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948 Para brasileiro ver: as políticas de intercâmbio cultural estadunidense e soviética através de Érico Veríssimo e Graciliano Ramos (1941 / 1954) Talita Emily Fontes da Silva 1 Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir a promoção de intercâmbios culturais realizados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, tomando como alicerce as narrativas tecidas pelos escritores brasileiros Érico Veríssimo e Graciliano Ramos contidas nas obras Gato preto em campo de neve (1941) e Viagem: Tchecoslováquia URSS (1954). Estas publicações, mais do que escritos autobiográficos, propiciam uma janela pela qual podemos investigar as estratégias desenvolvidas pelas duas potências mundiais para atrair aliados. Considerando os intercâmbios culturais como uma destas estratégias, apresentaremos como a análise dos relatos de viagem pode ser um ponto de partida para um estudo sobre as relações entre Brasil, Estados Unidos e União Soviética, e suas eventuais consequências em dois períodos - chave do século XX. Palavras-chave: Relatos de Viagem. Intercâmbio. Graciliano Ramos. Érico Veríssimo. Abstract: This paper will discuss the promotion of cultural exchanges carried out by the United States and the Soviet Union, based on the narratives written by the Brazilian writers Érico Veríssimo and Graciliano Ramos contained in Gato preto em campo de neve (1941) e Viagem: Tchecoslováquia URSS (1954). Believing that cultural exchanges are part of a strategy to attract allies, we will present how the analysis of travel reports can be a starting point for a study on the relations between Brazil, the United States and the Soviet Union, and their possible consequences in two important periods of the history. Key words: Travel reports. Exchanges. Graciliano Ramos. Érico Veríssimo. 1. Introdução Beirando a casa dos 60 anos, sair do seu lar carioca e aventurar-se em longínquas terras estrangeiras talvez não fosse uma das maiores pretensões de Graciliano Ramos. Mas, até para homens de conhecido gênio difícil, como era o caso do escritor alagoano, existem convites que são irrecusáveis. Sendo comunista, como dispensar, no ano de 1952, ao convite para uma viagem a União Soviética no auge de seu poderio, onde não precisaria gastar nenhum tostão com qualquer despesa? 1 Mestranda pelo Programa de Pós -Graduação em História Comparada da UFRJ. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. Orientador: Profº Dr. Dilton Cândido Maynard. Email: [email protected]

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Page 1: Gato preto em campo de neve Viagem: Tchecoslováquia...O ato de viajar não se resume apenas ao deslocamento dos homens no espaço. “Quem viaja tem muito o que contar”, nos lembra

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Para brasileiro ver: as políticas de intercâmbio cultural estadunidense e soviética

através de Érico Veríssimo e Graciliano Ramos (1941 / 1954)

Talita Emily Fontes da Silva1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir a promoção de intercâmbios culturais

realizados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, tomando como alicerce as narrativas

tecidas pelos escritores brasileiros Érico Veríssimo e Graciliano Ramos contidas nas obras

Gato preto em campo de neve (1941) e Viagem: Tchecoslováquia – URSS (1954). Estas

publicações, mais do que escritos autobiográficos, propiciam uma janela pela qual podemos

investigar as estratégias desenvolvidas pelas duas potências mundiais para atrair aliados.

Considerando os intercâmbios culturais como uma destas estratégias, apresentaremos como a

análise dos relatos de viagem pode ser um ponto de partida para um estudo sobre as relações

entre Brasil, Estados Unidos e União Soviética, e suas eventuais consequências em dois

períodos - chave do século XX.

Palavras-chave: Relatos de Viagem. Intercâmbio. Graciliano Ramos. Érico Veríssimo.

Abstract: This paper will discuss the promotion of cultural exchanges carried out by the

United States and the Soviet Union, based on the narratives written by the Brazilian writers

Érico Veríssimo and Graciliano Ramos contained in Gato preto em campo de neve (1941) e

Viagem: Tchecoslováquia – URSS (1954). Believing that cultural exchanges are part of a

strategy to attract allies, we will present how the analysis of travel reports can be a starting

point for a study on the relations between Brazil, the United States and the Soviet Union, and

their possible consequences in two important periods of the history.

Key words: Travel reports. Exchanges. Graciliano Ramos. Érico Veríssimo.

1. Introdução

Beirando a casa dos 60 anos, sair do seu lar carioca e aventurar-se em longínquas

terras estrangeiras talvez não fosse uma das maiores pretensões de Graciliano Ramos. Mas,

até para homens de conhecido gênio difícil, como era o caso do escritor alagoano, existem

convites que são irrecusáveis. Sendo comunista, como dispensar, no ano de 1952, ao convite

para uma viagem a União Soviética no auge de seu poderio, onde não precisaria gastar

nenhum tostão com qualquer despesa?

1 Mestranda pelo Programa de Pós -Graduação em História Comparada da UFRJ. Integrante do Grupo de

Estudos do Tempo Presente. Orientador: Profº Dr. Dilton Cândido Maynard. Email: [email protected]

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No ano de 1940, podemos observar um outro escritor brasileiro, de nome Erico

Veríssimo, imerso numa situação semelhante. Em uma manhã como qualquer outra, o

romancista recebe a visita do consul dos Estados Unidos no seu escritório, oferecendo-lhe

uma viagem as terras de Tio Sam. Não deixando passar tal oportunidade, foi conferir de perto

a ascendente potência liberal, que neste momento observava de longe o andamento da

Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).

