gallois carelli - video nas aldeias

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 61-72, jul./set. 1995

    Vdeo e dilogo cultural

    VDEO E DILOGO CULTURAL EXPERINCIA DO PROJETO

    VDEO NAS ALDEIAS

    Dominique T. Gallois

    Vincent Carell i

    Centr o de Trabalho I ndigeni sta Br asi l

    Resumo:Este texto analisa a apropriaao e a utilizao da imagem pelos diferentes

    grupos indigenas que fazem parte do projeto Vdeo nas Aldeias, de acordo com seus

    projetos politicos e culturais e a expresso de suas identidades coletivas, que se

    revelam quando as imagens de si mesmo e dos outros povos, em video, so apreciadas

    e compartilhadas.

    Palavras-chave:antropologia e imagem, identidade coletiva, indgenas, poltica

    cultural.

    Abstract:In this article, we present the aprorpiation and the manipulation of the imageby different indien groups, that take part from the project Vdeo nas Aldeias acoording

    to their political and cultural projects, and their collective identification expression,

    that shows when the image of themselves and other peoples (on video) are shared.

    Keywords:anthropology and image, collective identity, cultural politics, indigenous.

    O projeto Vdeo das Aldeias, do Centro de Trabalho Indigenista,1foi idea-

    lizado no contexto do movimento de reafirmao tnica, ao qual assistimos

    1 O projeto Vdeo nas Aldeias nasceu em 1987, no Centro de Trabalho Indigenista (CTI), umaorganizao no-governamental fundada em 1979 por um grupo de antroplogos e de educadoresque desejavam estender sua experincia inicial de pesquisa etnolgica na forma de programas deinterveno adequados s comunidades indgenas com as quais se relacionavam. A equie do CTItem um patrimnio de relaes acumuladas, ao longo de muitos anos, com vrios grupos indgenas,apoiando seus esforos de reconhecimento, demarcao e desintrusamento das reservas, seus pro-jetos de manejo de recursos naturais e de desenvolvimento sustentado, assim como a implantaode programas educacionais adaptados realidade de cada povo.

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    entre os povos indgenas no Brasil nas ltimas dcadas. Concebido como umprograma de interveno direta, parte da premissa de que as identidades ind-

    genas so, hoje, mais disseminadas que exclusivas, construdas a partir de tra-dies fragmentadas e, sobretudo, a partir da assimilao de influnciastransculturais (Marcus, 1991). Por outro lado, a antropologia dos movimentostnicos evidenciou que a forma mais eficiente de fortalecer a autonomia de umgrupo permitir que se reconhea, demarcando-se dos outros, numa identidadecoletiva. Nesse processo dinmico, a reviso da prpria imagem e a seleodos componentes culturais que a compem resultam de um trabalho de adapta-o constante. A cultura que no feita apenas de tradies s existe como

    movimento, alimentado pelo contato com a alteridade.O projeto pretendia contribuir a esse movimento, colocando disposiode povos indgenas a oportunidade de um dilogo adaptado a suas formas detransmisso cultural. O objetivo era tornar acessvel o uso da mdia vdeo a umnmero crescente de comunidades indgenas, promovendo a apropriao emanipulao de sua imagem em acordo com seus projetos polticos e culturais.O vdeo representa, de fato, um instrumento de comunicao e um veculo deinformao apropriado ao intercmbio entre grupos que no s mantm tradi-es culturais diversas, mas desenvolveram formas diferenciadas de adapta-

    o ao contato com os brancos. Diversidade ainda maior pelo fato de estaremextremamente dispersos e isolados entre si, tendo raramente a possibilidade dese conhecer. Mesmo que a extenso dessa experincia ainda se limite a algunspovos,2representa uma inovao significativa, tanto no panorama interno dosmodos tradicionais de comunicao quanto na conjuntura externa, bastante re-pressiva com relao aos direitos dos ndios na rea de comunicao.

