do códex ao e-book: metamorfoses do livro na era dainformação

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1 UNIVERSIDADE PAULISTA DO CÓDEX AO E-BOOK: METAMORFOSES DO LIVRO NA ERA DA INFORMAÇÃO Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP para a obtenção do Título de Mestre. Orientador: Doutora Bárbara Heller JOSÉ DE MELLO JUNIOR SÃO PAULO 2006

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Resumo: Esta pesquisa trata o livro impresso como um dos formatos históricos de registrode conhecimento. Por cerca de cinco séculos, ele foi hegemônico em suportar e registrar osconteúdos do conhecimento humano. Sua presença como objeto e produto gerou toda umaestrutura política, jurídica e comercial em torno da qual autores, editores e leitores seorganizaram. O advento do capitalismo informacional, notadamente o desenvolvimento dasnovas tecnologias de informação e comunicação (TIC), apresentam uma nova organizaçãopara o conteúdo/conhecimento, com noos suportes e formatos. Tal fenômeno desestabilizaas cristalizadas estruturas jurídicas e políticas organizadas em torno do livro impresso. Estetrabalho procura mapear as mudanças em curso a fim de compreendê- las, verificando deque maneira cultura e sociedade são afetadas pelas mudanças que se processam nosmecanismos históricos de armazenamento e transmissão do conhecimento.

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UNIVERSIDADE PAULISTA

DO CÓDEX AO E-BOOK:

METAMORFOSES DO LIVRO

NA ERA DA INFORMAÇÃO

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Comunicação

da Universidade Paulista – UNIP para a

obtenção do Título de Mestre.

Orientador: Doutora Bárbara Heller

JOSÉ DE MELLO JUNIOR

SÃO PAULO

2006

2

Gostaria de agradecer à professora Dra. Bárbara Heller por sua

paciência e preciosas orientações oferecidas ao longo desta pesquisa; aos

professores do programa de pós-graduação da UNIP, pelas importantes

contribuições bibliográficas, e aos editores e autores que gentilmente

participaram das diversas etapas do trabalho.

Para Mateus e Leonardo, de cuja dileta companhia, por muitas

vezes abdiquei a fim de concluir este trabalho. E, para minha mãe, que por 64

anos viveu exilada da grafosfera.

3

RESUMO

Resumo: Esta pesquisa trata o livro impresso como um dos formatos históricos de registro

de conhecimento. Por cerca de cinco séculos, ele foi hegemônico em suportar e registrar os

conteúdos do conhecimento humano. Sua presença como objeto e produto gerou toda uma

estrutura política, jurídica e comercial em torno da qual autores, editores e leitores se

organizaram. O advento do capitalismo informacional, notadamente o desenvolvimento das

novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), apresentam uma nova organização

para o conteúdo/conhecimento, com noos suportes e formatos. Tal fenômeno desestabiliza

as cristalizadas estruturas jurídicas e políticas organizadas em torno do livro impresso. Este

trabalho procura mapear as mudanças em curso a fim de compreendê- las, verificando de

que maneira cultura e sociedade são afetadas pelas mudanças que se processam nos

mecanismos históricos de armazenamento e transmissão do conhecimento.

4

SUMÁRIO AGRADECIMENTOS..............................................................................................................02 RESUMO...................................................................................................................................03 SUMÁRIO.................................................................................................................................04 LISTA DE TABELAS...............................................................................................................07 LISTA DE GRÁFICOS.............................................................................................................08 I. EPISTEMOLOGIA ...............................................................................................................09 1. Apresentação do fenômeno de transição do livro impresso ao livro eletrônico....................09 2. Caracterização dos critérios epistemológicos de abordagem................................................16 2.1 Uma análise diacrônica do mercado editorial no decorrer dos últimos 500 anos, com ênfase nos momentos de mudança de suporte e formato.....................................16 2.2 A aderência a uma teoria das mídias denominada de midiologia cuja ênfase da análise se concentra na ecologia das mídias, nos aspectos materiais presentes no processo de mediação..............................................................................................17 2.3 O recurso à sociologia de Pierre Bourdieu para dar conta dos conflitos estabelecidos no interior da midiasfera.......................................................................23 3. Momento histórico específico. Sociedade da informação(SI) e globalização......................27 4. A introdução do livro eletrônico geograficamente delimitada no mercado editorial brasileiro contemporâneo..........................................................................................................34 5. A introdução do livro eletrônico vinculada a uma história dos meios de comunicação.......36

6. A introdução do livro eletrônico como um fenômeno cultural.............................................43

7. A transição do livro impresso ao livro eletrônico integrando uma estrutura de

sociedade constituída de esferas: econômica, política, cultural e jurídica...............................47

8. Aspectos jurídicos................................................................................................................48

9. A transição do livro impresso ao livro eletrônico, tendo por agentes de sua

realização, editores, autores e leitores, com suas respectivas identidades e papéis.................52

10. O livro eletrônico portador de inovações tecnológicas......................................................56

11. A transição do livro impresso ao livro eletrônico diante de um conflito entre

outsiders e estabelecidos..........................................................................................................58

II. O NEGÓCIO DO LIVRO NO BRASIL.............................................................................60 1. Os referenciais: ponto de partida.........................................................................................60 2. A cadeia de va lores do mercado editorial............................................................................62 3. Definição dos quesitos que serão analisados.......................................................................64 4.Primeiro elo: autoria.............................................................................................................67 5.Segundo elo: edição..............................................................................................................70 5.1 Subsetor de obras Gerais.......................................................................................71 5.2 Subsetor de obras científicas, técnicas e universitárias (CTU).............................75 5.3 Subsetor obras religiosas......................................................................................80 5.4 Subsetor obras didáticas........................................................................................83 5.5 Uma visão geral.....................................................................................................85 6. As editoras e a inclusão digital.............................................................................................90 7. O terceiro elo: impressão......................................................................................................93

5

8. O quarto elo: distribuição.......................................................................................................95 9. O quinto elo, as vendas – livrarias e outros pontos de vendas...............................................96 10. Ponto de chegada. ...............................................................................................................104 III. A CONSTITUIÇÃO DE UMA ESTRUTURA JURÌDICA...............................................108 1.Conceito de autoria na Antiguidade e na Idade Média..........................................................108 2. O surgimento do autor..........................................................................................................114 3. Livreiros editores e impressores...........................................................................................126 4. O papel do Estado no mundo editorial.................................................................................133 5. O papel da Igreja no mundo editorial...................................................................................136 6. Das primeiras leis ao estabelecimento ao Copyright............................................................138 7. Do direito de autor à propriedade intelectual.......................................................................142 8. Copyleft................................................................................................................................148 9. A estrutura jurídica do campo editorial................................................................................151 IV. O CENÁRIO: INDÚSTRIA CULTURAL E GLOBALIZAÇÃO.....................................160 1. Cultura e autonomia relativa da função de autor..................................................................160 2. A indústria cultural...............................................................................................................170 3. Críticas ao conceito de indústria cultural. ............................................................................178 4. Da indústria cultural às indústrias criativas..........................................................................192 5. Indústria cultural e o fenômeno da globalização.................................................................199 6. Mercado editorial brasileiro, indústria cultural e globalização............................................203 7. A identidade de autor e a indústria cultural..........................................................................209 V. SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO E DESMATERIALIZAÇÃO DE CONTEÚDOS...........................................................................................................................215 1. A emergência da sociedade da informação................................................................... ........215 2. Caracterização da sociedade da informação.........................................................................219 3. Sociedade da informação e cultura hacker...........................................................................241 4. Críticas ao conceito de sociedade da informação.................................................................255 5. Sociedade da informação e exclusão digital.........................................................................260 6. O livro na sociedade da informação.....................................................................................268 VI. O VAREJO DO LIVRO NO BRASIL..............................................................................271 1. Uma livraria da década de 80...............................................................................................271 2. As novas livrarias.................................................................................................................279 3. O comércio eletrônico de livros...........................................................................................290 4. Desmaterialização de conteúdos e o comércio eletrônico. ..................................................297 5. A venda de livros eletrônicos no Brasil...............................................................................301 7. Comparação com mercado de língua inglesa......................................................................308 8. Conclusões provisórias........................................................................................................311 VII. CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS DO LIVRO ELETRÔNICO...................................313 1. Tecnologias da comunicação...............................................................................................313 2. Desmaterialização de conteúdos..........................................................................................316 3. Surgimento do livro eletrônico............................................................................................321 4. Bibliotecas digitais...............................................................................................................329 5. Blogs.....................................................................................................................................332 6. Substituição tecnológica: como outras indústrias criativas estão recebendo o fenômeno da mudança de suportes: o caso do DVD................................................................334

6

VIII – NOVAS IDENTIDADES 1. Deslocamentos: o editor e o autor em a face da emergência do livro eletrônico................ 338 2. Pesquisa com autores...........................................................................................................338 3. Pesquisa com editores..........................................................................................................352 IX – CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO MEIO EDITORIAL NO BRASIL: A INTRODUÇÃO DO LIVRO ELETRÔNICO, CHOQUE ENTRE OUTSIDERS E ESTABELECIDOS........................................................................................364 1. Definição de outsiders e estabelecidos................................................................................364 2. A influência da cultura hacker.............................................................................................369

3. Ausência de um modelo de negócios...................................................................................372

4. Configuração defensiva........................................................................................................375

5. Configuração defensiva........................................................................................................376

6. O que podem as partes?........................................................................................................378

7. O receio das novas tecnologias............................................................................................381

8. No campo editorial, uma relação entre estabelecidos e outsiders....................................... 382

CONCLUSÕES........................................................................................................................387

1. A lenta introdução do livro eletrônico: hipóteses revisitadas...............................................387

2. TIC, o e-book e o futuro dos diversos segmentos editoriais.................................................405

3.E, finalmente.........................................................................................................................408

BIBLIOGRAFIA .....................................................................................................................412

ANEXOS .................................................................................................................................425

7

LISTA DE TABELAS Tabela 01 – Cadeia de valores do mercado editorial............................................................ 63 Tabela 01 – Cadeia de valores do mercado editorial.............................................................66 Tabela 03: Direitos autorais pagos a autores brasileiros e estrangeiros (1990-2003)........... 67 Tabela 04: Percentual dos direitos autorais sobre o faturamento em dólares......................68 Tabela 05: Média de valores de direitos autorais obtidos por título.....................................69 Tabela 06: Obras gerais: exemplares vendidos,títulos, tiragens, preços médios .................71 Tabela 07: Obras científicas, técnicas e universitárias: exemplares, títulos, tiragens, preços médios (1990-2003).................................................................................................75 Tabela 08: Consumo per capita de livros do subsetor CTU, por estudantes universitários (1990, 1998 e 2003).............................................................................................................. 78 Tabela 09: Obras religiosas: exemplares, títulos, tiragens, preços médios (1990-2003)......79 Tabela 10: Obras didáticas: exemplares, títulos, tiragens, preços médios (1990-2003) ......83 Tabela 11: Exemplares, títulos produzidos e tiragens (1990-2003)......................................86 Tabela 12: Exemplares Vendidos, Faturamento e Preço Médio...........................................87 Tabela 13: evolução dos postos de trabalho internos e terceirizados nas editoras brasileiras............................................................................................................................... 88 Tabela 14: Canais de comercialização, venda de exemplares por ano – parte 01...............100 Tabela 14: Canais de comercialização, venda de exemplares por ano – parte 02...............100 Tabela 15: Exemplares vendidos em livrarias e governo ...................................................102 Tabela 16: Consumo per capita de livros no Brasil (1990,1995,2003)...............................103 Tabela 17: Consumo per capita de livros no Brasil sem compras Governo (1990,1995,2003)................................................................................................................103 Tabela 18 – Produção Editorial Brasileira, 1982. (Hallawell, 1985: 617)........................105 Tabela 19. Títulos editados segundo edição. (Hallawell, 1985: 618).................................106 Tabela 20: faturamento principais players editoriais .........................................................206 Tabela 21: principais eventos ligados ao desenvolvimento das Tecnologias da Informação..........................................................................................................................247 Tabela 22: Relação habitantes/usuários Internet – 10 países..............................................261 Tabela 23: Web Brasil, estudo trimestral do Ibope/ NetRatings.........................................265 Tabela 24: Comparação números de livrarias Brasil – fontes variadas...............................287 Tabela 25: comparação pesquisas compra de livros versus acesso à Internet....................392

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 01: Número de títulos lançados por editoras anualmente.......................................70 Gráfico 02: evolução dos postos de trabalho internos e terceirizados nas editoras brasileiras...............................................................................................................................89 Gráfico 03 – Editoras que possuem home-page................................................................... 90

Gráfico 04: Editoras que possuem e-mail.............................................................................91 Gráfico 05: Acesso a Internet................................................................................................91 Gráfico 06: Receita obtida na Internet...................................................................................92 Gráfico 07 - Pesquisa autores:Gêneros...............................................................................340 Gráfico 08- Pesquisa autores: Fonte de financiamento da publicação...............................341 Gráfico 09- Pesquisa autores: Contrato editoria versus suporte.........................................342 Gráfico 10- Pesquisa autores: Importância dos livros na renda pessoal ...........................343 Gráfico 10- Pesquisa autores:profissão..............................................................................344 Gráfico 11- Pesquisa autores:relação com audiência.........................................................345 Gráfico 12- Pesquisa autores:conteúdo lido na Internet.....................................................346 Gráfico 12- Pesquisa autores:suporte da leitura feita através da Internet .........................347 Gráfico 13- Pesquisa autores: formatos eletrônicos em que editou...................................347 Gráfico 13a- Pesquisa autores: futuro papel do editor.......................................................348 Gráfico 13b- Pesquisa autores: conhecimento das licenças criativas.................................349 Gráfico 14 - Pesquisa editores: interesse por publicar e-books..........................................352 Gráfico 15 - Pesquisa editores: conhecimento de tecnologias e modelos de negócios .............................................................................................................................................353 Gráfico 16 - Pesquisa editores: já publicaram e-books......................................................354 Gráfico 17 - Pesquisa editores: motivos para não usar suporte eletrônico.........................355 Gráfico 18 – Pesquisa editores: ferramnetas de CRM.........................................................356 Gráfico 19 - Pesquisa editores: uso do site para pesquisas com leitores........................... 357 Gráfico 20 - Pesquisa editores: futuro do editor.................................................................358 Gráfico 21 - Pesquisa editores: conhecimento de copyleft e creatives commons...............359 Gráfico 22 - Pesquisa editores: percepção de ameaças à propriedade intelectual.............360 Gráfico 23 - Pesquisa editores: suportes contratados com autores.....................................361 Gráfico 24 - Pesquisa editores: percepção do e-book em relação ao impresso..................362 Gráfico 25 - Pesquisa editores: motivos responsáveis pela baixa penetração do e-book..................................................................................................................................363

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I – Epistemologia

1. Apresentação do fenômeno de transição do livro impresso ao eletrônico 1,

circunscrevendo-o ao campo da comunicação, e do que se convencionou chamar

indústria cultural.

Existe uma anedota entre os profissionais de Tecnologia da Informação (TI) que

afirma o seguinte: o fato de você providenciar nove grávidas não fará o bebê nascer em um

mês. Invoco o espírito desta piada para refutar a afirmação, que atualmente envolve a

introdução do e-book no mercado editorial brasileiro, a saber: Não deu certo! Esta frase é

evocada em nove de cada dez conversas que se tem com editores acerca deste novo

formato. Isto se deve ao fato da proliferação aparente deste novo formato não ter se dado

com a rapidez insinuada por seus “arautos”. Há cinco anos, na Bienal do Livro de 2000 em

São Paulo, uma onda digital batia às portas do mercado. As livrarias Saraiva e Siciliano,

ocupavam seus estandes com terminais de computadores que exibiam seus sites de

comércio eletrônico. Uma editora européia de e-books ( 00:00 h) fazia várias apresentações

de livros eletrônicos. A Xerox do Brasil montara um estande com o que havia de mais

recente em impressão digital e também integrava os e-books a suas fábricas de livros.

Dentre as editoras brasileiras, três novidades se apresentavam, a I-editora, a editora Foglio e

1 As expressões livro eletrônico e e-books serão utilizadas como sinônimas no decorrer desta dissertação. No capítulo sete faremos uma conceituação mais específica do termo que, não obstante, servirá apenas para designar as diversas configurações possíveis deste artefato.

10

a Papel e Virtual. As duas primeiras com estandes próprios.O fenômeno chamou atenção

da grande imprensa e de revistas segmentadas que publicaram diversas páginas sobre o

tema. A revista Editor 2 estampava em sua capa matéria sobre e-books. Os sites de

comércio eletrônico também se fizeram presentes, com grandes estandes nos quais era

possível acessar os catálogos on-line através de terminais de computadores. Foi o caso das

empresas Submarino, Saraiva e Siciliano, as duas últimas tradicionais redes de livrarias

cuja entrada no comércio eletrônico principiavam.

Afinal, tanto barulho por nada, diziam em seguida muitos dos céticos em relação ao

fenômeno eletrônico. A introdução do e-book na vanguarda editorial brasileira se deu no

mesmo momento em que o boom da Internet alcançava seu ápice. O sentido novidadeiro da

solução e a forma marketeira de que se valeram seus divulgadores acentuou ainda mais seu

caráter arrebatador e, por conseguinte, os tipos de resistência despertadas. Duas atitudes

podiam ser facilmente observadas à época, por um lado, cautela e desconfiança, por outro,

repúdio e negação. Seis anos se passaram e as atitudes permanecem as mesmas. Por ora, os

fatos colaboram com os céticos, pois o número de editoras de e-books continua pequeno,

várias iniciativas de explorar comercialmente o novo formato fracassaram. E,

principalmente, o número de leitores, muito embora crescente, permanece marginal.

Ao escolhermos para análise, o período que marca a passagem do livro impresso

para o livro eletrônico nos colocamos diante de um conjunto de indagações que o relato

anterior motiva e ilustra: por que, diferentemente de outros fenômenos de mudança

tecnológica, a introdução do livro eletrônico no Brasil se faz de forma tão lenta? Em uma

época batizada como era da informação, na qual os fluxos informacionais se avolumam e a

2 Revista Editor, número 8, tinha em sua capa o seguinte título: “ O e-book e a revolução digital.”

11

ênfase nas mudanças tecnológicas pauta a sociedade e a cultura, que singularidades

concedem ao livro impresso sua sobrevivência?

Consideramos o livro uma das tecnologias de comunicação e, portanto, parte

constituinte da história dos meios de comunicação. Embora pertencente ao campo

comunicacional, os estudos sobre o livro ganharam especial atenção de outros campos do

conhecimento. Esta frutífera produção sobre livro e leitura realizada nas últimas décadas

evidencia por sua abrangência o posicionamento fronteiriço deste objeto, e justifica nossa

preocupação de demarcar o lugar do qual o abordamos. André Belo se referindo a revista

Book History, ressalta esse aspecto:

Para a revista Book History, criada em 1998 e disponível tanto em suporte de

papel quanto em suporte digital, na World Wide Web, a história do livro abrange toda a

história da comunicação escrita: a criação, a disseminação, os usos do manuscrito e do

impresso em qualquer suporte, incluindo livro, jornais, periódicos, manuscrit os, e outros

objetos impressos de vida efêmera. (BELO, 2002)

A revista supracitada abrange as seguintes áreas de interesse: histórias sociais,

culturais e econômicas da autoria, publicação, impressão, artes gráficos, direitos de autor,

censura, comércio e a distribuição de livros, bibliotecas, competências e leitura e escrita,

crítica literária, hábitos de leitura, teoria da recepção literária. Uma ausência significativa

se faz presente no elenco de áreas, refiro-me à indústria cultural, conceito amplo que

engloba além do mercado editorial, as indústrias cinematográficas, fonográficas,

radiofônica, televisiva, de games, entre outras.3

3 É fato que um único periódico não precisa dar conta de tudo, entretanto tal ausência e um levantamento minucioso realizado sobre a bibliografia dos estudos sobre o livro realizada por nós para esta tese, demonstram um grande vazio no cruzamento entre indústria cultural e produção editorial de livros.

12

A genealogia do conceito indústria cultural nos remete aos cientistas sociais

Theodor W. Adorno e Max Horkheimer que em 1947, usaram-no pela primeira vez para se

designarem a crescente estandardização da produção de bens artísticos subordinados a uma

lógica exclusivamente mercantil. O conceito de indústria cultural nasce com carga negativa,

como uma das facetas da modernidade industrial na qual a racionalidade da mercadoria

penetrava de forma absoluta na esfera da produção cultural. Para efeito de uma definição

mais contemporânea de indústria cultural, seria necessário juntar ao elemento, conteúdo

criativo, os diversos suportes através dos quais estes conteúdos são objetivados e

reproduzidos, ampliando o espectro de abrangência do termo. Segundo Jean Pierre Warnier,

seriam os seguintes critérios que definiriam o conceito:

(...) analistas como Patrice Flichy, Bernard Miège, Gaetan Tremblay consideram

que as indústrias culturais apresentam o seguinte perfil: a) elas necessitam de grandes

meios financeiros;b) utilizam técnicas de reprodução em série;c) trabalham para o

mercado, ou em outras palavras, elas mercantilizam a cultura; e d) são baseadas em

uma organização do trabalho do tipo capitalista, isto é, elas transformam o criador em

trabalhador e a cultura em produtos culturais.” (WARNIER, 27-28: 2000)

Esta lacuna na vinculação do livro como parte da indústria cultural e também a sua

análise no interior dos sistemas de mídia, muitas vezes, subordinado aos outros meios de

comunicação pode ser atribuída a fatores como a preponderância política e econômica dos

outros meios, em especial da televisão, cujo número de estudos se multiplica em todas as

latitudes. Longe de preencher esta lacuna, o estudo que ora realizo apenas pretende restituir

o objeto livro a um espaço que lhe pertence, isto é, como o primeiro dos meios de

comunicação de massa, suporte conteúdo, exemplo ancestral da ação da técnica industrial

de reprodução da cultura.

13

Esse é um trabalho sobre um momento de transição; o que estamos estudando é ao

mesmo tempo o livro impresso no formato codex, que durante cerca de 500 anos ocupou o

lugar privilegiado de suporte do conhecimento humano e principal veículo de transmissão

do conhecimento científico e que nos últimos 50 anos, vem gradativamente perdendo

espaço para formas eletrônicas de transmissão do conhecimento 4 e o livro eletrônico5 é

neste amplo trajeto compreendido como uma transformação possível e talvez necessária à

sobrevivência do objeto livro.

Ao debruçarmo-nos sobre esta transição de um formato consagrado historicamente

para outro que apenas engatinha pretendemos nos valer da análise diacrônica, estudando

outros períodos da história do livro em que mudanças de formato e suporte se processaram,

a fim de identificar a possibilidade de ocorrência de eventos trans-históricos, bem como as

novidades que marcam as transformações em curso. Para a definição de livro recorremos às

convenções internacionais, em especial a seguinte definição,

(...) A Conferência Geral da Unesco, de 19 de novembro de 1964, adotou uma

recomendação relativa à normalização internacional das estatísticas da edição de livros e

periódicos. Há muito tempo preparada, esta recomendação – se respeitada por todos os

países – deveria resolver o problema a longo prazo, adotando definições uniformes. Livro

é uma publicação não-periódica impressa, contendo um mínimo de 49 páginas, excluindo-

se as capas. Folheto é uma publicação não-periódica impressa, contendo um mínimo de

cinco e um máximo de 48 páginas, excluindo-se as capas. (Escarpit, 1976: 38).

Em decorrência da definição de livro impresso, arriscamos a seguinte definição para

livros eletrônicos, que ainda não possui definição oficial: arquivos em txt, pdf, html, e

4 Como televisão, rádio, Internet etc. 5 Livro eletrônico é tradução em língua portuguesa para e-book .

14

qualquer outro formato que suporte textos escritos. Armazenados em disquetes, CDs,

DVDs, HDs, Palms, e-books (suportes dedicados especificamente ao armazenamento e

leitura de livros eletrônicos), cujos conteúdos e forma de organização correspondam ao de

no mínimo 49 páginas no formato impresso. A definição para o livro impresso é arbitrária

e apresenta inúmeras lacunas. Qual o tipo de fonte utilizada, o número de caracteres

presentes no conteúdo, o espaçamento entre as linhas, possui ou não índice, etc? Fica

evidente que o próprio critério para definição de livro impresso é escorregadio e depende

em muito de um aspecto declaratório do autor ou editor. Ou seja, o fato de autor ou editor

considerarem um conteúdo como sendo um livro é de fundamental importância para que

este conteúdo seja um livro. Alguns aspectos relacionados à estrutura física do impresso

muitas vezes têm servido de índices para esta definição, por exemplo, a existência de uma

lombada quadrada, a presença de um índice, as divisões internas do escrito, etc. O fato é

que estamos em terreno pantanoso e o estabelecimento de critérios mais rígidos depende da

mobilização de uma cadeia de valores representada pelos agentes que compõem o campo

da edição. E aqui vale mais nos atermos às evidências materiais que Às especulações

conceituais. Uma visita à biblioteca ou à livraria irá nos apresentar como livros um elenco

de objetos que em sua imensa maioria apresentam as seguintes características:

1 – Edição não periódica;

2 – Número de páginas considerável, admitamos que superior a 49,

independente do formato.

3 – Paginação;

4 – Presença de um índice;

15

5 – Lombada quadrada;

6 – Divisões internas em capítulos ou subtítulos.

Portanto, na falta de um referencial rígido, nos submetemos às frouxas coordenadas

traçadas pela conferência geral da Unesco, ao mesmo tempo em que nos valemos de uma

certo empirismo e de critérios declaratórios internos ao campo para definirmos o que é um

livro. Neste caso minha experiência como editor é de algum valor. 6 Quando recebia um

texto para editar, após avaliar a relevância do conteúdo, uma das minhas preocupações era a

constituição material do mesmo. Será que esta novela ou esta coletânea de contos ou

poemas apresenta um conteúdo suficiente para a geração de um livro? Será editorado no

formato 14x21, 11x18, 17x23, 21x14, etc? Qual a melhor fonte e a espessura do papel?

Tais perguntas, aparentemente ingênuas, refletem uma certa estratégia de adequação do

conteúdo ao objeto que convencionamos chamar de livro, cujas características intrínsecas

estão intimamente vinculadas ao habitus do campo no qual se encontra: o campo da

produção editorial. Isto posto, é necessário que redefinamos o conceito de livro eletrônico e

neste caso as referências adquiridas no próprio meio são importantes nessa constituição,

• Edição não periódica;

• Composta de no mínimo por 100.000 caracteres (uma página impressa no formato

14x21 – com mancha composta por 30 linhas de 70 caracteres sem espaço);

• Presença de índice e paginação;

• Elemento declaratório que caracterize o texto eletrônico como livro.

6 De um modo geral, no decorrer desta dissertação o texto se dará na terceira pessoa, entretanto, quando se tratar de um fato relacionado a experiência profissional do autor, será utilizada a primeira pessoa do singular.

16

2. Caracterização dos critérios epistemológicos de abordagem.

2.1 Uma análise diacrônica do mercado editorial no decorrer dos últimos 500

anos, com ênfase nos momentos de mudança de suporte e formato.

A Lingüística apresenta como um de seus méritos científicos a identificação de uma

dualidade radical que o tempo produz sobre os objetos estudados pelas ciências. Esta

dualidade apresenta-se na forma de dois eixos, um horizontal das simultaneidades, outro

vertical, das sucessões:

“1° O eixo das simultaneidades (AB), concernente às relações entre coisas co-

existentes, de onde toda intervenção do tempo se exclui, e 2° o eixo das sucessões (CD),

sôbre o qual não se pode mais considerar mais que uma coisa por vez, mas onde estão

situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas respectivas transformações.”

(Saussure, 94:1995)

C

A B

D

Tal distinção será útil ao abordarmos nosso objeto, já que nos dedicaremos não

apenas ao momento presente caracterizado pela transição, mas também as diversas

mudanças históricas que o livro viveu. Apesar da complexidade do objeto estudado nos

valeremos do eixo vertical. A oposição entre os eixos simultâneo e sucessivo recebem do

17

autor do Curso de Lingüística Geral, respectivamente, os nomes de sincrônico e

diacrônico.“É sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência,

diacrônico tudo que diz respeito às evoluções.” (Saussure, 96:1995)

A utilização do eixo diacrônico não significa que abdicaremos totalmente da

sincronicidade, já que deveremos em nossos saltos diacrônicos analisar o atual momento de

transição, mas sempre tendo o inventário obtido dos períodos pretéritos como fonte de

referências. É importante ressaltar que nossa opção pelo diacrônico não significa uma

adesão a busca por características trans-históricas ou por um fundo idealista que nos remeta

a fenômenos repetitivos.

2.2 A aderência a uma teoria das mídias denominada de midiologia cuja ênfase da

análise se concentra na ecologia das mídias, nos aspectos materiais presentes no

processo de mediação.

Uma análise do campo editorial não pode ater-se exclusivamente ao objeto livro,

pois uma série de relações de dependência e influência mútuas configuram sua existência.

Ou seja, será necessário que vasculhemos o baú de mediações estabelecidas pelo meio com

a finalidade de desenvolver seu campo. Quando falamos da transição do livro impresso para

o livro eletrônico o que fica mais evidente é a pura e simples troca de suportes, ao invés do

conteúdo da obra ser recepcionado pelo leitor nas páginas de papel ele o será em telas. Uma

mudança que num primeiro momento ressalta as vantagens da técnica emergente em

detrimento da técnica anterior, para em um segundo momento simplesmente omitir a

própria técnica em nome da pura recepção. A estratégia de invisibilidade é própria de toda

tecnologia e assim também se dá com o meio,“O bom médium trabalha para ser esquecido;

18

transparente, parece deixar que as coisas falem por si mesmas.” (Bougnoux, 1994:33) A

invisibilidade do médium caracteriza-se pelo conforto que a técnica nos traz. Enquanto este

conforto do uso não for estabelecido, os aspectos técnicos serão evocados.

Mas ao bisbilhotarmos o baú de mediações não estamos pura e simplesmente à

procura das mudanças técnicas, desejamos verificar as relações que estabelecidas entre esta

e o campo da cultura e da sociedade. Para realizarmos esta incursão no campo das mídias

elegemos um método, o midiológico, e um arsenal conceitual, o da midiologia, como os

mais adequados a esta abordagem. Mas o que é midiologia e como opera seu método? Ao

longo percurso de 15 anos estudando os processos de transmissão de ideais ( de certa forma

a maneira como as ideologias conseguem se proliferar) o filósofo francês Régis Debray

construiu a disciplina e um método, assim definidos:

“(...), chamo midiologia a disciplina que trata das funções sociais superiores em

suas relações com as estruturas técnicas de transmissão. Chamo método midiológico o

estabelecimento, caso a caso de correlações se possível verificáveis , entre as atividades

simbólicas de um grupo humano (religião, ideologia, literatura, arte , etc), suas formas de

organização e seu modo de coleta, arquivamento e circulação dos vestígios.Como hipótese

de trabalho considero que este último nível exerce uma influência decisiva sobre os dois

primeiros.” (Débray, 1995: 21)

Ao privilegiar os mecanismos que colocam em circulação as idéias, a

midiologia se dedicará ao inter, ou seja, ao espaço das interfaces que colocam em contato

enunciadores e enunciados, espaço em geral negligenciado por nossos estudos centrados

nos meios e mensagens:

19

Na midiologia, midio não significa mídia nem médium, mas mediações, ou seja, o

conjunto dinâmico dos procedimentos e corpos intermediários que se interpõem entre uma

produção de acontecimentos. Esses entremeios assemelham-se a híbridos (Bruno

Latour), ou seja, mediações simultaneamente técnicas, culturais e sociais.(Débray, 1995:

21)

O objeto de estudo da midiologia será o que passa entre a técnica, a cultura e

a política, as mediações que fazem com que estes campos interajam. Por exemplo, quando

nos remetemos às transformações perpetradas pela invenção da prensa de tipos móveis por

Gutenberg, podemos considerá- la uma revolução técnica que mudou o perfil do mundo

ocidental. Porém, em uma perspectiva midiológica deveremos perceber que uma série de

fatores anteriores contribuíram para que estas mudanças se processassem. Alguns deles no

campo da técnica, como o domínio por parte dos europeus da produção de papel. Outros

aspectos, entretanto, se encontram no campo da cultura como, por exemplo, a mudança da

leitura em voz alta, para a leitura silenciosa, fenômeno propício à aquisição de exemplares

pessoais. O maquinismo aqui representado pela prensa não teria obtido sucesso, se, e neste

caso a comparação com a China7 é um bom exemplo, as condições sociais não fossem

propícias à circulação de livros. Em nossa abordagem mergulharemos nos acontecimentos

históricos buscando extrair deles algumas estruturas com caráter geral que possam iluminar

nosso objeto. Desta forma aquilo que obtivermos em nosso estudo diacrônico das interfaces

(político, culural, técnica) que tornaram possível o desenvolvimento do livro poderá ser

aplicado ao atual momento de transição aferindo tendências e detectando possibilidades. A

constituição de uma disciplina pressupõe a instituição de conceitos que dêem conta de

7 Há indícios de que os chineses conheciam a técnica de impressão com tipos móveis desde o século X, porém as técnicas xilográficas permaneceram hegemônicas. As explicações para este fato estão relacionadas a questões de natureza política e cultural.

20

justificá-lo, para o midiólogo o conceito de midiasfera é um dos mais importantes em seu

edifício,

(...) o federador cronológico chama-se midiasfera, ou meio de transmissão e

transporte das mensagens e dos homens. Esse meio, estruturado por seu procedimento

capital de memorização, estrutura por sua vez um tipo de credenciamento dos discursos,

uma temporalidade dominante e um modo de reagrupamento, ou seja, as três faces de

um triedro formando (o que poderíamos resumir como) a personalidade coletiva, ou o

perfil psicológico característico de um período midiológico.” (Débray, 1995)

Para a midiologia, a estratégia de armazenamento e circulação da informação e do

conhecimento é que definirão a especificidade de uma midiasfera, de maneira geral

podemos distinguir ao menos três durante a história humana:

(...) a logosfera, quando o escrito, central, é difundido através das contin gências e

canais da oralidade; grafosfera, quando o discurso impõe sua racionalidade ao conjunto do

meio simbólico; enfim, a videosfera, liberada do limite dos livros pelos suportes

audiovisuais.(Débray, 1995: 41)

Para o midiólogo, as midiasferas não são estanques, apenas existe o predomínio de

um meio de estocagem e circulação do “escrito central”. Outros meios sobrevivem e atuam

de forma simultânea. Também é facilmente detectável que a geopolítica influencia as

midiasferas e vice-versa. Muitos países árabes encontram-se por questões culturais em uma

logosfera.

No seio de uma midiasfera, culturas e sociedades se desenvolvem e se

sucedem, sem que necessariamente haja uma mudança de esfera. Estas se processam

lentamente e dependem como já enunciamos da confluência da técnica com a

21

cultura e a política. “No final de contas, uma cultura ou uma tradição social têm o

destino dos aparelhos de memória que lhes servem de suporte; além disso, cada

nova midiasfera curto-circuita a classe dos mediadores hegemônicos, oriunda da

precedente”. (Débray, 1995: 44)

Ou seja, muito embora possa haver uma convivência sobreposta de midiasferas, será

da midiasfera predominante que brotarão os grupos sociais ou classes hegemônicas que

intercederão de forma decisiva na circulação simbólica.

Ao aderirmos ao ferramental midiológico para estudarmos a transição livro

impresso – livro eletrônico, abdicamos de nos valer de uma série de ferramentas conceituais

muito caras aos estudos de mídia. Por um lado não nos valeremos da noção de estrutura8 na

maneira que dela se utilizam os adeptos do estruturalismo , já que esta, de uma forma ou de

outra, postula uma essência trans-histórica, algo incompatível com a sucessão permanente

das inovações técnicas. Também não postulamos a noção de sistema, já que esta pressupõe

um isolamento do mesmo, algo impensado em uma midiasfera, na qual o postulado do inter

se sobrepuja o do entre.

A noção de campo extraída da sociologia de Bourdieu nos será útil de forma

subsidiária, pois embora admitamos que não possa haver uma equivalência entre esfera e

campo, reivindicamos a que a primeira englobe a segunda, portanto, dentro de uma

midiasfera teremos vários campos em formação e dissolução, sem que isto afete

necessariamente a continuidade desta midiasfera. Esta autonomia englobante da midiasfera

fica mais clara com os exemplos que Debray nos apresenta:

8 Isso não significa que abdicamos totalmente deste conceito, como ficará evidente no item C deste tópico.

22

A esfera reconduz o sistema visível do médium ao macrossistema invisível que lhe

dá sentido. Vemos o forno de microondas, mas não a imensa rede EDF (empresa pública de

eletricidade) à qual está conectado. Vemos o automóvel não a malha rodoviária, os postos

de combustível, as refinarias, os navios-tanques, nem tampouco as usinas e os gabinetes de

pesquisa a montante e todos os aparelhos de manutenção e de segurança (...)” (Débray,

1995: 48)

Ora, quando falamos em livro impresso, pensamos no exemplar que manuseamos,

na bela capa e no papel utilizado. No limite, como bibliófilos nos preocuparemos com a

editoração, as fontes usadas, etc. Todo o restante nos escapa. O imenso aparato técnico que

representam as indústria gráfica e papeleira, a cadeia de legitimação do texto que passa

pelas escolhas do autor, envolve as recusas dos editores, e quando aceito, todo um ciclo de

produção que passa pela preparação do texto, sua editoração, e impressão, a escolha do

período certo para lançamento e a distribuição em livrarias, a isso se soma à disputa por

espaço na mídia. O que nos interessa, como leitores, é, sobretudo o armazém simbólico que

o objeto livro representa. Pois bem, ao midiólogo interessa toda a cadeia acima descrita.

Ao abordarmos o livro no seio de uma midiasfera não renunciaremos aos

conflitos que os processos de ascensão de uma tecnologia podem representar. As condições

culturais e políticas que tornam possíveis a um certo grupo social valer-se de uma

tecnologia emergente também estarão presentes em nossos estudos. Fazemo -nos adeptos da

seguinte frase: Os maquinismos propõem, os grupos sociais dispõem. Neste círculo vício-

virtuoso é que as mudanças tecnológicas ocorrem e muitas vezes despertam a falsa

sensação de que são apenas e tão somente resultado do maquinismo.

23

2.3 O recurso à sociologia de Pierre Bourdieu para dar conta dos conflitos

estabelecidos no interior da midiasfera.

O conceito de campos e habitus formulados por Pierre Bourdieu serão importantes

em nossa estratégia de análise do mercado editorial e da emergência de uma cultura hacker,

dentro de um campo que chamaremos de informático9. Para Bourdieu, o campo representa

um espaço social estruturado de dominação e conflitos. Os campos apresentam uma certa

autonomia em relação ao conjunto da sociedade, cada campo possui suas próprias regras de

organização e hierarquia. Referindo-se ao processo de autonomização dos campos,

Bourdieu apresenta o exemplo do campo literário,

O movimento do campo literário, ou do campo artístico para a autonomia pode ser

compreendido como um processo de depuração em que cada gênero se orienta para aquilo

que o distingue e o define de modo exclusivo, para alé m mesmo dos sinais exteriores,

socialmente conhecidos e reconhecidos de sua identidade. (Bourdieu, 1989: 70)

Com maior ou menor grau de autonomia, cada campo constrói seus jargões, regras e

fatores que o tornam distintos dos outros campos. Este movimento de identidade se constrói

a partir da alteridade em relação aos outros campos. Apesar desta relativa autonomia, os

campos compartilham muitos aspectos comuns e se inserem no quadro geral da sociedade,

exemplos de campos, são, o jurídico, o esportivo, o universitário etc. Aos campos são caros

seus corpos de especialistas, responsáveis por produzir seus sistemas simbólicos que são,

sobretudo, instrumentos estruturantes de dominação.

Intimamente ligado ao conceito de campo está o de habitus que Bourdieu vai buscar junto à

escolástica que por sua vez extraíra tal conceito dos estudos de Aristóteles, em especial do termo

9 Ou informacional.

24

grego hexis. O termo habitus constituiria um conjunto de conhecimentos e atitudes que o agente

social adquire a partir de sua posição dentro do campo, e que além de representar um repertório

adquirido também conterá um germe de ação. Segundo Maria Drosila Vasconcellos 10 o habitus

conferirá ao indivíduo as condições de pensar e agir dentro do campo, “O habitus traduz, desta

forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio de ação que

permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas.”

Em Bourdieu está presente uma das grandes questões das Ciências Sociais: Até que ponto o

individuo e a criativ idade possuem autonomia de ação no interior de cristalizadas estruturas sociais?

Em que pese sua crítica ao estruturalismo, principalmente às correntes representadas por Lévi-

Strauss e Althusser, Bourdieu também apresenta em sua obra um forte apego ao conceito de

estrutura, ao qual a noção de campo está intimamente vinculado. Sua distinção manifesta-se

claramente através do conceito de habitus, o qual representa o campo da ação, fortemente marcado

pela memória social e secundariamente pela criatividade e mudança social.

Retomando a velha noção aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em

habitus, eu desejava agir contra o estruturalismo e a sua estranha filosofia de acção

que, implícira na noção Levi-satraussiana de inconsciente, se exprimia com toda a

clareza entre os althusserianos, com o seu agente reduzido ao papel de suporte –

Trager – da estrutura; e fazia- o arrancando Panofsky à filosofia neo-kantiana das formas

simbólicas em que ele ficara preso.(...) Sendo as minhas posições próximas das Chomsky,

(...) eu desejava pôr em evidência as capacidades criadoras, activas, inventivas do habitus e

do agente (que a palavra hábito não diz), embora chamando a atenção para a idéia de que

este poder gerador não é o de um espírito universal, de uma natureza ou de uma razão

humana, como em Chomsky – o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento

adquirido e também um haver , um capital (de um sujeito transcedental na tradição idealista)

10 Vasconcellos, Drosila Maria Pierre Bourdieu: A herança sociológica. Educação e Sociedade, ano XXIII, n° 78, Abril/2002.

25

o habitus , a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural –, mas sim o de um

agente em acção, tratava -se de chamar a atenção para o primado da razão prática de que

falava Fichte, retomando ao idealismo, como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach,

o lado activo do conhecimento prático que a tradição materialista, sobretudo com a

teoria do reflexo, tinha abandonado. (Bourdieu, 1989: 61)

Julguei necessária esta longa citação, pois acredito que ela esclarece de forma contundente a

importância do conceito de habitus e sua matriz de memória social voltada para ação. Também

delimita sua filiação teórica demarcando as diferenças com o estruturalismo, sem qualquer

pressuposição de totalidades históricas e com o marxismo da teoria reflexiva, refutando a idéia de

subordinação contida nos conceitos estrutura-superestrutura.

Não existe um estruturalismo e sim um leque imenso de teóricos sociais que se

valem de acepções variadas do conceito de estrutura em suas pesquisas. As críticas de

Bourdieu se dirigem especificamente ao estruturalismo representado pela corrente

antropológica liderada pelo pensamento de Lévi-Strauss. Após uma pesquisa etnológica

sobre as práticas simbólicas do povo Kabyla, valendo-se do referencial estruturalista,

Bourdieu concluiu que este era insuficiente para dar conta da transmissão destas práticas.

Diferentemente do que afirmavam os estruturalistas, não havia uma lógica anterior que

funcionasse como motor para a reprodução cultural, ou um espírito humano, à maneira de

Lévi-Strauss. A lógica detectada pelo pesquisador seria o resultado da aplicação arbitrária

de seu instrumental teórico. A reprodução cultural dar-se-ia sem qualquer intencionalidade,

sem nenhum compromisso com esta pressuposta lógica. A lógica estruturalista que presidia

as práticas na verdade seria um resultado das práticas e não o contrário.

A este espírito, esta lógica, Bourdieu irá contrapor o conceito de habitus, que admite

as regularidades detectadas pelo autor, mas as credita a uma certa adesão automática do

26

ator social a caminhos já abertos por seus antecessores, sem que necessariamente haja a

necessidade por esta adesão, pois haverá sempre a possibilidade de o ator buscar outras

trilhas e no limite criar a sua própria.

Os conceitos de habitus e campos nos serão de extrema valia no estabelecimento

das observações sobre o campo editorial, na análise de suas práticas e na detecção de

caminhos alternativos postulados e, por vezes, percorridos por seus agentes. A

possibilidade de trabalhar com uma memória social e uma estrutura estruturada nos

permitirá caracterizar os papéis em jogo e seus deslocamentos - sintomáticos nos

movimentos desta estrutura -, engendrados pela emergência da sociedade de informação e

pelo avanço das indústrias criativas.

Os referenciais teóricos apresentados neste tópico serão aqueles que de uma maneira

geral atravessarão transversalmente nosso trabalho. O que não significa que sejam os

únicos. À medida que submetemos nosso objeto a cenários distintos - como a emergência

de uma sociedade de informação, o avanço das indústrias culturais (criativas) ou os estudos

diacrônicos do livro e da leitura - mobilizaremos as referências que colhemos no decorrer

de nossa revisão bibliográfica. Nos próximos tópicos faremos referências a elas, sem

esmiuçá-las. Este trabalho será realizado oport unamente, nos respectivos capítulos da

dissertação em que figurarem.

27

3. Momento histórico específico. Sociedade da informação (SI) e globalização.

A midiasfera atual apresenta-se como videosfera, nela prevalece como estratégia de

armazenamento e propagação do conhecimento- informação todo o construto político-

técnico-cultural dos meios audovisuais. A tela deste computador em que escrevo, ou o

aparelho de TV que se encontra na sala, são apenas cabeças de alfinete num emaranhado

global de interfaces. Em seus quadros midiológicos, presentes em uma série de trabalhos11,

é possível identificar uma homologia entre os aspectos constitutivos da videosfera e uma

série de características presentes no conceito de sociedade de informação. Entretanto,

existem aspectos não apresentados por Debray em seus quadros que se fazem presentes nos

adeptos do conceito de SI. Para darmos conta deste momento transitório que vive o livro,

acreditamos que o conceito de SI pode enriquecer nossa análise, estando naquilo que é

essencia l, alinhado ao guarda-chuva mais geral do discurso midiológico.

No ano de 1999, uma comissão formada por cientistas, empresários e agentes

governamentais trouxe a público um documento coletivo intitulado Sociedade da

Informação no Brasil – Livro Verde. Este trabalho de elaboração coletiva buscava definir

os contornos e diretrizes de um programa de ações que possibilitasse a inserção do Brasil

na sociedade mundial da informação. O que este esforço de elaboração evidenciava é que o

mundo globalizado vivia (e ainda vive) um acelerado processo de transformações da

sociedade industrial para uma sociedade da informação. A principal característica desta

sociedade emergente é o papel central da informação como mais importante bem do mundo

11 Respectivamente as seguintes obras de Régis Debray: Curso de Midiologia Geral, O estado sedutor e Vida e morte da imagem.

28

capitalista. O Livro Verde descrevia três fenômenos inter-relacionados como originadores

deste deslocamento,

O primeiro, a convergência da base tecnológica, decorre do fato de se poder

representar e processar qualquer tipo de informação de uma única forma, a digital....O

segundo aspecto é a dinâmica da indústria que tem proporcionado contínua queda dos

preços dos computadores relativamente à potência computacional, permitindo a

popularização crescente dessas máquinas. Finalmente, em grande parte como decorrência

dos dois primeiros fenômenos, o terceiro aspecto na base desta revolução é o fantástico

crescimento da Internet. (MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA, 2000: p. 3)

No seio da sociedade da informação engendram-se mudanças que afetam os modos

de vida das pessoas, como estas aprendem, trabalham se relacionam entre si e com as

instituições. Como fator dinamizador deste processo temos a nova economia:

O negócio eletrônico está no cerne da emergência de uma nova economia que se

caracteriza pelo potencial crítico de profissionais autoprogramáveis, da inovação

tecnológica e da avaliação do mercado financeiro como propulsores da economia. Como

em todas as economias, a produtividade do trabalho é o motor do desenvolvimento, e a

inovação está na fonte da produtividade. Cada um desses processos é levado a cabo e

transformado pelo uso da Internet como meio indispensável de organização em rede,

processamento de informação e geração de conhecimento. (Castells, 2003: 87)

Os trabalhadores do conhecimento, sempre necessários ao desenvolvimento de

qualquer modo de produção, são ainda mais importantes na sociedade da informação. A

cadeia de valores produtivos pode ser abastecida de forma abundante com esta mão de obra

diferenciada graças ao que Manuel Castells chama de organização em rede. Ou seja,

cadeias de transmissão e recriação de conhecimento que se valem da Internet como meio

29

para inaugurar uma nova intersubjetividade e novas modalidades de aprender. O precursor

do conceito sociedade de informação foi o sociólogo americano Daniel Bell. Estudando os

fenômenos que se processavam no seio da sociedade industrial americana do pós-guerra,

Bell identificou fortes indutores de mudanças estruturais que deslocavam o centro da

geração de riquezas e do modo de produção, da manufatura para a geração de

conhecimento,

Minha premissa básica é que conhecimento e informação estão se tornando os recursos

estratégicos e os agentes transformadores da sociedade pós-industrial da mesma maneira que a

combinação de energias, recursos e tecnologia mecânica, foram os instrumentos

transformadores da sociedade industrial. (Bell, 1980a: 531, 545).

Este fenômeno não se restringiria apenas aos EUA, ou ao mundo ocidental,

potências capitalistas ascendentes como as asiáticas também experimentavam estas

transformações. Neste caso, o Japão é um bom exemplo, sua estratégia de formação de uma

indústria intensiva em tecnologia exigiu uma mudança significativa no perfil dos

trabalhadores . Podemos ilustrar a compreensão que certos pensadores japoneses da gestão

empresarial tinham destas mudanças, através das observações de um de seus expoentes:

(...)a mercadoria informação...que consiste de redes de informação e de bancos de dados, a

organização básica da geração de informação substituirá a fábrica como símbolo societário.”

(...)Ela terá o caráter fundamental de uma infra-estrutura e o capital formado por conhecimento

predominará sobre o capital material na estrutura da economia. ”(Masuda,1985: 621,626)

A abrangência das transformações perpetradas pela emergência da sociedade de

informação são compreendidas de formas diferentes entre os teóricos do assunto. Para

Bell, o pai do conceito, por exemplo, as transformações se restringiriam ao universo

30

econômico, aos processos produtivos. Manuel Castells acredita em mudanças mais

profundas, e de certa forma homólogas àquelas identificadas pelos quadros

midiológicos:

O registro histórico das revoluções tecnológicas (...) mostra que todas são

caracterizadas por sua penetrabilidade, ou seja, por sua penetração em todos os domínios da

atividade humana, não como fonte exógena de impacto, mas como tecido em que esta

atividade é exercida.(Castells, 2000: 68)

Não podemos, entretanto, aderir ingenuamente a uma concepção de sociedade da

informação homogeneamente desenvolvida. Trata-se de uma transformação do

capitalismo tardio que ocorre globalmente de forma desigual. Enquanto nos países

desenvolvidos o fenômeno é intensivo, seu ritmo é muito mais lento nas economias em

desenvolvimento. Um dos termômetros deste fenômeno é a inserção da Internet na vida

cotidiana. No Brasil existem cerca de 14,3 milhões de usuários domiciliares de Internet12.

