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RAFAELA DO ROCIO GOMES DE ABREU GALA PLACÍDIA, A IMAGEM DE UM PENHOR ESPECIAL CURITIBA 2011

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RAFAELA DO ROCIO GOMES DE ABREU

GALA PLACÍDIA, A IMAGEM DE UM PENHOR ESPECIAL

CURITIBA

2011

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RAFAELA DO ROCIO GOMES DE ABREU

GALA PLACÍDIA, A IMAGEM DE UM PENHOR ESPECIAL

CURITIBA

2011

Monografia apresentada à disciplina Estágio

Supervisionado em Pesquisa Histórica como

requisito parcial à conclusão do Curso de

História, Setor de Ciências Humanas, Letras e

Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto

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RESUMO

O presente trabalho se propõe à uma análise da construção da imagem da imperatriz

Gala Placídia entre os seus contemporâneos. Placídia viveu do final do século IV até a

metade do século V, era neta de Valentiniano I, filha de Teodósio, o Grande, e meia-

irmã do imperador Honório. Casou-se com Ataúfo e assim tornou-se rainha dos

visigodos, posteriormente selou matrimônio com o imperador romano Constâncio, e

desta união gerou um filho, o imperador Valentiniano III. O recorte temporal adotado se

limita a estudar a imagem de Placídia até seu casamento com Ataúfo. Este limite

cronológico deriva do maior número de relatos a respeito da Imperatriz nas fontes até

seu primeiro matrimônio e também por responder aos objetivos deste trabalho. Para

investigar a imagem que Gala Placídia passava para aqueles que viveram em seu tempo,

foram utilizadas duas fontes de autores distintos. A primeira obra foi “História contra

os pagãos” de Paulo Orósio; e a outra obra foi “Nova História” de Zósimo. O estudo

das fontes foi balizado em uma profunda revisão da bibliográfica acerca do tema,

incluindo autores que se dedicaram a pesquisa da história do Império Romano durante

os séculos IV e V.

Palavras-chaves: Gala Placídia, imagem, Antiguidade tardia

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SUMÁRIO

1. Introdução......................................................................................................

p. 02

2. Capítulo I - Fontes utilizadas........................................................................ p. 05

2.1 Zósimo e sua obra “Nova História”................................................... p. 06

2.2 Paulo Orósio e sua obra “História contra os Pagãos”........................ p. 07

2.3 Revisão bibliográfica......................................................................... p. 08

3. Capítulo II - Contexto Histórico....................................................................

p. 10

3.1 O Império de Teodósio, O Grande.................................................... p. 10

3.2 Estilicão............................................................................................. p. 16

3.3 O saque de Roma............................................................................... p. 24

3.4. Honório............................................................................................. p. 27

4. Capítulo III - Gala Placídia...........................................................................

p. 31

4.1. O casamento de Gala Placídia e Ataúfo............................................ p. 32

4.2. O retorno de Gala Placídia a corte romana....................................... p. 34

4.3. As dificuldades enfrentadas por Placídia a frente do poder.............. p. 35

5. Considerações finais......................................................................................

p. 37

6. Referências bibliográfica...............................................................................

p. 40

Anexo...............................................................................................................

p. 41

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1. Introdução

A pesquisa proposta neste trabalho visa analisar a imagem da imperatriz Gala

Placídia, entre seus contemporâneos. Placídia viveu do final do século IV até a metade

do século V, era neta de Valentiniano I, filha de Teodósio, o Grande, e meia-irmã do

imperador Honório. Casou-se com Ataúfo e assim tornou-se rainha dos visigodos,

posteriormente selou matrimônio com o imperador romano Constâncio, e desta união

gerou um filho, o imperador Valentiniano III. Durante a mocidade foi efetivamente

imperatriz de Roma, por direito próprio como uma Augusta oficial. Quando da morte de

seu marido Constâncio e posteriormente de seu irmão Honório controlou a política do

Império Romano do Ocidente em nome de seu filho Valentiniano III, que fora

imperador aos seis anos. A fascinante Augusta possuía ligações mais do que evidente

com a política do Império por pertencer a casa teodosiana, mas, além disso, sua imagem

representou características distintas entre seus contemporâneos bárbaros ou romanos.

Os diferentes conceitos que emanavam da figura de Placídia ultrapassavam o fato de sua

vida singular – agitada- para uma princesa, visto que viveu em um período de profundas

mudanças estruturais na política do Império Romano Ocidental- ora representou o

prestígio romano e ora simbolizou a possibilidade salvação dos romanos.

A primeira vista, em muitos aspectos, a vida de Gala Placídia pode parecer tomar

um papel secundário na história imperial, no entanto uma análise mais profunda permite

deslumbrar o quão intrínseco a sua figura estava nos acontecimentos do início do

século V. Quando o Império passava por dificuldades para se defender, Placídia fora

uma das vítimas e permaneceu como cativa dos bárbaros. No momento em que a

presença goda era clara, e muitas vezes necessária dentro do Império Ocidental, o

casamento entre Gala Placídia e Ataúfo, o rei dos visigodos, representou a

enfraquecimento do corte de Ravena1, assim como o fortalecimento do elemento

bárbaro na tão “civilizada” Roma. Muitos romanos viram neste casamento a

possibilidade paz. O destino de Gala Placídia acompanhou os infortúnios do Império,

que derivaram das escolhas políticas de seu pai Teodósio e de seus sucessores, entre

elas a política pacífica com os bárbaros “confederados”. Assim como alguns romanos

1 Honório e sua corte mudaram-se para Ravena, em meados de 402, que se tornou a capital do Império

Romano do Ocidente.

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soube aproveitar da ligação com os visigodos e conseguiu um grupo de súditos fiéis

dentre os bárbaros.

O exército romano obteve alguns êxitos, garantindo o domínio sob parte do

território, como na Hispania em 416, e mais uma vez a vida de Placídia resumiu essas

parcas vitórias militares. O imperador Honório cedeu a mão da irmã em casamento para

o comes, Constâncio, que havia obtido algumas vitórias em suas campanhas militares.

Em tempos em que a corrupção e os artífices faziam parte do cotidiano romano, a

Augusta foi tema das intrigas palacianas, e acabou banida com seu filho pelo próprio

imperador, Honório. E quando finalmente obteve o poder para controlar a política do

Império teve que lidar com uma disputa entre seus próprios comandantes militares.

No decorrer de sua vida, Gala Placídia, ficou noiva de Euquério, casou-se com um

rei godo, Ataúfo, e após a morte deste, uniu-se a um comes romano, Constâncio.

Quando se achava que a calmaria iria perpetua em seus dias, Placídia tomou o poder em

suas mãos e teve como grande rival um de seus próprios líderes militares, Aécio. Em

uma pesquisa mais atenta é possível perceber que Placídia não foi somente um elemento

importante na corte teodosiana, mas que sua vida foi a própria representação dos dias

conturbados que antecederam a fragmentação política do Império Romano Ocidental. E

que por tanto, a construção de sua imagem, por seus contemporâneos, foi em parte

resultado dos acontecimentos sofridos pelo Império e não somente por suas atitudes.

Como veremos, Placídia representou muitos aspectos da sociedade em que viveu, para

Ataúfo representou a obtenção do nome romano e de todo o prestígio que ele carregava.

Alguns romanos, como Orósio, viam na Imperatriz uma possibilidade de paz e o

fortalecimento do Império, visto que está se uniu a um rei bárbaro bastante poderoso. A

imagem da Augusta pode ser contraditória, pois se por uma perspectiva era uma fiel

devota dos preceitos da religião e em nome da religiosidade realizou bem feitorias, por

outra, vivenciou o desmantelamento do seu próprio Império. De qualquer forma sua

vida foi singular ou pelo menos atípica, Gala Placídia nasceu no Oriente, foi educada

em Roma, viajou com os godos, ficou junto da corte em Ravena, foi banida para

Constantinopla, voltou para Ravena, e por fim faleceu em Roma em 450.

Com base na pequena exposição acima, a pesquisa proposta neste trabalho visa

estudar a imagem de Gala Placídia entre seus contemporâneos, assim como a influência

que as manobras políticas de seu pai, o imperador Teodósio I (379-395) e seu irmão

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Honório tiveram sob a representação da Augusta. Por meio da análise das fontes

pretende-se rever á história do então conturbado Império, com o objetivo de averiguar a

imagem de Gala Placídia, hora como filha, hora como irmã, ou ainda como esposa e

mãe no cenário político no início do século V. Nosso estudo pretende analisar a imagem

da Augusta até o seu casamento com Ataúfo, por entender que os relatos nas fontes são

em maior quantidade até este período e por nos permitir estabelecer a representação de

Placídia.

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2. Capítulo I - Fontes utilizadas

Para investigar a imagem que Gala Placídia passava para aqueles que viveram em

seu tempo, são utilizadas duas fontes de autores distintos. A primeira obra é “História

contra os pagãos” de Paulo Orósio; e a outra obra é a “Nova História” de Zósimo. Ao

contrário de outras figuras históricas, Placídia não produziu nenhuma obra escrita, tão

pouco foi tema principal de alguma obra de seus contemporâneos, daí a dificuldade em

realizar um estudo sobre sua imagem e sobre sua vida de uma forma geral. Cada um a

seu modo, tanto Zózimo como Orósio tratam da História de Roma, enfatizando as

dificuldades enfrentadas durante a Antiguidade Tardia- tais como as invasões bárbaras-

sendo assim os relatos sobre Placídia são parcos. Orósio, por exemplo, ao tratar de

Estilicão, do saque a Roma, e de Ataúfo, menciona indiretamente algumas

características de Placídia. Outro empecilho respectivo as fontes é que esses relatos em

sua maioria referem-se até o período em que a Augusta estava casada com Ataúfo,

excluindo um importante momento de sua vida em que esteve no comando do poder

como representante do seu filho, o jovem imperador Valentiniano III. E embora, seja

possível fazer frente a este problema através do estudo de outros autores e até fontes de

outra natureza, como objetos arqueológicos2, está pesquisa optou por um recorte

cronológico que se limita a estudar a vida de Placídia até seu casamento com Ataúfo.

Este limite cronológico deriva do maior número de relatos a respeito da Imperatriz nas

fontes até seu primeiro matrimônio e também por responder os objetivos deste trabalho.

A representação da Augusta foi constituiída de forma definitiva até seu casamento com

Ataúfo, os relatos posteriores parecem apenas confirmar e reforçar está imagem.

Como qualquer obra que possa servir como fonte histórica sua produção esta

impregnada de tendências concernentes a vivência do autor, dando um enfoque e uma

qualificação de valores muito própria ao período e contexto que foi produzida. Tendo

este fator em mente, um comentário sobre os autores se faz necessário para uma análise

crítica dos relatos.

