1962.
77 - ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo, 1969.
78 - RODIGER, Sebalt_ Colonização e propriedades de terra no Rio Grande do Sul – século
XVIII. Porto Ateve : Instituto Estadual do Livro, 1965.
79 - SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-1821. Belo Horizonte e
São Paulo Itatiaia e EDUSP, 1974.
80 - SANTOS, Corcino M. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul – século XVIII. São
Paulo : Nacional/INL, 1984.
81 - SCHILLING, Paulo. Trigo. Rio de Janeiro : ISEB, 1959.
82 - SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. 2.ed. São Paulo :
Nacional, 1977.
83 - SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Porto Alegre : BELS, 1974.
84 - VAN BATH, Bernard Slicher. História agrária da Europa Ocidental (1500-1850). Lisboa :
Presença, 1976.
146
85 - VELHO, Otávio Guilherme. Frentes de expansão e estrutura agrária. 2.ed. Rio de Janeiro
: Zahar, 1981.
86 - ______ . Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo e Rio de Janeiro : DIFEL,
1979.
87 - VELLOSO da SILVEIRA, Hemetério José. As missões orientais e seus antigos domínios.
Porto Alegre : Typographia da Livraria Universal, 1909.
88 - VILAR, Pierre. Desenvolvimento econômico e análise histórica. Lisboa : Presença, 1982.
89 - UMANN, Josef. Memórias de um imigrante boêmio. Porto Alegre : EST, 1981.
90 - WAIB EL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro : IBGE,
1979.
91 - WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo : Pioneira, 1982.
147
Anexo N 1
RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DE CRUZ ALTA INFORMANDO SOBRETERRAS DEVOLUTAS (1850)
"...informando quais os distritos deste município em que há terrenos devolutos e qual
a extensão aproximada destes terrenos, pediu informações aos juizes de paz dos distritos,
e tendo obtido com bastante morosidade...
" Existe neste primeiro distrito uma mata quase toda devoluta acompanhando o rio
Juhy pequeno e da Conceição desde o fundo da fazenda do Cadeado até unir-se com a
serra do Juhy Grande; cuja mata terá dez léguas de comprimento com três a cinco de
largo, distanciando desta vila quatro a seis léguas. Existe mais neste mesmo distrito outra
mata desde a Fazenda Dois Irmãos acompanhando o Jacuhy até a confluência deste rio
com o Gahy, com oito a dez léguas de comprimento e duas a três de largo. Existem muitas
posses cultivadas nestas matas; e o mais tudo devoluto. Existe entre o 1°, 5° e 6° Distritos a
mata intitulada a serra dos Juhys que se calcula ter mais ou menos cinqüenta léguas em
circunferência, unindo com a primeira mata nomeada, e é toda arrodiada de campos,
correndo pelo meio do rio Juhy Grande e seus confluentes; distante desta vila 6 a 10
léguas. Existe no 4° distrito urna mata entre os rios Juhy Pequeno e Guaçuhy com urna légua
de frente e outra de fundo, e outra desde o Juhy Pequeno até o rio Urubuçarú em frente ao
antigo passo de São João Babtista, que terá de frente légua e meia e de fundo até o rio
Juhy Grande uma légua, ambas devolutas. Existem nos fundos do 4°, 5° e 6° distritos a
grande mata que borda o Uruguai desde o Mato Português até a Foz do Juhy Grande com
grande número de léguas de comprimento e largura, e existe mais, dividindo o 4°, 3°, 2° e 8°
distritos a serra geral que divide este município com o de Santo Antônio de Patrulha,
Taquari, Rio Pardo, Cachoeira de São Borja com grande extensão de matas devolutas. Existe
mais o mato denominado Castelhano que une a serra geral com as matas do Uruguai, e
acompanha um dos confluentes do Juhy, dividindo o 4° do 3° distrito com grande número
148
de léguas de terrenos devolutos. São estas as informações... (Paço da Câmara Municipal da
Vila do Espírito Santo de Cruz Alta, 17 de janeiro de 1850 – Ao presidente da Província)*"
149
Anexo N 2
ABAIXO-ASSINADO AO IMPERADOR D. PEDRO II
"Ante o augusto Trono de V.M.I., sobem os abaixo-assinados habitantes e
moradores de novo município de Santo Antônio da Palmeira, (...). a presença de V.M.I.
solicitam remédio para os males que os oprimem como agricultores e fabricantes de erva-
mate, pelas razões que passam a expor.
