garcía gutiérrez - desclassificação

17
Desclassificação na organização do conhecimento: ensaio pós-epistemológico Antonio GARCÍA GUTIÉRREZ 1 Resumo O conteúdo da rede digital origina-se a partir de diferentes formas, lógicas e culturas de conhecimento. Uma vez na rede, no entanto, eles são todos submetidos para se unificarem em formatos e lógicas fornecidos pela própria tecnologia digital. Uma tecnologia é, em primeiro lugar, o produto de uma determinada cultura. Toda cultura e identidade classificam e nomeiam todo tipo de material e objetos simbólicos. Nos dias de hoje, o ocidente é a cultura que tomou para si a tarefa da classificação global suportada por suas próprias redes digitais. A classificação é uma ferramenta epistemológica fornecida pela racionalidade moderna, cujas estruturas internas e modos de inferência são derivados das reduções metonímicas, dicotonímicas e analógicas da diversidade dos mundos atuais. Neste artigo, um tipo de hermenêutica prática, chamada “desclassificação”, é introduzido e proposto como um caminho para um conhecimento que supera a epistemologia organizacional. A desclassificação é um sistema aberto que instala o pluralismo lógico no núcleo do entendimento e processos de enunciação, através de ferramentas metacognitivas. Palavras-chave : Classificação. Rede digital. Epistemologia. Hermenêutica. Introdução Este artigo se propõe a rever a posição epistemológica dominante na Organização do Conhecimento (OC) e propôr uma perspectiva alternativa de pensamento – complementar ao invés de substitutiva – na qual poderemos considerar a OC diferentemente, através de outros caminhos, em relação a diferentes sensibilidades, reposicionando o lugar epistêmico a partir do qual as teorias e práticas de OC são geralmente enunciadas. Nosso campo de estudo requer uma “virada epistemológica” a fim de tratar os crescentes desafios de um mundo heterogêneo, convulsivo e em constante mudança. Mas esta “virada” deveria ser tão complexa que a concepção de Epistemologia por si só poderia ser superada. Talvez há pouco a se perder por se realizar uma tentativa, quando levamos em consideração, como o pesquisador social português Santos (1989), que a epistemologia impõe requerimentos em disciplinas científicas que é incapaz de impor a si própria, razão pela qual sua confiabilidade deveria ser mantida sob vigilância. Dirigir-se aos problemas centrais da OC deveria não apenas ser tentado por autores, escolas, tendências ou linguagens desta área do conhecimento, uma vez que as questões abordadas ultrapassam demarcações positivistas, deslocalizam-se e então reaparecem com um aspecto diferente – 1 Professor, Universidad de Seville, Faculdade de Communicación. R. Américo Vespúcio, s/n., 41092, Servilla, España. E-mail: <[email protected]>. Recebido em 16/2/2011 e aceito para publicação em 28/3/2011.

Upload: dora-garrido

Post on 05-Jun-2015

978 views

Category:

Education


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: García Gutiérrez - Desclassificação

Desclassificação na organização do conhecimento: ensaio pós-epistemológico

Antonio GARCÍA GUTIÉRREZ1 Resumo O conteúdo da rede digital origina-se a partir de diferentes formas, lógicas e culturas de conhecimento. Uma vez na rede, no entanto, eles são todos submetidos para se unificarem em formatos e lógicas fornecidos pela própria tecnologia digital. Uma tecnologia é, em primeiro lugar, o produto de uma determinada cultura. Toda cultura e identidade classificam e nomeiam todo tipo de material e objetos simbólicos. Nos dias de hoje, o ocidente é a cultura que tomou para si a tarefa da classificação global suportada por suas próprias redes digitais. A classificação é uma ferramenta epistemológica fornecida pela racionalidade moderna, cujas estruturas internas e modos de inferência são derivados das reduções metonímicas, dicotonímicas e analógicas da diversidade dos mundos atuais. Neste artigo, um tipo de hermenêutica prática, chamada “desclassificação”, é introduzido e proposto como um caminho para um conhecimento que supera a epistemologia organizacional. A desclassificação é um sistema aberto que instala o pluralismo lógico no núcleo do entendimento e processos de enunciação, através de ferramentas metacognitivas. Palavras-chave : Classificação. Rede digital. Epistemologia. Hermenêutica. Introdução

Este artigo se propõe a rever a posição epistemológica dominante na Organização do Conhecimento (OC) e propôr uma perspectiva alternativa de pensamento – complementar ao invés de substitutiva – na qual poderemos considerar a OC diferentemente, através de outros caminhos, em relação a diferentes sensibilidades, reposicionando o lugar epistêmico a partir do qual as teorias e práticas de OC são geralmente enunciadas.

Nosso campo de estudo requer uma “virada epistemológica” a fim de tratar os crescentes desafios de um mundo heterogêneo, convulsivo e em constante mudança. Mas esta “virada” deveria ser tão complexa que a concepção de Epistemologia por si só poderia ser superada. Talvez há pouco a se perder por se realizar uma tentativa, quando levamos em consideração, como o pesquisador social português Santos (1989), que a epistemologia impõe requerimentos em disciplinas científicas que é incapaz de impor a si própria, razão pela qual sua confiabilidade deveria ser mantida sob vigilância.

Dirigir-se aos problemas centrais da OC deveria não apenas ser tentado por autores, escolas, tendências ou linguagens desta área do conhecimento, uma vez que as questões abordadas ultrapassam demarcações positivistas, deslocalizam-se e então reaparecem com um aspecto diferente –

1 Professor, Universidad de Seville, Faculdade de Communicación. R. Américo Vespúcio, s/n., 41092, Servilla, España. E-mail: <[email protected]>. Recebido em 16/2/2011 e aceito para publicação em 28/3/2011.

Page 2: García Gutiérrez - Desclassificação

tanto transgressivo quanto verdadeiramente renovador – aos olhos da transdisciplinaridade.