2 Placídia que data entre os anos de 425 a 435 – anexo 1.Como o quadro de Gala Placídia com Honória e

Valentiniano III e uma moeda cunhada com o rosto de

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2.1. Zósimo e sua obra “Nova História”

Quanto à biografia de Zósimo a grande parte das informações são oriundas de sua

própria obra “Nova História”, são dados sempre indiretos e deduzidos já que o autor não

fala nunca de suas circunstâncias biográficas. Os acontecimentos narrados na obra

“Nova História” são, por tanto, da época em que Zósimo viveu, e está firmemente

marcada por uma cronologia através dos eventos. É provável que a obra tenha sido

terminada no final do século V. Zósimo foi um historiador de língua grega atuante entre

o final do século V e o início do século VI em Constantinopla. Sua descrição desta

cidade é muito cuidadosa e minuciosa3, dando alguns indícios que sua origem seja de lá,

mas não se sabe ao certo as datas de nascimentos e de morte. Por meio da obra se deduz

que o autor havia estudado Heródoto, Tucídides, Eurípedes, Jenofonte e Demóstenes e,

portanto possuía uma formação retórica. Zózimo exerceu a função de advocatus fisci

(“advogado do fisco”), tendo alcançado na carreira o título honorífico de comes

("conde"). Zósimo seguia o paganismo, talvez tivesse que confessar sua fé em segredo,

visto que possuía um alto cargo publico.

Zósimo se encontrava ativo na época do Imperador Anastásio I – reinou de 491 a

518- se depreende por uma passagem da sua obra “Nova História”4 na qual ele cita o

chysargyrion, imposto abolido por Anastásio em 498. A obra foi escrita em grego e

dividida em seis partes (no período se utilizava rolos), nas quais contêm informações do

período de Augusto – 31 a. C. a 14 d. C.- até o ano de 410, e é uma das mais

importantes fontes para o conhecimento dos eventos do século IV e do início do século

V. Sua atitude frequentemente pró-pagã e anticristã lhe dá um colorido especial,

podendo ser utilizada como balizadora para as obras de historiadores cristãos da época,

como Paulo Orósio.

O texto da “Nova História” sobreviveu num único manuscrito, atualmente no

Vaticano (Condex Vaticanus Graecus 156), dos séculos X_XII, provavelmente

3 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro II. Capitulo 30.

4 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro II. Capitulo 28.

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originário do mosteiro de São João Estúdio, de Constantinopla. Mas mesmo esse último

manuscrito sofreu danos: um caderno de oito folhas, entre o final do livro I e o início do

livro II, desapareceu; uma folha também falta do livro V, capítulo 22. O manuscrito

encontra-se no Vaticano desde 1475.

2.2 Paulo Orósio e sua obra “História contra os Pagãos”

A outra fonte utilizada “Historiae adversum Paganos” (História contra os Pagãos)

é de Paulo Orósio. Orósio foi um escritor ibérico, historiador, teólogo, sacerdote e

apologista cristã, natural da Hispania Romana, possivelmente natural de Bracara

Augusta. Desconhecem-se as datas do seu nascimento e da sua morte, entre tanto,

Agostinho, por volta de 410 – 414, qualifica-o como jovem prebístero que poderia ser

seu filho, assim seu nascimento deve rondar por volta de 385-390.

Paulo Orósio foi uma figura de referência cultural, tendo contato com grandes

personalidades de sua época, como Santo Agostinho. O caráter universalista da sua obra

talvez seja o matiz mais destacável. Em certa altura de sua vida, Orósio resolveu deixar

a região da Hispania e foi para o norte da África, visto que as invasões bárbaras (409)

atormentavam-o e as divisões e novidades doutrinárias incomodavam-o. Na África,

Orósio encontrou-se com um intelectual da época: Agostinho de Hipona, pelo qual é

possível que ao menos conhecesse “A Cidade de Deus”. Após ter permanecido algum

tempo em Hipona como discípulo de Agostinho, em 415 foi enviado por este à

Palestina, com uma carta de apresentação destinada a Jerônimo de Strídon, intelectual

que então exercia o monacato em Belém. A viagem à Palestina respondia a alguns

objetivos: tratar com Jerônimo diferentes temas teológicos; aprender os pontos que

uniam a teologia priscilianista e a de Orígenes (para melhor combater); auxiliar

Jerônimo e outros ortodoxos contra Pelágio.

O primeiro trabalho de Orósio, foi “Consultatio sive commonitorium ad

Augustinum de errore Priscillianistarum et Origenistarum” (Consulta ou advertências

de Agostinho acerca do erro dos Priscilianistas e dos Origenistas). A segunda obra foi

“Liber Apologeticus contra Pelagium de Arbitrii libertte”.

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Quando retornou para Hipona, o sacerdote manteve seus diálogos com Agostinho,

no qual lhe entregou a correspondência que portara em nome de Jerônimo e informou

do encontro que teve com Pelágio. Durante esse reencontro com Agostinho foi gestada a

obra de Paulo Orósio, a “Historiae adversum Paganos”. Contudo, surgem problemas à

hora de datar tanto a elaboração quanto a finalização, provavelmente sendo da segunda

década do século V. A “Historiae adversum Paganos” foram escrita por sugestão de

Agostinho, a quem, de resto, são dedicadas. Agostinho teria pedido ao seu jovem

discípulo que investigasse as causas que contribuíram para as tragédias. Orósio redigiu a

“Historiae adversum Paganos”, com forte carga religiosa, acusando os pagãos pelo

sucedido, por ainda não se terem convertido ao Cristianismo, a verdadeira religião. Esta

obra seguiu a “De Civitate Dei” de Agostinho, onde contrapõe a cidade terrestre (Roma)

humana, corrupta e perecível e à cidade celeste, divina, incorruptível e, essa sim,

verdadeiramente eterna.

As diferenças entre Zósimo e Paulo Orósio, contribuíram com nosso objetivo,

visto que cada um dos autores nos trás valores de juízo opostos e assim permite que

nossa análise da imagem de Gala Placídia se torne mais completa. A religiosidade e os

valores cristãos que Orósio aplica em sua narração podem ser balizados pelos relatos de

Zósimo.

2.3. Revisão bibliográfica

O estudo das fontes é possível somente através de uma profunda análise da

bibliográfica acerca do tema. Autores que se dedicaram a pesquisa da história do

Império Romano e que produziram manuais foram amplamente utilizados, tais como

Piganio5l, Riché

6 e Rouche

7, coma finalidade de produzir um sólido conhecimento do

momento histórico em viveu Gala Placídia. Levando em consideração que este período

foi assinalado pela fragmentação política do Império Romano foi de crucial relevância a

5 PIGANIOL, André. Historia de Roma. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires,

1961.

6 RICHÉ, Pierre. Grandes Invasões e Impérios Séculos V a X. Lisboa.Publicações Dom Quixote, 1980.

7 ROUCHE, Michel. Os Impérios Universais Séculos II a IV; Coleção: História Universal 4. Lisboa,

Publicações Dom Quixote, 1980.

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utilização de estudiosos que tratassem especificamente das características das mudanças

em que o Império passou, entre eles Ferrill8 e Marrou

9, visto que estes aspectos

estiveram intrinsecamente relacionados com a Augusta.

Teodósio ficou marcado como o último soberano da quarta centúria de um

imperium unificado e ainda de certa forma hegemônico sobre todo o mundo

mediterrânico. O imperador obteve muitos êxitos religiosos, e por sua religiosidade foi

tema dos escritos de alguns de seus contemporâneos, como Orósio10

. Contudo, quando

morreu, em 17 de janeiro de 395, deixou um império divido em duas partes e abertos a

todos os ventos e uma forte presença bárbara. Panorama este herdado por Honório que

governou o Ocidente de 395 a 425, e teve que enfrentar as ameaças internas e externas

de um Império já bastante fragilizado com os perigos das invasões. Tendo em vista estes

componentes esta pesquisa visa investigar Gala Placídia como um elemento

representativo do declínio Império Ocidental, como se conhecia.

8 FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.

9 MARROU, Henri-Irénée. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia?. Lisboa. Editorial Áster.1979.

10 ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 35; livro VII.

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3. Capítulo II – Contexto Histórico

3.1. O Império de Teodósio, O Grande

Muitas das experiências vivenciadas por Gala Placídia foram consequências das

políticas de seu pai, Teodósio, assim como algumas das dificuldades enfrentadas por

seus irmãos Honório e Arcádio foram desdobramentos do governo anterior. Em maior

ou menor intensidade o legado de Teodósio marcou o governo de Honório, que somada

às invasões, gerou um quadro político, no inicio do século V, que veio a influenciar a

vida pessoal de Gala Placídia, e a posição social que ela representava. Tendo esses

aspectos em visto é de fundamental importância analisar alguns pontos do governo de

Teodósio, visto que foi principalmente ele quem engendrou de forma legítima a

presença dos visigodos. Embora alianças -como a dos romanos com os visigodos- já

fossem realizadas em outros momentos da história de Roma. Elemento este que mais

tarde corroboraria na transformação da vida de Gala Placídia.

Depois da batalha de Adrianópolis, Graciano, o imperador do Ocidente, nomeou o

varão hispânico Teodósio (nascido por volta de 346) como Augusto do Oriente. A

cerimônia oficial foi celebrada em 19 de janeiro de 379. Teodósio veio a ser conhecido

como "O Grande" sobre tudo sobre sua piedade cristã, mais do que por seus feitos

seculares. Era filho de um famoso general do mesmo nome que servira como Comes Rei

Militaris e como mestre da cavalaria na Britania (367) sob Valentiniano I, e que

esmagou uma revolta na África (373-375). O mestre da cavalaria mais tarde foi

executado por traição em circunstância que sugerem talvez não ter sido culpado. Paulo

Orósio descreveu Teodósio, pai, como um homem muito valoroso, que serviu a

Valentiniano II na restauração da Mauritânia e que derrotou Firmo11

. De qualquer

modo, a decisão do imperador Graciano de elevar Teodósio, O Grande, à púrpura foi de

grande significado na história de Roma segundo o pesquisador Ferrill12

. Até mesmo

quem presenciou o período de mudanças, como Orósio, alegou que a situação do

11

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 33; livro VII.

12 FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.pp.61-78. Ferril fez sua graduação na Universidade de Wichita-1960. Na Universidade de Illinois, sob a orientação do professor Chester G. Starr, concluiu o doutorado em História Antiga No ano de 1964, se transferiu para a Universidade de Washington, Settle, onde acabou se tornando professor titular.

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império era aflitiva e que escolher Teodósio para a púrpura imperial era prudente13

.

Quando da ascensão de Teodósio, o problema mais premente era a ameaça dos

godos e a urgente necessidade de reconstruir o exército para enfrentá-lo. De 379 a 382,

Teodósio e seus contingentes tentaram caçar e derrotar forças bárbaras que se haviam

dividido em diversos grupos e dispersado através dos Balcãs. Diante deste perigo, no

outono de 382, o imperador chegou a um acordo com os visigodos que instauraram um

o modelo para estabelecimento dos bárbaros no Império nos próximos cem anos, até a

fragmentação política de Roma no Ocidente. Teodósio e Graciano concordaram em

permitir aos visigodos instalaram-se na Mésia, na diocese setentrional da Trácia ao

longo do Danúbio, e os habitantes nativos da região, na medida em que ainda estivesse

habitada, provavelmente foram obrigados a fornecer alimentos, roupas e abrigo para

eles. Em troca os visigodos prometeram lutar pelo imperador como aliados (foederati)

do Império Romano.