    2 O programa implantou uma rede de videotecas e centros de produo de vdeos em 12 aldeias, entreos povos waipi (Amap), enawen naw, xavante e nambikwara (Mato Grosso), gavio-parkatje xikrim-kayap (Sul do Par), krinkati (Maranho), terena e guarani (Mato Grosso do Sul). Almdisso, apia o Kayap Video Project, que envolve mais oito aldeias, alm de outros ndios que jtrabalham com vdeo por iniciativa prpria. A sede, em So Paulo, opera como centro de edio,duplicao e redistribuio tanto do material produzido pelos ndios como pela equipe do programa.

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    Apropriao do vdeo pelos ndios: um instrumento de comunicao

    Os mtodos audiovisuais representam certamente uma das modalidadesmelhor adaptadas ao dilogo entre povos que falam lnguas to diferenciadasquanto as etnias indgenas no Brasil. Por isso, assumimos que as distnciasgeogrficas, histricas e culturais que as separam poderiam ser transpostaspela circulao de imagens, atravs das quais os diferentes grupos se reconhe-ceriam para repensar e reorganizar tanto suas semelhanas quanto suas dife-renas. Como descrever e avaliar os resultados dessa transposio?

    Constata-se, em primeiro lugar, que o acesso ao vdeo amplia as possibili-

    dades de comunicao, internas e externas, entre grupos indgenas. A experi-ncia do projeto Vdeo nas Aldeias mostra que, quando colocados sob o contro-le dos ndios, os registros em vdeo so principalmente utilizados em duas dire-es complementares: para preservar manifestaes culturais prprias a cadaetnia, selecionando-se aquelas que desejam transmitir s futuras geraes edifundir entre aldeias e povos diferentes; para testemunhar e divulgar aesempreendidas por cada comunidade para recuperar seus direitos territoriais eimpor suas reivindicaes. No entanto, a experincia tambm comprova que aapropriao do vdeo pelos povos indgenas extrapola a funo instrumental da

    comunicao. Os resultados obtidos esto menos na maior circulao de infor-maes entre os povos do que na forma inovadora como esses grupos se apro-priam delas. Tecnicamente, o vdeo modifica substancialmente a produo e atransmisso de conhecimentos. Comparado com outros instrumentos de comu-nicao utilizados em programas de resgate cultural, a inovao que o vdeorepresenta tem uma dupla vantagem: sua apreciao passa pela imagem, suaapropriao coletiva.

    O primeiro ponto j suficientemente conhecido para nos determos nele.Na comunicao entre povos que falam lnguas ininteligveis, as imagens seimpem sozinhas. Elas abrem espao para a circulao de caractersticas cul-turais que essas sociedades, inclusive, sempre manifestaram atravs de gne-ros no-verbais: as coreografias de suas danas, os adornos, o gestual caracte-rstico de diferentes atividades. A simples visualizao desses elementos, tosignificativa quanto a compreenso lingstica, tem impactos prprios, auto-suficientes. Para compreend-los, basta v-los. Por ser concreta, por lidar comemoes, a imagem catalisa representaes preexistentes, presentes no imagi-nrio de cada povo. Seu impacto sensvel permite que as imagens anteriores

    sejam reconstrudas, atualizadas e refixadas de forma nova.

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    O fato das imagens serem apreciadas coletivamente outro aspecto queconsideramos essencial. O vdeo potencializa a transmisso participante, pr-

    pria s sociedades de tradio oral. A difuso de imagens em vdeo nos ptiosdas aldeias favorece a continuidade na transmisso de smbolos prprios a cadacultura, na medida em que as imagens reiteradas por uns so tambm vistas erealimentadas por outros. Em acordo com Barth (1987), para compreenderesse processo, necessrio considerar as circunstncias da estocagem e fixa-o de informaes nas mentes individuais. Nas sociedades sem escrita, osmeios de comunicao no-verbais a participao num ritual, ou numa ses-so de vdeo so determinantes pela sua capacidade evocativa. Nessas for-

    mas de transmisso, a recorrncia a imagens culturalmente legveis suficien-te para que todos, na assistncia, possam compartilhar do argumento e posteri-ormente complet-lo. Uma narrativa, um ritual, etc., no precisam ser descritosexaustivamente, pois na forma participativa de sua retransmisso que tomamsentido.