Dois momentos diferentes, duas propostas semelhantes. O que une estes dois autores,

além dos convites inesperados oferecidos pelas distintas potências mundiais, é o fato de que

ambos produziram relatos sobre suas experiências no exterior, e tiveram estes escritos

publicados posteriormente. A narrativa de Veríssimo acerca das suas aventuras nos Estados

Unidos encontra-se em O gato preto em campo de neve (1941), e os relatos de Graciliano

Ramos vieram a público em Viagem: Tchecoslováquia –URSS, que só veio a ser publicado

postumamente, no ano de 1954.

Estas publicações, mais do que escritos autobiográficos, propiciam uma janela pela

qual podemos investigar as estratégias desenvolvidas pelas duas potências mundiais para

atrair aliados e promover as “benesses” dos seus regimes. Deste modo, considerando os

intercâmbios culturais como uma destas estratégias, apresentaremos como a análise dos

relatos de viagem pode ser um ponto de partida para um estudo sobre as relações entre Brasil,

Estados Unidos e União Soviética, e suas eventuais consequências em dois períodos - chave

do século XX.

Para isto, neste artigo realizaremos uma apresentação destes relatos de viagem e de

seus respectivos autores. Buscaremos diagnosticar como as oportunidades de intercâmbios

culturais oferecidas aos romancistas brasileiros dialogavam com suas trajetórias profissionais

e pessoais. Em meio a esta análise, também discutiremos os usos e a importância dos relatos

de viagem no fazer historiográfico.

2. A vida de viajante

O ato de viajar não se resume apenas ao deslocamento dos homens no espaço. “Quem

viaja tem muito o que contar”, nos lembra Walter Benjamin2, e isso se deve, em grande parte,

a carga de experiências que o indivíduo adquire ao sair do seu “habitat natural”,

possibilitando novas concepções de mundo. É este olhar sobre o atípico, que pode gerar

2 1987, pg. 198

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transformações tão profundas quanto as proporcionadas pelo deslocamento temporal, que

alimentam o gênero relato de viagem3.

Permeadas por uma constante necessidade em transmitir a “realidade”, as narrativas de

viagem contemporâneas trazem à baila um pouco de escrita de si unido ao constante desejo de

transparecer veracidade4. Mas isto não condiciona o autor a utilizar um tom científico ao

retratar suas experiências. O uso de recursos literários tornou-se um elemento comum neste

gênero.

Neste momento realizaremos uma apresentação dos dois relatos de viagem escolhidos

como objetos desta pesquisa, para em seguida tecermos alguns comentários sobre seus

autores. Seguindo a cronologia, abordaremos primeiramente a obra Gato Preto em Campo de

Neve (1941).

Considerado um best seller para a época5, Gato preto em campo de neve pode ser lido

como um grande painel dos EUA. É uma obra volumosa, dividida em 15 capítulos, onde o

romancista brasileiro Érico Veríssimo retrata os três meses em que teve a oportunidade de

participar de um intercâmbio cultural na nação estadunidense. Entre os meses de janeiro à

abril de 1941, o autor cruzou o país de leste a oeste, sem deixar de lado seus artifícios

literários na elaboração do texto, inserindo até mesmo um alter ego, que batiza de Malazarte,

para “acompanha-lo” durante a expedição.

Por sinal, alguns estudiosos apontam o relato de Veríssimo como a obra que

definitivamente inaugurou no Brasil a aproximação entre o gênero relato de viagem e o

campo da literatura. Considerado um “estilo menor” pelos críticos literários até aquele

período, o relato de viagem encontrava-se numa categoria a parte da produção “puramente

literária”6, pois acreditava-se que o autor não possuía outra ambição a não ser informar as

suas experiências e “noticiar” o que via no exterior.

A preocupação de Veríssimo em manter uma estética romanesca em seu texto, trouxe

à baila discussões acerca dessa categorização. Seguido por outros literatos, como Graciliano

Ramos, Jorge Amado, entre outros, que ao longo da sua trajetória também produziram este

estilo de narrativa, o escritor gaúcho contribuiu para o estabelecimento do relato de viagem no

“nobre” patamar da produção literária.

3 TODOROV, 2006, pg. 231

4 JUNQUEIRA, 2011, p.55-56

5 Segundo Richard Cándida Smith, o relato de Veríssimo tornou-se um sucesso de vendas logo após o seu

lançamento, vendendo cerca de 15 mil exemplares nos primeiros dois meses. IN: SMITH, Richard Cándida.

Érico Veríssimo, um embaixador cultural nos Estados Unidos. IN: Revista Tempo. Vol. 19 n. 34.p.148 – 173. 6 RIBEIRO, Roberto Carlos. Literatura de viagem e historiografia literária brasileira. In: Revista Letras & Letras,

Uberlândia 23 (1) p.145-159, jan./jun. 2007

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Ao analisarmos com maior atenção as divisões adotadas pelo autor em Gato preto em

campo de neve, percebemos que sua obra ganha tons de Guia. Conhecido por seu vocabulário

atrativo para o grande público, Veríssimo é cuidadoso na descrição das cidades que intitulam

seus capítulos. Leva o leitor a conhecer ruas, avenidas, monumentos, praças, cafés, dentre

outras particularidades que nem todos, nos idos dos anos de 1940, tinham a oportunidade de

conhecer.