De acordo com o Arther Ferrill14

, o chamado status de "confederado" dos bárbaros

dentro do Império acabou tornando-se um artifício para retalhar o Império, como

resultado esse acordo foi contestado ainda sob Teodósio. Os visigodos foram

reconhecidos pelo tratado como um povo independente com os seus próprios

governantes e autorizados a conservar suas armas. Nem todos os romanos acreditavam

que a política pacífica de Teodósio fosse o melhor caminho para o Império. De qualquer

forma o exército romano, recuperando-se da derrota na Pérsia, sofrera um revés

esmagador em Adrianópolis; o programa de reconstrução militar desencadeado pelo

imperador exigia tempo para recrutamento e instrução, porém sobre tudo para a infusão

de uma nova mentalidade a fim de superar a desmoralizante depressão da derrota. Desse

modo, aparentemente não teve outra opção dada as circunstâncias. O imperador

procurou garantir a fronteira leste contra a agressão persa através ação diplomática.

Com a ascensão de um novo rei persa Xapur III (383-388) as duas potências

concordaram com a partilha da Armênia, e embora a maior parte da Armênia tenha

ficado com os persas.

13

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 33; livro VII.

14 FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.pp.61-78.

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12

Diferente da perspectiva de Ferril, a nossa fonte demonstra outra imagem destes

eventos. Paulo Orósio destacou a grandiosidade de Teodósio aos olhos de seus inimigos

e a paz que resultou destes tratados.

Teodósio entrou vitorioso na cidade Constantinopla. Para não desgastar o pequeno troço de tropas

que restavam do exército romano – em guerras frequentes, denunciou o tratado de aliança com

Atanarico, rei dos Godos. Por outro lado Atanarico finou-se logo a seguir sua chegada a

Constantinopla.

Mal o rei fechou os olhos, todas as nações dos Godos se entregaram ao poder romano – por verem

que Teodósio era um varão valoroso e magnânimo.

Também nesses mesmos dias, os persas enviaram espontaneamente a Constantinopla

embaixadores para parlamentarem com Teodósio. E no entanto, deram uma morte horrorosa a

Juliano. Derrotaram muitas vezes outros imperadores. Nos nossos dias puseram também em fuga o

imperador Valente. Proferiam impróprios cruéis. Arrotavam à farta a vitória muito recente

alcançada sobre o imperador Valente.

Mas, a despeito de tudo isso, pediam suplicantemente a Teodósio lhes concedesse a paz.

Celebrou-se então um convênio de que até agora todo o Oriente tem desfrutado15

.

O relato de Orósio mostra que ao menos parte dos romanos aprovaram os tratados

que Teodósio estabeleceu e as condições derivadas deles. Mesmo Orósio, sendo um

sacerdote da fé cristã reconheceu os benefícios da paz derivada das alianças, ainda que

tolerando a presença dos povos bárbaros. A fonte também menciona o problema do

desfalque no exército. Com tudo é preciso balizar os relatos que engrandecem o governo

de Teodósio, visto que Orósio possuía uma profunda admiração pelo imperador.

Teodósio ficou conhecido por sua fé cristã e por seus feitos favorecendo a religião

cristã, preceitos estes que Orósio defendia.

Teodósio ainda teve que enfrentar as tensões internas. Seu relacionamento era

bom com Graciano, no Ocidente, mas em 383 os soldados deste, enraivecidos pela

preferência pelos bárbaros alanos, mataram-no e apoiaram Magno Máximo, que até

então era Comes Britanniarium. Máximo rapidamente controlou a Gália, a Hispania

tanto quanto a Britania, enquanto o resto do Ocidente permanecia leal a Valentiniano II,

o imperador- menino (que em 383 ainda tinha treze anos e era dominada por sua mãe

Justina). Teodósio que negociara acordos com os godos e os persas achou coerente

reconhecer o usurpador Máximo como Augusto, no entanto em 388, Máximo marchou

15

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 34; livro VII.

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13

para Itália. Como conseqüência, Valentiniano II e sua mãe procuraram abrigo com

Teodósio, que acabou vencendo o usurpador em Aquiléia. Teodósio permaneceu na

Itália por três anos, voltou para Constantinopla somente em 391. Porém os problemas

não cessaram, Valentiniano discutiu com seu chefe militar, Arbogasto, que matou o

jovem imperador e elevou à púrpura um certo Eugênio, um retórico pagão. A insolência

de Arbogasto já era conhecida até por Valentiniano. De acordo com Zósimo,

Valentiniano mandou continuamente cartas ao Imperador Teodósio, notificando a

insolência que Arbogasto demonstrava e pedindo-o que viesse ajudar, pois temia uma

investida contra sua vida16

.

No Oriente, Teodósio não conseguiu tolerar esse ataque contra a cristandade da

Casa de Valentiniano I, pois era muito ligado a ambos. Inevitavelmente, em 394 levou

outra vez seu exército para o oeste a fim de enfrentar a equipe pagã de Eugênio e

Arbogasto no rio Frígido17

. A batalha no rio Frígido foi uma “batalha de ratos”, um

confronto onde houve importantes baixas de ambos os lados. A luta iniciou dia 5 de

setembro, de qualquer forma, as forças de Arbogasto e Eugênio aguentaram firme, e ao

por do sol cerca de 10 mil godos aliados do Imperador jaziam mortos no campo de

batalha. Zósimo relata que naquela noite, Eugênio comemorou com entusiasmo seu

triunfo aparente, festejando e distribuindo recompensas e cumprimentando seus

homens18

.

As tropas de Arbogasto ainda estavam comemorando, quando Teodósio

reorganizou-se e manteve sua posição violenta, afim de surpreender com a ofensiva. A

batalha oscilou de um lado para o outro, o resultado ainda estava duvidoso quando a

natureza interveio a favor de Teodósio. Naquela região há grandes rajadas de ventos

ciclônicas -conhecido como Bora- das gargantas dos Alpes em direção ao norte do

Adriático, e podem variar de 90 a 200 quilômetros por hora. O fato é que em um

momento da batalha entre Teodósio e Arbogasto, que ainda estava indefinido, a Bora

16

ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro IV. Capitulo 53,4.

17 FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989. p.64. O antigo Frigidus, o moderno Vipava na, hoje, Iugoslávia, perto da fronteira com a

Itália.

18 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro IV. Capitulo 58,4.

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14

precipitou-se pela passagem lançando-se contra os ocidentais, impelindo o exército de

Teodósio contra o adversário e dando a vitória ao imperador cristão. Com relação a esse

evento Paulo Orósio faz uma narração muito fascinada, visto que para ele o ciclone era

resultado das suplicas de Teodósio para Cristo:

Voavam nas asas dos ventos os dardos que nossos laçavam. _ E eram transportados da imensidão

da atmosfera para além da medida do arremesso humano. Por fim, deixavam-nos cair não importa

onde, antes que se cravassem. E o ciclone ora vergastava o rosto e o peito inimigo que lhe

despedaçavam irremediavelmente os escudos; ora lhes escondia o rosto e o peito protegidos com

os mesmos escudos que obstinadamente se colavam ao corpo; ora desnudava os corpos dos

protegidos dos broquéis que as rajadas de vento soprando rijo lhes arrancavam as mãos; ora virava

o rosto e o peito para as costas – a despeito da resistência contínua dos arneses.

Até os dardos e as demais armas de arremesso, que eles próprios brandiam e rejeitavam, eram

apanhados pelo pegão de vento que de súbito invertera o sentido e soprava com fúria.

Inopinadamente virava-os e obrigava-os a retroceder. Assim, os dardos trespassavam tragicamente

aqueles mesmos que os haviam brandido19

.

Eugênio foi capturado e levado a Teodósio para ser decapitado, Arbogasto fugiu

para as montanhas onde suicidou-se.

A batalha do Frígido foi decisiva para Teodósio, o Grande, era afinal o único

imperador do então unificado Império Romano. O conquistador deslocou-se para Roma,

e ali perante o antigo Senado, instou os romanos da Itália a abandonarem a tradicional

idolatria e o paganismo em favor do cristianismo. Segundo Zósimo foi neste momento

que Teodósio tornou seu filho, Honório, o Imperador do Ocidente, e nomeou Estilicão

seu tutor20

. Em conformidade com as idéias do pesquisador Rouche21

, quando Teodósio

reunificou o Império encontrou-se perante problemas insolúveis: os aristocratas

latifundiários recusavam-se a não subtrair ao fisco os camponeses, pelo processo de

patronagem, e a Igreja do Ocidente, na pessoa de Santo Ambrósio, recusava-lhe

obediência. Lembrando que o bispo de Milão impôs-lhe em 390 uma penitência pública

por ter chacinado a população de Tessalónica no anfiteatro. E, no entanto, o imperador

havia acabado com querela ariana, fazendo triunfar a ortodoxia de maneira definitiva,

em 381 segundo o concílio ecumênico de Constantinopla e ainda tinha proclamado

19

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 35; livro VII; pág.: 431.

20 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro IV. Capitulo 59,1.

21 ROUCHE, Michel. Os Impérios Universais Séculos II a IV; Coleção: História Universal 4. Lisboa,

Publicações Dom Quixote, 1980.pp.247-266.

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15

proibição ao paganismo em 8 de novembro de 392.

Ulteriormente, em 17 de janeiro de 395, apenas poucos meses depois da vitória

no Frígido, Teodósio, O Grande, adoeceu em Milão, onde acabou falecendo. Seu corpo

esteve exposto em câmara ardente durante quarenta dias até Ambrósio pronunciar uma

oração fúnebre, e foi levado para Constantinopla a fim de ser sepultado. Os seus êxitos

religiosos, acentuados sobre tudo no Oriente, vitórias que transformaram o cristianismo

em religião do Império, não puderam esconder que quando morreu, deixou um Império

dividido em duas partes e abertos a todos os ventos.

Em um olhar superficial sobre o mapa mal se poderiam ver os sinais do declínio

da estrutura imperial como era conhecida, no entanto havia um perigo no Império- os

visigodos “confederados” sob seu novo rei. Alarico,o novo rei que combatera por

Teodósio no Frígido, mas ressentia a má vontade do imperador para utilizá-lo em um

grande comando oficialmente, assumiu uma atitude hostil. Segundo o pesquisador

Arther Ferrill22

, Teodósio pode ser imputado, ao menos em parte, pelo colapso do

Império que se seguiu a seu reinado, visto que foi uma realidade, que os mesmos

bárbaros que se estabeleceram no Império de Teodósio, acabaram desempenhando um

papel fundamental na invasão de Roma. O imperador dividiu o Império entre seus dois

filhos, Honório no Ocidente e Arcádio no Oriente. E embora essa fosse uma prática

comum na história romana, acabou sendo uma divisão permanente. Parte da

historiografia, como Ferrill afirma que em última análise contribuiu para a fragmentação

do Império do Ocidente. Na última metade do século IV, somente nos anos de 353 a

364 viram o império unificado sob só um imperador, mas os poucos últimos meses da

vida de Teodósio abriram novas possibilidades para a unificação, possibilidades estas

que não se consolidaram.

Também há outra maneira pela qual o reinado de Teodósio talvez haja contribuído

pelo sítio de Roma e consequentemente pelo rapto de Placídia. Sua política com relação

aos godos e à divisão do Império assume maior significado quando se considera o efeito

do alto custo da guerra civil sobre as forças armadas durante seu regime. O exército

romano sofrera severamente em 363 em 378 antes de Teodósio ascender ao trono. A

guerra com Máximo no Ocidente e o grande embate com Arbogasto e Eugênio no

22

FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.pp.61-78.