    Preocupado em diferenciar sociedades com ou sem escrita, Goody tam-bm enfoca os efeitos da alterao nos modos de comunicao. Afirma que, nofim das contas,

    a cultura no seno uma srie de atos de comunicao [] que envolvemprogressos nas possibilidades de armazenagem, na anlise e na criao deconhecimento, assim como as relaes entre os indivduos envolvidos. (Goody,1988, p. 47).

    O acesso ao vdeo constituiria uma inovao que interfere decisivamentena produo da cultura, justamente porque incentiva sua permanentereelaborao. Dilogos formais e informais, participao em rituais, visitas en-tre aldeias, so algumas modalidades tradicionais de comunicao existentes

    em praticamente todas as sociedades indgenas. Mas elas lidam com conte-dos culturais prefixados e previsveis. Ao contrrio, as sesses de vdeo sosituaes novas que permitem construir coletivamente conhecimentos diferen-tes, tanto em seu contedo quanto na forma como so apropriados.

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    Informao a servio da afirmao tnica

    Se o contedo dos conhecimentos apropriados atravs do vdeo muda, porque, como afirma Goody (1988, p. 55), as sociedades tradicionais estomarcadas no tanto pela ausncia de pensamento reflexivo como pela ausn-cia de utenslios apropriados meditao construtiva. Como a escrita, o vdeo um canal de informaes que altera esse quadro. O acesso informaotrazida nas fitas permite que cada grupo recoloque sua posio particular nojogo mais amplo das relaes intertnicas, confrontando-a com a de outrospovos. De acordo com Goody, antes a forma como as alternativas so apre-

    sentadas que deve ser enfatizada. Da mesma forma que a introduo da escri-ta estudada por este autor (Goody, 1988, p. 54), o acesso ao vdeo permitiriaaos povos indgenas tomar conscincia das diferenas e das alternativas. Umaetapa indispensvel a qualquer processo de reafirmao tnica.

    O sucesso dessa trajetria depende da dosagem de ingredientes, internose externos, determinada pela particularidade de cada situao. Como argu-menta Lvi-Strauss (1979, p. 34),

    as diferenas so extremamente fecundadas, o progresso s se verificou atravs

    das diferenas [] para que uma cultura seja realmente ela mesma e esteja apta aproduzir algo de original, seus membros precisam estar convencidos de suaoriginalidade e superioridade em relao aos outros.

    Num texto anterior, ilustramos esse processo a partir da experincia dovdeo entre os Waipi. Mostramos que a reviso da auto-imagem consiste ba-sicamente numa reordenao do tempo e do espao no qual cada grupo sesitua.

    Novas continuidades so criadas, no tempo, porque as informaes trans-mitidas pelo vdeo enriquecem a reflexo sobre a prpria histria do contato,reordenada de acordo com uma lgica que no diz respeito apenas vivnciade um grupo, mas de todos os ndios conhecidos pelo vdeo. Ao confrontarsua prpria experincia com a dos outros, as comunidades transpem senti-mentos preexistentes para idealizar uma nova sntese.

    No espao, porque as imagens apresentam os povos indgenas em situa-es que conjugam aspectos da realidade que as tradies orais normalmenteseparam: caractersticas tecnolgicas, lingsticas e aparncia fsica, posio

    de cada povo com relao aos brancos. A classificao sustentada, antes, em

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    conceitos mtico-cosmolgicos d lugar a uma nova classificao, na qual se-melhanas e diferenas entre os povos so determinadas no mais pelas cate-

    gorias mticas, mas pela viso panormica da situao de contato diferenciadaretratada nos vdeos de outros povos indgenas. O vdeo propiciaria, de formanica, uma conscincia da mudana, indispensvel para a formulao de aesvisando ao controle do convvio intertnico (Gallois; Carelli, 1992).

