gagliardo intendencia policia rj
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Histórico da saúde pública nos portosTRANSCRIPT
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A INTENDNCIA DE POLCIA E A CIVILIZAO DO RIO DE JANEIRO
OITOCENTISTA
The Intendancy Of Police And The Civilization Of The Rio De Janeiro In
The Nineteenth-Century
Vinicius Cranek Gagliardo
Histria na Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a participao da polcia na europeizao e
urbanizao do Rio de Janeiro nas primeiras dcadas do Oitocentos. Para isso, como
ponto de partida, mapearei o novo desenvolvimento institucional e as novas
atribuies da polcia que se consolidaram a partir do sculo XIX, identificando um
momento de descontinuidade discursiva e prtica em relao polcia dos tempos
coloniais. Assim, diferentemente do que teria ocorrido at o final do sculo XVIII, com
a fundao da Intendncia Geral de Polcia, em 1808, estabeleceu-se um novo tipo de
interveno por parte da instituio policial sobre a cidade e a populao: a
civilizatria.
Palavras-chave
polcia, urbanizao, civilizao.
Abstract
This article aims to analyze the involvement of the police in Europeanization and
urbanization of Rio de Janeiro in the early decades of the nineteenth century. For that,
as a starting point, I will map the new institutional development and new police
powers that have been consolidated from the nineteenth century, identifying a
moment of discontinuity discourse and practice of the police from colonial times. Thus,
unlike what had occurred until the late eighteenth century, with the founding of the
Intendancy General of Police, in 1808, established a new type of intervention on the
part of the police over the city and the population: the civilizatory.
Key-words
police, urbanization, civilization.
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O desembarque da corte portuguesa no Brasil, em 1808, marcou o incio de um
novo tipo de experincia social - de ordem urbana - que gradativamente substituiu a
paisagem social colonial - de ordem rural (Cf. FREYRE, 2004). Com a escolha do Rio
de Janeiro para sede da monarquia lusitana, a cidade tornou-se o epicentro deste
novo tipo de experincia social, transformando-se, durante o sculo XIX, em uma
espcie de laboratrio em que eram testadas as primeiras medidas civilizatrias
implantadas no pas, medidas que, posteriormente, poderiam ser ou no aplicadas ao
restante do Brasil (MATTOS, 2004, p. 264 et. seq.).
Foi principalmente a partir da chegada de Dom Joo que a cidade do Rio de
Janeiro comeou a abandonar suas caractersticas coloniais, inaugurando um processo
de formao de uma sociedade urbana. At ento, o Rio de Janeiro no era mais que
uma mesquinha urbe colonial, dotada de caractersticas pouco civilizadas, onde a
sociedade caracterizava-se por seus traos essencialmente extra-europeus e
patriarcais (FREYRE, 2004, p. 139). De certo modo, muitos dos aspectos da cidade
que se tornassem alvo da observao dos fidalgos recm-chegados seriam marcados
pela ausncia dos padres de modernizao tanto de cidades como Paris e Londres,
epicentros das medidas de urbanizao que se desenvolviam na Europa, quanto de
Lisboa, reconstruda aps o terremoto de 1755.
A partir de 1808, no entanto, esta situao comea a se modificar. Influenciado
pelos modos mais civilizados e cultos de uma corte europeia, bem como pela vasta
gama de estrangeiros que desembarcaram nos trpicos aps a abertura dos portos, o
Rio de Janeiro transformou-se na mais importante cidade do Brasil oitocentista. A
presena da corte e dos estrangeiros que chegaram aps 1808 intensificou o contato
do Brasil com a civilizao europeia, uma vez que, durante o perodo colonial, a
Amrica portuguesa teria se afastado culturalmente da Europa, aproximando-se da
frica e do Oriente; como salienta Gilberto Freyre:
[...] quase que tinham sido transplantados para c pedaos inteiros e vivos, e no somente estilhaos ou restos, dessas civilizaes extra-europeias; e utilizando o elemento indgena apenas como o grude humano que ligasse terra todas aquelas importaes da frica e da sia, e no apenas as europeias. A colnia portuguesa da Amrica adquirira qualidades e condies de vida to exticas - do ponto de vista europeu - que o sculo XIX, renovando o contato do Brasil com a Europa - que agora j era outra: industrial, comercial, mecnica, a burguesia triunfante - teve para o nosso pas o carter de uma reeuropeizao (FREYRE, 2004, p. 430-431).
A partir do contato com elementos provenientes do Velho Mundo, a capital
brasileira desenvolveu e modernizou seu espao urbano, incrementou-se
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culturalmente e obteve um grande impulso em suas atividades sociais, econmicas e
polticas, que se tornaram cada vez mais complexas (LIMA, 1996, p. 81). Os hbitos,
costumes e comportamentos nativos tambm se transformaram: como afirma Oliveira
Lima, muito mais do que o gosto das artes, cincia e indstrias, fez o contato
europeu desenvolver-se no reino ultramarino o gosto do conforto, do luxo e dos
encantos da vida social (LIMA, 1996, p. 88).
Desse modo, tornou-se imprescindvel para a monarquia lusitana transformar
esta cidade colonial ainda sem muitos atrativos na sede da coroa portuguesa, uma
sede que deveria ser dotada de padres de sociabilidade e de civilidade tpicos de uma
sociedade de corte do Velho Mundo. Assim, coube ao monarca edificar um aparato
institucional capaz de adaptar o Rio de Janeiro ao ideal de civilizao - ideal resultante
do pensamento ilustrado - que se procurava estabelecer nas mais notveis urbes
europeias (Cf. CARVALHO, 2003). Para tal, e apenas trs dias aps o desembarque de
Dom Joo no Rio de Janeiro, o prncipe regente constituiu um novo Ministrio1, que
deveria erigir os alicerces do Estado brasileiro, atendendo s necessidades de uma
cidade que se tornou sede de uma monarquia europeia (NORTON, 1938, p. 54).
Basicamente, o objetivo comum das instituies criadas foi fazer do territrio
brasileiro e de sua populao objetos de conhecimento e de interveno, visando a
edificar um aparato governamental que assegurasse a prosperidade da colnia e a
sobrevivncia da monarquia (MACHADO et. al, 1978, p. 160-162). Entre as
instituies fundadas aps 1808 com tais propsitos, destaca-se a Intendncia Geral
de Polcia da Corte e Estado do Brasil, criada no mesmo ano da chegada de Dom Joo.
Ao desembarcar em solo americano, a corte portuguesa automaticamente
emprestou ao Rio de Janeiro os elementos de uma sociedade cortes, desenvolvendo
um processo de trocas entre a corte europeia que se estabelecia e a sociedade local,
marcadamente rural. A partir da presena fsica da monarquia na capital brasileira,
inaugura-se um processo de invaso do imaginrio local pelo imaginrio corteso,
constitudo por outro universo de referncias forjado em um tipo de experincia social
diferente da que se experimentava no Brasil. Este imaginrio europeu de civilidade e
cortesia, caracterstico dos recm-chegados, teria entrado em choque com a
sociabilidade rural-escravista da sociedade local, exigindo o desmantelamento das
tradies coloniais medida que procurava se estabelecer como imaginrio
1 D. Fernando Jos de Portugal e Castro (Marqus de Aguiar), antigo Governador e Capito Geral da Bahia e antigo vice-rei do Brasil, foi nomeado Ministro e Secretrio de Estado dos Negcios do Reino; D. Rodrigo de Souza Coutinho (Conde de Linhares), principal homem do governo nos primeiros anos de permanncia de D. Joo, passou a ocupar a pasta de Ministro e Secretrio de Estado dos Negcios Estrangeiros e da Guerra; e o Visconde de Anadia ficou com o antigo cargo de D. Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro e Secretrio dos Negcios da Marinha e do Ultramar (NORTON, 1938, p. 54-55).
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dominante, cujas prticas de poder tivessem o estatuto de legtimas (PECHMAN,
2002, p. 38-54); como afirma Robert Moses Pechman:
[...] a percepo colonial do que era ordem, lei, justia, transgresso e punio, por um lado, e os ideais de civilidade, cortesia, honra, moral e vida pblica, caractersticos da sociedade de corte, por outro, haveriam de opor duas diferentes percepes sobre a legitimidade do poder (PECHMAN, 2002, p. 51).