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16

Frígido suscitaram grandes perdas. Devido aos aliados godos terem sofrido grandes

baixas no Frígido, no primeiro dia de batalha, poderiam legitimamente reivindicar maior

quinhão de influência nos negócios imperiais do que até então haviam exercido, com

resultado cheio de perigo.

Teodósio, O Grande, teve de enfrentar problemas na defesa do Império Romano, e

fazer escolhas que nem sempre foi aprovada com unanimidade entre os romanos, se

bem que as dificuldades por ele abarbadas fossem consideráveis. Suas orientações

trouxeram paz momentânea e se nelas vemos as sementes de ulteriormente crises

romanas, talvez seja compreensível que Teodósio haja resolvido hipotecar o futuro de

Roma em troca de paz em seu próprio tempo. Só quinze anos depois da sua morte, os

mesmos bárbaros que ele tratara tão favoravelmente atearam fogo à cidade de Roma, e

sua influência no exército romano, a que às vezes serviram como “aliados”, causou

ainda mais danos ao poderio estratégico de Roma. Como já mencionado, a presença dos

visigodos no Império Romano e ulteriormente a falta dos mesmos no exército romano

ocasionaram uma profunda fragilidade na defesa de Roma. Tendo em vista esses fatores

e uma série de acontecimentos no governo de Honório, Roma foi sitiada e saqueada

ainda na primeira década do século V. A essa altura Gala Placídia já havia sido

capturada por Alarico, já que estava em Roma na época do primeiro e do segundo sítios.

3.2. Estilícão

Como consequência da morte de Teodósio, ocorreram grandes modificações

remodelando o Império. Dois novos imperadores ainda jovens, nenhum muito eficiente

mesmo em seus anos de maturidade, tiveram de defrontar-se com forças crescentes da

sublevação bárbara, em particular, mas não exclusivamente no Ocidente. Na primeira

década do século V, vândalos, suevos, alamanos e visigodos arremessaram-se com força

desordenada através do Danúbio e do Reno, varreram os Balcãs, a Gália e a Hispania e

em 410 a própria cidade de Roma foi sitiada, culminando no rapto de Gala Placídia.

Teodósio havia adotado alguns preparativos em relação aos seus herdeiros, no

entanto estes não estavam prontos, no momento da morte prematura do pai. Honório no

Ocidente era um menino de dez anos e Arcádio no Oriente possuía apenas dezoito anos,

ambos precisavam de muita ajuda inicial de seus conselheiros. Arcádio fora designado

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para o trono do Oriente desde a proclamação como Augusto em 383. O assassinato (ou

suicídio) de Valentianiano II, seguido pela revolta e Arbogasto e Eugênio criou uma

oportunidade para Teodósio colocar o jovem Honório no trono de Roma, que estava

com o pai, em Milão, na hora de sua morte. A verdadeira questão era quem seria o

poder por de trás dos tronos. No Ocidente, não havia dúvida - Estilicão, marido da

amada sobrinha e filha de criação de Teodósio, Serena – fora claramente dignado para

esse papel pelo grande imperador. De acordo com Zósimo, graças ao parentesco com o

imperador, Estilicão fortaleceu seu poder ao ponto de ter o comando de praticamente

todo o exército23

. Estilicão achava-se presente no local: como servira como um dos

cinco chefes militares (Magister Utriusque Militiae) do Oriente e esteve no rio Frígido.

Permaneceu no Ocidente com Teodósio e Honório após a vitória e estava em Milão

junto do imperador na hora de sua morte.

Estilicão alegou que o imperador, em uma reunião particular junto de seu leito,

insistira com ele para assumir o papel de guardião de ambos os novos imperadores, a

fim de garantir a direção, estabilidade e unidade política imperial do Oriente e do

Ocidente. Segundo o pesquisador Ferrill24

nem todos acreditavam, e estes

argumentavam que o imperador certamente teria feito em público tal combinação caso

pretendesse efetivar. Ambrósio aceitou a alegação de Estilicão, assim como muitos

outros que bajulavam-no ou apoiavam sinceramente sua causa. Infelizmente para

Estilicão, a situação em Constantinopla estava complicada com a ameaça dos visigodos.

Estilicão esperava que Arcádio atendesse à sua liderança, por motivos de família, porém

não previu que o influente administrador civil, Rufino, prefeito pretoriano do Oriente,

deixado por Teodósio como principal conselheiro de Arcádio, se atreveria a desafiar sua

autoridade e influência. Segundo nossa fonte “Nueva historia”, de Zósimo, o imperador

Teodósio passou o Império do Oriente para as mãos de Arcádio e o Império do Ocidente

para Honório, contudo quem tomava as decisões era Rufino e Estilicão25

.

23

ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 4,2

24FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.,p.80.

25 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 1,1.

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18

Muitos desconfiavam das intenções de Estilicão, o fato de ter uma origem bárbara

levantava suspeitas em relação a sua reivindicação. Orósio descreve-o como um homem

que ambicionava o poder imperial para si, e que foi ele o responsável pela crescente

influência dos bárbaros dentro do Império Romano do Ocidente. A passagem que

Orósio renega Estilicão, também não favorece Rufino, para ele ambos cometiam o

crime da ambição26

. Neste aspecto Zósimo compartilha da opinião de Orósio, segundo o

Zósimo, enquanto todos os tipos de males floresciam nas cidades, as casas de Rufino e

do Estilicão se tornavam cada vez mais ricas27

.

Apesar dos relatos de Orósio, existe uma vertente da bibliografia que trata do

tema, que nos fornece uma perspectiva diferente de Estilicão, como o pesquisador

Ferril. Segundo essa análise é possível que nenhuma outra pessoa tenha sido ator mais

importante no drama da queda de Roma, do que Estilicão. Seu pai era vândalo, porém

era em todo sentido um romano, não um romano de nascimento e um leal membro

proeminente da família de Teodósio e poderoso Magister Utriusque Militiae da

instituição militar romana. A Primeira vez que chamou a atenção do imperador foi

quando ainda rapaz (384) foi mandado como embaixador para a Pérsia, daí resultando

um acordo acerca da fronteira da Armênia. Ao regressar a Constantinopla, casou-se com

Serena em uma luxuosa cerimônia presidida por Teodósio, e, assim o jovem foi

designado a alto cargo romano. Estilicão acompanhou Teodósio como Magister

Utriusque Militiae na campanha do rio Frígido e no Ocidente tornou-se um influente

oficial do exército do Ocidente. Além disso, como já mencionado, Teodósio fez de

Estilicão o guardião de Honório, colocando todo o poder civil, militar e o governo do

Ocidente, nas mãos de seu genro.

Estilicão firmou sua posição na casa imperial28

, além de ser casado com a filha

adotiva de Teodósio, tratou de casar sua própria filha com Honório, Maria. Sua outra

filha, Termantia, também casou-se com Honório em 408, após a morte de Maria. Dessa

maneira Estilicão garantiria que seu neto seria imperador, embora Honório e suas

26

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 37; livro VII; pág.: 436.

27 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 1,3.

28 PIGANIOL, André. Historia de Roma. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires,

1961.p.464.

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19

respectivas esposas jamais gerassem filhos. A filha de Teodósio, Gala Placídia foi

confiada aos cuidados de Estilicão e Serena. Euquério, filho de Estilicão chegou a se

tornar noivo de Gala Placídia, embora seu futuro tivesse se engendrado por outros

caminhos. De acordo com Paulo Orósio, Estilicão procurava de qualquer maneira

investir no poder seu filho Euquério29

. O Magister Utriusque Militiae não precisava

tomar a púrpura para si mesmo, sua descendência estava destinada a fazê-lo, visto que a

base de sua posição sólida era sua lealdade á casa de Teodósio30

.

Após a batalha do Frígido, Alarico inflamou os godos e conduziu-os em uma

incursão pela Trácia e Macêdonia, chegando perto de Constantinopla. Ao mesmo

tempo os hunos da Transcaucásia desceram através da Armênia e do norte da

Mesopotâmia para penetrar na Síria. Estilicão se deslocou rapidamente para abafar a

rebelião de Alarico e marchou com um contingente tanto do Oriente como do Ocidente

para a Tessália, para onde os godos haviam de deslocados31

. Em Constantinopla, porém,

Rufino convenceu Arcádio que Estilicão possuía ambições nos Balcãs. Em sua narração

Zósimo relata que Rufino tentou obstruir por todos os meios a marcha de Estilicão no

Oriente32

. Rufino influenciou Arcádio a mandar o Magister Utriusque Militiae ocidental

deixar o território oriental antes que este pudesse encurralar Alarico com seu exército, e

dessa forma colhesse os frutos da vitória. O que restou a Estilicão foi retornar com suas

tropas e mandar as tropas orientais para Constantinopla, visto que sua chegada em

Tessália havia soado quase como uma invasão militar do Oriente. Nestas circunstâncias

Alarico fez a primeira de suas escapadas.

Paulo Orósio possui outra versão sobre este fato, em sua narração ele afirma que

Estilicão fez um pacto secreto com Alarico. Ainda de acordo com esta fonte, o Magister

Utriusque Militiae e seu filho Euquério desejavam perseguir os cristãos e aterrar a

29

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 38; livro VII; pág.: 440.

30 FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.p.80.

31 PIGANIOL, André. Historia de Roma. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires,

1961.p.464.

32ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 5,1.

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20

República, desta forma pouparam a vida do rei dos visigodos .33

Paulo Orósio era um

religioso fervoroso, e assim como outros de sua época não via nas fugas de Alarico a

prova do favorecimento aos bárbaros.

De acordo com nossa fonte “Nueva história”, Rufino que com sua atuação

pessoal, foi para muitos a origem dos infortúnios e calamidades do Império34

. Com a

morte de Rufino em novembro de 395, o camareiro-mor, um eunuco calco chamado

Eutrópio, igualmente com ciúme de Estilicão, assumiu o papel de conselheiro de

Arcádio. Enquanto Eutrópio fortalecia sua influência com o imperador, Estilicão

inspecionou a fronteira no Reno e promoveu a harmonia entre as cortes de Milão (de

onde Honório governava) e Constantinopla. Nesse ínterim, Alarico deslocara-se para o

sul saqueando várias cidades antes de arremeter contra Peloponeso e tomar Mégara,

Corinto, Argos e Esparta. Arcádio mostrou-se incapaz de lidar com o inimigo, quando

em 397 Estilicão atravessou o Adriático e encontrou Alarico em Élis. Eutrópio reagiu

convencendo Arcádio a convocar o Senado, e assim declarar Estilicão inimigo público,

através de um decreto oficial, por sua incursão não autorizada em território oriental35

. E

embora o Magister Utriusque Militiae ocidental tenha se saído melhor taticamente,

Alarico escapou atravessando o Golfo de Corinto para o Épiro.

Outro acontecimento deixou a relação entre Oriente e Ocidente ainda mais tensa.

Eutrópio, em 397, o conde da África, Gildo rompeu com o governo de Milão. A África

era vitalmente importante para o Ocidente já que a maior parte dos cereais consumidos

por eles eram africanos. No ano seguinte Estilicão organizou-se para a guerra e mesmo

com um exército menor saiu com a vitória. O resultado da rebelião de Gildo, as más

relações entre Oriente e Ocidente foram ainda mais exacerbadas. Durante cinco anos de

conflito, com os conselheiros de Arcádio, Estilicão por duas vezes enfrentou Alarico em

terreno oriental e o deixou escapar. Por sua vez Alarico sugara até deixar secas as

dioceses castigadas pela pobreza da Dácia e da Macedônia, e voltou os olhos para o

Ocidente em busca de oportunidades para maior pilhagem ou chantagem.