Nos EUA são cerca de 168,1 milhões de usuários e na Europa o número de internautas

encontra-se na casa dos 135 milhões.13

Divergências quanto à abrangência geográfica e dos campos14 das mudanças

perpetradas são comuns entre os teóricos que admitem a possibilidade de uma

sociedade de informação. Outra importante divergência diz respeito à gênese destas

transformações. Do ponto de vista histórico elas teriam se iniciado apenas na

modernidade tardia do pós-guerra, ou já estariam presentes no princípio da

12 Conforme dados da pesquisa Ibope Netratings de dezembro de 2003, correspondendo a 8% da população. 13 Dados Nielsen-Netratings de dezembro de 2003. Correspondendo a mais de 50% da população americana 14 Entendemos como campos os espaços sociais delimitados conforme teorizados por Pierre Bourdieu.

31

modernidade ocidental15? A definição das coordenadas temporais destas transformações

se estabelecem a partir do tipo de foco dispensado ao processo. Caso o elemento central

seja as questões relacionadas à capacidade de processamento e armazenamento de

informação, prevalecem as presenças do computador, dos bancos de dados a introdução

de interfaces gráficas presentes em écrans16 e a transmissão em rede, configurando a

década de 50 do século XX como a época das transformações. Caso o foco das

transformações se coloque sobre os modelos de gestão do processo produtivo, aí o

cenário se transforma. Para Beniger, os fenômenos característicos da sociedade de

informação já estão presentes nos primórdios da era industrial, quando uma crise de

controle da produção acarretado pela aceleração do processo produtivo do modo das

corporações de ofício para as fábricas resultou em novas exigências de controle:

A sociedade de informação não é produto de mudanças recentes (...) mas, sim, de

aumentos na velocidade de processamento material e dos fluxos através da economia

material que se iniciaram há mais de um século. Da mesma forma, o

microprocessamento e a tecnolog ia da computação, ao contrário da opinião ora em

moda, não representam uma nova força desencadeada apenas há pouco tempo sobre

uma sociedade desesperada, mas tão-somente a etapa mais recente do desenvolvimento

contínuo da revolução de controle . (Beniger, 1985: 435)

Uma linha média entre tais visões é defendida por Manuel Castells, que admite não

serem novas as demandas por informação e conhecimento nos processos produtivos,

estando estas presentes em toda a revolução industrial, entretanto, na atual fase vivemos

15 Adotamos a definição de modernidade do sociólogo inglês Antoby Giddens para o qual a modernidade refere-se ao estilo de vida ou organização sociais que surgiram na Europa a partir do século XVII e que por força de um processo de expansão européia, tornaram-se mundiais. (Giddens, 1991: 11) 16 Telas, vídeos, monitores, comumente usados nos computadores funcionando como ponto de contato entre o usuário e a máquina.

32

uma aceleração tão significativa deste processo, de forma que a própria geração de

informação e conhecimento gera a necessidade de novas informações e conhecimentos em

um processo contínuo de retro-alimentação,

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de

conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e informação

para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento-comunicação da

informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso.

(Castells, 203: 69)

As mudanças operadas pela emergência da sociedade da informação afetam todas as

dimensões da vida humana, em especial a forma como se opera a apropriação da

informação e a transformação desta em conhecimento. A porta de entrada é formada pelo

mosaico de interfaces gráficas de computadores. Steven Johnson define deste modo esta

nova conformação cultural:

A representação de toda esta informação vai exigir uma nova linguagem visual, tão

complexa e significativa quanto as grandes narrativas metropolitanas do século XIX. Já

podemos ver os primeiro movimentos dessa nova forma em designs recentes de interface

que foram além da metáfora bidimensional do desktop para chegar a ambientes digitais

mais imersivos : praças, shopping centers, assistentes pessoais, salas de estar. (Johnson,

2001: 20)

Para os limites deste tópico, não nos importa discutir de forma minuciosa o caráter

das mudanças em curso, nos contentamos em identificar a emergência da informação como

uma das forças centrípetas da sociedade capitalista contemporânea. A intensidade com que

este fenômeno se processa nas diversas partes do globo é reconhecida por nossa

caracterização.

33

Outra dimensão contemporânea a desfechar um golpe sobre os modelos tradicionais

de registro e propagação de conteúdos é o fenômeno que por conveniência designamos por

globalização. Na sociedade de informação o fluxo do conhecimento é contínuo e acelerado,

o desenvolvimento da Internet intensificou a sensação de obsolescência oferecendo ao

padrão de consumo de conhecimento um modelo ao mesmo tempo mais fragmentado e

veloz. A oferta de conteúdos culturais de forma mercantil, segundo Bernard Miège, pode

ser dividida em três grandes modelos: o de mercadorias culturais, o da cultura de fluxo e o

de produção de informação. No primeiro caso temos os produtos editoriais como livros,

CDS, fitas de vídeo, DVDs, filmes exibidos em cinema etc. Tais produtos necessitam ser

vendidos ao consumidor, diretamente ou através de distribuidores, o mercado possui

pequenas e médias empresas e alguns grandes oligopólios. Organiza-se com base no

pagamento de direitos autorais e busca atingir um mercado consumidor de massas

segmentado. No segundo caso temos a produção da televisão e do rádio, cuja amplitude e

continuidade de difusão são significativamente maiores que os do modelo anterior. É um

mercado marcado pela obsolescência dos produtos e, por isso, necessita de um fluxo

contínuo de novas atrações. Neste campo cultura e informação estão em intersecção e o

financiamento se dá principalmente através da publicidade e do Estado. Há uma grande

concentração de empresas e o controle de oligopólios. O terceiro modelo que envolve sites

e jornais e revistas impressos e digitais, mistura parte dos dois modelos anteriores.

Bernard Miège tem estudado a indústria do cultural sob a influência dos formatos

digitais. Segundo o autor, estamos diante de uma mudança significativa promovida pela

desmaterialização de conteúdos. Os conteúdos que anteriormente estavam ligados

diretamente a um suporte “material”, tangível, encontram-se libertos no meio digital, o que

34

permite a potencialização dos fluxos de conteúdos e o comercialização destes em diversos

formatos. Os conceitos de desmaterialização dos conteúdos e de indústrias do conteúdo,

serão tratados no capítulo seis dessa dissertação, pois acreditamos que estes ajudam a

entender algumas das características principais do e-book.

4. A introdução do livro eletrônico geograficamente delimitada no mercado

editorial brasileiro contemporâneo.

Um aspecto importante de nosso estudo da transição do livro impresso para o livro

eletrônico diz respeito às delimitações. Ao optarmos por um eixo diacrônico estabelecemos

como fontes históricas os períodos de transição técnica, política e cultural, demarcados

pelas mudanças de formato e suporte. Para efeito de ponto de chegada deste percurso

histórico optamos por realizar um estudo da realidade econômica, jurídica e política do

livro no Brasil, abarcando os últimos 15 anos de atividades do mercado editorial. Esta

opção se deve ao fato de durante este período possuirmos levantamentos respeitáveis das

entidades do setor, mas também por conseguirem abarcar a emergência do fenômeno

descrito como sociedade de informação e sua influência sobre os processos de produção e

circulação de livros. Portanto, o que aparentemente pode parecer uma escolha arbitrária,

não o é, pelos motivos supracitados. Cabe ainda acrescentar que a delimitação ao mercado

brasileiro se deve às dificuldades de levantamentos mais gerais, que necessitariam de

recursos financeiros e de tempo, de que não dispomos.

35

Para traçarmos um perfil do mercado brasileiro contemporâneo nos valeremos da

análise de uma série de dados históricos. Procede remos à análise do Diagnóstico do Setor

Editorial Brasileiro, realizado pela Fundação João Pinheiro, sob encomenda da Câmara

Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional de Editores (SNEL). Esta pesquisa

possui levantamentos anuais que remontam ao ano de 1990. Durante este período, alguns

itens da mesma sofreram alteração e outros foram incluídos ou retirados da amostra, mas,

de maneira geral, trata-se de um levantamento que pode nos revelar as tendências de

desempenho que nos últimos 14 anos o mercado editorial brasileiro apresentou. Nesse

trabalho todos estes dados anuais serão agrupados em séries históricas, comparando-os

entre si e com outros dados, como, por exemplo, o aumento da população medido pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Buscaremos uma visão dos

seguintes aspectos: Produção de exemplares, produção de títulos, tiragens, faturamento,

indicadores de rentabilidade, situação dos canais de comercialização, evolução do preço

pago por exemplar, número de leitores per capita, número de leitores compradores per

capita.

Paralelamente a este trabalho, realizaremos a análise de toda a cadeia de valores do

mercado editorial compreendida pelos processos de edição – impressão – comercialização.

Para tanto, além dos dados editoriais mencionados e presentes nos números das pesquisas

citadas, buscaremos dados sobre o mercado gráfico e suas recentes transformações. A fonte

será a pesquisa desenvolvida pela Abigraf em seus Anuários da Indústria Gráfica. Quanto

ao varejo do livro, nos valeremos dos números desta área presentes na pesquisa CBL-

SNEL, porém, para não ficarmos restritos a frieza dos números, optamos por analisar as

livrarias atuais, buscando traçar o perfil médio de uma loja destinada a esta atividade. O

36

objeto analisado será comparado a uma livraria tradicional de 15 anos atrás. Buscaremos

com isso detectar as mudanças ocorridas neste importante elo da cadeia de valores do livro,

tentando aferir em que estas mudanças estão alinhadas com a emergência da videosfera e da

sociedade de informação. Buscaremos também identificar convergências e divergências

entre este modelo de varejo e a possível comercialização de livros eletrônicos. Um terceiro

modelo será analisado, o das livrarias virtuais, tanto no quesito comercialização de livros

impressos quanto de livros digitais. Nossa hipótese é que esta análise propiciará a

verificação dos importantes deslocamentos que a introdução do livro eletrônico deverá

causar na cadeia de valores17 do mercado editorial.

5. A introdução do livro eletrônico vinculada a uma história dos meios de

comunicação.

Este artefato, o livro, escolhido como objeto de nossa pesquisa, apresenta diversas

facetas que precisam ser claramente identificadas para efeito de evitarmos confusões e

circunscrevermos aqueles aspectos que, em nossa análise, serão mais caros. Para tanto nos

será útil uma restrospectiva deste objeto, ancestral de todos os meios de comunicação e de

certa forma pedra angular do desenvolvimento destes. Os historiadores da escrita são

categóricos em afirmar que por cerca de 5000 anos, apesar do conhecimento por inúmeras

civilizações do registro escrito, a humanidade viveu sobre a preponderância da oralidade.

17 O conceito de cadeia de valores foi extraído do campo da administração empresarial, particularmente dos estudos de estratégia. As cadeias de valores é, segundo Porter (1989) uma reunião de atividades que são executadas para projetar, produzir, comercializar, entregar e sustentar o seu produto. Cada empresa possui a sua, porém estas se integram a uma cadeia mais ampla do ramo industrial ao qual se está vinculado. Uma descrição minuciosa da cadeia de valores do mercado editorial será apresentada no capítulo VII.

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Como diriam os antigos: “A letra mata a palavra vivifica”. Podemos fazer coro com Jorge

Luis Borges, que nos fala de grandes profetas e pensadores, fundadores da civilização

ocidental e que jamais utilizaram a escrita para registrar seus pensamentos, casos de Jesus

Cristo e do filósofo Sócrates. Para evitarmos confusões gostaríamos de deixar claro que não

imaginamos que a preponderância do escrito sobre o oral signifique uma evolução

determinista dos meios de registro e transmissão do conhecimento. Como já foi muito bem

assinalado por Paul Zunthor, a oralidade cumpriu e cumpre um papel fundamental nos

processos mnemônicos. Entretanto, acreditamos que a ascensão do escrito está intimamente

relacionada ao advento da modernidade, com tudo que isto representa como, revolução

industrial, estabelecimento de uma sociedade civil, deslocamento do homem para o centro

da arena político-social, ascensão da técnica e da ciência. Como bem assinalou Bottéro,

(...) a escrita revolucionou a comunicação entre os homens e a qualidade das suas

mensagens. O discurso oral implica a presença simultânea, no tempo e lugar, da boca que

fala e dos ouvidos que ouvem. Não é feito para durar mais do que essa fugaz confrontação;

por isso, não pode ser retido (em todos os sentidos da palavra) com facilidade... Já o

discurso escrito transcende o espaço e a duração, uma vez fixado, pode, por si mesmo, ser

difundido por inteiro em todos os lugares e todos os tempos, em toda parte onde encontra

um “leitor”, bem além do círculo obrigatoriamente estreito dos “auditores”. (Bottéro,

1995:20-21)

Será de especial importância para nosso estudo da transição do impresso ao

eletrônico a literatura científica. Admitimos uma taxonomia corrente no mercado editorial

que divide os livros em determinadas categorias como, por exemplo, técnico-científico,

didático, jurídico, auto-ajuda, obras gerais, religioso. Podemos facilmente questionar a

arbitrariedade destas divisões que tem em sua origem critérios relacionados à divisão da

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indústria que em um determinado momento exigiu a especialização. Por conta disto,

algumas empresas se especializaram nos negócios jurídicos, outras em livros universitários,

bem poucas no segmento didático extremamente exigente na necessidade de capital. 18 Para

efeito de nosso estudo poderemos nos valer de uma classificação mais genérica, tendo

como eixo os aspectos motivadores da recepção, neste caso teríamos três grandes literaturas

de: Entretenimento, conhecimento, religião.19 Nosso estudo privilegiará os dois primeiros

grupos. Ora, como base do desenvolvimento da ciência, ou das culturas científicas, temos

esta literatura científica.

Nenhuma cultura da tradição oral jamais conseguiu, até hoje, desenvolver

ciência verdadeira: os saberes de alto padrão derivam todos de ambientes dotados da

escrita e capazes, graças a ela, de construir sistemas de conhecimento extensos, precisos,

controlados e sistematizados, e além disso ampliáveis e aperfeiçoáveis por uma classe

mais ou menos prolongada de competências. (Bottéro, 1995: 23)

Neste cenário de desenvolvimento do científico a partir do registro escrito e de sua

disseminação é um dos pontos nodais de nossa abordagem, afinal de contas estamos diante

de uma estratégia própria a uma midiasfera. Um dos momentos mais emblemáticos da

importância do escrito é certamente a introdução da prensa de tipos móveis por Gutenberg.

Elizabeth Eisenstein considera este momento capital, para a autora uma série de mudanças

revolucionárias se deram após o advento desta técnica, influindo não só na organização do

conhecimento, mas também na incipiente indústria capitalista. A proliferação dos impressos

iria estimular a padronização, permitiria que as diversas línguas regionais constituíssem 18 Um detalhamento destes segmentos será feito no capítulo dois dessa dissertação. 19 Esta divisão se baseia nos motivadores da recepção, a categoria conhecimento tem classifica as obras cuja recepção tenha como fator predominante a busca do conhecimento científico, educacional e auto-ajuda; a categoria entretenimento engloba as obras cuja busca receptiva seja por diversão e a categoria religião agrupa os livros cujos receptores buscam conforto ou conhecimento espiritual. Um livro pode ocupar mais de uma categoria dependendo do tipo de recepção.

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suas gramáticas, incentivando um certo espírito nacional. Serviria aos intuítos da

ascendente burguesia e se constituiria em instrumento de mudança da ordem religiosa, por

servir de maneira categórica a revolução protestante. Um exemplo desta visão de Eisenstein

pode ser detectada no seguinte trecho,

Muitas indústrias capitalistas primitivas exigiam um planejamento eficiente,

atenção metódica aos detalhes e cálculos racionais. Contudo, as decisões tomadas pelos

primeiros impressores afetaram diretamente tanto a feitura de ferramentas quanto a de

símbolos. Seus produtos transformaram a capacidade de manipular objetos, de perceber

fenômenos variados e meditar sobre os mesmos. Os estudiosos interessados na

modernização ou racionalização ganhariam em refletir mais sobre os novos tipos de

trabalho mental estimulado pelo escrutínio de mapas, tabelas, diagramas, dicionários e

gramáticas. (Eisenstein, 1998: 77-78)

A abordagem de Eisenstein que coloca o advento da prensa de tipos móveis no

centro das transformações sociais, culturais e políticas da modernidade é questionada por

teóricos que imputam a esta visão um exagerado determinismo tecnológico. De outra frente

advém críticas quanto ao parcialismo desta visão que confere a uma técnica e não a seus

agentes as mudanças em curso. Chartier é um destes críticos, para o autor certamente uma

série de transformações ocorreram com o advento da prensa, sobretudo do ponto de vista

cultural, mas antes de representar uma ruptura com a cultura manuscrita, a cultura impressa

era sua continuidade e representante de sua herança. Uma das grandes dificuldades em

analisar este período de transição está em nosso distanciamento, e no fato de os

pesquisadores serem produto da cultura impressa da grafosfera, que concede um excessivo

peso ao impresso em detrimento das outras formas de registro escrito.

40

Sem nos furtarmos ao estudo destas importantes questões, concederemos especial

atenção à conformação da infra-estrutura forjada pelo fenômeno da impressão. Das

pequenas oficinas tipográficas de meados do século XV, a instituição de uma rede de

criação e transmissão de conhecimento um século mais tarde. Os estudos efetuados por

Lucien Febvre e Henri-Jean Martin demonstram que foi necessário apenas meio século para

que as oficinas tipográficas se espalhassem por toda a Europa.

Assim, no fim do século XV, cerca de 50 anos após o aparecimento do primeiro

livro impresso, 35.000 edições pelo menos, representando sem dúvida de 15 a 20

milhões de exemplares, já foram publicadas, e a imprensa já se espalhou por todos os

países da Europa. Nos países germânicos, depois na Itália e em seguida na França,

grandes centros se constituíram. No total, 236 localidades pelo menos viram prelos

funcionar.(FEBVRE, 1991: 273)

O empreendimento da impressão não se resumia ao livro, mas certamente este era

seu produto mais emblemático. A cadeia de valores desta indústria nascente tinha dois

pólos principais: gráficos-editores e fabricantes de papel. Aos gráficos-editores cabia uma

série de tarefas:

a) Selecionar os originais: A seleção podia ser feita diretamente pelos gráficos,

mas muitas vezes eram frutos de encomendas da universidade, de nobres e

clérigos. Em seus primeiros anos, as oficinas tipográfic as ainda dependiam

muito da estrutura universitária, que possuía o monopólio dos originais e

também os canais de distribuição. Um longo período seria necessário até que

este profissional passasse a exercer também a função de livreiro e distribuidor.

41

b) Estabelecimento do texto, Boa parte da revisão e uma série de escolhas de

editoração cabiam ao mestre da oficina tipográfica, na maioria das vezes seu

proprietário.

c) Investimento no equipamento e nos insumos: Quando a obra era resultado de

encomenda, este investimento era desnecessário, mas quando se tratava de uma

opção do gráfico-editor, cabia a este correr os riscos.

d) Distribuição, Um notável sistema de consignação e permutas se estabeleceu

entre os gráficos-editores europeus. Obras produzidas na França eram enviadas

a Alemanha e vice-versa, incrementado os acervos das partes e fazendo circular

o conhecimento.

Mais de dois séculos seriam necessários até que uma divisão das atividades de

impressão, edição e comercialização se autonomizassem, sem que necessaria mente

houvesse uma divisão empresarial das mesmas.

À indústria papeleira cabia o abastecimento das oficinas tipográficas. Uma demanda

ascendente por impressos causou inúmeras crises nesta ind ústria que dependia de insumo

escasso e de difícil obtenção. Ocorre que a matéria-prima do papel produzido na Europa

eram trapos que possuíam em sua matéria prima cânhamo e linho. Esta circunstância criara

uma série de conflitos, até que poderes regionais e algumas vezes nacionais

regulamentassem a atuação dos trapeiros, restringindo, por exemplo sua circulação. A

ascensão da empresa papeleira se dá no século XIV, ou seja, antes da introdução da prensa

de tipos móveis. Há entre os estudiosos da impressão aqueles que conferem importância

homóloga à produção em larga escala deste suporte, sem o qual a reprodução em larga

escala da escrita teria sido impossível.

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A convergência destes fatores de ordem técnica e econômica serão essenciais para o

desenvolvimento de outros meios de comunicação, séculos mais tarde. A proliferação de

jornais, por exemplo, só ocorrerá no século XVIII, momento em que a atividade editorial já

possui efetiva autonomia em relação ao processo tipográfico e em que uma certa logística

de circulação de impressos (livros, folhetos e jornais) já permite a sobrevivência econômica

deste meio. Mas será apenas na segunda metade do século XIX que os periódicos

alcançaram a escala de produção de massas, fenômeno que pode ter inúmeras explicações.

Uma delas, cara aos midiólogos, é o advento do papel de cavacos de madeira. Insumo

muito mais abundante que os trapos, e muito mais sujeito a uma exploração racional.

Paralelamente a esta temos outra inovação nas técnicas de impressão com o advento de

máquinas rotativas que multiplicavam substancialmente a velocidade de produção.

Mas se o jornal deve ao livro a geração de uma camada técnica de escribas e o

impulso as inovações técnicas tanto no papel quanto na impressão, este deve ao jornal a

conquista de um público jamais sonhado. Refiro-me ao desenvolvimento do romance de

folhetim, exemplo remoto de nossas novelas televisivas, mas também de nossos best sellers

de entretenimento. Através do folhetim, grandes autores alcançaram novos públicos. A

divulgação através dos jornais impulsionará a venda de suas obras publicadas no formato

livro e vice-versa, de forma que teremos um primeiro exemplo da relação sistemática que

acompanhará as mídias em seu desenvolvimento.

43

6. A introdução do livro eletrônico como um fenômeno cultural.

O conceito de cultura é amplo o suficiente para merecer inúmeros livros e teses

dedicados à sua definição. Para efeito deste nosso trabalho adotaremos o viés

contemporâneo que admite a convergência entre as visões sociológico-antropológica e as

formas especializadas (artíticas- intelectuais), explicitado a seguir por Raymond Williams:

Assim, há certa convergência prática entre (i) os sentidos antropológico e

sociológico de cultura como modo de vida global distinto, dentro do qual percebe-se,

hoje, um sistema de significações bem definido não só como essencial, mas como

essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social e (ii) o sentido mais

especializado, ainda que também mais comum, de cultura como “atividades artísticas e

intelectuais”, embora estas, devido a ênfase em um sistema de significações geral,

sejam agora definidas de maneira muito mais ampla, de modo a incluir não apenas as

artes e as formas de produção intelectuais tradicionais, mas também todas as “práticas

significativas” – desde a linguagem, passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo,

moda e publicidade – que agora constituem esse campo complexo e necessariamente

extenso. (Williams, 2000: 13)

A introdução de um novo suporte para o armazenamento e a distribuição do

conhecimento, como o livro eletrônico, pode representar mudanças em fenômenos de

natureza cultural alinhados à cultura como um modo de vida global. Práticas relacionadas à

produção, registro e troca (comercialização) podem sofrer deslocamentos e rupturas. Em

nossa análise não renunciamos de abordar as produções mais especializadas da cultura, que

no caso do livro encontra-se na produção literária, tanto aquela alinhada ao campo

científico, quanto ao do entretenimento.

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A abertura deste guarda-chuva permite que abarquemos debaixo de seu “teto ” os

conceitos de cultura de massas, fenômeno indispensável à utilização do conceito de

indústria cultural. Pensamos a cultura de massas, não como uma deformação instrumental

da cultura popular, e sim como uma nova modalidade de cultura surgida como o cimento

simbólico necessário à mediação das relações sociais modernas. A cidade capitalista,

grávida de imensas populações, irá gestar esta nova modalidade de cultura, na qual o

aspecto mercantil sobrepõe o criativo. Barbeiro realiza um diagnóstico deste fenômeno,

Massa designa, no movimento da mudança, o modo como as classes populares

vivem as novas condições de existência, tanto no que elas têm de opressão quanto no que as

novas relações contêm de demanda e aspirações de democratização social. E de massa será

a chamada cultura popular. Isso porque no momento em que a cultura popular tender a

converter-se em cultura de classe, será ela mesma minada por dentro, transformando-se em

cultura de massa.. (Barbeiro, 2000: 181)

Walter Benjamin, em sua vertente marxista, afirma que as superestruturas evoluem

mais lentamente que as infra-estruturas. Justifica esta afirmação dizendo que foram

necessários mais de meio século para que as mudanças provenientes da revolução industrial

atingissem o conjunto das áreas culturais. Esta afirmação, contida no texto, A obra de arte

na época de suas técnicas de reprodução, introduz a discussão sobre as mudanças no modo

de produzir do artista diante da emergência da indústria capitalista. Trata-se de um texto

referencial e contraponto à visão puramente negativa com que Adorno e Horkheimer

tratavam a indústria cultural. Não que Benjamin discordasse da estandardização que a

produção capitalista exercia sobre a criação artísticas, porém, o autor Das Passagens via

neste movimento de perda da aura a possibilidade das massas proletárias tomarem contato

com dimensões da vida reservadas apenas aos iniciados. A massa de espectadores, este

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examinador que se distrai, poderá para Benjamin amplificar sua percepção do real através

desta nova experiência artística.

Mas se é verdade que no caso do cinema foi necessário mais de meio século para

que as técnicas convergissem para a fabricação de um novo meio de manifestação cultural,

também o oposto pode acontecer, isto é, a superestrutura pode antecipar a infra-estrutura.

Um exemplo disto pode ser percebido pela quantidade de livros consumidos na Europa nos

primeiros anos da impressão gráfica. Entre 1450 e 1500, ou seja, em cinqüenta anos, foram

impressos 20 milhões de livros, numa época em que o velho continente contava com cerca

de 100 milhões de habitantes, a imensa maioria de analfabetos. Esta demanda pode ser

justificada por uma grande efervescência intelectual, que vinha do quatrocento, e teve de

esperar mais de um século para que as condições técnicas possibilitassem seu atendimento.

Estes dois exemplos que se contradizem servem especialmente para que descartemos a

arbitrária divisão da realidade social em superestrutura e infra-estrutura, preferindo uma

visão integrada destas esferas, em um movimento circular de contínua e mútua influência.

Na midiasfera não pensaremos apenas na cultura, ou na cultura material e sim nas

materialidades da cultura.

Por fim, é importante ressaltarmos que o conceito de indústria cultural, devido à

excessiva negatividade que assumiu a partir de sua formulação pela teoria crítica, talvez

não seja o mais adequado para a nossa jornada. O substituiremos pelo termo “indústrias

criativas”, a troca não será gratuita e deve-se a uma estratégia. O termo indústria cultural

revela a intenção de seus autores de denunciar a invasão do universo da criação artística

pela racionalidade instrumental do modo capitalista de produção. A crítica pertinente revela

um diagnóstico preciso, mas limita-se a este diagnóstico e chafurda no pessimismo. O

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termo “indústrias criativas” revela em seu primeiro componente uma adesão à crítica dos

frankfurtianos, entretanto, o componente “criativas” tenta emprestar um sentido de

positividade ao termo, de forma que teremos, por um lado, a razão instrumental tentando

transformar tudo que toca em mercadoria (a indústria) e, do outro, a criatividade do

produtor cultural, por vezes resistindo, em outras se integrando. O conceito “indústrias

criativas” vem sendo empregado há pouco tempo nos debates públicos sobre a preservação

das culturas locais em face à globalização. Não necessariamente substitui o conceito de

indústria cultural, mas incorpora a ele, aspectos positivos, como uma certa liberdade

presente na criação artística que seria preservada, mesmo quando da reprodução técnica do

produto cultural.20

Se for verdade que a indústria editorial constitui um campo, o mesmo pode ser dito

da indústria informática, dentro de cada um destes campos seus agentes ocupam

determinadas posições de poder, que de uma maneira geral é determinada pela posse de

dinheiro e de certos conhecimentos. Por exemplo, no campo editorial, certos editores

possuem muito poder, mais até que a soma de seus autores, outros editores, de pequenas

casas editoriais, possuem menos poder que muitos dos autores das grandes casas. Em

relação aos livreiros, alguns editores estão em condição de liderança. Quando se trata das

grandes redes, a maior das editoras encontra-se em condição de inferioridade, muito

embora possua mais capital. O cenário é o de um equilíbrio instável e de permanentes

conflitos. O campo da indústria informática não é muito diferente, apenas a instabilidade do

equilíbrio é ainda maior. As grandes software houses dominam o mercado. Porém,

20 Venho acompanhando os debates sobre cultura, como o Fórum Mundial de Cultura sediado na cidade de São Paulo, ano de 2004, e nestes eventos o conceito indústrias criativas foi bastante empregado, sem que, entretanto se fizesse referência a esta questão genealógica em relação ao termo indústria cultural. Esta explicação é uma concepção pessoal, a partir da utilização prática que os agentes tem feito do termo.

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desenvolvedores independentes podem de uma hora para outra mudar o cenário.

Diferentemente do ancestral meio editorial no qual os modelos e a estrutura se encontram

consolidados, o meio informático apresenta uma forte disputa entre os empresários e os

hackers. Os primeiros (os empresários) são hackers convertidos em gênios da mercadoria,

são a parte indústria do termo (podemos citar como exemplos, Bill Gates da Mocrosoft, ou

Steve Jobs da Apple). O segundo grupo, o dos hackers não convertidos insistem em

preservar a segunda parte do termo, a independência da criatividade (como exemplo s,

temos o inventor do sistema operacional homônimo, Linux, e um miríade de

desenvolvedores espalhados pelo globo) . O primeiro grupo aderiu a cultura capitalista

vigente e a propaga sem constrangimento, já os hackers forjaram sua própria cultura, que

de certa forma é predominante entre os usuários do meio. Estamos diante d e mais um

daqueles pontos nodais. Pois nosso estudo da passagem do livro impresso para o livro

eletrônico poderia receber o seguinte sub-título, Quando o campo editorial encontra o

campo informático.

7. A transição do livro impresso ao livro eletrônico integrando uma estrutura de

sociedade constituída de esferas: econômica, política, cultural e jurídica.21

O pesquisador, por mais genérico que seja seu objeto é, sobretudo um seccionador.

Nossa abordagem midiológica será também composta por secções. Dividiremos a

sociedade em quatro esferas: cultural, político, jurídico e econômica. Por homologia 21 Neste tópico abordaremos a dimensão jurídica e em parte aspectos culturais e políticos vinculados à questão das identidades. A dimensão cultural foi tocada no sexto tópico, os aspectos econômicos do mercado no quarto e as questões políticas estarão presentes no nono tópico. Durante o desenvolvimento da tese, cada um destes tópicos merecerá um capítulo e, de forma transversal, encontram-se presentes em toda a abordagem.

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admitiremos que estas esferas também estão integradas ao fenô meno editorial. Para estudá-

lo de forma apropriada deveremos revolver cada um destes espaços, sem jamais perder de

nosso horizonte a convicção de que são interdependentes.

Em nossa proposta diacrônica abordaremos a introdução do livro impresso por um

longo período que vai de meados do século XV até fins do século XVIII. Ao analisarmos o

segmento econômico verificaremos a formação da cadeia de valores da indústria editorial e

a evolução de seu modelo de negócios, bem como as implicações do comércio do livro para

o restante das atividades econômicas. Neste quesito também acompanharemos a formação

de uma classe de trabalhadores especializados no conhecimento, sua modalidade de

exploração e colaboração com uma emergente burguesia tipográfica. Não deixaremos de

observar as práticas comerciais desviantes que haverão de ter se formado no seio do

emergente mercado editorial22 e as relações centro/ periferia, já neste princípio

estabelecidas, tanto entre regiões européias, quanto entre os próprios países europeus,

muitos deles recém-unificados.

8. Aspectos jurídicos

A construção de um corpus jurídico que desse conta do emergente mercado editorial

antecipou uma série de demandas futuras relacionadas à patente industrial, ao direito

autoral e ao domínio da marca. Hoje estas três formas de propriedade privada de produtos

da criatividade humana encontram-se agrupadas sob o guarda-chuva da propriedade

22 Porque estas em sua originalidade poderão explicar dentro de uma perspectiva diacrônica, práticas presentes na atual fundação de um mercado de livros eletrônicos.

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intelectual. O mercado editorial é a primeira das empreitadas capitalistas a perceber que

para além de sua mera materialidade os produtos possuíam uma dimensão intangível que

precisava ser protegida, sob pena de representar imensos prejuízos a seus proprietários.

Anthony Giddens identifica na modernidade uma série de transformações, no interior das

quais a questão da propriedade intelectual pode se enquadrar. Ele as chama de “desencaixe

dos sistemas sociais”: “Por desencaixe me refiro ao deslocamento das relações sociais de

contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de

tempo-espaço.”

Giddens distingue dois tipos de mecanismos de desencaixe, que se ligam ao

desenvolvimento das instituições modernas:

a. Fichas simbólicas: são meios de intercâmbio que podem circular e serem

reconhecidos em todos os lugares, uma das mais relevantes seria o dinheiro.

b. Sistemas peritos: trata-se de sistemas de excelência técnica que organizam

grandes áreas da vida material e social. E aqui podermos traçar uma

homologia com o “campo” de Bourdieu. Como exemplo teríamos os

advogados, economistas, médicos, engenheiros, etc.

Estes dois mecanismos de desencaixe estão presentes na propriedade intelectual. O

conteúdo de um texto estará vinculado a um autor e a uma casa editorial, mas o que me

assegura sua autenticidade, o que me garante sua verdade. Certamente o prestígio do autor e

a reputação da casa editorial, muitas vezes atestada na qualidade do impresso. Aos poucos o

meio editorial vai se convertendo em um sistema perito e os conteúdos editoriais em fichas

simbólicas que podem – ressalvando-se a questão da tradução – circular por todo o mundo.

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Neste cenário, lentamente o corpus jurídico do direito autoral irá se estabelecer,

primeiro para assegurar o direito do gráfico-editor e tardiamente como forma de permitir

ganhos também aos autores. Nosso salto diacrônico nos coloca diante de uma série de

novos possíveis desencaixes, que podem estar ocorrendo com a emergência da sociedade de

informação. A defesa do copyleft23, pelos adeptos da cultura hacker, e a visão de conteúdo

livre, predominante nos usuários da Internet, seriam um exemplo deste desencaixe, no qual

a noção de propriedade intelectual passa a ser questionada por parte dos agentes criativos e

por imensas parcelas de receptores.

Os desdobramentos políticos destes conflitos podem ser facilmente identificados

nos discursos de seus principais agentes. É notória a pressão que os EUA exercem sobre a

OMC, e seus países membros, principalmente aqueles em desenvolvimento, para que haja

um eficaz controle da pirataria. Os líderes da indústria de software protegido patrocinam

campanhas para coibir a prática pirata, que apelam para aspectos morais e insinuam as

possíveis punições aos infratores. Creio que uma recente experiência pessoal pode muito

bem ilustrar a preocupação dos agentes tradicionais em relação a este deslocamento. Estava

visitando a biblioteca do SESI em São Paulo, que fica no porão da sede da Federação da

Indústria do Estado de São Paulo (FIESP), a mais importante entidade patronal do país,

localizada no seio da avenida Paulista. Na parte térrea do prédio, ligada as calçadas da

avenida movimentada, ocorria uma exposição de produtos piratas, softwares, brinquedos,

roupas, etc. Os transeuntes podiam ver o original e ao seu lado o produto pirata. Em uma 23 Palavra em inglês que se contrapõe ao termo copyright. Funciona como um trocadilho, já que copyright, a palavra utilizada para definir a propriedade intelectual, é formada da fusão de duas outras palavras: “copy” que significa original, ou cópia e “right” que significa legal, direito. Ora, copyleft seria a fusão de “copy” e “left” esttá última palavra significa esquerdo, canhoto. A escolha deste termo para designar a abdicação do autor de parte ou do todo de seus direitos autorais configura o caráter político de sue uso.. Este tipo de licença de conteúdo nasceu a partir da defesa do software livre, os adeptos deste movimento, ao invés da expressão “all rights reserved” (todos os direitos reservados) do copyright, utilizam a expressão “some rights reserved” (alguns direitos reservados). Em muitos casos o autor abdica de todos os direitos, os pecuniários e morais.

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instalação interativa, era concedido aos transeuntes o “priv ilégio” de destruir os produtos

piratas. Um imenso painel eletrônico explicitava os números da pirataria e o prejuízo que a

mesma causava ao país em empregos formais, impostos e consumo. Creio que este exemplo

pode ser pinçado como um dos sintomas do atual conflito que vive a questão da

propriedade intelectual. É muito provável que a maioria dos transeuntes que passaram por

esta instalação fossem usuários de algum produto pirata: roupa, CD, livro, software,

calçado – “quem nunca pecou que atire a primeira pedra.”

A contradição básica entre o corpus jurídico moderno e a demanda por consumo de

conhecimento e produtos culturais reflete um ponto de conflito da atual sociedade, que não

será resolvido por campanhas publicitárias ou simplórias ameaças de coerção. O consumo

maciço de produtos culturais pirateados, entre os quais se encontram textos, é um

subproduto da sociedade de consumo e uma conseqüência lógica do avanço das técnicas de

reprodução. Ao discutirmos a mudança de materialidade do livro, cuja característica

principal é a desmaterialização dos conteúdos 24, não poderemos deixar de perceber que este

atributo técnico, atende diretamente as demandas de consumo de uma imensa parcela que

se encontra a margem da indústria cultural.

24 Alguns teóricos utilizam este conceito para designar a passagem de conteúdos que se valem de tangíveis de suporte, para conteúdos digitalizados, cujos suportes não são necessariamente tangíveis. O conceito será trabalhado de forma detalhada no capítulo 6 desta tese.

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9. A transição do livro impresso ao livro eletrônico, tendo por agentes de sua

realização, editores, autores e leitores25, com suas respectivas identidades e papéis.

Em nossa abordagem do campo editorial identificamos três categorias de agentes

que, ocupando espaços específicos dentro do campo, colaboram e conflitam em sua

constituição. Nos referimos a autores, editores e leitores.

Editores: Quando do advento da prensa de tipos móveis, a função editorial como hoje a

conhecemos estava totalmente misturada com as tarefas de gráfico e livreiro e muitas

vezes submetida a essas duas. No século XVI, convivem as figuras do mestre impressor e

a do editor. O primeiro pode ser dividido em três categorias: os itinerantes que em geral

possuem uma única prensa e exíguos conjuntos de caracteres, vivem de pequenos

trabalhos atendendo os vilarejos que não possuem prensa; os artesãos locais, estabelecem

pequenas oficinas e atendem demandas pequenas de cartazes, folhetos todo o tipo de

prospectos e abecedários e folhas de aulas que são usadas nos colégios locais e raramente

imprimem um livro; finalmente temos os mestres impressores proprietários de oficinas nas

grandes cidades comerciais, ou universitárias. Destes homens será exigida uma cultura

superior, pois deverão compor obras em suas línguas vernáculas, mas também em grego e

latim. Desta terceira categoria de gráficos surgirão editores e livreiros de prestígio.

Mantendo relações com os comandatários; obrigado a procurar sempre trabalho

para que os prelos não fiquem inativos e a dividir regularmente esse trabalho, controlando o

dos companheiros, retido sem cessar pelo fastidioso e delicado trabalho de correção de

provas, que devem ser devolvidas na hora certa para que a tiragem possa prosseguir, ao

25 Por falta de tempo para realização de uma pesquisa de recepção com leitores, não nos aprofundaremos na análise dos impactos da introdução do livro eletrônico sobre estes.

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mestre impressor portanto não falta ocupação. Tanto mais que mantém em geral uma

livraria instalada perto da oficina. Se consegue lucros suficientes, se pode reunir algum

capital, torna-se ele mesmo editor, associando-se às vezes para assumir as despesas da

publicação com outro livreiro que partilha com o ele os riscos e os benefícios da empresa e

que se encarrega de distribuir uma parte da impressão. Graças a esse sistema, o impressor

consegue às vezes tornar-se um grande editor. ( Febvre, 1991:212)

Outra categoria de editor será a do empreendedor intelectual, que por suas ligações

com a universidade, a nobreza ou a burguesia ascendente, utilizará o serviço dos gráficos

para imprimir títulos previamente selecionados. Alguns comerciantes, atentos ao nascente

comércio do conhecimento, também se lançaram a este tipo de empreitada, de forma que é

possível já no século XVI encontrar editores em algumas cidades italianas, nos países

baixos e em cidades alemãs como Frankfurt. Os aspectos que regulavam a identidade destes

agentes serão objetos de nosso estudo, bem como suas relações com outra parte

indispensável da produção editorial, os autores.

Atualmente o conceito de autoria encontra-se em deslocamento, dentre os sistemas

peritos, este talvez seja o mais transversal e eclético. Muitos dos participantes de outros

sistemas peritos, para obterem legitimidade, precisam se transformar em autores. Entre os

juristas, por exemplo, muitos dos grandes advogados se transformam em autores de

importantes compêndios. Médicos, engenheiros, jornalistas, economistas, també m obtêm na

publicação de suas idéias a legitimação de suas posições no campo. Portanto, a autoria além

de participar do campo editorial, é uma competência transversal presente nos outros

campos. Mas o prestígio desta modalidade de atuação social é fruto da modernidade e

encontra-se em profunda transformação com o advento dos meios eletrônicos de edição.

54

O autor medieval era completamente diferente de nossa concepção moderna, Roger

Dragonetti identifica no termo latino auctor, múltiplos significados : Deus, o espírito, o

copista de um manuscrito, mas jamais o inventor de um texto. Em oposição ao medieval, o

moderno implica uma subjetividade que desvenda o real, tornando cognoscíveis os espaços

outrora vedados à razão. O espírito ou deus, se manifestavam nas letras grafadas pelo

copistas, ou nos sermões lidos pelo clérigo. A modernidade não depende mais deste tipo de

incorporação. O sujeito, invenção moderna, recorrerá a mediadores, que não serão mais

simples canais de transmissão, mas sim fundadores de uma nova realidade. A ausência de

uma interação direta com a divindade será substituída por uma mediação em relação ao

real, aos agentes desta mediação emprestar-se-á o nome medieval de autor, que de meio se

converte em mediação. Gumbrecht identifica este desencaixe e o atribui principalmente ao

desenvolvimento da imprensa:

Na era da subjetividade, o homem concebe-se como a instância que confere seu

sentido aos fenômenos, por oposição a cosmologia medieval fundada, em razão do ato

divino da criação, na imanência do sentido (...) Mas a intervenção do sujeito criou assim as

condições propícias ao aparecimento do papeldo autor, foi a invenção da imprensa que o

tornou uma necessidade concreta. Foi, com efeito, o livro impresso que transformou em

caso excepcional o que até então era a situação normal da comunicação humana, a saber,

a copresença física dos participantes. (Gumbrecht, 1998: 104)

O caminho da glória é longo e acidentado, antes de obter o reconhecimento e de

ocupar um papel respeitado no campo da edição impressa, os autores deverão constituir sua

própria identidade. Nos primórdios da era editorial multiplicaram-se as reedições de

clássicos da Antiguidade e das obras capitais da Idade Média. Este primeiro fluxo de textos,

após algumas décadas, se esgotou, porém o aparato industrial e logístico necessários à

55

edição já se encontra plenamente instituído. Neste cenário a figura do editor prospera,

oportunistas comerciantes do conhecimento percebem a imensa demanda por esta nova

moeda simbólica, o livro, e investem em oficinas de criação textual, empregando autores

que escrevem por encomenda, Peter Burke nos apresenta a realidade destas linhas de

produção do texto,

Para cada homem de letras de sucesso podiam-se contar centenas de trabalhadores –

e trabalhadoras – literários na pobreza, na que foi conhecida como Grub Street( como

na Veneza do século XVI e na Amsterdã do século XVII). Eram os mercenários, os

escritores de tração, como foram descritos por analogias as carruagens puxadas por

cavalos, os táxis dos séculos XVIII e XIX.(Burke, 2003:150)

Conhecidos na Veneza do século XVI como poligraphi, estes homens

letrados, viviam alugando suas penas a gráficos, editores e nobres. Escreviam por

encomenda, revisavam originais e, por vezes, atuavam na própria oficina tipográfica na

composição. Dentre os intelectuais da época, alguns poucos conseguem escapar deste

esquema de produção industrial fazendo valer sua independência, é o caso por exemplo de

Erasmo e Montaigne. Exceções que reforçam a condição precária que viviam os autores nos

primeiros três séculos da grafosfera.

O movimento pelo estabelecimento de direitos autorais, diferentemente do que o

senso comum possa pensar, só ganhou relevância quando editores, igreja e estado

passaram a ver ameaçados seus quinhões pela pirataria e publicação de livros contestadores

e apócrifos. Por um lado Igreja e Estado precisavam da autoria identificada para punir

eventuais agitadores, do outro, editores cada vez mais afetados pela edição de exemplares

pirateados concordavam em pagar alguma coisa aos autores em troca da proteção legal dos

56

seus direitos exclusivos de impressão. Isto não significa que os autores não batalharam seus

direitos, mas relativiza esta luta ao verificar que todo um aparato técnico produtivo influiu

no estabelecimento do corpus jurídico.

Nossa investigação irá esmiuçar as relações deste agente, o autor, buscando

identificar os elementos que comporão sua identidade e as relações que esta categoria

mantém com os outros agentes do campo. Por se tratar de um estudo diacrônico,

identificados os elementos genéticos, passaremos a uma análise das atuais relações autorais,

buscando identificar em que, a emergência de novas modalidades do livro afetam a antiga

identidade do autor. Cruzaremos com esta os questionamentos da cultura hacker em favor

do copyleft e verificaremos até que ponto, aspectos culturais de um outro campo podem

afetar o campo editorial.

10. O livro eletrônico portador de inovações tecnológicas.

A introdução do e-book no mercado editorial veio acompanhada de uma

confusão em relação a tecnologia que possibilitava seu advento. Os artigos dedicados ao

tema estampavam novos aparelhos batizados de e-books que exibiam em suas telas os

textos guardados em suas memórias. Alguns permitiam a exibição de apenas uma página

por vez, outros, imitando os livro impressos, se dividiam em duas pequenas telas, nas quais

se podia observar paralelamente duas páginas. Alguns destes aparelhos receberam capas de

couro, imitando antigos livros encadernados. Mas por que afirmamos tratar-se de uma

confusão?

57

É próprio da tecnologia em uma sociedade mercantil buscar exteriorizar-se em

artefatos – facilmente identificáveis e sujeitos aos fenômenos do desenho industrial – que

compõem o mundo dos objetos em um grande desfile de formas que se sucedem no fluxo

da obsolescência funcional e estética. Como vender uma idéia tecnológica sem sua

materialidade? Estes artefatos são a resposta do mercado a esta pergunta. É certo que eles

terão um papel importante a cumprir na disseminação da nova tecnologia, porém, não são

imprescindíveis e poderão ser superados pelo desenvolvimento de computadores pessoais

portáteis, mais baratos e leves. Chamar estes mecanismos de e-books, é o mesmo que

chamar de filmes a televisão. São mecanismos exibidores que, como os televisores, podem

ter maior ou menor definição, bem como variar de tamanho. Estes mecanismos são primos

da TV, mas também o são dos computadores, pois possuem memórias (um banco de dados

internos) que permite o armazenamento de diversos textos, sua recuperação e a eventual

interferência do leitir, fazendo anotações nas “bordas” do texto.

O centro da confusão está na dificuldade que encontramos em dissociar os

conteúdos de seus suportes, e nos ecos da grafosfera que ainda são preponderantes em

alguns segmentos da expressão cultural, como é o caso do livro. Em nosso estudo

analisaremos o conjunto das “funcionalidades” dos livros, buscando verificá-las nos

formatos impresso e eletrônico. Que características separam o suporte papel das atuais

telas? Quais as características técnicas do livro eletrônico?

As respostas a estas perguntas certamente nos proporcionarão uma abordagem

menos obscura do fenômeno tecnológico e nos permitirá uma investigação mais

aprofundada das mudanças que esta escrita para exibição em telas pode propiciar, pois nos

acompanham neste trajeto as preocupações identificadas por McLuhan na passagem do

58

manuscrito para o impresso, de que a mudança na organização do texto a ser apresentado

pode afetar sua cognição bem como a forma como se apreende a própria realidade cultural

que este representa.

11. A transição do livro impresso ao livro eletrônico diante de um conflito entre

outsiders e estabelecidos.

Uma indagação encontra-se na gênese de nossa busca: por que o livro eletrônico,

após quase uma década de sua aparição, ainda é uma peça marginal no mercado editorial

brasileiro? Nossa hipótese é a de que os agentes dominantes do mercado editorial vêem

neste formato uma ameaça a sua posições históricas. Os motivos deste sentimento são de

duas ordens:

1 – O fato de não haver por parte dos editores o domínio da tecnologia

necessária ao armazenamento e à logística dos formatos eletrônicos, tornando-os

dependentes dos agentes dominantes do campo informático;

2 – A ascensão da cultura hacker que domina o ambiente no qual a operação

logística dos conteúdos eletrônicos deverá ocorrer, colocando em xeque os atuais

modelos de negócios, ameaçando principalmente a relação editor-autor;

Nossa investigação pretende identificar este possível conflito entre outsiders e

estabelecidos26, e para fazê-lo deverá desvendar o conjunto de aspectos que envolvem a

26 A utilização dos termos outsiders e estabelecidos não é gratuita. Fomos buscá-los no estudo etnográfico que Norbert Elias e John Scotson realizaram em uma pequena comunidade urbana do interior da Inglaterra. As palavras establishment e established designam, em inglês, agrupamentos que ocupam um lugar fixo, de prestígio e poder no seio de uma sociedade.Uma identidade (auto) atribuída e aceita pelos outros membros da

59

edição de livros em duas épocas históricas distintas. Para tanto mobilizaremos o

ferramental apresentado nos itens anteriores, buscando compor um rico quadro de

referências paras as possíveis conclusões provisórias de nossas hipóteses.

sociedade. Os autores identificaram no povoado, apesar de haver uma certa homogeneidade de renda e educação formal, uma profunda divisão entre um grupo auto (percebido como estabelecido) e outro que se percebia e era percebido como outsider. Os primeiros fundavam sua identidade em um princípio de antiguidade, enquanto que o segundo grupo, por alteridade seria o de moradores mais recentes, e portanto, não portadores de suas tradições. Para Elias o despretencioso estudo converteu-se em um importante laboratório para identificar possíveis propriedades das relações de poder e interdependência. Nossa intenção é a de mobilizar as propriedades identificadas por este estudo e a ela submeter a atual relação entre o establishment editorial e os entrantes “editores informáticos”, muitos deles adeptos da cultura hacker.

60

II – O negócio atual do livro no Brasil

1. Os referenciais: ponto de partida.

O britânico Laurence Hallewell realizou na década de 70 do século passado, o ma is

completo estudo do mercado editorial brasileiro. A riqueza de seu trabalho pode ser

atestada nas quase 700 páginas do livro, “O livro no Brasil – sua história ”. No trabalho o

autor se vale de documentos históricos, relatos, entrevistas, estatísticas oficiais e outras

informações obtidas junto aos profissionais do livro para traçar um amplo panorama da

edição no Brasil. A trajetória empreendida pelo autor encerra-se no início da década de 80

do século passado. Ao abordar a década que se iniciava o autor anexa ao trabalho tabelas

com os números do mercado editorial brasileiro no ano de 1982, obtidos junto ao Sindicato

Nacional dos Editores (SNEL). Em que pese a parcialidade dos números e o fato da

metodologia da pesquisa apresentar diferenças em relação às pesquisas das décadas

seguintes, ela representa a única base de referências para comparação com os dias atuais.