Ao buscar constituir-se como poder legtimo, a sociabilidade cortes teve que
difundir uma nova definio de ordem e desordem, diferente da que existia at ento,
procurando delimitar a fronteira que deveria separar o almejvel do execrvel,
estabelecendo um referencial que modelasse toda a sociedade fluminense. Assim,
identificou-se o modelo de vida corteso, de civilidade, com o princpio de ordem
desejado e o universo colonial como contraponto deste novo modelo, assimilando-o ao
mundo da desordem. Desse modo, a presena dos Bragana no Rio de Janeiro
desencadeou a formao de um novo imaginrio e um novo tipo de experincia social
durante o sculo XIX, formulados no pela evoluo da sociabilidade rural, mas por
um processo de descontinuidade com o perodo colonial, pois teria como fundamento
dessa nova sociabilidade em formao, vinculada ao ideal de civilidade europeu, a
urbanizao da cidade e a civilizao dos habitantes locais, e no mais a manuteno
das tradies rurais; ainda segundo Robert Moses Pechman:
[...] muito mais que conter a desordem decorrente da nova experincia de sociabilidade, o que se experimenta a possibilidade de construo de uma representao da ordem, de um sistema de referncias que pretendia se contrapor aos comportamentos considerados prprios do universo tradicional da casa-grande escravista. Por mais distante que esteja da realidade, onde ordem e desobedincia se mesclam, tal representao funciona no sentido da exemplaridade na tentativa de criar evidncias no interior de um mundo que se deseja modificar. Identificamos, nesse desejo de ordem, uma tentativa de qualificar a desordem como herana de outro tempo histrico que deve se dobrar diante dos novos imperativos da civilidade (PECHMAN, 2002, p. 41).
Esta mudana significativa das bases discursivas da sociedade, nomeadamente
em sua concepo de ordem, bem como o incio da transformao da paisagem social
rural em uma paisagem urbana, processo que se iniciaria com o estabelecimento da
corte joanina no Rio de Janeiro, implicaria em uma reformulao das caractersticas
da polcia em relao ao que se viu durante o perodo colonial. Mesmo porque seria a
prpria instituio policial que fabricaria a noo de ordem que se desejava fixar, pois
exerceria a funo de delimitadora entre o mundo da ordem e o mundo da desordem,
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construindo as clivagens que iro dar os parmetros da sociedade que se forma
(PECHMAN, 2002, p. 94).
A criao da Intendncia Geral de Polcia da Corte e Estado do Brasil,
promovida pelo alvar de 5 de abril de 1808, e a criao do cargo de Intendente Geral
de Polcia, por alvar publicado em 10 de maio de 1808, encontram-se entre os
primeiros atos de Dom Joo aps desembarcar em solo fluminense. Com isso, o
monarca pretendeu organizar o servio policial da cidade, centralizando todas as
atribuies policiais nas mos de uma nica autoridade: o desembargador Paulo
Fernandes Viana, primeiro intendente de polcia, que se manteve no cargo de 1808 a
1821. Coube a Paulo Fernandes Viana dar os primeiros passos em direo
organizao da instituio policial, da mesma forma e com a mesma jurisdio2 da
Intendncia de Polcia criada em Portugal pelo marqus de Pombal, segundo o alvar
de 25 de junho de 1760.
De acordo com o alvar de criao da instituio em Portugal, o intendente
possuiria as seguintes atribuies: zelar pela tranquilidade pblica, coibindo todos os
delitos, como os crimes de armas proibidas, ferimentos, mortes, insultos, sedies e
latrocnios; emitir licenas para que nacionais ou estrangeiros possam esmolar nas
ruas das cidades e vilas das provncias portuguesas, ficando vetada a atividade
mendicante caso o intendente no conceda a autorizao; e controlar rigorosamente a
circulao de pessoas: 1) elaborando um livro de registro ou matrcula em cada bairro
de Lisboa, em que se descreva o ofcio e o meio de subsistncia de cada morador,
com o intuito de detectar homens ociosos e libertinos que possam colocar em risco a
segurana e a tranquilidade pblicas; 2) proibindo o aluguel de casas a homens
vadios, jogadores de ofcios, aos que no possuam modo de sobrevivncia e aos de
costumes escandalosos, sob pena de perder o valor do aluguel; 3) exigindo uma
autorizao dos ministros do bairro de origem e de destino para o morador que deseje
mudar de bairro; 4) cobrando a apresentao, tanto de nacionais quanto de
estrangeiros que passarem pela cidade, ao ministro criminal do bairro em que o
indivduo se estabelecer, num perodo de 24 horas desde sua chegada, para anunciar
seu nome, profisso, lugar de onde venha, tempo de permanncia e nmero e
qualidade das pessoas de sua comitiva; 5) prescrevendo a elaborao de um dirio
com as mesmas informaes pessoais do item anterior por parte de taverneiros,
vendeiros ou estalajadeiros que derem abrigo a nacionais ou estrangeiros em suas
tavernas, vendas e estalagens, entregando uma relao diria ao ministro criminal do
2 Alvar de criao do cargo de intendente geral de polcia, de 10/05/1808 (MACEDO, 1956, p. 18).
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bairro em que se localizarem; 6) requerendo a declarao das informaes pessoais
dos tripulantes de navios nacionais ou estrangeiros que entrarem no porto da cidade;
7) exigindo a apresentao de passaportes dos estrangeiros que cruzarem as
fronteiras de Portugal, com a especificao do destino de sua viagem.3
V-se, pelo alvar de 1760, que as principais preocupaes da Intendncia de
Polcia de Portugal, que teve sua criao inspirada no modelo francs, articulavam-se
ao problema da segurana pblica. Entretanto, em decreto de 17 de maio de 1780, a
Intendncia de Polcia portuguesa ganharia novas atribuies: alm de cuidar da
tranquilidade pblica, intervindo para isto na prpria circulao de pessoas pela
cidade, ganhou ares de uma instituio poltico-administrativa, passando, a partir de
ento, a intervir na urbanizao de Lisboa, assumindo a responsabilidade de
construir e conservar caladas e de velar pela sade pblica da cidade de Lisboa,
obrigaes essas que eram de competncia do Senado da Cmara (CARVALHO,
2003, p. 94). No Rio de Janeiro, quando se criou a Intendncia, o Senado tambm era
o responsvel pelas obras de urbanizao, situao que fez com que, muitas vezes, as
obrigaes de ambas as instituies se confundissem (RIOS FILHO, 2000, p. 128).
Desse modo, a polcia que se organizou no Brasil aps a chegada da corte, em
1808, foi planejada tendo como referncia a Intendncia de Polcia de Portugal, e teve
como grande preocupao a adaptao do Rio de Janeiro a suas novas funes de
sede de uma monarquia europeia, visando, de acordo com o ideal de civilidade
corteso, a instituir um novo referencial de ordem em um mundo repleto de desordem
(SANTOS, 1979, p. 30). preciso salientar, no entanto, que, muito mais do que a
importao unilateral de um modelo de vida europeu, o projeto civilizatrio
desenvolvido no Brasil por esta instituio deve ser entendido num sentido dinmico e
flexvel, em que o ideal de civilidade europeu teve que ser adaptado realidade local
(MALERBA, 2000, p. 163). Esta europeizao deve ser compreendida tambm como
um processo de constituio de um novo imaginrio e de requalificao da prpria
experincia social, na medida em que o imaginrio em formao, sustentado na
verdade civilizatria, teria como base as antteses Europa/Brasil,
civilizao/barbrie, progresso/atraso, etc., antteses que remodelariam as prticas de
poder e de dominao poltica at ento vigentes. Dito de outro modo, esta verdade
civilizatria que fundamentaria a nova sociabilidade que se procurou construir no
Brasil teria regulado as prticas de poder da polcia, a partir da oposio entre as
representaes de civilidade e barbrie, representaes que se constituram,
3 Alvar de criao da Intendncia da Polcia de Portugal, de 25/06/1760 (ARAJO, 1898, p. 10-27).
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respectivamente, como um ideal a ser alcanado e como uma realidade a ser
modificada (BRESCIANI, 2002, p. 10). Mais ainda: tais representaes seriam
interdependentes, uma vez que a representao da civilizao inseparvel de seu
avesso (STAROBINSKI, 2001, p. 56). neste cenrio que se insere a criao da
Intendncia Geral de Polcia.
