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METAMORFOSES DO CAPITALISMO
Celso Furtado
Nesta noite em que a Universidade Federal do Rio de Janeiro me outorga o
ttulo de Doutor Honoris Causa, permitam-me que relembre aos economistas aqui
presentes certas linhas de reflexo que balizaram minha jornada de mais de meio
sculo. Venho de uma poca em que os estudantes tomavam contato com a matria
econmica em outros cursos, como o de Direito, que conclu em 1944 nesta
Universidade. Foi em em 1948 que me doutorei em economia, pela Universidade da
Sorbonne, com a tese A economia colonial brasileira nos sculos 16 e 17.
Seria este o ponto de partida da longa caminhada que empreendi, norteado
pelo que foi uma paixo da vida inteira: pensar o Brasil. Em 1949 publiquei meu
primeiro estudo analtico sobre as transformaes da economia brasileira no sculo
XX. Nele estavam contidos os germes do que seria, dez anos depois, meu livro
Formao econmica do Brasil.
Entre as duas datas, tive a oportunidade de trabalhar na CEPAL o rgo das
Naes Unidas que se tornou uma verdadeira escola de pensamento econmico
latino-americana. Foi a, debruado sobre as estatsticas, que me dei conta do
atraso da economia brasileira. Desde ento, enfrentei o desafio de tentar entender
as razes desse quadro num pas com as potencialidades do nosso. Voltei-me para
uma viso global da histria, apoiada no conceito de sistema de foras produtivas.
Que caminhos nos tinham levado ao subdesenvolvimento? Os mais de trs
sculos de regime escravista? A incapacidade de nos inserirmos no processo de
industrializao do sculo XIX? Ainda nos anos 1930, nossas classes dirigentes
defendiam uma economia essencialmente agrcola. E em meados dos anos 50,
gerava acalorada polmica o debate sobre como industrializar o Brasil. No
suprfluo lembrar que, nesse momento, a maioria dos nossos economistas criavam
obstculos formulao de uma poltica de industrializao, tendo alis fortes
apoios externos para essa doutrina.
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J na poca, convencido de que a classe industrial nascente podia assumir
um papel histrico, me pus a trabalhar os instrumentos capazes de lhe facilitar a
tarefa. Destes, cito a introduo, entre ns, das tcnicas de planejamento de base
macroeconmica, elaboradas na CEPAL por uma equipe dirigida por mim, e que
inspirariam tanto o Plano de Metas de JK como, anos depois, o Plano Trienal que
me coube elaborar durante o governo do presidente Joo Goulart.
Cedo percebi que o subdesenvolvimento requeria um esforo especfico de
teorizao, e assim elaborei o que mais tarde ficou conhecido como teoria do
subdesenvolvimento. Com efeito, o subdesenvolvimento um processo histrico
autnomo. No uma etapa pela qual passaram as economias que j alcanaram
grau superior de desenvolvimento. uma forma perversa de crescimento.
Com o crescimento econmico eleva-se a renda da populao. Com a
modernizao, adotam-se novas formas de vida, imitadas de outras sociedades que,
estas sim, beneficiam-se de autntica elevao da produtividade fsica. Mas s o
desenvolvimento propriamente dito capaz de fazer do homem um elemento de
transformao, passvel de agir tanto sobre a sociedade como sobre si mesmo, e de
realizar suas potencialidades. Da que a reflexo sobre o desenvolvimento traga em
si mesma uma teoria do ser humano, uma antropologia filosfica.
Hoje o Brasil tem uma renda dez vezes superior renda da poca em que
comecei a refletir sobre o nosso subdesenvolvimento. Nem por isso diminuram as
desigualdades sociais; nem por isso fomos bem sucedidos no combate pobreza e
misria. Cabe, pois, a pergunta: o Brasil se desenvolveu? A resposta, infelizmente,
no. O Brasil cresceu. Modernizou-se. Mas o verdadeiro desenvolvimento s
ocorre quando beneficia o conjunto da sociedade, o que no se viu no pas.
Hoje eu faria uma reflexo complementar sobre esse paradoxo, que no
exclusivo ao Brasil, de vivermos uma poca de grande enriquecimento da
humanidade e, ao mesmo tempo, de agravao da misria de uma ampla maioria. O
que se segue o fruto de minhas indagaes recentes sobre o que chamarei de
Metamorfoses do capitalismo.