Para traçarmos um perfil do mercado brasileiro contemporâneo nos valemos da

análise de uma série de dados estatísticos, oriundos de fontes variadas. A primeira delas é

uma pesquisa realizada por mim com 103 editores, durante a Bienal Internacional do livro

de São Paulo no mês de abril 2004. A seleção de editoras foi aleatória, entretanto como a

amostragem representa 15% das editoras nacionais ela é suficientemente abrangente. 27

Estas correspondem a 15% do total de empresas editorias existentes no país. Em seguida,

procedemos a análise do “Diagnóstico do Setor Editorial Brasileiro”, realizado pela

27 Ver nos anexos cópia do questionário aplicado.

61

Fundação João Pinheiro, sob encomenda da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do

Sindicato Nacional de Editores (SNEL) 28. Esta pesquisa possui levantamentos anuais que

remontam ao ano de 1990 e vão até 2003. Durante este período, alguns itens da amostra

sofreram alteração e outros foram incluídos ou retirados, mas de maneira geral, trata-se de

um levantamento que pode nos revelar as tendências de desempenho, que o mercado editorial

brasileiro apresentou nos últimos 14 anos. Nesse trabalho todos os dados apresentados

anualmente foram agrupados em séries históricas, comparando-os entre si e com outros

dados, como, por exemplo, o aumento da população medido pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatísticas (IBGE) e evolução das matrículas nos ensinos superior e médio

detectada pelo INEP (Instituto Nacional de Pesquisa em Educação). Buscou-se com o

cruzamento de informações uma visão dos seguintes aspectos: produção e

comercialização 29 de exemplares, produção de títulos, tiragens, faturamento, indicadores de

rentabilidade, situação dos canais de comercialização, evolução do preço pago por

exemplar, número de leitores per capita, número de leitores compradores per capita. Desta

forma o ponto de chegada de Hallawell será o nosso ponto de partida.30

Antes de procedermos à apresentação e correspondente análise dos números,

devemos registrar que o mesmo iniciou-se no mês de abril de 2004.31 De forma coincidente

e simultânea tomei conhecimento no mês de junho de 2004 que o então presidente do 28 Este material foi anexado aos capítulos apresentados na qualificação.. 29 Existe uma pequena diferença entre o número de exemplares vendidos e o de exemplares produzidos em cada ano. Na maior parte dos nossos estudos utilizaremos os números dos exemplares comercializados, pois são os que efetivamente alcançaram os consumidores. No caso da comparação entre os números de 1982 e 2003 nos valeremos dos exemplares produzidos, já que na série mais antiga não possuímos os números de exemplares comercializados. 30 É importante ressaltar que a abordagem do autor mobiliza questões de natureza econômica, porém não se limita a essas e tampouco submete suas conclusões a esses aspectos. Nosso trabalho também se recusa ao reducionismo econômico, mas nos valeremos das informações estatísticas como sintomas que, quando confrontados com os outros aspectos de nosso estudo, poderão revelar dimensões que um único campo manteriam ocultas. 31 Seus primeiros resultados foram apresentados na forma de um artigo ao núcleo de produção edtiorial da Intercom no mês de setembro tendo sido inscrito no mês de junho daquele ano.

62

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico(BNDES) havia solicitado a um grupo de

acadêmicos da UFRJ, liderados pelos doutores Fábio Sá Earp e George Kornis, uma

pesquisa sobre a situação do mercado editorial brasileiro. Os resultados preliminares desta

pesquisa saíram na imprensa no mês de agosto de 2004 e sua versão final foi publicada no

mês de maio de 2005, durante a Bienal Internacional do Livro, sediada no Rio de Janeiro. A

fonte estatística de dados da pesquisa realizada para o BNDES é a mesma que utilizei: os

levantamentos anuais patrocinados pela CBL e pelo SNEL. As conclusões, entretanto,

apresentam algumas diferenças, sobretudo quando os números são submetidos a

ferramentas analíticas que extrapolam a dimensão econômica. Pela relevância da pesquisa

realizada pelos professores da UFRJ - inclusive por incluir uma fonte de dados global, os

números do relatório “Euromonitor”, - a incluímos de forma crítica neste capítulo.

2. A cadeia de valores do mercado editorial

O conceito cadeia de valores é homólogo do conceito cadeia produtiva. Ambos

incorporam a idéia de rastrear cada fase distinta de uma atividade que agrega valor a um

determinado produto, desde a aquisição da matéria-prima, até a venda e os respectivos

serviços de pós-venda. No caso do livro, podemos compor sua cadeia de valores da

seguinte maneira:

Autoria – Editor ia – Pré-impressão – Impressão – Distribuição – Divulgação e

Venda.

Para cada uma destas etapas corresponde uma ou mais categoria profissional, e uma

ou mais atividades, a tabela abaixo visa apresentar de forma simplificada estas etapas.

63

Tabela 01 – Cadeia de valores do mercado editorial.

Elos da cadeia Descrição das atividades desenvolvidas

Autoria Concepção e escrita do conteúdo

Editoria Leitura e seleção dos originais, preparação dos originais, revisão,

editoração, produção da capa, escolha dos papéis, definição dos

canais de distribuição, divulgação.

Pré-impressão Editoração, capa, geração dos fotolitos ou arquivos eletrônicos.

Geração das chapas.

Impressão Recepção dos arquivos, chapas, ou filmes. Montagem, impressão

da capa e do miolo, acabamento, embalagem, entrega nos centros

de distribuição.

Distribuição Estocagem os livros. Distribuição para o varejo.

Divulgação Levar informações dos livros para os meios de comunicação e para

os possíveis formadores de opinião.

Vendas Exposição, divulgação e venda dos livros. Suporte de pós-venda,

interface direta com a editora ou através da distribuidora.

Ao observarmos a tabela 01 percebemos que existem algumas atividades que se

repetem em mais de um elo da cadeia de valores. Isto se deve ao fato de que em algumas

empresas editoriais há a centralização do processo de pré- impressão, inclusive com a

geração de filmes; em outros casos a empresa terceiriza todo o processo inclusive o design,

que inclui o projeto do livro, a editoração e o desenho da capa. Os números que serão

analisados nos permitirão avaliar o desempenho econômico da maior parte destes elos,

ficando prejudicadas as análises dos segmento pré-impressão e distribuição, acerca dos

quais não possuímos informações, pois estes, muitas vezes estão misturados com os

números da impressão e do varejo respectivamente. O elo divulgação não será analisado

64

por estar fortemente relacionado à edição que ou possui profissionais responsáveis por esta

área e/ou contrata assessorias de imprensa para lançamentos importantes.

Abordaremos os números do mercado editorial brasileiro (correspondendo ao elo

editoria da cadeia de valores) através de seus subsetores editoriais, a saber: obras gerais,

didáticas, jurídicas, técnico-científicas-profissionais e religiosas. Consideramos este elo o

mais importante de todos por ser o núcleo do processo editorial.

3. Definição dos quesitos que serão analisados.

Definidos os elos da cadeia de valores passamos a classificar os aspectos que serão

abordados em cada um destes:

A. Economia de escala: este processo decorre do aumento da produção de um

determinado produto e a conseqüente baixa do custo unitário médio : isto se deve

à dinâmica de aumento do preço dos insumos e que serviços que não aumentam

na mesma proporção que a produção. Este tipo de ganho de escala na confecção

do livro é representado principalmente pelo insumo papel, que dependendo da

tiragem pode representar entre ½ e ? do custo industrial total. Quanto maior a

tiragem, menor o impacto do custo papel até uma determinada quantidade.

Pesquisas indicam que o ganho de escala proporcionado por este insumo cessa

quando a tiragem chega a 30.000 exemplares. O ganho proporcionado pela

economia de escala pode ser real quando é explicado pela diminuição das etapas

de produção ou pecuniário quando baseado na diminuição de custos pagos pelo

insumos (papel). Quando introduzimos o fator tempo nos processo de economia

65

de escala, tornamos algo que era estático em dinâmico, este é um dos principais

ganhos de escala obtidos com o aumento da tiragem dos livros. Por exemplo,

quando editamos um livro com tiragem de mil exemplares, o custo industrial da

impressão será dividido pelo número de exemplares e refletirá todo o processo

de ajuste do equipamento que é longo e oneroso. Este custo será fixo para

edições com maior tiragem, logo, uma edição de três mil exemplares diluíra esta

etapa, baixando o custo unitário final. Assim, na industrialização do livro

podemos nos valer da economia de escala pecuniária (papel) e da economia de

escala dinâmica (ajuste de máquina). Pode também ser obtida economia real nas

partes de pré-impressão e editoração quando se utilizam capas padronizadas e

substitui-se o fotolito por arquivos digitais no processo denominado direct to

plate32.

B. Economia de escopo é aquela conseguida quando um determinado

empreendimento diversifica sua produção, aproveitando-se da estrutura

instalada, obtendo assim a redução dos custos unitários de seus produtos. No

caso das editoras ela é obtida com a diversificação dos títulos e das mídias em

que se opera. No caso das livrarias este tipo de economia evidencia-se no mix

de produtos colocados à venda. Além da economia de escopo, outra vantagem

fica evidente com a diversificação, que é a redução do risco de encalhes.

C. Distribuição e formação de preços: Na produção industrial, além dos custos de

pré-produção e daqueles envolvidos no processo de impressão, temos também

os custos relacionados à distribuição e venda dos produtos. No caso do mercado

32 Neste processo a etapa do fotolito é eliminada. A partir do arquivo final editorado são gravadas as chapas para a impressão offset, economizando tempo e dinheiro.

66

brasileiro o livro obedece a um preço fixo determinado pelos editores: este preço

de capa servirá de orientação para a remuneração de editores, distribuidores e

livreiros. A tabela abaixo apresenta os valores em percentuais que cada uma das

categorias percebe33:

Tabela 02: Remuneração percentual sobre o preço de capa dos segmentos editoriais.

Segmento Percentuais de remuneração

Autores De 5 a 10 %

Editores De 30 a 50%

Distibuidores De 10 a 20%

Livreiros De 30 a 60%

A designação imprecisa da remuneração deve-se às múltiplas possibilidades de

distribuição do livro a partir do editor, e também aos diferentes tipos de autores e

compradores. Por exemplo, quando uma livraria pequena faz compras, ela adquire poucos

exemplares de cada vez, por isso, compra de distribuidores locais, estes por sua vez obtém

descontos variados das editoras a partir do tipo de parceira e grau de sua importância

regional. Essa pequena livraria obterá um desconto de 30%. Já uma grande livraria ou uma

livraria de rede poderá obter descontos muito superiores, pois podem adquirir diretamente

com o editor abocanhando a fatia que ficaria com o distribuidor.

Os fatores apresentados nos itens anteriores serão confrontados com os números das

pesquisas agrupadas em suas séries históricas. Através da evolução do número de títulos

perceberemos as questões relacionadas à diversificação e à economia de escopo. De uma

33 Fonte: Revista Editor número 06 agosto -setembro 1999. Earp e Kornis, 2005.

67

análise do volume de vendas e tiragens chegaremos à economia de escala. E dos números

da distribuição e canais de vendas obteremos informações sobre rentabilidade, formação de

preços e tendências do mercado.

4. Primeiro elo: autoria.

Desconhecemos obra de fôlego que trate da condição contemporânea do

autor brasileiro de livros. Existem trabalhos importantes como o de Marisa Lajolo e Regina

Zilberman, mas que se ocupam de períodos mais antigos. Como um indicador da questão

econômica relacionada à autoria destacamos da série histórica estudada (pesquisa CBL-

SNEL) os valores destinados aos direitos autorais nacionais e estrangeiros. Na tabela 03, os

números da segunda coluna Brasil encontram-se em dólares até 1997 e são expressos em

reais de 1998 a 2003. Os números do exterior e a quarta coluna se encontram em dólares.

Tabela 03: Direitos autorais pagos a autores brasileiros e estrangeiros (1990-2003)

Direitos autorais Brasil Exterior Brasil em US$ cotação dólar 1990 49.963.476 12.876.391 49.963.476,00 1991 61.686.975 13.948.860 61.686.975,00 1992 33.244.708 4.084.063 33.244.708,00 1993 46.547.984 5.585.758 46.547.984,00 1994 64.922.343 10.747.621 64.922.343,00 1995 113.117.590 12.038.546 113.117.590,00 1996 126.428.976 36.972.262 126.428.976,00 1997 159.392.733 27.039.292 159.392.733,00 1998 192.639.924 31.727.989 175.127.203,64 R$ 1,10 1999 139.111.411 11.001.456 69.555.705,50 R$ 2,00 2000 131.422.705 15.213.067 65.711.352,50 R$ 2,00 2001 137.700.000 11.500.000 57.375.000,00 R$ 2,40 2002 165.400.000 15.400.000 63.615.384,62 R$ 2,60 2003 163.300.000 12.500.000 51.031.250,00 R$ 3,20

A tabela seguinte agrupa o faturamento total do mercado editorial brasileiro na série

68

em questão. Nosso objetivo é verificar a participação percentual do direito autoral.

Tabela 04: Percentual dos direitos autorais sobre o faturamento em dólares.

Percentual dos Direitos Autorais (DA) sobre o Faturamento (US$) Faturamento (US$) DA Brasil Cotação DA Brasil Dólares DA Exterior Total DA %

$901.503.687 49.963.476 $49.963.476,00 $12.876.391 $62.839.867,00 7% $871.640.216 61.686.975 $61.686.975,00 $13.948.860 $75.635.835,00 8,50% $803.271.281 33.244.708 $33.244.708,00 $4.084.063 $37.328.771,00 4,50% $930.959.670 46.547.984 $46.547.984,00 $5.585.758 $52.133.742,00 5,60%

$1.261.373.858 64.922.343 $64.922.343,00 $10.747.621 $75.669.964,00 6% $1.857.377.029 113.117.590 $113.117.590,00 $12.038.546 $125.156.136,00 6,60% $1.896.211.487 126.428.976 $126.428.976,00 $36.972.262 $163.401.238,00 8,50% $1.845.467.967 159.392.733 $159.392.733,00 $27.039.292 $186.432.025,00 10,10% $2.083.318.907 192.639.924 1,10 $175.127.203,64 $31.727.989 $206.855.192,64 9,90%

$908.913.170 139.111.411 2,00 $69.555.705,50 $11.001.456 $80.557.161,50 8,90% $1.118.052.447 131.422.705 2,00 $65.711.352,50 $15.213.067 $80.924.419,50 7,20% $1.058.660.000 137.700.000 2,40 $57.375.000,00 $11.500.000 $68.875.000,00 6,50%

$899.838.460 165.400.000 2,60 $63.615.384,62 $15.400.000 $79.015.384,62 8,80% $738.618.750 163.300.000 3,20 $51.031.250,00 $12.500.000 $63.531.250,00 8,60%

A média histórica da participação do autor sobre o total do faturamento é de 8%.

Tendo sido o pico atingido em 1998 com 10,1 % enquanto a menor participação se dá em

1992 com 4,6%. A oscilação dos números indicam também a instabilidade da condição

deste agente da cadeia de valores. Para entendermos tal condição, outros dados seriam

necessários, como, o número de títulos por autor em primeira edição e reedição. Isto nos

permitiria averiguar a participação média dos autores neste bolo. É aceito pelo senso

comum deste mercado que são raros os escritores que conseguem viver de direitos autorais.

Quando observamos as categorias editoriais pode-se afirmar com poucas chances de erro

que o mercado didático é aquele que reserva as melhores possibilidades. Pois um autor

pode ter uma grande quantidade de títulos sendo comercializados ao mesmo tempo.

Dependendo, muitas vezes, de pequenas atualizações para manter por vários anos um título

ativo. O segundo segmento mais promissor é o de livros gerais, nos quais encontramos os

bestsellers literários e de auto-ajuda. O segmento religioso também possui muitos

69

bestsellers que se mantém ativos por longos períodos adquirindo uma dinâmica parecida

com o dos livros gerais. Finalmente temos o segmento científico, para o qual um autor

necessita de uma canonização do meio para tornar-se referência. Trata-se de um processo

longo e, muitas vezes, excludente, pois há espaço apenas para poucos grandes autores por

segmento do saber. É o que observamos com os “manuais”.

Os números da pesquisa permitem que façamos um exercício objetivando saber

quanto em média cada título receberia de direitos autorais. Dividimos a média anual de

títulos produzidos nos catorze anos pela média anual dos direitos autorais recebidos em

dólares. O resultado obtido foi de US$2.579,71 por título.

Tabela 05: Média de valores de direitos autorais obtidos por título.

Média de valores de DA por títulos

Média DA Média Títulos

Média US$

Média R$

$97.025.427,59 37.611 2.579,71 5.933,33

Esta matemática simplória é suficiente para evidenciar que um autor precisaria de

mais de uma dezena de títulos ativos e vendendo para poder sobreviver de direitos autorais.

Devemos ponderar que dentre estes títulos existe uma parte em domínio público e que, as

tiragens de livros didáticos são muito superiores às das outras categorias, tornando a média

dos direitos autorais recebida no segmento didático superior a obtida no demais.

Consideramos a ausência de informações acerca da condição do autor no mercado

editorial brasileiro a evidência do papel econômico secundário desta categoria diante do

quadro geral das edições. Um estudo mais aprofundado acerca dos diversos perfis que

compõem este grupo, bem como da importância que a autoria ocupa em suas vidas

econômicas ainda deverá ser realizado.

70

5. Segundo elo: edição.

Segundo dados estatísticos do Anuário Editorial Brasileiro de 2001 o número de

editoras de livros no Brasil era de cerca de 900. Ao que tudo indica este número só

aumentou nos últimos anos. O fenômeno pode ser explicado do ponto de vista econômico

pelo pequeno investimento necessário ao lançamento de alguns títulos. Diferentemente de

outros produtos das indústrias criativas como o filme e o CD, que exigem um investimento

inicial muito elevado, a produção comercial do livro é relativamente barata e, por isso,

acessível a empreendedores culturais que possuam pouco capital. O custo de edição de um

livro de autor nacional com cerca de 200 páginas e 2.000 exemplares de tiragem,

obedecendo aos mais contemporâneos padrões de design (capa colorida com orelha,

lombada quadrada, papel off-white no miolo, margens laterais arejadas etc), não sairá por

mais de R$ 10.000,00. Com cerca de cinco títulos já é possível se iniciar um negócio. A

pesquisa realizada para esta dissertação durante a Bienal do Livro de 2004 revela a

quantidade de títulos editados por ano pelas editoras brasileiras:

Gráfico 01: Número de títulos lançados por editoras anualmente

Quantos títulos edita por ano

19%

21%

19%16%

25% Até 04

Entre 04 e 10

De 11 a 20

Entre 21 e 40

Acima de 40

71

O quadro lateral indica até quantos títulos a editora edita por ano: até 05; entre 05 e 10; entre

11 e 20 etc.

Como podemos notar no gráfico cerca de 40% das editoras brasileiras editam menos

de 10 títulos por ano . A pesquisa realizada pelo Instituto João Pinheiro agrupa a produção

das editoras brasileiras em 4 categorias: Geral; científico, técnico e universitário; religioso e

didático. Procederemos à análise das séries históricas por subsetor editorial:

A categoria geral compreende os livros de literatura brasileira, estrangeira e infantil,

auto-ajuda profissional e pessoal. As editoras cuja parte principal do catálogo é dedicada a

estes temas compõem este subsetor conforme informam os realizadores da pesquisa:

Na nossa pesquisa dividimos as editoras em quatro subgrupos: editoras de livros

didáticos, editoras de obras gerais, editoras de livros religiosos e editoras de livros

técnico-científicos. Esses agrupam as editoras, segundo o principal tipo de atividade

editorial a que se dedicam, mas isso não quer dizer que todos os livros que uma editora

produza sejam restritos a essa grande divisão. Assim, uma editora cuja principal atividade

esteja na área de livros didáticos, também produz livros técnico-científicos ou de obras

gerais. E isso acontece em todos os subsetores. (CBL, 2003)

5.1 Subsetor de obras Gerais:

Tabela 06: Obras gerais: exemplares vendidos , títulos, tiragens, preços médios (1990-2003)

Geral

Ano Exemplares Faturamento Títulos Valor dólar Tiragens Pç. médio unid. Pç. Méd. dólar

1990 60.848.545 152.489.414 2,51 $2,51 1991 73.315.036 141.567.932 1,93 $1,93 1992 49.685.684 173.030.213 10.752 4.621 3,48 $3,48 1993 33.372.093 135.527.139 12.181 2.740 4,06 $4,06

72

1994 60.053.195 262.858.997 14.240 4.217 4,38 $4,38 1995 61.358.728 301.367.879 11.650 5.267 4,91 $4,91 1996 62.007.210 342.701.980 12.010 5.163 5,53 $5,53 1997 61.424.621 352.513.135 15.012 4.092 5,74 $5,74 1998 71.317.369 404.344.561 14.266 R$ 1,10 4.999 5,67 $5,15 1999 66.733.932 200.270.270 11.737 R$ 2,00 5.686 3,00 $1,50 2000 68.120.441 214.484.960 14.874 R$ 2,00 4.580 3,15 $1,57 2001 66.200.000 210.833.333 12.500 R$ 2,40 5.296 3,18 $1,33 2002 108.700.000 202.692.310 10.750 R$ 2,60 10.112 1,86 $0,72 2003 52.830.000 159.984.380 9.650 R$ 3,20 5.475 3,03 $0,95

Exemplares vendidos: A média anual da comercialização nos 14 anos da pesquisa

é de aproximadamente 64 milhões de exemplares. Dois anos se destacam na amostra

variando de forma acentuada da média, no ano de 1993 a comercialização foi de cerca de

33 milhões de exemplares, em 2002 foram vendidos cerca de 109 milhões de livros. Caso

eliminemos da amostra estes extremos chegamos a uma média de 63 milhões de

exemplares vendidos. Esta média é superada em cinco anos e não é atingida em outros sete

anos. Merece atenção o último ano da pesquisa que informa uma queda de

aproximadamente 16% em relação a média histórica. Os números expressivos de 2002 se

devem às compras governamentais para bibliotecas escolares.

Títulos produzidos: A média de produção de títulos na série histórica é de 12.500

por ano. O pico da diversificação é o ano de 1997 com mais de 15.000 títulos. Os últimos

cinco anos apresentam uma constante e consistente queda no número de títulos produzidos

com destaque para 2003, quando o número de títulos baixou da casa dos 10.000 pela

primeira vez em 12 anos.

Tiragens: As tiragens são o resultado dos títulos produzidos divididos pelos

exemplares produzidos, neste caso obtivemos uma média histórica de cerca de 5000

exemplares por tiragem. Caso negligenciarmos o ano de 2002 fortemente influenciado pelas

compras governamentais, então chegamos a uma média de 4,7 mil exemplares por tiragem.

73

Novamente as distorções cabem aos anos de 2002 e 1993. Os números dos últimos cinco

anos se ela mantém estáveis com uma tendência ao aumento das tiragens, fruto das recentes

diminuições do número de títulos.

Preço por exemplar: Os números da série histórica se encontram em dólares até

1997, passando em 1998 a serem cotados em reais. Isto representa um imenso problema

para nossa análise, pois a queda do preço médio e de faturamento é gritante com as

mudanças ocorridas após a desvalorização cambial ocorrida em 1999. O preço médio do

exemplar cairia mais de três vezes imediatamente e cerca de seis vezes se levarmos em

consideração os números de 2003. Nenhuma indústria resistiria à mudança tão abrupta, o

que pode indicar que os números talvez apresentem sutilezas que não conseguimos

detectar. Por isso, no que tange a faturamento e preço restringiremos a nossa análise a série

de valores em real que corresponde aos últimos seis anos da amostra. Neste caso o preço

médio em reais é de 3, 3 reais por exemplar ou 3,6 caso excluamos o ano de 2002, cujas

compras governamentais promovem uma significativa redução no preço médio.

Observamos que o preço mantém-se constante, próximo da média, embora a inflação

acumulada do período chegue a 44,59%. 34

Faturamento: Neste caso vivemos o mesmo dilema do preço, por isso adotamos a mesma

sistemática, nos restringimos à série reduzida cotada em reais (1998 a 2003). Observamos

dois extremos, em 1998 temos um pico de faturamento que é 150% maior que o de 2003, o

outro extremo da amostragem. Caso utilizás semos os números em dólares teríamos então

uma queda ainda mais significativa no faturamento do setor.

34 Segundo dados do IPCA (1998-2003) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor (IBGE/SNIPC) medido pelo IBGE.

74

Conclusões parciais diante dos referenciais econômicos: A economia de escala estática,

motivada pelo aumento de tiragens, vem ocorrendo nesse subsetor, pois as editoras têm

diminuído o número de títulos produzidos com um respectivo aumento de tiragens. O fato

não pode ser creditado apenas na conta da busca de economia de escala e pode ser

explicado também pela saturação que vivem os espaços de venda de livros no varejo (com

forte presença nas livrarias, esse é certamente o subsetor mais importante para o varejo, é

dele que brotam os bestsellers). Através da evolução do número de títulos perceberemos as

questões relacionadas à diversificação e à economia de escopo. De uma análise do volume

de vendas e tiragens chegaremos à economia de escala. E dos números da distribuição e

canais de vendas obteremos informações sobre rentabilidade, formação de preços e

tendências do mercado. Quanto à economia de escopo, notamos uma contradição entre esta

e a economia de escala. Pois como o número de exemplares mantém-se relativamente

constante, fica muito difícil obter este tipo de diversificação, pois cada novo título em

menor tiragem representa um impacto na economia de escala. Apenas com o aumento

considerável da produção de exemplares para atender ao governo é possível perceber este

tipo de economia, o que por outro lado não significou uma elevação significativa no

faturamento, mas certamente pode ter impactado positivamente na rentabilidade 35 das

editoras.

O aspecto faturamento é muito preocupante, pois existe claramente uma depressão

no mercado de livros. Os números mostram uma desaceleração significativa em 2003, que

teria também acontecido em 2002, caso não ocorresse à compra maciça do governo. A

análise da série completa ressalta que desde 1999 o mercado entrou em um novo patamar

35 A rentabilidade é obtida quando subtraímos dos valores alcançados com a venda dos produtos, os valores referentes aos custos fixos e variáveis que incidem sobre a produção, distribuição, divulgação e venda destes.

75

de faturamento, significativamente inferior ao do período anterior. O quanto este patamar é

inferior dependerá das explicações que tivermos sobre a relação dos números relativos à

mudança cambial, fenômeno que não será estudado nessa dissertação. Nos contentamos em

assinalar o decrescente faturamento e a manutenção estagnada do preço dos exemplares em

reais, quando confrontados com a inflação do período.

O conjunto de aspectos apresentados nos permitem afirmar que estamos diante de

uma crise no segmento de livros gerais, com queda de rentabilidade e pequena margem de

manobra econômica dos agentes em questão, pois para que se obtenha economia de escala

depende-se do governo e o recurso à economia de escopo encontra-se esgotado devido ao

reduzido espaço nas pratleiras.

5.2 Subsetor de obras científicas, técnicas e universitárias (CTU).

Tabela 07: Obras científicas, técnicas e universitárias: exemplares, títulos, tiragens, preços

médios (1990-2003)

Científico Técnico Universitário

Ano Exemplares Faturamento Títulos Valor dólar Tiragens Pç. médio unid. Pç. Méd. dólar

1990 37.846.825 185.305.579 4,90 $4,90 1991 77.982.682 227.046.376 2,91 $2,91 1992 15.132.886 133.540.558 7.216 2.097 8,82 $8,82 1993 19.741.991 152.284.571 7.777 2.539 7,71 $7,71 1994 27.466.492 301.252.282 10.359 2.651 10,97 $10,97 1995 25.033.047 356.337.690 11.542 2.169 14,23 $14,23 1996 23.265.749 347.916.779 9.337 2.492 14,95 $14,95 1997 19.909.956 351.561.805 10.442 1.907 17,66 $17,66 1998 21.403.866 396.774.719 10.590 R$ 1,10 2.021 18,54 $16,85 1999 19.403.417 183.911.980 11.654 R$ 2,00 1.665 9,48 $4,74 2000 21.566.480 201.052.450 13.130 R$ 2,00 1.643 9,32 $4,66 2001 22.500.000 180.416.670 12.250 R$ 2,40 1.837 8,02 $3,34 2002 21.200.000 145.384.620 11.830 R$ 2,60 1.792 6,86 $2,64 2003 20.000.000 122.812.500 9.560 R$ 3,20 2.092 6,14 $1,92

76

Exemplares vendidos: O declínio na produção e comercialização de exemplares deste

setor é bastante significativa. Quando comparamos o ano de 2003 com o de 1990, a queda

percebida é de 47%. Devemos ponderar que os primeiros três anos da década de 90

distorcem significativamente a série de 14 anos. O número médio de exemplares

produzidos em toda a série é de 26,6 milhões por ano. Quando confrontamos o ano de 2003

com a média do período, constatamos uma queda de aproximadamente 25%. Caso

subdividamos a série, nos concentrando nos últimos seis anos, então os números de 2003

ainda estariam abaixo, porém próximos da média, que seria de 21 milhões de exemplares

por ano.

Títulos Produzidos: A média de títulos produzidos na série histórica é de 10,5 mil títulos

por ano. Constatamos uma elevação significativa no número de títulos no triênio 1999-

2001, acompanhada por um declínio que em 2003 encontra-se aproximadamente 10%

abaixo da média histórica.

Tiragens: As tiragens no período não apresentam grandes novidades, a média é de 2,1 mil

exemplares por tiragem. Número abaixo do recomendável do ponto de vista da economia

de escala (que seria de no mínimo 3000 exemplares). Durante o período as tiragens

declinaram nos anos em que o número de títulos subiu. No ano de 2003, o número das

tiragens encontra-se alinhado a média histórica.

Preço por exemplar: Para avaliarmos o preço por exemplar adotamos a divisão da série,

pois os números em dólares e a mudança cambial podem contaminar nossa análise.

Observando os números em reais temos uma média por exemplar de R$ 9,70 por ano entre

1998 e 2003. Caso eliminemos desta série o ano de 1998, cujo preço atingiu o dobro da

série observada, então teremos a média de R$ 7,96 por exemplar. De qualquer forma temos

77

um declínio constante no preço em real pago por unidade. O valor obtido por um livro em

2003 é 35% menor do que o mesmo livro obteria em 1999.

Faturamento: Assim como o preço, o faturamento na série histórica é declinante. Optamos

pela subdivisão que leva em conta os números dos últimos seis anos expressos em reais. A

média histórica de faturamento é de cerca de R$ 205 milhões, o ano de 2003 encontra-se

40% abaixo da média da série. No ano de 2003 o faturamento foi 33,5 % menor que o

alcançado em 1999. Verificamos um constante declínio, em especial nos últimos quatro

anos. Neste caso poderíamos citar a ascensão da Internet e dos meios de reprodução

eletrônica como um dos fatores que vem canibalizando os resultados.

Conclusões parciais diante dos referenciais econômicos: A economia de escala estática

não vem sendo alcançada neste setor. Observamos um movimento contrário, sobretudo no

triênio 1999-2001, que sofre um refluxo nos anos subseqüentes, sem que as tiragens

aumentem em relação a média da série história geral. Novamente a contradição entre

economia de escala e escopo se faz presente. Quando diversificamos os títulos nos anos de

1999 e 2000, temos uma significativa queda nas tiragens, cerca de 18%, ameaçando os

possíveis ganhos de escala. E aqui também se faz drástica a questão ponto de venda. Como

a categoria CTU não é pródiga em vendas, seu espaço nas livrarias é limitado, a

diversificação neste caso pode agravar a situação dos títulos marginais, aqueles que jamais

serão expostos, gerando a inversão do efeito Tostines36 , não vende porque não é exposto,

não é exposto porque não vende. Quando comparamos as evoluções do número do

segmento CTU e a do número de matriculados nos cursos superiores em todo o país,

verificamos que o aumento da base de potenciais compradores não representou qualquer

36 “Não vende porque não é exposto, não é exposto porque não vende. Paráfrase da famosa frase do comercial de biscoitos Tostines, veiculado na televisão na s décadas de 80 e 90 do século XX, que dizia: “Vende mais porque é fresquinho, é fresquinho porque vende mais.”

78

alento ao declínio de vendas e a estagnação da produção. E mais, o que temos é uma queda

absoluta e relativa do consumo de livros por parte dos universitários como mostra o quadro

abaixo,

Tabela 08: Consumo per capita de livros do subsetor CTU, por estudantes universitários

(1990, 1998 e 2003)37

De 25 exemplares por aluno matriculado no ensino superior em 1990, o consumo de

livros per capita da categoria CTU, declinou para cinco exemplares em 2003. Ou seja, não

estamos diante apenas de uma questão de variação mercadológica causada pelo declínio da

renda, ou pela elevação no preço do livro. Como vimos, o preço médio por exemplar vem

caindo de forma significativa. O que temos aqui é o indício de uma mudança mais

profunda, de natureza cultural e que acreditamos, não pode ser explicada simplesmente pelo

mito da idade de ouro, qual seja, que em décadas pretéritas nossos estudantes universitários

liam mais, pois o ensino era de melhor qualidade, com a massificação da oferta de vagas,

tivemos um declínio tão acentuado na qualidade que a leitura declinou acentuadamente.

Aceitamos as premissas, mas não a conclusão. O processo de massificação pode ter

representado uma queda na qualidade da educação superior, mas o declínio da leitura que

se processa entre os anos de 1990 e 1998 é ainda maior que o observado entre os anos de

37 Os números foram obtidos junto ao INEP, órgão do ministério da educação responsável pelas estatísticas educacionais. Todas as séries históricas podem ser acessadas no site: www.mec.gov.br

Ano Exemplares Alunos educ. sup. Consumo per capita 1990 37.846.825 1.540.080 25

1998 21.403.866 2.125.958 10

2003 20.000.000 3.887.022 5

79

1998 e 2003, sem que no primeiro dos períodos citados estivéssemos vivendo a plenitude

do processo de massificação da educação superior, que no segundo período é mais intensa.

Uma conclusão apressada seria atribuir à aquisição de conhecimentos pela Internet a

responsabilidade pela queda na leitura de livros impressos. Mas este argumento pode ser

refutado por uma análise da capilaridade do acesso à rede no Brasil que se torna

significativo apenas nos primeiros anos do século XXI, portanto, não explicando o declínio

da década de 90 do século passado. O fato de não podermos justificar este declínio

exclusivamente com a emergência da Internet, não significa que este fenômeno seja

descartável, sobretudo nos dias atuais, quando a inclusão digital das classes A e B38 é

bastante significativa. Algumas hipóteses podem ser levantadas diante deste fenômeno:

1. A leitura de capítulos ou trechos de livros fortemente incentivada nos ambientes

acadêmicos tem fragmentado a leitura. Na medida em que o número de títulos

cientifico publicados aumenta, acentua-se a necessidade da leitura fragmentada.

2. O livro como um bloco uno e indivisível, projeção da potência e unicidade do

homem moderno não corresponde mais a atual fragmentação da identidade dos

indivíduos moderno-tardios.

3. A proliferação das copiadoras no entorno e dentro das faculdades durante a década

de 90 do século XX, acentuou a queda nas vendas de livros.39

38 Utilizo a divisão de classes de que se valem as empresas de pesquisa de mercado, índice homologado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa - ANEP, para o qual as classes se dividem em A1, A2, B1, B2, C, D e E – conforme as respectivas rendas familiares aferidas pelo IBOPE. Mais informações podem ser obtidas no site da ANEP no seguinte endereço eletrônico, acessado em 02.07.2005, as 18:00 horas: www.anep.org.br 39 Para cada livro técnico - científico vendido no Brasil, quatro são copiados. Esta é uma das conclusões da dissertação de mestrado "Academia e Pirataria: o livro na universidade", defendida no Programa de Engenharia de Produção da COPPE por Ana Cláudia Ribeiro. Dados da dissertação revelam que 80% das cópias de livros são feitas dentro das universidades.

80

4. O desenvolvimento de uma cultura de reaproveitamento de livros usados

recolocados no mercado pelos “sebos”, impacta o consumo de livros novos.

5. As formas de reprodução gráfica, outrora disponíveis apenas através de empresas,

hoje se encontram ao alcance de usuários domésticos através dos multifuncioanais

aparelhos que realizam a digitalização, cópia e impressão de textos e imagens.

6. A gama variada de conteúdos disponíveis na Internet, encontrados através de

mineradores de dados como o Google e, muitas vezes enfeixados em portais

horizontais40, atendem parte da demanda por conhecimento, outrora atendida pelos

livros.

Estas hipóteses serão retomadas no decorrer dessa dissertação e serão confrontadas com um

conjunto de pesquisas as quais tivemos acesso.41

5.3 Subsetor obras religiosas.

Tabela 09: Obras religiosas: exemplares, títulos, tiragens, preços médios (1990 -2003)

Religiosos

Ano Exemplares Faturamento Títulos Valor dólar Tiragens Pç. médio unid.

Pç. Méd. dólar

1990 25.309.430 56.427.730 2,23 $2,23 1991 34.695.477 41.659.413 1,20 $1,20 1992 21.102.365 47.400.911 3.389 6.227 2,25 $2,25 1993 48.135.233 43.723.441 4.049 11.888 0,91 $0,91 1994 33.176.563 84.449.496 4.237 7.830 2,55 $2,55 1995 56.232.809 140.233.806 4.207 13.366 2,49 $2,49 40 Portais verticais dedicam-se a uma única área, portais horizontais dedicam-se a muitas áreas e possuem múltiplos canais. 41 Pesquisa: “Portal cliente Smiles”, que entrevistou cerca de 500 detentores do cartão Smiles da Varig, pertencentes as classes A e B, no ano de 2002, verificando seus hábitos de acesso a internet e leitura de livros eletrônicos. Pesquisa “ Retrato da leitura no Brasil, realizada em 2001 sob encomenda da Câmara Brasileira do Livro. Os números da pesquisa Ibope Net-retings sobre acesso a Internet e os da Câmara de Comércio Eletrônico sobre comércio na Internet brasileira.

81

1996 64.979.834 148.014.027 3.602 18.040 2,28 $2,28 1997 64.089.015 143.888.085 5.416 11.833 2,25 $2,25 1998 59.123.165 147.890.424 5.591 R$ 1,10 10.575 2,50 $2,27 1999 45.176.985 73.549.100 5.445 R$ 2,00 8.297 1,63 $0,81 2000 46.167.147 75.227.270 7.467 R$ 2,00 6.183 1,63 $0,81 2001 35.700.000 72.083.333 6.300 R$ 2,40 5.667 2,02 $0,84 2002 29.700.000 70.384.615 4.950 R$ 2,60 6.000 2,37 $0,91 2003 26.000.000 60.000.000 4.550 R$ 3,20 5.714 2,31 $0,72

Exemplares vendidos: A comercialização de livros religiosos observa um acentuado

crescimento na segunda metade da década de 90. Esta aceleração no consumo de

exemplares sofre uma pausa a partir de 1998 quando se inicia um declínio, retornando o

consumo aos patamares do início dos anos 90 do século passado. Uma possível explicação

para esta aceleração pode estar vinculada ao perfil dos consumidores de livros religiosos,

com predominância das classes C e D, bastante sensíveis aos movimentos da economia. O

período que vai de 1995 a 1998 é exatamente aquele em que o plano real surtiu os melhores

efeitos na melhoria do poder de compra das camadas inferiores da pirâmide social. Além de

comprarem mais frango, material de construção e dentaduras, ícones do sucesso do plano

Real, também se consumiram mais livros religiosos. A atual produção de exemplares

encontra-se 39% menor do que a média anual da série de 14 anos.

Títulos Produzidos: O número de títulos produzidos apresenta uma dinâmica ascendente

durante a década de 90 do século XX, na virada do milênio temos também uma mudança na

dinâmica do crescimento dos títulos. Novamente percebemos em mais um dos segmentos o

conflito entre ganho de escopo (obtido com a diversificação) e o ganho de escala (obtido

com o aumento das tiragens). Este subsetor, de todos o mais sensível as variações do preço

de capa, certamente está buscando um patamar de equilíbrio entre títulos e tiragens. Os

números de 2003 estão cerca de 9% abaixo da média histórica.

82

Tiragens: Na série de 12 anos as tiragens médias são de 9,3 mil exemplares, número

superior a das categorias anteriormente analisadas e que ressaltam a penetração popular das

obras religiosas. A dinâmica observada é de aumento gradual até 1997 e depois um declínio

constante chegando em 2003 a tiragens 8% menores que as observadas no início da série. A

dinâmica do declínio dos títulos produzidos, aponta para uma busca do mercado por uma

elevação no número de exemplares por tiragem.

Preço por exemplar: A característica popular dos consumidores de livros deste subsetor

evidencia-se, sobretudo na dinâmica do preço por exemplar que se mantém relativamente

estável durante toda a série histórica. Entretanto, devemos destacar a estagnação deste

preço fruto da inflação acumulada no período.

Faturamento: Encontra-se em declínio nos últimos quatro anos. Como se trata de um

subsetor bastante dependente da renda, poderíamos explicar a acentuada queda a partir do

declínio da renda média dos brasileiros observada neste período.42

Conclusões parciais diante dos referenciais econômicos: O livro religioso possui

peculiaridades que o distingue dos demais segmentos: não possui qualquer penetração nas

compras governamentais; é especialmente sensível a mudança econômica; excessivamente

dependente do preço de capa; possui um número elevado de pontos de vendas, desde os

canais tradicionais (livrarias), passando por livrarias e bancas especializadas, bem como a

comercialização nos próprios templos. Estes fatores de capilaridade nos levam a relativizar

mais intensamente os números deste subsetor apresentados pela CBL, pois nos parece que

42 Números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE entre os anos de 1999 e 2003 mostram o seguinte quadro da renda dos brasileiros ocupados com mais de 10 anos de idade: Até ½ salário mínimo eram 6% em 1999 e 10 % em 2003. Mais de ½ a 1 salário mínimo eram 14,5% em 1999 e 17,8% em 2003. Mais de 1 a 3 salários mínimos eram 37,1% em 1999 e 39% em 2003. Mais de 3 a 10 salários eram 20,7% em 1999 e 18,3 em 2003. Os números mostram um cascateamento das camadas mais altas da renda em direção as camadas mais baixas. Estes números podem ser obtidos no site do IBGE, acessado em 02.09.2005, as 18:00 h, no seguinte endereço eletrônico, www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/tabelas/trabalho_tabela02.htm

83

estão muito distante de corresponderem a dinâmica empiricamente perceptível deste setor

que apresenta, por exemplo, nas bienais do livro, uma performance superio r a das outras

categorias. Fato relevante deste segmento, em especial entre os evangélicos, é a presença de

muitas editoras internacionais, a maioria de origem americana, que aportaram no Brasil, no

final do século XX.

5.4 Subsetor obras didáticas.

Tabela 10: Obras didáticas: exemplares, títulos, tiragens, preços médios (1990-2003)

Didático

Ano Exemplares Faturamento Títulos Valor dólar Tiragens

Pç. médio unid.

Pç. Méd. dólar

1990 72.847.992 235.152.133 3,23 $3,23 1991 86.138.243 267.962.213 3,11 $3,11 1992 70.163.457 332.515.128 6.166 11.379 4,74 $4,74 1993 161.789.628 312.965.937 7.863 20.576 1,93 $1,93 1994 146.308.441 612.813.083 9.417 15.537 4,19 $4,19 1995 232.001.678 1.059.437.654 13.104 17.705 4,57 $4,57 1996 238.898.292 1.057.578.701 18.366 13.008 4,43 $4,43 1997 202.728.442 997.504.942 20.590 9.846 4,92 $4,92 1998 258.490.241 1.134.309.203 19.299 R$ 1,10 13.394 4,39 $3,99 1999 158.365.212 451.181.816 14.861 R$ 2,00 10.656 2,85 $1,42 2000 198.381.092 539.428.698 9.640 R$ 2,00 20.579 2,72 $1,36 2001 175.000.000 481.250.000 9.850 R$ 2,40 17.766 2,75 $1,15 2002 161.000.000 420.384.615 12.800 R$ 2,60 12.578 2,61 $1,00 2003 157.000.000 395.821.875 11.830 R$ 3,20 13.271 2,52 $0,79

Exemplares vendidos: A evolução dos exemplares comercializados pelo segmento

didático obedecem a lógica de crescimento acentuado durante a maior parte da década de

90, iniciando um declínio em 1999, que se confirma nos últimos três anos.

84

Títulos Produzidos: O número médio de títulos produzidos em 12 anos é de 12,8 mil por

ano, com um ápice no biênio 1997/1998, e variações constantes nos anos subseqüentes. O

número de títulos produzidos em 2003 encontra-se 6% abaixo da média do período.

Tiragens: A tiragem média do período é de 14,7 mil exemplares, com destaque novamente

para o biênio 1997/1998, que podem ser considerados anos excelentes para o mercado

didático, do ponto de vista de economia de escopo.

Preço por exemplar: O preço é um dos maiores problemas deste subsetor. Muito

dependente das compras governamentais, é suscetível as pressões exercidas pelo maior

comprador. Esta dependência cresce no decorrer da década de 90, refletindo na depressão

dos preços por exemplar, cuja média dos últimos 5 anos é de R$ 2,69.

Faturamento: Quando observamos toda a amostra verificamos que o faturamento varia

significativamente de um ano para outro. Observando a série que vem de 1999 a 2003 cujos

números estão expressos em reais (R$), verificamos uma queda suave, mas constante. É

importante destacar que o governo vem adotando nos últimos seis anos o processo de

reaproveitamento dos livros para alunos das séries imediatamente anteriores, o que pode

explicar os recentes resultados negativos. As mudanças neste cenário dependem da

diversidade da cesta de compras governamental. A compra de dicionários e livros

paradidáticos e de literatura tanto para a distribuição individual quanto para as bibliotecas

escolares pode melhorar os números dos próximos triênios.

Conclusões parciais diante dos referenciais econômicos: Do ponto de vista da economia

de escala observamos que o subsetor didático vive oscilações muito abruptas. Como a

preparação e a venda de livros didáticos exige investimentos muito superiores a dos outros

subsetores, talvez a análise anual seja insuficiente para entendermos sua dinâmica. Os

agrupamentos em três ou quatro anos dos resultados poderiam amenizar estas oscilações.

85

Isto se justifica pelas compras governamentais que substituem livros adotados, em pelo

menos três modalidades: livros danificados (anual), novas edições (a cada três anos) e

livros de referência e obras para bibliotecas (sem definição de periodicidade). Tal

agrupamento, entretanto não mudaria a depressão vivida pelo preço médio dos exemplares,

mas certamente poderia explicar a sobrevivência deste segmento diante de quedas

acentuadas no faturamento e na comercialização de exemplares. Este subsetor vem

recebendo nos últimos anos a concorrência dos sistemas de ensino (Objetivo, Anglo,

Universitário, Positivo, etc) que praticamente dominam a produção de material didático

para as escolas particulares. A dependência acentuada do setor público deve-se a pelo

menos dois fatores, por um lado à necessidade de ganhar escala mantendo as grandes

tiragens, por outro a ameaça das apostilas dos sistemas de ensino.

5.5 Uma visão geral.

Em seguida agrupamos os subsetores da série histórica, desta maneira teremos uma

visão geral da economia do livro no Brasil. Os itens avaliados são: títulos produzidos,

exemplares produzidos, tiragens, faturamento e rentabilidade. As questões da economia de

escala, economia de escopo e preço por exemplar serão tratadas dentro do item

rentabilidade. Encerramos esta abordagem geral traçando um panorama do consumo per

capita de livros no Brasil e comparando-o com o de outros países.

Exemplares produzidos : A produção cresceu significativamente durante a década de

noventa do século XX atingindo seu ápice em 1998, quando principiou um declínio. Esse é

tão acentuado que coloca os números de 2003, abaixo da comercialização alcançada em

1991 (ver tabela 11 ).

86

Títulos produzidos: É interessante notar que durante um período considerável ocorreu

uma tendência pelo aumento dos títulos em primeira edição (ver tabela 11) que saltaram de

10.871 em 1990, para 18.305 em 2000, quando se iniciou um declínio desta tendência, em

2003 se lançaram 13.340. O total de títulos produzidos em 2003 esteve abaixo da média

histórica

Tiragens : O comportamento das tiragens neste período obedece a uma lógica de pequena

queda e estabilidade, quando o lhamos para o mercado como um todo.

Tabela 11: Exemplares, títulos produzidos e tiragens (1990-2003)

Exemplares, Títulos Produzidos e Tiragens - Tabela 01 Exemplares Títulos Ano 1° edição Reedição Totais 1° edição Reedição Totais Tiragens 1990 80.362.000 159.030.000 239.392.000 9.806 12.673 22.479 10650 1991 127.458.000 176.034.000 303.492.000 10.871 17.579 28.450 10668 1992 74.590.658 115.301.470 189.892.128 10.069 17.518 27.587 6883 1993 61.143.569 161.378.749 222.522.318 10.799 22.710 33.509 6641 1994 73.449.100 172.537.112 245.986.212 12.564 25.689 38.253 6431 1995 86.545.568 244.288.752 330.834.320 12.795 27.708 40.503 8168 1996 64.047.022 312.700.115 376.747.137 12.994 30.321 43.315 8698 1998 94.535.272 274.651.202 369.186.474 15.098 34.648 49.746 7421 1999 58.117.954 237.324.402 295.442.356 13.997 29.700 43.697 6761 2000 92.066.380 237.453.270 329.519.650 18.305 26.806 45.111 7305 2001 85.600.000 245.500.000 331.100.000 15.350 25.550 40.900 8095 2002 143.780.000 194.920.000 338.700.000 15.080 24.720 39.800 8510 2003 107.850.000 191.550.000 299.400.000 13.340 22.250 35.590 8412

Tiragem média 297.862.661 Títulos média 37.611 7920

Rentabilidade: Um dos dados importantes referente à rentabilidade é a comparação entre

exemplares lançados em primeira edição e exemplares lançados em reedição. A Tabela 11

mostra que entre os anos de 1993 e 1999, ocorreu uma forte tendência por imprimirem-se

muitos mais livros em reedição que em primeira edição. Este cenário é favorável à

rentabilidade das empresas, já que na primeira edição encontram-se concentrados os principais

custos de pré- impressão e preparação como: tradução, revisão, editoração, fotolitos etc. Os

quais já se encontram amortizados nas reedições que representam o lucro para a maioria dos

editores. O tamanho médio das tiragens caiu cerca de 25%, considerando-se o conjunto do

87

mercado, o que representaria um desastre do ponto de vista da economia de escala, entretanto,

esta queda pôde ser absorvida, graças aos ganhos tecnológicos corridos na impressão e pré-

impressão, que permitiram a execução de tiragens menores com custos menores. Estes ganhos

tecnológicos permitiram que o fenômeno da economia de escopo se expandisse até alcançar um

patamar de relativa estabilidade. Refiro-me ao aumento gradativo do número de títulos em

primeira edição e reedição, que encontram no período uma média de 37,6 mil títulos por ano, e

no ano de 2003 esteve um pouco abaixo desta média. Veremos que a situação do varejo

também afeta diretamente a questão da economia de escopo. Outro indicativo de rentabilidade

encontra-se na tabela 12, e apresenta em dólares o preço médio de exemplares vendidos. Os

valores obtidos nos últimos dois anos encontram-se 30% abaixo da média dos últimos 14 anos.