Para algumas cidades, como Nova Iorque e Hollywood, o autor se detêm com maior

vagar, provavelmente por ter ciência que estes locais despertam maior curiosidade do

público7. Pinta murais, “à maneira de Diego Rivera”

8, numa clara tentativa de desmistificar

muito do que, segundo ele, o cinema e a mídia da época haviam alimentado no imaginário

popular acerca das terras de Tio Sam.

Gato preto em campo de neve veio a público rapidamente, com sua primeira edição

distribuída pela Editora Globo ainda em 1941. Como veremos mais a frente neste trabalho, foi

este intercâmbio que selou uma relação duradoura entre o autor de O Tempo o Vento (1949 –

1961) e os Estados Unidos.

Uma vez apresentada a narrativa de Érico Veríssimo, adiantaremos as páginas da

História em 11 anos, para encontrarmos o nosso segundo objeto de estudo, a narrativa de

Graciliano Ramos intitulada Viagem: Tchecoslováquia – URSS.

O relato de viagem do ilustre romancista alagoano foi resultado do intercâmbio que

participou, com duração de um mês, rumo a União Soviética no ano de 1952. Além de

excursionar por “Moscou e outros lugares medonhos”9, sua visita tinha como objetivo assistir

aos desfiles comemorativos pelo dia 1º de maio, que contou com a presença do chefe do

regime soviético daquele momento, Joseph Stalin.

Infelizmente, Viagem: Tchecoslováquia – URSS não chegou a ser finalizada pelo

autor. No mesmo ano em que realizou a excursão, 1952, o romancista alagoano foi acometido

por um câncer de pulmão, que o levou a óbito em março do ano seguinte10

. Publicada em

1954 pela Editora José Olympio, a edição que veio a público traz, além dos capítulos que o

romancista conseguiu finalizar, as anotações que esboçou durante a jornada11

. É importante

7 O próprio autor relata que antes mesmo de iniciar sua expedição aos EUA, recebeu inúmeras cartas de “leitores

desconhecidos” desejosos que o escritor registrasse suas impressões. Segundo ele, as correspondências

resumiam-se em: “Vá, veja e conte (...)”. p. 451. 8 Para descrever a cidade de Washington em largos traços, o autor pontua as principais características que

observa na cidade tomando como inspiração o pintor mexicano Diego Riviera (1886 – 1957). 9 É assim que Graciliano Ramos refere-se a URSS logo no início de seu relato. RAMOS, 1954.p.7.

10 Graciliano Ramos faleceu em 20 de março de 1953, aos 60 anos, na cidade do Rio de Janeiro.

11 Segundo nota emitida pelos editores, esses escritos complementam os capítulos que foram finalizados Viagem:

Tchecoslováquia-URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954.

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salientar que, apesar de seguir um modelo de diário de viagem, o escritor só veio a elaborar

efetivamente o relato quando não estava mais em solo soviético. O primeiro capítulo é datado

de 31 de maio, quando já estava na cidade de Cannes12

.

Considerando essa trajetória um tanto tortuosa, o relato de Graciliano nos é

apresentado com 34 capítulos, além das Notas complementares. Objetivo e conciso, tenta

apresentar ao seu leitor um pouco da alma soviética, seja retratando uma conversa com um

estranho, num passeio solitário em Moscou, ou sua experiência no Mausoléu de Lenin.

É difícil afirmar se Ramos desejava manter a estrutura de diário de viagem que veio a

público. Entretanto, conhecendo um pouco o estilo literário do romancista, é notório que

Viagem não fugiu do seu padrão estilístico. Como nos demonstram Antônio Cândido e José

Aderaldo Castello, uma das principais características da escrita de Ramos é a clareza unida a

objetividade. Seus romances apresentam um vocabulário meticulosamente selecionado,

encorpando a narrativa aos elementos essenciais, deixando de lado adjetivos, fazendo com

que a síntese ocupe o lugar da exposição13

.

A partir dessas características, não há dúvidas de que Viagem possui a mesma estética

dos demais romances de Graciliano Ramos. Com uma média de sete páginas, cada capítulo

ocupa-se em narrar um episódio da jornada, sem realizar conexões diretas entre um e outro.

Outro traço característico encontrado na obra é a sua predileção em registrar os “tipos

humanos”. As paisagens e monumentos ficam em segundo plano.

Realizada a apresentação dos objetos, acreditamos que para compreendermos e

analisarmos adequadamente as narrativas, é necessário conhecermos um pouco sobre seus

autores. Como salienta Mary Anne Junqueira, uma vez que o historiador se propõe a trabalhar

com um relato de viagem, é fundamental questionar quem é o autor e em qual “universo

cultural” ele está inserido14

.

Deste modo, nesta segunda etapa abordaremos alguns aspectos biográficos dos dois

literatos brasileiros, para verificarmos até que ponto suas vivências possuem uma ligação com

as experiências de intercâmbios culturais que vieram a participar. Começaremos com o autor

de Gato preto em campo de neve, Érico Veríssimo.