"Senhor:
"V.M.I serviu-se por seu beneplácito e magnânima vontade fazer graça, pela Lei de 20
de março de 1861, ao povo fabricante de erva-mate as terras devolutas existentes naquele
ano de 1861, entre os rio Turvo, Uruguai e Várzea. Esta graça que tão liberal faz V.M.I.,
fez com que se conservassem os habitantes em paz pacífica cc :sse direito até o ano de
1877, em que foi nomeado o juiz comiss:irio para esse termo. Acontecendo que este juiz
comissário, que se acha investido do poder para medir e demarcar terras de posse,
nenhum respeito tem da lei de 1861, já medindo posses criminosas, por seus princípios
contra a disposição da Lei 601 de 18 de setembro de 1850, art° 1° que proibiu a aquisição de
terras devolutas, jamais podiam ser medidas posses de tais ordem, em vista da citada Lei
de 1850. Porém a cobiça do ouro e a ambição de o possuir faz com que seja desrespeitada
a lei a concessão feita por V.M.I. e estende suas medições em terras concedidas em
comum e que se achavam, no ano de 1861 em matas virgens, abrangendo os terrenos
que então ficaram pertencendo em comum ao povo existente dentro do perímetro dos
três rios citados.
"Têm os habitantes, que se têm visto prejudicados, e que para bem cultivar o
erval na Serra Geral, fazem suas pequenas moradas pelo favor da sábia Lei de 1861,
levando a presença do juiz comissário por certidão a citada Lei de 20 de maio; qual tem
sido a resposta do juiz comissário existente Tibúrcio Alvares de Siqueira Fortes? Tem sido que
150
a Lei de 20 de maio de 1861 foi revogada! Já não regula mais e que por isso segue a medição
e que é um engano do governo!! Não contente assim, Senhor, em tomar do povo os ervais
que existiam em matas altas no ano de 1861 e ainda manda medir por seu agrimensor
Maximiniano Beschorner, uma sua posse; cuja foi principiada no ano de 1863 por José Joa-
quim Cordeiro, cuja posse foi vendida ao Juiz Comissário Fortes, cuja medição foi feita sem
assistência Juiz Comissário ad hoc, e sim do dito Juiz Fortes, se é possível assim se
proceder, nas terras por V.M.I. concedida em comum aos fabricantes de erva-mate, então
se verá os pobres subditos da dura necessidade de mendigar o pão para suas famílias no
país estranho, a pátria que os viu nascer por que único terreno que na valorosa província
de São Pedro do Rio Grande do Sul foi concedido para habitação do pobre povo
empregados no fabrico da erva-mate, esses mesmos são tornados.
"Senhor;
"Se este povo vive no emprego do fabrico da erva-mate, vê-se tão oprimido e
obrigado por semelhantes medições mal cabida em um terreno que lhes foi concedida por
uma graça Imperial, é tropelado; expulsos do pequeno torrão para se estender o domínio
dos ricos e poderosos do lugar tanto que o Juiz Comissário propala que não consente que
se derrube uma só árvore existente dentro do perímetro dos três rios Turvo, Uruguai e
Várzea e que fará gemer ao fabricante que assim praticar, com trazê-los à barra do tribunal
como um criminoso! V.M.I. como pai de um povo pobre e laborioso os abrigou com a Lei de
vinte de maio, por certo não deixará que este povo que abrigaste debaixo de vossas sábias e
energéticas leis dando um torrão onde possam obter o recurso necessário para suas pobres e
míseras famílias, fiquem expulsos e sem domicílio como está acontecendo, uns abandonando
suas habitações, outros chamados aos tribunais e outros ameaçados de tudo sofrer.
"Senhor;
"Os abaixo-assinados correm presurosos aos pés de V.M.I. como uma fonte pura de
onde esperam emanar o remédio para o mal que os aflige, para que seja suspensa as
medições dentro dos limites dos três rios citados -- rios Turvo, Uruguai e Varge – e que ali no
perímetro seja conservado o direito da lei de 20 de maio de 1861 e para que não seja mais
medidas posses que se acoberta com o pagar a multa por não ter registro, sendo que
jamais poderia obter por ser feito depois da lei que proibiu a aquisição de posse.
"Os abaixo-assinados, cônscio do zelo e amor que V.M.I. dedica ao seu povo,
descansam certo que seus reclames serão atendidos.