Tabela 12: Exemplares Vendidos, Faturamento e Preço Médio

Exemplares Vendidos, Faturamento e Preço Médio

Ano Exemplares Vendidos Faturamento (US$) Valor dólar Preço médio

1990 212.206.449 901.503.687 4,25 1991 289.957.634 871.640.216 3,01 1992 159.678.277 803.271.281 5,03 1993 277.619.986 930.959.670 3,35 1994 267.004.691 1.261.373.858 4,72 1995 374.626.262 1.857.377.029 4,96 1996 389.151.085 1.896.211.487 4,87 1997 348.152.034 1.845.467.967 5,30 1998 410.334.641 2.083.318.907 R$ 1,10 5,08

1999 289.679.546 908.913.170 R$ 2,00

3,14

2000 334.235.160 1.118.052.447 R$ 2,00

3,35

2001 299.400.000 1.058.660.000 R$ 2,40

3,03

2002 320.600.000 899.838.460 R$ 2,60

2,61

2003 255.830.000 738.618.750 R$ 3,20

2,89 Média 3,97

Uma das formas clássicas e aumentar a rentabilidade decorre da economia obtida

nos gastos com capital humano. O ganho de produtividade obtido com evolução

tecnológica e desenvolvimento de processos pode se transformar em aumento de

88

rentabilidade. Um dos indicativos deste ganho pode der detectado na tendência do emprego

dentro do setor. A tabela e o gráfico abaixo ilustram este processo. Os números indicam

uma acentuada queda na utilização do capital humano interno. A queda entre o início da

série e os dias atuais é de cerca de 54%. Uma conclusão apressada poderia creditar à

terceirização este papel, entretanto, como podemos notar na tabela e no gráfico, o número

de terceirizados também diminuiu, em ritmo parecido até 2001, quando parece compor-se

um novo equilíbrio, cuja tendência expressa no gráfico 2 é pela convergência do número de

empregados fixos e terceirizados. Não possuímos números quanto aos salários do setor,

mas sabemos que de maneira geral a terceirização representa custos menores para as

empresas.

Tabela 13: evolução dos postos de trabalho internos e terceirizados nas editoras brasileiras.

EMPREGO Anos empregados terceirizados 1990 1991 27.661 1992 19.759 10.293 1993 20.992 8.510 1994 21.946 10.624 1995 20.630 11.145 1996 21.363 6.748 1997 19.918 4.372 1998 16.151 3.906 1999 15.431 4.157 2000 15.055 5.849 2001 13.900 5.200 2002 14.600 7.400 2003 12.970 7.800

Gráfico 02: evolução dos postos de trabalho internos e terceirizados nas editoras brasileiras.

89

0

5.000

10.000

15.000

20.000

25.000

30.000

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

1990-2003

Vag

as Seqüência1

Seqüência2

Faturamento: A tabela 13 mostra que o faturamento do mercado editorial viveu

dois momentos distintos nestes catorze anos, primeiro houve uma forte alta, cujo ápice é

novamente 1998, quando em dólares o mercado faturou US$ 2.083.318.907,00 contra US$

901.503.687,00 faturados em 1990. O segundo momento é marcado pela mudança cambial

promovida em 1999. Temos que analisar mais detalhadamente o que representou o plano

real e a moeda real equiparada ao dólar para este mercado, já que seu melhor desempenho

em todos os indicadores encontra-se circunscrito ao período que envolve tal equiparação.

Entretanto, configuramos o segundo momento como sendo de queda de faturamento, pois,

caso comparemos os anos de 2001, 2002 e 2003 com os anos de 1990, 1991 e 1992,

veremos que houve um recuo do faturamento em dólares, no qual o resultado de 2003 foi

18% menor que o de 1990.

Quando cruzamos a questão do faturamento com os aspectos abordados no quesito

rentabilidade notamos dois movimentos distintos. Por um lado temos ganhos significativos

de produtividade refletidos na diminuição dos custos de mão de obra e por outro uma

significativa diminuição no faturamento, o que para outros setores da economia significaria

à morte, mas para as editoras parece ter representado apenas um abalo sísmico. Trata-se de

um segmento com características muito peculiares. O custo fixo da operação editorial é

muito baixo. Uma pequena sala comercial é suficiente para abrigar esta operação. Quase

todo o processo pode ser terceirizado. A autoria ocorre fora da casa editorial, a revisão e

editoração podem ser terceirizadas, a operação comercial pode ser controlada, por apenas

90

uma pessoa. A produção gráfica e a logística encontram-se dentro do escopo das gráficas.

Logo, o crescimento de uma editora ou o seu encolhimento é uma operação simples, esta

flexibilidade poderia explicar a sobrevivência das editoras em face à constante queda de

faturamento e a persistente estagnação do mercado.

6. As editoras e a inclusão digital.

Pesquisa realizada para esta dissertação com 103 editores, durante a Bienal

Internacional do Livro de São Paulo, no mês de abril de 2004, verifica a inclusão digital dos

editores. E está dividida em cinco questões:

Possui home page?

Gráfico 03 – Editoras que possuem home -page

simnão

S1

76

24

0

20

40

60

80

Possui home page

O resultado se encontra em percentuais : 76% das editoras pesquisadas possuíam

home-page em abril de 2004.

Possui e-mail

91

Gráfico 04: Editoras que possuem e -mail

simnão

S1

92

80

20

40

60

80

100

Possui e-mail

Seqüência1

Noventa e dois por cento dos editores possuíam e-mail, contra oito por cento que ainda não

possuíam.

Freqüência de acesso a Internet

Gráfico 05: Acesso a internet

Frequência de acesso à internet

27

12 5

35

21

1 vez ao dia

3 vezes ao dia

trabalha com caixa de e-mail aberta

1 vez por semana

Outras pessoasconsultam para mim

A freqüência de acesso obteve os seguintes resultados percentuais:

Uma vez ao dia: 35%

Três vezes ao dia: 21%

92

Trabalha com a caixa de e-mail aberta: 27%

Outras pessoas acessam por mim: 5%

Uma vez por semana: 12%

Percentual de vendas na Internet sobre o total das vendas gerais.

Gráfico 06: Receita obtida na internet

% receita obtida na internet

38

41

13

5

3

0 10 20 30 40 50

Nenhum

Até 2,99%

De 3% a 5,99 %

De 6 % a 10 %

+ de 10%

Das editoras pesquisadas 38% não obtém qualquer receita com a Internet. Cerca de

três por cento obtêm mais de 10% de seu faturamento total pela rede. Cinco por cento

obtém entre 6% e 10% de seu faturamento na Internet e cerca de 41% das editoras obtém

até 2,99% de seu faturamento pela Internet.

O levantamento realizado com uma ampla amostragem demonstrou o papel marginal que a

Internet ocupa na vida econômica das editoras, e de forma geral confirma os dados da

pesquisa da CBL – SNEL, que aponta como sendo de 0,3%, o número dos exemplares

vendidos por este canal. Apesar disso, vemos que um pequeno número de editoras

consegue obter bons resultados com a rede chamando atenção para o processo e suscitando

algumas questões:

Como é que as editoras estão trabalhando com a Internet? Será que o despreparo na

construção dos sites e o ceticismo do meio não estão atrapalhando os resultados? No

capítulo cinco de nossa dissertação, quando analisarmos uma livraria tradicional, estaremos

93

também analisando cerca de 30 sites de editoras tentando avaliar que aspectos podem estar

contribuindo para o bom desempenho de poucos e para o insucesso da maioria no canal de

comercialização digital.

7. O terceiro elo: impressão.

O mercado gráfico brasileiro possui mais de 14.000 gráficas, dessas, cerca de 10%

são editoriais, ou seja, imprimem livros, revistas e jornais. Respondem por

aproximadamente 25% da produção gráfica total e entre elas encontram-se as maiores

empresas do setor, algumas pertencem a grupos internacionais que no fina l do século XX

chegaram ao Brasil, adquirindo importantes plantas de gráficas editoriais. O mercado

gráfico brasileiro investiu pesadamente entre os anos de 1995 e 1997; um indicativo destes

investimentos pode ser constatado pelo número de impressoras rotativas que saltou de 25

em 1995 para 95 em 1999 ( Mello, 1999: 24). A atualização tecnológica das grandes

gráficas gerou um movimento em cascata, com as médias e pequenas adquirindo os

equipamentos usados das grandes. Desta maneira a capacidade de oferta de todo o parque

aumentou em progressão geométrica. Este fenômeno salutar nos mercados em expansão

pode representar problemas para mercados deprimidos. Os números recentes do papel do

setor editorial no mercado gráfico indicam uma queda no faturamento total em dólares, que

foi de US$ 1,68 bilhão em 2000, contra US$ 1,14 bilhão em 2003. O peso relativo do

segmento editorial no total de impressões tem se mantido constante nos últimos quatro

anos, algo em torno de 25%.43

43 Estas conclusões são homólogas as obtidas por Fábio Sá Earp e George Kornis, em seu recente estudo.

94

Nos últimos dez anos, o mercado gráfico brasileiro intensificou seu processo de

automação, a presença da microinformática nas plantas gráficas representou uma

diminuição significativa no número de empregados, o que aumentou significativamente a

produtividade per capita do capital humano. Por exemplo, uma gráfica editorial de porte

médio, que tem hoje 11 anos de vida, em 1995 tinha cerca de 150 funcionários, atendia

pouco mais de 50 editoras em sua carteira. Hoje, esta mesma gráfica tem 60 funcionários,

atende cerca de 90 editoras e produz em números absolutos de exemplares 45% mais que

nos anos noventa. Este fenômeno ocorreu em todo o parque gráfico e foi motivado por dois

movimentos convergentes, por um lado, os aportes tecnológicos, de outro, a pressão da

concorrência desencadeada com o aumento excessivo da oferta que obrigou as gráficas a

aprimorarem seus processos. O resultado final disto tudo para os livros é que o custo

industrial de impressão caiu significativamente, permitindo tiragens menores e facilitando a

entrada em operação de novas casas editoriais. Este fato também pode ser notado na pré-

impressão. Apenas de forma ilustrativa, em 1997 os fotolitos em uma cor de uma revista de

52 páginas custavam R$ 3.000,00, hoje o preço destes fotolitos não ultrapassa R$ 800,00.

Mesmo desconsiderando a inflação do período, estamos diante de valores muito reduzidos.

Para o caso dos fotolitos usados em livros a economia poderia ser ainda maior, já que com

uma impressora laser, qualquer editora assume capacidade de produção de fotolitos para

livros texto, e gastando cerca de R$ 2,00 por página.

Muitas gráficas adotaram a tecnologia conhecida como direct to plate, processo que

permite aos editores enviarem arquivos fechados pela Internet, recebendo em 24 horas as

provas de impressão, desta forma queimando a etapa dos fotolitos. Este processo apresenta

grandes vantagens para livros coloridos (principalmente livros didáticos).

95

A relação editora e gráfica sempre foi muito estreita. Quando analisamos a história

do livro, verificamos que nos quatro séculos que sucedem a invenção da prensa de tipos

móveis, grande parte das gráficas era propriedade de editores ou vice-versa. No imaginário

popular quando alguém se diz editor, muitas vezes é confundido com impressor. Porém,

com a intensificação da divisão do trabalho e com a revolução de controle perpetrada na

segunda revolução industrial, estas duas atividades, foram gradativamente separadas.

Primeiro como operações diferentes no seio de uma mesma empresa e mais recentemente

como empresas diferentes. Isto não significa que não temos editoras que possuam parques

gráficos, mas este número é decrescente. Do ponto de vista administrativo podemos afirmar

que as editoras estão cada vez mais focadas em seu negócio principal. No ano de 2003,

cerca de 63 milhões44 de exemplares foram impressos em gráficas próprias, contra cerca de

235 milhões em gráficas de terceiros.

8. O quarto elo: distribuição.

Apesar de não abordarmos a questão das distribuidoras de uma forma mais

aprofundada, é importante que apresentemos algumas questões mais gerais que

caracterizam este elo da cadeia de valores do livro. Assim como para as livrarias não se

possui um número exato de distribuidoras em atividade no Brasil. É certo que o número

diminuiu após a implantação do Plano Real, pois muitas distribuidoras que se valiam da

inflação e do mercado financeiro para obterem seus maiores ganhos, perderam fonte

44 A presença aparentemente significativa ( mais de 20%) de exemplares produzidos em gráficas próprias deve ser relativizada, pois a maioria destes exemplares são produzidos em poucas gráficas, em especial a das editoras religiosas que atuam no segmento didático e a dos grandes jornais que fazem coleções com grandes tiragens para bancas de jornais.

96

significativa de receita e quebraram. O Anuário editorial brasileiro dos anos de 2000-2001

listava aproximadamente 200 em atividade. As distribuidoras cumprem um papel relevante

na cadeia de valores. Como os mais de 250 mil títulos em catálogo estão pulverizados em

mais de 900 casas editoriais, as distribuidoras agrupam estes títulos num único estoque,

permitindo que as livrarias façam pedidos diários para atenderem seus clientes. O que seria

economicamente inviável, caso tivessem que pedir diretamente às editoras, pois pediriam

um título para uma, dois título para outra, jamais atingindo o pedido mínimo. No caso do

Brasil, país de dimensões continentais esta questão é ainda mais crítica, pois as

distribuidoras acabam funcionando como estoques avançados das editoras, permitindo que

um livro chegue às regiões distantes do “centro”, mais rapidamente e com custos menores.

Uma distribuidora pode representar centenas de editoras e distribuir livros para milhares de

pontos de vendas. A Catavento, maior distribuidora brasileira, afirma distribuir para mais

de 300045 pontos de vendas.

No processo de divisão dos resultados de vendas as distribuidoras recebem entre

10% e 20% do preço de capa dos livros. Muitas vezes realizam vendas diretas, obtendo

resultados mais significativos. Muitas livrarias se constituem em distribuidoras para de

obterem melhores descontos das editoras.

9. O quinto elo, as vendas: livrarias e outros pontos de vendas.

Qual o número dos pontos de vendas no Brasil? Qual a variedade de tipos de pontos

de vendas? Qual o número de livrarias? O que é uma livraria? Os pontos de vendas de 45 Ver Earp e Kornis, 2005.

97

livros são variados, a divisão realizada pela pesquisa que utilizamos classifica os seguintes

canais de comercialização: livrarias, governo, marketing direto, Internet, supermercado,

porta a porta, bibliotecas, escolas, feiras e distribuidoras. O símbolo máximo dos canais de

comercialização é a livraria. As definições de livraria são variadas. Em geral convenciona -

se chamar de livraria um estabelecimento de varejo cuja maior parte dos produtos

comercializados são livros. Essa definição, entretanto, excluiria uma série de lojas (mega

stores) nas quais os livros representam parte significativa dos produtos vendidos, porém

minoritária. É caso das lojas FNAC, cujo o acervo de livros em exposição é maior do que o

da maioria das livrarias, porém representam no mix da loja, menos de 50% dos produtos em

exposição. Muitas lojas, principalmente as de shopping caminham para uma configuração

parecida com a da FNAC, dividindo seu espaço interno entre: livros, CDs, DVDs,

softwares, itens de papelaria, eletroeletrônicos, revistas, brinquedos, jogos, etc. Em geral o

mix encontra-se dentro do escopo das indústrias culturais. Para efeito deste estudo

adotamos o seguinte critério quanto a livrarias: são estabelecimentos de varejo que

comercializam livros, e nos quais este item representa percentual significativo do

faturamento, sendo reconhecidas pelos seus usuários como livrarias.

O número de livrarias existente no Brasil é sempre motivo de controvérsia. O

Anuário EditoriaL Brasileiro 2000-2001, identificou cerca de dois mil estabelecimentos que

poderiam enquadrar-se na definição que adotamos. O Anuário da Associação Nacional de

Livrarias (ANL) do ano de 2005 traz cerca de mil estabelecimentos. O número depende de

onde corta a lâmina. Caso adotemos uma média entre os dois modelos classificatórios,

chegaremos ao número de 1500 livrarias, que é o número de livrarias admitido pelo estudo

98

“A economia da cadeia produtiva do livro. A dinâmica atual destes estabelecimentos

obedece as seguintes tendências46:

• Diversificação dos produtos disponíveis;

• Migração da rua para centros comerciais como shoppings e galerias;

• Aumento dos espaços internos totais;

• Diminuição do espaço do livro em relação aos outros produtos;

• Aumento das lojas de redes.47

• Diminuição do número de livrarias.

A mudança de endereço das livrarias, passando das ruas para os shopping centers

obedece a uma tendência geral do varejo, em especial nas grandes cidades. Porém, de um

modo geral, permanecem nas ruas lojas mais populares, muitas delas da mesma cadeia, mas

com uma configuração diferente, isso ocorre, por exemplo , nos segmentos de eletro-

eletrônicos e de vestuário. No caso das livrarias o fenômeno de saída das ruas é absoluto, as

lojas que deixam as ruas não são substituídas por outras de cunho mais popular.48 A

primeira conseqüência desta mudança de endereço é o aumento do custo de espaço para

exposição de mercadorias, já que o aluguel em shopping é bem mais caro que o pago em

lojas de rua. Isto fez com que as livrarias tivessem que intensificar o giro das mercadorias,

reduzindo a margem para experimentações ou apostas em títulos que não estejam alinhados

ao que se espera de um best-seller. Com o aumento do custo fixo o livreiro passou a ter

46 No capítulo seis da dissertação destinado a análise do varejo de livros aprofundaremos esta discussão. 47 Consideramos rede um grupo com três ou mais lojas. 48 Um fenômeno que ainda não foi estudado pode relativizar esta afirmação, trata-se da proliferação de sebos nas grandes cidades. Durante o período de migração das livrarias de livros novos para shoppings o surgimento de lojas de livros usados cresceu significativamente. Uma avaliação empírica dos centros do Rio de Janeiro e de São Paulo pode facilmente comprovar esta afirmação. Este fenômeno que pode ser computado do ponto de vista da economia da leitura pode também estar influenciando negativamente a venda de livros novos nas livrarias.

99

uma pressão adicional sobre seu capital de giro. De forma que manter dinheiro empatado

em livros de giro lento representa um sério risco. Este fato, aliado a constatação de que é

praticamente impossível determinar, a priori, que livro terá um giro adequado e qual se

transformará em encalhe, tornou hegemônica a política de consignação.49 Essa veio

acompanhada de uma forte exigência por parte dos livreiros pelo aumento da comissão de

vendas.

O livro no Brasil adota a política do preço fixo de capa, e a remuneração do livreiro

ocorre a partir de um percentual deste preço. No início da década de 90 do século passado,

ela variava entre 30% e 40%, nos dias de hoje a variação está entre 40% e 60%. Os livreiros

constituem-se o elo mais forte da cadeia, pois são também o seu gargalo. A posição que

ocupam dentro da cadeia de valores é estratégica. Alguns fatores tornaram esta posição

ainda mais relevante:

• O número de editoras cresce a cada ano;

• A oferta crescente de títulos nos fundos de catálogos que são alimentados

anualmente com novos lançamentos.

• A recente diversificação dos títulos publicados pelos diversos subsetores.

Como o aumento da oferta de títulos não foi acompanhado do aumento de espaço

nas prateleiras, o poder de pressão dos livreiros sobre os editores cresceu. Esse fenômeno

tem duas conseqüências imediatas: a diminuição da margem de lucro dos editores e a

busca, por estes de canais alternativos de venda.

49 A consignação transfere o risco do encalhe para o editor, os livros são colocados a venda nas livrarias, conforme os exemplares são vendidos o editor é pago. Os livros que não vendem durante um determinado período são devolvidos para a editora.

100

Abaixo se encontra a tabela de venda de exemplares por canais de comercialização,

nos dois primeiros anos da pesquisa não existem dados para esta dimensão, alguns dos

canais também apresentam hiatos em alguns anos, outros surgiram recentemente na

pesquisa:

Tabela 14: Canais de comercialização, venda de exemplares por ano – parte 01

Livrarias Governo MKT direto Internet Outros Supermercados Porta a Porta Exemplares Exemplares Exemplares Exemplares Exemplares Exemplares Exemplares

1990 1991 1992 97.237.601 19.909.264 4.204.087 4.695.643 2.947.733 1993 188.781.590 55.523.997 24.895.600 8.328.599 1994 156.273.286 44376310 21.637.588 6.631.433 4.305.763 1995 124.908.120 156.568.451 11.816.624 5.064.168 6.850.200

1996 156.129.689 120.150.986 13.695.206 11.517.760 1.841.143 1997 1998 148.962.941 150.373.527 8.631.734 71.507.524 9.249.216 4.352.414 1999 112.615.308 75.585.540 6.270.362 51.882.155 13.231.064 5.902.383 2000 101.766.332 134.259.315 5.403.956 93.208 65.941.537 4.245.271 4.432.545 2001 75.130.000 121.460.000 4.830.000 360.000 27.680.000 6.480.000 9.860.000 2002 74.680.000 162.200.000 5.320.000 420.000 8.300.000 4.070.000 6.920.000 2003 74.690.000 110.960.000 4.780.000 710.000 5.770.000 2.940.000 8.540.000

Tabela 14: Canais de comercialização, venda de exemplares por ano – parte 02

Anos Escolas Biblioteca Bancas Feiras Distribuidores Exemplares Exemplares Exemplares

1990 1991 1992 29.157.182 862.005 1993 90.200 1994 2.338.928 4.641.436 1995 3.190.602 3.147.024

1996 2.994.841 999.485 1997 1998 8.760.243 1.120.469 1.813.774 5.562.799 1999 9.099.687 1.709.395 2.661. 717 10.721.935 2000 6.381.760 1.003.961 2.077.325 8.629.950 2001 4.960.000 610.000 1.830.000 1.980.000 44.490.000

101

2002 6.260.000 620.000 4.170.000 2.830.000 44.810.000 2003 4.030.000 610.000 1.040.000 2.400.000 39.360.000

Apenas a partir do ano 2000 é que possuímos a totalidade dos dados da pesquisa,

faremos uma análise pontual de cada uma das colunas, reservando para uma nova tabela a

comparação entre os canais livraria e governo, os mais significativos do ponto de vista

absoluto.

O marketing direto, ou venda direta das editoras, teve momentos de grande

desempenho nos anos de 1993 e 1994, apresentando desde então uma dinâmica

decrescente, atualmente seus números absolutos estão próximos dos do início da série. No

ano de 2003 o marketing direto representou 2% do número total de exemplares vendidos.

A Internet surgiu no ano de 2000 como canal de comercialização, desde então vem

crescendo de forma acelerada, entretanto, este crescimento ainda representa pouco em

relação ao total de exemplares vendidos, no ano de 2003 a Internet representava apenas de

0,3% do total.

Os supermercados também são um canal que já viveu melhores momentos, a

dinâmica atual é de queda nas vendas. No ano de 2003 as vendas em supermercados

representaram cerca de 1,1% do total de exemplares colocados no mercado.

O canal porta a porta apresenta oscilações significativas durante a série, mas ocupa

atualmente um papel importante entre os canais não convencionais de venda no varejo, os

números de 2003 colocam este canal com cerca de 3,5% dos exemplares vendidos.

As vendas nas escolas, antigas vilãs das livrarias que perdiam parte de seu

faturamento para esta modalidade, estão decrescendo é já não são significativas. A

justificativa é a presença crescente dos sistemas apostilados e o papel das distribuidoras. No

ano de 2003 as escolas representaram cerca de 2,5% das vendas.

102

O canal bibliotecas apresenta números oscilantes que dependem substancialmente

das compras governamentais, em 2003 representou 0,25% do total de exemplares

comercialzados.

As bancas de jornal apresentam números oscilantes que dependem das coleções

lançadas de forma independente e junto com periódicos. Representaram em 2003 cerca de

0,4% das vendas.As feiras de livros após um desempenho vistoso no final da década de 90

estão estagnadas, representando em 2003 cerca de 1%.

Os distribuidores são o terceiro canal mais importante, porém, estes números

deveriam ser abertos para que pudéssemos entendê-los melhor. Essas vendas podem ser

feitas para bibliotecas, governos, escolas, universidades, diretamente ao consumidor, etc –

comprometendo os números dos outros canais.

Comparação entre os principais canais de comercialização: A tabela seguinte mostra a

dinâmica principal do mercado de livros quanto aos canais de comercialização. Enquanto o

canal de vendas livraria vive um declínio sucessivo em sua participação nas vendas gerais e

relativas, as vendas para o governo se ampliaram relativa e absolutamente.

Tabela 15: Exemplares vendidos em livrarias e governo

Exemplares vendidos em livrarias e governo

Ano Livrarias % Governo % 1992 97.237.601 61 19.909.264 13 1993 188.781.590 68 55.523.997 20 1994 156.273.286 64 44376310 19 1995 124.908.120 42 156.568.451 50 1996 156.129.689 48 120.150.986 37 1998 148.962.941 42 150.373.527 43

103

1999 112.615.308 39 75.585.540 26 2000 101.766.332 30 134.259.315 40 2001 75.130.000 24 121.460.000 40 2002 74.680.000 23 162.200.000 51 2003 74.690.000 22 110.960.000 51

Número de exemplares per capita : O número de exemplares per capita foi obtido

dividindo o número da população medido pelo IBGE, pelo número de livros produzidos.

Optamos por apresentar três momentos, a tabela 4 mostra este número em 1990, 1995 e

2003. Notamos um significativo aumento em 1995, seguido de um declínio que apresenta

os números de 2003 abaixo de 1990.

Tabela 16: Consumo per capita de livros no Brasil (1990,1995,2003)

Consumo per capita de livros no Brasil Ano Exemplares Vendidos Habitantes Livros per capita 1990 212.206.449 147.053.940 1,44 1995 374.626.262 161.400.000 2,32 2003 255.830.000 178.939.611 1,43

Número de exemplares comprados no comércio per capita: Neste caso,

obedecendo aos mesmos intervalos do item anterior, encontramos na tabela 5, a

confirmação da diminuição dos canais comerciais na venda de livros. O número per capita

de 2003 é 40% inferior ao de 1990. O percentual de exemplares comprados diretamente

pelo público consumidor diminui significativamente. Em contrapartida, aumenta os

exemplares adquiridos pelo governo.

Tabela 17: Consumo per capita de livros no Brasil sem compras Governo (1990,1995,2003)

104

Consumo per capita de livros no Brasil sem compras Governo Ano Exemplares Vendidos Habitantes Livros per capita 1990 192.297.185 147.053.940 1,3 1995 218.057.811 161.400 .000 1,35 2003 144.870.000 178.939.611 0,8

10. Ponto de chegada.

Nossa trajetória de análise da cadeia de valores do mercado editorial será concluída

com uma comparação dos números de 2003 em relação àqueles apresentados pelo mercado

no ano de 1982, presentes na primeira edição do livro de Hallawell.

Títulos produzidos: A tabela 18 mostra que no ano de 1982 foram produzidos

12.745 contra 35.590 em 2003. Os números comprovam a tendência por diversificação e a

busca por economia de escopo no plano econômico. Uma leitura no campo da sociologia do

conhecimento poderia entender o fenômeno como uma ampla fragmentação do

conhecimento, resultado da tendência constante na modernidade pela especialização. 50

Tiragens: As tiragens médias do ano de 1982 foram de 19.256 exemplares contra

8.412 exemplares do ano de 2003 (conforme tabela 18). A diversificação geradora de

economia de escopo, apresenta-se em contradição com a economia de escala. O impacto

deste fenômeno sobre o custo da impressão deve ser relativizado devido aos ganhos obtidos

na impressão fruto das inovações tecnológicas citadas no tópico impressão.

Exemplares produzidos: O total de exemplares produzidos em 1982 foi de

245.412.465, contra 299.400.000 em 2003, um acréscimo de cerca de 22%. Um

50 Este fenômeno é avaliado no capítulo Sociedade da Informação.

105

crescimento em 21 anos, que para ser lido de forma adequada precisa ser confrontado aos

números de brasileiros, do crescimento da economia, da renda e da escolaridade.

Tabela 18 – Produção Editorial Brasileira, 1982.51 (Hallawell, 1985: 617)

Linha Editorial Classes Títulos Exemplares Tiragens 2.0. Obras gerais

1. Literatura Inf. Juvenil

1.1 Brasileira 913 9.628.526 10.546 1.2 Estrangeira 380 5.465.978 14.384 2. Outros 589 44.743.407 75.965 2.1 Filosofia 360 2.607.874 7.244 2.2 Religião 1.230 31.407.573 25.535 2.3 Ciências Sociais 1. Economia 122 911.185 7.469 2. Direito 768 4.609.771 6.002 3. Demais 313 13.762.688 43.970 2.4. Filologia 164 3.079.167 18.775 2.5. Ciências Puras 100 343.425 3.434

2.6. Ciências Aplicadas

1. Medicina 157 3.315.739 21.119 2. Engenharia 176 632.470 3.594 3. Demais 250 7.625.839 30.503 2.7. Belas Artes 412 5.033.291 12.217 2.8. Literatura 1. Brasileira 1.841 12.587.585 6.837 2. Estrangeira 1.724 12.632.620 7.328

2.9 Hist. Geogr. Biograf. 211 3.744.275 17.745

2.10 Liv. Did. E Téc. 1. Moral 22 2.098.531 95.388 2. Supletivo 111 4.526.247 40.777 3. 1° Grau 1.723 58.258.141 33.812 4. 2° Grau 757 17.317.633 22.877 2.11 sem informação 422 1.080.500 2.560 12745 245.412.465 19.256

51 Esta tabela foi obtida por Laurence Hallawell junto ao setor de pesquisas do SNEL (Sindicato Nacional dos Editores) conforme nota presente em seu livro. Nós acrescentamos a coluna tiragens que não consta da tabela original.

106

Tabela 19. Títulos editados segundo edição. (Hallawell, 1985: 618)

Títulos editados segundo 1°edição, reedição ou reimpressão nacional ou traduzido. Título 1° edição Reedição Reimpressão s/informação Total 3.1 Nacional 3.254 1.396 2.989 869 8.508 3.2 Traduzido 1.576 311 1.102 561 3.550 S/inf. 684 684 Total 4.830 1.707 4.091 2.114 12.742

Número de exemplares percapita: Em 1980 o Brasil tinha uma população de

cerca de 120.000.00052 de habitantes contra 178.939.611 em 2003. A população cresceu

neste período cerca de 49%, ou seja, mais que o dobro do crescimento de exemplares

produzidos que foi de 22%.

9.1 - O mercado editorial brasileiro vive uma crise?

Sabemos que neste período (1982-2003) a escolaridade do brasileiro aumentou

significativamente em todos os níveis o que deveria potencializar o consumo de livros e

conseqüentemente o aumento de exemplares produzidos, entretanto, isso não aconteceu.

A crise pode ser constatada na estagnação do número de exemplares produzidos e na queda

nos rendimentos das editoras. Os dados estão em contradição com o aumento da população,

dos níveis de escolaridade e das quedas na taxa de analfabetismo. Segundo o senso

educacional promovido pelo INEP (MEC) o número de alunos matriculados no ensino

médio em 1982 era de 2.819.182 contra 8.192.948 no ano de 2000. O crescimento do

número de matriculados foi de quase 200%. Quanto às matrículas no ensino superior, os

dados mais remotos que conseguimos acessar se referem ao ano de 1989 quando ocorreram

52 Os números são do portal do IBGE, acessados no dia 02.09.05, as 12:00 horas, no seguinte endereço, http://www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/default.htm

107

1.518.904 contra 3.887.022 matriculados em 2003, crescimento de mais de 145%. Quando

a questão é o analfabetismo a Pesquisa Nacional por amostra de domicílios do IBGE, indica

uma queda na taxa nacional que era de 14% da população brasileira com mais de 15 anos

em 1998 e encontrava-se em 11,9% no ano de 2003. As discrepâncias entre estagnação da

produção de livros e aumento dos potenciais leitores não pode ser explicada simplesmente

por referenciais econômicos, eles são um excelente ponto de partida, mas insuficientes.

Acreditamos estar diante de uma grande mudança operada na forma como as pessoas

adquirem conhecimento com desdobramentos para o próprio conceito de livro. As relações

entre mercado editorial e sistemas de mídia, o desenvolvimento das indústrias criativas e a

emergência da sociedade de informação, são fenômenos que se sobrepõem e que serão

utilizados para explicar a aparente inação econômica do livro impresso.

108

III – A constituição de uma estrutura jurídica

1. Conceito de autoria na Antiguidade e na Idade Média.

O conceito de autoria como o conhecemos foi gestado no seio das profundas

mudanças pelas quais passou a sociedade européia entre os séculos XII e XVIII. Período ao

longo do qual estruturas da antiga sociedade medieval foram suplantadas pelas da

emergente sociedade moderna.53

Admitir que um conceito possa sofrer mudanças no decorrer de sua existência está

de acordo com a tradição genealógica concebida pelo filósofo alemão Friedrich Nietzshe e

posteriormente desenvolvida por Michael Foulcalt. Ao admitirmos tais mudanças,

renunciando a possibilidade de um telos imanente que oriente o conceito desde seu

surgimento até o momento em que com ele nos defrontamos, isentamos o conceito de

aparentar-se com suas acepções aborígines. Posto de outro modo, há no conceito aspectos

que lhe foram impostos pelo seu uso através dos tempos, e apenas resíduos, quando muito,

de sua utilização original. No caso específico do conceito de autor, pareceu a muitos que

este aspecto original, encontrava-se no “produto” trazido ao mundo pela criatividade de seu

criador, que para efeito de nosso estudo é o texto organizado na forma de livro.

Sabemos que na Antigüidade a idéia de autoria de uma obra estava diretamente

vinculada a um conceito não individual e, sim, universal de manifestação do espírito 53 Em nossa abordagem diacrônica em torno do livro e da sua cadeia de valores, o estudo das modificações capitais vividas pelo conceito de autoria será importante, já que atualmente parece estar ocorrendo outro deslocamento deste conceito que foi fundamental na constituição de uma estrutura jurídica para o campo da edição.

109

através dos homens. Poderíamos atribuir tal conceito à concepção platônica de um mundo

das idéias, do qual o nosso seria apenas um reflexo. Caberia então aos sábios tornar

manifestas neste mundo de ilusões, aquelas formas perfeitas habitantes do mundo das

idéias. Com este exemplo, o conceito medieval de autor poderia perfeitamente se

harmonizar, os autores não seriam criadores, mas apenas copistas.

Segundo Roger Dragonetti, a palavra latina auctor, da qual deriva nosso

contemporâneo autor, possui como referentes, Deus, por um lado e, de outro, o copista. De

forma que o inventor do texto não era designado por esta palavra. O mesmo pode ser

afirmado a respeito da palavra latina escriptor, que fora utilizada para designar copistas.

Coube aos historiadores medievalistas o mérito de demonstrar o inadequado da

universalização do conceito moderno de autor, sobretudo quando tomado como designação

supra-histórico daqueles “indivíduos” criadores de obras artísticas e literárias.

Em uma de suas palestras dedicadas ao livro, ma is tarde convertida em ensaio, o

escritor argentino Jorge Luis Borges assinala esta característica:

Na Antigüidade há algo que nos custa compreender e que não se parece com nosso

culto ao livro. Vê-se sempre no livro um sucedâneo da palavra oral, mas depois chega do

Oriente um conceito novo, completamente estranho à Antigüidade clássica: o do livro

sagrado. (Borges, 1999: 191).

Entre judeus, muçulmanos e cristãos encontraremos a concepção de livro sagrado,

escrito por homens que foram inspirados pelo Espírito. A idéia medieval de autoria está

marcada por esta concepção que se estende dos livros sagrados para os clássicos e se reflete

numa atitude não individualista de tratar as obras criativas.

110

Dentre os juristas, entretanto, prevalece a idéia moderna de autor que a estendem do

presente para a Antigüidade greco-romana. Nos estudos históricos realizados sobre o direito

romano, verificou-se a inexistência de uma norma legal consagrada ao direito de autor.

Porém, entre os juristas admite-se que a noção de proteção moral da autoria já existia,

desde um século antes de Cristo:

Ainda que não houvesse norma legal que instituísse alguma punição contra as

violações daquilo que haveria de ser direito dos autores das obras intelectuais, sempre

existiu a sanção moral, que impunha o repúdio público do contrafator e sua desonra e

desqualificação nos meios intelectuais.Ainda que sem efeitos jurídicos patrimoniais, nem

pessoais (como a prisão, por exemplo), já se considerava um verdadeiro ladrão quem

apresentasse como sua uma obra de outrem. Tudo indica que foi MARCIAL quem, pela

primeira vez, atribuiu a esses espertalhões o epíteto de plagiarius, comparando-os àqueles

que cometiam o furto de pessoas livres, definido como plagium por uma lei do segundo

século antes de Cristo, conhecida como Lex Fábia de Plarigriis. (Manso, 1980: 8-9).

A existência da idéia de vincular um indivíduo ao produto de sua criatividade entre

os romanos é reafirmada por Plínio Cabral, jurista brasileiro especializado em direito

autoral:

Na Roma antiga e escravagista, o autor tinha o privilégio do reconhecimento

público, mesmo que ele fosse escravo e, portanto apenas um instrumento de trabalho. A

obra, então, pertencia ao senhor. Mas a autoria e, conseqüentemente a glória do feito era

do artista e, como tal, reconhecido e festejado. (Cabral, 2003: 03).

O aparente paradoxo estabelecido entre a visão da obra criativa como inspiração do

Espírito (ou divindade) e a atribuição de uma autoria pura e simples, longe de representar

como homólogos o atual e o antigo conceito de autoria como parece querer fazer-nos crer a

111

visão dos juristas, pode ser acomodado dentro de uma visão mais ampla do conceito antigo

de autoria. Podemos argumentar que tanto os escritores dos livros sagrados, como os

autores de obras clássicas do passado, tiveram seus nomes respeitados através dos tempos,

mantidos e ligados à suas criações. Argumento que corrobora com a idéia dos juristas. Mas

esta é uma meia verdade, e impõe uma perspectiva demasiado moderna à questão. Os

nomes destes autores eram mantidos, certamente, não como o de proprietários do

conhecimento veiculado em suas obras, mas, sobretudo, como reconhecimento ao feito de

terem tocado o eterno funcionando como arautos de um conhecimento que através deles se

revelava aos homens. De tal forma que a autoria neste caso é um tributo ao medium e não à

criatividade e originalidade. Não havia neste caso as conseqüências contemporâneas de se

atribuir juntamente com o reconhecimento moral, também o patrimonial.

O conceito atual de direito autoral busca proteger as manifestações peculiares do

gênio humano, própria de cada um e que reproduzem sobre qualquer suporte disponível

expressões da subjetividade. O artista é considerado um ente criador, que com seu toque

pessoal reformula a realidade, engendrando linguagens e matéria em algo novo. Segundo

Plínio Cabral: “Dessa peculiaridade pessoal do ato criativo nasce um tipo também peculiar

de propriedade: a propriedade sobre o produto da criação artística que a lei e as convenções

reconhecem como um bem móvel”. (CABRAL, 2003)

Para efeito das legislações atuais de direito de autor, tendo como fonte inspiradora a

Convenção de Berna para proteção de obras literárias e artísticas, datada de 1886,

convencionou-se dividir claramente os direitos de autor em patrimonial e moral. O primeiro

diz respeito à prerrogativa que o autor possui de aferir benefício s materiais decorrentes da

exploração pessoal ou por terceiros de suas obras. O segundo refere-se ao privilégio de os

112

autores terem seus nomes vinculados às suas obras (paternidade) e de sobre elas definir

quanto a possíveis mudanças, adaptações, circulação, traduções etc (integridade).

Estas duas dimensões partem de pressupostos um pouco distintos. A patrimonial é

mais restrita, pois cada país signatário dos tratados internacionais de proteção ao direito de

autor, define por quanto tempo este direito deve valer, já que em um determinado momento

a obra deverá pertencer ao domínio público, passando a circular de forma livre entre seus

receptores. Também o autor pode deste direito dispor quando bem entender, vendendo a um

editor os direitos de exploração pecuniária da obra. A dimensão moral é mais ampla, não

possui restrição temporal e, portanto, cabe ao autor e seus herdeiros exercerem este direito

podendo inclusive suspender a circulação da obra, caso esta tenha sofrido alterações

significativas, ou caso o autor discorde do conteúdo nela expresso (direito a arrepender-se).

Quando em domínio público, os direitos morais passam a ser administrados pelo Estado

que deverá assegurar a manutenção de sua integridade.

Os direitos morais, que surgem nas leis de direitos autorais, constituem-se

peculiaridade destas no campo do direito, segundo Carlos Alberto Bittar:

Os direitos morais são vínculos perenes que unem o criador à sua obra, para a

realização da defesa de sua personalidade. Como os aspectos abrangidos se relacionam à

própria natureza humana e desde que a obra é emanação da personalidade do autor – que

nela cunha, pois, seus próprios dotes intelectuais -, esses direitos constituem a sagração, no

ordenamento jurídico, da proteção dos mais íntimos componentes da estrutura psíquica de

seu criador. (BITTAR, 1994: 44)

113

Referindo-se a esta passagem de Bittar, o jurista Plínio Cabral faz o seguinte comentário: “O que a

lei protege é a estrutura íntima do homem na relação que estabelece com a sua obra a partir do

momento da criação.”(Cabral, 2003)

Esta divisão entre dimensões moral e patrimonial pode parecer bastante elucidadora

quando confrontamos as concepções antiga e moderna de autoria. Poderíamos concluir que,

enquanto na Antiguidade e na Idade Média, o direito moral parece ser respeitado, o respeito

à dimensão patrimonial, surge tardiamente na Idade Moderna. Porém, esta seria uma

afirmação errônea. A noção de indivíduo expressa pela dimensão moral é eminentemente

moderna e não poderia ser aplicada. As obras produzidas durante a Antiguidade e até o

século XI, eram, em geral, ditadas pelos seus “autores” aos copistas. O fato de não haver

divisão entre as palavras e ausência de pontuação, tornavam a escrita um processo difícil

que necessitava do auxílio de especialistas. “(...) na etapa final da Antiguidade, os autores

em geral ditavam a maior parte de suas composições em virtude da dificuldade de

manipular a scriptio continua, que se tornou norma a partir do final do século XII.”

(Cavallo e Chartier, 2002, 151)

Alguns relatos históricos sugerem que durante um breve período em Roma,

anteriores ao século II dc., a escrita individual era incentivada por sábios como Quintiliano

e isto era possível graças ao método de separação das palavras por pontos. Entretanto, não

existem quaisquer indícios deste sentimento individualista de relação do sujeito com sua

obra, tão comum em nossa abordagem contemporânea. O que temos é que por cerca de dez

séculos, durante quase toda a Idade Média, as técnicas de composição escrita eram

resultado de um trabalho coletivo.

114

Mas ao mesmo tempo em que nos parece inadequada a aplicação do atual conceito

de direito moral à Antiguidade, também há um certo desconforto em rejeitá- lo por

completo. O surgimento da idéia de plágio em Roma e o respeito à paternidade das obras

demonstrado pela atribuição dos textos clássicos a seus possíveis autores, constrangem a

refutação automática. Concebemos então uma divisão que esperamos atenda

provisoriamente a este estudo. Teríamos dois tipos de direitos morais, um forte, animado

pela concepção moderna de indivíduo e outro fraco, animado pela concepção antiga de

indivíduo, desse modo, será possível aceitar a presença de um proto direito moral, sem que

a ele se atribuam características anacrônicas. Quanto ao direito patrimonial, este se

restringiu, na Antiguidade e Idade Média, à materialidade da obra, e não aos seus aspectos

intangíveis. Por exemplo, um senhor teria direito sobre as esculturas produzidas pelo seu

escravo escultor. Um “autor” teria direito aos exemplares da obra que escreveu e fixou em

pergaminho, mas não sobre seu conteúdo que poderia ser copiado, difundido, e

comercializado por quem quer que fosse. Neste caso a atividade geradora de patrimônio

estava restrita à atividade do copista. Portanto, era completamente estranha à Antiguidade e

à Idade média a noção atual de direitos autorais, e por conseqüência, as noções atuais de

autor e autoria.

2. O surgimento do autor.

Afinal de contas, quando surge então a atual figura do autor? A resposta a este tipo

de questão não permite a determinação de uma data, mas podemos apontar o século XII

como o período de gestação das mudanças que iriam possibilitar o surgimento do autor. É

115

neste século que a leitura em voz alta será suplantada pela leitura silenciosa, o que foi

possível graças às novas técnicas de composição dos manuscritos, as quais substituíam

gradativamente a escrita das palavras sem separação por uma escrita separada por sinais e

por pontuação.

Os historiadores estão de acordo que, na Europa do Norte, o século XII foi

amplamente reconhecido como o período crucial para as inovações nos campos do direito,

da teologia, da filosofia e da arte. No entanto, para o historiador da leitura, é antes de tudo

um século de continuidade e consolidação da escrita em palavras separadas (...) Esta nova

apresentação textual foi complementada por uma outra alteração lingüística igualmente

significativa: a mudança das convenções sobre a ordem das palavras e sobre o

reagrupamento de palavras gramaticalmente ligadas. (...) Ambas foram também pré-

requisitos para o desenvolvimento da pontuação sintática e da leitura silenciosa rápida que

dependia do ponto de reconhecimento visual da forma das palavras e da percepção da

organização espacial do texto: a oração, a frase, o parágrafo. (Cavallo e Chartier,

1999:147)

O surgimento da leitura silenciosa nos meios monásticos e nas universidades

medievais adequava-se à busca meditativa que os clérigos realizavam em suas práticas

cotidianas. Este olhar para dentro, próprio da meditação, podia agora ser praticado no

contato com o texto. Essa intimidade entre o leitor e o texto possibilitada pela leitura

silenciosa também se dava entre o autor e seu texto. Um sentimento, provavelmente latente,

de posse em relação a seus próprios textos, tornou-se possível, graças à libertação dos

procedimentos técnicos da scriptio continua.

O desdobramento deste processo pode ser atestado pelos diversos manuscritos

eróticos datados desta época. Tais questões íntimas jamais poderiam ser tratadas por

116

clérigos em suas atividades de composição oral. Paul Saenger cita o autor Guibert de

Nogent como um modelo deste novo escritor. Segundo Saenger, no trabalho De vita sua

sive Monodiarum libre tres, o escritor expressa um gosto pela privacidade que se tornaria a

marca dos autores do final da Idade Média. Saenger relata um acontecimento que marcou o

final da vida de Guibert e que ilustra significativamente o apego destes homens à

intimidade conquistada na composição textual:

Ao final da vida, a cegueira forçou Guibert a parar de escrever suas próprias

composições e a ditá-las então para um secretário. (...) ele amargamente lamentava a perda

de visão que o obrigava a redigir “somente com a memória e a voz, mas sem as mãos e

sem os olhos.” Ele se ressentia das interferências causadas pela presença do secretário e

lamentava não mais poder olhar para o seu texto escrito para rever o estilo e aperfeiçoar as

escolhas de palavras. (Cavallo e Chartier, 1999: 152)

No século XII, assinala Saenger, aprofunda-se uma identificação entre o autor e

aquilo que ele escreve. Entre os membros da ordem cistercienses a produção dos textos era

considerada uma atividade relacionada à intimidade de cada um. Isto não significa que os

processos de ditar manuscrito s tenham desaparecido. Eles persistirão por muito tempo, e

adentrarão a era de Gutenberg, pois nas práticas culturais a inovação em geral representa

uma adição e não uma simples subtração.

Uma fonte importante de referências à nova postura do autor, sua individuação,

pode ser colhida nas iluminuras, já no século XI existem imagens retratando os autores

escrevendo de próprio punho. No século XIII a presença de autores escrevendo já era

freqüente, mas convivia com as imagens de autores retratados ditando ou copiando textos

ditados por outros. A introdução de novas escritas cursivas irão tornar mais ágil e fácil o ato

117

de escrever e este fato será representado nas iluminuras do século XIV que representam os

autores sozinhos, em estúdios ou em ambientes pastorais e idílicos executando com leveza

a arte da escrita. As seguintes palavras do monge franciscano do século XIII, São

Boaventura, demonstram de forma lapidar o momento transitório que se vivia em relação

ao conceito de autoria; segundo ele existiam quatro modos de se fazer um livro:

Um homem pode escrever as obras de outros, sem qualquer acréscimo ou alteração,

e nesse caso será chamado simplesmente um “escriba”(scriptor). Um outro escreve os

trabalhos de outros, com adições que não lhes são próprias; será então chamado de

“compilador” (compilator). Um terceiro escreve tanto obras suas como alheias, mas dando

principal lugar à alheia, e reservando a sua própria para fins de explicação; será então

chamado um “comentador” (commentator)[...] Um último escreve tanto obra sua como

alheia, mas reservando um lugar principal para a sua e juntando a de outros para fins de

confirmação; tal homem será chamado de “autor” (auctor). (EISENSTEIN, 1998: 101-102)

De forma lenta, entre os séculos XI e XIV, são forjadas as condições técnicas e

culturais para que a figura do autor apareça. Podemos afirmar que a escolástica, pensada

como um movimento histórico, contribui de forma capital para este feito, entretanto ainda

estamos distantes da visão contemporânea de autor, pois persistem os modos de produção

da Idade Média, e o conhecimento ainda é considerado uma dádiva, senão da divindade, ao

menos do Espírito. A emergência do “movimento humanista” no século XIV será outra

pedra fundamental na formação do conceito moderno de autor.

No final da Idade Média o conhecimento encontrava-se estocado no interior das

Universidades. Nestas, a presença da Igreja era hegemônica, resultado de um longo período

em que a posse do conhecimento clássico ficara enclausurado, assim como os monges. Isto

não significa que concordamos com a idéia de que a Idade Média representou a Idade das

118

Trevas, ou que durante este período não houve qualquer construção de conhecimento

original, mas, sim, nosso entendimento de que grande parte do conhecimento registrado

encontrou-se na posse da Igreja, e que esta dele se valeu para manter seu poder e prestígio.

Durante a Idade Média a maioria dos professores e alunos das universidades era

constituída de membros das diversas ordens religiosas. Este processo começou a mudar no

século XIV, e no século XV já se podia encontrar um novo segmento de professores

universitários apelidados de humanistas. Tratava-se de mestres adeptos de um novo

currículo universitário em oposição àquele desenvolvido pela escolástica (termo pejorativo,

que, aliás, os humanistas cunharam). Entre os humanistas havia os que atuavam dentro das

ordens religiosas, uma grande parcela era leiga e vivia de ministrar aulas nas universidades

e nas escolas, muitas vezes atuavam como tutores privados. É possível supor que estes

adeptos do novo currículo estabeleceram uma identidade própria, como um grupo, que mais

tarde irá, inclusive, compor uma forma orgânica de relação.

O uso crescente da palavra “humanista” sugere que, pelo menos nas

universidades, o ensino das humanidades gerava uma identidade comum entre os

professores. As sociedades ou academias fundadas por esses humanistas também

sugerem o aparecimento de uma identidade coletiva. (Burke, 2003: 28)

Com a rápida proliferação da impressão de tipos móveis pela Europa, a partir da

terceira metade do século XV, uma onda de reedições de livros antigos se processou.