Mas que concepo de ordem esta que foi formulada e estabelecida pela
polcia? A atividade policial durante a colonizao era pautada pelo princpio da
represso. O que se viu no Brasil colonial foram mais sentenas do que leis, o que
sugere o carter essencialmente punitivo da justia colonial, que no se preocupou
com a preveno, mas em sentenciar os delitos e crimes cometidos pelos infratores;
sentenas estas, muitas vezes, arbitrrias, pois a lei ou punio que caberia a
determinado crime poderia ser aplicada de modo diferente, dependendo dos
benefcios e privilgios de cada um dos envolvidos. O que quer dizer, por exemplo,
que um marido que encontrasse a mulher nos braos de um sedutor, podia matar,
licitamente, qualquer dos dois. Apenas se o sedutor era um desses privilegiados, j a
lei mudava, punindo o marido, que matara sem ter olhado a quem (EDMUNDO, 1951,
v. 2, p. 468).
Diferentemente da tradio punitiva colonial, em que a ideia de preveno
ainda no existia, mas somente a noo de que quanto mais desordem mais castigo,
a nova polcia organizada pelo intendente iria combater os distrbios urbanos com as
armas da civilidade. Esta nova lgica de ordem objetivaria, ento, no mais somente
punir e excluir, mas, sobretudo, reconhecer a desordem, transform-la e incorpor-la
nova sociabilidade em formao; o que no quer dizer que as novas prticas
policiais tenham sido menos violentas que as precedentes, mas que as formas
coloniais de controle social perderam espao para esta nova concepo de ordem, que
combinava punio com incorporao e civilidade. Desse modo, ao incorporar a
desordem, a civilidade torna-se parte integrante do sistema de controle social, pois se
desenvolve como uma nova forma de submisso que atinge toda a hierarquia social,
no intuito de preserv-la. Alm disso, a concepo de ordem formulada pela polcia,
que fez da civilidade mecanismo de incorporao da desordem, tendo em vista os
referenciais de verdade civilizatria que passaram a ser aceitos pela sociedade
urbana em formao, revela a postura da Intendncia de Polcia como uma instituio
civilizatria (PECHMAN, 2002, p. 67-89); como assinala Robert Pechman:
[...] depreende-se, portanto, que uma nova lgica passa a predominar no campo da ordem, que deve ser entendida mais pelo seu lado civil de
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conteno/enquadramento da sociabilidade do que por seu aspecto policial no sentido de interdio, stio, presso, assalto e cultivo do medo. A prpria linguagem utilizada para nomear o assalto desordem vai se transformando. Em vez de palavras como pena de morte, mutilao, tormento, tortura, confisco, morte natural, exlio, degredo, expresses como razo, preveno, costumes civilizados, estado de civilizao, moralidade pblica etc. No por outro motivo que as primeiras medidas, logo provavelmente as mais urgentes, sancionadas pelo intendente, assim de sua posse, dizem respeito limpeza da cidade, s construes, ao comportamento no teatro, vigilncia dos botequins, estatstica da populao etc. Medidas visivelmente necessrias ordenao do espao pblico, lugar de exerccio da civilidade (PECHMAN, 2002, p. 73).
Assim, o projeto civilizatrio da polcia na capital da corte se concentraria em trs
eixos principais: na urbanizao da cidade, na civilizao da populao e na garantia
da tranquilidade pblica.
Depois de criada a Intendncia de Polcia, resta saber de que maneira seu
projeto de civilizao, planejado nos moldes vistos anteriormente, foi colocado em
prtica. Como j dito, devido presena da monarquia portuguesa no Rio de Janeiro,
tornou-se imprescindvel e urgente dotar a capital de condies dignas de alojar uma
corte europeia, o que significava agir, antes de tudo, de modo a transformar sua
precria aparncia. Desse modo, a partir de 1808, a polcia passa a publicar uma srie
de editais que visavam a normatizar o comportamento dos habitantes e, em
consequncia, modificar a prpria esttica da cidade, de acordo com o novo modelo
de ordem almejado pela sociedade cortes, cuja referncia era a Europa,
especificamente cidades como Paris e Londres, que funcionavam como laboratrios
de observao sobre medidas de civilizao (ENGEL, 2004, p. 37).
Em 20 de abril de 1808, antes mesmo da criao do cargo de intendente,4 a
polcia publica seu primeiro edital:
[...] fao saber a todos que o presente edital virem ou dele notcia tiverem que concorrendo [...] o asseio da cidade muito para a salubridade dela, e importando este objeto sade pblica e polcia, e no tendo sido bastante at agora os cuidados que a Cmara tem empregado para se evitarem os males que do contrrio se seguem, ou pela pouca vigilncia e mesmo pela corrupo dos rendeiros ou dos oficiais executores das suas deliberaes: da data deste em diante se exigir por esta Intendncia, com zelo e atividade, [...] que toda a pessoa que for encontrada a deitar guas sujas, lixo e qualquer outra imundcie nas ruas e travessas ser presa e no sair da cadeia sem pagar dois mil ris para o cofre das despesas da polcia. [...] E para que seno chamem a ignorncia, mandei fixar o presente [edital] por todos
4 Paulo Fernandes Viana, primeiro intendente de polcia no Brasil, iniciou seus trabalhos frente da Intendncia antes mesmo de ser oficialmente institudo no cargo, criado pelo alvar de 10 de maio de 1808.
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os lugares pblicos desta cidade, para que assim chegue a notcia a todos (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, 20/04/1808).
O edital acima inaugura uma longa batalha para coibir a prtica dos moradores
locais de jogar imundices pelas ruas de So Sebastio. Longa, porque a nova norma
colocada em vigor no surtir efeito imediato, como desejado pelo intendente. Assim,
tendo em vista a falta de colaborao dos moradores em tornar a cidade livre da
sujeira das ruas, coube polcia lanar outros editais sobre tal prtica indesejada. o
caso da lei de 11 de junho de 1808, que, mesmo publicada pouco tempo aps o
primeiro edital, reforava a proibio e aumentava a pena para os infratores:
[...] sendo um dos cuidados da polcia vigiar sobre o asseio da cidade, no s para a comodidade de seus moradores, mas, principalmente, para conservar a salubridade do ar e impedir que se infeccione com as imundcies que das casas se deitam s ruas; e constando, alis, que muitos de seus moradores apartando-se culposamente do costume que nela sempre havia de mandarem deitar ao mar, em tinas e vasilhas cobertas, as guas imundas e os outros despejos, se facilitam impunemente a faz-los das janelas abaixo, o que nunca era da sua liberdade faz-lo no centro de uma corte que se est estabelecendo e que se procura elevar maior perfeio, no sendo para isso no estado presente bastante a vigilncia do rendeiro para este fim criado pela lei do Reino debaixo da inspeo do Senado da Cmara, fica de hoje em diante vedado por esta Intendncia o abuso de deitarem s ruas as imundcies, e todo aquele que for visto fazer os despejos das portas ou das janelas abaixo, ou mesmo constar por informaes que os fazem, sero punidos em 10 dias de priso e com a pena pecuniria de dois mil ris para o cofre da polcia, e todos os oficiais da mesma Intendncia e da justia e qualquer do povo que der parte da infrao e se verificar de pleno e pela verdade sabida, receber metade da condenao pecuniria (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, 11/06/1808).
A nova concepo de ordem que vai sendo formulada pela polcia, como se
pode ver, embora pautada pela ideia de preveno, ainda leva em conta mecanismos
da lgica punitiva colonial. Mesmo porque a polcia nunca deixou de ser uma
instituio de carter repressivo: a civilidade sendo conquistada pelas mos da
punio, punio que, na medida em que se verifica insuficiente para obter o
resultado desejado, se torna mais severa. Assim, se no primeiro edital o transgressor
apanhado sairia da cadeia aps o pagamento de multa, o segundo j determina, alm
do pagamento em dinheiro, o cumprimento de dez dias de priso.