P a lm e i ra , 2 4 d e m a io d e 1 8 7 9 "
151
(Seguem-se 73 nomes, com firma reconhecida)
(AHRS – Lata 124. Março 97. Doc 70 A)
152
Anexo N 3
ARTIGO DO VEREADOR UFLACKER SOBRE A INDÚSTRIA AGRÍCOLA,PUBLICADO NO PERIÓDICO AURORA DA SERRA, DE CRUZ ALTA (18-84)
"Nossa população agrícola de cima da serra tem vegetado infelizmente em
um completo abandono e atraso, achando-se reduzida quase na sua totalidade à
mais vergonhosa miséria, devido mais à crassa ignorância das teorias da agricultura e
dos melhoramentos e aperfeiçoamento até hoje introduzidos na própria indústria
a que ela se dedica, de, que mesmo a qualquer outra cousa.
"A nossa região serrana é seguramente coberta em a sua quarta parte por
matas de feracíssimas terras próprias para a agricultura, regadas por inúmeras
vertentes e rios e que, devido à essas condições favoráveis tem atraído à si urna
enorme população de lavradores nacionais; mas, infelizmente, na sua maioria, é essa
população constituída de gente tão indolente e imprevidente, que, muitas vezes não
consegue colher em anos adversos, como o foram os deste último decênio, o
indispensável para a sua própria subsistência e muito menos para o abastecimento dos
vizinhos ou para exportação.
"Reconhecida pois, a incontestável fertilidade de nossas terras bem como o
clima, mais ou menos benigno e temperado desta região perguntamos: qual a razão
deste fenômeno?
"A principal causa deste fenômeno não pode ser outra senão a indolência e
ignorância em que vegeta essa classe industrial, da ignorância absoluta dos
princípios teóricos de agronomia, e dos melhoramentos e aperfeiçoamentos que tem
sido introduzidos até o presente nesta indústria.
"Com efeito, raríssimo é o homem inteligente ou abastado que nesta região
153
se dedica exclusivamente a esse ramo de indústria aonde ainda está sendo
explorada com muitíssima vantagem a florescente indústria pastoril e outras.
"A indústria agrícola é por enquanto exercida aqui entre nós, em sua quase
totalidade, peio proletariado, e também pela escória das sociedades, que sendo
repelida por seus vícios e crimes, vai, como último refúgio, se estabelecer nos matos
e terras devolutas, onde tem a certeza de que ninguém o irá incomodar na posse de
terras nacionais, de que criminosamente se apropria.
"Este é o estado a que está reduzida a nossa agricultura. "Abençoado país este
nosso para os vagabundos.
"Mas já é tempo de cuidarmos em medidas sérias e apropriadas que elevem
a indústria agrícola nesta região a altura de que é condigna.
"Não será em época muito remota que ela ainda se constituirá em uma das
fontes mais ricas de engrandecimento e prosperidade desta região, e pode estar tão
próxima essa época que unicamente depende em conseguirmos os prolongamentos
das vias férreas do norte e do sul desta província até os pontos principais de nossa
região serrana.
"É pois chegado o tempo de cuidarmos do seu aperfeiçoa-- mento,
principiando por estudos experimentais, e pondo em prática todos os melhoramentos
nele introduzidos até hoje e usados pelas nações mais adiantadas neste ramo,
como por exemplo sucede nos Estados Unidos do Norte América aonde só a
agricultura constitui um manancial mais abundante de ouro do que todas as ricas e
inesgotáveis minas da Califórnia.
"Mas se quisermos atingir a tão almejado fim, devemos em primeiro lugar,
banir de nossa lavoura toda aquela antiquíssima e bárbara rotina que está ainda em
uso entre nós, rotina herdada em parte, dos nossos avoengos da colônia portuguesa;
e em parte dos nossos aborígenes da raça Tupi ou Guarani.
"Precisamos acabar com o pernicioso sistema das grandes derrubadas de
matos virgens, para o cultivo de milho e feijão por que a destruição dos matos pelo
machado e o fogo como é praticado aqui entre nós, não só reduz a campo esterilizando
a terra, como também com o decurso do tempo e o crescimento progressivo e
natural de nossa população e ainda mais, com a provável criação de alguns núcleos
coloniais de imigrantes estrangeiros, que virão se estabelecer aqui seduzidos pelas
154
nossas ubérrimas terras com certeza matemática em menos de meio século terão
desaparecido desta rica região todas as florestas virgens que a ensoberbece.