12

RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954,

pg. 7 13

CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira (Vol. III –

Modernismo). São Paulo: Difusão Europeia do Livro. 1964. 14

JUNQUEIRA, Mary Anne. Elementos para uma discussão metodológica dos relatos de viagem como fonte

para o historiador. IN: JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO, Stella Maris Scatena (Org.). Cadernos de

Seminários de Pesquisa (vol.II). São Paulo: USP-FFLCH-Editora Humanitas, 2011. v. 1. p.44-61.

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Nascido em 1905, Veríssimo foi canonizado como um dos grandes nomes da ficção

brasileira do século XX, e possui um extenso reconhecimento no exterior. É conhecido por

focalizar, nos seus romances, diversos aspectos da sua terra natal, o Rio Grande do Sul, sendo

o épico O Tempo e o Vento o grande destaque. Além disso, as questões morais e a crise do

indivíduo na sociedade são uma outra característica marcante de suas obras.

Foi diretor da Revista do Globo em Porto Alegre, e é importante ressaltar que uma

outra ocupação exercida por Veríssimo foi a de tradutor. Antes mesmo de tornar-se um

escritor consagrado, o gaúcho traduziu diversas obras do inglês para o português, que incluem

autores como Aldous Huxley e Edgar Wallace.

Um rápido olhar sobre a biografia do escritor não deixa dúvidas que ele foi um

“Homem das letras”. Exercendo uma intensa atividade literária desde sua juventude, o autor

de Olhai os lírios do campo (1938) e O resto é silêncio (1943) também dedicou-se a literatura

infantil e a organização de coleções que tornaram-se celebres, pois trouxeram ao Brasil

traduções de nomes como Balzac e Virginia Woolf.

Segundo Richard Cándida Smith15

, um dos motivos que levaram o Departament of

State a convidar Érico Veríssimo para ser um dos porta-vozes da literatura brasileira em solo

norte americano está relacionado, em parte, à semelhança da escrita do autor com o que lá era

produzido. Não devemos esquecer que o intercâmbio que Veríssimo foi convidado não era

uma atividade isolada, mas fazia parte da famosa política de Boa Vizinhança16

, idealizada por

Franklin Roosevelt.

Em O Gato Preto em campo de neve veremos os primórdios de uma relação duradoura

entre Veríssimo e os Estados Unidos. O escritor além de ter diversas de suas obras traduzidas

para o inglês, escreveu um histórico sobre a literatura brasileira voltada para o público norte

americano17

. Chegou a residir no país por dois momentos, entre os anos de 1943 à 1946,

quando foi professor da Universidade da Califórnia, e de 1950 à 1953, quando foi diretor de

intercâmbio cultural da União Pan-Americana.

Por sinal, os três anos em que residiu nos EUA, nos anos 1940, geraram uma outra

obra que narrará suas experiências neste período, denominada A Volta do Gato Preto (1947).

É um relato bem diferente do Gato Preto em Campo de Neve. O leitor que tem a oportunidade

de ler as duas obras percebe no retorno de Veríssimo ao solo estadunidense, um tom mais

15

2013, p.156 16

A política de Boa Vizinhança ou Good Neighbor Policy, foi uma iniciativa do Governo estadunidense, visando

uma mudança de comportamento com os demais países da América Latina. O seu objetivo era conquistar,

através de relações diplomáticas mais amistosas, uma maior e mais segura influência econômica e cultural sob os

seus vizinhos, afastando com isso possíveis relações com países europeus, como a Alemanha. 17

Brazilian Literature: an Outline (1945).

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ponderado e menos encantado com as maravilhas supostamente oferecidas naquele país.

Podemos encontrar diversas críticas, e um olhar mais analítico, buscando discutir em várias

passagens temas espinhosos como a religião, o sexo, a formação da unidade daquela nação,

dentre outros.

Concluímos que o convite oferecido ao escritor rio-grandense para participar do

intercâmbio cultural nos Estados Unidos não está desvinculado das suas experiências ao

decorrer de sua trajetória literária no Brasil. Seja pela sua escrita, ou pelo seu papel como

fomentador da literatura de língua inglesa em seu país, acreditamos que Veríssimo era um

intelectual que nutria simpatia e interesse pela nação norte americana.

Depois desse breve panorama sobre Érico Veríssimo, abordaremos alguns aspectos

biográficos de Graciliano Ramos.

Alagoano, Ramos transmitiu como poucos literatos a aridez dos sertões brasileiros,

que foram cenário de sua infância e adolescência. Natural de Quebrangulo/ AL, o escritor foi

um dos maiores nomes da literatura regionalista, sendo Vidas Secas (1938) uma das suas

obras mais representativos. Além dos romances, suas crônicas e memórias também possuem

grande expressão no seu rol bibliográfico.

Sua veia literária esteve presente desde a infância, quando publicava sonetos

utilizando pseudônimos. Ainda jovem, em 1914, tentou seguir carreira no campo das letras no

Rio de Janeiro. Entretanto, circunstancias adversas o conduziram de volta a Alagoas no ano

seguinte, e a desejada projeção nacional só veio a ocorrer quase 15 anos depois, em

circunstâncias pitorescas.