No entanto é necessário começar a partir de um estudo aberto focando a atenção no próprio objeto científico, embora a partir da perspectiva de outras alianças e divórcios. Mais especificamente, as teorias pós-coloniais (Bhabha, 1994; Mignolo, 2003), posições feministas (Olson, 2003), polivalentes (Peña, 1992) e paraconsistentes (Costa, 1997) lógica, sensibilidade racional ou aesthesia (Sodré, 2006), racionalidade imperfeita (Elster, 1989), hermenêutica diatopical (Santos, 2005) e pensamento complexo (Morin, 1996), entre outras abordagens críticas, seria preciso abrir um diálogo que promova uma revisão aprofundada de conceitos, procedimentos, relacionamentos e ações que giram em torno da OC.

Já instalada no psiquismo, a classificação – uma operação epistemológica de natureza geral – afeta duplamente o trabalho de praticantes de OC devido ao fato de que uma de suas rotinas essenciais é precisamente um tipo específico de classificação. O ato de classificar não é apenas governado por um conjunto de regras organizacionais explícitas, mas também cognitivas, inconscientes e padrões comportamentais automáticos ligadas à ideologia, cultura, identidade e memória que confinam pluralismo e interpretação.

Nas seções finais deste artigo, uma posição diferente e pós-epistemológica de enunciação é proposta para os problemas e questões advindos da OC em um mundo cada vez mais globalizado de crescente homogeneização cultural, além de dois operadores específicos de OC2 aplicáveis à gestão de discursos históricos, midiáticos, sociais e culturais, com o objetivo de ilustrar o potencial de desclassificação do pensamento. Classificação como uma operação epistemológica e técnica

A classificação é uma operação epistemológica e gnosiológica de

primeira ordem que impregna a totalidade e nosso relacionamento com o mundo completamente. A mente percebe todos os tipos de objetos – materiais ou simbólicos – de acordo com categorias fornecidas por uma dada cultura – um paradigma científico, neste caso – de um modo que representações de tais objetos são apenas re-semantizações elaboradas em processos complexos de semiose que habitualmente transcendem a cultura. Isso não deveria representar qualquer problema, uma vez que todas as culturas e identidades hiper-classificam o mundo como parte de seus “jogos de linguagem”, se não fosse pelo fato de que, como Rorty (1983) colocou, a epistemologia ser um mero episódio para a cultura ocidental, e o ocidente – no sentido cultural – é a força motriz mais poderosa já conhecida, não apenas atrás da classificação e reclassificação do presente, mas também de nosso próprio passado e futuro e

2 Amplamente desenvolvido em García Gutiérrez (2005; 2007; 2008a; 2008b; 2011).

Page 3: García Gutiérrez - Desclassificação

aqueles de outros. Esta ressignificação foi reforçada e acelerada graças à tecnologia digital.

A rede digital, juntamente com operações de classificação incessantes e rotineiras promovidas pela cultura ocidental, age sobre um espaço aberto no qual outras civilizações e culturas – também produtores importantes de conhecimento e memória – tornem-se mais vulneráveis. A “digitalidade” já impõe uma certa ordem lógica no mundo, porque, como com qualquer outra tecnologia, é primariamente um “tecnológico”, um instrumento com um alcance simbólico que imperceptivelmente transfere os códigos da cultura que o criou. Deste modo, existem simultaneamente várias classificações globais: aquelas impostas por praticantes de OC através de regulamentações técnicas e epistemológicas; e aquelas do meio digital por si só, reforçando a anterior.

Isto ocorre por que o ocidente, como uma “cultura” hegemônica, é profundamente convencido de que suas categorias de organização local são necessariamente de interesse global, sem compreender as atitudes hostis, marginais ou atônitas demonstradas por outras culturas e minorias. Tal zelo “hetero-organizacional” apareceu unicamente no ocidente com o advento do Iluminismo (Horkheimer; Adorno, 2006), uma matriz cognitiva e cultural na qual precisamente uma tentativa foi realizada para organizar todo “o conhecimento universal” em uma enciclopédia (Olson; Nielsen, 2002) e na qual cada vez mais se manteve uma interpretação metonímica, dicotômica e neo-colonial do mundo. Os argumentos expostos abaixo serão limitados a estes elementos constituintes os quais, empiricamente falando, são entendidos como classificação.

Redução metonímica

Metonímia é uma ferramenta epistemológica que identifica a parte com o todo. Classificações do dia a dia ou científicas da organização ocidental do mundo são expressões de uma racionalidade “metonímica” que é parte do raciocínio instrumental denunciado por Weber da própria Escola de Frankfurt. A redução metonímica é a redução das reduções, uma redução a qual o único objetivo é reduzir, simplificar e fragmentar; uma redução esmagadoramente presente nos processos de compreensão, enunciação e classificação favorecida pela forma dominante de racionalidade contemporânea.

Culturas são construídas e mantidas na base de categorias imutáveis, preconceitos e suposições, e a metonímia facilita enormemente a constituição e transmissão desse mundo em oferecer isso em visões parciais e vieses mutilados. A metonímia segue o caminho progressivo de redução do mundo ao ponto de convertê-lo em um punhado de slogans e clichês. É por esta razão que a linguagem metonímica da propaganda e do marketing, que já infiltrou os discursos produzidos em nossa cultura, desde o político ao puramente científico, é tão eficiente. A tal extensão, na verdade, que a excepcionalidade do

Page 4: García Gutiérrez - Desclassificação

uso de metonímias tem se tornado uma ferramenta cognitiva lugar-comum, automática e, no entanto, dificilmente detectável mas esmagadoramente presente em nossos discursos diários, escolhas e ações.