"É esta uma imprevidência da geração presente, que jamais será perdoada, e
com justíssima razão pelas gerações futuras.
"Não cultive-se pois exclusivamente nas terras de mato conquanto não sejam
tão férteis como aquelas, pela razão de conterem menos humo, são todavia muito
produtivas, desde que sejam rnanhadas por meio dos processos mais modernos de
fertilização.
"Com este sistema, não só tornar-se-há o trabalho mais cômodo como também
mais econômico e seguro...
* Aurora da Serra. Cruz Alta. Dezembro 1884. PP. 99/100
.
155
Anexo N 4
PROCESSO-CRIME CONTRA ESTANCIEIRO POR MORTE E MAUS-TRATOSDE ESCRAVOS
"0 Promotor interino da comarca usando do direito que lhe confere o art. 74 do
cód. do processo crime vem denunciar a Luis Antônio [...] natural desta província,
morador no 2° distrito deste termo, com a profissão de fazendeiro, preso na cadeia
civil desta vila, e à Irinea de Tal, mulher do mesmo Luis, pelos fatos que passo a
expor:
"Nos princípios do mês de maio próximo findo, estando Luis e sua mulher na
varanda de sua própria casa, castigando barbaramente uma sua escrava menor de
nome Maria, filha dos escravos Ignácio e Rosa, também de propriedade dos
acusados, munidos, Luis de um laço e Irinea de um pau, ambos deram tanta
pancada ria referida menor que não pode esta resistir a tão grande castigo, caindo
por terra sem sentido, nesta ocasião Irinea deu-lhe um pontapé reclamando: está
fingindo de morta, mas em seguida vendo que a menor Maria morria mesmo chamou por
Ignácio Antônio da Silva que viesse acudir a Maria e por ele foi dito depois de examiná-la que
ali nada mais tinha a fazer, como de fato poucos momentos depois faleceu Maria.
"Também mataram a fome a um outro menor livre de nome Francisco, irmão da
desventurada Maria, por que o denunciado Luis se prevalecendo de seu senhorio mandava
Rosa pastorear gado no campo todos os dias desde a manhã até a noite ficando o menor em
uma rede sem que Luis ou sua mulher lhe dessem ou mandassem dar alimento algum, que
só mamava de noite quando sua infeliz mãe voltava do campo, tantas vezes se repetiu este
fato de barbaridade que ultimamente secara o leite de Rosa. Francisco definhando aos
poucos, faleceu pela fome, sem que pudesse obter quer de seus pais, quer dos outros
escravos proteção alguma, pelo terror que tinham de seus senhores, tanto que as
escondidas foi o menor pouco antes de falecer batizado por uma escrava da casa para
não morrer pagão.
156
"Todos os escravos dos denunciados são cruelmente tratados por seus senhores,
que os trás de baixo de pancadas e mortos de fome, sendo preciso de seus escravos
recorrerem aos vizinhos para matar sua fome.
"Há tempos Luis castigou um escravo de nome Adão de propriedade de seu irmão
Francisco, isto na própria casa deste, que o pôs num estado deplorável com as nádegas
toda retalhada e lançado sangue pela boca, depois atando-o sobre quatro estacas alto do
chão, cujo escravo foi socorrido por Leonardo Pitam, que o foi buscar para curá-lo em
casa o que não conseguiu levá-lo por que Adão se achava em estado tal que só pode
acompanhá-lo até a casa de Maximiano Rodrigues Gomes, vizinho mais perto, onde o deixou
e seu senhor depois o levou para casa.
"Ora, como os denunciados com tal procedimento tornaram-se criminosos para que
então sejam punidos o denunciado Luis com o máximo das penas do art. 193 do cód. crim.,
combinado com o art. 201 do mesmo cód. e Irenea com máximo do art. 193 do referido
cód. por terem corrido as circunstâncias agravantes do § 4°, 6° e 10°. 15° do art. 16 do
mesmo cód. O mesmo promotor vem dar a presente denuncia e oferece para testemunhas
Ignácio Antônio da Silva e Constança Rodrigues da Silva, Leonardo Pitam, Pedro
Schettert e como testemunha informante o escravo Ignácio dos denunciados e o escravo
Adão de Francisco dos Santos." Cruz Alta, 1° de junho de 1877. Promotor interino – Cícero
Melechiades de Figueiredo." (Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Março 48. N°
1912)