No ano de 1929, Ramos assumiu o cargo de prefeito da cidade de Palmeira dos

Índios/AL. Numa das suas primeiras atividades como gestor, enviou dois relatórios ao

governador de Alagoas. Estes escritos, detentores de uma qualidade literária e um tom irônico

incomuns para documentos oficiais, acabam repercutindo nacionalmente, sendo reproduzido

na integra em diversos jornais, e por fim despertam o interesse do editor Augusto Frederico

Schmidt, que se propõe a publicar outros textos do até então prefeito.

O autor de Angústia (1936) sempre mostrou-se simpático as ideias de esquerda. Por

sinal, esta sua simpatia, unida a suas opiniões sarcásticas sobre a Revolução de 1930, e seu

convívio com outros intelectuais de esquerda, foram motivos suficientes para leva-lo a prisão

em 1936. Permaneceu um ano preso, e suas memórias acerca deste período estão contidas na

obra Memórias de um cárcere, publicada postumamente em 1953.

Apesar desta proximidade com o pensamento comunista, sua filiação ao Partido

Comunista só veio a ocorrer em 1945, quando já tinha 53 anos. Quando militante oficial do

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Partido Comunista, Ramos mostrou-se um integrante ativo, participando de reuniões,

comícios, e candidatando-se até mesmo a cadeira de senador da República pelo Estado de

Alagoas. Mas, apesar da militância, foi um dos críticos ao “realismo socialista”, que desejava

“padronizar” a produção artística-literária dos intelectuais de esquerda, objetivando consolidar

esses meios como arma de luta contra os adversários “yankees”, considerando que neste

momento a Guerra Fria ganhava impulso.

Foi nesse contexto que Graciliano Ramos recebeu o convite para integrar a comitiva,

com cerca de 30 integrantes, que viajou até a URSS em 1952. Desde modo, ao observarmos

rapidamente a trajetória de vida do alagoano, é nítida a sua proximidade com o regime

comunista. Seja por sua postura política, ou pelas frequentes críticas a realidade brasileira

contida em suas obras, podemos constatar que assim como Érico Veríssimo e os Estados

Unidos, Ramos era um intelectual que nutria simpatia pela União Soviética.

Diagnosticadas estas semelhanças entre os dois romancistas, vejamos quais os

principais temas abordados pelos relatos por eles produzidos.

Em Gato preto em Campo de neve não é difícil perceber que a sociedade, ou melhor

dizendo, os indivíduos norte-americanos, sejam um dos temas favoritos de Érico Veríssimo.

Sendo acima de tudo “um ser humano interessado principalmente em seres humanos”18

,

observa atentamente sapatos e olhos, multidões e senhoras solitárias. Com um olhar clínico,

nem mesmo os encarregados e funcionários dos hotéis por onde passou são deixados de lado.

Em cada perfil traçado, parece haver um esforço em desmistificar este povo, tornando-os

simpáticos ao leitor.

São numerosos os momentos em que o literato se propõe a diagnosticar características

da sociedade. Uma destas situações ocorre quando visita uma cafeteria na cidade de

Washington. Veríssimo demonstra surpresa e admiração neste ambiente, onde tanto senhoras

ricas, como trabalhadores comuns realizam suas refeições, dividindo as mesmas mesas19

. Para

o escritor, este seria um símbolo do quanto a nação se estruturava de forma democrática,

sendo a cafeteria um local onde não só este, mais outros ideais estadunidenses estariam bem

definidos20

.

A amabilidade com que foi tratado durante todo o percurso sempre é enfatizada. São

numerosas as visitas que realizou, à pessoas que “nunca tive notícia e que por sua vez até há

18

VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978.p.11. 19

VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978, p.68 20

Ibid, p.69

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pouco tempo ignoravam por completo a minha existência. ”21

. Entretanto, retrata seus

anfitriões como calorosos em suas recepções, nutrindo grande curiosidade acerca da distante

nação de onde veio.

E é o Brasil um outro tema recorrente em toda a obra. Veríssimo não deixa de

registrar as diversas imagens que são atribuídas ao país tropical, investigando, ao longo de sua

jornada, como diferentes norte-americanos concebem a sua nação. Em grande parte dos

diálogos que descreve, onde o assunto “Brasil” vem a baila, o nosso autor normalmente

diagnostica um véu de ignorância.

Observa, por exemplo, que grande parte dos estadunidenses acredita que em terras

brasileiras a língua falada é o espanhol. Para tanto, afirma que era comum que os anfitriões

ensaiassem algumas palavras em espanhol durante as conversações, na tentativa de parecerem

gentis ao brasileiro22

. Em outro momento de sua expedição, ao ser questionado se na sua terra

a língua nativa era a espanhola, Veríssimo graceja: “ – Chinês. ”23

.

O nosso autor também registra que neste momento, as terras brasileiras também eram

associadas a produção de café e a desordem. Ao conversar brevemente com um jovem

entregador de jornais na Filadélfia, por exemplo, o rapaz logo afirmou que sabia que do Brasil

vinha o café que lá era consumido24

. Noutro momento, Veríssimo indigna-se com uma

matéria publicada pelo semanário Friday, onde seu país era descrito como um “conglomerado

de negros e índios governados por meia dúzia de brancos, os quais por sua vez são dominados

por elementos estrangeiros”25

.