Mas a questo que mais chama a ateno nestes editais o empenho pela
salubridade urbana. Entre os principais pontos de despejo de dejetos encontrava-se a
Rua da Vala, pois, como seu prprio nome j adianta, tal rua possua uma vala que
funcionava como via de escoamento das guas das chuvas para fora da cidade. Nela,
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os moradores aproveitavam para arremessar suas porcarias, na esperana de que as
guas das chuvas as levassem embora. Assim, a vala deixava espao suficiente pelo
qual o povo se serve para lanar imundices que tornam aquela rua em estado tal que
exala um mau cheiro que pode certamente causar grandes males aos moradores da
referida rua, o que a polcia o quanto antes deve acautelar (ANRJ, Polcia da Corte,
cdice 336, 29/04/1825). Para isso, o intendente aprovou providncias para a limpeza
dos dejetos, exigindo prontido na execuo de suas ordens, por esta obra ser de
interesse pblico e pelo mal estado em que est aquela rua (ANRJ, Polcia da Corte,
cdice 336, 29/04/1825).
Mas apesar dos esforos da polcia, a prtica de lanar o lixo pelas portas e
janelas das casas no pde ser erradicada durante os anos em que a Intendncia
existiu. Entretanto, como registrado em edital de 1829, a polcia mostrava-se atenta
aos problemas de limpeza e sade da cidade:
[...] o fiscal da limpeza pblica, tendo empregado todos os meios para limpar a Praa do Capim e no ter podido obter [xito], por acumular novo lixo da noite para o dia, no obstante a proximidade de uma guarda ali posta, [que] o Inspetor Coronel Comandante da Imperial Guarda da Polcia d as suas ordens a dita guarda para que, conservando uma sentinela em ronda, prenda a todos aqueles que ali lanarem lixo e imundices, segundo as ordens existentes. Outrossim, tambm ordenar que a dita guarda no permita que as quitandeiras estacionadas durante o dia naquele largo nele deixem ficar objeto algum, nem se retirem sem varrerem seus lugares, a juntarem e conduzirem os restos que costumam deixar (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 343, 1829).
Alm disso, o sistema de esgotos institudo no Rio de Janeiro, em que os escravos
eram encarregados de recolher os barris de dejetos que se acumulavam dentro das
casas, que iam desde restos de alimentos at excrementos humanos, e despej-los no
mar, tambm mereceu posturas de controle pela polcia. Isso porque o hbito de jogar
as imundices das tinas em pontos especficos do mar no era plenamente respeitado.
Desse modo, alm do acmulo de porcarias nas praias, os escravos tambm as
atiravam em terrenos baldios, praas ou qualquer lugar que lhes fosse mais cmodo
(MALERBA, 2000, p. 129-131). Em outro edital, publicado em outubro de 1829, pode-
se ver a preocupao da polcia a este respeito:
[...] no se tendo experimentado bom resultado da ponte que existe para despejos no lugar do aterrado, pelo abuso que praticam os escravos que os lanam e mesmo porque as mars no crescem quanto seria necessrio para conduzir o lixo, provindo disso uma exalao ptrida e incomoda aos que transitam e moram prximos, ordeno que a
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dita ponte seja demolida e levantada entre a pedreira de So Diego, em lugar que seja bem lavada das guas, ficando desde j proibido lanar lixos nos dois lados da estrada, sob pena de ser preso e multado segundo as ordens (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 343, outubro de 1829).
Mas a polcia no se fazia atenta apenas aos problemas causados pelos detritos
j presentes nas ruas e praias da cidade. O intendente ainda dispunha da obrigao
de prevenir o acmulo de lixo e gua estagnada por meio da execuo de obras na
estrutura urbana. Assim, a polcia expediu ofcios ordenando as seguintes questes:
exige junto aos proprietrios das chcaras para abrirem na frente de suas testadas
valas para darem esgoto s guas (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 336, 29/04/1825);
que os proprietrios ou moradores das chcaras por onde passa a vala aberta desde
a chcara de Antnio Jos Ferreira at a do porto de Manoel Jos de Souza Bastos
consintam e auxiliem com o que puderem a limpeza dela (Ibid., 26/09/1826); manda
abrir os bueiros que forem precisos na ponte da estrada de So Cristvo, junto
residncia do Brigadeiro Lzaro Jos Gonalves, para se evitarem as inundaes que
ali h das guas que tornam a estrada intransitvel (Ibid., 27/04/1825); ordena que
se proceda a abertura de valas e feitura de pontes no Campo de So Cristvo para
esgoto das guas (Ibid., 16/08/1825); alm de decretar que sem perda de tempo se
proceda o desentulho da vala que serve de esgoto s guas da ponte na estrada de
So Cristvo, contgua casa do Brigadeiro Lzaro Jos Gonalves (Ibid.,
16/11/1825).
O intendente Paulo Fernandes Viana informa, ainda, em suas memrias, um
verdadeiro resumo das principais atividades da polcia entre 1808 e 1821, que aterrou
imensos pntanos da cidade, com que se tornou mais sadia, e no que se consumiu
muito dinheiro, e depois de aterradas fiz as caladas [...] no estado em que se acham,
com utilidade do trnsito e da sade pblica (VIANA, 1892, p. 374). Em duas
portarias expedidas pelo mesmo intendente, ainda no ano de 1808, a autoridade
policial ordena providncias sobre o problema do acmulo de guas. No primeiro
ofcio, dirigido ao juiz de Fora, Agostinho Petra de Bitancourt, em 19 de julho, Paulo
Viana adverte:
[...] no se podendo prescindir por mais tempo de entrar com o cuidado e diligncia a enxugar os pntanos desta corte, de onde principalmente derivam as molstias que nelas grassam, encarrego a voc das duas ruas, do Lavradio e Invlidos, e das suas respectivas travessas, indicando-lhe o modo porque esse trabalho se deve fazer para avultar o seu adiantamento. Mandar voc, logo que receber este, informar-se se os terrenos no edificados tm ou no donos; tendo-os, mandar
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notific-los para que os entulhem e enxuguem dentro de um espao curto [...], com a pena de que no fazendo virem a assinar termo de os virem vender a quem os possa enxugar, por no dever o bem pblico esperar pelas suas comodidades e sofrer os seus desmandos, e dar remetendo-me estes termos para pela Intendncia se fazerem cumprir (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, 19/07/1808).
Na segunda portaria, datada de 20 de novembro e dirigida ao desembargador e
juiz do Crime do bairro de Santa Rita, Jos da Silva Loureiro Borges, o intendente
reitera a preocupao da polcia com o acmulo das guas das chuvas pela cidade,
uma vez que as guas estagnadas eram consideradas um dos principais focos de
doenas:
[...] as ruas que ficam das antigas ruas do Sabo e So Pedro para o Campo, onde se edificaram novas propriedades, e que ainda no esto caladas, nem o podero ser to cedo, se mostraram intransitveis nestas primeiras guas da semana passada, que mostraram pedir alguma providncia. Voc tomar isto em considerao para mandar os seus donos que faam as suas testadas [...], para no consentir nesses terrenos que se faam despejos e para, finalmente, mandar deitar entulhos de cascalho das pedreiras pelo meio das ruas e fazer quanto outro benefcio puder at o Largo de So Joaquim [...] (Ibid., 20/11/1808).
Com o trabalho policial de zelar pela aparncia da cidade, mesmo que no
tendo resultados plenamente satisfatrios, pois as ruas da cidade ainda
permaneceriam como local de despejo de lixo e acmulo de gua, os prprios
moradores, com o decorrer dos anos, passaram a adotar a ideia de salubridade e
limpeza veiculada pela Intendncia. o que demonstra o edital de 27 de agosto de
1825, em que a autoridade policial manda proceder a limpeza do monto de
imundices em conformidade da requisio feita pelos moradores da Rua do Rosrio
(ANRJ, Polcia da Corte, cdice 336, 27/08/1825), bem como pelos ofcios de 22 de
maro de 1826 e de 06 de agosto de 1827, em que, respectivamente, o intendente
afirma que envio a voc o incluso registro dos moradores das ruas dos Arcos,
Lavradio e Invlidos para que d ou proponha as providncias necessrias sobre a
falta de esgoto s guas das chuvas de que se queixam (Ibid., 22/03/1826), e em
vista da informao que voc deu sobre o requerimento de Francisco Caetano da Silva
na data de 31 de julho, voc mandar proceder a limpeza na vala de que se trata, em
tempo oportuno (Ibid., 06/08/1827).