33

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 38; livro VII; pág.: 440.

34 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 8,1.

35 Idem, Ibidem,capitulo 11, 1.

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21

Em novembro de 401 Alarico galgou com os visigodos para a Itália, rumo as

muralhas de Milão, era o momento oportuno, Estilicão estava imobilizado na província

alpina da Récia ao norte, lidando com um ataque de suevos, vândalos e alanos, de modo

que a Itália setentrional estava indefesa contra ataques vindo do leste. Aquiléia caiu ante

os visigodos assim como outras cidades do nordeste da Itália, e o pânico na corte de

Milão se espalhou, segundo o historiador Piganiol, iniciaram reparos nas muralhas de

Roma caso fosse necessário transferir a corte36

. Em face ao medo, Estilicão ficou calmo

e confiante na resistência das muralhas de Milão, enquanto cuidava da crise nas

fronteiras da Récia e mobilizava um exército. Adiantando-se ao grosso de suas tropas,

Estilicão arremessou-se em ataque noturno surpresa contra a posição de Alarico e abriu

caminho à força até Milão. Os godos, então levantaram o sítio em vez de se deixar

encurralar em torno das muralhas.

Em Polenza, nordeste da Itália Estilicão enfrentou Alarico, o exército godo foi

desbaratado, porém os soldados ocidentais se entregaram a pilhagem37

, e com isso

Alarico escapou, sua mulher, no entanto, foi capturada. O Magister Utriusque Militiae

ocidental tivera Alarico ao seu alcance por diversas vezes, e sempre o chefe bárbaro

escapara. Possivelmente Estilicão não podia controlar suficientemente seus soldados

para levar a cabo uma perseguição adequada, de qualquer modo parece ter concordado

com a política de Teodósio (aliança com os visigodos em 382 e com os persas em 384).

Estilicão obteve sucesso quando lutou contra outro chefe godo, Radagáiso em

Fiesole, em 405. Paulo Orósio descreveu essa batalha salientando a grande quantidade

de bárbaros que serviam a Radagáiso, cerca de 200.000 homens. De acordo com a fonte,

enquanto os homens de Estilicão comiam, bebiam e se divertiam, aqueles tão

numerosos cruéis inimigos morreram padecendo de fome38

.

Após a batalha contra Radagáiso, Estilicão conservou as forças, antes retiradas da

Britania e do Reno para empregar contra Alarico, bem à mão na Itália setentrional. Esse

36

PIGANIOL, André. Historia de Roma. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires,

1961.p.464.

37 FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.pp.88-92.

38 ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 37; livro VII; pág.: 439.

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22

abandono da fronteira do Reno em prol de uma estratégia que dava prioridade à defesa

da Itália, mostrou-se fatal para Roma. Anteriormente em 402, Honório e sua corte

mudaram-se para Ravena a leste, que se tornou a capital do Império do Ocidente

durante grande parte do Século V. Zósimo menciona que Estilicão foi contra a decisão

de Honório de se mudar para Ravena39

. Esse estratagema também se mostrou alguns

problemas, não só por abrir o caminho para o saque de Roma, mas por expor a fronteira

do Reno tão afastada do nordeste da Itália, onde se achava estacionado o exército

móvel. Enquanto os legionários gauleses estavam na Itália, no último dia de 406, uma

aliança de vândalos, suevos e alanos atravessou o congelado Reno e espalhou-se pelas

áreas indefesas do norte da Gália, de forma uma grande porção da Gália foi perdida.

Em vez de contra-atacar, Estilicão concentrou-se em assuntos do Oriente. Um chefe

militar com um olho em Constantinopla não era provável que oferecesse grande ajuda à

maltratada Gália.

No medo da invasão dos vândalos, quando não se afigurava provável ajuda do

governo de Ravena, um usurpador, Constantino foi proclamado imperador por seus

soldados na Britania, e atravessou o canal da Mancha trazendo alívio bem-vindo à

cidade saqueada. No entanto, mesmo assim, quando a dinastia foi ameaçada por uma

rebelião, Estilicão ficou atento ao Oriente. Da Ilíria, Alarico começou a marchar com

seus visigodos mas na direção de Nórica, ao norte, em vez de para a Itália. Dalí, o líder

dos visigodos exigiu 1800 quilos de ouro em troca de uma aliança e a promessa de

auxílio ao governo ocidental contra o rebelde Constantino. Alguns senadores em Roma

chamaram isto de chantagem, embora Esílico insistisse em aceitar a aliança.

Ao mesmo tempo que a situação na Gália solapara o prestígio de Estilicão, o

arranjo com Alarico escandalizou romanos do partido “nacionalista” antibárbaro40

.

Começaram a circular boatos de que Estilicão possuía ambições pelo o trono, se não

para si próprio para seu filho Euquério, a quem ele havia arranjado um noivado com a

Gala Placídia. Suspeita está corroborada por nossa fonte, “História contra os pagãos”,

como já citado anteriormente. Em 408, quando chegou a notícia da morte de Arcádio,

39

ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 30,1.

40 FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.pp.88-92.

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Estilicão persuadiu Honório a encarregar Alarico de suprimir Constantino enquanto ele

próprio, Estilicão, viajava até Constantinopla a fim de presidir à ascensão do jovem

Teodósio II e estabelecer uma regência, assim reunindo Oriente e Ocidente novamente.

Essa tentação para se dedicar às intrigas de Bizâncio acabaram por levantar suspeitas em

relação a Estilicão. Mexeriqueiros palacianos em Ravena cochicharam boatos sobre a

traição de Estíllico, e o descontentamento espalhou-se pelo exército, já confuso e

enraivecido por sua inatividade numa hora de crise. Estilicão, assim com seu filho

Euquério foram assassinados. De acordo com o pesquisador Ferrill41

, covardia e traição

não estavam entre suas deficiências, seus erros foram estratégicos e conceituais, a

vontade de apaziguar os godos, a estratégia defensiva em torno de Ravena, o engodo de

Constantinopla. Ele, no final de contas foi um produto da época de Teodósio, o Grande,

e da derrota de Adrianópolis. Quando os tempos exigiram contramedidas agressivas em

face das invasões bárbaras, Estilicão hesitou. Os resultados foram tão letais para Roma

quanto para o próprio Magister Utriusque Militiae.

Com uma perspectiva mais negativa da figura de Estilicão, Paulo Orósio em sua

narrativa afirma que o Magister Utriusque Militiae esperava que a conjunta de invasões

possibilitasse usurpar o trono do genro em favor de seu filho Euquério. Ainda segundo o

religioso quando delatado os crimes graves ao imperador e ao exército romano, o

próprio exército indignou-se e assassinou Estilicão. De acordo com essa visão o desejo

do Estilicão de investir a púrpura ao seu filho levou-o a derramar o sangue de muitos

homens42

.

Através das fontes nota-se que Estilicão teve grande importância no cenário

imperial, mesmo que algumas das avaliações sejam negativas, como a de Orósio. Os

relatos sobre o Magister Utriusque Militiae são muitos, é difícil fazer uma análise do

período e não comentar as atividades de Estilicão no comando do exército ocidental,

mesmo que seja para relatar seus infortúnios. Para Gala Placídia, as decisões tomadas

por Estilicão representaram mais do que disposições de um período conturbado,

marcado por profundas mudanças na política e sociedade romana. Placícia foi educada

por Estilicão e sua esposa, Serena, posteriormente por desejo do deste foi noiva de seu

41

Idem, ibidem

42 ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 38; livro VII; pág.: 440

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filho Euquério. E ainda quando o Magister Utriusque Militiae exercia seu poder

permitiu a configuração que resultaria na queda de Roma, e assim o raptada da

Imperatriz.

3.3. O saque de Roma

A grande transformação na vida de Gala Placídia, obviamente ocorreu depois dos

sítios a Roma, seu aprisionamento pelos visigodos, simbolizou profundas mudanças em

sua realidade, assim como no próprio Império Romano do Ocidente. O papel da

Augusta dentro do Império Ocidental passou de coadjuvante para protagonista na

história do Império. Depois do saque de Roma, Gala Placídia passou a ter outra imagem

entre seus contemporâneos, fato este que pode ser constatado nas fontes, como veremos

adiante. O rapto de Placídia e posteriormente seu casamento com Ataúfo trouxeram

outro simbolismo para a Imperatriz. Por tais questões a necessidade de compreender

melhor o que representou o saque a Roma.

O cargo de Estilicão foi ocupado por Olímpio, um político palaciano, que a essa

altura tinha que enfrentar Alarico, além de se preocupar com o usurpador na Gália. O

chefe dos godos propôs se retirar da Panônia em troca de dinheiro e reféns. Olímpio

com o apoio do partido “nacionalista” recusou o acordo, argumento que se tratava de

uma chantagem. Pela Via Flamínia, Alarico conduziu seu exército, provavelmente na

esperança de atrair Honório para fora se sua fortificação. O exército dos visigodos

marchou rápido, passou por Roma e virou para oeste e depois para o norte de novo a

fim de tomar Óstia, o porto de Roma. Dessa maneira, enquanto os romanos aguardavam

o inverno de 408-9, viram-se isolados de seu Império e tendo de enfrentar a morte à

míngua ao bloqueio. Para Zósimo, no momento que Alarico decidiu marchar para

Roma, entendendo que se tratava de uma empresa de dimensões sumamente grande,

mandou chamar Ataúfo (futuro marido de Placídia)43

. Ataúfo era irmão da esposa de

Alarico, e possuía um contingente nada desprezível.

A cidade de Roma ficou em pânico, o Papa Inocêncio chegou a concordar com a

celebração de rituais pagãos, até que finalmente o Senado ofereceu 2.300 quilos de ouro

43

ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 37,1.

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e 13.500 de prata, quatro mil túnicas de seda, três mil couros escarlates e 1.350 quilos

de pimenta. Alarico, no entanto, queria uma aliança com Honório, que por sua vez se

recusou, implicando no reinicio do sítio. O segundo sítio de Roma, em outono de 409,

só ocorreu quando Alarico tentava organizar os bispos italianos para pressionarem

Honório a chegar a um acordo com ele. O imperador fez cera, visto que não possuía

base de força para negociar. O exército do período de Estilicão havia se dispersado,

Roma estava bem fortificada e não poderia ser tomada de assalto. Além do mais havia

um tumulto nas províncias ocidentais decorrente da invasão dos vândalos e da rebelião

de Constantino. Tais considerações eram escasso consolo para habitantes de Roma.

Segundo Zósimo, durante o sitio, Roma era praticamente inabitável, pois como não

podei sair para sepultar os mortos, a cidade se converteu em uma tumba ocupada pelos

corpos, o odor era insuportável, além da escassez de alimentos44

. Em conluio com

Alarico, o Senado reconheceu um novo imperador, Átalo, e rejeitou o poder de Honório.