Outro tema que não poderia deixar de ser abordado pelo viajante é a Segunda Guerra

Mundial. Como já comentamos, o Estados Unidos, neste momento, ainda não participava

diretamente do conflito, o que só veio a ocorrer, oficialmente, após dezembro de 1941, devido

ao ataque a base de Pearl Harbor, localizada no Havaí, dizimando milhares de soldados.

Entretanto, os ecos da guerra já podiam ser sentidos na nação estadunidense, sendo

apresentados sutilmente no decorrer da narrativa. Fala-se de Hitler em diversas situações, seja

num breve diálogo realizado numa mansão em Baltimore26

, ou com um simples engraxate

nova-iorquino que afirmava, de maneira casual, que engraxaria as botas do Führer caso lhe

fosse solicitado27

.

21

Ibid, p.144 22

Ibid, p.317 23

Ibid, p. 109. 24

VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978, p.157 25

Ibid, p.287 26

Ibid, p.143 27

Ibid, p.177

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Noutros momentos, comenta-se a presença de alguns fugitivos de guerra, que

encontraram em solo norte americano um porto seguro. Mas, apesar de cientes do que ocorria

na Europa, Veríssimo afirma que durante sua passagem naquela nação, a guerra ainda era uma

música de fundo, presente a todo instante, mas que era encoberta por outros assuntos

aparentemente mais importantes, como a posse de Roosevelt, e os seus primeiros atos ao

iniciar o novo mandato28

.

Por fim, um último tema que destacaremos, contido em O gato preto, é a situação do

negro nos Estados Unidos. Talvez este seja um dos poucos assuntos no qual o relato

transparece aspectos negativos das terras estadunidenses. O autor diagnostica, em diversas

circunstâncias, as tensões existentes na convivência entre os brancos e os negros, numa

sociedade que vivia num período de plena segregação racial.

Ao visitar a cidade de Washington, Veríssimo relata os contrastes existentes entre a

própria população negra que ali residia. Realizando observações cuidadosas, o autor registra

que a localidade abrigava, lado a lado, tanto a maior universidade destinada a negros no país,

como também comportava um número considerável de cortiços e negros que habitavam em

casas feitas de papelão e latas29

.

Mas, apesar de constatar todo este quadro, o gaúcho ainda tentava esboçar otimismo

quanto as precariedades, afirmando que em pouco tempo os problemas ligados a pobreza

estariam resolvidos. O que, para o autor, estava distante de ser solucionado, era o profundo

preconceito existente30

. E está constatação tornou-se ainda mais forte quando visitou os

estados do sul dos Estados Unidos, onde a segregação não permitia que negros e brancos

dividissem os mesmos ambientes31

.

Em traços largos, O Gato preto em campo de neve pode ser considerada uma obra

símbolo da política de Boa Vizinhança desempenhada pelos Estados Unidos junto ao Brasil.

Érico Veríssimo mostra-se simpático as terras de Tio Sam, extraindo desta sociedade as suas

características positivas, e relativizando os poucos aspectos negativos abordados.

Este propósito em construir uma boa imagem da nação estadunidense aos seus

compatriotas fica ainda mais claro no último trecho do livro, “Diálogo sobre os Estados

Unidos”. Neste último momento, o escritor gaúcho tece um diálogo com um entrevistador

imaginário, que lhe faz diversas perguntas acerca dos Estados Unidos, que são sempre

28

Ibid , p.131 29

VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978. 94-96 30

Ibid. p.100 31

Ibid, p. 355

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respondidas de maneira didática e elogiosa. Uma espécie de informativo para aqueles que não

conhecem a potência mundial do norte americana.

Mudando de cenário, vamos agora observar com maior cuidado o relato de Graciliano

Ramos, Viagem: Tchecoslováquia – URSS.

Como constatamos ao tratar da sua biografia, Graciliano era um simpatizante das

ideias comunistas. Deste modo, o seu relato não poderia ser diferente. Utilizando-se da sua

característica ironia, o autor compara a “liberdade miserável” do regime capitalista, com a

“prisão” do regime comunista que visitava, onde via, em sua excursão, crianças bem

alimentadas e com acesso a educação. Vejamos alguns temas que percorrem estes escritos.

Uma figura que comparece em diversos momentos do relato de Graciliano Ramos é a

de Joseph Stalin. Líder absoluto da União Soviética naquele momento, Stalin já apresentava,

no início da década de 1950, latentes sinais de desgaste físico. Todavia, isto não diminuiu em

nada as demonstrações de reverência que podem ser verificados ao longo da narrativa de G.R.

Talvez, um dos principais trechos de Viagem que representa tal reverência seja o

grande evento na comemoração de 1º de maio, quando o Joseph Stalin realiza uma aparição32

.

Mesmo sob o inclemente frio de Moscou, uma multidão formada por soviéticos e estrangeiros

concentrou-se ao lado do Kremlin para festejar a grande data e sobretudo ver o seu líder.

Graciliano observa a chegada do chefe símbolo do poderio da nação vermelha, que é

aclamado, mesmo não realizando nenhum pronunciamento ao decorrer de todo o desfile. Mas

isto não fazia diferença. O quebrangulense sente o quanto o estadista havia obtido êxito em

incrustar naquelas almas a devoção a sua figura.