Alm de solicitar a limpeza das ruas, os moradores tambm procuravam a
Intendncia para executar reparos nas vias pblicas. Assim, em 5 de abril de 1826, a
autoridade policial emite ofcio a respeito da representao que me redigiram Jos
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Bento Alves e mais proprietrios das terras do Engenho Novo para que d as
providncias adequadas sobre o mau estado da estrada de que se queixam (ANRJ,
Polcia da Corte, cdice 336, 05/04/1826). Isso porque, como j visto, a Intendncia
de Polcia assumiu para si a responsabilidade de planejar, executar e fiscalizar as
obras pblicas, incorporando funes administrativas que aproximavam o intendente
do que futuramente seria o cargo de prefeito (NARO; NEDER; SILVA, 1981, p. 23).
Assim, alm das obras j mencionadas at o momento, a polcia lanou diversos
outros editais que determinavam o reparo ou a construo de ruas, praas, caladas,
estradas, pontes, valas, teatro, fontes, chafarizes, cais, casas, postes de iluminao,
quartis, cadeia e tudo mais que fosse necessrio como obra de infraestrutura da
cidade (BARRETO FILHO; LIMA, 1939, p. 186-187).
Desse modo, a polcia publica uma srie de ofcios com esta finalidade: ordena
consertar as caladas das ruas das Mangueiras, So Pedro da Cidade Nova e a do
Ouvidor (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 336, 30/05/1825); determina o conserto de
que necessita o caminho de Mata-porcos at a ponte do Andara (Ibid., 06/07/1825);
pede o conserto que precisa a Rua dos Arcos, dando as necessrias providncias para
com brevidade se cuidar nele (Ibid., 27/05/1826); aprova as providncias para o
conserto da ponte sobre o rio Maracan, no caminho que segue do Engenho Velho
[...], atenta pblica utilidade (Ibid., 04/03/1826); manda consertar os corrimes
da ponte do Aterrado (Ibid., 28/04/1827); e autoriza o reparo da ponte Velha do rio
Maracan e juntamente a ponte do aterrado da Cidade Nova (Ibid., 22/10/1827).
Mas a construo ou o conserto das obras pblicas espalhadas pela cidade no
era tarefa fcil para a Intendncia de Polcia. recorrente a insatisfao dos
intendentes com o fato de ser muito diminuta a renda de que dispunham, renda que
era repassada polcia pelo Senado (VIANA, 1892, p. 373). Assim, em 1827, o
intendente reclama que apesar da
[...] urgente necessidade de se concluir a obra das duas pontes da Rua Nova do Imperador, pelo perigo de runa a que se acha exposta e por se perder o que j com elas se tem despendido, ordeno ao administrador [que se] faa prosseguir na obra das duas pontes com moderao, visto que o estado do cofre no admite por ora maior fora (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 336, 05/11/1827).
O mesmo problema se verifica em diferentes editais sobre a construo de obras, uma
vez que a polcia passa a acumular muitas despesas com a urbanizao do Rio de
Janeiro. Em razo disso, o intendente pede para que no se multiplique o nmero de
obras executadas pela polcia, visando a atender as foras do cofre desta repartio
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que presentemente tem sofrido grandes despesas (Ibid., 13/07/1825). Em outro
edital, de 26 de outubro de 1825, o intendente afirma que indispensvel que nos
prximos meses de novembro e dezembro voc reduza ao menos que puder as
despesas das obras desta repartio, sem, todavia, lhes prejudicar, visto que a
escassez de rendimentos nestes ltimos meses do ano torna indispensvel esta
medida (Ibid., 26/10/1825). Para tentar remediar esta situao, era comum a
Intendncia recorrer s loterias como forma de arrecadar dinheiro.
Entre as aes que sofreram interferncia da falta de recursos financeiros para
sua plena execuo, encontra-se uma relativa ordem expedida pelo intendente
Francisco Alberto Teixeira de Arago ao inspetor geral das obras da Intendncia, Joo
Luis Ferreira Dummont, em 18 de abril de 1825, acerca da necessidade de se iluminar
melhor a cidade fluminense:
[...] em resposta ao seu ofcio de 31 do ms passado, em que representa a necessidade que h do estabelecimento de alguns lampies em diversos lugares para comodidade e interesse pblico, devo dizer-lhe que procedendo voc a este respeito aos exames precisos, aponte quais so os lugares mais necessrios para se porem lampies e aumentar-se, de algum modo, a iluminao, bem entendido que este aumento no pode ser no todo da cidade, porque as circunstancias em que se acha o cofre desta Intendncia, obrigado a muitas obras de interesse pblico, como estradas, pontes e caladas, no d lugar a uma extensa iluminao como convm (Ibid., 18/04/1825).
Apesar dos problemas financeiros que atingiam todas as obras da polcia, a
Intendncia teve que investir na iluminao pblica da corte, trabalho que comeou j
pelas mos do primeiro intendente. Em suas memrias, Paulo Fernandes Viana aponta
algumas medidas tomadas a este respeito: criei e sempre fui aumentando a
iluminao da cidade, no s das ruas dela, mas, e principalmente com todo o
esplendor, no Pao da cidade, no da Quinta da Boa Vista e na praa e casa das
Laranjeiras (VIANA, 1892, p. 375). Entre os editais publicados pela Intendncia, a
autoridade policial determinava ao encarregado da iluminao as seguintes ordens:
que verifique a preciso que h de um lampio na entrada da Rua dos Invlidos e
autorizo para que quanto antes haja de mandar pr (ANRJ, Polcia da Corte, cdice
336, 11/08/1825); que aprove as providencias que voc deu sobre a colocao dos
candeeiros desde o caminho novo at a calada dentro da Quinta Imperial, conforme
a determinao de Sua Majestade o Imperador (Ibid., 25/08/1825); que devido
necessidade que h de iluminar-se a Rua de Matacavalos pode voc mandar pr em
distncias proporcionadas os dois candeeiros que julgar precisos (Ibid., 13/05/1826);
que faa acender os dois candeeiros nos dois postes por voc indicados junto ponte
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que vai se reedificar na estrada de So Cristvo (Ibid., 12/06/1826); alm de, em
maio de 1826, autorizar a compra de 550 lampies para serem utilizados na
iluminao da cidade (Ibid., 27/05/1826).
A falta de verbas, porm, no era motivo suficiente para que no se
realizassem de maneira satisfatria as obras e servios relativos polcia. Nesse
sentido, em 27 de julho de 1827, o intendente Arago lana o seguinte ofcio ao
inspetor das obras da polcia, Joo Luis Ferreira Dummont:
[...] faa voc constar ao arrematante da iluminao Sebastio Fbregas Surigue que deve ter gente suficiente para logo ao anoitecer acender os seiscentos lampies da sua arrematao, pois sucedendo nas presentes noites grandes em muitas ruas do centro da cidade acenderem-se os lampies pelas oito horas evidente que o pequeno nmero de escravos que o mesmo arrematante emprega neste servio no pode de certo acender mais cedo; esta economia prejudicial ao pblico que tem direito a ser bem servido, e tanto mais que para isso a polcia paga muito prontamente (Ibid., 27/07/1827).
Alm da iluminao, a polcia cuidou das construes relativas ao
abastecimento de gua do Rio de Janeiro. Tais obras tornaram-se fundamentais para
a cidade aps a chegada de Dom Joo, uma vez que sua populao aumentou
significativamente, da noite para o dia, em aproximadamente 15 mil pessoas que
acompanharam o prncipe regente aos trpicos (MALERBA, 2008, p. 175). Em suas
memrias, Paulo Fernandes Viana traa um resumo das providncias que tomou a
este respeito:
[...] por no haver na cidade abundncia de guas para o uso pblico, consegui por via de mineiros que granjeei em Minas e em Cantagalo, conduzir gua at para beber em uma lgua de distncia, e a levei por um bicame de madeira desde o Barro Vermelho at o Campo de Santana em 6 ou 7 meses, e ali se beneficiou o pblico com uma fonte de 10 bicas, que foi considerada como obra muito til, at que se principiou o encanamento das guas do Maracan, que foi toda debaixo da minha direo e cuidado at o ponto de se erigir no mesmo campo um chafariz de 22 bicas, que afiana a abundancia de guas da cidade, obra que se continua ainda, mas que no estado em que a deixei j supre bem a cidade e a pe salvo do susto dela faltar (VIANA, 1892, p. 374).