    O dilogo que se estabelece entre comunidades indgenas atravs do vdeo um dos resultados mais interessantes do programa do CTI. Como constataMarcus (1991), para lutar pela sua autonomia, as comunidades no precisamfugir do mundo ou recorrer autarquia. Nossa experincia permitiu verificar,

    em diversas oportunidades, que a circulao de documentos em vdeo entrealdeias permite a comparao e a integrao das estratgias encontradas poroutros grupos para seu relacionamento com setores diferenciados da sociedadenacional. Ao suscitar a reflexo crtica, tambm sugere novas formas de ao.

    Do intercmbio de imagens ao encontro na vida real

    por isto que, entre os desdobramentos mais concretos do intercmbiopromovido pela circulao de vdeos, esto os encontros, na vida real, entrepovos que se conheceram, inicialmente, atravs de imagens da TV. O carterrestrito desses encontros e a existncia de afinidades culturais preexistentesso aspectos essenciais nesse processo de micropoltica, em oposio sformas de intercmbio pan-indgenas, muito mais conhecidas. De fato, as aesnormalmente consideradas como parmetro para os ganhos do movimento in-dgena so a luta para a garantia de direitos territoriais ou a captao de apoiosassistenciais mais efetivos. Os caminhos citados so as formas mais imediatasde comunicao e intercmbio, resultantes das associaes, das reunies ou

    assemblias pan-indgenas. Essas modalidades mais conhecidas damacropoltica indgena obtm seus ganhos na soma de mltiplas vozes. Porisso, sua descrio tende a diluir as identidades especficas dos povos envolvi-dos. Como os encontros promovidos pelo projeto Vdeo nas Aldeias, ao contr-rio daqueles, so restritos, os parmetros para sua avaliao so muito diferen-tes. Se, de acordo com Marcus (1991, p. 205), a identidade cultural s existeenquanto multiplicidade de fragmentos, cabe definir em quais circunstnciaseles se sobrepem e se amalgamam. O carter declaradamente interativo doprojeto Vdeo nas Aldeias favoreceu diretamente o intercmbio entre os povos

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    e intermediou as visitas. Na interao entre comunidades e observadores, des-tacam-se as negociaes envolvidas nos processos de afirmao tnica. Por

    exemplo, a maneira como os lderes que dirigiram os encontros se apropriaramde suas relaes conosco para colocar em prtica seus prprios programasculturais. Essa forma de interao intertribal mostra que ela atende menos auma poltica interna de resgate cultural do que s necessidades de aberturaimpostas pela poltica externa de cada grupo. A relao que cada povo man-tm, ou pretende manter, com outros ndios foi construda em funo das rela-es que mantm com os brancos. Por isso, os encontros so ilustrativos domovimento de construo de identidades disseminadas e multilocalizadas

    mencionado por Marcus (1991, p. 205).

    O papel do vdeo na comunicao intelectual o retorno do olhar

    Construir, atravs da mdia audiovisual, informaes para o pblico leigoou para o crculo restrito dos especialistas, representa certamente uma experi-ncia valiosa para a reflexo antropolgica. Mais interessante ainda constru-las com e para os sujeitos da pesquisa: as comunidades indgenas. Retorno,feed-back, antropologia interativa ou compartilhada, como pregava Jean Rouch,so princpios muitas vezes declarados, mas raras vezes concretizados. O queas comunidades estudadas, fotografadas e filmadas esperam da interao queestabelecem com antroplogos no so, apenas, as fotos, os filmes editados ouas teses prontas. Entretanto, essa forma mecnica de retorno que a maiorparte dos etnlogos concebe e pratica. O projeto de vdeo do CTI se propeinverter e enriquecer essa relao. Ao invs de simplesmente se apropriar daimagem desses povos para fins de pesquisa ou difuso em larga escala, esseprojeto tem por objetivo promover a apropriao e manipulao de sua imagem

    pelos prprios ndios. Essa experincia, essencial para as comunidades que avivenciam, representa tambm um campo de pesquisa revelador dos processosde construo de identidades, de transformao e transmisso de conhecimen-tos, de formas novas de auto-representao.