Em Viagem, G.R. dedicará todo um capítulo para tecer elogios a Joseph Stalin33

. O

escritor não disfarça toda a admiração que nutre pelo estadista. Enxerga neste homem aquele

que verdadeiramente abriu mão de uma vida tranquila em prol de uma causa; que sofreu, foi

preso e torturado, para que neste momento da história fosse um baluarte fundamental na

consolidação de um mundo melhor e sem desigualdades. Graciliano escreve: Stalin foi o “(...)

estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. ”34

.

A historiografia assegura que com o fim da Segunda Guerra Mundial o culto a figura

de Stalin havia atingido o seu ápice. A ele era atribuído o status de comandante infalível,

gênio e guia da nação soviética, além de “Pai dos Povos”. O líder de origem georgiana é visto

então como a personificação do poder soviético que, nos termos de Roger-Gérard

32

32

RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro.

1954. p.43-49 33

Ibid. p. 51-56 34

Ibid. p.52

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Schwartzenberg, consegue proporcionar a integração social (unificação da nação); a

estabilização do regime (o líder e o seu governo acima de qualquer crítica); e a mobilização

popular (a fácil coerção das massas)35

.

A índole do povo soviético é outro tema abordado constantemente pelo escritor,

manifestando-se em diversas situações. Graciliano pontua em várias passagens, por exemplo,

os “excessivos salamaleques” daquela gente. Este costume é ainda mais saliente nos

representantes da VOKS (Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países

Estrangeiros). O escritor sente-se constrangido com a maneira que lhe tratam, e aos demais

membros da comitiva. Era como se os visitantes brasileiros estivessem prestando aos

soviéticos um favor. Aos olhos de Ramos, eram os visitantes que deveriam adotar esta atitude.

Apesar de toda a simpatia que nutre pelo regime comunista, o ceticismo característico

do alagoano parece não o ter abandonado completamente. No decorrer de Viagem, pode-se

notar que a admiração e a desconfiança caminhavam lado a lado. Basta um único gesto

destoante para que nosso escritor comece a especular acerca da realidade que lhe era

apresentada. Entretanto, fica difícil para o leitor concluir se estas manifestações eram reais ou

não passavam de outro traço frequente da literatura de Ramos: a ironia.

A índole do povo sob o regime soviético é manifesta ainda numa prática comum dos

soviéticos naquele período: A visita semanal ao túmulo de Lênin. Visitando a Necrópole da

Muralha do Kremlin, o escritor é informado que três vezes por semana, habitantes de diversas

regiões da União Soviética visitam o Mausoléu de Lenin, para prestar reverência e depositar

flores. O monumento foi inaugurado em 1930, e guarda até hoje o corpo embalsamado do

primeiro líder soviético, exposto em uma urna de vidro. Segundo o alagoano, a fila para

realizar este ato é imensa. Apesar do grande número de pessoas, ele fica surpreso com a

gentileza que a população expressa diante dos turistas, ao permitir que a comitiva brasileira

passasse a frente, como se “fossemos figuras ilustres”36

.

A narrativa de Graciliano Ramos não esconde o clima “religioso” em que a visita ao

túmulo de Lenin estava impregnada. Ao descer a cripta, G.R se assombra com a “imortalidade

ali exposta”, sucedido por uma sensação de magnetismo ao fitar o “catafalco de mármore

negro”37

. Fazendo o máximo de silêncio, “pisando com pés de lã”, os visitantes depositam

flores e prestam reverência ao morto ilustre ali conservado. Em meio a grandiosidade do

monumento, e a forte presença popular, Ramos afirma que todos aqueles gestos eram o

35

1978. p.268 - 272 36

RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954

p.65 37

Ibid, p.67

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mínimo que os soviéticos poderiam fazer para expressar gratidão ao primeiro líder do império

vermelho.

Outro tema recorrente no relato de Mestre Graça é a Educação. Dentre outros

assuntos, Graciliano destaca o número de bibliotecas públicas existentes na URSS. Em todo o

seu percurso nos países soviéticos, o escritor destaca a queda vertiginosa do analfabetismo e a

constante preocupação com uma educação de qualidade que é apresentada por seus anfitriões.

Observando esta realidade, o alagoano não deixa de comparar a realidade da URSS com o seu

país, onde a escolarização é precária, e “onde os analfabetos engordam, proliferam, sobem,

mandam, na graça de Deus.”38

.

A excelência no domínio cultural também é evidenciada na obra. Graciliano observa

como na “nova Rússia”, a população tem acesso a atividades consideradas como “cultura de

elite”, sendo o Ballet um dos principais exemplos. Ao ser convidado a assistir uma peça no

Teatro Bolshoi, o escritor evidencia o entusiasmo dos espectadores39

. Preparando-se para

assistir a peça Romeu e Julieta, ele se admira ao notar que um local antes “destinado ao

burguês e ao nobre”, agora encontra-se repleto de uma plateia de pessoas “rudes”,

caminhando pelo tapete vermelho do teatro com suas grossas botas. Implicitamente, Ramos

parece contrastar o caráter elitista do balé no mundo ocidental com o acesso democrático dos

trabalhadores a esta arte no mundo soviético.