O intendente ainda complementa:
[...] fiz um chafariz de 4 bicas de gua no stio de Matacavalos, conduzindo as guas desde a sua nascena em canos cobertos, obra forte e bem acabada, que presta muita comodidade aos moradores daquele bairro. E por que o do Catete entrou a crescer em bons edifcios, e a ser de preferncia povoado por estrangeiros, e principalmente pelos ministros diplomticos, no tendo uma s fonte
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pblica, dispus uma bica de gua no porto da chcara em que esteve a fbrica das chitas, de onde o povo comodamente se provesse, e fui procurar conduzir, desde a serra, gua em abundncia e de muito boa qualidade para pr um chafariz no Largo das Larangeiras, tendo chegado j o encanamento muito perto do local onde se h de erigir o chafariz, tudo bem feito e com desvios e escoamento das enchentes; e neste ponto estava quando larguei o emprego, e a obra absolutamente deve continuar para se no perder o que est feito e com tanto custo conseguir-se perfeitamente o benefcio pblico que se procurava fazer (VIANA, 1892, p. 376-377).
A limpeza das ruas e a execuo de obras de urbanizao, alm de contribuir
para a salubridade urbana, tinham a finalidade de promover o enobrecimento da
cidade, pois pela beleza esttica da urbe, primeiramente, que se poderia criar as
condies mais urgentes para torn-la digna de abrigar uma corte europeia, uma vez
que tornaria evidente aos olhos da populao o aperfeioamento de seu estado
civilizatrio (PECHMAN, 2002, p. 74-75). Mas no s no asseio das ruas que se
cruzam o combate insalubridade e o desejo de aformosear a esttica urbana. Foi
trabalho da polcia cuidar dos tipos de construes que se edificavam no Rio de
Janeiro, estabelecendo normas que deveriam ser seguidas por aqueles que
pretendiam erigir novas residncias em So Sebastio. Desse modo, em 11 de junho
de 1808, em ofcio destinado aos vereadores do Senado da Cmara, o intendente de
polcia comunica:
[...] pela cpia do edital passo presena de vocs, ficando certos da determinao de Sua Majestade Real, o Prncipe Regente Nosso Senhor, que por esta Intendncia manda fazer pblica aos moradores desta corte, e fazendo a vocs registrarem nos livros desse Senado [...] para que nunca mais se permita edificar casas trreas [...] no centro da cidade. Segundo nele se especifica, concorrendo o Senado deste modo para que se cumpra a vontade do mesmo Senhor, nascida dos desejos de ver melhorada a sua corte e aumentada a comodidade dos seus moradores [...] (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, 11/06/1808).
As razes do prncipe regente, passadas por intermdio da instituio policial, para tal
proibio de edificar casas trreas no centro do Rio de Janeiro ficam mais claras no
mesmo edital a que o ofcio destinado aos vereadores se refere:
[...] fao saber aos que o presente edital virem e dele notcia tiverem que no sendo j mais compatvel com as felizes circunstncias em que se acha esta cidade de ser hoje a corte e residncia do Prncipe Regente Nosso Senhor [...] que no centro dela se edifiquem ou se restabeleam as casas trreas que de sua natureza tolhem o proveito pblico e no trazem alguma comodidade ao arranjamento e salubridade dos moradores, que pela estreiteza das ruas antigas, umidade do solo e ardncia do clima podem viver mais comodamente em prdios
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assobradados. Fica proibido, de hoje em diante, fazerem-se e reedificarem-se casas trreas da vala para dentro e nos bairros da Ajuda e Prainha, e qualquer proprietrio dos terrenos ali compreendidos e os das casas trreas j edificadas logo que as queiram consertar ou edificar de novo, no podero fazer seno pondo-as de um ou mais sobrados, e de outro modo sero embargadas pela Intendncia e se procuraro meios de se fazer passar a outros proprietrios que tenham foras para cumprirem com esta determinao cuja execuo ser vigiada pela Cmara e seus oficiais, e por todos os comissrios da polcia, por ser esta a vontade e determinao do Prncipe Regente Nosso Senhor, sempre vigilante nas comodidades do seu povo, a cujo benefcio somente se tomam estas providncias (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, 11/06/1808).
No entanto, apesar da preocupao em proibir a construo de casas trreas, devido
aos prejuzos causados sade da populao e ao enobrecimento da capital, os
moradores do Rio de Janeiro evitavam construir prdios assobradados. De acordo com
ofcio de 17 de novembro de 1808:
[...] ainda que a multiplicidade de obras que vo aparecendo na cidade paream fazer cessar a necessidade que havia de uma legislao que promovesse a edificao de novos edifcios como se havia pensado, tenho, todavia, a ponderar que nada vejo seno casas trreas, fugindo os proprietrios de edificar casas de sobrado e prdios nobres, e [...] o fazem assim porque no so tais edifcios de natureza que se receiem neles aposentadorias. Isto um mal que se faz cidade e que sendo hoje uma corte, deve ter propriedades de outra ordem, que a enobream e mesmo aformoseiem, e por isso que julgo necessrio representar que se deve acudir a isto aparecendo uma legislao que, somente edificao de prdios nobres ou assobradados, permita-se a iseno de aposentadorias e outros benefcios, negando-os absolutamente aos outros (Ibid., 17/11/1808).
Para os moradores locais, como se v pelo ofcio do intendente, o problema de
arquitetar sobrados na sede da nova corte decorria da lei das aposentadorias. Com o
desembarque dos Bragana no Rio de Janeiro, os fidalgos que acompanharam Dom
Joo precisavam de moradias para se instalar na cidade. A lei das aposentadorias
obrigava os proprietrios das melhores residncias, que eram quase sempre os
sobrados e os grandes casares, a ced-las, imediatamente, aos nobres da corte
recm-chegada. Assim, na fachada dos prdios escolhidos escreviam-se a giz as
letras P. R., que queriam dizer prncipe real, mas para o povo transformou-se em
ponha-se na rua ou mesmo prdio roubado. Era a velha e boa ironia popular que
brincava com os infortnios (SCHWARCZ; AZEVEDO; COSTA, 2002, p. 237).
Desse modo, os habitantes procuravam burlar a lei das aposentadorias,
inventando obras dispensveis em seus sobrados, cuja finalidade era atravancar a
desocupao, ou deixavam de reformar suas casas trreas, no as transformando em
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URBANA, V.6, n8, set.2014 - Dossi Cidade e Habitao na Amrica Latina
sobrados. Como consequncia, se comparado quantidade de edifcios nobres, o
nmero de casas trreas no Rio de Janeiro ainda mantinha-se elevado (CARVALHO,
2003, p. 94). Em vista disso, o intendente props a Dom Joo que se elaborasse uma
lei em que se isentasse a cobrana da Dcima Urbana, durante o perodo de dez anos,
sobre os sobrados construdos na regio da Cidade Nova, decreto este que foi
aprovado em 26 de abril de 1811 (CAVALCANTI, 2004, p. 294).
Mas, alm de intervir na edificao das novas construes, a Intendncia tinha
que zelar por aquelas que j estavam construdas. Assim, atuou de maneira a vistoriar
a beleza e preservao dos edifcios existentes, de modo que aqueles que se
encontrassem em condies inadequadas deveriam ser consertados ou at demolidos,
dependendo da situao. No caso de serem reformados, alm da obrigao de se
adotar a estrutura assobradada, ainda era estipulado aos proprietrios um perodo
para a realizao das obras. Se, porventura, o tempo determinado no fosse
atendido, as obras passariam para a responsabilidade da polcia, que executaria os
reparos necessrios e cobraria do dono da residncia os gastos despendidos
(CARVALHO, 2003, p. 115-116).
Zelar pela preservao das casas que j estavam construdas tinha sua
importncia. sobre o que adverte o portugus Luiz Joaquim dos Santos Marrocos,
arquivista real e bibliotecrio que desembarcou no Rio de Janeiro, em 1811, para
servir como ajudante na Biblioteca Real: a pouca estabilidade e firmeza com que
foram feitas e hoje se acham as casas antigas desta cidade tm sido a origem de
muitas desgraas sucedidas, ora caindo subitamente as paredes, ora as mesmas
casas inteiras sobre os seus habitantes (Cartas de Luiz Joaquim dos Santos
Marrocos..., 1934, p. 261).