Muitos dos primeiros impressores eram homens relativamente cultos, que sabiam ler e

compor em latim e grego. Porém, com o desenvolvimento da indústria, logo foi necessário

que pessoas de maior erudição auxiliassem no processo de escolha e revisão dos originais.

119

Foi entre os humanistas que os impressores foram buscar a mão-de-obra especializada da

qual necessitavam para darem prosseguimento a seu empreendimento:

(...) geralmente os editores somente precisavam dos serviços dos sábios e dos eruditos

para escolher os manuscritos a serem editados e para corrigir o trabalho dos tipógrafos.

Portanto, foi antes a título de revisor que o homem de letras fez sua entrada na oficina.

Muitos humanistas que se interessavam pelas letras tornaram-se assim revisores.

(Febvre e Martin, 1991: 241)

A presença de “intelectuais” na atividade de produção editorial foi desde o início

uma premissa da indústria. Muitos dos mestres impressores de grande sucesso possuíam

erudição superior à média de seu tempo, deviam, por exemplo, conhecer o latim e o grego.

Mas será entre os humanistas que as oficinas recrutarão seus principais quadros

intelectuais. Uma relação de reciprocidade entre o desenvolvimento da impressão e a

presença dos humanistas como grupo deve ser assinalada. Os primeiros cem anos de

desenvolvimento desta tecnologia correspondem também à consolidação das idéias

humanistas, que no século XV eram bastante hostilizadas dentro das instituições

universitárias tradicionais, fato que obrigou estes pensadores a criarem suas próprias

instituições, chamadas de academias, isto é, eram organizações relativamente formais e

duradouras, mais abertas que a universidade e, por isso, considerada a forma ideal de

explorar a inovação. No final do século XVI, existiam mais de 400 academias apenas na

Itália e elas podiam ser encontradas por toda a Europa.

Como muitos outros movimentos de vanguarda intelectual depo is dele, o

humanismo aos poucos consolidou sua influência sobre as universidades, propiciando,

assim, a muitos de seus parceiros impressores uma nova fonte de renda em associação com

120

estas instituições. Dentre os humanistas recrutados para atuar na revisão e estabelecimento

de textos não era incomum que alguns se tornassem livreiros-editores:

Não é de se espantar, em todas as épocas, que alguns escritores se tornaram

impressores e livreiros. Imprimir as próprias obras e em seus próprios prelos, fiscalizar sua

correção e sua boa apresentação, dirigir, sobretudo sua difusão e exercer assim uma ação

direta sobre o público era e será sempre a ambição de muitos homens de letras e eruditos.

(...)mas a ação de tais homens nunca exerceu uma influência tão profunda quanto no início

do século XVI, (...) uma multidão de eruditos e escritores entram a serviço dos editores

como corretores, muitos deles são naturalmente levados a se tornar, por sua vez,

impressores e livreiros. (Febvre e Martin, 1991: 218)

Será entre os humanistas que o individualismo literário irá se expressar de forma

mais pronunciada, uma vez que desde o século XI uma certa idéia de autoria vinha sendo

desenvolvida. Como um movimento cultural, mas também político cabia ao humanismo

criticar de forma intensa o conhecimento praticado nas instituições universitárias sob o

monopólio clerical e, se num primeiro momento isso representava um retorno aos clássicos,

rapidamente transformou-se numa crítica radical ao conhecimento anteriormente construído

e a uma visão de ruptura com as tradições clássicas e medievais. O ambiente das academias

ao mesmo tempo que promoviam o resgate também incentivavam a inovação. Conceitos

como genialidade e originalidade são gerados no seio do quatrocento, berço do movimento

humanista.

Devemos também assinalar que a participação de muitos humanistas na empreitada

gráfico-editorial dos séculos XV e XVI lhes possibilitou adentrar uma dimensão econômica

que era inconcebível para um homem de letras antes da invenção da imprensa. De um modo

geral a nova economia do conhecimento permitia a estes humanistas buscarem recursos em

121

diversas fontes distintas e complementares. Eles podiam dar aulas, publicar seus próprios

livros e atuar como revisores ou consultores dos livreiros editores no estabelecimento,

tradução e organização de novas edições. Alguns autores bem sucedidos podiam proferir

palestras pagas nas grandes cidades, principalmente a partir do século XVIII. É neste

cenário de competição entre os próprios humanistas e de crít ica ao modelo medieval de

compilação e respeito submisso ao conhecimento anterior que a identidade do autor

começará a assumir suas características modernas:

O surgimento da idéia de propriedade intelectual foi uma resposta tanto à

emergência de uma soc iedade de consumo, quanto à difusão da nova tecnologia de

impressão. Algum sentimento de propriedade literária já havia, se não antes. Os humanistas

se acusavam uns aos outros de roubo ou plágio, enquanto eles próprios cartavam-se de

praticar imitação criativa. (Brigss e Burke , 2003: 64)

Um ponto que não deve ser desconsiderado na formação do conceito de autor é o

surgimento de um grande mercado de consumo. O crescimento das cidades nos séculos

XVI e XVII criou na Europa um mercado consumidor, que prop iciava aos autores a base

material de sua empreitada; os números de edição de livros nos primeiros três séculos após

a invenção da prensa de tipos móveis ilustram este cenário. Em meados do século XV as

tiragens eram de 300 exemplares, no final deste século já atingiam cerca de 500

exemplares. Nos séculos XVI e XVII atingiu a marca de 1500 exemplares e chegou a 2000

no século XVIII. Apenas nos primeiros 50 anos de sua existência entre a metade do século

XV e o início do século XVI, cerca de 20 milhões de livros foram produzidos na Europa,

sendo que a população do continente, a essa época, não passava de 100 milhões de pessoas,

a imensa maioria de analfabetos.

122

Furtamo-nos da discussão de se foi à impressão que criou um mercado consumidor

ou se está foi apenas um sintoma deste. O fato é que as pessoas passaram a consumir livros,

mas não apenas livros. O século XVI é considerado um período de imensa prosperidade

econômica na Europa, ao longo do qual o fluxo de mercadorias vindos das Américas,

África e Ásia inundavam os mercados. Este proto-capitalismo não seria possível sem a

existência de uma legião de consumidores. Neste cenário prosperará a idéia de propriedade

industrial e também a idéia de marca, signo distintivo, que designava as qualidades de

determinados produtos:

Dessa maneira, as forças de mercado estimulavam a idéia de autoria individual,

reforçada por novas práticas, tais como imprimir o retrato do autor no frontispício, ou

apresentar uma edição das obras reunidas de um autor, como sua biografia. (Brigss e

Burke, 2003: 64)

A lenta, porém vigorosa criação de um mercado de consumo de bens simbólicos, a

possibilidade de aferir ganhos materiais a partir da produção intelectual e a crítica aos

modelos de conhecimentos medievais, foram os principais fatores a impulsionar o

surgimento da autoria. E caso admitamos esta fórmula, devemos também aceitar a

arbitrariedade da divisão entre direito moral e direito patrimonial, já que estas duas

dimensões confundem-se no processo de formação da autoria como a conhecemos.

As condições dos autores no início do período em que se o conceito moderno de

autoria se construiu eram precárias. Durante os séculos XV e XVI a cidade de Veneza era a

maior produtora de livros do mundo. Mais de 500 oficinas de impressão competiam

transformando antigos manuscritos em obras impressas, resgatando textos da Antiguidade

clássica e, num segundo momento, editando obras novas compostas por autores

123

contemporâneos, muitos deles humanistas. Nesse período é que surgiu a figura do

“proletário das letras”, chamados de poligrapi, um exército de escritores profissionais que

alugavam suas penas aos senhores impressores, trabalhando exaustivas horas na criação de

obras para o emergente mercado editorial.

No século XVII, alguns autores já recebiam pagamentos substanciais de seus

livreiros-editores, valores que já permitiam independência em relação aos respectivos

empregadores.

O grande número de impressores e editores em Veneza era uma das atrações da

cidade para os homens de letras, uma vez que lhes possibilitava sustento

independentemente de patrocinadores, ainda que isso não os tornasse ricos. (...) Um grupo

desses homens de letras eram apelidados de poligrafi, porque escreviam muito e sobre

grande variedade de assuntos para sobreviver. (BRIGSS e BURKE, 2003: 65)

Estes autores escreviam em verso ou prosa, realizavam adaptações, traduções,

compilações, muitos se especializaram em trabalhos que ofereciam informações práticas, os

famosos livros de auto-ajuda. Viviam, como apontam Brigss e Burke, na fronteira entre

dois mundos, por um lado eram como os copistas medievais que basicamente copiavam

textos anteriores, fazendo algumas pequenas modificações que julgassem oportunas, por

outro recebiam por seu trabalho e eram desafiados a criar coisas novas, que propiciassem

maiores ganhos e permitissem uma sobrevivência mais confortável.

No século XVII, Amsterdã superou Veneza como principal centro produtor de

livros. Graças à tolerância político-religiosa praticada pelos holandeses, somada ao ímpeto

de suas empreitadas comerciais representadas de forma exemplar pela Companhia das

Índias Orientais. Em solo holandês novamente encontraremos a figura do poligrafi, agora

124

encarnada por inúmeros refugiados protestantes e judeus que, fugindo à perseguição

religiosa da inquisição católica, encontravam em Amsterdã um refúgio. Como o número de

refugiados era imenso e as possibilidades religiosas limitadas, muitos pastores tornavam-se

empregados de editores e impressores.

O eixo da produção editorial européia deslocou-se para Londres no século XVIII,

pois a importância de seu império ultra-marino conferia aos ingleses condições de liderança

na indústria do conhecimento. Os escritores de aluguel ganharam uma nova alcunha, ligada

ao local onde um grande número deles viviam: eram conhecidos como Rua Grub. Sua

atividade era exatamente a mesma da dos primeiros poligrafi de Veneza.

Não devemos nos apressar em idealizar a situação dos escritores no século

XVIII em Londres. Um grupo deles, conhecidos coletivamente como “Rua Grub”,

pelo lugar onde moravam, lutavam para garantir seu sustento, como havia acontecido

anteriormente em Amsterdã e Veneza. (BRIGSS e BURKE, 2003: 68)

O estabelecimento de um campo, como o da autoria e de um campo ainda mais

abrangente como o da edição, é um processo lento e complexo. No seu interior proliferam

grupos e subgrupos, assim como uma classe social é composta por diversas frações. Entre

os autores havia os poligrafi, mas também havia aqueles que ainda cultivavam parte dos

sentimentos medievais em relação à autoria. Ao mesmo tempo em que apreciavam o

reconhecimento individual pela criação, estes intelectuais rechaçavam as possibilidades de

ganhos materiais com a produção do conhecimento: “Pedir dinheiro ao livreiro, a quem

entregam suas obras e que delas tirará benefícios, vender, portanto a obra de seu espírito,

ainda não entrou nos costumes: os autores do século XVI – alguns do século XVII ainda –

recusam-se a aceitar uma tal decadência.” (Febvre e Martin, 1991: 242)

125

Muitos eram remunerados com alguns exemplares da obra que mandavam

encadernar e com a qual presenteavam um importante senhor que os beneficiava com

dinheiro e honrarias. Assim como os poligrapi estavam vivendo entre dois mundos, estes

autores também não conseguiam se desvencilhar de muitas das características da edição

medieval.

No século XVII ainda eram poucos os autores que viviam às expensas de sua produção

intelectual:

Contudo, os autores que conseguem assim subtrair grande soma de seus livreiros

são bem pouco numerosos. De fato, salvo talvez em alguns casos isolados, no final do

século sobretudo, as somas que os autores recebem continuam bastante pequenas.

(Febvre e Martin, 1991: 244)

Diante desse quadro, onde apenas um pequeno número de autores recebe

proporcionalmente pelo comércio de suas idéias, em que o comércio do conhecimento

cresce vertiginosamente e em que uma ideologia conservadora acerca das recompensas

materiais pela criação intelectual ainda viceja, como se deu a criação dos direitos de autor?

Muitos teóricos do direito, e parte dos intérpretes marxistas da história atribuem às

lutas dos autores a aquisição deste direito. Consideramos estas visões como parciais e

simplistas; o fenômeno da criação do corpus jurídico que passou a proteger os direitos do

autor é resultado de conflitos estabelecidos no campo editorial e no qual os interesses de

diversos agentes tiveram de ser acomodados a fim de se criar a relativa estabilidade

necessária à manutenção do campo. Mas antes de abordarmos diretamente o corpus

jurídico, necessitamos detalhar a presença de outros agentes deste campo.

126

3. Livreiros editores e impressores.

A reprodução técnica do livro possibilitada pela impressão iniciou uma indústria

que foi capitalista desde seu princípio. O estabelecimento de uma oficina de impressão em

uma determinada localidade obedecia às seguintes características:

• Facilidade de acesso às matérias-primas;

• Facilidade de acesso aos mercados consumidores;

• Existência de um mercado consumidor local;

• Apoio, ou pelo menos tolerância por parte de instituições como a Igreja, a

Universidade e o Estado.

O investimento original dos mestres impressores em prensas e coleções de tipos não

era muito alto, fato que possibilitou, em pouco mais de um século, a proliferação veloz do

ofício por toda e Europa. Mas a este tipo de facilidades para iniciar o negócio não acontecia

em seu desenvolvimento. O papel, principal matéria prima, era caro, tornando o processo

de impressão oneroso e arriscado. As matrizes dos tipos também eram caras54, à medida

que o processo de impressão se diversificava, era necessário a um impressor possuir várias

coleções de tipos, fato que encarecia o processo. Logo, investimento passou a ser a

palavra-chave, e retorno sobre o investimento uma necessidade crucial para sua

continuidade. Por isso, muitos mestres impressores buscavam associar-se à Igreja, ou às

Universidades que tinham uma permanente necessidade por impressos. Os livros datados

dos primeiros 50 anos da imprensa que chegaram até nós demonstram a preponderância das 54 É importante não confundirmos as matrizes dos tipos e as coleções derivadas destas. A matriz era feita com metal nobre, já as coleções usavam material de pior qualidade, mais facilmente maleável e, mais barato.

127

reedições de textos manuscritos, a imensa maioria em latim, sendo que as obras de cunho

religioso formam a maioria, seguidas por tratados de conhecimento ligado aos escolásticos

e a reimpressão de obras clássicas da Antiguidade.

A primeira onda editorial européia sob o signo da prensa de tipos móveis é marcada

pela impressão de obras religiosas bem como pela reimpressão de livros antigos, cópias

impressas dos manuscritos medievais, o resgate em larga escala da cultura clássica. Este

insumo propiciou o estabelecimento das oficinas e sua prosperidade nos primórdios. Porém,

o próprio sucesso da empreitada representou seu esgotamento. À medida que as obras eram

compostas e impressas, o mercado ia ficando repleto de títulos de um mesmo assunto, ou de

diversas edições de um mesmo livro, muitas vezes copiadas umas das outras. Como o livro

é um bem durável, e o conhecimento nesta época possuía uma taxa de obsolescência 55

certamente menor que a dos dias atuais, logo se tornou evidente que um impressor de

sucesso precisava investir em novos títulos. O ingresso das línguas vernáculas no panorama

da edição e a ascensão da fé protestante representaram o insumo principal da segunda onda

de impressos. Livros defendendo a nova fé, e outros a atacando, alimentaram as prensas

européias nos séculos XVI e XVII. A proliferação das academias humanistas e a criação de

um mercado de auto-ajuda também contribuíram para esta segunda onda.

Por certo, tornou-se evidente aos impressores que duas características da economia

contribuíam diretamente para o sucesso da empreitada. Primeiro, era imprescindível

conseguir obter economia de escala, por isso, notamos um crescente aumento nas tiragens

que dobram de tamanho no século XVI e novamente no século XVIII. Segundo, era

55 Muitos dos teóricos da era da informação afirmam que a obsolescência de muitos conhecimentos é uma das marcas de nossos dias.

128

fundamental possuir um catálogo diversificado que permitisse economia de escopo e

diminuísse a dependência do impressor de um único gênero ou segmento literário:

Enfim a edição de um livro é, com freqüência, uma empreitada aleatória,

pois ignora-se a acolhida que lhe reservará o público. Daí a avidez com a qual os

editores procuram as obras de venda certa – os livros da Igreja, por exemplo, os únicos cuja

venda é assegurada em período de crise. Daí, também, para evitar os riscos devido à má

venda de um volume único com o qual se contava, a necessidade de executar

simultaneamente várias edições – portanto de empenhar capitais muito importantes.

(Febvre e Martin, 1991: 181)

Por exemplo, imprimir só livros protestantes podia não ser um bom negócio, já que

perseguições religiosas e políticas podiam arruinar os consumidores. Pensando no longo

prazo, fornecer para apenas um editor ou instituição também não era interessante, daí que o

empreendimento da impressão esteve sempre a serviço de múltiplas encomendas e

segmentos. É claro que também havia aqueles que mantinham certa exclusividade, mas

eram exceções e não regra.

Como em todo empreendimento capitalista o capital para investir era crucial ao

sucesso da empreitada. Nem tanto no início do negócio, mas principalmente para sua

expansão e desenvolvimento:

Assim, o comanditário – o capitalista – intervém para desempenhar um papel

essencial. É ele que suporta os riscos das empresas, é ele que se encarrega de escoar a

produção, e é ele, freqüentemente, que escolhe os textos para editar. Às vezes, também, é

levado a montar uma grande oficina na qual trabalha segundo os métodos da grande

indústria e não mais somente do simples artesanato. (Febvre e Martin, 1991: 183)

129

Burgueses ascendentes percebem no novo ofício uma enorme oportunidade de

enriquecimento, e imprimem às oficinas de impressão um grau de profissionalismo próprio

das empreitadas comerciais tradicionais. O capital necessário para abrir uma oficina de

impressão não era grande, como mencionamos, também a aquisição dos rudimentos da

técnica era relativamente simples, entretanto, para realizar apenas uma edição de 300

exemplares de um livro, o volume de dinheiro investido era maior que o necessário para

montar a oficina. Edições maiores, com um número grande de páginas por exemplar,

exigiam capitais muito superiores aos que possuíam a média dos impressores, por isso, o

comanditário torna-se a figura central do mercado editorial a partir do século XVI.

A estrutura atual do campo editorial tem claramente delimitados os papéis do

gráfico, do editor, do livreiro e do distribuidor, como ficou demonstrado no capítulo dois

desta dissertação. Ocorre que o processo que definiu esta estrutura, assim como aquele que

fundou a figura do autor, também foi construído ao longo de alguns séculos. Quando da

invenção da prensa de tipos móveis a figura do editor e do livreiro não existiam. O primeiro

personagem da cadeia de valores a ganhar contornos foi a do impressor. Em geral dotado de

pouco capital, possuía poucas prensas e alguns ajudantes. Suas opções editoriais estavam

diretamente ligadas às encomendas das universidades e paróquias.

Com o sucesso da empreitada, surgiu o sócio capitalista, que podia comprar o

empreendimento, ou que contratava os gráficos de sua preferência cabendo a ele o processo

de comercialização. As lojas de vendas de livros que se formaram nas cidades universitárias

eram fonte de encomendas, entretanto, os livreiros percebem rapidamente que os mercados

locais eram insuficientes para o consumo de edições lucrativas, e em nome da economia de

escala, rapidamente expandiram seus negócios por toda a Europa e por parte do “novo

130

mundo”. Como o estoque de uma livraria exigia muito mais capital que àqueles necessários

para manter uma prensa, muitos livreiros passaram a se dedicar à edição, selecionando

obras e as imprimindo em oficinas próprias:

Freqüentemente, os grandes livreiros se esforçavam para construir grandes

tipografias onde se praticava a divisão do trabalho e os companheiros 56 tinham uma

especialidade bem definida. Uma dupla preocupação os levava a isso: o desejo de produzir

por melhor preço, graças a uma organização racional – e o de realizar impressões de melhor

qualidade. . (Febvre e Martin, 1991: 192)

Alguns dos gráficos bem sucedidos eram homens cultos, conheciam latim e grego,

bem como algumas línguas vernáculas. Estes homens, misto de intelectuais e

empreendedores quando conseguiam capital suficiente, também podiam tornar-se editores,

livrando-se assim das incertezas das encomendas alheias e mergulhando no negócio de

risco das edições. E esta decisão certamente era inspirada pela máxima capitalista: “Quanto

maior o risco, maior o lucro.”

Se consegue lucros suficientes, e se pode reunir algum capital, torna-se ele mesmo

editor , associando-se às vezes para assumir as despesas da publicação, com um outro

livreiro que partilha com ele os riscos e os benefícios da empresa e que se encarrega de

distribuir uma parte da impressão. Graças a esse sistema, o impressor consegue às vezes

tornar-se um grande editor. (Febvre e Martin, 1991: 212)

Finalmente nas origens do editor também pode estar uma categoria de intelectuais,

os humanistas, que podiam iniciar sua entrada no mundo editorial, colaborando com um

livreiro ou com um gráfico no ofício de revisor, mas que, se possuísse algum capital,

poderia também se enveredar pelos caminhos da edição: 56 Operários das oficinas tipográficas subordinados ao mestre impressor.

131

Ao mesmo tempo homens de ação e humanistas, vivendo numa época de

excepcional prosperidade econômica, ajudados por editores e comanditários que sabem

reconhecer seus méritos, tem eles muitas vezes um brilhante sucesso ao pôr seus prelos a

serviço do humanismo , ajudando assim o triunfo da causa à qual se consagram. Febvre e

Martin , 1991: 219)

No século XVI, já é possível encontrar grandes livreiros-editores, um deles foi Jean

Petit, que atuava em Paris e foi responsável por 10% das edições de sua época. Mais de

1000 títulos foram editados por este editor francês, em seus 37 anos de carreira. Ele era um

dos quatro livreiros juramentados da Universidade de Paris e, com este privilégio, mantinha

ao seu redor um bom número de impressores e livreiros-editores menos poderosos. Seu

exemplo, embora importante, não é excepcional. Por toda Europa, capitalistas similares

atuam nas cidades importantes, estabelecendo uma rede comercial que constitui um dos

primeiros grandes segmentos industriais do comércio internacional, antes mesmo da

revolução industrial:

Em volta dos grandes livreiros-editores como esses que acabamos de citar, gravita

uma quantidade de livreiros mais ou menos ricos, que vivem da venda dos livros ao mesmo

tempo que da edição, freqüentemente associados a grandes livreiros em companhias ou

sociedades particulares, e que dependem mais ou menos das redes comerciais estabelecidas

por estes para se abastecerem de livros. . (Febvre e Martin, 1991: 197)

O editor é um personagem tardio na cadeia de valores do livro, pode ter como

matriz um capitalista burguês, um pequeno empreendedor tipográfico ou um intelectual. A

partir de seu aparecimento o mercado vai ganhando traços mais específicos, as funções irão

se delineando e como em toda empreitada capitalista o processo de especialização e de

132

divisão do trabalho persistirá no mercado editorial, se bem que seus agentes principais já

estarão perfeitamente delineados no final do século XVIII.

É próprio aos empreendimentos capitalistas, muitos dos quais requer um certo

ineditismo e investimentos materiais, a pretensão ao monopólio. Isto deve ter parecido

estranho ao mundo das letras do século XV, no qual os conceitos de propriedade do

conhecimento ainda não haviam se consolidado. Mas, o fato é que os impressores de

Veneza foram os primeiros a obterem privilégios de impressão das obras que editavam. A

pretensão ao privilégio, entretanto, ficou mais crítica quando as reedições já não atendiam

aos anseios do público e tornava-se necessário investir em traduções e novos títulos.

Quando a fase de pré- impressão57 ingressa no mundo editorial, os privilégios se tornaram

críticos:

Mas, em breve, a massa de textos inéditos se esgota, as contrafações aparecem e se

multiplicam e, para se defenderem, os editores começam a solicitar privilégios que lhes

concedam, por algum tempo, o monopólio da impressão e da venda das obras que

mandaram imprimir, e procuram cada vez mais obras novas para publicar. (FEBVRE e

MARTIN, 1991: 241)

Será também desta maneira que o Estado atuará de forma mais ativa no mundo da

edição de livros.

57 Preparação de originais e composição gráfica (editoração, geração de fotolitos, montagem das caixas com tipos, etc).

133

4. O papel do Estado no mundo editorial.

O aparecimento da impressão por tipos móveis e a conseqüente proliferação dos

impressos por toda a Europa deu-se num período de transição em que a fragmentada

estrutura feudal era lentamente suplantada pela consolidação dos Estados nacionais. O

desenvolvimento da impressão ocorre, do ponto de vista temporal, em paralelo ao

estabelecimento das nações européias, suas fronteiras, línguas nacionais, estruturas

jurídicas e políticas. Trata-se, também, de um período de abertura para o restante do

mundo, com a intensificação do comércio ultramarino e o estabelecimento de colônias

além-mar.

Impossível dissociar a impressão deste fenômeno mais geral de estruturação da

Europa Moderna. Crucial neste período de intensa competição entre as nascentes nações era

o domínio de informações e conhecimentos que permitissem vantagens competitivas. É,

portanto, uma época de intensa espionagem e de forte pirataria entre os diferentes centros

de inovação. Centros impressores como Veneza, Amsterdã e Londres foram

sucessivamente acusados de praticar pirataria, e efetivamente assim procederam, e talvez à

pirataria deveram suas hegemonias respectivas no mundo do livro.

O fenômeno ocorreu de forma bastante similar nesses três centros. Por exemplo,

Veneza, a primeira cidade a figurar como líder do mercado editorial europeu, foi a primeira

a se preocupar com a proteção de sua indústria do conhecimento. Deste modo, será em

Veneza que surgirão as primeiras patentes industriais e os primeiros privilégios concedidos

pelo Estado a livreiros e impressores. A primeira concessão de privilégios ocorreu em

134

1486, através da qual o duque de Veneza concedia a um determinado impressor o

monopólio da exploração comercial de um determinado título. A primeira lei de patentes

foi aprovada nesta cidade em 1474. Em 1567, o senado de Veneza concedeu ao artista

Ticiano o primeiro direito autoral artístico. Tais privilégios eram de pouca serventia fora do

território de atuação do poder estatal.

Em uma Europa fragmentada, na qual as fronteiras ainda se definiam e o poder dos

príncipes e nobres locais rivalizava com o de reis e imperadores, os privilégios se

multiplicaram, enquanto sua eficácia permanecia restrita.

Papas, imperadores e reis concediam privilégios, em outras palavras, monopólios

temporários ou permanentes, para proteger textos, impressores, gêneros ou mesmo novas

fontes tipográficas. O imperador Carlos V, por exemplo, emitiu 41 “cartas de proteção”

(Schutzbriefe) deste tipo no curso de seu longo reinado. As leis de direito autoral do século

XVIII foram um desenvolvimento deste sistema mais antigo de privilégios. (Burke, 2003:

139)

Juntamente ao processo de concessão de privilégios de proteção específico das

obras literárias, ocorriam regulamentações mais amplas que visavam proteger as indústrias

locais. Nessa época, a organização de corporações de o fício, seguindo tradição herdada dos

artesãos medievais, era comum nos principais centros impressores. Estas associações

visavam proteger o mercado local de impressão, impedindo que novos impressores se

instalassem sem a concordância da guilda, bem como regulavam as relações entre mestres-

impressores e companheiros58. Para o Estado, tais organizações eram vistas com bons

olhos, pois permitiam a este um controle mais efetivo da indústria do conhecimento:

58 Trabalhadores da nas cente indústria gráfica.

135

O Estado, de outro lado, favoreceu tanto mais este movimento, que levou ao

aparecimento de corporações, por desejar que se mantivesse a ordem e, sobretudo que se

impedisse a publicação de maus livros, que se multiplicavam, e por ter ele interesse em

facilitar a criação de organismos que lhe permitissem controlar mais facilmente a atividade

dos livreiros e dos impressores. (Febvre e Martin, 1991: 217)

No século XVI o Imperador do Império austro-húngaro buscava impor restrições ao

comércio de livros, em especial das obras protestantes. Na França, em 1563, o rei interveio

diretamente no controle e na proibição de livros, obrigando os livreiros a obter um

privilégio para publicar suas obras. Por toda Europa modelos similares ao praticado na

França tornar-se-ão regra. De tal forma que o Estado tenta controlar a impressão de cada

título, cujos originais passam a ser submetidos aos censores designados. Sob o pretexto de

monopólios comerciais os monarcas passam a controlar a circulação de idéias.

Longe de impedir a circulação dos livros e idéias heterodoxas, as proibições

acabaram por fomentar um poderoso mercado de pirataria que se estendia da Espanha até as

fronteiras com o império Otomano. Nos séculos XVI e XVII, primeiro Amsterdã, e depois

Londres prosperaram pirateando obras protegidas em outras regiões e também publicando

obras proscritas para alimentar os mercados nos quais as restrições vigiam. Em regiões

fronteiriças da Suíça com a França, importantes centros impressores se formaram graças ao

comércio de livros proibidos.

O Estado é um importante aliado dos livreiros-editores estabelecidos, com os quais

mantém relações de privilégio, mas também de controle, de modo que a questão do direito

de autor, irá aparecer tardiamente no cenário regulatório da indústria do conhecimento, com

intensa participação do Estado.

136

5. O papel da Igreja no mundo editorial.

Assim como o Estado, a Igreja (primeiro unificada e depois cismada com a

revolução protestante), atuará de forma a regular o processo de circulação de impressos.

Aliás, muito antes dos Estados Europeus atuarem neste campo, a Igreja desempenhava

papel regulador no sistema de circulação de idéias. Isto naturalmente decorria do papel

central que esta instituição desempenhou durante a Idade Média. Praticamente todo o

sistema de guarda e recuperação de informações passava pelo sistema monástico. As

bibliotecas, o sistema de cópias e mais tarde as universidades estavam sob o controle da

Igreja, que durante a Idade Média publicará listas de livros proibidos:

Mas a Igreja, guardiã da ortodoxia, devia impedir a difusão das obras heréticas; já

na Idade Média haviam sido numerosos os textos condenados, cuja leitura, cópia ou venda

haviam sido proibidas.” (Febvre e Martin , 1991: 350)

Entretanto, diferentemente do que possa imaginar o senso comum, a Igreja não

receberá de forma refratária a nova tecnologia de reprodução de textos. Ao contrário,

durante as primeiras décadas de existência da impressão, foram os eclesiásticos os que mais

incentivaram o desenvolvimento da indústria gráfica. Muitas paróquias incentivaram o

desenvolvimento de oficinas locais de impressão que passaram a imprimir os missais, e o

material didático das escolas locais: “Mas, com maior freqüência, os homens que

favorecem a tipografia no seu início são eclesiásticos: nos primeiros tempos a Igreja se

mostrou muito favorável à nova arte.” (Febvre e Martin, 1991: 255-256)

137

Nas primeiras décadas da impressão muitas oficinas foram instaladas em conventos,

sendo posteriormente superadas por oficinas leigas:

A partir de 1480 mais ou menos, (...) a importância das oficinas de conventos

diminui enquanto as oficinas particulares tornam-se, pelo contrário mais numerosas,

sobretudo, nas cidades universitárias, onde os encadernadores têm certeza de encontrar uma

clientela. . (Febvre e Martin, 1991: 165)

Com o cisma promovido por Lutero e seus seguidores, a atitude da Igreja em

relação ao novo ofício transformou-se: a recepção entusiástica cedeu ao controle rígido. A

inovação converteu-se em arma no combate às novas idéias. Listas de livros proibidos serão

sucessivamente publicadas e a Inquisição ocupou-se ciosamente da perseguição e

destruição de livros e de seus respectivos autores.

Para os protestantes a imprensa foi a principal arma de combate, valendo-se da

tradução para línguas vernáculas e do poder de multiplicação rápida que a imprensa

propiciava, as idéias de Lutero, Calvino e outros se espalharam por toda a Europa e criaram

um mundo protestante. Quando a nova fé se consolidou, a perseguição a heresias também

passou a ocorrer também no mundo protestante, de forma que tanto católicos quanto

protestantes tinham suas listas de obras proibidas e militavam no sentido de impedir a

circulação destas. A Igreja, cuja estrutura de poder era muito mais antiga e centralizada,

conseguiu os melhores resultados neste processo, fato que talvez obscureça a militância

protestante neste campo.

A presença da Igreja católica e das várias religiões protestantes no processo de

controle de impressos foi tão relevante quanto a presença estatal e muitas vezes as esferas

religiosa e política atuaram de forma conjunta no combate aos livros que consideravam

138

nocivos à ortodoxia vigente. Isso nos permite afirmar que o estabelecimento do direito de

autor está também, intimamente ligado à necessidade que estas instituições tinham de

identificar os autores de idéias heterodoxas e de controlar suas atuações.

6. Das primeiras leis ao estabelecimento ao Copyright

Como vimos, por conta de uma necessidade de proteção comercial por um lado e de

controle de idéias por outro, um corpus jurídico começou a formar-se de maneira

fragmentária, em diversas regiões da Europa nos séculos XV e XVI. As leis atendiam

especialmente aos livreiros-editores e impressores, que buscavam estabilizar o mercado.

Isto não significava que os autores abdicaram de estabelecer seus direitos, mas o que as

pesquisas históricas realizadas neste campo até o momento demonstram é que as tentativas

dos autores em fazer valer seus direitos eram iniciativas isoladas, especialmente daqueles

cujo sucesso editorial permitia que negociassem com os livreiros-editores melhores

adiantamentos.

Não sabemos se os poligrafi se organizaram como classe, ou fração de classe, ou se

estes “proletários” das letras criaram algum movimento no sentido de fazer valer seus

direitos. Mas, certamente, que, na medida em que as categorias sociais se consolidavam e

os resultados obtidos com o comércio de idéias enriquecia os livreiros-editores, os autores,

mesmo os mais marginais, passaram a perceber que tinham um papel importante na geração

desta riqueza. Desta “consciência” até o estabelecimento de movimentos em prol dos

direitos de autor, longo período deve ter decorrido.

139

Alguns dados corroboram com a idéia de que os autores a partir do século XVI

buscavam tomar as rédeas do empreendimento literário:

(...) para conservar os benefícios e para fiscalizar a difusão de suas obras, muitos

autores tentaram em toda parte, a partir dos finais do século XVI, mandar imprimir seus

livros as suas expensas. (...) Mas tais tentativas eram muito mal-vistas pelos livreiros e

pelos impressores. Estes procuravam entravar de todos os modos a venda de obras

publicadas em “edição de autor”. (Febvre e Martin, 1991: 245)

Para melhor compreendermos a situação do autor no século XVII é importante que

façamos um inventário dos dados que levantamos até o momento:

a. A partir do século XI o conceito de autor começa se formar.

b. Por cerca de quatro séculos a idéia de produção de um conhecimento

original e de propriedade intelectual de uma idéia, conviveu com as formas

de produção coletiva de conhecimento.

c. A idéia de autoria ganhou força no século XV com a invenção da prensa de

tipos móveis.

d. A possibilidade de aferir benefícios financeiros pela criação de uma obra

intelectual se desenvolveu nos séculos XV e XVI.

e. Movimentos intelectuais dentre os quais destacou-se o humanismo

contribuiu fortemente com a criação de uma identidade de autor.

f. A idéia de cobrar pela produção intelectual conviveu entre os séculos XV e

XVII com os modelos de mecenato vigentes na Idade Média.

140

Com estes dados acreditamos ser possível sustentar que na segunda metade do

século XVII, encontrava-se madura, nas principais regiões produtoras de livros as

condições para que surgissem as primeiras leis de proteção aos direitos de autor, como

resultado de quatro forças convergentes:

a) A necessidade dos capitalistas do mercado editorial de se preservarem contra a

ameaça de possíveis concorrentes aos originais que editavam;

b) A necessidade de Estado e Igreja de identificar e controlar os autores de idéias e o

comércio de conhecimento;

c) A necessidade dos autores de participarem dos lucros aferidos na empreitada

editorial.

d) O estabelecimento de um mercado consumidor, cujos membros reconheciam o valor

dos autores e de suas obras, conferindo prestígio a alguns.

Das nações européias, a precursora no estabelecimento de uma legislação positiva

acerca do direito de autor foi a Inglaterra. No mesmo período em que Londres tornou-se a

capital européia da edição superando Amsterdã e Veneza, surgiu a primeira lei relacionada

à propriedade intelectual: refiro-me do Licensing Act de 1662, que proibia a impressão de

livros que não fossem devidamente registrados e concedia os privilégios aos livreiros

editores. Era uma lei parecida com a que vigorava na França um século antes e como

aquela protegia basicamente os privilégios dos capitalistas da edição, ao mesmo tempo em

que assegurava o controle do Estado. Mas enquanto na França as coisas não avançaram no

sentido de um corpus jurídico que protegesse também o autor, na Inglaterra em 1709 foi

promulgado o Copyright Act, da Rainha Ana, que concedia ao autor a regalia de receber

141

dividendos pela sua obra, protegendo-a por 21 anos após o seu registro formal, que poderia

ser feito após a impressão. Para obras não impressas a proteção era de 14 anos.

O século XVIII francês foi marcado por inúmeras batalhas judiciais entre autores e

livreiros-editores pelo privilégio de publicar e comercializar as obras que criavam. Há

registros de uma importante vitória dos autores em 1761, quando as netas de La Fo ntaine

obtiveram o privilégio de publicar as obras do avô às expensas de seus antigos editores. Em

1777, cinco decretos estabeleceram privilégios indefinidos de exploração da obra pelos

autores e de dez anos para exploração das obras por livreiros-editores. Mas foi apenas após

a revolução, em 1793, que a França passou a contar com uma lei geral de proteção aos

direitos autorais: “(...) o autor tinha o direito de vender e distribuir suas obras e de ceder sua

propriedade, totalmente ou em parte, e o direito de propriedade de autor prolongava -se em

favor de seus herdeiros dez anos após sua morte”.( Febvre e Martin, 1991: 249)

De forma desigual e lenta durante todo o século XIX, o direito de autor vai sendo

estabelecido no ocidente. Um dos marcos institucionais da internacionalização dos direitos

de autor foi a realização na França, no ano de 1878, do congresso literário mundial, durante

o qual foi fundada a Associação Literária Internacional, entidade que irá trabalhar em prol

da defesa dos direitos internacionais de defesa dos direitos de autor. No ano de 1886

realiza-se na Suíça a terceira conferência diplomática sobre direitos autorais na qual é

composta a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, cujos

princípios inspiraram muitas das leis e acordos sobre direito autoral e propriedade

intelectual. Sua abrangência e flexibilidade pode ser atestada por sua longevidade, pois ele

é o mais antigo tratado internacional vigente. 59

59 Sua última revisão data de 24 de julho de 1971, com emendas realizadas em 28 de setembro de 1979.

142

No Brasil a primeira lei relativa à proteção da propriedade intelectual é de 1830: o

Código Criminal do Império, que prevê sanções para quem copiasse obras artísticas e

literárias sem autorização de seus autores, protegendo as obras durante a vida do autor e até

dez anos depois de sua morte. O código civil promulgado em janeiro de 1916 traz todo um

capítulo dedicado à propriedade literária, científica e artística.

Em 1973 foi promulgada uma lei dedicada exclusivamente ao direito autoral. E a

teia jurídica que protege os direitos de autor no Brasil também se compõe do artigo 184 do

Código Penal, e da própria Constituição Federal, que consagra um de seus itens a proteção

deste direito.Finalmente no ano de 1998, foi promulgada a Nova Lei de Direitos Autorais

brasileira, a lei 9.610. Este diploma legal atualizou uma série de questões da lei anterior e

incorporou na lei questões relacionadas à emergência do mundo digital e a

desmaterialização de conteúdos.

7. Do direito de autor à propriedade intelectual.

A questão do direito autoral inscreve-se num quadro mais amplo consagrado à

propriedade intelectual. O conjunto de dilemas que envolvem a constituição de um corpus

jurídico que irá proteger as criações literárias pode ser estendido a questões de natureza

científica, tecnológica e simbólica. Exploramos no início deste capítulo às dificuldades de

se tentar utilizar o conceito de autor durante a Idade Média. E o mesmo que se passa no

campo autoral se dá no campo da pesquisa científica e da inovação tecnológica. Todas estas

questões se encontravam dentro do mesmo arcabouço de conhecimentos considerados

143

universais e coletivos. Não é de se estranhar que a primeira lei a proteger invenções

tecnológicas, a primeira lei de patentes, tenha surgido em Veneza, na mesma época em que

os privilégios estavam sendo concedidos aos impressores. Uma lei de 1474 constitui a

primeira tentativa institucional de proteger invenções vinculadas a um indivíduo. Em nosso

imaginário a figura da genialidade científica e cultural não pode ser mais bem representada

do que pelos grandes personagens da Renascença, dentre os quais a figura de Leonardo da

Vinci se destaca. Para aqueles homens o conhecimento era pensado como um todo, daí a

associação do engenheiro com o artista era possível, pois as barreiras da especialização

excessiva ainda não haviam sido erguidas.

Podemos especular que a mesma revolução impressa que inspirou o conceito de

autoria e propriedade literária talvez tenha se influenciado os campos da ciência e da

invenção, despertando a necessidade de sua proteção. Muito antes de a revolução industrial

inspirar uma miríade de inventores a registrarem suas patentes, os nascentes estados

europeus promoviam em sua disputa por mercados, um forte controle de seus inventos. Isso

era de fundamental importância na indústria naval, pois nesse período o domínio dos mares

representava liderança econômica.

Existem inúmeros relatos sobre viajantes cultos, que financiados por seus governos,

realizavam extensas peregrinações a outros países, registrando informações preciosas que

depois eram repassadas a seus governos. Os holandeses da Companhia das Índias Orientais

mantinham uma extensa rede de informações por todo o mundo. Outro expediente muito

praticado era o de cooptar trabalhadores especializados e inventores que viviam em outros

centros:

144

No século XVIII, o governo romano convidou um artesão de Lyon para introduzir o

método Francês de tingir a seda e mandou seis tecelões a Turim para aprender o método

holandês. (...) Na década de 1780, um engenheiro francês viajou pela Inglaterra coletando

informações sobre a cerâmica Wedgwood, adquirindo teares e outras máquinas, e levando

consigo três trabalhadores “sem os quais as próprias máquinas seriam inúteis”. (Burke,

2003: 141)

O desenvolvimento da propriedade intelectual como um todo deve ser pensado sob

o signo dos vários aspectos que marcam a modernidade européia. A partir dos séculos XIV

e XV, inicia-se uma reviravolta fundamental no eixo político e morfológico com o

surgimento da nação. Em sua constituição íntima, este composto político-geográfico e

cultural pressupunha-se como um imenso organismo coletivo que tornava obsoletos os

antigos laços intermediários estabelecidos pelos indivíduos em suas aldeias, burgos e

regiões. Um segundo elemento é a democratização das práticas políticas que irão

possibilitar a cada homem que participe diretamente da vida desta virtualidade que é a

nação. Em terceiro lugar, ocorre a mutação do mundo do trabalho a partir da introdução das

práticas industriais, que podem ser encontradas desde o século XV, mas que se intensificam

nos séculos XVIII e XIX. Todos estes fatores promovem profundos desencaixes e ajudam a

moldar uma nova forma de ver o mundo, mais individualista e fragmentada por um lado, e

ao mesmo tempo mais abstrata, pois obriga o homem desencaixado de suas experiências

locais a acreditar em ficções jurídicas, a comunicar-se através de símbolos como marcas e

dinheiro. E a saber muito mais, sabendo cada vez menos, tendo, portanto de confiar nos

inúmeros sistemas peritos que são propostos pela modernidade.

O advento da impressão certamente contribui de várias maneiras para esta mudança

de percepção e da forma de se relacionar com o simbólico. Uma dessas contribuições para

145

qual gostaríamos de chamar atenção está relacionada à percepção da trans-materialidade

(ou desmaterialidade) dos conteúdos textuais. Por toda a Idade Média o conteúdo dos livros

era transmitido pelos copistas a conta-gotas, em poucos exemplares, muito bem

encadernados e guardados de forma a serem preservados por centenas de anos. É fato que o

texto circulava de forma oral, mas por mais prodigiosos que fossem os métodos

mnemônicos adotados nesse período, a quantidade de textos memorizada deveria ser bem

menor que a daquele contido em uma biblioteca pessoal moderna. Mas mesmo que esta

quantidade fosse prodigiosa, ainda assim haveria a questão da continuidade deste

conhecimento e de sua contextualização. Desta forma o conhecimento textual possuía neste

período uma dimensão imaterial imensa, que estava, entretanto, ancorada aos manuscritos

raros e preciosos, de modo que sua materialidade amplificava-se, por se tratar do elemento

de fixidez necessário ao conhecimento. Dito de outro modo, em uma cultura oral, marcada

pelo fluxo vocal, e pelas memórias individuais, a necessidade de fixidez na forma de uma

materialidade aumenta. Ora, com o advento da impressão, a materialidade se multiplica

vertiginosamente, a fixidez se institui como uma característica, assim como a fluidez era

típica da cultura oral do manuscrito. E neste cenário os pólos se invertem, aquilo que era

absolutamente evidente e, por isso, ignorado na cultura manuscrita, passa a ser relegado a

um plano secundário, a materialidade se banaliza e os elementos imateriais do texto

ganham peso, em especial, a possibilidade, de a partir de um conteúdo, criar inúmeras

versões: de luxo ou popular, em papel ou pergaminho, nas línguas originais, ou traduzidos,

na forma original ou adaptados. Essa percepção da imaterialidade60 contribui de forma

capital para a proteção da propriedade intelectual, pois se percebeu que o que deveria ser

60 Propriedade do texto de migrar de uma forma para outra, materizalizando-se em diversos formatos.

146

protegido, não eram as expressões materiais (no caso da Idade Média os Manuscritos61),

mas sim as idéias: “A fixidez do texto impresso também permitiu o reconhecimento mais

explícito da inovação individual e incentivou o registro de títulos sobre propriedade

sobre invenções, descobertas e criações.” (Eisenstein, 1998: 100)

O mercado editorial é o primeiro dos empreendimentos capitalistas no qual torna-se

evidente para os comanditários, que para além de sua dimensão material, os produtos

possuíam uma dimensão intangível que necessitava de proteção. Como já indicamos no

primeiro capítulo, o conceito de desencaixe social utilizado por Antony Giddens é oportuno

para aplicarmos ao fenômeno da propriedade intelectual. O sociólogo inglês considera que

uma das características marcantes da Modernidade é o deslocamento das relações sociais de

seus contextos locais para extensões amplas e indefinidas do espaço-tempo. Nesse sentido,

é um exemplo o deslocamento da materialidade do texto para sua imaterialidade, marcados

pela aceleração da reprodutibilidade e pelas técnicas de impressão. Mas não apenas do

ponto de vista da quantidade, mas também da diversidade de textos que poderiam ser

criados a partir de um original.

Na lei do direito autoral vigente no Brasil, é consagrado o princípio de proteção ao

texto original, considerando independentes as diversas formas de utilização da obra como

livro, adaptação, audiovisual e outras. Em seu formato medieval, um livro era um texto

fixado em pergaminho, no formato códex, costurado e encadernado. A partir da impressão,

um livro será apenas um dos formatos do texto, que poderá se metamorfosear em diversas

outras manifestações.

61 Lembremo -nos da importância dos manuscritos neste período, muito bem retratada no incêndio da Biblioteca do Mosteiro em “ O nome da Rosa” de Umberto Eco.

147

O individualismo moderno serviu como base para outra categoria de propriedade

intelectual que é a marca. Trata-se de um signo distintivo que indica que certos produtos e

serviços foram produzidos por uma região, empresa ou pessoa determinada. Assim como as

patentes e o direito autoral, a marca pode ser pensada na perspectiva do desencaixe social.

Enquanto o mundo do indivíduo estava delimitado ao pequeno burgo ou aldeia que

habitava, os produtos e serviços consumidos pelo indivíduo médio eram geralmente locais,

no máximo regionais. De qualquer forma era possível a ele identificar a origem deste

produto, interagindo na maioria das vezes com o próprio produtor. Sapateiro, alfaiate,

agricultor, padeiro – todos estavam ali ao alcance de alguns passos, uma experiência de

consumo na qual produtor e consumidor se conhecem. Com o crescimento das cidades, a

intensificação dos fluxos comerciais e o advento da sociedade de consumo, surge a

necessidade de criar símbolos que distingam os produtos uns dos outros e que permitam ao

consumidor classificá- los optando por aqueles mais confiáveis.

Deste modo as marcas se inserem no contexto mais geral da propriedade intelectual,

conformando um poderoso sistema erguido na modernidade ocidental, sob a hegemonia do

sistema jurídico anglo-saxão, que reconhece a criatividade e a inovação, convertendo-as em

bens cambiáveis, passíveis de serem vendidos, alugados, licenciados, fonte de riquezas para

algumas categorias sociais, e de segregação e exploração para outras.

148

8. Copyleft.

Dentro do universo da propriedade intelectual são movimentados anualmente em

todo o mundo cerca de três trilhões de dólares apenas no mercado legal. Isto corresponde à

cerca de 6% do PIB mundial, composto pelas riquezas geradas por cada habitante do

planeta. Apenas nos EUA a indústria de software corresponde a 2% do PIB. Estes valores

não levam em consideração o imenso mercado ilegal de conteúdos culturais e a violação às

marcas e patentes em todo o mundo. Tampouco considera os valores agregados que a

utilização de uma inovação possa gerar em uma determinada cadeia produtiva. Refere-se

apenas aos valores pagos no mundo todo pelo uso de marcas e patentes e pela

comercialização de produtos da indústria cultural. A pesquisa intitulada “Global

Entertainment and Media Outlook”62 realizada pela consultoria internacional

Pricewaterhousecoopers revelou que no ano de 2004 a indústria cultural geraria

aproximadamente 1,3 trilhões de dólares. Trata-se de um imenso mercado cuja pedra

angular é o reconhecimento da propriedade intelectual.

Entretanto, de várias maneiras, o atual conceito de propriedade intelectual vem

sendo criticado. Novas formas para o reconhecimento da autoria têm surgido e competem

com os atuais modelos. Uma delas é o copyleft, palavra em inglês que se contrapõe ao termo

copyright. Funciona como um trocadilho, já que copyright, a palavra utilizada para definir a

propriedade intelectual, é formada da fusão de duas outras palavras: “copy” que significa original,

ou cópia e “right” que significa legal, direito. Ora, copyleft seria a fusão de “copy” e “left” está

62 Encontrado no seguinte link: http://www.pwc.com/extweb/pwcpublications.nsf/docid/5AC172F2C9DED8F5852570210044EEA7?opendocument&vendor=none (acessado em 22/06/2006)

149

última palavra significa esquerdo, canhoto. A escolha deste termo para designar a

abdicação do autor de parte ou do todo de seus direitos autorais configura o caráter político

de seu uso. Este tipo de licença de conteúdo nasceu a partir da defesa do software livre, os

adeptos deste movimento, ao invés da expressão “all rights reserved” (todos os direitos

reservados) do copyright, utilizam a expressão “some rights reserved” (alguns direitos

reservados). Em muitos casos o autor abdica de todos os direitos, os pecuniários e morais.