Em seu “Sociología de las ausencias” [A Sociologia de Ausências], Boaventura Santos considera que o raciocínio metonímico é uma forma de racionalidade que impõe “uma homogeneidade no todo e nas partes, que não existe além do relacionamento com a totalidade” (Santos, 2005, p. 155). Portanto, as totalidades teriam que ser construções formando uma parte de outras totalidades de modo que o mundo, a partir deste ponto de vista, seria não mais que uma casa gigante de cartas prontas para serem derrubadas pelo menor dos movimentos ou negligência de sua frágil estrutura. Para Santos, o raciocínio metonímico tem duas conseqüências. Por um lado, “é considerado um raciocínio exaustivo, exclusivo e completo, embora seja apenas uma das lógicas de racionalidade existentes no mundo. Por outro, para o raciocínio metonímico nenhuma das partes pode ser considerada além de seu relacionamento com o todo […]. Então é incompreensível que alguma das partes tenha sua própria vida além do todo […]. A modernidade ocidental, dominada pelo raciocínio metonímico, não apenas tem uma compreensão limitada do mundo mas também de si mesma” (Santos, 2005, p. 156).

A convicção, tão firmemente enraizada no ocidente, de atribuir um valor universal a um estilo de vida estritamente local e contemporâneo tem penetrado não apenas no imaginário diário da população ocidental mas também em culturas pró-ocidentais e marginais, em vários casos por meio da adoção silenciosa e gradual destes mesmos estilos de vida, tecnologias e linguagens ocidentais.

Duas ações cognitivas imediatas são produzidas através do raciocínio metonímico:

1) A fragmentação e divisão de todas as instâncias para então ser estudadas, dominadas e exploradas por partes como o corpo humano, culturas invadidas, ou as próprias agências ocidentais a serviço de uma eficiência supra-ocidental essencialista, como ocorre no campo da ciência, política valores ou divisão do trabalho.

2) A promoção de uma lógica arbitrária e irresponsável que, muito além do princípio hologramático de Morin (1996), envolve a identificação da divisão com o todo do qual era apenas uma parte. Assim, classes e partes são consideradas em um processo não controlado como espécies e todos, e tal lógica começa a operar em práticas diárias como um fluxo epistemológico incontrolável. Na floresta do conhecimento, cada árvore, tronco e galho ocuparia um lugar inquestionável.

Estou bem ciente do abuso de usar ainda novamente uma metáfora botânica, que teve muita popularidade no domínio da ciência e na disseminação do pensamento metonímico, desde que foi avançado por Porfírio. Mas precisamente por ser uma das metáforas que proveu conhecimento com o maior

Page 5: García Gutiérrez - Desclassificação

número de reduções, não quero evitá-la. O dano não será encontrado na metáfora mas no uso perverso do phoroi3 além da semântica. Na verdade, Deleuze e Guattari (1994) recuperaram e reabilitaram a metáfora botânica por meio do rizoma, um conjunto de raízes anárquicas, descontínuas, caprichosas e emaranhadas, como aquelas dos mangues do sul, como uma figura de desmantelamento epistemológico. Este é o nutriente a partir do qual brota a teoria de desclassificação apresentada neste artigo.

Redução dicotômica

Uma vez obtida a licença de produção metonímica, a classificação do pensamento se arma com duas propriedades afiadas:

- Deslizamento: isto envolve um tipo de movimento incontrolável que nos permite passar injustificadamente de uma instância a outra pelo mero fato de possuir representações homônimas, homográficas e homofônicas. Lacan sublinhou o efeito do deslizamento metonímico sobre a estrutura dos próprios significantes. A situação discursiva é indubitavelmente responsável pelo deslizamento que ocorre em uma direção ou outra. Mas, apesar de ser gerada na superfície do significado, os efeitos para isso (para compreensão ou para enunciação) não poderia ser mais decisiva.

- Dicotomização: a dicotomia oferece um mundo construído por modos de pares opostos. Todas as instâncias são construídas sobre um oposto. A dicotomia também transfere uma ordem de prioridade no binomial, uma vez que a posição não é neutra. Na verdade, a instância ocupando a primeira posição em uma dicotomia tende a ser favorecida pela ordem social, economia ou cultural: norte versus sul, branco versus preto, homem versus mulher, chefe versus trabalhador, rico versus pobre, centro versus periferia. A partir disto, o próprio Santos propôs “um procedimento rejeitado pelo raciocínio metonímico: considerar os termos de dicotomias fora das articulações e relacionamentos de poder que os unem, como um primeiro passo na direção de libertá-los dos ditos relacionamentos e revelar outra alternativas que têm sido obscurecidas pelas dicotomias hegemônicas. Considerar o Sul como se o Norte não existisse, considerar a mulher como se homens não existissem, considerar o escravo como se o senhorio não existisse” (Santos, 2005, p. 160). Para Santos, o raciocínio metonímico não sabe como absorver os múltiplos elementos que permanecem vagando por fora das dicotomias, e que tem que se recuperar ou ganhar sua própria voz: “O que existe no sul que foge da dicotomia norte/sul? O que existe na medicina tradicional que foge da dicotomia medicina tradicional/medicina moderna? O que existe nas mulheres que é independente de seu relacionamento com os homens? É possível ver o que é subordinado sem levar em consideração a subordinação?” (Santos, 2005, p.160).

3 Do grego φοροι, imposto, tributo.

Page 6: García Gutiérrez - Desclassificação

Após as dicotomias segue uma ordem lógica esmagadora que penso que, para diferenciar da opinião de Santos, não é exclusiva, ainda menos da cultura ocidental, mas ao invés disso é uma constante em qualquer cultura ou personalidade que busca dominação e expansão. Mas em nossa cultura, dicotomia é raciocinar o que o átomo é para a matéria. E tal ordem impregnou a moral: bem/mal; o direito: inocente/culpado; a política: a favor/contra; a tecnologia digital: 1/0. Em meu livro Desclasificados (2007), a partir da demolição das dicotomias, desenvolvi uma construção provocada de oxímoros e oxímoros hiperbáticos (inversões), induzindo a cooperação dos elementos de várias oposições automáticas, tais como centro/periferia, para então transformá-las em duas eficientes fontes epistemológicas e heurísticas: periferia central (Bangalore ou São Paulo, por exemplo) e centro periférico (seja o Bronx ou os distritos mais pobres de Los Angeles). A construção calculada de oxímoros e contradições é uma ferramenta metacognitiva poderosa de desclassificação do pensamento.