Outro problema atrelado s moradias do Rio de Janeiro era a presena das
gelosias nas fachadas das casas, o que conferia um aspecto sombrio s ruas e tornava
as residncias mais insalubres (SILVA, 1993, p. 211-212). Para solucionar esta
questo, Paulo Fernandes Viana publica, em 1809, o seguinte decreto:
[...] fao saber aos que o presente edital virem ou dele notcia tiverem que se havendo elevado esta cidade alta hierarquia de ser hoje a corte do Brasil, que goza da honra e da ventura de ter, em si, o seu legtimo soberano e toda a sua real famlia, no pode nem deve continuar a conservar bisonhos e antigos costumes que apenas podiam tolerar-se quando era reputada como uma colnia e que, desde muito tempo, no se sofrem em povoaes cultas e de perfeita civilizao; e sendo um destes costumes que afeia o prospecto da cidade e a faz menos decorosa s felizes circunstncias, o de terem as janelas de suas propriedades rtulas ou gelosias de madeira que nenhuma comodidade trazem e que esto mostrando a falta de civilizao de seus moradores.
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Confiando de todos eles que, mesmo por marcar a feliz poca em que entraram a ver com os olhos o seu legtimo soberano, que adoravam j em seus coraes, estaro prontos a dar mais provas no equvocas de seu contentamento e a arredar de si estes testemunhos da antiga condio de conquista e de colnia, concorrendo para enobrecer a sua corte e faz-la mais notvel aos olhos das naes estrangeiras que ora a ela concorrem, e que s lhes falta para esse fim a voz da autoridade pblica que aprove e, mesmo, honre esta sua resoluo que muitos deles me tm j feito conhecer muito voluntariamente, como em crdito deles e abono da verdade cumpre manifestar. Por tudo isto se declara que, desde j, devem-se abolir as rtulas das janelas (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 323, v. 1, 1809 apud PECHMAN, 2002, p. 140-141).
Alm de proibir o uso das gelosias, o edital apresenta bem a nova concepo de
ordem formulada pela polcia, que privilegia aes destinadas ao enobrecimento
esttico da cidade de modo a torn-la mais parecida com determinadas partes
civilizadas das urbes europeias.5 Tal processo de europeizao, no entanto, no se
restringiu apenas aparncia fsica da capital: importava tambm investir na
modificao dos hbitos locais, que somente podiam ser tolerados quando o Brasil
ainda permanecia em sua antiga condio de colnia, sem a presena de um monarca
europeu em seu territrio. Mas, como pode ser percebido pelo que se analisou at
aqui, a prpria tarefa de enobrecer a aparncia do Rio de Janeiro tambm estava
inserida em uma modificao dos hbitos e comportamentos dos habitantes locais: os
moradores deveriam deixar de lanar imundices nas ruas da cidade; deveriam se
preocupar em melhorar a aparncia fsica da urbe, construindo ou exigindo a
edificao de testadas, valas, pontes, etc.; deveriam abandonar o costume de
construir casas trreas e de dotar suas residncias de gelosias, etc.
Todavia, a Intendncia de Polcia tambm desempenhou um tipo de ao
especfica visando transformao dos costumes arraigados na tradio colonial. Um
dos principais focos de interveno da polcia na corrida pela civilidade dos hbitos foi
o teatro fluminense, que se tornaria palco das manifestaes polticas e sociais aps a
chegada da corte, sobretudo a partir de 1813, quando se inaugura o Teatro de So
Joo, obra tambm executada pela polcia (MALERBA, 2000, p. 92). Desse modo, em
30 de julho de 1808, antes mesmo da inaugurao do Teatro de So Joo, construdo,
nas palavras de Paulo Fernandes Viana, com a magnificncia e decorao com que se
acha que no cede aos mais brilhantes da civilizada e culta Europa (VIANA, 1892, p.
377), o intendente j alertava ao general e comandante das tropas da corte, Joo
Baptista Azevedo Coutinho de Montaury, que: 5 O ideal de civilidade europeu no atingia a totalidade espacial das cidades do Velho Mundo, mas somente pontos especficos de cidades como Paris e Londres, deixando de fora bairros pobres e de trabalhadores, que viviam em condies to precrias quanto aquelas com que a corte se deparou ao chegar ao Rio de Janeiro (Cf. BRESCIANI, 1982).
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[...] os srs. magistrados que esto propostos na inspeo dos teatros desta corte no podem coibir a licenciosa liberdade que o povo tem tomado de bater [palmas] e assobiar neles sem decncia e sem nenhuma ateno boa ordem que devem guardar. Eles passam a fixar nas portas dos mesmos teatros os seus editais a determinar o modo por que cada qual se deve ali conduzir, mas como do auxlio da tropa que depende sempre a boa execuo das ordens, rogo a Vossa Excelncia que determine aos cabos que fazem as guardas dos teatros que auxiliem muito vigorosamente as prises que eles determinarem, e mesmo que as faam logo que houver motivo para isso, visto que s a fora coibir os despropsitos com que ali se conduzem (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, 30/07/1808).
Cerca de um ano depois, o mesmo intendente de polcia pedia para que, nos
dias em que houvesse espetculo, o juiz do Crime, Jos da Silva Loureiro Borges, se
apresentasse ao meu camarote muito antes de principiar a pera para providenciar
[contra] todo o motim que ali se possa fazer, sem permitir assobios, gritos, pateadas
e outros comportamentos e modos incivis que o povo pratica quando perde o respeito
s autoridades constitudas (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 323, v.1, 1809 apud
SILVA, 1986, p. 191).
Alm de intervir no teatro, local privilegiado para a veiculao dos novos
comportamentos pblicos desejados, a polcia tambm foi mediadora das questes
que envolviam a vida privada e particular dos habitantes da corte, o que significa que
a civilidade social no podia ser alcanada sem levar em conta o prprio governo de
si (PECHMAN, 2002, p. 78). Desse modo, a Intendncia convocou os moradores para
resolverem seus conflitos pessoais e se comprometerem com a ordem e a
tranquilidade cotidianas, assinando termos de bem-viver.
Entre os termos de bem-viver assinados na secretaria da Intendncia Geral de
Polcia entre os anos de 1808 e 1810, encontram-se: o de Isabel da Natividade,
mulher de Antonio Dias, que se obriga a viver em paz em companhia de seu marido
com a decncia devida ao seu estado, no tendo com ele desordem alguma; de que,
fazendo o contrrio, ser punida com priso e com aquelas penas que lhe forem
impostas por esta Intendncia (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 410, v.1, 1808/1810
apud Ibid., p. 78); o de Antonio Alves, em que por ele foi dito que por este termo se
obriga a no inquietar desordem alguma com Antonio Cardoso [...] e no cumprindo
assim, seja sujeito a pena de priso e degredo ao arbtrio desta Intendncia (Ibid., p.
78); o de Manuel S. Almeida, que deveria conter-se de fazer enredos e inquietaes
a seus vizinhos, abstendo-se de desordens, [sob] pena de que, obrando ao contrrio,
ser preso e posto para fora da freguesia onde morador (Ibid., p. 79); o de
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Francisca de Paula Trindade, que determinou que ela no devia fazer desordem na
casa de sua me (Ibid., p. 79); e o de Manuel Lus Hiplito, que o intimava a viver
bem com sua mulher e deixar o concubinato que est com sua escrava (Ibid., p. 79).
A polcia tambm investiu contra vendas, casas de jogos e botequins,
procurando controlar seu funcionamento com a concesso de licenas para que
pudessem prestar servios. Em edital publicado em julho de 1808, a polcia
estabeleceu:
[...] sendo da inspeo desta Intendncia vigiar sobre as casas de jogos, botequins e estalagens que no se conservem sem a necessria licena [...] Ficam da data deste em diante obrigados todos os donos de casas de jogos, botequins, casas de pasto e albergues, vendas que tm comidas feitas, [...] a comparecer na secretaria desta Intendncia, no prazo de trs dias os de dentro da corte e no de cinco os de fora, para tirarem suas licenas e terem as referidas casas abertas e poderem usar das ditas negociaes por serem todas de objetos sobre que a polcia deve vigiar (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, julho de 1808).