Os creatives commons, ou criações comuns são outra modalidade de licenciamento

de conteúdos, herdeiros dos principais conceitos do copyleft adaptados aos mundos artístico

e literário. Criadas pelo professor da universidade de Stanford, Lawrence Lessig, o objetivo

destas licenças é o de proteger a autoria ao mesmo tempo em que possibilita a livre

circulação do conteúdo pela Internet e também pelo mundo tangível. Trata-se de uma

associação livre de criadores de conteúdo que passaram a estabelecer de fo rma declaratória

uma maneira de abrirem mão de parte de seus direitos sobre a obra. Existem mais de 50

milhões de páginas na Internet cujos conteúdos são licenciados como creative commons.

Esta associação funciona como uma organização não governamental, o registro das obras é

feito através de seu site. Após registrar-se, o autor recebe um selo eletrônico que será

exibido em seu conteúdo, deixando claro que ele se encontra licenciado dentro desta

modalidade. Caso se trate de um produto físico, livro, CD, ou DVD, tal informação virá

expressa na capa, ou na ficha técnica. A frase, “alguns direitos reservados”, constará então

do produto cultural, assim como no caso do copyright, o símbolo © é exibido.

As modalidades de direitos reservados pelo licenciamento dos creatives commons são

as seguintes:

150

a) Atribuição: neste caso a obra poderá ser copiada e distribuída desde que seja dado

crédito ao autor original.

b) Uso não comercial: significa que o usuário pode copiar, distribuir, mas que não

pode obter resultados comerciais com a obra.

c) Não a obras derivadas: veta a utilização de seu conteúdo para gerar novos

conteúdos.

d) Compartilhamento pela mesma licença: força o usuário de obra derivada a oferecê-

la nas mesmas condições da obra original.

A combinação das várias modalidades de licenciamento poderá ser feita de forma a

atender melhor aos interesses do autor. Por exemplo, um roteirista está criando uma novela

em seu site e deseja que outros autores contribuam com capítulos alternativos, mas também

deseja que o resultado esteja disponível para que outros usuários possam consumi-lo,

distribuí-lo e continuá- lo, então ele optaria pelos itens, a,b e d.

Como legítima derivação do copyleft, as creatives commons obedecem a seus

princípios básicos, ou seja, o código fonte deve estar aberto, e os novos softwares que

forem criados deverão ter também seus códigos abertos para que outros desenvolvedores

possam utilizá- los.

Neste momento de nossa dissertação queremos apenas apresentar o conceito de

copyleft e creative commons, como alternativas dentro da estrutura jurídica vigente, de

promover novas modalidades de circulação dos conteúdos culturais, dentre estes, os livros.

O surgimento deste tipo de licenças está intimamente ligado a uma série de mudanças

culturais vividas pela humanidade devido à emergência da sociedade de informação. Por

151

isso, nos dois capítulos que seguem estaremos apresentando questões que nos darão

subsídios para uma discussão mais profunda destas novas formas de pensar a autoria. Nos

capítulos oito e nove, quando discutirmos as novas identidades de autores e editores,

pretendemos retomar esta discussão.

9. A estrutura jurídica do campo editorial.

No primeiro capítulo estabelecemos a importância do conceito de campo, de Pierre

Bourdieu, como instrumento para nossa análise. Buscamos identificar como o campo

editorial se formou dentro da grafosfera e em especial estamos analisando os aspectos

relevantes da transformação deste campo, na passagem da logosfera para a grafosfera.

Acreditamos ser importante compreendermos melhor o conceito de campo para que

possamos proceder à análise proposta:

Digo que para compreender uma produção cultural (literatura, ciência, etc) não

basta referir-se ao conteúdo textual dessa produção, tampouco referir-se ao contexto social

contentando-se em estabelecer uma relação direta entre o texto e o contexto. (...) Minha

hipótese consiste em supor que, entre esses dois pólos, muito distanciados, entre os quais se

supõe, um pouco imprudentemente, que a ligação possa se fazer existe um universo

intermediário que chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o

universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou

difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros,

mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. (Bourdieu, 2003: 20)

152

No conceito de campo, temos a solução de diversas questões relacionadas aos

estudos das ciências sociais aplicadas, em primeiro lugar, resolvemos a dicotomia entre

forma e conteúdo, fato que pode efetivamente limitar a análise. Em segundo lugar,

conseguimos dar conta de manifestações complexas, isolando-as de forma relativa de

contextos mais gerais, podendo, assim, estudar o objeto, admitindo sua formatação

específica, sem, entretanto, desconectá-lo do geral.

Vimos neste capítulo que o conceito de autoria, como o compreendemos, teve sua gênese

lentamente desenvolvida entre o final da Idade Média e os primeiros três séculos da Idade Moderna.

Por isso, fala r em mercado editorial medieval seria um anacronismo, já que o conjunto de agentes

que compõem este mercado não existiam. Entretanto, o livro, principal produto deste mercado na

modernidade, já existia e circulava, e uma série de agentes participavam de sua reprodução e

distribuição. O que nos permite afirmar que , para a produção do livro nas diversas eras históricas,

corresponderam campos “editoriais” distintos. O da logosfera era composto por sábios, copistas,

bibliotecários e compiladores. O da grafosfera será composto por livreiros, editores, gráficos,

tradutores, autores e multiplicadores. Mas a gênese deste campo na grafosfera confunde-se com a

gênese dos campos artístico e literário, compondo um conjunto que Bourdieu identificará como uma

economia de trocas simbólicas:

A história da vida intelectual e artística das sociedades européias revela-se

através da história das transformações da função do sistema de produção de bens simbólicos

e da própria estrutura destes bens, informações correlatas à constituição progressiva de um

campo intelectual e artístico, ou seja, à autonomização progressiva do sistema de relações

de produção, circulação e consumo de bens simbólicos. (Bourdieu, 1987: 99)

Para Bordieu os campos se formam a partir de um processo de autonomização em

relação às estruturas mais gerais da sociedade. Desta maneira, sem que as dinâmicas gerais

153

deixem de afetá- los, os campos estabelecem seus próprios códigos e hierarquias. Os

participantes de um campo possuem uma autonomia relativa dentro do próprio campo,

podendo desta forma proceder no sentido de lutar por mudanças na estrutura do campo. A

formação dos campos na sociedade moderna está diretamente vinculada aos desencaixes

promovidos pelos processos de especialização. Desta forma quando pensamos no campo da

comunicação no século XV, basicamente estamos nos referindo ao mercado editorial de

livros. Quando pensamos este mesmo campo no século XVIII devemos incluir revistas e

jornais. No século XIX o domínio da eletricidade incluirá o telégrafo, e no século XX

teremos a inclusão do rádio, da TV, do cinema, da telefonia e da Internet. E cada um desses

meios pode ser pensado como campo autônomo, ou como subcampo da comunicação.

É interessante perceber que os campos muitas vezes estão sobrepostos, e seus

agentes podem participar de vários campos ocupando posições diferenciadas ou homólogas.

Isto torna a análise uma ação complexa e delicada. Complexa pelo arbítrio que representa a

secção necessária ao estudo, e delicada porque errar a mão pode significar agrupar em um

mesmo objeto ou campo agentes que a ele são estranhos. É o caso, por exemplo, da figura

do jornalista. Poderíamos afirmar que o jornalista, por colocar sua pena a serviço do capital,

é uma versão moderna dos poligrafis, e esta seria uma comparação válida até certo ponto.

Ocorre que a amplitude de atuação de um jornalista, sua forma de remuneração e a

especialização que muitos desenvolvem extrapolam sobremaneira aquela do universo dos

poligrafis. Outro fato interessante é que muitos jornalistas se tornam escritores, ou muitos

escritores se tornam jornalistas, de forma que existe uma relação forte entre estes

profissionais e o campo editorial. Mas o ponto de contato mais importante é, certamente, a

154

crítica especializada que os periódicos fazem dos livros, funcionando como legitimadores

dos textos e de seus respectivos autores.

A formação do campo editorial do livro é diretamente afetada pelo processo de

especialização e de divisão social das atividades. Em seu princípio a figura do editor

confundia-se com a do gráfico e do livreiro. Os autores podiam ser intelectuais prestigiados

ou poligrafis, e entre uma forma e outra podíamos encontrar professores que também

escreviam por encomenda e intelectuais que se recusavam em receber por sua criação. A

medida em que o campo vai se consolidando o papel dos agentes vai ficando mais bem

delineado. Os escritores de sucesso obtiveram uma autonomia relativa dentro do campo,

passando a negociar melhores contratos e a trocar o crivo do editor pelo do público. Os

capitalistas do negócio especializaram suas atividades, alguns dedicam-se à edição, outros

ao comércio e ainda outros à impressão. Os mais bem sucedidos poderão estar nas três

atividades. A autonomia do editor se funda no surgimento de um profissional que se

relacionará com os autores, que escolherá o texto e sua forma específica e que pensará nos

leitores. Roger Chartier assinala que este profissional surge na França por volta de 1830.

No século XX, esta divisão entre as atividades ficará cada ve z mais evidente. Entre os

profissionais da escrita, haverá o jornalista, o revisor, o tradutor, o escritor de prosa, o

escritor de poesia, o ensaísta, o profissional de auto-ajuda, o ghost writer, etc. A maior

autonomia dentro do campo dependerá do sucesso em relação à sociedade, demonstrando o

peso da palavra relativo no conceito de autonomia.

O mesmo vale para os capitalistas do meio, por um longo período as casas editoriais

desfrutaram uma certa autonomia em relação às empresas capitalistas de outros segmentos,

de modo que o editor pôde individualizar-se como um misto de capitalista e intelectual, um

155

especialista na seleção de conteúdos que seriam submetidos ao mercado. No caso do

livreiro existem muitos exemplos de fenômenos parecidos em que o livreiro era um exímio

conhecedor de seu acervo, mantendo, assim, uma cumplicidade com seus clientes e com a

especificidade simbólica dos bens que comercializava. À medida que o campo editorial vai

sofrendo a influência da dinâmica capitalista mais geral, essa s figuras do editor intelectual e

do livreiro esclarecido serão modificadas. A entrada dos grandes grupos de comunicação no

mundo da edição de livros marcará esta virada. Neste sentido o campo editorial (aqui

pensado só no âmbito da edição de livros), diverge a partir do século XIX, do campo mais

geral da comunicação que será marcado pelo crescimento do jornal diário, pela criação das

agências de notícias e depois pela entrada do Rádio e da TV em seu escopo de atuação.

Quando pensamos a edição de livros no Ocidente, devemos estar cientes de que

existem muitas particularidades nos diversos mercados locais e que as dinâmicas mais

gerais podem ocorrer em ritmos distintos de um país para outro. Por isso é difícil descrever

as principais características do campo editorial generalizando-as, porém, algumas

tendências comuns podem ser notadas em mercados diferentes, como o americano, o

europeu e o brasileiro, que nos permitem aferir as características mais gerais do campo63,

são elas:

1 – A figura do editor como um profissional dedicado à produção de livros e a sua

comercialização, que mantém fortes laços com seus autores, seleciona para o mercado, mas

sempre com certa autonomia.

2 – A presença de livrarias independentes nas quais o livreiro conhece seu público e

o conteúdo das obras que coloca à venda. 63 Importante deixar claro que estas tendências são notadas com certa defasagem temporal em cada um dos mercados.

156

3 –A existência da figura de escritores divididos em duas categorias principais:

aqueles que produzem para o campo erudito em que se encontram inseridos e aqueles que

produzem para um mercado leitor mais amplo.

O campo editorial, composto por estes personagens, podia ser encontrado na França

no século XIX, nos EUA a partir da segunda metade do século XIX e, no Brasil, desde as

primeiras décadas do século XX. A estabilidade dos mercados se dará a partir das

identidades que estas três categorias de agentes mantiveram durante boa parte do século

XX.

No século XX, ocorre a partir da década de 60 nos EUA, de 70 na Europa e de 90

no Brasil, uma mudança considerável no campo editorial. Um negócio relativamente

estável, que jamais fez grandes milionários, que fora mantido essencialmente por um

grande número de pequenas editoras e livrarias independentes, passou a ser assediado pelo

capital de grandes conglomerados de comunicação. Este fenômeno que se iniciou nos EUA

com a compra da Randon House pela RCA, ainda está em curso e tem, no grupo AOL

Time-Warner, seu exemplo mais acabado. Um campo com características específicas cujas

identidades dos agentes se forjaram lentamente no decorrer de alguns séculos, viu-se

obrigado a modificar de forma significativa suas forma de atuação.

No caso das editoras, sai à figura do intelectual editor e entra a figura do

profissional de marketing; no caso das livrarias, as redes passam a substituir as livrarias

independentes, homogeneizando a figura do livreiro, que é substituída pelo gerente

comercial, e no caso dos autores, ocorrem dois movimentos, um que funde a identidade

daqueles que escrevem para o mercado com o dos que escrevem para um público erudito,

criando o famoso intelectual bestseller. Poderíamos citar como exemplos deles, na França,

157

Bernard Henri Levy, na Itália, Umberto Eco, no Brasil Eduardo Gianetti. O segundo

movimento no campo da autoria distancia ainda mais os escritores eruditos daqueles que

escrevem para o mercado, relegando os primeiros ao gueto das edições de uma centena de

exemplares (print on demand).

Este fenômeno não ocorre sem que haja uma certa anuência dos autores, pois a

própria criação dos campos artístico e literário obedecem a uma dinâmica de oposição entre

o mercado da indústria cultural e aquele da produção erudita:

O campo da produção propriamente dita deriva sua estrutura específica da oposição

– mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística – que se

estabelece entre, de um lado, o campo da produção erudita enquanto sistema que produz

bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinado (ao

menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que também produzem

para produtores de bens culturais e, de outro, o campo da indústria cultural especificamente

organizado com vistas à produção de bens culturais destinados a não produtores de bens

culturais (o grande público) que podem ser recrutados tanto das frações não-intelectuais

das classes dominantes (“o público cultivado”) como das demais classes sociais. (Bourdieu

1987: 105)

Bourdieu apontará para a constituição de uma estrutura de conservação e

consagração que atuará no interior dos campos e na relação deste com os outros campos

regulado a legitimação dos agentes e opondo-se a presença de outsiders.

Podemos imaginar esta hierarquia do campo pensada da seguinte maneira. Um autor

que publicou sua obra numa editora para a qual ele teve que pagar para a edição sair é

considerado menos importante no interior do campo que aquele que é publicado por uma

editora que dele não cobra nada. Caso se trate de uma obra acadêmica, o pagamento pela

158

edição pode ser melhor aceito pelo campo do que de uma obra de ficção. Entre os poetas

poderá ocorrer processos similares. Os autores que são publicados por uma editora de

prestígio como a Cia das Letras, ou a Record, desfrutarão de maior força no meio, que

aqueles editados por editoras menos importantes. Os jornalistas especializados em

cobertura do universo editorial concederão maior espaço em suas colunas aos autores das

editoras de maior prestígio, como se pode perceber na leitura dos cadernos de domingo.

Muitos dos colunistas e críticos dos jornais são autores destas editoras. Jornalistas e

comentaristas de sucesso na TV e no Rádio são convidados a publicarem seus livros pelas

editoras de prestígio e dessa forma o círculo se fecha.

Este tipo de fenômeno pode ser detectado no século XIX, mas é nas últimas décadas

do século XX que ele se intensifica e que a oposição entre campo erudito e indústria

cultural assume essa nova configuração de cooptação e exclusão exacerbados.

A autonomia relativa do editor de escolher originais que considerava de qualidade

encontra-se cada vez mais submetida a esta estrutura de legitimação do campo, o que não

significa que uma consciência conspiratória e manipuladora está de alguma maneira

controlando este processo, mas que o conjunto de agentes e suas identidades parecem

perder cada vez mais suas autonomias relativas em função de um habitus comandado pela

“lógica de fluxo”64 da mercadoria.

O corpus jurídico construído conjuntamente com a constituição do campo editorial e

agrupado debaixo do guarda chuva da propriedade intelectual encontra-se subordinado à

dinâmica destas identidades em transformação. Aparentemente, a lógica da mercadoria

encontra neste corpus um elemento de estabilidade, porém, a emergência da sociedade de 64 Nos capítulos sete e nove retomaremos a questão dos modelos de fluxo (flot) versus o modelo editorial preconizados por Bernard Miège.

159

informação, que traz consigo a aceleração dos fluxos de conhecimento, e uma série de

novos desencaixes parece estar desestabilizando essa relação. Como quem dá as cartas no

campo editorial não são mais os seus tradicionais agentes, mas esse novo sócio capitalista

que não tem face e cuja origem pode ser uma empresa aeroespacial ou uma rede de

supermercados é provável que a estrutura jurídica deva ser alterada. O modelo atual de

propriedade intelectual funciona como um entrave à veloz circulação de conhecimento e

informação que caracterizam os setores de vanguarda da economia. Assim como este

corpus foi construído para responder às necessidades econômicas de seus principais

agentes, Igreja, Estado, livreiros editores e autores, pode ser que a atual dinâmica da

economia exija uma transformação na atual estrutura do copyright.

Mas lembramos que o direito de autor não foi apenas o resultado de uma

convergência de interesses políticos e econômicos. Sua construção baseou-se em profundas

mudanças culturais, principalmente no conceito de autoria, forjado na relação entre

produtores de conhecimento e seus respectivos receptores. Para avaliarmos a intensidade

das mudanças em curso, em especial as alterações que o aparecimento de uma nova

tecnologia de armazenamento e recuperação de conhecimento pode acarretar ao formato

atual do livro e do campo editorial, precisamos entender melhor as características atuais da

indústria cultural e a relação desta com a emergente sociedade de informação.

160

IV - O cenário: Indústria Cultural e Globalização.

1. Cultura e autonomia relativa da função de autor.

O conceito de cultura é, sem dúvida, um dos mais utilizados no campo das ciências

humanas e talvez, por isso, um dos mais abrangentes. Uma abordagem do livro, suas

formas históricas e seus agentes deve contemplar também, uma discussão cultural.

Raymond Williams nos apresenta as seguintes acepções do conceito:

1 – Um estado mental desenvolvido – neste caso nos referimos a uma pessoa de

cultura.

2 – As formas como a pessoa de cultura chegou a desenvolvê-la, o processo,

atividades culturais, etc.

3 – Os meios deste processo, o trabalho intelectual, as artes.

Estes sentidos convivem com as acepções antropológicas e sociológicas, que em

uma simplificação referem-se ao conceito como “modo de vida global de determinado

povo. 65

Williams ressalta uma convergência contemporânea entre o sentido antropológico e

a acepção artística:

65 As origens do conceito remontam à Idade Média, quando aparece designando um processo agrícola, como cultivo (criação e reprodução animal). Mais tarde, passou a estender-se também ao cultivo do espírito humano e no século XVIII estendeu-se ao espírito de um povo, uma utilização “antropológica que irá desenvolver-se em muitas direções. Na França estará relacionado ao termo civilização em oposição aos povos primitivos. Na Inglaterra aparecerá associada ao termo gentleman designando um modo burguês de se portar e cultivar o espírito.

161

Assim, há certa convergência prática entre (i) os sentidos antropológico e

sociológico de cultura como “modo de vida global”, dentro do qual percebe-se, hoje, um

“sistema de significações” bem definido não só como essencial, mas como essencialmente

em todas as formas de atividade social e, (ii) o sentido mais especializado, ainda que

também mais comum, de cultura como atividades “artísticas e intelectuais”, embora estas,

devido à ênfase em um sistema de significações geral, sejam agora definidas de maneira

muito mais ampla, de modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção

intelectual tradicionais, mas também todas as “ práticas significativas” – desde a linguagem,

passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo, moda e publicidade – que agora

constituem este campo complexo e necessariamente extenso.(Williams, 2000:13)

Como o próprio Williams reconhece, trata-se de um campo muito amplo designado

pelo termo cultura, porém, a divisão em campos teorizada por Bourdieu nos permite

seccionar o campo da cultura, nos dedicando aquele que designamos de “campo editorial”,

que possui relações de sobreposição e intersecção com outros campos como o literário e o

acadêmico (científico). A convergência entre as concepções antropológica e especializada

será importante para pensarmos a cultura hacker, uma subclasse ou fração de classe que

terá importância fundamental na recepção do livro eletrônico, assunto que será abordado no

capítulo cinco.

Pensamos esta convergência de forma dialética, a cultura como modo de vida

penetra na esfera artística e social na maneira dos itens dois e três, supracitados, de forma

que se estabelece um processo de recepção que também é um processo de modificação do

grupo ou indivíduos receptores, mas ao mesmo tempo é um processo de modificação da

produção artística ou intelectual. Como exemplo deste processo podemos citar o romance,

forma estética eminentemente burguesa, que emergiu em relação de contigüidade com uma

162

sensibilidade individualizada, que buscava no recolhimento e na reflexão a recepção da

obra de arte. Uma ficção psicológica, que criava uma nova relação entre o autor e o público

e inaugurava um espaço de subjetividade impossível nas épocas anteriores, referindo-se ao

século XVIII, época do surgimento do romance burguês, Habermas afirma:

O século que então se encerrava movimenta-se com gosto e maestria no

terreno da subjetividade que, no começo do século, era pouquíssimo explorada.

Modificam-se as relações entre autor, obra e público: tornam-se relacionamentos

íntimos entre pessoas privadas, onde os interesses de ordem psicológica se orientam

para o “humano”, tanto para a introspecção quanto para a empatia mútua entre as

pessoas privadas interessadas.(Habermas, 1984:66-67)

O narrador introduz uma voz reflexiva na qual conversa e compartilha sentimentos

com o leitor, introduzindo na narrativa uma ordem de informações psicológicas ausentes

nas narrativas anteriores. Walter Benjamin em seu ensaio intitulado “O Narrador”,

considera o romance burguês como o algoz da narrativa, introduzindo no fenômeno de

compor histórias uma nova dimensão, ao mesmo tempo mais individual e abstrata:

O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada,

lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se

distingue, especialmente da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua

própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência

de seus ouvintes. O romancista segrega -se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que

não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não

recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma

vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. (Benjamim, 1996:201)

163

Nesta descrição de Benjamin, podemos identificar o parentesco deste texto, “O

narrador”, com outro texto de sua autoria, escrito anteriormente “A obra de arte na época de

sua reprodutibilidade técnica”, esta proximidade do autor em relação ao leitor representa

um declínio da aura, presente nas narrativas tradicionais, nas quais o ethos permanece

aberto a uma interpretação e o sentido informativo do texto remete para uma experiência

muito mais coletiva que particular, própria dos contos populares originários de uma cultura

oral.

Na narrativa tradicional, não há explicações, o narrador coloca o relato em contato

com o público como uma voz desindividualizada, uma janela para o repositório de

narrativas presentes na tradição. A estratégia do narrador consiste em, sobretudo, esquivar-

se de fornecer explicações, narrar não é informar, pois a informação depende de um critério

validador imediato, uma verificação imediata. Informar, tanto quanto narrar, será a tarefa

do romance e nisso ele estará muito mais assemelhado com os periódicos do que com as

novelas e contos tradicionais que apresentavam as características abaixo identificadas por

Benjamin:

Metade da arte narrativa está em evitar explicações.(...) O extraordinário e o

miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é

imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o

episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.(Benjamin, 1996:

203)

Para Benjamin a mediação possibilitada pelo narrado é muito mais livre e ampla

que a que surgirá no romance burguês. O espaço do leitor ao mesmo tempo que se

amplifica e individualiza, torna-se mais íntimo e fechado. Existe, portanto uma profunda

164

ambigüidade na ascensão do romance burguês: por um lado, a individuação que pressupõe

a formação de uma identidade livre dos encaixes coletivos da cultura oral da logosfera; por

outro a perda da liberdade receptiva que representava este espaço de intimidade

estabelecido entre leitor, autor e a informação. Romance burguês e imprensa apresentam

um desenvolvimento homólogo: como meios participam da formação de uma nova

subjetividade baseada na informação e na construção de um espaço psicológico de recepção

no qual se aproximarão as subjetividades do autor e do leitor. O antigo leitor das narrativas

participava de uma subjetividade mais coletiva, os resíduos do sujeito medieval ainda

estavam presentes, mesmo com os contínuos desencaixes aos quais a subjetividade dos

indivíduos era submetida desde o século XV.

Benjamin capta esta ambigüidade que será designada por ele como o declínio da

aura, compreendido como uma aproximação que se processa a partir da introdução da

imprensa na relação entre as obras de arte e seus receptores. Definida por Benjamin como

“a única aparição de uma realidade longínqua por mais próxima que esteja”, representa

aquilo de sagrado ou tradicional presente nas obras de arte e que tornavam a recepção

muito mais um processo de contemplação que um processo de apropriação. O ato de

contemplar pressupõe meditar, observar, mas ao mesmo tempo manter uma certa distância,

já a apropriação é um gesto “antropofágico”, torna pessoal algo que era estranho. O

declínio da aura aproxima o receptor da apropriação ao mesmo tempo em que o afasta da

contemplação. Sabemos que Benjamin não considera esta mudança como algo totalmente

negativo e voltaremos a este assunto quando tratarmos das críticas de Adorno às posições

de Benjamin em nossa abordagem da indústria cultural.

165

Habermas identifica, no século XVIII, a emergência, na Europa, de um espaço

público, que nasce a partir do estabelecimento de um campo literário do qual participavam

os burgueses e sua intelectualidade. Para o autor, esta esfera pública não representa uma

completa ruptura com as formas anteriores de organização do debate cultural e político,

pois os círculos humanistas podem ser considerados antecessores desta esfera, entretanto,

diferentemente daquelas academias, o atual espaço público nasce como instituição da

cidade moderna, e cosntitui-se uma antítese da corte aristocrática:

A “cidade” não é apenas economicamente o centro vital da sociedade burguesa; e

antítese política e cultural à “corte”, ela caracteriza, antes de mais nada, uma primeira esfera

pública e literária que encontra suas instituições nos cofee-houses, nos salons e nas

comunidades comensais. (Habermas, 1984: 45)

O ambiente dos cafés que prolifera na Inglaterra e França no século XVIII, criando

um espaço de discussão de literatura, arte e política, foi considerado por Habermas

fundamental para o aparecimento do cidadão burguês. A intersubjetividade discursiva

desenvolvida nestes ambientes oferecerá à burguesia o fermento definitivo para as

revoluções políticas que fundarão a modernidade. É neste cenário de interpenetração das

esferas literária e política que se desenvolverá a figura do sujeito iluminista66 e com ele a

imagem do autor como um ser uno, dotado de uma subjetividade singular criativa e, porque

não, genial. A modernidade dos conceitos de criatividade e genialidade encontram guarida

no reino da individualidade do sujeito iluminista. O fato de os direitos autorais serem

66 Stuart Hall define o sujeito iluminista como um indivíduo uno, centrado, dotado de razão e consciência de ação, cujo centro da subjetividade encontra-se em um “núcleo interior”, que acompanha o indivíduo por toda a sua existência e assegura a integridade de sua identidade. Portanto, uma concepção individualista.

166

reconhecidos apenas no final do século XVIII é um sinto ma da dependência que o conceito

de autoria possui das concepções sociais do sujeito.

Para Habermas, assim como para Benjamin, no espaço literário burguês teremos

uma aproximação entre autores e leitores, fato que inaugura uma nova subjetividade e que

para Habermas será interpretado como um dos elementos que converteu a esfera pública,

outrora dominada pela autoridade aristocrática, em uma esfera refundada, na qual emergiu a

figura do cidadão:

Modificam-se as relações entre autor, obra e público: tornam-se relacionamentos

íntimos entre pessoas privadas, onde os interesses de ordem psicológica se orientam para o

“humano”, tanto para a introspecção quanto para a empatia mútua entre as pessoas privadas

interessadas.(Habermas, 1984: 67)

Ao mesmo tempo em que o individualismo moderno se forma, desenvolvem-se

formas culturais que o alimentam e que são alimentadas por ele. Esta relação dialética se

dará em todo o circuito literário. Por um lado os autores como produtores encarnarão as

características do sujeito iluminista que serão estampadas em suas obras, por outro, os

leitores também se sentirão únicos na intimidade que estabelecem com o autor. O espaço

de troca e comunicação representado pela família burguesa e pelas instituições do espaço

público burguês serão a arena na qual este individualismo irá exercitar seus predicados,

confirmando para si, a partir do embate com o “outro”, esta vocação individual.

Um fenômeno interessante ocorre na segunda metade do século XIX, quando, aos

poucos a esfera pública caracterizada em grande parte pelos ambientes literários sofrerá

uma cisão com a constante autonomização do campo literário. No seio de uma economia

aceleradamente marcada pela troca de bens simbólicos, os campos artístico e literário irão

167

aos poucos se libertar do ambiente burguês dos cafés, clubes e salas-de-leitura, refugiando-

se em um ambiente ocupado apenas por produtores e vedado ao público mais amplo.

Quando os autores passaram a ter seus direitos reconhecidos e os ganhos financeiros

decorrentes destes direitos passaram a subsidiar suas vidas, estabeleceram-se condições

para que uma relativa liberdade dos autores se instaurasse. Esta liberdade é paradoxal, pois

ao mesmo tempo em que afirmavam a autonomia da criação, os autores deveriam

preocupar-se com seus novos patrões, “o mercado”. É fato que uma lua de mel entre a

inteligência e as camadas cultas da burguesia ocorreu durante o século XVIII e parte do

XIX, favorecendo o culto à genialidade criadora e por conseqüência permitindo aos autores

uma certa independência. Porém, com o desenvolvimento de um amplo mercado

consumidor de obras simbólicas, que no bojo das revoluções industriais triunfantes

incorporara setores burgueses e pequenos burgueses, ocorre uma ruptura. A inteligência,

sentindo sua liberdade ameaçada pelo mercado, afasta-se da burguesia e, para isso, se vale

de manobras estéticas, como a adoção de códigos especializados e a criação de obras

destinadas apenas aos círculos de produtores.

Em Cultura e Sociedade, Raymond Williams identifica uma mudança significativa

nas idéias sobre arte e artista a se processar na Inglaterra no período da revolução industrial.

Durante este, duas gerações de artistas românticos se sucederam e consolidaram certas

idéias acerca das relações dos artistas com a sociedade, seriam elas:

• A relação entre o escritor e seu leitor sofrem profundas transformações;

• Torna-se costumeira uma mudança de atitude para com o público;

168

• A produção artística passa a ser considerada como mais uma das produções

especializadas, entre outras.

• A teoria da “realidade da arte”, como uma dimensão de verdade da imaginação,

assume cada vez mais força;

• A representação do escritor como gênio autônomo se torna regra.

Esta mudança percebida na Inglaterra pode ser notada com graus distintos de

intensidade em boa parte da Europa e irá aprofundar-se com a expansão do movimento

romântico e das conseqüências da revolução industrial. Não obstante, uma crescente

especialização e autonomização de outros campos poderá ser observada. Para Emile

Durkheim, uma intensa especialização e conseqüente separação entre os indivíduos é um

dos traços da estrutura das sociedades onde as relações fundamentais se dão por

solidariedade orgânica, como ocorre na sociedade capitalista. O pensador chega a

considerar está como uma das ameaças à preservação do tecido social, que a qualquer

momento poderia se partir cedendo às pressões autonomistas de seus múltiplos agentes.67

Segundo Bourdieu, existe uma lei interna aos grupos eruditos de buscarem a

distinção em relação ao restante da sociedade:

67 Para Durkheim a coesão social é mantida a partir das relações estabelecidas pelo trabalho. Nas formações sociais humanas identifica dois tipos básicos de relações que geram dois tipos de solidariedade, a mecânica e a orgânica. Nas sociedades onde predomina a solidariedade mecânica, a divisão social do trabalho é pouco complexa, de tal forma que as atividades são muito parecidas e o grau de interdependência entre elas é mínimo. Como a diferenciação do trabalho é baixa, também o são as diferenças entre os agentes sociais são, por isso, sociedades mais homogêneas e coletivas. No caso das sociedades onde predomina a solidariedade orgânica, o trabalho é muito mais complexo, tendendo as funções a serem especializadas, neste caso existe uma profunda dependência entre as partes, fato que deveria aumentar a coesão social. Entretanto, a especialização gera também diferenciação, estabelecendo um pólo de tensão entre as partes. Durkheim percebia na sociedade capitalista a perda da capacidade dos indivíduos de se sentirem ligados aos outros. O individualismo seria, então, uma ameaça à coletividade.

169

Vale dizer, quanto mais o campo estiver em condições de funcionar como o campo

de uma competição pela legitimidade cultural, tanto mais a produção pode e deve orientar-

se para a busca de distinções pertinentes em um determinado estágio de um dado campo,

isto é, busca dos temas, técnicas e estilos que são dotados de valor na economia específica

do campo por serem capazes de fazer existir culturalmente os grupos que os produzem, vale

dizer, de conferir-lhes um valor propriamente cultural, atribuindo-lhes marcas de distinção

(uma especialidade, uma maneira, um estilo) reconhecidas pelo campo como culturalmente

pertinentes e, portanto, suscetíveis de serem percebidas e reconhecidas enquanto tais, em

função das taxionomias culturais disponíveis em um determinado estágio de um dado

campo. (Bourdieu, 1987: 109)

Mas, aquilo que é traço dos campos em seu processo de autonomização se

transformará em um dilema para os membros dos campos artísticos e literários. Pois sua

dependência da legitimação por parte de seus pares que são também concorrentes é maior

que a de outros campos. De forma que existe uma dupla dependência dos autores, uma

ligada diretamente ao campo e outra vinculada ao mercado. Poucos foram os escritores

que conseguiram manter-se equilibrados nesta corda bamba, o reconhecimento do grande

público, em geral, representou, e representa, a repulsa por parte do grupo intelectual. Para

ficarmos em apenas dois exemplos locais, podemos citar os casos do poeta Vinicius de

Moraes e do escritor Jorge Amado. Ambos vítimas de um preconceito por parte do grupo

erudito e aclamados pelo público.

Isto nos leva à questão da consolidação de um mercado de consumo para bens

simbólicos que a partir da segunda metade do século XIX, irá impor ao universo da

produção editorial novas demandas, mas também mudanças significativas nas relações

entre seus agentes.

170

2. A indústria cultural.68

Em uma economia cuja participação de bens simbólicos amplifica-se

constantemente e na qual as relações entre os agentes sociais são cambiadas através de

fichas simbólicas e sistemas especialistas, o grau de confiança e abstração exigidos dos

indivíduos aumenta significativamente. Presenciamos com a modernidade um duplo

movimento de aproximação e distanciamento: se, em relação às obras de arte, a literatura e

a ciência, ocorre um declínio da aura, representado pela aproximação dos receptores aos

“conteúdos”, em relação aos fenômenos da vida cotidiana, os desencaixes das vivências e

ofícios locais deflagrados com o surgimento do estado-nação e da produção industrial,

levarão a um distanciamento. O movimento de busca de um centro no próprio “eu” está

relacionado a estes fenômenos, o domínio das estruturas simbólicas fortalece a idéia de um

sujeito iluminista, e um sujeito iluminista precisa de uma zona de movimentação

desencaixada, uma liberdade em relação às estruturas encaixadas da vida medieval. Na raiz

da autonomização do campo literário, encontra-se este individualismo moderno, e a

necessidade que os sistemas sociais baseados em solidariedade orgânica possuem de

diferenciarem-se permanentemente. Pierre Bourdieu sustenta que a consolidação de um

campo de produção erudita se deu no movimento de diferenciação e oposição deste campo

em relação ao campo da produção para o mercado de consumo de bens simbólicos

denominado de indústria cultural:

68 Nesta dissertação o conceito de indústria cultural poderá ser apresentado no singular enfatizando a característica sistêmica da mesma e no plural quando enfatizarmos os diversos segmentos da mesma que apresentam autonomia relativa entre si.

171

O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura específica da oposição

- mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística – que se

estabelece entre, de um lado, o campo da produção erudita enquanto sistema que produz

bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinados (ao

menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que também produzem

para os produtores de bens culturais e, de outro, o campo da indústria cultural

especificamente organizado com vistas à produção destinados a não produtores de bens

culturais (“o grande público”) que podem ser recrutados tanto nas frações não-intelectuais

das classes dominantes (“público cultivado”)como nas demais classes sociais.(Bourdieu,

1987:105)

O encontro no campo editorial dos campos da produção erudita e da indústria

cultural gerará dentro deste uma forte tensão e implicará na oposição entre, por um lado,

bens culturais produzidos para produtores e, por outro, bens culturais produzidos para o

público cultivado e para o público em geral. Inúmeras editoras se dedicarão a produzir

pequenas tiragens de livros de poesia e prosas destinadas a serem lidas apenas por poetas e

escritores. No campo acadêmico, serão raros os livros que extrapolarão as margens dos

consumidores intelectuais, que também são pesquisadores e produtores. Por outro lado,

casas editoriais com catálogos mais diversificados buscarão produzir para o público

cultivado e, às vezes, com sorte, para o grande público. Em um jogo de paciência longo e

com muitas vítimas, alguns editores com esse perfil acabam sendo premiados com um ou

dois sucessos que são suficientes para desenvolverem suas casas editoriais, alçando-os à

condição de produtores da indústria cultural.

Mas antes de avançarmos nesta análise é necessário que caracterizemos o conceito

de indústria cultural e sua possível atualidade.

172

O conceito de indústria cultural foi cunhado por Adorno e Horkheimer, em um

ensaio de 1944, intitulado: “A indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das

massas”. A percepção de que bens culturais vinham tornando-se mercadoria não era nova,

entretanto, os pensadores da escola de Frankfurt deram um passo importante ao

caracterizarem este processo como um sistema, e a produzirem importantes chaves

conceituais para sua análise. Segundo eles existia um certo consenso no campo da

sociologia de que um caos social havia sido produzido pelos processos de declínio da

religião e constante especialização técnica da sociedade industrial. Entretanto, esta era uma

visão equivocada, cujos fatos vinham constantemente desmentindo-a. Ao invés de um caos

cultural, se estava se vivendo um processo de relativa estabilidade cultural, devido à

crescente influência da sistematização dos processos de produção cultural e seus

desdobramentos para a vida social.

No cerne de sua crítica destacavam-se as seguintes questões:

1. A cultura organiza-se como um sistema;

2. Subordinada à diversão a produção artística perde seu caráter crítico;

3. A indústria cria fórmulas que são reproduzidas a exaustão;

4. A alta cultura converte-se em cultura de massas através de simplificações que

destroem aquilo de crítico e original que havia nela;

5. A recepção das obras da indústria cultural ocorre como prolongamento do processo

cotidiano de trabalho e se dá como um segundo tempo da alienação do processo de

trabalho capitalista.

173

O conceito de indústria cultural possui forte relação, e muitas vezes se confunde

com o de cultura de massas. Na verdade, a cultura de massas é, para a teoria crítica 69, um

produto da indústria cultural. Segundo esses autores, à medida que os meios de

reprodutibilidade técnica se desenvolveram, em especial com a introdução da energia

elétrica nas oficinas gráficas, criaram-se condições para que os jornais atingissem um

público muito mais amplo. Mas para que isso ocorresse foi necessário que os jornais

passassem a falar a linguagem do público, em geral possuidor de um repertório limitado. O

folhetim e o jornal de “tostão” foram legítimos representantes deste processo. No primeiro

caso tivemos a construção de um gênero literário completamente distinto do romance

burguês e que iria atingir amplas parcelas da população. No segundo caso estávamos diante

de um modelo de negócios de quase gratuidade do jornal para os leitores, isso era possível

devido à ampla participação da publicidade.70 Com a emergência do cinema e da

radiodifusão, a cultura de massas também se ampliou: desde seus primórdios os diversos

meios que compõem esta cultura interagem, textos de um meio são adaptados para outro, e

o noticiário cumpre o papel de realizar um diálogo entre o “real” e o “ficicional” presentes

na cultura de massas.

A idéia de alta cultura existe em contraposição a uma cultura de massas, ou baixa

cultura. A primeira designaria os produtos canonizados pela “crítica” especializada,

componentes da tradição cultural da humanidade, muitos designados como clássicos e

outros que, embora contemporâneos, recebem da crítica, quer por sua inovação ou vínculo à

69 Teoria crítica é um dos nomes atribuídos ao conjunto de contribuições oferecidas pelos teóricos da Escola de Frankfurt, ao campo das ciências sociais. 70 A ficção na forma de folhetim foi um dos grandes atrativos para a entrada da propaganda nos jornais. O mercado de consumo que surge no século XIX irá incorporar amplas camadas da população. Para atingir estes novos consumidores as empresas se valerão da propaganda em jornais. Segundo Peter Burke, nos EUA, as receitas geradas pela propaganda impressa saltaram de 40 milhões de dólares em 1881, para 140 milhões em 1904 e alcançaram a casa de um bilhão de dólares em 1916. (Briggs e Burke, 2002:211)

174

tradição, o selo de candidato ao cânon. Algumas características designam os produtos da

alta cultura (ou cultura superior): manipulam códigos específicos e, por isso, para

recepcioná- los é necessário que o público domine estes códigos. Inscrevem-se em uma

tradição artística ou literária, podendo ser críticos desta ou a reproduzem, ou ainda as duas

coisas. Na modernidade, pressupõe uma certa liberdade do artista em relação ao público e

aos financiadores da obra.

Um outro conceito que dialoga com o conceito de indústria cultural é o de cultura

popular, compreendida como o conjunto de valores tradicionais de um povo, expressos pelo

folclore, danças, músicas, artesanatos, crendices e costumes gerais, compondo um mosaico

de valores positivos, consumidos pelos mesmos agentes que os produzem. Quando se

discute indústria cultural um dos erros típicos é o de confrontar essas concepções de cultura

como sendo opostas quando, na verdade, a indústria cultural e seu produto, a cultura de

massas se alimentam tanto da alta cultura, quanto da cultura popular, estratificando seus

consumidores em três categorias: público erudito, público cultivado e grande público.

No primeiro caso teríamos o público especializado de produtores que produzem

para si e para seus pares, mas que de certa forma participam da indústria cultural, já que

esta, em sua diversidade, apropria-se das obras desta categoria, criando modelos de

negócios para sua distribuição. É verdade também que este público possui outras maneiras

de acessar conteúdos eruditos, em especial através da troca direta com outros produtores

através de circuitos undergrounds que passam ao largo da indústria.

O público cultivado é aquele formado pela burguesia não intelectual e por partes

ascendentes das camadas médias. Este público, importantíssimo para a indústria cultural,

será o receptor de obras já domesticadas, ou adaptadas a um gosto médio, mas ao mesmo

175

tempo preservando parte de sua identidade com a alta cultura. Por exemplo, adaptações de

clássicos da literatura para o cinema, ou versões pop, de sinfonias clássicas. Domestica-se o

conteúdo, mas também adestram-se os receptores.

O grande público seria formado majoritariamente pelos membros das camadas mais

populares, mas também por membros da classe média e da burguesia; a este se destinariam

a maioria dos produtos da indústria cultural, e para este estrato é que a estandardização será

praticada de forma indiscriminada.

Como toda secção, esta apresenta suas arbitrariedades e, por isso, deve ser

relativizada, mas de um modo geral, são este os públicos da indústria cultural, e no caso da

produção de livros podemos facilmente reconhecer nos títulos editados a presença destes

três tipos de receptores. A visita a uma grande livraria revelará na vitrine os livros

destinados ao grande público, na maioria dos expositores se notará que os livros destinados

ao grande público e ao público cultivado serão expostos com a capa à mostra, não faltarão,

tampouco, os livros para o público erudito, mas estes, em menor número, estarão expostos

apenas pela lombada.71

Como teóricos sociais, Adorno e Horkheimer estão preocupados com duas facetas

da industrialização dos bens simbólicos, – a alienação e a reificação – que se encontram

representadas na conversão destes bens em mercadorias. A alienação se daria por um

fenômeno representado pelo fluxo incessante das mercadorias da indústria cultural nas

vidas das pessoas, de forma que estas não mais refletissem sobre suas verdadeiras

condições. Isso ocorreria porque a indústria cultural tomaria todo o tempo livre dos

71 Este assunto será retomado no capítulo seis.

176

indivíduos com suas mercadorias homogeneizadas e desprovidas de conteúdo reflexivo, a

seguinte passagem do texto supracitado reflete esta posição dos autores:

Na medida em que os filmes de animação fazem mais do que habituar os sentidos

ao novo ritmo, eles inculcam em todas as cabeças a antiga verdade de que a condição de

vida nesta sociedade é o desgaste contínuo, o esmagamento de toda resistência individual.

Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real

recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios

recebem. (Adorno e Horkheimer, 1985:130)

Assim o fluxo alienador da indústria cultural apresenta um duplo movimento, por

um lado ele preenche os espaços vazios da vida cotidiana com mais do mesmo, moldando

os operários para a repetitiva tarefa diária, por outro naturaliza as condições de exploração

e humilhação as quais estes operários são submetidos, suavizando no campo psicológico a

opressão sistemática.

Outra característica dos produtos da indústria cultural seria a reificação, ou seja, a

capacidade destes produtos de se apropriarem daquilo que é vivo e criativo na produção

simbólica, convertendo-o em mercadoria coisificada. E finalmente o fetiche, outra das

propriedades dos mecanismos da indústria cultural, que concede à suas mercadorias

características artísticas que realmente não possuem e criam uma aproximação entre o

receptor e os produtos, de forma a que estes se identifiquem com aquelas. É o caso, por

exemplo, das celebridades desenvolvidas pelo cinema, e que se tornam objeto de culto por

parte do público.

177

Um dos elementos centrais da crítica desferida pelos fankfurtianos à indústria

cultural encontra-se na característica de dependência que esta gera em seus consumidores, e

do papel passivo a que estes são submetidos no vicioso ciclo de consumo:

O princípio impõe que todas as necessidades lhe sejam apresentas como podendo

ser satisfeitas pela indústria cultural, mas, por outro lado, que as necessidades sejam de

antemão organizadas de tal sorte que ele se veja nelas unicamente como um eterno

consumidor, como objeto da indústria cultural. (Adorno e Horkheimer, 1985:133)

A autonomia da arte como mercadoria é uma das características da

modernidade e está intimamente ligada ao surgimento dos meios de comunicação de

massas. Pensando do ponto de vista macro, podemos afirmar que a modernidade promove

uma cisão social, separando em espaços distintos, o ético-político, o cognitivo e o estético.

Como esta última esfera demonstra ser a mais susceptível a converter-se a lógica da

mercadoria, ela acaba por colonizar as outra duas, estetizando a política e o conhecimento.

Em “A ideologia da estética”, Terry Eagleton identificará de forma precisa este movimento

da mercadoria estetizada, que tenta converter a tudo em si mesma.

Com o desenvolvimento do capitalismo de consumo, a cultura também foi

inteiramente estetizada. A completa estetização da sociedade chegara a uma apoteose

grotesca, por alguns instantes, no fascismo (...) Mas, nos anos do pós-guerra, uma forma

diferente de estetização viria saturar toda a cultura do capitalismo tardio, com seu

fetichismo do estilo e da superfície, seu culto do hedonismo e da técnica, sua reificação do

significante, e o deslocamento do significado discursivo por intensidades casuais. Em seus

primeiros estágios, o capitalismo havia separado claramente o simbólico do econômico;

agora, as duas esferas estão incongruentemente reunidas, à medida que o econômico

178

penetra profundamente no reino do simbólico e o corpo libidinal é atrelado aos imperativos

do lucro. (Eagleton, 1993: 269)

Muitas das características apontadas por Eagleton estão presentes na crítica

postulada por Adorno e Horkheimer, e o que o autor inglês está descrevendo são os traços

da pós-modernidade, ou da modernidade tardia, aspectos que, poderiam ser utilizados para

referendar a vitalidade da crítica dos frankfurtianos. Mas, afinal, o que desta crítica

permanece atual? Ou, posto de outra forma: Que aspectos da teoria cr ítica no que diz

respeito à indústria cultural podem ser utilizados por nós, e quais deles devem ser

refutados?

3. Críticas ao conceito de indústria cultural.

A primeira e, mais feroz oposição ao conceito de indústria cultural, se deu no

âmbito de uma discussão entre esquerda e direita, sendo o conceito assumido como uma

das bandeiras da esquerda marxista, para condenar a crescente presença mundial, no pós-

guerra, da indústria americana do entretenimento. Em oposição a esta crítica desenvolveu-

se um discurso, em geral, identificado com a direita, que postulava os aspectos

democráticos da massificação dos bens culturais. Para esta idéia, a crescente educação das

camadas baixas da população criava novas demandas por bens simbólicos, que não mais

poderia ser atendida nos antigos modos pré-industriais. Nada mais “natural” que a

utilização de um aparato técnico-reprodutivo, para facultar às massas o acesso a estes bens.

Entretanto, em um processo tão amplo de distribuição de bens simbólicos, alguma

qualidade e erudição necessariamente deveriam ser sacrificadas, pois os novos

179

consumidores possuíam níveis distintos de repertório. Nada que sacrificasse a produção

artística e literária, já que o mercado de forma funcional se segmentaria, reservando espaço

para todo o tipo de produção. Aos membros das camadas populares que ingressavam no

mercado de consumo de bens culturais facultava -se um possível desenvolvimento

perceptivo, que poderia levar muitos deles, a no futuro, consumirem produtos mais

elaborados. Desse modo, através de uma pedagogia dirigida pelo próprio mercado, com o

tempo à qualidade dos bens culturais seria elevada, a partir da elevação cultural dos

receptores.72

Uma segunda posição, neste caso menos identificada com ideologias de esquerda ou

de direita, pressupunha que o grande problema da indústria cultural, admitindo os

pressupostos básicos da crítica frankfurtiana, estava no conteúdo. Ou seja, quando os meios

técnicos de reprodução passassem a distribuir conteúdo de qualidade, “naturalmente” as

massas elevariam seu padrão de consumo. De certo modo é uma visão oposta à anterior: a

primeira, coloca sob responsabilidade das massas a elevação dos conteúdos, a partir de um

“natural” desenvolvimento perceptivo; a segunda, coloca nas mãos do estado, ou da

sociedade civil organizada, a tarefa de interferir junto à indústria, a fim de assegurar

conteúdos de qualidade.73

Uma terceira crítica se dá a partir da semiótica. Esta pressupõe que todo o processo

de produção de significados se dá a partir do signo, entendido como aquilo que representa

72 Este tipo de posição é encontrada com certa regularidade nos debates sobre livro e leitura e pode ser expresso através da seguinte pergunta: “Afinal, não é melhor que as pessoas leiam livros do Paulo Coelho, ao invés de não lerem nada? A partir destes livros pode ser despertado o interesse para outros livros, mais canônicos, por assim dizer.” 73 Umbero Eco, em seu livro “Apocalipícos e integrados”, irá discutir as matizes de duas posições extremas: considerará apocalípticos os adeptos de críticas aparentadas com as desferidas por Adorno e Horkheimer e integradas aquelas ligadas ao funcionalismo e ao interacionismo simbólico, expressam aqui mais claramente pela primeira das críticas desferidas ao conceito de indústria cultural.

180

algo, ou que está no lugar deste algo.74 O signo se dividiria em duas partes, o significante,

formado por sua estrutura fonética e gráfica, segundo Ferdinand Saussure, sua imagem

acústica; e o significado, aquilo que está ausente e representado pelo significante. Todo o

signo se refere a alguma coisa que existe fora do campo lingüístico e esta é chamada de

referente. Peirce em sua segunda tricotomia estabeleceu três níveis de classificação para o

signo:

1) Ícone: quando o signo possui alguma semelhança ou analogia com aquilo que é

representado, ou referente, como, por exemplo: uma fotografia, um desenho.