Redução analógica

Como Umberto Eco colocou em Kant e o Ornitorrinco (1999), no qual, em minha opinião, é o seu melhor trabalho sobre teoria do conhecimento, com repercussões que não podem ser ignoradas por experts em classificação, zoologistas britânicos passaram a melhor parte do século XIX debatendo sobre como classificar o ornitorrinco, um simpático animal descoberto pela biologia ocidental por colonizadores na Austrália e Nova Zelândia. Os aborígines já fizeram esta descoberta milhares de anos antes e nunca discutiram sobre sua classificação zoológica. O ornitorrinco tem bico de pato e bota ovos (pássaro), um rabo peludo e glândulas mamárias estranhas (mamífero), ele se arrasta e tem garras (réptil), contando que passa metade de sua vida em ambientes aquáticos onde caça e obtém sustento (anfíbio). Após muito debate, os mastozoólogos, chegaram à conclusão de que o animal deveria ser considerado um mamífero. Importante notar que ser um mamífero significava que ele ocupava uma posição privilegiada na ordem animal. Eles tinham que fazer uma escolha e decidiram sobre esta taxonomia, embora como poderiam explicar, entre outras coisas, a questão dos ovos e do bico?

Vários zoólogos, de acordo com Eco, fizeram comentários extravagantes no que se refere ao ornitorrinco, por exemplo em relação à sua posição na ordem animal: mamíferos com partes de outros animais ou uma mutação excepcional. Descobertas recentes mostram que o ornitorrinco pertence a uma espécie que, por milhões de anos, tem regredido em direção à sua involução. Por conseguinte, se ainda existir dentro de alguns milhões de anos, ele poderia eventualmente abandonar o reino dos mamíferos entrando nesta que seria uma diferente taxonomia, uma taxonomia que poderia ter existido antes dos mamíferos?

Page 7: García Gutiérrez - Desclassificação

Comparando as categorias Kantianas formais com o conceito Peirceano de Terceiridade, Eco expõe sobre o imperativo cultural, como taxonomias são reproduzidas através de mecanismos de reconhecimento, usando o famoso exemplo de Marco Pólo quando, vendo um rinoceronte asiático pela primeira vez em sua viagem ao oriente, classificou-o como um unicórnio por conta de sua semelhança a um animal conhecido que, por outra coisa, nunca existiu exceto em narrativas mitológicas e pinturas que o próprio Pólo teve a chance de familiarizar-se em Veneza.

Várias civilizações e culturas – por exemplo, subculturas que não são necessariamente territoriais, tais como a científica – têm se especializado na “heteroclassificação”, em resenharem listas de clichês com os quais os assuntos e objetos classificados devem se adequar, sabendo muito bem que a inclusão de todos os assuntos e objetos na mesma categoria é geralmente forçada, ou que a categoria acaba por explodir devido à pressão interna ou por conta das próprias dinâmicas deste mundo incansável ao qual pretende subordinar-se. Categorias científicas e epistemológicas não são preparadas para assumirem mudanças constantes de uma supra-ordenação totalista.

Catalogar, classificar, separar e dividir: aqui estão algumas das palavras-chave de nossa cultura classificatória. Na visão do panorama apresentado pela classificação, deveríamos perguntar a nós mesmos que influências estão por trás de tal classificação desenfreada, quais são as vantagens de classificar o mundo deste modo e, sobretudo, o que uma teoria alternativa pode fazer em relação a isto? A teoria psicológica de dissonância cognitiva pode provavelmente prover uma resposta satisfatória à primeira questão. A segunda envolveria um debate sociológico, político e ético o qual não tenho intenção de evitar neste artigo, mas ao invés disso utilizar-se dele como base; e a terceira requere uma resposta teórica que, a partir de uma abordagem crítica e pós-colonial, irei tratar na seção seguinte.

Uma nova posição de enunciação

A posição a partir da qual consideramos o mundo tem muito a ver com epistemologia: é nossa posição epistemológica. A partir de onde geralmente consideramos a classificação epistemologicamente? Na minha opinião, fazemos isso a partir de uma posição aparentemente neutra e não-ideológica, onde conflitos são de uma natureza exclusivamente técnico-científica, apesar do fato de que operamos e produzimos cultura.

Além disso, irei propor a construção de uma posição de enunciação pós epistemológica incondicionalmente presidida pela hermenêutica (Capurro, 2000). A hermenêutica é a democracia do pensamento. A epistemologia convencional exclui a hermenêutica, mas a hermenêutica integra a epistemologia bem como qualquer outra interpretação. Minha solicitação inflexível é, como resultado, a substituição do espírito, linguagem e

Page 8: García Gutiérrez - Desclassificação

procedimentos da epistemologia da classificação por uma hermenêutica de OC que chamaremos de “desclassificação”. Uma revisão que envolve tratar processos complexos de tradução, a suspensão de certas suposições ou a mera transformação formal de outros que se adaptam à liberalização de uma matriz cognitiva mais ampla e inclusiva. A partir daí, e em honra da própria hermenêutica, podem se originar adjetivações, nuances e opções.

Entretanto, reconsiderar nosso campo de estudo envolveria estar aberto a posições pós-coloniais, àquelas de diferentes sensibilidades e contribuições, tais como as de Walter Mignolo (Mignolo, 2003; Mignolo; Schiwy, 2007) e Bhabha (1994), ou Santos (1989; 2005), ao longo das mesmas linhas, quando eles propõem um pensamento do sul, como metáfora daquele imenso espaço de diversidade, embora um sul não compreendido simplesmente como um lugar geográfico mas como um local de sofrimento, discriminação e exploração em uma escala mundial, incluindo os territórios supostamente “desenvolvidos” do hemisfério norte. “Outro-paradigma” e “outro-pensamento”, como esta outra-forma de considerar o mundo é geralmente chamado pelos teóricos supracitados. Outro-identidade, outro-memória (García Gutiérrez 2008a; 2009) seriam seus correlatos. Hermenêutica sem fronteiras epistemológicas, sem a necessidade de hierarquização, exclusão, fragmentação, disjunção; até a complexidade de Edgar Morin seria altamente compatível com tal modo pós-colonial de pensamento.