Os fatos acarretaram uma crise, Constantino invadiu a Itália, publicamente para

ajudar Honório contra Alarico, mas com objetivos secretos incertos. Constantino, por

temer cair em uma armadilha na Itália, regressou para Gália. A essa altura, Alarico

capturara a irmã de Honório Gala Placídia, ela foi criada por Estilicão e Serena e estava

em Roma na época dos primeiro e segundo sítios. De acordo Zósimo, embora Placídia

fosse uma refém, desfrutava se todo privilégio e prerrogativas de alguém da realeza45

.

Quando o governo de Honório ficou mais estável, no verão de 410, Alarico depôs Átalo,

porém essa atitude não acarretou em uma aproximação com o governo de Ravena. Os

visigodos avançaram pela terceira vez contra as muralhas de Roma em agosto de 410.

Por dias os romanos viveram passando fome, então em 24 de agosto de 410, alguém do

lado de dentro abriu o Portão Salariano e um exército estrangeiro marchou pelas ruas de

Roma pela primeira vez em oitocentos anos. Durante três dias Roma foi pilhada, os

romanos foram brutalmente mortos, mulheres foram estupradas, prédios incendiados. O

verdadeiro trunfo de Alarico foi levar consigo a irmã do imperador, Gala Placídia, na

época tinha cerca de dezesseis anos e com a valiosa refém ele e seu exército passearam

pelo sul da Itália. Paulo Orósio comenta em sua obra “História contra os pagãos”, que

44

Idem, Ibidem,Capitulo39,3.

45 Idem, ibidem,livro VI, Capitulo 12,3.

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foi Ataúfo, parente de Alarico, quem fez Placídia prisioneira46

.

Quando estava no estreito para a Sicilia, Alarico ficou repentinamente doente e

acabou falecendo. Alarico foi sucedido por seu cunhado, Ataúfo, que marchou com os

visigodos e com Placídia, rumo ao norte deixando a Itália.

O olhar de Orósio sobre o saque de Roma é muito mais poético do que a

bibliografia que trata do tema, no sentido que sua narração é quase que apocalíptica.

Para ele a marcha do exército de Alarico nas ruas de Roma foi resultado da justiça

divina sobre aqueles que blasfemavam. Desta forma o sacerdote descreve o evento:

Alarico está aí. Roma fica em pânico. Alarico cerca a cidade. Pertuba-a. Acomete-a.

Todavia dera-se primeiro uma ordem para que deixassem ficar tudo invioláveis e seguros aqueles

que se tivessem refugiado nos lugares santos e nas basílicas dos santos apóstolos Pedro e Paulo,

e, então, na medida do possível, as presas hiantes se abstivessem de sangue.

Prova-se que aquele ataque à cidade de Roma se fez mais pela cólera divina que pela fortaleza do

inimigo.

...

Todavia, tudo quando crê na salvação presente, foi recebido no celeiro que o senhor preparara.

Porém, o demais ou é esterco ou é palha. Ficou para ser destruído ou para ser queimado.

Previamente avaliado quer por sua incredulidade quer por sua impenitência.47

Orósio como um representante dos homens de seu tempo que possuíam a

religiosidade acentuada, nos mostra outra perspectiva que alguns de seus

contemporâneos tiveram do saque a Roma. Porém o mais relevante nesta perspectiva é a

imagem que Gala Placídia possui perante esses homens. A Augusta é mencionada como

uma mulher devotada à fé cristã48

, que se torna cativa por vontade divina, para garantir

a paz. Orósio chama este fato de “penhor especial”, e é a partir deste momento que a

Imperatriz passa ter um simbolismo mais importante entre seus contemporâneos.

Anterior a seu rapto Placídia é simplesmente nominada nas fontes trabalhadas, sem

nenhuma descrição precisa, somente depois de seu “penhor especial” que ganha espaço,

permitindo-nos conhecer sua imagem através das fontes.

46

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 40; livro VII.

47 Idem, ibidem.

48 Idem, ibidem.capítulo 43.

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3.4. Honório

Enquanto a Gália aguardava em vão socorro da Itália, a rebelião na Britania

acabou levando os solados romanos a darem a púrpura ao colega Constantino. De

acordo com nossa fonte, “História contra os Pagãos”, Constantino era oriundo dos

escalões mais baixos da milícia, que era sem méritos, sem valor, e que foi eleito apenas

pela esperança que seu nome suscitava49

. Quando ele se mudou para Bolonha, na Gália,

combateu violentamente os bárbaros e restaurou a fronteira do Reno. Constantino

governou a Gália durante quatro anos, e foi um importante personagem na queda de

Roma, mas as vezes esquecido. Constantino dirigiu-se para Roma e estabeleceu sua

corte em Arles, e a partir do Ródano, seu exército repeliu as forças de Honório. Em 408

o usurpador controlava toda a Gália, o canal da Mancha até os Alpes, ele mandou seu

filho Constante, como César, para a Hispania.

Forças bárbaras tomaram a Hispania de Constantino, em 409, e Honório

aproveitando a circunstância mandou seu chefe militar Constâncio marchar para Arles.

Nesse momento Constâncio era o sustentáculo militar principal do imperador do

Ocidente, tornou-se grandioso, e era conhecido por não ser corrupto. Com o passar do

tempo, apaixonou-se por Gala Placídia, prisioneira dos visigodos. O comes Constâncio

levou Constantino para Ravena, onde foi decapitado.

Em 411, após Constâncio regressar para a Itália, um novo rebelde, Jovino,

exaltado por burgúndios e alanos em Mogúncio, ameaçava a tranquilidade da Gália.

Quando Ataúfo transpôs os Alpes para a Gália, no início de 412, Jovino hostilizou essa

intromissão, e não demorou muito para o rei dos visigodos se ver lutando com um

inimigo que era tão odiado por Honório quanto ele próprio. Dadas as circunstâncias

Honório aliou se a seu velho adversário na guerra contra Jovino, que foi capturado e

decapitado no outono de 413.

Nesse ínterim, Constâncio voltara sua atenção para a África, onde o comes

Heracliano, rebelou-se contra Honório. O conde interrompeu o comércio entre a África

e Roma e atacou a Itália com uma esquadra de 3700 navios, provavelmente a maioria de

transporte. Orósio descreveu a armada do comes Heracliano como algo inigualável em

toda a História universal, menciona que nem Xerses, nem Alexandre Magno

49

Idem, ibidem.capítulo 40.

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conseguiram tal proeza50

. Heracliano foi vencido no Tibre e morto em Cartago, no ano

de 413, sua fortuna pessoal ficou com Constâncio como presente de Honório. Apesar da

vitória está rebelião teve consequências na relação entre a corte de Ravena e o rei dos

godos.

Enquanto a África era assegurada, a aliança com os visigodos foi complicada pelo

cativeiro de Gala Placídia, que permaneceu sob a guarda de Ataúfo, o novo rei dos

godos. Honório pediu o regresso de sua irmã, Ataúfo concordou sob a condição de os

visigodos receberem cereais e território “confederado” na Gália. O imperador ocidental

concordou com as condições, mas a revolta de Heracliano na África interferira no fluxo

dos cereais, e Honório não pode cumprir com o acordo. Em decorrência, em janeiro de

414, Ataúfo casou-se com Gala Placídia (aparentemente não contra sua vontade)51

e

apossou-se do território do sul da Gália para seus visigodos. O casamento foi celebrado

segundo o cerimonial católico, e Ataúfo em traje romano, despejou sobre a nova rainha

de seu povo ouro e pedras preciosas capturadas como presa em Roma.

A inevitável tensão gerada pelo casamento de Gala Placídia com Ataúfo, levou ao

ressurgimento de Átalo, que se achava mais preparado para servir como títere dos

godos. A reivindicação de Átalo não pode ser ignorada por Ravena, e Constâncio partiu

para a Gália com um exército, não tanto para lidar com Átalo quanto com Ataúfo.

Utilizando o poderio naval o que diferenciava o arsenal do Ocidente, Constâncio

bloqueou a costa do Mediterrâneo da Gália, interrompendo o suprimento de Ataúfo.

Átalo abrilhantou um triunfo imperial em Roma, antes de ser capturado pelos godos e

mutilado, perdendo o polegar e outro dedo da mão. Ataúfo morreu em Barcelona,

assassinado por um cavalariço rebelde, e após um tumultuado intervalo de sete dias foi

sucedido por Valia (415-418). Um resultado da migração dos visigodos para a

Hispania, foi a libertação da Gália, com exceção do reino búrgundio ao redor de Worms

no Reno, que recebera de Honório a posição de “confederado”.

Paulo Orósio nos fornece uma descrição diferente de Ataúfo, de acordo com ele o

rei dos godos era um seguidor da paz, religioso e que preferiu combater fielmente ao

lado de Honório. Com tudo é preciso lembrar que Orósio admirava Honório por ser um

50

Idem, ibidem.capítulo 42.

51 PIGANIOL, André. Historia de Roma. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires,

1961.pp.465-475.

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cristão, e que em suas descrições sobre o imperador sempre colocam os inimigos do

Império como inferiores. De acordo com o historiador Renan Frighetto, para Paulo

Orósio o imperador Honório disporia de todos aqueles elementos básicos para

restabelecer a ordem interna nos territórios ocidentais na medida em que pertencia á

família teodosiana52

. Além do mais, o sacerdote menciona o casamento de Ataúfo com

Placídia como uma aliança de paz, como veremos adiante53

.

Após a saída dos visigodos da Gália, em 415, Honório e Constâncio garantiram o

controle imperial sob a maior parte da região. Na Hispania, a situação era mais

complexa. Honório possuía uma base em Tarragona, e a partir daí Constâncio usou a

esquadra para interromper os suprimentos para o nordeste da Hispania, atingindo até os

súditos romanos. Valia que não possuía os mesmos “sentimentos pró-romanos” de

Ataúfo, reagiu levando seu povo para o estreito de Gibraltar, na esperança de atravessá-

lo para a África, e apoderar-se do celeiro de Roma (416), mas fortes tempestades o

impediram. A essa altura, Valia abriu mão de Gala Placídia em prol de alimento para

seus súditos e uma aliança com Honório que o autorizou a combater os outros povos

bárbaros na Hispania. Em nossa fonte “História contra os Pagãos” o evento foi

destacado e Placídia foi qualificada como “cidadãos dos mais ilustres:

Uma hoste dos godos, que desde o ano anterior se abastecia de armas e navios, planeava passar à

África. Porém, a 12.000 passos do Estreito de Cádis (ou Gades), essa hoste foi apanhada por uma

tempestade...

Então, Vália, lembrado de tudo isto, deu como reféns cidadãos dos mais ilustres – e firmou, nas

melhores condições, um tratado de paz com o imperador Honório. Com todas as honras entregou

ao Imperador sua irmã Placídia. Valia trata-a com toda a honestidade – enquanto esteve em sua

corte54

.

Através do relato de Orósio constatamos a imagem que Gala Placídia possuía. A

menção com uma das cidadãs romanas mais ilustres demonstra o prestígio da Augusta

não só para o sacerdote, mas como para toda a sociedade em que ela vivia.

52

FRIGHETTO, Renan. A imagem de Teodósio nas Historie Adversus Paganos VII, 34-35 de Paulo Orósio.

IN.: Stylos. Instituto de Estudios Grecolatinos “Prof. F. Nóvoa”. Buenos Aires. Pontifica Universidade

Católica Argentina Santa María de los Buenos Aires. Ano:14, N°:14, 2005.