    Ao longo dos ltimos anos, acumulamos um arquivo de imagens represen-tativo de uma dezena de povos indgenas. Esse arquivo, que contm valiososfragmentos da memria desses povos, destina-se s comunidades indgenas.Guardar esse acervo em So Paulo apenas para garantir a imagem diferencia-da desses povos no futuro seria simples arquivismo: j temos, nas bibliotecas

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    e nos museus, milhares de testemunhos de seu passado que, porm, permane-cem-lhes inacessveis. A preservao de imagens significativas para a mem-

    ria dos povos indgenas s ganha sentido quando colocadas disposio dessespovos, para que eles, enquanto sujeitos de seu futuro, as utilizem no processode reviso de suas identidades. A manuteno das culturas e o futuro diferen-ciado desses povos dependem muito mais de sua criatividade nos processos dereconstruo, adaptaes e selees de sua memria do que da continuidadede um passado retratado em imagens de arquivo.

    Por essas razes, o programa de vdeo do CTI no se limita a devolvermateriais uniformes para todas as aldeias onde atua, mas procura atender de-

    mandas especficas dos ndios em relao s informaes sobre o mundo queest sua volta e que desejam conhecer, apia concretamente a eficcia desuas redes de comunicao interna, etc. Cabe equipe captar a particularidadeda situao de cada grupo em sua relao com o mundo exterior, pesquisar eproduzir os documentos que atendam s demandas de cada comunidade. Aocaptar as demandas de informao formuladas pelos ndios, tem-se a oportuni-dade de testar suas formas de percepo e necessidades cognitivas, na lgicade uma pesquisa de etnoconhecimentos. Para o pblico indgena, a equipe doprograma prepara materiais especficos, a partir dos registros do arquivo e da

    seleo de outros materiais. um dos objetivos do presente projeto procuraruma melhor adequao, tanto qualitativa quanto quantitativa, dos produtos des-tinados s aldeias, para atender a demandas especficas e adaptar as ediess necessidades de cada comunidade. Apresentar a grupos indgenas, extre-mamente isolados e diversificados, pacotes de vdeos sobre a realidade indge-na no restante do pas tem ampliado seu quadro de referncias, possibilitandouma nova reflexo sobre si prprios e suaperfomancepoltica. Dessa forma,o carter experimental assumido pelo projeto procura evitar duas armadilhashabituais na rotizinao dos programas de comunicao ditos alternativos:responder de forma mecnica e homognea, limitar-se a frmulas didticas.Nossa experincia evidencia que o retorno que temos a oferecer aos ndios o retorno do olhar. E a troca que se estabelece, por meio da mdia audiovisual, exatamente produzir conhecimento, de um lado e outro. Produzir o encontroentre modos de ver e de pensar, ampliar as possibilidades de comunicao, deidentificao, ou de confronto.

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    Um canal para as vozes dos ndios

    antropologia coloca-se como objetivo a traduo de culturas, inter-vindo na comunicao intercultural, participando da construo de uma socie-dade mais tolerante para as diferenas culturais. No cabe apenas ao antrop-logo descrever o processo de construo dessas diferenas. Cabe-lhe, sobre-tudo, captar e transmitir seus significados polticos. A etnologia indgena desen-volvida no Brasil tem particularidades estimulantes para aceitar esse desafio.Estamos muito longe do relativismo cultural, que fechava as possibilidades detraduo intercultural. Aproximamo-nos dos povos indgenas desde que assu-

    mimos a necessidade de uma articulao estreita entre responsabilidade profis-sional e prtica poltica. Pretendemos que nossas pesquisas contribuam me-lhor compreenso entre segmentos sociais, tnicos e culturas diferentes. Oindigenismo, entre ns, no se reduz a uma vivncia paralela, est inseridodentro da discusso terica da disciplina, que tem focalizado de maneira inova-dora a relao entre povos indgenas e sociedade envolvente, nos estudos decontato intertnico, h muito tempo em pauta na etnologia brasileira.