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No mundo contemporneo ningum pode ignorar que o processo de
globalizao dos circuitos econmicos e financeiros tende a se impor,
independentemente da poltica que este ou aquele pas venha a adotar. Trata-se de
um imperativo tecnolgico, semelhante ao que comandou o processo de
industrializao que moldou a sociedade moderna.
Ora, o maior entrelaamento dos mercados e o subseqente enfraquecimento
dos sistemas estatais de poder, que enquadram as atividades econmicas, esto
gerando importantes mudanas estruturais, que se traduzem, em todos os pases,
por crescente concentrao da renda e formas de excluso social. H que considere
adversas as tenses da resultantes, mas elas tambm podem ser vistas como
precondio de nova forma de crescimento econmico cujos contornos ainda no
esto definidos. O certo que neste comeo de sculo o crescimento econmico
engendra necessariamente um novo estilo de organizao da sociedade, e este
acarreta forte concentrao de poder.
Permitam-me recordar que a primeira revoluo industrial tambm criou
desemprego, especialmente no setor agrcola, o qual empregava tradicionalmente
mais de dois teros da massa trabalhadora. Da que o desenvolvimento s se haja
efetivado ali onde a economia contou com mercados em expanso. fato notrio
que os mercados se ampliaram no quadro de uma revoluo tecnolgica que gerava
a retrao da demanda de mo-de-obra e tambm da renda da massa dos
trabalhadores. Sabemos que num primeiro perodo as empresas dos pases que
lideravam a revoluo industrial foraram a abertura dos mercados externos, o que
explica a ofensiva imperialista que prosseguiu durante o sculo XIX. Contudo, o
motor desse crescimento econmico foi, tanto quanto o dinamismo das exportaes,
a expanso dos mercados internos possibilitada pelo aumento do poder de compra
da populao assalariada.
Com efeito, explica-se a dinmica da civilizao industrial pelo processo de
aumento automtico do poder de compra da populao, ou seja, pela expanso da
massa dos salrios. Certo, tal explicao ultrapassa necessariamente o quadro da
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anlise econmica convencional, j que a repartio da renda reflete fatores de
natureza institucional e poltica.
Se a lgica dos mercados houvesse prevalecido sem restries, a
internacionalizao das atividades econmicas (ou seja, o processo de globalizao)
teria se propagado muito mais cedo, reproduzindo, numa verso ampliada, a
experincia da Inglaterra, onde a participao do comrcio externo na renda
nacional ultrapassou 50% j nos anos 70 do sculo XIX. Disso teria resultado uma
maior desconcentrao geogrfica das atividades industriais, favorvel aos pases
da periferia. Por outro lado, teria intensificado a concentrao social da renda nos
pases que lideravam a revoluo industrial.
Mas a Histria no seguiu por esse caminho. Prevaleceram, na verdade,
maior concentrao geogrfica das atividades industriais em benefcio dos pases do
Centro e uma repartio de renda mais igualitria nesses pases. Eram eles que
comandavam a vanguarda tecnolgica, o que explica que hajam adotado as
polticas de proteo social.
Para entender esse quadro histrico necessrio ter em conta as novas
foras sociais engendradas pelo processo de urbanizao resultante da
industrializao. A emergncia de uma nova forma de poder, conseqncia da ao
dos trabalhadores organizados em sindicatos, acarretou a elevao dos salrios
reais e imps aos governos polticas protecionistas para defender seus mercados
internos. Assim, a partir de ento o motor do crescimento passou a ser o dinamismo
do mercado interno, cabendo s exportaes um papel coadjuvante.
O aumento do poder de compra da massa dos trabalhadores desempenhou,
portanto, um papel primordial no processo de desenvolvimento, comparvel apenas
ao papel da inovao tcnica. O dinamismo da economia capitalista derivou, assim,
da interao de dois processos: de um lado, a inovao tcnica a qual se traduz
em elevao da produtividade e em reduo da demanda de mo-de-obra , de
outro lado, a expanso do mercado que cresce junto com a massa dos salrios.
O peso do primeiro desses fatores (a inovao tcnica) depende da ao dos
empresrios em seus esforos de maximizao de lucros, ao passo que o peso do
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segundo fator (a expanso do mercado) reflete a presso das foras sociais que
lutam pela elevao de seus salrios.