53 ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 43; livro VII; pág.: 452.

54 Idem, Ibidem.

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Constâncio saiu do episódio com prestígio, já que havia entendido a importância

da esquadra. O conde satisfez outro antigo sonho, pois obteve de Honório a mão de

Gala Placídia em casamento. Em 418 os visigodos foram recompensados por seus

serviços prestados na Hispania, recebendo em dádiva a Aquitânia, no sudoeste da

Gália,onde se estabeleceram com seu novo rei Teodorico I.

Constâncio morreu em 421, somente poucos meses após ter se tornado colega

imperial de Honório, e quando Honório o seguiu em 423, os dois parecem terem feito a

melhor possível para aqueles anos agitados (406-410).

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4. Gala Placídia

As informações sobre a data do nascimento de Gala Placídia são imprecisas, mas

provavelmente tenha ocorrido por volta de 388/390. Da mesma forma não se tem

certeza quanto ao local de sua origem, sabe-se apenas que era no Oriente, talvez em

Constantinopla ou Tessália. A Augusta era filha de Teodósio I com sua segunda esposa,

Gala, conseguentemente era meia-irmã de Honório e Arcádio, que eram provenientes do

primeiro casamento do imperador. Em 395 Placídia mudou-se para o Ocidente, para

junto de seu irmão Honório. Quando Teodósio morreu passou a ser educada por

Estilicão e Serena, que era sua prima. Ainda jovem Placídia ficou noiva de Euquério,

união esta arranjada por Estilicão, que além de responsável pela noiva era pai do noivo.

Mesmo antes de tomar o poder em suas mãos, Gala Placídia possuía certa

influência política, em 408 o Senado Romano chegou a consultá-la acerca do sítio de

Alarico em Roma, quando questionada sobre o grau de lealdade que se deveria atribuir a

Serena. Lembrando que nesse momento o marido de Serena, o Magister Utriusque

Militiae Estilicão havia sido morte por ordem do imperador, assim como seu filho

Euquério. Desconhecem-se as motivações, mas Placídia aconselhou ao Senado que

matasse Serena, argumentando que esta havia se mancomunado com os visigodos.

Segundo Zósimo, a irmão do imperador e o Senado decidiram executar aquela- Serena-

que eles acreditavam ter atraído os bárbaros, e que por tanto era responsável por todos

os males que se acometera sobre a cidade. Apesar das motivações mencionadas, a

própria fonte nega tal traição55

A Augusta estava em Roma na época dos cercos da cidade, em 410 presenciou o

saque de Roma pelos visigodos, culminando no seu rapto. Placídia partiu de Roma rumo

a para o sul da Itália, junto dos visigodos e seu rei Alarico, o chefe dos godos que

morreu nesta viagem, quando estavam perto de conseguir atravessar para a África,

Alarico ficou doente e faleu.

55

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4.1. O casamento de Gala Placídia e Ataúfo

Em 414 o sucessor e cunhado de Alarico, Ataúfo tentou firmar um acordo de paz

com o imperador Honório. O rei dos visigodos libertaria Placídia, em troca de cereais e

território, porém o imperador do Ocidente não conseguiu cumprir sua parte no tratado.

Como resposta ao ocorrido casou-se com a então cativa Gala Placídia, o casamento

seguiu as tradições romanas. Em um cerimonial tipicamente católico, o noivo usou um

traje romano, Ataúlfo via-se como um restaurador da glória do Império Romano e não

como seu destruidor. Apesar da origem bárbara de Ataúfo, ao que parece muitos

romanos criaram esperanças com esse matrimônio, (até por que o rei professava o

arianismo) entre eles Paulo Orósio compartilha está opinião:

Nessa incursão, Placídia, filha do princípe Teodósio, irmã dos imperadores Arcádio e

Honório, foi feita prisioneira por Ataúfo, parente próximo de Alarico.E tomou-a para

esposa. Como se fosse por um secreto desígnio de Deus, Roma entregou Placídia como

refém, à maneira de quem deposita en penhor especial.

Assim, ligada pelo matrimónio a um rei bárbaro muito poderoso, Placídia trouxe

grandes vantagens para o Estado56

.

Com Ataúlfo, Gala teve um filho, Teodósio, nascido em 415, mas que viria a

falecer pouco tempo depois, tendo sido sepultado em Barcelona. Ataúfo acabou sendo

assassinado por um cavalariço revoltado, e após um tumultuado intervalo de sete dias

foi sucedido por Valia.

Ainda sobre Ataúfo, Paulo Orósio descreve-o como um varão animoso, esforçado,

engenhoso e sobre tudo um seguidor da paz, que acompanhava o imperador Honório

com muita lealdade. Porém o mais relevante da descrição de Orósio sobre o rei dos

godos, é que este desejava ardentemente obter o prestígio do nome romano, mais ainda

almejava profundamente fazer todo o Império Romano um só Império dos godos e

chamá-lo a si mesmo. Orósio simplifica o desejo de Ataúfo em uma frase: “ ...para me

exprimir em uma linguagem vulgar , queria que a Gótia fosse o que tinha sido a

România, e que Ataúfo se tornasse agora o que outrora fora César Augusto.”57

A

56

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 40; livro VII; pág.: 444.

57 Idem, ibedem.

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despeito destes comentários de Orósio podem ser confirmados pelo próprio casamento

de Ataúfo com Placídia, visto que ela representava a realeza romana, e o próprio

cerimonial foi realizado de acordo com a tradição romana. Neste momento a imagem

que Placídia emana é a da grandiosidade romana, para Ataúfo o símbolo do prestígio

romana é a própria Augusta.

De acordo com a pesquisadora M°. R. Valverde Castro, a cerimônia era um claro

expoente do forte impacto que os usos imperiais causaram entre as monarquias

germânicas. Era a primeira vez que um rei visigodo aparece rodeado por um aparato

externo suntuoso e, pela primeira vez se desenvolve um cerimonial inspirado

diretamente nos usos imperiais. Fato este que -segundo Valverde- revela o alto grau de

percepção adquirido por um rei visigodo sobre a importância de seu cargo. Para a

estudiosa a cerimônia simbolizava a elevada posição do rei frente sua sociedade, a

celebração suntuosa do casamento com Placídia manifesta o desejo de Ataúfo em

colaborar com o Império. A participação conjunta de romanos e visigodos em uma

celebração é uma boa maneira de expressar publicamente o desejo visigodo de

romanização e conciliação com o Império58

. Porém o matrimonia com Gala Placídia foi

considerado por Honório uma grande ofensa e é possível que por este motivo que

ordenasse a Constâncio bloquear as costas de Narbona.

Obviamente as diferenças culturais e as circunstâncias nunca permitiram que o

sonho de Ataúfo de forjar um único Império Romano com uma língua comum, direito

comum, instituições comuns se realizasse, no entanto o casamento com Placídia ao que

se relata foi bastante harmonioso. Orósio menciona em sua obra que Placídia era uma

mulher engenhosa e muito honesta no que concerne aos preceitos da religião, e que por

isso ela persuadiu o marido, Ataúfo, à realizações de todas a obras ditadas pelos

empreendimentos bem planificados59

. Foi ela também que o moderou pelos seus bons

conselhos e planos.

58

VALVERDE CASTRO, María F. Ideología, Simbolismo y ejercicio Del poder real em La monarquia

visigoda: um proceso de cambio. 1°Ed. Salamanca. Ediciones Universidad de Salamanca, 2000. Pag.: 38.

59 Idem, ibedem.

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4.2. O retorno de Gala Placídia a corte romana

Flávio Constâncio, o homem de confiança de Honório, derrotou os Visigodos, em

416 e Gala regressou para junto da sua família, após negociações com o novo rei dos

godos, Valia. O seu meio-irmão obrigou-a a casar com Constâncio em 417, realizando

um grande desejo de Constâncio, que a muito já era apaixonado por Placídia. Desta

união nasceu o futuro imperador Valentiniano III e uma filha, Honória. Graças à

influência exercida por Gala junto do irmão, o qual se dizia ter uma paixão por ela,

Constâncio seria elevado a Augusto, com o nome de Constâncio III (421), governando o

Império Romano do Ocidente junto com Honório. Por sua vez Gala foi elevada ao

estatuto de Augusta.

Após a morte de Constâncio, em 421, e a de Honório dois anos depois o poder

acabou nas mãos de Gala Placídia, mãe do menino imperador, Valentiniano III (425-

455). Quando Valentiniano se tornou imperador, possuía apenas seis anos e não podia

governar sozinho, e sua fascinante mãe controlou a política na corte, e conseguiu

exercer influência, por muito tempo. No entanto Placídia sempre teve um rival político

bastante influente, Aécio, que veio a ser chamado de “o último dos romanos”60

.

Depois que Constâncio morreu, Gala Placídia e seu irmão, Honório deram-se

esplendidamente bem. Não demorou muito para que os irmãos tivessem uma séria

desavença, possivelmente por causa de algum conselheiro de Honório que ressentiu a

influência de Placídia, e esperava impedir a ascensão do jovem filho dela, caso morresse

o imperador que não tinha filhos. A situação ficou ainda mais exacerbada pelos

seguidores visigodos de Gala Placídia, que ainda admiravam do tempo em que era a

esposa de Ataúfo, e que serviram como uma espécie de guarda pessoal. Esse laço com

os godos levou a uma acusação de traição, depois de seguidores de Placídia se

desavirem com soldados regulares em um tumulto em Ravena. Honório baniu-a, ela

fugiu com Valentiniano e a irmã dele para Constantinopla, onde reivindicou proteção o

seu sobrinho Teodósio II, o imperador do Oriente. O monarca de Bizâncio certamente

não se agradou em ter que abrigar aquela Augusta do Ocidente em território do Oriente.

Teodósio II nunca reconheceu o falecido marido de Gala Placídia como Augusto,

mesmo assim teve que abrigar a tia.

60

PIGANIOL, André. Historia de Roma. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires,

1961.pp.465-475.

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4.3. As dificuldades enfrentadas por Placídia a frente do poder

Quando da morte de Honório, Teodósio II governou durante um curto período o

Império do Ocidente. No final de 423, um antigo conselheiro de Honório, Castino, que

alimentara um ressentimento contra Placídia rebelou-se, e elevou à púrpura, João, um

destacado funcionário da administração civil do Ocidente. Essa ameaça a dinastia

teodosiana levou o imperador do Oriente a reconhecer postumamente a condição

imperial Constâncio III, e encaminhar um exército para o Ocidente (verão de 424), em

apoio a Valentiniano, filho de Constâncio, e sua mãe que o acompanhava, a Augusta,

Gala Placídia.

O comes da África, Bonifácio que era fiel ao regime de Valentiniano, dispersou as

forças de João enviando tropas numa missão mal sucedida para a África, afim de

levantar um bloqueio. Aécio, um partidário de João, foi enviado para conseguir apoio

dos hunos, porém quando voltou com a aliança João havia sido morto há três dias. Em

425 o exército do Oriente tomou Ravena, com a ajuda de alguns partidários do interior

da cidade, João foi aprisionado e morto. Para salvar a Itália de uma ameaça bárbara,

Gala Placídia deu-lhes dinheiro e reféns e concordou em colocar Aécio em um alto

cargo na Gália, visto que era necessário repelir os visigodos que haviam invadido Arles.