2) Índice, index ou indicador: quando mantém uma relação direta com o referente. Por

exemplo: fumaça indicando fogo, o sol indicando calor.

3) Símbolo: quando a relação com o referente é arbitrária, fruto de uma convenção.

Por exemplo: bandeiras, sinais de trânsito.

Segundo Teixeira Coelho, a estas três modalidades correspondem formas distintas

de perceber. À categoria ícone corresponderia uma consciência icônica, cujo modo de

operar seria o mesmo do ícone, ou seja, por analogia e a partir da contemplação e do

sentimento. Em sua constituição revela traços específicos do referente, podendo, entretanto,

continuar a existir mesmo que o referente não mais exista. Por exemplo, quando a pessoa

fotografada morrer, a foto ainda a representará, senão como alguém conhecido do receptor,

ao menos como uma criatura do gênero humano de olhos castanhos e cabelos

encaracolados. Não se trata de uma consciência lógica e, sim, de uma operação por

semelhança que contenta-se em chegar a juízos provisórios, intuitivos e sensoriais.

74 Por ser amplamente conhecida a teoria dos signos, cujos principais representantes são: Charles S. Peirce, e Ferdinand Saussure limitar-me-ei a apresentar resumidamente suas conseqüências para análise da indústria cultural. Para efeito de maior compreensão da mesma, ver na bibliografia: (Peirce, 1995)

181

A categoria índice corresponderia à consciência indicial. Diferentemente da

consciência icônica que pode emitir juízos a partir da contemplação, a indicial está

diretamente ligada ao referente necessitando do contato com este para significar. Ela é

efêmera, pois depende da permanência do referente para ter sentido. Por exemplo, uma seta

que indica um caminho, só passa a ter sentido, à medida que o interessado desloca-se nestes

caminhos. A recepção deste tipo de signo mobiliza um certo ato físico ou mental por parte

do receptor. Enquanto a consciência icônica é contemplativa, a indicial é operativa e

necessita formar juízos conclusivos acerca de seus respectivos referentes. Enquanto a

contemplação permite ao receptor chegar a conclusões novas, a operação é limitada, o grau

de descoberta que ela propícia é limitado aos aspectos já revelados no signo.

A categoria símbolo corresponde à consciência simbólica, trata-se de uma

consciência investigativa que mobiliza as convenções a que se vincula, a fim de procurar

suas respectivas causas. Para além de sentir e constatar a existência do referente, a

consciência simbólica procurará entender os porquês de sua existência. Para ser entendido,

o símbolo não exige que seu receptor conheça o referente, sua arbitrariedade confere

perenidade, e estas duas características são essenciais para o conhecimento de coisas novas,

a ciência, por exemplo, seria basicamente simbólica.

Segundo Teixeira Coelho, quando confrontamos os problema da alienação e da

revelação, próprios do conceito de indústria cultural, com a questão da significação a partir

desta três modalidades de signo, chegamos à conclusão de que a indústria cultural é regida

hegemonicamente pelo signo indicial, fato que estimula nos receptores o desenvolvimento

de uma consciência indicial:

182

Aqui, então, vai ser possível dizer que o problema com a indústria cultural não é

tanto o que ela diz ou não; não é tanto o fato de ser ela deste ou daquele modo,

estruturalmente; nem o fato de ter surgido neste ou naquele sistema político-social – mas,

sim, no modo como diz. É que a indústria cultural – na TV, no rádio, na imprensa, na

música (particularmente a dita popular, nos fascículos, mas também nas escolas e nas

universidades – é o paraíso do signo indicial, da consciência indicial.(...) Como o que

ocorre com o índice, de certo modo o que é dado ao receptor é alguma coisa já conhecida.

(...) Não há revelação, apenas constatação, e ainda assim uma constatação superficial – o

que funciona como mola para alienação. O que interessa não é sentir, intuir ou

argumentar, propriedades da consciência icônica e simbólica; apenas, operar. (Coelho,

1989:70)

A inflação de signos indiciais seria o problema da indústria cultural, que processaria

a comunicação de maneira fragmentada, acelerada e superficial. Estaríamos essencialmente

diante de um problema de forma. Embora considere a abordagem semiótica a mais rica para

tratar a questão da indústria cultural, Teixeira Coelho admite que outras modalidades de

críticas podem a ela se juntar, fornecendo um quadro mais amplo.

Durante cerca de três décadas a crítica “apocalíptica” dos frankfurtianos foi o

principal rio a irrigar as abordagens de esquerda acerca do fenômeno da cultura de massas.

Na década de 70, a retomada da polêmica mantida entre Adorno e os textos de Walter

Benjamin concederá um novo rumo às questões relacionadas ao papel da indústria cultural

em suas relações com conceitos como os de culturas de massa e popular. Jesus Martin-

Barbero é um dos teóricos latino-americanos que retomará o conceito de indústria cultural a

partir de uma nova leitura. Barbero reconhece a importância do conceito de unidade que

demonstra que toda a cultura passa a funcionar dentro de uma lógica de consumo em que

183

produção em série e geração de necessidade se imbricam em um único sistema, porém,

adverte para os riscos que a totalização deste conceito pode levar, colocando em um mesmo

patamar o cinema de Orson Welles e Chaplin e os filmes mais estandardizados.

Para Barbero, existe um espaço dentro do campo da cultura para a produção de

obras diferenciadas que não se adequam aos modelos estandardizados permitindo ao autor o

exercício da crítica. Entre Horkheimer e Adorno, será este último que se dedicará mais

intensamente a desenvolver as idéias ligadas à crítica da indústria cultural. Para Adorno a

arte não deve subordinar-se a um princípio hedonista, ela não deve emocionar, mas em

oposição à emoção a arte deve produzir comoção, ou seja, promover um abalo nas

estruturas do receptor e, por conseqüência, no próprio sistema social que critica. A teoria

estética de Adorno é completamente negativa, baseia -se na rejeição radical de qualquer

possibilidade de conciliação entre a arte e os produtos da indústria cultural. Comentando

estas idéias, Barbero promove uma síntese:

A função da arte é justamente o contrário da emoção: a comoção. No outro extremo

de qualquer subjetividade, a comoção é um instante em que a negação do eu abre as portas

à verdadeira experiência estética. Por isso nada entendem os críticos que ainda insistem na

conversa mole de que a arte deve sair de sua torre de marfim. E o que não entendem estes

críticos é que o estranhamento da arte é a condição básica de sua autonomia. (Barbero,

2003: 83)

Barbero confrontará as posições de Adorno, as investigações de Walter Benjamin.

Este último não parte de um ponto fixo, pois pensa a realidade social como algo

descontínuo, um mosaico. Benjamim pensará as mudanças a partir do processo de

recepção, o declínio da aura, longe de ser uma saudação à indústria cultural, é uma

184

interpretação radical das mudanças na sensibilidade perceptiva promovida pelas alterações

estruturais que se processam no interior da sociedade e, em especial, entre os proletários:

Dentro de grandes espaços históricos de tempo se modificam, junto com toda a

experiência das coletividades, o modo e a maneira de sua percepção sensorial; busca-se

então manifestar as transformações sociais que acharam expressão nessas mudanças de

sensibilidade. (Benjamin, “Discursos interrompidos”, v. I, p.24 – apud Barbero,2003:87)

A partir da abordagem benjaminiana, seria um erro considerar de antemão os

processos de reprodutibilidade técnica aos quais as artes estavam submetidas como uma

experiência de queda e degradação. Pois, se a nova época histórica havia transformado o

processo de percepção, então, caberia aos verdadeiros artistas buscarem utilizar estas

mudanças em suas práticas criativas. Essa posição, embora condenasse a estandardização

promovida pela indústria, acolhia aqueles artistas que utilizassem as novas técnicas de

forma independente e crítica, mesmo no interior da própria indústria.

Em seu texto sobre o declínio da narrativa, Benjamin identificara a cisão

psicologizante promovida pelo romance burguês e verificara a emergência da informação

no reino da ficção, ao mesmo tempo em que se promovia o declínio da oralidade. Edgar

Morin, na obra “O Espírito do Tempo I”, ampliará esta reflexão, identificando nos folhetins

um processo de osmose entre a narrativa folclórica e o campo da informação. No romance

de folhetim, diferentemente do romance burguês, a oralidade das narrativas populares

permanecerá, entretanto, a informação própria da imprensa, e de certa forma já presente nos

romances burgueses, também estará presente.

O folhetim é considerado pelos teóricos da cultura de massas, o primeiro produto da

indústria cultural. Mas isto pode ser questionado, já que desde o século XV, escritores de

185

aluguel vem produzindo textos, subordinados aos “gostos” do público, ou pelo menos

aquilo que os editores consideravam o “gosto” do público. O que havia de novo no

fenômeno do folhetim, era a amplitude de sua reprodução e a velocidade com que os

receptores respondiam aos textos. O fato de serem publicados periodicamente e em partes

facilitava este fato, é através do folhetim que pela primeira vez os autores estabelecem um

contato intensivo com os autores e, será nesta mediação que uma nova identidade de autor

irá emergir: “As classes populares só alcançaram a literatura mediante uma operação

comercial que fende o próprio ato de escrever e desloca a figura do escritor na direção da

figura do jornalista.” (Barbero, 2003: 183)

Este espaço de comunicação entre o imaginário e o real promovido pelo folhetim

será a primeira manifestação em conjunto dos pressupostos básicos da indústria cultural,

mas também a manifestação de um rico espaço de interação entre autor e leitor, o espaço da

mediação. Ausente na quase totalidade das análises sobre o folhetim, o espaço da leitura é

capital para a verificação da persistência do popular no massivo, e com este um processo de

construção de uma nova percepção, no qual se pode verificar, não apenas o poder da

indústria, mas também o poder das camadas populares.

Barbero segue as pistas deixadas por Benjamin e encontra na leitura (recepção) um

dos pólos de uma relação dialética com a escritura, em geral menosprezada pela crítica de

esquerda e de direita, a indústria cultural. O fenômeno editorial do folhetim gerará um

novo tipo de escritor, que manipulará em sua tarefa tanto a informação quanto a ficção. De

maneira geral, os profissionais que participarão do mundo das letras a partir desta época

serão autores que contribuirão com periódicos ao mesmo tempo em que constroem seus

textos de ficção. O estudo das relações entre o jornalismo e a escrita de ficção realizado

por Cristiane Henriques Costa, intitulado “Pena de aluguel”, comparou escritores

186

brasileiros das primeiras décadas do século XX, com escritores do século XXI e constatou

que o número de jornalistas era expressivo e continua sendo nos dias atuais. A idéia do

escritor independente do público e que vive exclusivamente de sua arte, é uma utopia. Mas

afinal, poderíamos perguntar: Independente de quem? Pois, caso o autor trabalhe em

jornal e escreva ficção ele estará subordinado a dois pólos de força. Por um lado os

editores (do jornal e dos livros) e por outro dos leitores. Caso obtenha sucesso, poderá até

livrar-se do poder dos editores, mas aí, caíra sobre o poder dos leitores.

Ao invés de pensarmos este processo como de subordinação do autor às forças do

mercado, podemos imaginá-lo como um espaço de permanente conflito, no qual o autor

postula uma certa autonomia, ao mesmo tempo em que a negocia com o editor que objetiva

essencialmente manter seu negócio e obter lucros e com o leitor que possui interesses

variados. O espaço de mediação é também, como todo ambiente de negociação

competitiva, um espaço de tensão.

Mas o fato de considerar o folhetim um exemplo da participação do popular no

massivo, não significa que Barbero admita, como os críticos americanos da indústria

cultural, que o cultural separou-se das relações de poder, ao contrário, este autor percebe

que o espaço da mediação é um campo no qual as relações de poder irão se manifestar.

A passagem de uma era de produção para uma sociedade de consumo promoverá

mudanças nas relações entre as classes, que pela primeira vez na história humana estarão

em contato através da cultura de massas. Porém, este fenômeno, longe de produzir a

igualdade, será hegemonizado pelas classes dominantes, servindo a seus interesses culturais

e ideológicos. Isso não significa que nas entranhas desta cultura de massas não se promova

uma resistência , uma contra-hegemonia, e esta se verificará tanto na cultura popular, quanto

187

na cultura erudita de vanguarda, duas formas de produção simbólica, na qual o próprios

produtores são os consumidores. E poderá estar presente, inclusive, em produtos da cultura

de massas, nos quais alguns folhetins são os primeiros exemplos.

Dois fatores se destacam na crítica de Barbero ao conceito frankfurtiano da

indústria cultural:

1. Que a totalização do conceito, incorporando todos os produtos que de

alguma maneira participam da indústria, constitui-se em uma arbitrariedade

que coloca na mesma cesta produtos da estandardizados e outros, que

possuem uma dimensão crítica importante;

2. Que a esfera da recepção é ativa e introduz suas demandas no espaço da

cultura de massas, influenciando parte dos produtos da indústria.

Não obstante sua crítica, Barbero concorda com um dos aspectos essenciais da

concepção original de indústria cultural, qual seja, seu caráter sistêmico e unitário, com

todas as ressalvas representadas pelos do is fatores anteriormente expostos.

Podemos também questionar o conceito original de indústria cultural a partir das

idéias de pós-estruturalistas como Michel Foucault, em especial o sentido unitário e

sistêmico desta, preservado pelas críticas de Barbero e pelo confronto com a visão

semiótica.

A contribuição central de Michel Foucault para a teoria social encontra-se em

sua concepção das relações de poder. Para o filósofo, a introdução da modernidade se dá

com um profunda diferenciação das diversas dimensões da vida social, porém, identifica

em cada uma destas dimensões a presença de micro-poderes que se estendem através de

188

uma teia ou rede de relações, na qual os indivíduos exercem e sofrem os efeitos do poder,

de tal forma que, como pontos desta rede, o poder transpassa os indivíduos, a partir da

posição em que estes se encontram na sua rede de circulação.

As relações de poder não se encontram em relação de exterioridade com respeito a

outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimento, relações

sexuais), mas lhes são imanentes; são os efeitos imediatos das partilhas, desigualdades e

desequilíbrios que se produzem nas mesmas e, reciprocamente, são as condições internas

destas diferenciações; as relações de poder não estão em condição de superestrutura; com

um simples papel de proibição ou de recondução; possuem, lá onde atuam, um papel

diretamente produtor.(Foucalt, 1977:90)

Para Foucault não existe uma estrutura externa centralizadora deste poder, pois

todas as dimensões da vida social estão imersas nestas redes de transmissão de forças que

são instáveis e móveis, deslocando-se o tempo todo e promovendo novas configurações que

impedem um articulação interna em direção a um centro. Esta concepção é contrária a idéia

de unidade sistêmica presente no conceito de indústria cultural. Caso apliquemos a

categoria de poder foucaultiana para o modelo da indústria cultural, estas perderiam seu

papel de unidade e se transformariam em um mosaico de configurações que se

modificariam constantemente, em um sentido racionalizante, sem qualquer estabilidade:

(...) é o suporte móvel das correlações de forças que, devido à sua desigualdade, induzem

continuamente a estados de poder, mas sempre localizados e instáveis.”(Foucault, 1977: 89)

As idéias de Foucault não nos permitem identificar as as articulações promovidas

entre as instâncias de poder de um campo a fim de conformar sistemas eficazes de

dominação nos quais prospera uma racionalidade instrumental.

189

Entretanto, a caracterização da sociedade como que formada por uma rede pela qual

circula o poder, rede esta que mantém a sociedade disciplinada e obediente, atuando em

todas as dimensões da vida social, pode nos ajudar a compreender o grau de penetração da

indústria cultural no conjunto das práticas sociais, e pode elucidar de certa forma a

independência relativa que certos setores mantém por certos períodos de tempo. 75

Em nossa pesquisa sobre a atuação da indústria cultural encontramos inúmeras

evidências de uma atuação centralizada e racional. Enumeramos algumas delas a seguir:

1. Os grupos que atuam na indústria estão cada vez mais articulados e existe

uma lógica no meio pela concentração, grupos que atuam na área de

comunicação de massas buscam adquirir outros grupos, em especial aqueles

que possuem conteúdos de arquivo (filmes, livros, personagens etc). O

exemplo emblemático deste movimento foi a aquisição no ano de 2000, da

Time Warner, maior grupo de entretenimento e conteúdos editoriais do

mundo, pela empresa AOL, uma das maiores companhias de comunicação

digital.

2. Os “bons” produtos culturais lançados no mercado editorial são, muitas

vezes adaptados para outros formatos como TV, cinema, jogos, e para o

crescente mercado de licenciamento de personagens.

3. Produtos lançados na TV, no cinema e nos games se transformam em livros.

Possuímos um exemplo no mercado brasileiro, a Editora Globo, que tem

lançado no formato livro, boa parte de seus programas televisivos. Não

75 É o caso das pequenas editoras ligadas a setores da vanguarda erudita, que enquanto não conseguem emplacar sucessos editoriais se mantém relativamente distantes da lógica estan dardizada da indústria.

190

apenas os óbvios como mini-séries, mas também programas de humor como

o “Casseta e Planeta”, ou os mini-contos do programa “Retrato Falado”,

passando por livros com dicas de investimento dos comentaristas da rádio

CBN.

4. O mercado infanto-juvenil é, sem dúvida, um dos mais promissores, um

filme como Star Wars, episódio III, de George Lucas, é um típico exemplo

desta integração racional: antes do filme estrear, foi lançada uma série de

desenhos animados em 25 capítulos, para TV. Nas bancas de jornal foi

lançada uma série de HQs paralelas, cuja temática tratava cronologicamente

dos acontecimentos que separavam os episódios II do III. Na área de games,

foi lançado um novo jogo. Nas lojas de brinquedos era possível adquirir

bonecos dos personagens da série, enquanto nos fast-foods e supermercados

muitos produtos estampavam cenas e personagens do episódio em questão.

Mesmo após o final da saga, uma série de livros vem sendo lançada com o

desenvolvimento de linhas alternativas com a temática e os personagens da

série. O lançamento do DVD e da trilha sonora são outros eventos que

fecham a cadeia de produtos da “franquia.”

Os exemplos acima demonstram a presença de uma unidade impecável nessa

indústria, bem como sua atuação sistêmica. E acreditamos ser esta a contribuição essencial

do conceito de indústria cultural dos frankfurtianos que permanece atual, não obstante as

diversas críticas desfechadas contra este conceito, e a própria localização histórica de sua

emergência. Isso posto, é necessário que relativizemos sua extensão totalizante, porque no

fenômeno da cultura de massas existe uma resistência contra-hegemônica, desfechada por

191

artistas e pela cultura popular, que se cristaliza em produtos culturais nos quais a dimensão

crítica, reflexiva, ou para utilizar as palavras de Adorno, nos quais a capacidade de

comoção, permanece.76

Apesar de, em parte, apresentar profunda atualidade, o conceito indústria cultural

sofreu um grande desgaste, e encontra-se, em geral, vinculado às idéias pessimistas de

Adorno e Horkheimer. Talvez por isso, mas não apenas, em meio ao debate cultural travado

entre acadêmicos, artistas, agentes culturais e instituições públicas, vem se desenvolvendo

um novo conceito, o de indústrias criativas. Nossa investigação nos leva a considerar que o

conceito de indústria cultural encontra problemas em dois aspectos fundamentais: primeiro,

por estar vinculado a uma crítica exclusivamente negativa e que parece negar espaço para a

emergência dos aspectos criativos e de disputa contra-hegemômica, conforme as críticas de

Benjamin e Barbero. Segundo, por estar limitado a um segmento da produção cultural

identificado apenas com as artes. A questão que procuramos responder nos próximos

tópicos é se, devido a estes limites do conceito de indústria cultural, nós devemos substituí-

lo pelo de indústrias criativas. Será que este novo conceito, sem abandonar a crítica dos

Frankfurtianos, pretende conceder um maior equilíbrio entre a parte indústria e a parte de

liberdade e criatividade presentes na produção cultural?

76 É necessário que se faça justiça a Adorno: em suas obras finais, o pensador admitia a possibilidade de no seio da indústria cultural, permanecer um certo espaço de liberdade para o sujeito, no qual a crítica e a comoção resistiria m. O comentador de sua obra , F. Rudiger, identificará esta faceta em seu texto: Elementos originários da problemática, In.: ___. Comunicação e Teoria Crítica da Sociedade. Adorno e a Escola de Frankfurt. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 57 – 86.

192

4. Da indústria cultural às indústrias criativas

O conceito de indústrias criativas surgiu no cenário da discussão cultural nos

últimos anos do século XX. Uma entrevista de Paulo Miguez, Secretário de Políticas

Culturais do Ministério da Cultura do Brasil, a Alan Infante, do periódico eletrônico Prima

Página, revela a circulação deste co nceito nas discussões institucionais sobre a produção de

bens culturais:

O termo indústria criativa é relativamente recente. Ele é apenas um novo

nome para indústria cultural? Há alguma diferença?

Miguez — Eu diria que o marco público da utilização desse termo foi a publicação de uma

matéria na revista inglesa “The Economist”, em 2000, quando aparece pela primeira vez

essa idéia de economia criativa. A expressão tem sido utilizada mais intensamente

principalmente pela Inglaterra, pela Austrália, e ganhou força provavelmente após a [mais

recente] reunião da UNCTAD. Mas é um termo que tem muita aproximação com indústria

cultural. É possível que a indústria criativa abranja mais setores, mas eu penso que essa

discussão conceitual está sendo realizada. A própria UNESCO [Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] não utilizava a expressão indústrias

criativas, mas passou a utilizar.

(http://www.pnud.org.br/educacao/entrevistas/index.php?id01=1124&lay=ecu–

acessado em 22 de julho de 2005 às 19.15)

Durante a organização no ano de 2005 em Salvador Bahia, do I Fórum

Internacional das Indústrias Criativas, promovido pelo Ministério da Cultur a do Brasil, com

193

apoio do PNUD (Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento), o Ministério da

Cultura divulgou o seguinte comunicado à imprensa, cuja parte do conteúdo selecionamos:

Como parte de um novo conceito internacional, as Indústrias Criativas são todas

aquelas que, independente de terem ou não finalidade cultural, colocam a criatividade e a

cultura em seu processo de produção e trabalho. São, por exemplo, as indústrias da moda,

da música, do audiovisual, do design, da web, do software, da fotografia, dos diversos

conteúdos culturais, do lazer e do entretenimento, entre outras, que hoje representam

aproximadamente 7% do PIB mundial e que, em 2005, poderão movimentar até U$1,3

trilhão no mundo, segundo dados da ONU. Em 2000, esse valor foi de U$ 831 bilhões.77

Esta preocupação com as indústrias criativas, pode ser encontrada também no

“Livro Verde”, que discute a sociedade de informação e o impacto do conhecimento na

inovação e geração de recursos econômicos. Esta preocupação afeta diretamente governos

do mundo todo. Em nossa pesquisa tivemos acesso a documentos recentes do governo

português que apresentam um estudo sobre as indústrias criativas na União Européia e

subsidiam sua conceituação:

Uma das apostas estratégicas do “XVII Governo Constitucional” para promover o

desenvolvimento sustentado em Portugal é o Plano Tecnológico. O Plano Tecnológico não é mais

um diagnóstico. É um plano de acão para levar à prática um conjunto articulado de políticas que

visam estimular a criação, difusão, absorção e uso do conhecimento, como alavanca para

transformar Portugal numa economia dinâmica e capaz de se afirmar na economia global. (Plano

tecnológico – capítulo 8 –)78

77 Fonte: assessoria de imprensa do ministério da cultura. www.minc.gov.br 78 Endereço eletrônico do Plano tecnológico português: http://www.planotecnologico.pt/index.php?page=2 – (acessado no dia 15/01/2006 as 12:39 h.)

194

Como base para a definição de indústrias criativas temos os conceitos de

criatividade e inovação expressas no Plano Tecnológico: o primeiro é definido como a

capacidade de produção que se manifesta pela originalidade inventiva e inovadora,

capacidade de ver o mesmo que toda gente, mas pensar de modo diferente. E o segundo,

como a capacidade de operar a criatividade no sentido de gerar coisas novas.

Os autores da estratégia portuguesa subsidiam suas elaborações no trabalho de

Richard Florida e Irene Tinagli, que em 2004 publicaram “Europe in the Creative Age”, um

levantamento da indústria criativa européia e sua conceituação. Para os autores, a

competitividade futura dos países dependerá de suas capacidades de atrair, reter e

desenvolver pessoas criativas. Para eles, a competitividade se faz com a mobilização dos

três Ts: Talento, Tecno logia e Tolerância. A Tecnologia seria o elemento central dos 3 Ts,

pois concentra inovação e é indutora de crescimento econômico. O Talento é representado

pelo capital humano educado, o que significa pessoas que possuam no mínimo um diploma

de nível superior. Finalmente, a Tolerância seria um atributo para que o Talento e a

Tecnologia se desenvolvessem e para que se atraísse capital humano oriundo de outras

partes do globo, aumentando o potencial inovador a partir da diversidade.

O conceito de indústrias criativas, segundo o documento português, surgiu no início

dos anos 90 na Austrália, tendo sido posteriormente desenvolvido pela Creative Industries

Taskforce (Departament for Culture, Media and Sport – DCMS) no Reino Unido, em 1997,

no governo de Tony Blair. A definição do Departamento de Cultura inglês para o conceito

seria a seguinte:

Atividades que têm sua origem na criatividade, competências e talento individual,

com potencial para criação de trabalho e riqueza através da geração e exploração da

195

propriedade intelectual. (...) As indústrias criativas têm por base indivíduos com

capacidades criativas e artísticas, em aliança com gestores e profissionais da área

tecnológica, que fazem produtos vendáveis e cujo valor econômico reside nas suas

propriedades culturais (ou intelectuais). (Indústrias Criativas, documento de trabalho

número 8, pg. 6)

Ainda segundo o Departamento de Cultura do Reino Unido, fariam parte desta

indústria os seguintes segmentos:

• Publicidade

• Arquitetura

• Mercado de Artes e Antiguidades

• Design

• Moda

• Filmes, Vídeos e outras produções audiovisuais

• Design Gráfico

• Software Educacional e de Lazer

• Música ao vivo e gravada

• Artes performáticas e entretenimento

• Difusão através de televisão, rádio e Internet

• Escrita e publicação (livros, revistas e jornais impressos)

• Setores de tecnologia de ponta.

196

O que une estes segmentos segundo Stuart Cunningham, diretor do Creative

Industries and Applications Centre (CIRAC) é que todos “têm o potencial de gerar

emprego e riqueza através da exploração da propriedade intelectual”. (Indústrias Criativas,

documento de trabalho número 8, pg. 7)

Quando comparamos o conceito de indústrias criativas com os da indústria cultural

três diferenças importantes se destacam: primeiro, a abrangência do conceito de indústrias

criativas é muito superior ao de indústria cultural, identificada basicamente com a arte e os

produtos artísticos criados para os meios de comunicação de massas. Segundo, o fator

eminentemente econômico, ou seja, a dimensão do produto simbólico como mercadoria e

sua capacidade de gerar novos negócios passa a ser o único critério de validade dos

produtos. Terceiro e, mais importante, os produtos nas indústrias criativas não esgotam seu

potencial de mercadoria em si mesmos, mas, são também novos negócios que criarão novos

produtos e movimentarão novos segmentos da indústria.

Muito embora nos três casos existam precedentes no conceito de indústria cultural,

não estamos apenas diante de uma mudança de grau ou intensidade, as transformações são

mais profundas e estão ligadas as características sistêmicas da unidade pensada pelos

frankfurtianos.

O fato de instituições públicas como ministérios, segmentos da indústria e uma série

de organizações do terceiro setor estarem participando do debate sobre as indústrias

criativas e da retórica empenhada em sua defesa trabalhar com a idéia de preservação das

culturas locais a partir de estratégias que as tornem viáveis economicamente, elas reforçam

o sentido mercadológico do conceito.

197

Em suas reflexões sobre a globalização, o pensador americano Fredric Jameson,

identifica uma nova relação estabelecida entre as dimensões da cultura e da economia que

viria se processando no capitalismo tardio. Para Jameson, a estetização do consumo a partir

da mobilização do design e da erotização transformaram em cultural a questão econômica.

Mas se existe um movimento da economia para a cultura, também existe outro que leva a

cultura para a economia, que tem como principal representante à indústria do

entretenimento pensada na convergência entre meios de produção e comunicação.

As demandas americanas na Organização Mundial do Comércio (OMC),

defendendo a quebra de barreiras dos países membros em relação a seus mercados de

telecomunicação e entretenimento, inclusive com a possibilidade do capital

internacionalizado adquirir indústrias nacionais protegidas, é um exemplo da dimensão da

cultura, colonizada pela dimensão econômica, com desdobramentos no político e no social.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA transformaram em política de estado a

defesa de sua indústria cultural, propagando seus produtos nos mercados internacionais e,

com isso, acelerando o fenômeno da estandardização de maneira exponencial.

A resposta à pergunta que introduziu este tópico: se o conceito indústrias criativas

poderia substituir o de indústria cultural, é não. O conceito indústrias criativas cumpre

apenas metade da tarefa que propusemos para um novo conceito, ele realmente amplia o

escopo para além do universo artístico- literário, incluindo uma série de outros segmentos

de produção simbólica. Porém, no meio do caminho, o conceito de indústrias criativas

envereda por um campo ideológico travestido de neutralidade. Ao considerar como

“natural”, a colonização do cultural pelas demandas econômicas, dando o processo como

acabado e localizando o conflito, basicamente, entre a disputa de mercados nacionais e o

198

mercado global, o conceito assume um caráter fortemente ideológico e coloca-se a serviço

de um discurso que resume a questão da cultura às questões relacionadas à propriedade

intelectual e à capacidade dos arranjos produtivos locais de se integrarem ao fluxo global de

mercadorias culturais.

Pode ser que nos embates que ainda se processarão dentro dos organismos

multilaterais como a ONU, a OMC e a O MPI, que questionamentos ao modelo hegemônico

da indústria americana de bens simbólicos se desenvolvam, entretanto nos parece que até o

momento, ao invés de surgirem questionamentos a este modelo, ele se transformou em

paradigma, como se todos falassem: “não se trata de questionar os porquês da liderança

estadunidense, e sim copiar o seu modelo para abocanhar uma parte deste mercado.”

Ocorre que nesta savana parece haver lugar para apenas um leão, cabendo às hienas,

cautela.

Diante do exposto continuaremos trabalhando com o conceito de indústria cultural,

flexionado pelas críticas anteriormente citadas. Um conceito repensado, que incorpore a

possibilidade de práticas criativas, mesmo no interior da indústria, tanto originadas na

produção de “vanguarda”, qua nto no popular. E que englobe um escopo mais amplo que

apenas o artístico-literário, incorporando os setores propostos no conceito de indústrias

criativas. Em especial a natureza que o conteúdo cultural da indústria cultural, assume

quando relacionado aos novos meios de informação e comunicação (TIC).79

79 Nos capítulos sete e nove discutiremos as possíveis trnasformações das indústrias culturais para indústrias conteúdo nas hipóteses de Bernard Miège.

199

5. Indústria cultural e o fenômeno da globalização.

O conceito globalização é bastante escorregadio e possui um grande número de

acepções. O debate em torno do conceito remonta há mais de uma década, mas podemos

identificar quatro posições:

1. A posição que nega sua existência, pois ainda temos estados-nação fortes.

2. A posição que sustenta que a globalização sempre existiu e que os fluxos de

pessoas e produtos é um dos traços da humanidade.

3. A posição que vincula a globalização ao desenvolvimento de um mercado

global, vocação de origem do capitalismo, sendo o atual momento apenas uma

ampliação deste fenômeno, uma questão de grau.

4. A posição que afirma ser este um novo estágio do capitalismo multinacional, em

geral associado às idéias de pós-modernidade e mundialização da comunicação

e cultura.

Como em todos os bons debates acadêmicos existem fortes elementos corroborando

para cada uma das teses. Após examiná- los, decidimos tomar partido pela quarta posição,

porém achamos necessário aprofundá-la para que fique claro o conceito de globalização por

ela representado.

Notando a ambigüidade da discussão do conceito e suas apropriações ideológicos,

Fredric Jameson, no livro “A Cultura do Dinheiro”, sugere fazer um inventário dos

aspectos apresentados neste colóquio. Assim, apresenta o debate sobre o processo de

200

globalização como atuando e produzindo deslocamnetos em quatro níveis distintos:

tecnológico, político, econômico e social.

O tecnológico seria representado pela convergência entre as novas tecnologias de

comunicação e a emergência da informática. Estes aspectos estariam se espalhando por

todo o mundo, em especial por todos os grandes centros urbanos.

O político se caracterizaria pelo declínio do poder dos estados-nação. Esta questão

poderia ser colocada de outra forma, que seria o fortalecimento do poderio de um estado-

nação em particular, os EUA, que transformaria sua hegemonia em enfraquecimento dos

outros estados-nação.

O cultural seria representado pela aceleração dos fluxos de produtos simbólicos que

circulariam por todo o mundo. E, novamente, os produtos da indústria cultural

estadunidense e suas respectivas fórmulas seriam hegemônicos neste fluxo. Aqui também

cabe ressaltar que os imperativos do design (pensado de forma ampla) permeiam produtos

que não pertencem à indústria cultural, promovendo uma simbiose com o nível econômico.

O econômico marcado pela estetização dos processos de consumo, pelo fluxo

financeiro acelerado e sem barreiras, pela ascensão das empresas transnacionais e suas

influências sobre os governos locais.

O social, caracterizado pelo desenvolvimento de uma cultura (como modo de vida)

de consumo, na qual se imbricam as dimensões precedentes relacionando com a estetização

do consumo e a mediação tecnológica nos processos de consumo e o consumo do

tecnológico.

201

O conceito de indústrias culturais é indissociável da idéia de uma sociedade de

consumo mundial, e da importância para a preservação dos estados-nação, do

desenvolvimento de uma indústria cultural que seja competitiva local e internacionalmente.

Neste sentido, ao mesmo tempo que se encontra integrado em uma ampla esfera de

circulação de mercadorias por todo o globo, neste caso referendando a idéia de

globalização, o próprio conceito acentua um ideário nacionalista e de fortalecimento das

indústrias culturais locais. Exemplo típico desta dupla tensão que envolve o conceito pode

ser encontrada no documento intitulado “Conteúdo Brasil”80, resultado de um seminário

organizado pela Rede Globo e pela PUC-SP, reunindo cerca de 70 personalidades da

cultura brasileira no segundo semestre de 2004. A premissa do encontro foi a defesa da

produção cultural nacional contra a ameaça da globalização. A seguir reproduzo um trecho

do documento que atesta esta premissa:

É nossa convicção que a produção de bens culturais brasileiros é fundamental para

assegurar a soberania e sustentar o desenvolvimento nacional. É um direito e um desejo dos

brasileiros. É importante elemento de inclusão social.

A globalização não está cumprindo a promessa de abertura de mercados, livre

comércio e oportunidade de geração de riqueza para todos os povos. Ela vem sendo feita

pelo viés das economias centrais. O que ocorre é a dominação de mercados pela cultura

dominante.

É preciso evitar a perda de hegemonia econômica nacional na cultura. O domínio

econômico interfere, reorganiza e dirige a produção e circulação de bens culturais, com forte

80 Acessado em 24/01/2006, as 10:13 no endereço eletrônico: http://www.tvpuc.com.br/files/CONTEUDO_BRASIL_WORD.doc

202

impacto sobre o modo de fazer, criar e viver dos brasileiros. (Acessado em 24/01/2006, as 10:20, no

endereço eletrônico: http://www.tvpuc.com.br/files/CONTEUDO_BRASIL_WORD.doc)

Junto da afirmação dos “valores nacionais” e da necessidade de contrapor-se à

hegemonia do capital internacional na indústria local está a afirmação dos potenciais desta

no desenvolvimento econômico, inclusive como base exportadora de conteúdos:

Deve-se, portanto, tratar a indústria cultural brasileira como indústria. É necessário

que se olhe a cultura não apenas sob o prisma ideológico, mas também pela sua dimensão

econômica (divisas, empregos etc.) O capital estrangeiro é bem-vindo, mas devem ser

priorizadas ações que garantam o controle do emprego e da renda para o Brasil. Não basta

haver o domínio simbólico da produção cultural brasileira. O importante é que o Brasil e os

brasileiros tenham o domínio econômico desses bens. É essencial que os lucros e divisas

gerados fiquem no Brasil e realimentem o sistema nacional de produção cultural. Em todo o

mundo desenvolvido, propriedade intelectual é fator de geração de riqueza para o país e

seus criadores.

É preciso definir novos mecanismos de incentivo ao produto nacional e taxação ao

produto importado que impulsionem o desenvolvimento da produção cultural brasileira,

ampliando a participação do produto nacional no mercado interno (formando o hábito de

consumo de produto de qualidade) e no mercado internacional (promovendo o

reconhecimento de seu conteúdo singular e alto padrão técnico). (Acessado em 24/01/2006,

as 10:20, no endereço eletrônico: http://www.tvpuc.com.br/files/CONTEUDO_BRASIL_WORD.doc)

Um dos elementos econômicos de maior relevância neste processo é a assimetria

entre os conglomerados globais de produção cultural, se comparados aos locais, o

documento citado traz os seguintes dados importantes referente ao faturamento anual

203

(2001) de alguns dos mais importantes destes grupos: AOL-Time Warner, US$ 36 bi; Walt

Disney, US$ 25 bi; Viacom, US$ 23 bi; Vivendi, US$ 24 bi; Bertelsmann, US$ 19 bi;

contra os seguintes resultados dos grupos brasileiros: Rede GloboUS$ 1 bi; Grupo Abril,

US$ 494 milhões; Estado de S. Paulo, US$ 210 milhões; Folha, US$ 196 milhões; SBT,

US$ 182 milhões.

Uma questão, entretanto, o seminário parece ter deixado de questionar: trata-se do

próprio modelo de indústria cultural. Ao apenas contrapor a indústria cultural local contra a

estrangeira, esquivando-se de problematizar o modelo de indústria, que me parece ser o

mesmo tanto aqui quanto lá fora, o documento restringe a discussão a um nacionalismo

liberal, a uma disputa entre sindicatos patronais.

6. Mercado editorial brasileiro, indústria cultural e globalização.

No produto interno bruto brasileiro, a indústria cultural representa cerca de 1,8 %,

contra 7% que estes segmentos representam no PIB mundial81. A balança comercial dos

setores que envolvem a indústria cultural é bastante desfavorável ao Brasil, em segmentos

como software, jogos eletrônicos, revistas, cinema, TV por assinatura, licenciamento de

marcas, patentes, o país é deficitário, importando muito mais do que exportando.

Para o mercado editorial de livros o processo é relativamente diferente. É verdade

que poucos são os títulos brasileiros que alcançam o mercado internacional; em

81 Conforme relatórios de cada país presentes no estudo: “Indústrias Criativas”, documento de trabalho número 8, pg. 6.

204

contrapartida 3,9 mil títulos estrangeiros foram editados no Brasil no ano de 2003,

correspondendo a 18 milhões de exemplares, em um total de 35,5 mil títulos editados, com

cerca de 300 milhões de exemplares, o que representa cerca de 13% do total de títulos e

6,5% do total de exemplares produzidos. Os números representam uma presença

percentualmente pequena se comparada aos outros segmentos da indústria cultural. Entre os

livros escritos em português e impressos no Brasil que alcançam outros países, o número de

exemplares exportados é de 5,5 milhões, ou, aproximadamente 1,8% do total de exemplares

produzidos.Uma peculiaridade do mercado editorial o torna menos permeável à presenç a

dos produtos globalizados, que é a língua portuguesa. Realizar a “localização”82 de um

produto é uma tarefa cara e que apresenta riscos. Parece haver um grau de complexidade

maior na tradução de um livro que na dublagem de um filme, a começar pela quantidade de

palavras, chegando ao fato de que, no filme, o texto falado é subsidiário da imagem, fato

que não ocorre com os livros. Uma outra barreira de acesso é cultural, o segmento didático,

o maior de todos, possui uma cultura própria, e um modelo de negócios baseado em

intrincadas relações com o poder público. A importação de títulos nesta área se dá

basicamente no caso dos manuais de idiomas.

Por todos estes fatores a relação mais relevante de entrada do mercado editorial

brasileiro no fenômeno mais recente de globalização, deu-se através do ingresso de capital

estrangeiro nas empresas nacionais.

O livro didático sempre foi o carro-chefe deste mercado, representando cerca de

50% dos títulos vendidos em cada ano. Dentre as editoras de livros didáticos, Ática e

82 Termo usado pela indústria de software e que vem gradativamente se estendendo a outros conteúdos, trata-se da criação de uma versão para consumo local, que pode ir além da simples tradução.

205

Scpione possuíam no ano 2000 a liderança,83 nada mais natural que estas fossem as

primeiras a serem adquiridas. A surpresa no negócio coube à participação da editora Abril

que juntamente com o grupo Francês Vivendi, adquiriu 100% das duas editoras. O grupo

Vivendi adquiriu as editoras brasileiras, através da Anaya, principal editora da Espanha,

adquirida um ano antes pelos franceses. A editora Abril, afastada do segmento didático

desde a década de 70, retornou de forma retumbante, na liderança do mercado.

A Anaya tem como principal concorrente, na Espanha, o Grupo Santillana, um

poderoso conglomerado de mídia, que possui, rádios, TVs, jornais, revistas e editoras de

livros. Em 2.000, um grupo de trabalhos da Santillana esteve em São Paulo levantando

dados sobre as editoras locais e preparando terreno para a compra de uma importante casa

editorial. As opções não eram tantas assim: Saraiva-Atual seria a opção mais óbvia, por se

tratar da terceira editora em tamanho e estrutura de distribuição. A FTD, por pertencer à

Igreja Católica, estaria fora da lista. Liderando um segundo bloco de casas editoriais

didáticas estava a Editora Moderna, a escolhida. Comprada por US$ 80 milhões de dólares,

preço considerado elevado, a empresa com sede na zona leste da capital paulista teve sua

estrutura funcional e linha editorial mantidas.

Uma nova surpresa coube à parceria formada por Vivendi e Abril: no ano de 2002, a

empresa francesa vendeu para a Editora Abril o controle total das editoras didáticas. Na

linha de livros infantis, de consulta e paradidáticos, instalou-se no Brasil uma filial da

francesa Larousse, que possui um corpo editorial próprio, lançando livros específicos para o

mercado brasileiro e atuando intensamente na localização do catálogo global da editora.

83 Os dados apresentados neste tópico foram extraídos da Revista Editor Números dois e 14 dos seguintes artigos escritos por mim: “Amarras Globais” e “O descobrimento das editoras do Brasil”, cuja referência completa encontra -se na bibliografia.

206

No segmento das editoras evangélicas boa parte das empresas brasileiras possuem

parcerias com editoras americanas. O que permitiu a editoras como a Mundo Cristão, a

construção de um catálogo com títulos variados, inclusive de ficção. As editoras

estadunidenses cresceram primeiro em países falantes do espanhol. Isso se explica devido à

forte presença de hispânicos no território americano, o que motivou a produção de títulos

voltado para estas “minorias”.

O segmento de negócios é outro em que a presença estrangeira se consolidou sem

muitos fogos de artifício. Das quatro mais importantes editoras do segmento, três já

pertencem ou possuem parceria com empresas estrangeiras. É o caso da Pioneira, adquirida

pela Thomson Learning, da editora Campus, vendida ao grupo europeu, de origem

holandesa, Elsevier e da Makron Books, adquirida pela americana Person. Neste segmento,

os títulos importados têm importância capital. Em um mundo cuja velocidade da

informação é cada vez mais relevante, estar ligado a uma casa editorial com aporte global,

permite o lançamento simultâneo de títulos. Este fato inibe o surgimento de concorrentes,

pelo menos no que diz respeito aos títulos estrangeiros.

O segmento mais identificado com os modelos da indústria cultural, foi o mais

tardio a viver transformações vinculados à atual etapa do processo de globalização. Trata-se

do segmento de obras gerais. Em seus catálogos, se encontram, com maior ênfase, ficção,

artes, ensaios, auto-ajuda, obras universitárias etc. Neste segmento as emp resas mais

importantes são: Record, Cia das Letras, Rocco, Objetiva e Ediouro. Dois movimentos se

verificam nesta área, o ingresso de empresas estrangeiras concorrentes, o caso da espanhola

Planeta, da francesa Larousse, que faz parte do grupo Vivendi, mas também a compra de

207

editoras locais, como a recente aquisição (meados de 2005) de 75% 84da editora Objetiva

pela espanhola Prisa-Santillana. Aliás, identificar a nacionalidade destes grupos passou a

ser uma tarefa anacrônica. São poderosos grupos transnacio nais, com participação de

investidores de origens diversas, a maioria estranha ao negócio editorial.

Para termos noção do tamanho da assimetria econômica que separa as editoras

nacionais dos conglomerados editoriais internacionais, basta que observemos os números

da tabela abaixo:

Grupo Editorial Faturamento

(US$ Milhões)

Scholastic 1.786

Bertelsmann Group 9.061

Thompson 7.756

Vivendi 5.531

Person 6.639

Amazon 3.042

Mercado Editorial Brasileiro 910

Tabela 20: faturamento principais players editoriais

(Earp & Kornis, 2005: 78)

84 O Estado de São Paulo 14 de junho de 2005. Caderno 2. matéria escrita por Daniel Hessel Teich e Ubiratan Brasil

208

Como se pode notar na tabela, qualquer um destes grupos, e muitos outros aí não

incluídos, faturam anualmente somas muito maiores que a do mercado editorial brasileiro

como um todo. Fato que torna recorrente a preocupação expressa pelo documento

“Conteúdo Brasil”, de que as empresas brasileiras geradoras de conteúdos passem a

pertencer a estes conglomerados internacionais. Como não existem marcos regulatórios no

setor editorial, impedindo ou limitando a entrada de capital estrangeiro, as eventuais

barreiras à presença destes grupos, no Brasil, estariam ligadas basicamente ao desinteresse

destes por nosso mercado e aquelas impostas pela língua e pelas sutilezas das relações de

poder entre o mercado didático e o governo.

Os modelos de negócios adotados pelos entrantes85 têm sido majoritariamente a

compra de editoras brasileiras, preservando seus catálogos e buscando sinergia destes com

os catálogos de suas subsidiárias espalhadas pelo globo. De tal maneira que a preocupação

“cultural” representada pelo seminário “Conteúdo Brasil” está contemplada neste modelo.

Aqueles livros criados por autores nacionais, editados por outrora editoras nacionais,

ganham o mercado internacional, ampliando seu escopo de atuação. As entrantes compram

o modelo de negócio, mas também os conteúdos e não fazem cerimônias em globalizar

àqueles que considerem adequados ao modelo da indústria mundial. Este fato reforça em

três aspectos nossa crítica:

a) A questão fundamental não é a origem geográfica ou étnica do capital e dos

controladores e, sim, a hegemonia do modelo da indústria cultural

estadunidense, em todos os mercados, inclusive o mercado editorial brasileiro.

85 Novas empresas que penetram em um segmento de mercado em que não atuava. É um conceito comum da teoria da administração e do marketring. Ver Porter na bibliografia.

209

b) O capital estrangeiro não está interessado em desestabilizar o mercado local,

colo nizando-o com uma inflação de conteúdos estrangeiros, mas sim, integrar a

indústria local, seu mercado e conteúdos ao mercado globalizado de bens

simbólicos. (Isto significa trazer conteúdos de fora, mas também enviar

conteúdos daqui para o mercado global)

c) Os dois aspectos anteriores reforçam o caráter sistêmico da indústria cultural e

sua atuação coordenada e coordenante.

7. A identidade de autor e a indústria cultural.

Como apontamos em nossa abordagem do processo cultural, a modernidade é

marcada por uma forte interpenetração entre as dimensões cultural, econômica e social. A

cultura pensada como modo de vida e a cultura pensada como criação e recepção de bens

simbólicos encontra-se cada vez mais imbricada. Este movimento gerou um afastamento

progressivo dos produtores culturais eruditos e de vanguarda do restante da sociedade de

consumo e produção de bens simbólicos.

Porém, aquilo que aparentemente parece uma cisão, encontra-se fortemente

integrado à estrutura mais geral do mercado de bens simbólicos representado pela indústria

cultural. Aquilo que num momento é considerado estranho, de vanguarda, pode e deve ser,

num segundo momento, domesticado e colocado em circulação para os segmentos

cultivados da indústria cultural.

210

A relativa independência que os meios eruditos, muitas vezes refugiados na

universidade, e a vanguarda artístico- literária mantém em relação ao mercado, é

constantemente usurpada pelo mercado que os integra à sua cadeia de legitimação. Esse

fenômeno se dá a partir dos meios de comunicação de massas. Em jornais, revistas de

variedades, programas de rádio e TV e mais recentemente em portais verticais da Internet,

esses produtores culturais são integrados gradativamente à indústria cultural.

A lógica sistêmica da legitimação funciona em duas etapas distintas e

aparentemente independentes. Em primeiro lugar o produtor de bens simbólicos

(intelectual, artista, etc) deverá obter a sanção de seus pares, produzindo para o grupo de

produtores e submetendo-se as regras mais ou menos rígidas de seu campo de atuação.

Todas as relações que os agentes de produção, de reprodução e de difusão, podem

estabelecer entre eles ou com as instituições específicas (bem como a relação que mantém

com sua própria obra), são mediadas pela estrutura do sistema das relações entre as

instâncias com pretensões a exercer uma autoridade propriamente cultural (ainda que em

nome de princípios de legitimação diferentes). Destarte, esta estrutura das relações de força

simbólica exprimem-se em um dado momento do tempo, por intermédio de uma

determinada hierarquia das áreas, das obras e das competências legítimas. (Bourdieu, 1987:

118)

Segundo Bourdieu, esta estrutura de legitimação possui três tipos de relações

objetivas a serem travadas pelos produtores culturais: Uma estabelecida entre os produtores

atuais de bens simbólicos e seus antecessores de épocas pretéritas. Relações entre os

produtores e as diferentes instâncias legitimadoras, oficiais e marginais (escola, academias,

grupos literários, círculos científicos, grupos, grupelhos, etc). E relações entre diferentes

instâncias legitimadoras, hierarquizadas por sua posição no campo (dominada ou

211

dominante) e a influência por estas exercidas sobre o público de produtores e o público em

geral.

Como assinalamos anteriormente, o produtor de bens simbólicos deverá primeiro

obter a sanção dos pares e, a partir desta consagração, estará apto a ser cooptado pelas

instâncias do mercado da indústria cultural, participando de suas instituições de

visibilidade. É importante ressaltar que este movimento pode também ser feito no sentido

inverso. Uma personalidade midiática poderá submeter-se às sanções dos grupos de

produtores a fim de tornar legitimada sua participação continuada no seio da indústria

cultural. É o caso de um jo rnalista que retorna à academia a fim de obter seu mestrado ou

doutorado e, com isso, realizar um diálogo em pé de igualdade com os intelectuais que

entrevista.

E, o que vale para os produtores individuais, também vale para as editoras e

livrarias. Elas participam de uma cadeia legitimadora e necessitam da visibilidade midiática

para se integrarem à indústria. É bem verdade que muitas passarão ao largo deste

fenômeno, atuando diretamente sobre o grande público, principalmente as editoras

religiosas e as que atuam no formato porta a porta. Mas para os segmentos de obras gerais,

para a literatura de ficção, para a divulgação científica e os segmentos de auto-ajuda esta

será a regra de ouro.