Nós temos uma objeção razoável à teoria pós-colonial: em vários de seus trabalhos, embora sobretudo no Empire (Hardt; Negri, 2002), Toni Negri se opõe ao fato de que o projeto emancipante promovido pela modernidade está esquecido em parte por se tornar sobrecarregado pela discussão que gira em torno de velhas categorias coloniais das quais nunca conseguiu se livrar. Levando em consideração a objeção de Negri, advogo por uma posição de enunciação cujo objetivo principal é uma descolonização permanente, uma vez que, no meu ponto de vista, a dominação é intrínseca à natureza humana e, com cada novo assunto e geração, seria necessário reabrir o caso para descolonização.

A informação científica, que em um primeiro momento teve de lidar com a gestão e organização das ciências, mesmo que por meio de classificações universais imprudentes, também terminou por organizar conhecimento social, cultural, midiático, artístico e estético. Através da gestão e organização de documentos arqueológicos, históricos e antropológicos, a informação científica terminou por invadir e modificar nossa visão de várias culturas contemporâneas e identidades em dissolução e a imagem que têm de si mesmas.

Através de outras disciplinas hiper-classificantes, tais como arquivologia e museologia, documentos não-científicos e objetos pertencentes à cultura contemporânea ou aquelas de eras passadas são tratadas, embora sejam removidas dos interesses de seus classificadores e curadores. Este detalhe

Page 9: García Gutiérrez - Desclassificação

fundamental, classificar a imensidão da “alteridade”, deveria ser suficiente para incorporar em nossos estudos novas visões e lógicas, um grande pluralismo e sensibilidade para considerar novos objetos que devem ser protegidos e classificados ou, ainda melhor, desclassificados para permitir que protejam a si mesmos. O que estaria envolvido, entretanto, é não apenas a otimização de nossos processos de informação em uma imensa quantidade de conhecimento subordinado ou excluído por conhecimento hegemônico, mas especialmente o reforço de formas genuínas de informação e auto-narrativa destes setores e a incorporação de suas visões de mundo e lógicas na microfísica da digitalidade.

A desclassificação na Organização do Conhecimento

A desclassificação basicamente envolve a introdução do pluralismo no núcleo lógico de classificação. É uma operação metacognitiva e não automática que, em cada ação do classificador, requere uma completa consciência de incompletude, vieses e subjetividade explícita. Com a tecnologia atual, é possível elaborar procedimentos e sistemas de classificação baseados em desclassificação. Mas tais técnicas e ferramentas também terão que passar por uma revolução epistemológica em todos os seus protocolos e estratos.

Se, para então pensarmos de modo a desclassificar, precisarmos de uma posição fixa a partir da qual podemos observar objetos fixos, estaríamos classificando de acordo com a ordem convencional de classificação, paralizando o mundo de uma perspectiva esclerosada. A desclassificação é uma forma dinâmica de organização que, primariamente, deveria satisfazer uma razão de mudança: aquela dos próprios objetos organizáveis simbólicos, uma vez que a redução da paralisia cognitiva tradicional do tipo de classificação que normalmente praticamos foi superada.

A lógica da mudança (Hegel, 2000) subjacente à desclassificação deve ser compreendida em pelo menos dois universos, às vezes oposto e às vezes colaborativo: primeiramente, nós conceberíamos uma mudança de natureza espontânea e arbitrária, mas não obstante uma mudança que, de algum modo, seria considerada como determinista, não por levar o mundo inexoravelmente em direção ao seu destino, mas por encontrar o destino inexorável do mundo na própria mudança. Concebemos este tipo de mudança como um movimento de impulso instantâneo.

Em segundo lugar, nós deveríamos entender a mudança da perspectiva do universo da vontade, um universo transformativo. A mudança seria então governada por um caminho duplo articulado em movimentos e transformações. Movimentos gerando novos movimentos que interagem, substituem e deslocam o significado de algumas transformações que, em um âmbito mínimo, mas com a única autoridade que conhecemos, a autoridade que o significado nos confere, produz desvios e trações nos movimentos.

Page 10: García Gutiérrez - Desclassificação

A classificação surgiria como um movimento espontâneo dentro da matriz cognitiva inicial, equipada desde o começo com uma vontade de potência, que orienta percepções e pretensões de todos os significados possíveis na única direção das percepções e pretensões da vontade de poder. Na verdade, apesar da atomização do poder que brota da concepção Foucauldiana (Foucault, 1979), o poder mantém sua totalidade em um microcosmo de manifestações diárias. E uma de suas fontes e manifestações é a classificação, uma poderosa e milenar classificação protegida pela tradição, sabedoria, conhecimento, memória, identidade, estabilidade, religião, cultura, ciência e nosso modo de vida, como é normalmente dito, todos cooperando em busca de uma classificação idêntica e imutável que incessantemente divulga suas estruturas. Uma classificação concebida como a origem e o destino do mundo, sempre submissa e reforçando a ordem estabelecida em espaços que talvez nenhuma ordem seja necessária.

Em práticas culturais, na qual a linguagem e linguagens provêm uma dimensão básica, a essência, os “ismos”, isto é, a purificação ontológica decorrente do verbo ser, torna-se uma referência e fonte de prioridade para perceber e transmitir o mundo simbólico. Em uma diversidade de manifestações, o conceito de “ser” existe em todas as linguagens e culturas conhecidas, permitindo que pensadores conversem sobre os atributos e propriedades de um objeto, ou de si mesmos ou de uma comunidade, da mesma maneira como podem rejeitá-los.