O processo atual de globalizao a que assistimos no momento desarticula a
ao sincrnica dessas foras que no passado garantiram o dinamismo dos
sistemas econmicos nacionais. Quanto mais as empresas se globalizam, ou seja,
quanto mais escapam da ao reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos
mercados externos para crescer. Ao mesmo tempo, as iniciativas dos empresrios
tendem a fugir do controle das instncias polticas. Voltamos assim ao modelo do
capitalismo original, da primeira metade do sculo XIX, cuja dinmica se baseava
nas exportaes e nos investimentos no estrangeiro.
Em suma, o trip formado pelo grande capital, os trabalhadores organizados,
e os Estados nacionais base tradicional do sistema capitalista encontra-se
evidentemente abalado, em prejuzo das massas trabalhadoras organizadas e em
proveito das empresas que controlam as inovaes tecnolgicas. J no existe o
equilbrio que, no passado, era garantido pela ao reguladora do poder pblico. Da
que, em todos os pases, tenha baixado a participao dos assalariados na renda
nacional, independentemente das taxas de crescimento.
Ora, a progressiva interdependncia dos sistemas econmicos tornou
obsoletas as tcnicas que vinham sendo desenvolvidas nos ltimos decnios para
captar o sentido do processo histrico que vivemos. Se foi possvel multiplicar
modelos graas ao avano vertiginoso das tcnicas de manipulao de dados, sua
fiabilidade reduziu-se a quase zero. Exemplo conspcuo ocorreu no antigo GATT,
atual Organizao Mundial do Comrcio, cujo esforo em projetar o futuro do
comrcio internacional foi incapaz de dirimir as dvidas sobre sua evoluo.
Hoje em dia, j se reconhece que notoriamente limitada a possibilidade de
interferir nos processos macroeconmicos, como constatam os governos mais bem
aparelhados, impotentes que so para enfrentar um problema como o desemprego.
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Essa pouca transparncia do acontecer em que estamos envolvidos decorre
da interveno de novos fatores e da mudana do peso relativo de outros, o que
implica acelerao do tempo histrico. Os sistemas econmicos nacionais com
grande autonomia, submetidos a choques externos apenas ocasionais, so coisa do
passado. Os mercados de tecnologia, servios financeiros, meios de comunicao,
sem falar nos de matrias-primas tradicionais, operam hoje unificados ou marcham
rapidamente para a globalizao.
J podemos tirar algumas concluses do novo quadro histrico que se
esboa. Os desajustamentos causados pela excluso social de parcelas crescentes
de populao surgem como o mais grave problema em sociedades pobres e ricas.
Eles no decorrem apenas da orientao do progresso tecnolgico, pois tambm
refletem a incorporao indireta ao sistema produtivo da mo-de-obra mal
remunerada dos pases de industrializao retardada. Organizar a produo em
escala planetria leva necessariamente a grande concentrao de renda,
contrapartida do processo de excluso social a que fizemos referncia.
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Gostaria de encerrar com umas palavras dirigidas aos jovens aqui presentes.
No curso da histria as cincias tm evoludo graas queles indivduos que,
em dado momento, foram capazes de pensar por conta prpria e ultrapassar certos
limites. Com a economia, essa cincia social que deve visar prioritariamente o bem-
estar dos seres humanos, no diferente. Ela requer dos que a elegeram
imaginao e coragem para se arriscar em caminhos por vezes incertos. Para isso
no basta se munir de instrumentos eficazes. H que se atuar de forma consistente
no plano poltico, assumir a responsabilidade de interferir no processo histrico,
orientar-se por compromissos ticos.
O Brasil est prestes a iniciar uma fase nova e difcil bonita, por que no
dizer? de sua caminhada histrica. Elegemos um presidente da Repblica que,
conhecendo melhor que qualquer outro o povo brasileiro, rene os atributos para se
tornar um marco na vida poltica do pas.
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Mais que nunca os novos desafios sero de carter social, e no
principalmente econmico, como ocorreu em fases anteriores do desenvolvimento
do capitalismo. A imaginao poltica ter, assim, que passar ao primeiro plano.
Equivoca-se quem pretende que j no existe espao para a utopia. Esse o
desafio maior que enfrenta a nova gerao: convido-a a assumi-lo sem temores.
Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 2002