    Para cada pblico-alvo, a comunicao audiovisual de conhecimentosantropolgicos apresenta dificuldades e desafios prprios: o grande pblico; opblico especializado; os ndios. So principalmente os dois extremos, quecorrespondem aos destinatrios de produtos considerados injustamentesubprodutos da pesquisa antropolgica, que nos interessam. Os principaisresultados alcanados pelo projeto Vdeo nas Aldeias do CTI esto exatamentena justaposio de dois tipos de experincias de comunicao diametralmenteopostas, porque destinadas a pblicos situados nas extremidades da cadeia decomunicao: de um lado a sociedade da qual fazemos parte, o chamado grandepblico e, do outro, os sujeitos do conhecimento antropolgico, as comunida-

    des estudadas.Para avaliar o destino dos conhecimentos que os antroplogos acumulamem suas pesquisas, como especialistas de povos diferentes, poderamos par-tir de duas questes bsicas: compartilhar o saber do antroplogo, com quem?,o saber de quem?, do antroplogo ou dos outros? Se a meta interferir nacomunicao intercultural, no seria obrigao dos antroplogos colocar a mdiaaudiovisual qual tem acesso disposio dos povos que estudam, como umcanal de comunicao com nossa sociedade? Nessa abordagem, o antroplogocoloca seus conhecimentos enquanto instrumento para a captao e, sobretu-

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    do, a transmisso do ponto de vista dos povos estudados. Usa esses conheci-mentos para tornar o ponto de vista do grupo estudado sensvel ao pblico

    leigo. Se est claro que o autor no apaga sua presena na construo dotrabalho, esta opo de comunicao exige que ele atenue sua voz,3para dei-xar espao voz dos outros. E no se trata apenas da construo da fala queguia o documento audiovisual. Trata-se do contedo desse discurso: as versesdo grupo sobre sua histria, suas opes para o futuro e no as interpretaesque o antroplogo faz dessa histria, ou desse futuro.

    Transmitir a voz dos outros exige sensibilidade na percepo da demandados dois extremos da cadeia de comunicao: nossa demanda, isto , a deman-

    da de nossa sociedade enquanto pblico, de um lado, a demanda da comunida-de estudada, do outro.Onde comea uma cultura? (Hritier-Aug, 1992). O que mais signi-

    ficativo na justaposio de diferenas culturais? No seriam os antroplogos osintermedirios melhor situados para explicar tais processos? Como apresentar,entre ns, o ponto de vista do outro? Como devolver aos ndios o olhar quenossa sociedade coloca sobre eles? A escolha desse ponto de vista exige algu-mas opes metodolgicas, que consistem, essencialmente, numa melhor arti-culao das respectivas demandas de conhecimento:

    Abandonar a perspectiva do relativismo cultural e partir do pressupostoque as sociedades no so incomunicveis, incompatveis, intraduzveisuma na outra. O processo criativo de desconstruo e reconstruo doreal aludido anteriormente consiste, nesse caso, em viabilizar a identifica-o, selecionando pontos de vista de nossa sociedade a serem atingidos

    3 Se levada adiante com rigor, essa opo radicalmente distinta da chamada antropologia visual que

    almeja explicitar o saber dos antroplogos sobre o saber dos outros. Essa abordagem apresenta,sobretudo, interesse didtico, como complemento formao de profissionais da antropologia, namedida em que os recursos audiovisuais potencializam a descrio do trabalho etnogrfico que sepretende retratar: como se aproximar do grupo estudado, como entend-lo a partir de insightsque geralmente consistem na articulao de um evento a um conceito terico presente na mente doantroplogo, como registrar os dados em funo de sua apresentao no cotidiano da pesquisa, emsua mincia, como esses dados so recortados em funo de hipteses interpretativas, etc. Uma dasprincipais caractersticas desse mtodo didtico de ensinar antropologia com apoio do audiovisual(mais sugestivo e didtico que os escritos) de pretender descries completas. Mas tanto quanto naforma escrita, a voz do antroplogo domina nos temas privilegiados por esta subdiviso da antro-pologia. E, por conseguinte, os destinatrios dessas explicaes, apresentadas em forma de minuci-osas contraposies de interpretaes, so, tambm, os antroplogos.