Desde o início havia uma tensão entre Aécio e Bonifácio, e embora Placídia preferisse o

comes da África teve que favorecer Aécio. Simultaneamente a vitória de Aécio na

“disputa entre seus chefes militares”61

, ocorreu um enfraquecimento do domínio romano

na África, e á perda de Cartago.

Bonifácio caiu em desfavor, provavelmente por divergências com Gala Placídia a

respeito de assuntos de religião, desacordos alimentados por intrigas políticas. A

discórdia foi tamanha que em 427 o comes rebelou-se contra Ravena, e chegou a

desbaratar forças imperais que fora enviada contra ele. Não demorou muito, Bonifácio

reatou com Gala Placídia. Em 430, Aécio e Bonifácio, possuíam igualmente um posto

militar elevado, porém em 432 Placídia concedeu o título de patricius (anteriormente

conferido a Estilicão e Constâcio). Bonifácio marchou com seu exército para a Itália e

Aécio foi a seu encontro para uma grande batalha em Rinimi. Bonifácio saiu vitorioso,

mas morreu pouco tempo depois. Com a ajuda de seus amigos hunos, Aécio foi

61

FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor

Ltda.1989.p.117.

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restaurado ao poder por Placídia, em 433.

Anteriormente, no ano de 429, Genserico, rei dos vândalos, decidiu conduzir

cerca de 80 mil pessoas através do Estreito de Cádis, da Malritânia romana rumaram

para o leste região de Cartago. Assim grande parte da África fora perdida e o domínio

no mar não era mais inconteste. Placídia apelou para Teodósio II que enviou um

exército comandado por Aspar afim de auxíliar Bonifácio. As forças aliadas de Placídia

foram vencidas em 432, três anos depois Ravena aceitou os vândalos como

“confederados” na África.

O tratado de 435 deu alguns anos de paz, e a oportunidade de Genserico recuperar

suas tropas, já que Aécio estava mais preocupado com a defesa da Gália. Em 19 de

outubro de 439, Genserico e suas tropas entraram em Cartago deixando um rastro de

horrores.

Católica devota, Gala apoiou o Papa Leão I na controvérsia eutiquiana. Em

Ravena mandou construir várias igrejas e em Roma ordenou a restauração da Basílica

de São Paulo fora dos muros.

Gala faleceu em Roma em 450, mas não se sabe ao certo onde foi sepultada. A

tradição atribui como seu túmulo o chamado Mausoléu de Gala Placídia, em Ravena,

mas existem muitas dúvidas sobre se de facto esta estrutura arquitectónica (conhecida

pelos seus mosaicos) se trata do túmulo da imperatriz. Gala Placídia foi uma imperatriz

romana que viveu na época de desagregação do Império Romano do Ocidente.

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5. Considerações Finais

Primeiramente a imagem de Gala Placídia emana de seu pai, Teodósio, homem

virtuoso de profunda devoção a fé cristã, visto que é assim que Paulo Orósio os

qualifica62

. Como já mencionado, Paulo Orósio estende as virtudes de Teodósio aos

seus filhos63

, Honório, por exemplo, é mencionado como um imperador sumamente

religioso e afortunado, que restabelece a paz e unidade da Igreja Católica na África64

.

Desta mesma forma, Gala Placídia é caracterizada, como uma menina que foi educada

em Roma segundo os preceitos da cristandade, e mais tarde se torna uma mulher

honesta no que concerne aos preceitos da religião65

. Neste momento a representação de

Placídia é indireta e pouco definida, é mais um reflexo da representação de seu pai do

que da sua própria representação. Os relatos são pouquíssimos, apenas revelam sua

educação, sua estada em Roma sob a tutela de Estilicão e Serena.

Após a morte do Imperador -o noivado entre Euquério e Placídia- a imagem da

Augusta ganha novos contornos. Se anteriormente as fontes revelavam apenas o aspecto

religioso da Imperatriz, ela passa também a simbolizar o poder imperial. Para Paulo

Orósio, Estilicão pretendia revestir da púrpura imperial seu único filho, e que ameaçava

Euquério usurpar o reino, pois desejava sentar-se no trono66

. Se os relatos do sacerdote

são influenciados por seu profundo desprezo pelo “bárbaro” Estilicão e seu filho, o fato

é que podemos notar que o noivado de Placídia com Euquério suscita um novo

elemento para a representação da Augusta. A Imperatriz é, então, descrita como a

garantia do poder imperial.

Com tudo, o maior número de menções a Placídia nas fontes ocorre após o sítio a

cidade de Roma. Zósimo nos relata que durante o sítio Placídia foi consultada pelo

62

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Livro VII. Capítulo 34 e 40.

63 FRIGHETTO, Renan. A imagem de Teodósio nas Historie Adversus Paganos VII, 34-35 de Paulo Orósio.

IN.: Stylos. Instituto de Estudios Grecolatinos “Prof. F. Nóvoa”. Buenos Aires. Pontifica Universidade

Católica Argentina Santa María de los Buenos Aires. Ano:14, N°:14, 2005.

64 ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do

Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Livro VII. Capítulo: 42. Pág.: 451.

65 Idem, Ibidem, Capítulo: 43. Pág.:453.

66 dem, Ibidem, Capítulo: 38. Pág.:441.

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Senado Romano, acerca da lealdade de sua prima Serena, que acabou sendo morta por

sugestão da Imperatriz67

. Através da fonte podemos perceber que a imagem de Gala

Placídia, já era de uma mulher respeitada e influente ao ponto de ser consultado pelo

Senado.

A construção da representação da Augusta se torna coesa e direta com seu rapto.

Zósimo assinala o caráter da realeza, pois mesmo cativa recebe o tratamento de uma

nobre68

. Era uma característica, que obviamente já havia sido atribuída a Placídia,

contudo desta vez é um comentário direto sobre sua figura. Ainda que se refira a

Placídia, como a irmão do Imperador, Zósimo atribui uma característica própria da

Imperatriz, e não mais como um simples membro da casa teodosiana.

O rapto de Gala Placídia atribuiu a ela um caráter muito singular. Para Orósio,

Roma entrega Placídia como refém como quem entrega um “penhor especial”69

.

Primeiramente podemos destacar que a comparação feita pelo sacerdote é de algo com

muito valor, quase que com uma afetuosidade pela Imperatriz. A imagem da Augusta se

torna de uma mulher grandiosa, que por desígnio de Deus se torna cativa em troca da

paz para o povo romano.

Posteriormente o casamento de Placídia com Ataúfo,o rei dos visigodos,

reafirmou está representação que estava sendo construída. Segundo Orósio, este

matrimônio trouxe grandes vantagens para o Império, visto que Gala Placídia casou-se

com um rei bárbaro muito poderoso. Para parte dos romanos, como Orósio, a então,

rainha dos visigodos, mesmo casada com um bárbaro, era uma mulher virtuosa e

religiosa, que possibilitava a paz, entre os godos e os romanos. Em outra perspectiva, o

imperador Honório sentiu esta união como uma ofensa pessoal, por ter ocorrido sem o

seu consentimento. E neste aspecto podemos destacar a imagem de um enfraquecimento

imperial perante a sociedade, mesmo este não sendo o objetivo de Ataúfo. Se Orósio

admiti o casamento de Placídia com Ataúfo como a possibilidade da paz, de certa forma

67

ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau Morón.

Editorial Gregos, S.A., 1992. Livro V. Capitulo 38,1.

68Idem, Ibidem. Capitulo 37,1.

69ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo do Ensino

Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho, 1986. Capítulo 40; livro VII; pág.: 444.

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é por entender que essa paz não venha de Honório.70

O casamento com Ataúfo seguiu de forma rígida as tradições romanas, isto por

que, para o rei godo a noiva simbolizava o prestígio do Império Romano. De acordo

com Orósio o rei dos godos, é que este desejava ardentemente obter o prestígio do nome

romano, mais ainda almejava profundamente fazer todo o Império Romano um só

Império dos godos e chamá-lo a si mesmo. Em conformidade com as idéias de

Valverde, a imagem de Placídia e de seu casamento, simboliza mais do que a glória

romana, também legítima a percepção de Ataúfo sobre a importância de seu cargo. Para

a estudiosa a cerimônia simbolizava a elevada posição do rei frente sua sociedade. A

participação conjunta de romanos e visigodos em uma celebração é uma boa maneira de

expressar publicamente o desejo visigodo de romanização e conciliação com o

Império71

. Este sentido Gala Placídia representa a própria romanização.

Depois do casamento com o rei dos visigodos, a imagem da Augusta não adquiriu

nenhum elemento novo, suas característicAs são apenas reafirmadas. Como por

exemplo, quando Valia, (rei que sucedeu Ataúfo), liberta a Imperatriz. Orósio relata a

fato destacando aspectos já mencionados da representação de Placídia. Para o sacerdote

uns dos cidadãos mais ilustres foi libertado.

Apesar dos relatos sobre Placídia, o fato de não possuir uma obra que trate da

Augusta como tema principal, ou mesmo que não seja indiretamente, tem que nos

chamar a atenção. Mesmo com uma imagem peculiar não teve a honra de ter uma obra

sobre sua vida. Talvez por pertencer a um período de mudanças com tamanha

magnitude que tenha ofuscado suas características singulares.

70

Idem, Ibidem. Capítulo 43; livro VII; pág.: 452.

71 VALVERDE CASTRO, María F. Ideología, Simbolismo y ejercicio Del poder real em La monarquia

visigoda: um proceso de cambio. 1°Ed. Salamanca. Ediciones Universidad de Salamanca, 2000. Pag.: 38.

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40

6. Referências bibliográficas

Fonte:

ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor efetivo

do Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho,1986.

ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid. Introducción traducción y notas de José Maria Candau

Morón. Editorial Gregos, S.A., 1992

Bibliografia:

FERRILL, Arther. A queda do Império Romano- A explicação Militar. Rio de Janeiro,

Jorge Zahar Editor Ltda.1989.

FRIGHETTO, Renan. A imagem de Teodósio nas Historie Adversus Paganos VII, 34-

35 de Paulo Orósio. IN.: Stylos. Instituto de Estudios Grecolatinos “Prof. F. Nóvoa”.

Buenos Aires. Pontifica Universidade Católica Argentina Santa María de los Buenos

Aires. Ano:14, N°:14, 2005.

MARROU, Henri-Irénée. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia?. Lisboa.

Editorial Áster.1979.

PIGANIOL, André. Historia de Roma. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitaria

de Buenos Aires, 1961.

RICHÉ, Pierre. Grandes Invasões e Impérios Séculos V a X. Lisboa. Publicações Dom

Quixote, 1980.

ROUCHE, Michel. Os Impérios Universais Séculos II a IV; Coleção: História

Universal 4. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1980.

VALVERDE CASTRO, María F. Ideología, Simbolismo y ejercicio Del poder real em

La monarquia visigoda: um proceso de cambio. 1°Ed. Salamanca. Ediciones

Universidad de Salamanca, 2000.

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Anexos

Gala Placídia à direita e sua filhos, Valentiniano e Honória. Museu Cívico, Bréscia,

Itália. ORÓSIO, Paulo. História Contra os Pagãos. Versão portuguesa e anotações: Professor

efetivo do Ensino Secundário José Cardoso; Braga, Universidade do Minho,1986.Capítulo 43.

Gala Placídia numa moeda romana de cerca de 425-435