Podemos considerar que a narrativa do romancista alagoano é em partes um elogio a

União Soviética. Encontramos em seu texto diversos elementos que tem claramente o intuito

de ressaltar a superioridade do mundo vermelho perante o capitalismo ocidental. Entretanto,

fica claro que o autor busca não pecar pelos excessos. Em certos momentos da obra, o autor

põe em dúvida a sinceridade dos seus anfitriões, e a veracidade das maravilhas que presencia

Por este motivo, devemos considerar Viagem como um relato produzido por um

grande simpatizante da URSS, mas que talvez não tivesse como objetivo final ser uma

literatura panfletária, como fica evidente por exemplo no relato produzido por Jorge Amado,

O Mundo da Paz (1951). Em Viagem ainda podemos encontrar o Graciliano Ramos crítico,

que elabora perguntas “espinhosas” aos seus guias, mas que viu no comunismo uma saída

para as mazelas de sua terra natal.

38

RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954.

p.100. 39

Ibid. p.39

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Após este apanhado das duas obras, podemos constatar que, como “homens das

letras”, alguns temas são recorrentes nas duas narrativas. A cultura, a educação, e o mercado

editorial são evidenciados, assim como podemos perceber a constante necessidade em

registrar a sociedade e os costumes das nações visitadas, numa tentativa de compreende-la

melhor.

Em contrapartida, percebemos diferentes objetivos na construção das narrativas. Nota-

se que Veríssimo possui uma maior preocupação em levar aos seus leitores curiosidades e

peculiaridades dos Estados Unidos da América. Desde a preocupação em descrever

minunciosamente as cidades por onde passa, até a inclusão de rápidos históricos, fica claro a

intenção do autor em construir uma espécie de “Manual dos Estados Unidos para brasileiros”,

tendo como diferencial a sua construção com requintes literários.

Graciliano Ramos, por outro lado, não tem por objetivo apenas narrar suas

experiências, mas acima de tudo, em proferir críticas ao Brasil. Ao passo de toda obra, o autor

dispara ironias a educação precária, ao descaso com a cultura, a miséria em que a maioria da

população brasileira estava condicionada, e assim por diante. Logo, podemos afirmar que seu

relato acerca do regime comunista também foi utilizado como um contraste para discorrer

sobre as mazelas de sua pátria.

A partir deste painel, é evidente que os intercâmbios de Veríssimo e Ramos estavam

inseridos num projeto político que objetivava a “sedução” de aliados, ou utilizando o conceito

de Joseph Nye, os romancistas brasileiros foram peças de uma estratégia de Soft Power40

.

Desde a escolha de intelectuais simpatizantes das nações promotoras, até a produção de

relatos elogiosos, podemos verificar rastros de iniciativas desempenhadas pelos Estados

Unidos e pela União Soviética, que tinham por objetivo disseminar imagens positivas,

tornando as sociedades atrativas e modelares para o exterior.

3. Considerações finais

A partir das narrativas de viagem que nos propomos a analisar brevemente neste

trabalho, podemos concluir que este tipo de fonte pode oferecer ao historiador diversas

possibilidades de investigação. No nosso caso específico, podemos constatar que tanto Gato

preto em campo de Neve como Viagem: Tchecoslováquia – URSS propiciam um interessante

40

Segundo Joseph Nye, Soft Power seria a habilidade de influenciar os outros a fazer o que você deseja pela

atração em vez de coerção. Esta atração pode ser construída de várias formas, utilizando-se da cultura, dos ideais

e da política. Para o autor, quando uma nação conquista a admiração de outras, e as faz desejar aquilo que você

quer, o uso da força militar ou econômica torna-se desnecessária. IN: NYE, Joseph S. Soft Power: The Means to

Success in World Politics. New York: Public Affairs, 2004

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campo de estudos acerca das estratégias desempenhadas por duas grandes potências mundiais

do século XX para conquistar a simpatia dos brasileiros.

Logo, ao ter em mãos um relato de viagem, não devemos cair na ilusão da “pura

biografia”, ou da objetividade do autor ao descrever “o que está vendo”. Deve-se ter em vista

que o viajante, acima de tudo, possui uma “lente” especifica para enxergar o mundo,

construída a partir de seus ideais, crenças, e experiências vividas. Bem sabemos que dois

indivíduos que visitam uma mesma cidade, podem muito bem formular relatos totalmente

distintos.

As obras de Érico Veríssimo e Graciliano Ramos são bons exemplos de como os

relatos de viagem contemporâneos são construídos. Neles podemos perceber o constante

cuidado em transparecer veracidade, sem deixar de lado os artifícios literários. Ao mesmo

tempo, notamos que as suas experiências no exterior também são utilizadas como pretexto

para expor suas opiniões sobre outros assuntos, e construírem, implicitamente, uma boa

imagem dos regimes que haviam visitado.

Desta maneira, ao ter consciência da rede de possibilidades analíticas destes dois

relatos trabalhados neste artigo, podemos enquadra-los como reflexo dos períodos em que

foram redigidos, assim como podemos utiliza-los como uma oportuna janela para o universo

cultural e ideológico dos seus autores.

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