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    pelo ponto de vista dos outros, que se quer transmitir. A vantagem essen-cial do audiovisual para a comunicao intercultural est no impacto da

    imagem, que impe conceitos ticos, sentimentos, sensaes que so uni-versais, que transcendem a diversidade das culturas. Por serem atos depercepo, elas aproximam. Simetricamente, cabe ao antroplogo escolher, na demanda de comuni-cao intercultural do grupo estudado, os aspectos mais diretamente rela-cionados com sua experincia de contato com nossa sociedade. No Bra-sil, os povos indgenas saram do isolamento e nesse processo, formula-ram demandas especficas para a nossa sociedade, que so raramente

    abordadas pelos filmes etnogrficos. A maior parte desses documentrios,entretanto, apenas continua evidenciando o fascnio dos antroplogos pe-los saberes tradicionais que, enquanto especialistas, esto orgulhosos emdesvendar nos seus trabalhos. O ponto de vista mais freqentemente ex-pressado nos documentrios, quando tratam dos processos de mudanacultural, o saudosismo pelo desaparecimento dessas tcnicas ances-trais. Persistem em abordar a situao dos ndios nos termos impostospelo preconceito comum de povos ameaados. A globalizao da cultu-ra tema de reflexo antropolgica freqentemente emprobrecido na pro-

    duo destinada ao grande pblico, na forma de uma simples dennciadas perdas sofridas pelas culturas dominadas.

    Por que no retomar a pauta essencial da antropologia contempornea:entender e controlar o significado cultural das diferenas, abordando, por exem-plo, o fascnio que nosso mundo exerce sobre as populaes indgenas? Inovarnos estudos de aculturao, mostrando no apenas a ameaa que pesa sobreas tcnicas ancestrais, mas tambm as opes dos ndios para um certo tipode desenvolvimento, seu interesse em adquirir novos saberes, o modo comoesses conhecimentos so absorvidos, adaptados, atravs de processos criati-vos, reveladores das diferenas culturais. Em seus escritos, os antroplogosabandonaram h muito tempo a descrio de tribos isoladas em mundos es-tanques. Na teoria antropolgica, o relativismo cultural deu espao discussoda universalidade dos invariantes do pensamento humano. A prpria etnografia,que descreve o mido, no se restringe mais ao contedo das culturas espec-ficas, tomadas como unidades discretas, fechadas e incomunicveis, espciesraras a serem comparadas. Ela trata de uma questo bsica: a construo das

    diferenas culturais. nesse quadro que a etnologia brasileira tem focalizado

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    as situaes, exemplares, de encontro intercultural. Dito em outras palavras, essencial repensarmos os recortes que delimitam nossa apreenso dos outros.

    Para o grande pblico, os ndios continuam sendo apreciados na medida em queso apresentados na forma de povos exticos, que exercem fascnio pela suadistncia. Ao abrir nossos trabalhos voz desses povos, preciso abandonar aperspectiva da distncia para privilegiar a da aproximao: o do contato. Porque no faz-lo dando prioridade demanda de interao que esses povoscolocam para nossa sociedade, privilegiando as suas questes?

    Referncias

    BARTH, Frederik. Cosmologies in the making: a generative approach to culturalvariation in inner New Guinea. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

    GALLOIS, Dominique T.; CARELLI, Vincent. Vdeo nas aldeias: a experinciaWaipi. Caderrnos de Campo, FFLCH/USP, v. 2, 1992.

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