Relacionamentos conceituais partitivos ou classemáticos, distorcidos pela metonímica, agem como uma fonte automática que clarifica a proposição, enquanto ao mesmo tempo entorpece o restante. As hierarquias do todo sobre as partes, e das espécies sobre as classes, organizam o mundo. A mesma lógica de hierarquização, seja ela anterior ou subsequente às microestruturas de poder, organizam os relacionamentos entre sujeitos e objetos, entre objetos e objetos e entre sujeitos e sujeitos. Quando aludimos, com automatismo ou inocência, às partes de uma casa, um carro, uma instituição, uma cidade, um computador, ou às classes de qualquer tipo de sujeito ou objeto, estamos classificando o mundo de modo essencialista. Explicitamente ou tacitamente, o verbo “ser” conecta a parte com o seu todo, a classe com sua espécie: a roda (é) parte do carro; o monitor (é) parte do computador; a cozinha (é) parte da casa; a casa é uma habitação; sardinhas são peixes; e o computador é tecnologia. Operações essencialistas consistem em organizar o mundo a partir de uma lógica unicista e redutiva. Chamamos esta lógica rudimentar de “classificação” e ela já impregna a ordo nuclear da própria linguagem natural.

A desclassificação não nega a classificação, pois nunca paramos de classificar, mas envolve a suposição metacognitiva de uma lógica diferente, plural e não-essencialista. A desclassificação introduz ao pluralismo lógico, mundos possíveis, dúvida e contradição em proposições, justamente provendo

Page 11: García Gutiérrez - Desclassificação

um pensamento anti-dogmático, um pensamento fraco, alguém poderia dizer, invocando Vattimo (pensiero debole).

Simples fórmula, desafiando o princípio de não-contradição, como “uma coisa é sempre outra coisa”, introduz o falibilismo, o perspectivismo, o pluralismo lógico em pensamento e a argumentação classificativa. E mais, a afirmação factual (é) seria ainda mais mitigada pela enunciação contrafactual: “uma coisa sempre pode ser outra coisa”.

O que decide um supra-ordenamento ou subordinação é a situação, uma posição envolvente e absorvente bloqueando outras alternativas e impedindo a alternativa de insubordinação ou não-subordinação conceitual. É possível inferir que, além da situação, relacionamentos são submetidos a infinitas possibilidades e mundos arbitrários como critério de ordenação. Se como um exemplo tomarmos outras funcionalidades das instâncias aludidas em outras situações (de mundos reais possíveis), na lógica modal de Lewis (1986) a faca poderia ser uma arma de assassinato, uma relíquia ou uma antiguidade; o cachorro poderia ser um latidor enfadonho ou uma compania leal; o carvalho poderia prover sombra ou ser também uma árvore desconhecida; o computador poderia também ser um resíduo poluente; a sardinha poderia ser saudável ou não.

Algo fora de contexto é sempre e simultaneamente múltiplas coisas. Concepções infinitas aguardam por instâncias, formando e reformando proposições. E confirmar várias proposições simultaneamente não é contraditório; é simplesmente uma declaração de incerteza. Entretanto, uma instância não é apenas, é também. Por meios de explicação “também é” nos permite ver como a desclassificação surpreendentemente interrompe hierarquias conceituais, cancelando o privilégio de qualquer visão classificatória: a faca é também um tipo de talher; o cachorro também é um mamífero; o carvalho também é uma árvore. Estas instâncias “eles também são”, isto é dizer, o critério supra-ordenado estabelecido por costume, discurso ou cultura, se torna desonrado, degradado, por infinitos mundos pragmáticos prontos para tomar seu lugar.

Afirmar que qualquer instância é também, implica na demissão da tradição ou imposição de quem a perspectiva do conceito tem sido vista e considerada, bem como seu supra-ordenamento e elementos subordinados, e transferir o pluralismo desclassificante ao próprio núcleo da refundação conceitual a qual o pensamento democrático requere.

Afirmar simultaneamente várias proposições não é contraditório, uma vez que trata-se de uma declaração de incerteza. Não há criticismo de sua natureza contraditória. Nós também podemos afirmar várias proposições opostas e, no entanto, ainda assim estaríamos dizendo algo. Estaríamos sempre dizendo algo e, se calcularmos a contradição, nós certamente estaríamos dizendo algo tremendamente diferente e criativo. A desclassificação seria um

Page 12: García Gutiérrez - Desclassificação

modo de garantir oportunidades iguais para a diversidade do conhecimento, lógicas e conversações em um outro-digitalmente. Operadores desclassificantes em sistemas de classificação4

Nesta seção, que é mais aplicada para e focada em setores trabalhando com eventos e histórias nos mundos da mídia, político, social e cultural, gêneros que se movem a partir de e entre o jornalismo e a história, irei descrever dois tipos de operadores que, hipoteticamente, ajudariam a quebrar os esquemas unilaterais e homogeneizantes de dependência, os quais a presença é massiva e perturbadora. Em qualquer caso, o que está envolvido é uma proposta teórica de operadores que, de modo desclassificatório, organizam mundos medidos pelas construções de história e memória, vários campos de humanidades e ciências ou discursos de mídia. Tais operadores teóricos teriam que ser incorporados seja ao forçar ou substituir e eliminar as funções hierárquicas e redutivas dos operadores tradicionais das classificações, tesauros e ontologias.

O que é compreendido aqui como um operador é uma ferramenta lógico-semantica (e, não deveria ser esquecido, de uma natureza necessariamente ética e política), a qual função primordial envolve estabelecer relacionamentos entre registradores e servindo como link entre estes e os participantes em uma rede. Por exemplo, as ferramentas hierárquicas TG (Termo Genérico), TE (Termo Específico) e associativa TR (Termo Relacionado), que pertencem ao tesauro convencional, são operadores de organização que satisfazem critérios epistemológicos precisos, inequívocos e simétricos.