A regulamentao destas casas tinha um propsito especfico: acreditava-se que tais
ambientes no eram favorveis adoo da vida civilizada; como adverte o
intendente, em edital de 7 de maio de 1808:
[...] fao saber que importando polcia da cidade que as vendas, botequins e casas de jogos no estejam todas as noites abertas para se evitarem ajuntamentos de ociosos, e mesmo de escravos, que, faltando ao servio de seus senhores, se corrompem uns aos outros e se fazem maus cidados, dando ocasio a delitos que se serve sempre prevenir; fica da data deste proibida pela Intendncia Geral de Polcia a culposa licena com que at agora estas casas se tm conservado abertas, e manda-se que logo s 10 horas se fechem e seus donos e caixeiros expulsem os que nela estiverem, debaixo da pena de pagarem cadeia os donos, caixeiros e quaisquer pessoas que nelas forem achadas da indicada hora em diante (Ibid., 07/05/1808).
Tais casas, como se v pelo edital, preocupavam a polcia por serem espaos de
proliferao da desordem. Nelas, ajuntavam-se ociosos, escravos e possveis
criminosos, tipos que no se enquadravam nos padres de civilidade desejados e,
quase sempre, eram aqueles que compunham o cenrio da violncia urbana.
Acerca da violncia no Rio de Janeiro, o j citado portugus Luiz Joaquim dos
Santos Marrocos afirma que eram frequentes os roubos e assassinatos, de modo que
eram praticados sem vergonha e logo ao princpio da noite, de sorte que tm
horrorizado as muitas e brbaras mortes que tm feito; em cinco dias, contaram-se,
em pequeno circuito, 22 assassnios (Cartas de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos...,
1934, p. 163). O portugus tambm reitera que o caso est muito srio, por no se
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poder andar na rua [at] tarde, [sendo que eu mesmo me] recolho s 8 horas da
noite (Ibid., p. 164). Ainda segundo Marrocos:
[...] nesta cidade e seus subrbios temos sido muito insultados de ladres. [...] Tem sido tal o seu descaramento que at avanam a pessoas mais distintas e conhecidas, como foi o prprio chefe da polcia. O chefe de diviso, Jos Maria Dantas, recebeu por grande favor duas tremendssimas bofetadas, por cair no erro de trazer pouco dinheiro, depois de lhe roubarem o relgio. Alm disto, tm degolado vrias mulheres, depois de sofrerem outros insultos, o que tudo tem dado que fazer ao corpo da polcia; no sendo este suficiente para as rondas e patrulhas multiplicadas em todas as ruas, o intendente mandou armar e aprontar todas as justias de paisanos para ajudarem os da polcia, mas os pobres Aguazis at j foram acometidos e indultados pelas grandes quadrilhas de ladres que lhes tm dado coas (Ibid., p. 163-164).
No intuito de diminuir a criminalidade da cidade, o intendente expediu, em 13
de abril de 1831, as convenientes ordens para serem postas em vigor as leis e editais
que probem o uso de armas, pois que s da exata e literal execuo dela podem
nascer a liberdade e a tranquilidade pblicas, que mais que tudo devo promover
(ANRJ, Polcia da Corte, cdice 343, 13/04/1831). Assim, com a tarefa de zelar pela
tranquilidade social e pelos bons costumes, a polcia se ocupar da parcela indesejada
da populao, em que se enquadravam os vadios e ociosos que frequentavam as
tavernas e casas de jogos, pois eram considerados agentes da desordem, visto que a
experincia e os fatos tm mostrado que os assassnios, roubos, violncias e insultos
so, geralmente, praticados por homens vagabundos sem ocupao (Ibid., julho de
1831). Para assegurar a segurana pblica, a polcia, por meio da utilizao dos
vadios em benefcio do Estado (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 323, v. 1, 19/05/1809
apud PECHMAN, 2002, p. 100), criaria mecanismos de incorporao desses homens
nova concepo de ordem que se formulava. Um destes mecanismos era recrutar
vadios e descobrir homens suspeitos e jogadores que se achem nas casas de jogos, e
os remeter ao marechal de campo, encarregado do governo das armas, para ele os
distribuir pelos regimentos (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318, 1808). Outra forma
de incorporar os ociosos era exigir que eles tomem emprego honesto e til de que
possam subsistir, sob pena de lhe serem impostas as [leis] do Cdigo Criminal
(ANRJ, Polcia da Corte, cdice 343, julho de 1831). Para isso, a prpria Intendncia
auxiliava, empregando vadios e condenados na execuo das obras pblicas, medida
esta que coibia a ociosidade e trazia muito benefcio segurana pblica, por
temerem os vadios este destino (VIANA, 1892, p. 376).
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Alm disso, o intendente ordenava, em conformidade com a lei da Intendncia
desde sua criao em Portugal, que se procedesse contra todos os que do
estalagem ou agasalho por dinheiro, [os quais] devem dar parte imediatamente da
gente que recebem, para deste modo ser mais fcil [o] conhecimento [...] de vadios e
pessoas de suspeita (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 323, v. 1, 1809 apud PECHMAN,
2002, p. 99). Todas estas medidas, ao procurar incorporar os desordeiros ao mundo
civilizado, visavam a aliviar a sociedade do peso de consumidores que no produzem
seno vcios e crimes, e que deixam a agricultura e a indstria sem os braos
trabalhadores de que muito se necessita (ANRJ, Polcia da Corte, cdice 324, v. 1,
1827/1834 apud PECHMAN, 2002, p. 103).
Consideraes finais
O que pode ser percebido a partir do que foi descrito at aqui que a polcia, a
partir da criao da Intendncia, alm de manter as atividades de controle da
violncia e da manuteno da tranquilidade pblica, atividades de que j era
incumbida durante o perodo colonial, assume - em razo de uma nova configurao
institucional que confere s foras da ordem atribuies e deveres inditos - o papel
de europeizar o Rio de Janeiro e sua populao. Assim, com suas novas estratgias de
controle social decorrentes da transformao da concepo de ordem que a prpria
polcia ajudou a formular, a Intendncia iniciou a instaurao de um modelo de
sociabilidade fundamentado nos padres de urbanizao e civilidade caractersticos
das sociedades europeias mais desenvolvidas.
Para isso, a intendncia passou a intervir na urbanizao do Rio de Janeiro e na
civilizao de sua populao: preocupou-se com a salubridade da cidade, cuidando do
despejo de imundices nas ruas, praas e praias; preocupou-se com as obras de
infraestrutura urbana, como a construo e conserto de ruas, pontes, praas e casas,
bem como zelou pela iluminao pblica e pelo abastecimento de gua para os
moradores; alm disso, interviu nos hbitos da populao, no intuito de torna-los
mais ordeiros e civilizados.
A Intendncia Geral de Polcia, no entanto, foi gradativamente se afastando
destas tarefas civilizatrias e especializando-se naquelas relativas ao combate
criminalidade, passando a priorizar intervenes de carter repressivo. Isso porque,
aos poucos, outras instituies tambm se envolveram na busca por um Rio de
Janeiro mais civilizado, ocupando um espao que, desde os tempos do primeiro
intendente Paulo Fernandes Viana, era prioritariamente da Intendncia (FRANA,
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1990, p. 44). Assim, ao ser extinta a Intendncia de Polcia, em 1839, substituda pela
Chefatura de Polcia, as tarefas de melhoria da cidade, que j vinham sendo
abandonadas pelo intendente e reincorporadas pelo Senado, deixam de vez de ser
atribuies da polcia, restando a esta apenas a segurana pblica e o policiamento
urbano (RIOS FILHO, 2000, p. 131).
O fato de a polcia ter abandonado tais funes no significou que as mesmas
tenham se extinguido do imaginrio que vinha se formando desde o desembarque de
Dom Joo. Ao contrrio, se a polcia perdera tais atribuies foi porque outros saberes
e instituies mostraram-se mais eficazes para desenvolver este gnero de tarefas.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com os problemas relacionados higiene pblica, que
deixaram de ser uma preocupao da Intendncia para se consolidar, no decorrer do
Oitocentos, como assuntos estritamente mdicos.
Referncias
ANRJ, Polcia da Corte, cdice 318.
ANRJ, Polcia da Corte, cdice 323.
ANRJ, Polcia da Corte, cdice 324.
ANRJ, Polcia da Corte, cdice 336.
ANRJ, Polcia da Corte, cdice 343.
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