A diferença básica deste tipo de operador fechado e univalente, em respeito à minha proposta, encontra-se na lógica na qual são baseados. Operadores desclassificatórios são precisamente fontes de intervenção e facilitação cujo objetivo é garantir a descolonização do pensamento e o fluxo igual de sistemas de informação, mas também alertar cidadãos sobre esses registros que contravém decisões e acordos estabelecidos interculturalmente, tais como direitos humanos, para questionar certas presenças por meios de crítica legítima de produtores-mediadores e usuários-mediadores, e promover uma transformação social com chave para emancipação e pluralidade de conhecimento.

Sendo abertos, a lógica dos operadores aqui propostos inclui a lógica fechada dos operadores tradicionais relacionais TG, TE e TR ou qualquer outro, e como resultado ele não se opõe a eles uma vez que contém os princípios de desclassificação. Então, por exemplo, sob desclassificação nós poderíamos continuar a utilizar operadores de hierarquias classivas e partitivas, todo/parte

4 O operador complexo é amplamente descrito em García Gutiérrez (2008a). Referente ao operador transcultural, veja García Gutiérrez (2011).

Page 13: García Gutiérrez - Desclassificação

e gênero/espécie, sujeito à extirpação de sua lógica de subordinação e supra-ordenação como uma lógica primária sistêmica, operando como meras fontes parciais de proximidade, uma vez que elas não brotam da reprodução de hierarquias políticas epistemológicas, sociais ou hegemônicas.

De acordo com os postulados estabelecidos pelas considerações teóricas colocadas nas seções anteriores, a desclassificação em sistemas de OC nos setores já mencionados teriam um operador anti-dogmático, hermenêutico e descolonizante, isto é, baseado no imperativo da participação direta e democrática de todas as posições possíveis e mundos que necessite – incluindo todas as oposições e contradições a respeito de um conceito – construídas de modo plural para então assegurar a presença de todas as visões de mundo e propiciar as diferenças até mesmo daquelas posições consideradas injustas ou anti-democráticas. Sobre a prioridade do pluralismo ideológico e lógico, mas também facilitando parte disso estabelecido nos princípios de interação e transformação que orienta a promoção de mudança social, proponho o operador complexo . Tal operador seria essencial, por exemplo, em mapas conceituais em que aparecem noções complexas como terrorismo, véu, pessoas “ilegais” ou aborto, para mencionar apenas alguns dos mais controversos. O operador garantiria todas as interpretações ideológicas e oportunidades iguais para estes conceitos. O operador complexo não é designado para intervir ou controlar visões e significados em relação a uma questão.

Além disso, um operador anti-relativista e crítico agiria de modo compensatório, isto é, ficaria do lado contra as injustiças e desigualdades estabelecidas na exomemória, interveria nos conflitos de interesse entre posições locais e acordos inter-ideológicos, estabeleceria condições para diálogo com chave para consenso, e aplicaria os resultados do último. O operador transcultural V seria responsável por estas questões.

Vamos olhar para várias questões de classificação tocantes aos aspectos diferentes e compartilhados em dois operadores, operadores que não se opõem, mas intersectam, supervisam e complementam um ao outro. O operador complexo , cuja função mais notável seria a de detectar confrontos, contradições, oposições, dicotomias e antônimos em busca de sua coexistência, inclui todos os meios possíveis de uma questão ou o significado de questões não compartilhadas, especificando-as para que então toda participação ou buscas na rede sejam reconhecidas pelas subjetividades compartilhadas de uma comunidade ou cultura ou por subjetividades individuais. É entretanto um operador mais próximo ao multiculturalismo de facto, a uma co-presença inicial de posições em condições iguais e com a mesma chance de visibilidade.

Em relação ao operador transcultural V, é o produto sintético de um diálogo permanentemente aberto, democrático entre representações de diversas posições (políticas, culturais, discursivas, etc.) que negociam a homologação e integração de certas questões que os afetam das premissas dos argumentos (e não meros argumentos) e topoi. Entretanto, este operador V implica na busca de

Page 14: García Gutiérrez - Desclassificação

um acordo com respeito a uma questão e sua formalização como categoria transversal às posições como uma transcategoria, constituindo, a partir de tal sanção, uma norma ética mundial que interferiria nos registros locais que a infringem, não validando ou as censurando, uma vez que eles sempre possuiriam a proteção oferecida pelo operador complexo, mas avisando os cidadãos participantes de seu conteúdo. García Gutiérrez (2002b; 2008a; 2008b; 2011) estabelece os princípios básicos do diálogo que deveria governar a construção plural de acordos interculturais no campo de OC, baseado na ética discursiva de Apel (1985).

Ambos operadores são profundamente democráticos uma vez que é apoiado pela especificação de todas as posições e visões de mundo, sem exclusão, como itinerários de representação e localização dos registros, isto é, garantindo a representatividade em pé de igualdade de todas as posições iniciais em respeito a uma questão, e V é essencialmente regulativo e executivo, isto é, ele equilibra o possível tratamento injusto de algumas ou outras posições na rede, até mesmo respeitando a presença de tais registros acomodando o princípio anterior de emancipação, em termos de uma escala categorial transculturalmente aceita de tal forma que abusos na rede não fiquem impunes se a comunidade transcultural pode evitá-los com alertas, avisos e recriminações. Como resultado, o operador transcultural é um operador amplamente democrático como complexo, uma vez que sua aplicação seria apenas autorizada por decisão democrática (síntese transcultural) endossado pela maioria das posições, um consenso que pode ser ampliado e deve ser revisado periodicamente.

Enquanto o operador transcultural é o antídoto para o relativismo do qual o operador complexo seria acusado, o que não determina os méritos morais ou culturais de um registro, conceito ou posição, o operador complexo do mesmo modo envolve o equilíbrio democrático ou hermenêutico de um operador transcultural acusado de falta de apoio ou legimização suficiente. Se o operador complexo leva todas as posições e perspectivas à fricção mútua a partir da qual emergem terceiros itinerários, conivências espontâneas e deliberadamente novas, o operador transcultural é uma substância de racionalidade dialógica em busca de convergência.

Os operadores complexos são linkados em nível sistêmico, isto é, à uma “epistemografia” como conceito de rede ou sistema aberto (García Gutiérrez, 2002a; 2002b; 2007; 2008a; 2008b). A completa visibilidade da função democrática deste operador aparece apenas ao nível do sistema e não em cada registro particular. Tracidionalmente, a OC centralizou uma de suas principais linhas de pesquisa e desenvolvimento na construção de linguagens e sistemas que, a partir de perspectivas homogeneizantes ou altamente tendenciosas, comumente representam conteúdos e formas discursivas independentemente de variáveis culturais e o total conglomerado de sensibilidades e singularidades que opera tanto na conformação destes mundos complexos, simplisticamente

Page 15: García Gutiérrez - Desclassificação

representados e no acesso, apropriação e continuidade destas representações. Entretanto, o operador ˜ romperia a lógica e aparência de sistemas convencionais de classificação e linguagens.

Quanto ao operador transcultural V, mesmo atuando em nível sistêmico também, sua completa realização é apenas alcançada quando é especificamente atribuída a um registro afetando a descrição analítica fornecida por meio de outras fontes usadas pela posição e interesse local. Contudo, sua eficiência reside em um constante ativismo por diálogos interculturais e o uso adequado a que se coloca por mediadores culturalmente e socialmente comprometidos. Referências APEL , O. La transformación de la filosofía. Madrid: Taurus, 1985.

BHABHA, H.K. The location of culture. New York: Routledge, 1994.

CAPURRO, R. Hermeneutics and the phenomenon of information. In: Mitcham, C. (Ed.). Metaphysics, epistemology and technology: research in philosophy and technology. New York: Elsevier, 2000. v.19, p.79-85.

COSTA , N.C.A. O conhecimento cientifico. São Paulo: Discurso, 1997.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil mesetas: capitalismo y esquizofrenia. Valencia: Pretextos, 1994.

ECO, H. Kant y el ornitorrinco. Barcelona: Lumen, 1999.

ELSTER, J. Ulises y las sirenas: estudios sobre racionalidad e irracionalidad. México: FCE, 1989.

FOUCAULT, M. Microfísica del poder. Madrid: Las Ediciones de la Piqueta, 1979.

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. La memoria subrogada: mediación, cultura y conciencia en la red digital. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2002a.

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Knowledge Organization from a “Culture of the Border”: towards a transcultural ethics of mediation. In: López Huertas, M.J. (Ed.). Proceedings of the Seventh International Isko Conference: advances in knowledge organization. Würzburg: Ergon Verlag, 2002b. v.8, p.516-522.

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Fijaciones: estudios sobre tecnologías, culturas y políticas de la memoria. Madrid: Biblioteca Nueva, 2005.

Page 16: García Gutiérrez - Desclassificação

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Desclasificados: pluralismo lógico y violencia de la clasificación. Barcelona: Anthropos, 2007.

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Dialéctica de la exomemoria. In: Valle, C., et al. (Ed.). Contrapuntos y entrelíneas sobre cultura, comunicación y discurso. Temuco, alparaíso: Universidad de la Frontera, 2008a. p.232-260.

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Outra memória é possível: estratégias descolonizadoras do arquivo mundial. Petrópolis: Vozes, 2008b.

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. La identidad excesiva. Madrid: Biblioteca Nueva, 2009.

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Epistemología de la documentación. Barcelona: Stonberg, 2011.

HARDT, M.; NEGRI, A. Imperio. Barcelona: Paidós, 2002.

HEGEL, G.W.F. Fenomenología del espíritu. 7. reimp. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 2000.

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Dialéctica de la ilustración. Madrid: Trotta, 2006.

LEWIS, D. On the plurality of worlds. Oxford: Blackwell, 1986.

MIGNOLO, W. Historias locales, diseños globales: colonialidad, conocimiento subalterno y pensamiento fronterizo. Madrid: Akal, 2003.

MIGNOLO, W.; SCHIWY, F. Transculturation and the colonial difference: double translation. Información y Comunicación, n.4, p.6-28, 2007.

MORIN, E. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa, 1996.

OLSON, H. Transgressive deconstructions feminist/ postcolonial methodology for research in knowledge organisation. In: Frías, J.A.; Travieso, C. (Ed.). Tendencias en organización del conocimiento/trends in knowledge organization research. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2003. p.731-740.

OLSON, H.; NIELSEN, J.; Dippie, S. Enciclopaedist rivalry, classificatory commonality, Illusory Universality. In: López Huertas, M.J. (Ed.). Proceedings of the Seventh International Isko Conference: advances in knowledge organization. Würzburg, Germany: Ergon Verlag, 2002. v.8, p.457-464.

PEÑA, L. Algunas aplicaciones filosóficas de lógicas multivalentes. Theoria, n.16-18, p.141-163, 1992. Disponible en: <http://www.sorites.org/lp/articles/logica/aplicaci.htm>.

Page 17: García Gutiérrez - Desclassificação

RORTY, R. La filosofía y el espejo de la naturaleza. Madrid: Cátedra, 1983.

SANTOS, B.S. Introdução a uma ciencia pósmoderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

SANTOS, B.S. El milenio huérfano. Madrid: Trotta, 2005.

SODRÉ, M. As estratégias sensíveis: afeto, política e mídia. Petrópolis: Vozes, 2006.

Referência do artigo original: GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Desclassification in Knowledge Organization: a post-epistemological essay. Transinformação, Campinas, 23(1): 5-14, jan./abr., 2011. Disponível em: <http://revistas.puc-campinas.edu.br/transinfo/include/getdoc.php?id=905&article=457&mode=pdf> Acesso em: 20 out 2011.

Tradução por Isadora Garrido, 7.03.2012 [[email protected]]