Neste modelo, algumas editoras se encontrarão perfeitamente integradas ao

processo de legitimação, representadas, principalmente, mas não apenas, pelos veículos de

comunicação e pelas diversas “academias”. Para aquelas que se encontram isoladas, quer

por sua juventude, quer por ter sido preterida no processo de legitimação, resta a labuta

constante e a busca de produtores que sejam, ao menos, aceitos pelo grupo de produtores,

212

pois possuir em seus catálogos autores reconhecidos pelos seus pares é a condição primeira

para obter espaço na cadeia legitimadora.

A sanção concedida pelo grande público, escapa de certa forma a este modelo, mas

é praticamente impossível para uma editora sobreviver e alcançar o grande público sem

construir um fundo de catálogo. A publicação de um bestseller é, até provém o contrário

um fenômeno esotérico. Frank Luther Mott86, em seu texto sobre a fórmula do bestseller,

afirma que, embora sociólogos, editores e autores tenham estudado exaustivamente o tema,

buscando isolar as categorias que compõem este tipo de sucesso editorial, ninguém havia

conseguido criar a receita de bolo. Conhecem-se as condições sem as quais dificilmente um

livro encontraria a aprovação do grande público, mas entre os milhares de livros produzidos

com este fim, apenas algumas dezenas logram êxito. De tal forma que não existe a editora

dos bestsellers, fato que torna imprescindível a obtenção da legitimação, que proporcionará

a constante circulação do catálogo.

Um deslocamento contemporâneo da identidade do sujeito iluminista (uno e

centrado) exerce suas conseqüências também na produção de livros. A posição de

independência e de veneração criativa alcançada pelos autores do romance burguês, e a

notoriedade obtida concederam ao autor uma certa aura. E, como pensou Benjamin, toda

aura pressupõe um certo distanciamento. De modo que a modernidade concebeu uma figura

de autor portadora de uma ambigüidade profunda, ao mesmo tempo em que se aproxima do

leitor na intimidade psicológica do romance, dele se afasta na criação de sua identidade

una, criativa e irredutível. Muitos autores perceberam esta ambigüidade e trilharam o

caminho do isolamento propiciado pelas vanguardas; para manter a aura, confundida com a

86 No texto: “Existe uma fórmula para o bestselle”r. (Rosenberg e White, 1973: 143)

213

própria identidade, era necessário isolar-se do público que a solapava. Mas aquilo que pode

ser uma saída em uma época hegemonizada pelo sujeito iluminista, perde completamente

sua força na pós-modernidade (ou na modernidade tardia), pois a própria identidade do

sujeito encontra-se partida, descentrada e solapada de sua autonomia:

Capturado, como um fantasma inquieto, no bojo da evolução tardia do capitalismo,

o humanismo liberal é incapaz tanto de morrer quanto de voltar à vida. O sujeito centrado e

autônomo não é uma fantasia metafísica abandonada, dispersa por um pequeno toque de

desconstrução, mas uma necessidade ideológica constante vencida na corrida e descentrada

pelas operações do próprio sistema. Este legado da velha era liberal da sociedade burguesa

ainda está muito vivo como categoria ética, jurídica e política, mas embaraçosamente fora

de ritmo em relação às versões alternativas de subjetividade que emergem diretamente das

formas do capitalismo tardio. (Eagleton, 1993: 272)

Nossa jornada nestes dois capítulos entre a construção da identidade de autor e a

formação de uma esfera cultural hegemonizada pela indústria, buscou estabelecer um

vínculo entre o livro como produto, a identidade do autor e as diversas forças econômicas e

políticas que atuaram neste processo. Acreditamos ser possível afirmar que o livro como o

conhecemos possui uma relação de homologia com a identidade do sujeito iluminista, pois

foi constituído como tal no mesmo período. A própria noção de autoria como conhecemos é

devedora do conceito de sujeito, forjado pela modernidade. A hipótese que levantamos

deste percurso é que este conceito de livro e autoria, como uma coisa una e indivisível, uma

expressão da criatividade e da originalidade, encontra-se em crise.

Os métodos de reprodução técnica, que permitem cada vez mais o fracionamento, a

secção e a montagem, atuam fortemente sobre o livro e sobre a forma com que as pessoas

buscam o conhecimento. A inflação de informação e conhecimento possibilitados pela

214

reprodutibilidade técnica atingiu um patamar insuportável para as formas tradicionais de

disseminação e recepção de idéias. Nos encontramos à beira de uma entropia, que pode

significar a recusa ao consumo do conhecimento fixado na forma de livro, como indicam as

estatísticas do mercado editorial brasileiro, em especial no segmento científico, técnico e

universitário ou a adesão pura e simples de uma consciência indicial como sugere Teixeira

Coelho. Como diria Jean Baudrillard, “quanto mais informação, menos sentido. A

multiplicação de livros no formato de coletâneas, de textos públicos ao longo do tempo por

um mesmo autor, ou de textos de vários autores sugere que o próprio mercado editorial vem

buscando maneiras de adequar o formato livro às novas tendências. Entretanto, como a

citação de Eagleton sugere, esta forma unitária e autônoma de sujeito parece resistir nos

cenários jurídicos e políticos, e deve ainda irrigar a identidade autoral e o livro.

O que sugerimos como hipótese é que o livro como o conhecemos na modernidade

e o conceito de autor devem ser repensados à luz das mudanças que se processam na

identidade do sujeito e nas formas como a sociedade vem produzindo e recepcionando o

conhecimento.

Para tanto é necessário que identifiquemos as mudanças mais recentes no conceito

de sociedade que sugerem a passagem de uma sociedade industrial, para uma sociedade

pós-industrial, ou como acreditam muitos teóricos, uma sociedade de informação.

215

V – Sociedade da informação e desmaterialização de conteúdos.

1. A emergência da sociedade da informação.

A idéia da informação, como o elemento mais importante das esferas econômica e

cultural, surgiu no meio acadêmico, na década de 50, a partir dos estudos de comunicação e

da estrutura dos sistemas realizados por Norbet Wiener, agrupados sob o conceito de

cibernética. Para o autor, a informação representava a “contra-ofensiva” da vida ao impulso

entróp ico que engendra o universo e, que em seu limite, levaria este a se esgotar. É o

princípio estruturador, em torno do qual a vida se realiza. A informação organizaria tanto a

vida interior quanto a exterior do homem, permitindo a integração deste ao meio ambiente

e com seus pares, de modo que a base de toda a vida social dá-se através do intercâmbio

comunicacional, da troca de mensagens.

A época em que Wiener construía sua teoria foi marcada por uma série de avanços

no campo tecnológico, em especial, com o surgimento do computador e a aplicação

comercial da tecnologia dos circuitos elétricos miniaturizados, desenvolvidos pelos

estadunidenses durante a Segunda Grande Guerra. Os modelos de comunicação sistêmica

de Wiener, compostos por emissor, receptor, resposta, ruído e mensagem, influenciaram

não apenas as ciências ligadas aos processos comunicacionais, mas também a economia e

as ciências sociais, e concederam à informação um papel central nas discussões econômicas

e sociais.

216

A idéia de uma sociedade da informação foi primeiramente proposta de forma

estruturada por Daniel Bell87, no final dos anos setenta do século XX. Por cerca de uma

década este pesquisador americano vinha identificando mudanças na estrutura da sociedade

industrial, o que o fez postular o estabelecimento de uma sociedade pós-industrial, cujas

principais características seriam a superação pelos trabalhadores do setor de serviços, dos

trabalhadores do setor industrial e a substituição da energia pela informação como principal

força impulsionadora da economia.

A década de setenta do século XX representou um imenso avanço nas

telecomunicações e na informática, as tecnologias, antes restritas aos meios militares,

passaram a compor parte importante do universo empresarial, permitindo a ascensão de

empresas como Xerox, Olivetti, IBM, AT & T entre outras, e confirmando as hipóteses de

que a informação convertera-se no fator mais dinâmico da economia. Estes fatos levaram

Bell a afirmar em seu livro do início dos anos oitenta que:

Minha premissa básica é que conhecimento e informação estão se tornando os

recursos estratégicos e os agentes transformadores da sociedade pós-industrial... da mesma

maneira que a combinação de energias, recursos e tecnologia mecânica foram os

instrumentos transformadores da sociedade industrial. (Bell, 1980a: 531, 545, apud Kumar,

1997: 21)

Enquanto a primeira revolução industrial do século XVIII havia ocorrido a partir do

domínio da tecnologia a vapor, e a segunda revolução industrial do século XIX ocorrera a

partir do domínio da energia elétrica, a revolução atual ocorria a partir da informação no

centro do fenômeno produtivo. Esta idéia, cara a Bell, será mantida por seus seguidores e

87 Daniel Bell de nacionalidade estadunidense, é cientista social, e formulador das idéias de uma economia pós-industrial marcada pela informação.

217

admitida por muitos dos críticos do conceito. Bell não é ingênuo a ponto de esquivar-se das

perspectivas históricas e, por isso, não defende que a informação passou a ser importante

apenas no momento sobre o qual teoriza; admite o papel crucial desta nas revoluções

industriais, porém acredita que a informação assume um novo patamar a partir do momento

em que ocorre a convergência entre o computador (um processador de informações) e as

telecomunicações. Nesta perspectiva, a década de setenta do século XX foi pródiga em

fornecer munição empírica a esta teoria. Uma linha do tempo composta pelos principais

acontecimentos deste período e que corroboram as idéias de Bell contaria com os seguintes

eventos88:

• 1969, criação pela ARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do

Departamento de Defesa Norte-Americano), da rede eletrônica que no futuro se

transformaria na Internet.

• 1971 é inventado por Ted Hoff, engenheiro da INTEL, o microprocessador, que

corresponde a um computador em um chip. Desde então a capacidade de memória,

velocidade de processamento e capacidade de integração dos têm crescido de forma

geométrica.

• Alan Kay, pesquisador do Xerox Parc, com base nas idéias de Doug Engelbert, cria

a primeira interface gráfica para computadores (a metáfora do desktop89),

88 A escolha destes eventos não foi arbitrária, ele obedece a um elenco que aparece na maioria dos livros que discutem a história da informática e constam dos livros de Steven Johnson e Manuel Castells. 89 Kay transportou para os softwares de computador a sensação que se tem quando se está trabalhando em uma escrivaninha, na qual inúmeros papéis se sobrepõem. Quando queremos achar alguma coisa, procuramos entre estes diversos papéis e objetos. As janelas inventadas por Kay, se apresentavam simultaneamente e sobrepostas para o usuário, permitindo que este as manipulasse assim como fazia com os documentos físicos em sua mesa de trabalho.

218

domesticando o computador e sugerindo como uma de suas principais

características a comunicação.

• 1973, invenção por Cerf e Kahn do TCP/IP, protocolo que permitiu a interconexão

em rede de computadores.

• 1975, Ed Roberts, engenheiro do Novo México, cria o protótipo do primeiro

computador pessoal, chamado de Altair.

• 1976, criação da Appple Computers por Steve Wosniak e Steve Jobs. Estes dois

jovens hackers criariam o primeiro computador pessoal de sucesso comercial, o

Apple II, introduzido no mercado no ano seguinte ao da criação da empresa.

• 1977, ano em que a Microsoft iniciou a produção de sistemas operacionais.

• Durante a década de 70, a fibra óptica foi produzida em escala industrial pela

empresa estadunidense Corning Glass.

• 1981, lançamento pela IBM, do PC, o computador pessoal que popularizou o uso

de computadores em ambientes domésticos.

Bell, apesar das evidências e, diferentemente de seus seguidores, era cauteloso

quanto à abrangência do conceito que vinha forjando há mais de uma década. Suas

conclusões sobre a sociedade de informação emergente estavam restritas aos aspectos

econômicos. Para ele, a economia, o estado e a cultura são reinos diferenciados que:

“reagem a normas diferentes, apresentam ritmos diferentes de mudanças e são regulados

por princípios diferentes, até mesmo contrários e axiais ”.(Bell 1976: 10 apud Kumar, 1997:

25)

219

Esta posição cria certos embaraços quando comparamos a revolução da informação

à sua antecessora, a revolução industrial. A última havia atuado de forma intensa sobre o

Estado e a cultura, moldando um novo modo de vida nas sociedades em que se desenvolveu

com plenitude. Como então negar os mesmos poderes a atual revolução?

2. Caracterização da sociedade da informação.

Não dando muita atenção aos pudores de Bell, Alvim Tofler90 e John Naisbit91 irão

estender a revolução da informação às esferas políticas, social e cultural. O mesmo ocorre

com Massuda92, e a maioria dos defensores do conceito de uma emergente sociedade de

informação. Segundo Tofler, a humanidade viveu duas grandes ondas transformadoras, a

primeira 10 mil anos atrás com o desenvolvimento da agricultura que permitiu ao homem

fixar-se e iniciar o desenvolvimento da civilização material. A escrita desenvolvida pelos

sumérios será uma das grandes conquistas tecnológicas desta civilização agrícola. A

segunda onda ocorreu nos séculos XVIII e XIX com as revoluções industriais, que

permitiram ao homem o domínio técnico da natureza e a reprodutibilidade necessária ao

desenvolvimento da civilização. Para o autor, estaríamos diante da terceira onda, uma

poderosa transformação na civilização:

A Terceira Onda traz consigo um novo modo de vida genuinamente novo, baseado

em fontes de energia diversificadas e renováveis; em métodos de produção que tornam

obsoletas as linhas de montagem das fábricas; em novas famílias não-nucleares; numa nova 90 Alvim Tofler é escritor especializado em análises de tendências futuras da sociedade. É autor de alguns bestsellers como: “Choque do futuro” e “A terceira onda”. 91 Economista estadunidense. 92 Autor japonês de livros dedicados ao futuro da sociedade capitalista global.

220

instituição que poderia ser chamada a “cabana eletrônica”; e em escolas e companhias do

futuro, radicalmente modificadas. A civilização nascente escreve um novo código de

comportamento para nós e leva-nos além da padronização, da sincronização e da

centralização, além da concentração de energia, dinheiro e poder.(...) Esta civilização nova,

desafiando a velha, deitará por terra as burocracias, reduzirá o papel do estado-nação e irá

gerar economias semi-autônomas num mundo pós-imperialista. (Tofler, 1980:24)

O otimismo de Tofler que animou a euforia de muitos nas décadas de oitenta e

noventa, não resiste a um confronto com os fatos relacionados ao fim dos imperialismos e

as mudanças radicais no modo de vida global, afinal de contas, os anos que nos separam da

queda do muro de Berlim foram marcados por duas guerras imperialistas, a “Guerra do

Golfo” e a “Guerra do Iraque”. Entretanto, o que nos interessa não são os rompantes

futuristas, mas as premissas totalizantes do conceito de “sociedade de informação”, do qual

o autor de “Choque do Futuro” é um dos ferrenhos defensores. Os best-sellers de Tofler

foram publicados antes de Bell chegar a uma formulação definitiva do conceito, porém, as

premissas essenciais de sua construção encontram-se nos livros de Tofler, que funciona

como um divulgador científico, um tradutor para os segmentos cultivados das idéias

acadêmicas de Bell. No centro de sua exposição Tofler assinala as principais características

“ocultas” da civilização industrial e sugere que, com o advento da terceira onda, insinua-se

uma perspectiva de superação destas, seriam elas:

a) Padronização: os artefatos produzidos pela era industrial são padronizados e obtém

resultados econômicos consideráveis a partir do ganho de escala que a padronização

desempenha.

221

b) Especialização: as funções ocupadas pelos indivíduos da civilização industrial

pressupõe uma extrema especialização, devido à divisão do processo produtivo.

c) Sincronização: processo representado pela sincronia assumida pelos indivíduos da

civilização industrial entre o tempo vivido e o tempo das máquinas. Enquanto na

sociedade agrícola a relação dos homens com o trabalho harmonizava-se com o

tempo da natureza, por exemplo, dia e noite, chuva e períodos de safra e entressafra,

o tempo na sociedade industrial será marcado pela dinâmica das máquinas.

d) Concentração: na sociedade industrial a população concentrou-se em cidades, o

trabalho nas fábricas e regiões industriais, loucos, doentes e bandidos foram

concentrados como nunca antes em instituições de reclusão, e os jovens colocados

em escolas, assim como os trabalhadores nas fábricas. Outro importante aspecto

desta concentração estava presente nos importantes segmentos da indústria, nos

quais 80% da produção concentravam-se em meia-dúzia de grandes empresas.

e) Maximização: nada mais é que a penetração do princípio da economia de escala em

outras esferas da vida social, fazendo com que a busca pelo maior, pelo máximo

torne-se uma obsessão: a maior ponte, o maior prédio, a maior cidade, a maior

empresa, o maior número de funcionários, etc.

f) Centralização: elemento-chave de controle e imprescindível para o sucesso

operacional de empresas e estados e partidos. Esta concepção estará presente na

política de esquerda na forma do centralismo democrático, nas poderosas

burocracias estatais e, principalmente, nas empresas com a administração científica

e mesmo antes desta prosperar.

222

Para Naisbitt, a informação seria a grande niveladora das relações sociais e a

transformadora da sociedade industrial em uma nova sociedade mundial:

Estamos começando a rejeitar as hierarquias, que funcionaram bem na era

industrial, centralizada. Em seu lugar, estamos colocando o modelo de rede de organização

e comunicação, que tem raízes na formação espontânea, igualitária e natural de grupos de

pessoas de mentes semelhantes. As redes reestruturam o poder e o fluxo de comunicação

dentro da empresa, de vertical para horizontal(...) O computador destruirá a pirâmide:

criamos o sistema administrativo piramidal e hierárquico, porque precisávamos do mesmo

para fiscalizar as pessoas e o que elas faziam; com o computador para encarregar-se destas

tarefas, poderemos reestruturar horizontalmente nossas instituições. (Naisbitt 1984: 281-2)

Assim como em Tofler, Naisbitt observa a importância do computador no papel de

flexibilizador das relações de trabalho. O foco de suas análises encontra-se no mundo

empresarial estruturado a partir de um modelo burocrático representado pelos

organogramas verticais. Suas conclusões acerca da possível horizontalização das relações

nas instituições não pressupõem a perda de poder por parte daqueles que ocupam os postos

mais elevados, e, sim, um novo tipo de controle que prescindiria de alguns postos

intermediários para o exercício do controle; em outras palavras a emergência do controle

digital.

Uma obra que alcançou imenso prestígio em anos recentes foi a “Sociedade em

Rede”, de Manuel Castells, o primeiro de uma trilogia dedicada a entender os aspectos

econômicos, políticos e culturais que mobilizavam o mundo na virada do século XX para o

XXI. O subtítulo da obra, é “A era da informação: Economia Sociedade e Cultura”, marca

sua evidente adesão à idéia de uma sociedade pós- industrial na qual a informação ocupa um

lugar destacado.

223

Diferentemente de Tofler, N iasbit e Massuda, cujos projetos parecem desconsiderar

de forma proposital as contradições e conflitos históricos que mudanças como as postuladas

costumam engendrar, Castells manuseia de forma cuidadosa as questões históricas

envolvidas. Não descarta a priori as questões inerentes à era industrial, mas vai buscar nela

os elementos que convergirão para a emergência de um novo paradigma social e

econômico, marcado pelo tecnológico. Ao avaliar as duas revoluções industriais ocorridas

respectivamente nos séculos XVIII e XIX, o autor ressalta a importância das fontes de

energia e dos mecanismos criados para se beneficiar do salto energético: a máquina a

vapor, a turbina hidráulica e, mais tarde, o motor de combustão. O domínio de energias

fósseis e posteriormente da energia elétrica serão os impulsionadores de um novo modo de

produção e deflagrarão profundas transformações em todas as esferas da vida:

Portanto, atuando no processo central de todos os processos – ou seja, a energia

necessária para produzir, distribuir e comunicar – as duas Revoluções Industriais

difundiram-se por todo o sistema econômico e permearam todo o tecido social. Fontes

móveis de energia barata e acessível expandiram e aumentaram a força do corpo humano,

criando a base material para a continuação histórica de um movimento semelhante rumo à

expansão da mente humana. (Castells, 2003:75)

Apesar de debruçar-se com maior cuidado sobre as fontes históricas, Castells, assim

como os demais teóricos da sociedade de informação, sucumbe a um certo determinismo

tecnológico e a um ufanismo quanto aos avanços proporcionados, primeiro pelas

revoluções industriais e, finalmente, pela revolução da informação. Diferentemente de

muitos dos adeptos da sociedade de informação, Castells não está defendendo o fim da

histór ia, ou a redenção final da humanidade; suas conclusões, a imensa maioria baseada em

224

um estudo rigoroso de diversas fontes de informação, ressaltam o caráter de transformação

pela qual a sociedade industrial vem passando nas últimas três décadas.

Para Castells, um dos aspectos centrais da revolução da tecnologia da informação é

que esta se baseia na constante inovação, entendida como a capacidade de, a partir de um

conjunto de informações, gerar uma novidade tecnológica, que se somará a outras

novidades que conjuntamente serão a informação de novas tecnologias e assim

sucessivamente, em um ciclo virtuoso. Novamente o senso histórico de Castells mostra ser

mais aguçado que o dos outros teóricos da Sociedade de Informação : para ele, o fato que

caracteriza a atual revolução como sendo uma revolução da informação não é pura e

simplesmente o papel central da informação na geração de riquezas, algo que pode ser

notado em qualquer revolução tecnológica humana, mas, sim, o novo status assumido pela

manipulação da informação na redução dos ciclos de inovação:

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de

conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e informação para a

geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento-comunicação da

informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso.(Castells

2003, 69)

Basicamente passamos de um estágio de aprender usando, para o de aprender

fazendo, o que modifica substancialmente o papel da informação e do conhecimento. Outro

aspecto importante é o volume de mecanismos tecnológicos que inundam os mercados,

cada vez em ciclos de tempo menores. Como muitos destes produtos se tornam

225

disponíveis93 sem que seus inventores tenham tido tempo de imaginar suas reais

potencialidades e formas de uso, desta maneira são os próprios usuários que acabam por

desenvolver os produtos para além de suas funcionalidades originais e, ao procederem desta

forma, realimentam a indústria da inovação e os novos ciclos de inovação:

Uma questão cara à reflexão de Castells é a inovação e a forma como esta se produz

e reproduz. Sua pesquisa envolveu uma extensa peregrinação pelo globo, buscando

identificar os lugares nos quais a revolução tecnológica ocorria, visando encontrar um

padrão passível de reprodução em um modelo científico. Uma característica importante

identificada pelo autor foi a concentração geográfica de uma infra-estrutura composta por

centros de pesquisa, instituições de ensino superior, empresas de tecnologia avançada, uma

rede de fornecedores, e um grupo de empresários com capital de risco para investir. Estas

condições puderam ser verificadas no Vale do Silício, na Califórnia, na Sarjeta Multimídia,

em São Francisco; no Japão; na Tailândia; em Seul; Munique e em uma dezena de outras

regiões nas quais se desenvolviam arranjos produtivos inovadores. E as áreas

metropolitanas mais antigas do mundo industrializado correspondiam às regiões nas quais

esta revolução podia ser identificada.

Mas afinal de contas de que exatamente se trata esta revolução da informação

identificada por Castells? Para ajudá- lo nesta empreitada o autor recorreu a um conceito de

paradigma tecnológico, desenvolvido por Carlota Perez Cristopher Freeman e Giovanni

Dosi, adaptando a clássica análise das revoluções científicas de Kuhn. Este paradigma seria

composto por cinco aspectos:

93 Isso não significa que vivemos uma democracia tecnológica, apenas que muitas destas tecnologias estão disponíveis para grandes parcelas da população, inclusive aquelas de menor renda, um exemplo são os aparelhos celulares que, no Brasil, segundo dados da ANATEL, tinha no ano de 2005 mais de 70 milhões de usuários.

226

1 – Informação é sua matéria-prima, ou seja, as tecnologias surgem para agir sobre a

informação e não simplesmente a informação agindo sobre a tecnologia como nas

revoluções anteriores.

2 – Penetrabilidade da informação: o novo meio tecnológico age sobre a informação que

está presente em todas as dimensões da vida individual e coletiva. Desta forma, a

tecnologia passa através da informação a influenciar integralmente a vida social.

3 – Lógica de rede: ao usarmos estas novas tecnologias da informação ingressamos em

redes com diferentes graus de complexidade. Este tipo de configuração topológica tornou-

se possível graças às inovações técnicas e parece influenciar os modelos de gestão

empresarial às formas como as pessoas se relacionam emocionalmente.

4 – Flexibilidade: este aspecto se refere diretamente à lógica de rede que possui uma

arquitetura mais flexível que a dos modelos de organização tradicionais, assim, neste novo

modelo, os processos e as formas de organização são reversíveis e flexíveis. O centro pode

estar em qualquer lugar.

5 – Convergência de tecnologias específicas: as atuais tendências da TI indicam para uma

convergência das diversas tecnologias integrando-se em artefatos únicos, como celulares,

computadores de mão e TVs digitais e futuramente em um único mecanismo miniaturizado

extensivo a todas as dimensões da vida cotidiana.

A este novo paradigma tecnológico correspondem mudanças nas esferas econômica,

política, social e cultural, e é por causa destas mudanças que Castells confere aos avanços

tecnológicos o status de revolução. O principal insumo produtivo desta nova modalidade de

capitalismo é a informação:

227

A emergência de um novo paradigma tecnológico organizado em torno de novas

tecnologias da informação , mais flexíveis e poderosas, possibilita que a própria informação

se torne o produto do processo produtivo. Sendo mais preciso: os produtos das novas

indústrias da tecnologia da informação são dispositivos de processamento de informações

ou o próprio processamento de informações. (Castells, 2003: 119-120)

Uma questão que incomoda a pesquisa de Castells é o pequeno aumento da

produtividade observado nas décadas de 70 e 80 do século XX, se comparados aos

aumentos obtidos em outras revoluções tecnológicas industriais. Por exemplo, o ciclo que

vai de 1870 a 1950 apresenta taxas médias de crescimento anual da produtividade pouco

abaixo de 2%; no período que vai de 1950 a 1973 esta taxa de crescimento aumenta

substancialmente e ultrapassa invariavelmente os 2% contra índices mais baixos, sempre

inferiores a 2%, no ciclo que vai de 1973 a 1993. Este fator poderia por si só colocar em

xeque a diferenciação entre o período mais recente do “capitalismo informacional” e suas

outras fases, entretanto, Castells encontra indícios de que esta conclusão seria equivocada:

Primeiro, os historiadores econômicos afirmam que uma considerável defasagem de

tempo entre a inovação tecnológica e a produtividade econômica é característica das

revoluções tecnológicas passadas. Por exemplo, Paul David, analisando a difusão do motor

elétrico, mostrou que, embora tivesse sido introduzido entre 1880-90, seu impacto real na

produtividade teve que esperar até a década de 1920 do deste século. (Castells, 2003: 127)

Se historicamente temos motivos parar crer numa defasagem entre a inovação e sua

propagação nas cadeias produtivas, podemos observar em segmentos de vanguarda uma

resposta imediata aos fenômenos tecnológicos. Um estudo94 realizado com as seiscentas

grandes empresas estadunidenses em 1997 enfocando a relação entre investimento em TI e

94 Estudo realizado por Brynjolfsson e citado por Castells, 2003: 132.

228

produtividade, revelou que as empresas que apresentavam maior aumento de produtividade

realizavam uma transformação em seus modos operantes, focando suas estratégias nos

clientes e descentralizando suas estruturas organizacionais. Esta nova forma de atuar só era

possível graças à nova infra-estrutura tecnológica.

A ênfase na questão da produtividade se deve à importância que este fator recebe

dentro da tradição das teorias econômicas: de Ricardo a Marx os caminhos do aumento da

produtividade parecem definir a estrutura de um sistema econômico. Mas, por trás da

questão da produtividade está a da lucratividade, que dentro do capitalismo definirá

vencedores e perdedores. Daí que a produtividade converte-se em um meio dentro do

cenário competitivo estabelecido entre empresas e nações, a fim de atingirem maior

lucratividade no cenário da economia global. A revolução da TI encontra-se, segundo

Castells, no centro da disputa contemporânea travada no seio de um capitalismo

informacional.

As mudanças que decorrem da passagem de um capitalismo industrial para um

capitalismo do tipo informacional são diferentes das que se processaram nas mudanças de

uma economia agrária para uma economia industrial ou mesmo àquelas sentidas a partir da

década de 1950 do século passado, quando da emergência do setor de serviços. Sua

natureza é mais endógena que exógena, não se trata pura e simplesmente de um sistema

novo que passa a competir com um sistema antigo até superá- lo em um choque de sistemas

fechados. O capitalismo informacional surge no seio do capitalismo industrial e do setor de

serviços:

Há agropecuária informacional, indústria informacional e atividades de serviços

informacionais que produzem e distribuem com base na informação e em conhecimentos

229

incorporados no processo de trabalho pelo poder cada vez maior das tecnologias da

informação. O que mudou não foi o tipo de atividades em que a humanidade está

envolvida, mas sua capacidade tecnológica de utilizar, como força produtiva direta,

aquilo que caracteriza nossa espécie como singularidade biológica: nossa capacidade

superior de processar símbolos.95 (Castells, 2003: 142)

A natureza endógena do capitalismo informacional se desvela na forma como este

penetra em todas as esferas da economia e, como em seguida se propaga para as diversas

dimensões da vida social, política e cultural. E neste ponto encontramos uma diferença

fundamental entre o pensamento de Daniel Bell e as concepções de Castells. Para o

primeiro, as mudanças relacionadas à sociedade da informação encontravam-se restritas ao

campo da economia, para Castells, assim como para muitos outros teóricos, ela se estende

para as diversas dimensões da vida humana:

O registro histórico das revoluções tecnológicas (...) mostra que todas são

caracterizadas por sua penetrabilidade, ou seja, por sua penetração em todos os domínios da

atividade humana, não como fonte exógena de impacto, mas como tecido em que esta

atividade é exercida. (Castells, 2000: 68)

Em sua abordagem do capitalismo informacional, Castells irá estudar os

desdobramentos deste na cultura econômica em particular, mas também na forma como ele

age sobre as identidades locais e culturas regionais, modificando-as. Mudanças no trabalho,

na forma de aprender e na política são também mapeadas pelo autor, ressaltando desta

forma a abrangência do processo.

Para Castells, embora o capitalismo informacional tenha se manifestado primeiro

em regições específicas do mundo, marcadas pela forte vocação inovadora, suas 95 Grifo de nossa autoria.

230

conseqüências e abrangência são globais, pois são inseparáveis do fenômeno da

globalização. Para o autor os alicerces da globalização são: a desregulamentação das

atividades econômicas domésticas, a liberalização do comércio e dos investimentos

internacionais e a privatização das empresas públicas. Este tripé criou condições para a

circulação desenfreada dos capitais, para a imigração de empresas do centro para a periferia

a fim de investir em setores outrora capitaneados pelos estados nacionais e, sobretudo, para

uma nova etapa no fluxo internacional de mercadorias. Para controlar todo este novo

cenário globalizado da economia, seria necessária uma poderosa infra-estrutura

tecnológica, que se desenvolveu simultaneamente, senão sinergicamente, com o fenômeno

da globalização: “A globalização econômica completa só poderia acontecer com base nas

novas tecnologias da comunicação e informação.” (Castells, 2003: 178)

A Internet cumpre um papel de especial relevância nas teses de Castells, à rede

mundial de computadores dedicou um trabalho específico intitulado “A galáxia da Internet”

em explícita referência “A galáxia de Gutenberg”, de Marshall McLuhan. Para o autor, a

Internet encontra-se no centro das transformações perpetradas pela revolução tecnológica,

sua arquitetura aberta e em rede será a base das mudanças desenvolvidas nas estruturas

empresariais e institucionais, sem as quais o novo modelo de capitalismo não se

diferenciaria substanc ialmente de suas etapas anteriores.

Finalmente suas visões acerca das transformações promovidas pela revolução

tecnológica não são ingênuas a ponto de negarem as conseqüências perversas deste novo

tipo de capitalismo sobre imensas parcelas de excluídos da rede informacional, entretanto,

em sua reflexão estas questões encontram-se em plano secundário, diante da possibilidade

231

de instrumentalizar este tipo de capitalismo em prol de um novo ciclo de desenvolvimento

das diversas regiões que a ele consigam se incorporar.

Outro importante teórico a se debruçar sobre as mudanças promovidas pela

emergência do computador, da Internet e da informação no cenário da cultura e da

sociedade global é Pierre Lévy, suas reflexões de cunho filosófico e sociológico se dirigem

às implicações culturais das novas tecnologias. O jargão que utiliza é o da cibercultura ou

cultura cibernética entendida como a cultura fundada em torno da teia ou rede digital

formada pela digitalização das diversas esferas da vida.

Como vimos, para Castells, o elemento qualitativo das mudanças promovidas pela

atual revolução tecnológica é a nova capacidade humana de lidar produtivamente com o

símbolo. Dito de outra forma, a intensificação da economia das trocas simbólicas, na qual a

informação se converte de insumo para produto final. Existe uma relação sobre esta

observação e as reflexões de Lévy sobre a virtualidade do texto e as implicações da

digitalização sobre este artefato comunicacional.

A escrita foi a mais importante descoberta técnica dos homens; com ela inúmeros

conhecimentos antes soterrados nos labirintos da oralidade puderam ser resgatados por

gerações futuras, fundando uma nova modalidade de colaboração humana, conhecida, por

nós, como ciência. À escrita devemos, portanto, boa parte de nosso progresso tecnológico.

Devemos a ela grande parte do intercâmbio entre as diversas culturas e raças que povoam

nosso planeta. Mas não haveria escrita sem leitura, são as duas faces de uma mesma moeda,

estão totalmente articuladas, a ponto de a própria originalidade de textos literários poder ser

questionada pela influência que as leituras exercem sobre o autor. Escrever é registrar

conhecimentos, formatar sensações, criar novas modalidades de entendimento, reinventar o

232

mundo valendo-se da combinação infinita de poucas letras. Ler é atualizar o que foi

escrito 96, mas não todo o conteúdo; quando lemos nos apropriamos apenas de uma parte do

texto; ao conteúdo apreendido juntamos outros que vagam nas planícies da memória,

interpretamos e reinterpretamos o material apreendido e, ao final deste movimento – que

pode durar o mesmo tempo que o próprio ato da leitura –, estaremos diante de um outro

texto, recortado, dobrado sobre si, modificado.

Se admitirmos que um texto só existe verdadeiramente quando lido, e se o ato de

leitura implica numa transformação radical do texto, então, toda a leitura é hipertextual.

Hipertexto é uma das mais instigantes experiências textuais tornada possível com o advento

do universo digital, segundo Pierre Lévy, hipertexto pode ser definido da seguinte maneira:

Com efeito, hierarquizar e selecionar áreas de sentido, tecer ligações entre essas

zonas, conectar o texto a outros documentos, arrimá-lo a toda uma memória que forma

como que o fundo sobre o qual ele se destaca e ao qual remete, são outras tantas funções do

hipertexto informático. (Lévy, 1996:37)

Desde de sua criação pela antiga civilização mesopotâmica, o texto ideogrâmico ou

iconográfico e posteriormente alfabético constitui-se em objeto virtual. As diversas leituras

realizadas através dos tempos nada mais são que atualizações de seu conteúdo e sentido.

Nestas, as diversas significações que constituem o leitor agem sobre o texto criando

lacunas, fragmentando-o, extraindo dele apenas aquelas partes que podem ser entendidas ou

interpretadas. Desta forma, o texto torna -se outro, desdobra-se em inúmeros textos com os

quais é cotejado, dialoga com seus fragmentos e finalmente é retido pela memória do leitor

completamente desfigurado.

96 Muitos dos teóricos da recepção trabalham com a importância do leitor neste circuito de constante atualização e apropriação do texto.

233

A tecnologia criou condições para que ao texto alfabético se conectem uma série de

recursos antes utilizados por nossa mente durante a leitura. Finalmente o leitor, considerado

por séculos um passivo usuário, influencia definitivamente o texto, concedendo a este, no

próprio ato de sua confecção, os múltiplos recursos do leitor.

Quem já navegou obras compostas em hipertexto pode constatar que estas

apresentam uma ampla variedade de links que permitem ao leitor remeter-se à origem de

determinados argumentos ou visualizar mapas e fotos da região que o texto descreve, ou

mesmo ouvir a música produzida na época retratada. Mas ainda mais instigante é a

possibilidade de o leitor registrar suas impressões a respeito do texto lido, ao mesmo tempo

em que pode consultar as impressões de um número indefinido de outros leitores. De forma

definitiva, a postura aparentemente passiva do leitor é substituída por uma atividade leitora

que deixa marcas visíveis sobre o texto.

Dentre as possibilidades do uso da informação como elemento gerador de riquezas e

como fio condutor da cultura, o texto alfabético, foi sem dúvida, o mais vitorioso dos

formatos de registro. Suas virtualidades e a possibilidade de materialização nos mais

variados suportes representou desde o primeiro instante uma vantagem sobre outras formas

de registro. Enquanto os monumentos, pinturas e esculturas estavam quase sempre restritos

ao espaço físico de sua materialização, o texto alfabético podia viajar primeiro na memória

de filósofos, profetas e poetas, posteriormente em tabuinhas de argila, em papiro, bambu e

pergaminho, modernamente no papel e finalmente nos oceanos de bits que compõem o

atual espaço das redes eletrônicas de computadores.

Pela primeira vez desde sua invenção, o texto alfabético encontra em um suporte

sua vocação original de intangiblidade sem a qual a virtualidade perde parte de sua força.

234

Para Lévy é preciso identificar no hipertexto a tecnologia mnemônica mais abrangente já

concebida, pois realiza no plano das tecnologias humanas aquilo que a memória já fazia há

milhares de anos. Para Lévy, o computador, a Internet, as comunidades virtuais de

aprendizagem, os bancos de dados e seus mecanismos de buscas compõem um campo de

novas tecnologias intelectuais cujo destino encontra-se em aberto, indeterminado. E que

nenhuma de nossas antigas categorias metafísicas e trans-históricas podem dar conta de

suas especificidades. Em outras palavras, não existe um telos tecnológico herdado da

modernidade ou mesmo da tradição grega que está agora manifestando-se através dos atuais

mecanismos informáticos como a realização de um projeto há muito iniciado no Ocidente.

A tese histórica de Lévy é de que os coletivos cosmopolistas compostos por indivíduos,

instituições e técnicas são verdadeiros sujeitos que condicionam - sem determinar - através

do uso das tecnologias intelectuais, os pensamentos que dirigem suas sociedades.

Para o autor uma história do saber apenas pode ser pensada a partir de uma ecologia

cognitiva, na qual os mecanismos de armazenagem e recuperação do conhecimento, bem

como os instrumentos de significação, cumprem papel central. Neste caso, o texto, agora

pensado como teia de significações tecidas através dos tempos, é a estrutura criada pelo

homem para manter ligada a sociedade. Nenhum projeto coletivo seria possível sem a

textualidade e esta depende dos mecanismos de armazenamento e recuperação, pois é

virtual em sua constituição. Para Lévy, o espírito humano desdobra-se em três tempos

fundamentais: o tempo da oralidade primária, o tempo da escrita e o da informática. O fato

de estarmos ingressando neste último não significa que os outros dois tenham sido

totalmente suplantados, há resquícios do primeiro e a intensa e resistente presença do

segundo.

235

A fim de entender como a memória humana se relaciona com o conhecimento Lévy

recorre aos estudos de psicologia cognitiva:

E, antes de mais nada, de acordo com a psicologia cognitiva contemporânea , não

há apenas uma, mas diversas memórias, funcionalmente distintas. A faculdade de construir

automatismos sensoriomotores (por exemplo, aprender a andar de bicicleta, dirigir um carro

ou jogar tênis) parece colocar em jogo recursos nervosos e psíquicos diferentes da aptidão

de reter proposições ou imagens. Mesmo no interior desta última faculdade, que chamamos

de memória declarativa, podemos ainda fazer a distinção entre memória de curto prazo e

memória de longo prazo. (Lévy, 1993:78)

A memória declarativa de longo prazo é importantíssima no processo de

aprendizado, dela dependemos para nos recordar de questões que, por exemplo,

aprendemos nas aulas do colégio e da faculdade. Enquanto para a memória de curto prazo

a memorização pode se dar apenas pela simples repetição, para memória de longo prazo

funcionar, é necessário que criemos uma representação do conhecimento adquirido.

Quando necessitamos deste conhecimento, será necessário que em nossa arquitetura

cognitiva seja mobilizada esta representação, mas também será necessário que tenhamos

construído um caminho neural que nos conduzirá ao conhecimento armazenado. Segundo

Lévy: “A estratégia de codificação, isto é, a maneira pela qual a pessoa irá construir uma

representação do fato que deseja lembrar, parece ter um papel fundamental em sua

capacidade posterior de lembrar-se deste fato.” (Lévy, 1993:79)

As experiências cognitivas mais bem-sucedidas na estratégia de recuperação de

memórias se dão a partir de elaborações, que agregam pequenas histórias e eventos aos

conhecimentos que devem ser lembrados. Estas cápsulas narrativas funcionam como bóias

236

de sinalização ligadas aos conhecimentos. Outro fato importante é o de que quando ligamos

estes conhecimentos a outros já armazenados criamos novos caminhos de acesso, quanto

mais caminhos criados, mais fácil o acesso. Outra estratégia possível é a de esquemas

preestabelecidos que servirão como moldura e índices para os novos conhecimentos. Nos

dois casos, entretanto, temos uma série de inconvenientes: no primeiro caso, as elaborações

podem suplantar e mesmo soterrar o conhecimento armazenado, isto é facilmente

observado no campo jurídico, quando testemunhas misturam os fatos com sua próprias

interpretações. No caso das estruturas prévias temos o problema de ter que adequar o

conhecimento a suas composições, muitas vezes perdendo parte importante destes e mesmo

alterando seu significado.

Nas civilizações de oralidade primária as estratégias mnemônicas vitoriosas

atendiam aos seguintes critérios identificados por Lévy:

1. As representações serão ricamente interconectadas entre elas, o que exclui listas e

todos os modos de apresentação em que a informação se encontra disposta de forma muito

modular, muito recortada;

2. As conexões entre representações envolverão sobretudo representações de causa

e efeito;

3. As proposições farão referências a domínios do conhecimento concretos e

familiares para os membros da sociedade em questão, de forma que estes possam ligá-los a

esquemas preestabelecidos;

4. Finalmente estas representações deverão manter laços estreitos com “problemas

da vida”, envolvendo diretamente o sujeito e fortemente carregadas de emoção. (Lévy,

1993: 82)

237

É a civilização das narrativas míticas que codificam a experiência social

permitindo que seja transmitida por gerações, sem que seu sentido original se perca.

Nas sociedade orais primárias o tempo será por excelência cíclico, pois a repetição

será a forma usada para a transmissão do conhecimento.

O registro escrito permitirá que a memória relativa se liberte das

elaborações. A escrita institui a história, ingressa a civilização na temporalidade

progressiva. Constrói o passado ao mesmo tempo em que projeta o futuro. Erige

tradições, escolas, cânones. Separa o emissor do receptor no tempo e no espaço,

concede ao texto uma mobilidade jamais experimentada, funda uma tradição

hermenêutica e torna possível a ciência. Mesmo antes da impressão, na era dos

manuscritos, este conjunto de características já se podia sentir nas civilizações que

cultivavam o registro escrito. A escrita propicia as vantagens da memória de curto

prazo, sem as desvantagens do esquecimento, cada ato de repetição pode representar

também uma nova cópia que tornará a memória ainda mais viva.

A escrita é uma forma de estender indefinidamente a memória de trabalho

biológica. As tecnologias intelectuais ocupam lugar de auxiliares cognitivos dos

processos controlados, aqueles que envolvem atenção consciente e dispõe de tão

poucos recursos no sistema cognitivo humano. (Lévy, 1993: 92)

O conhecimento no seu formato oral estava aprisionado a narrativas e

encadeado em sistemas complexos, mas bastante finitos de mitos e histórias. Desta forma

toda a cultura de um povo encontrava-se enredada nesta teia de narrativas, e o

conhecimento não podia ser transmitido de forma modular. A escrita permite o

fracionamento, a modulação, a organização em listas, em pequenas unidades, em objetos

238

de conhecimento. Ao fazê-lo ela permite também o milagre da multiplicação, que em

poucas gerações enche milhares de prateleiras.

A emergência da informática coloca as telas de computador como interfaces

de acesso ao conhecimento. Para Lévy o computador é muito mais que um simples

artefacto, ele é composto de um feixe de interfaces instáveis, constantemente mutáveis, que

depende em sua configuração tanto do usuário, quanto da rede a que este se encontra

conectado. De saída, a informática liberta o texto de sua materialidade impressa,

amplificando infinitamente as possibilidades de reprodução inauguradas com a impressão

gráfica. Os registros sonoros e visuais também ingressam nesta nova teia de textualidades,

ampliando o escopo do texto. A convergência possibilitada pelas novas mídias permite que

praticamente a totalidade do conhecimento humano encontre-se no formato digital

virtualmente disponível para freqüentes atualizações requisitadas pelos usuários. A

estabilidade dos antigos registros textuais é abalada pela possibilidade de alterações

promovidas pelos usuários que virtualmente também são criadores. À distância instaurada

pela civilização escrita entre emissor e receptor diminui sobremaneira e é por vezes anulada

nesta nova configuração do conhecimento.

Os documentos escritos amplificaram a memória humana e modificaram a

maneira pela qual os indivíduos se relacionavam com o conhecimento. A materialidade do

impresso e as questões econômicas que envolviam a edição instauraram toda uma estrutura

de legitimação dos impressos que distinguia autores de leitores e concedia aos originais e

239

suas possíveis cópias uma noção de legitimidade jamais experimentadas nas civilizações de

oralidade primária e secundária 97.

A exegese de textos clássicos, a recuperação de antigos originais, os estudos

lingüísticos, filológicos e arqueológicos permitiram que se autenticasse uma série de

documentos escritos e que versões mais fiéis aos originais fossem estabelecidas. Este

cuidado com a verdade é próprio da civilização impressa, na qual o erro pode multiplicar-se

facilmente por milhares de cópias materiais, muitas vezes sem qualquer possibilidade de

correção.

Com a informática a capacidade de reproduzir se amplifica, mas também a

capacidade de corrigir e alterar e, pelo menos até o momento, o compromisso com a

verdade e a legitimidade parece ter sido suplantado pela possibilidade de acesso e de

simulação.

Para Lévy, a Rede Digital de Informação, conhecida hoje como Internet está

levando a sociedade humana a estabelecer um novo tipo de relacionamento com o

conhecimento, marcado por uma nova arquitetura neural, na qual poderosos bancos de

dados multimídia se somam a bancos de dados pessoais, compondo uma grande memória

auxiliar coletiva. Comunidades virtuais de aprendizagem e conhecimento podem ser

construídas facilmente reunindo pessoas através de uma taxionomia comum. Neste cenário

os conceitos de autoria, conhecimento e legitimidade modificam-se sendo tencionados pela

constante busca da novidade. O sentido universal do conhecimento cede espaço a uma

quantidade indefinida de versões. Na era da informática o conhecimento é volátil.

97 O mesmo que civilização do manuscrito.

240

Nas sociedades orais cabia ao sábio transmitir o conhecimento, na sociedade escrita

serão o livro e seus autores os agentes do conhecimento modular, na sociedade informática,

imaginada por Lévy, coletividades humanas vivas que constroem conhecimento no

ciberespaço serão as responsáveis pela transmissão do conhecimento. Algo que realmente

já ocorre no desenvolvimento de softwares como o Linux e em outras manifestações da

cultura hacker98.

Atualmente em nossa experiência cotidiana com a informática podemos sentir como

nosso modelo mnemônico tem se alterado. Na preparação para escrever esta dissertação,

fichei99 mais de uma centena de livros e cerca de duas centenas de artigos. As principais

citações foram digitalizadas e armazenadas no banco de dados do meu computador pessoal.

Paralelamente fiz inúmeras buscas na Internet que me possibilitou ampliar a base de

referências. Ao iniciar a estruturação de um capítulo realizei uma experiência que considero

de colaboração entre minha inteligência de carbono e a inteligência artificial do

computador100 Digitava uma palavra-chave no minerador de dados de meu equipamento

(Google Desktop Search) e pedia que ele fizesse uma busca de referências tanto no Banco

de Dados do meu computador, como na Internet. Na maioria das vezes ele reunia as

citações já coligidas por mim, mas em outras trazia associações inusitadas, muitas delas

bastante criativas. Por exe mplo, digitei “autoria” e ele me trouxe uma série de referências

ao “direito de autor”, mas também uma informação sobre poesia erótica, que começou a ser

escrita pelos autores quando da ascensão da leitura silenciosa. Esta informação que eu havia

coletado, mas esquecido, foi usada por mim como um dos exemplos históricos de como a

98 Trataremos dessa cultura no próximo tópico. 99 Vou utilizar a primeira pessoa do singular por considerar que, neste caso, ela concede a necessária pessoalidade que a experiência representou. 100 Esta experiência me foi sugerida por Steven Johnson em seu texto: Cabeças de Silício.

241

autoria se foi construindo no final da Idade Média. Este brainstorm entre mim e a máquina

é certamente uma forma nova de comunicação e uma característica desta mudança apontada

por Lévy. O mesmo seria possível realizar em relação a documentos produzidos por

coletividades científicas e tornados disponíveis na Internet.

As contribuições de Daniel Bell, Manuel Castells e Pierre Lévy traçam um

panorama básico das mudanças processadas pela emergência das tecnologias da informação

e suas implicações nas diversas dimensões da vida humana. Entre os autores existem

inúmeras diferenças, dentre eles, apenas Bell é partidário explícito da idéia de uma

Sociedade da Informação (no caso dele restr ita ao espaço econômico). Castells nos fala de

uma sociedade em Rede, e dedica milhares de páginas a agrupar dados e argumentar sobre

as mudanças que a revolução da informação vem provocando na sociedade. Lévy é mais

lírico e filosófico, mas arrisca estender suas questões para áreas tão extremas quanto a

culinária, as eleições e as práticas esportivas. Portanto, todos estes autores, de uma forma,

ou de outra, são defensores da idéia de que a informática vem transformando as relações

econômicas e sociais e de que vivemos senão uma nova era, ao menos uma fase de

transição em relação à sociedade industrial moderna.

3. Sociedade da informação e cultura hacker

Alguns fenômenos de natureza cultural parecem ter sido favorecidos ou animados

pela emergência da TI como uma das molas propulsoras da economia capitalista. Desde a

década de 1950 os estudiosos das sociedades capitalistas contemporâneas detectavam uma

242

tendência ao individualismo, exemplificado pelo aumento das pessoas solteiras em idade

adulta que estabeleciam lares. Esta questão não é de qualquer forma nova e se cosntitui em

uma das preocupações centrais de patriarcas da sociologia como Tocqueville, Durkheim e

Weber. De um modo geral este individualismo é atribuído à convergência de três

fenômenos modernos, em primeiro lugar, o surgimento da nação que entre os séculos XIV e

XVIII irá desfechar um duro golpe sobre os grupos intermediários estabelecendo-se como a

principal coletividade. Em segundo lugar, a democratização das práticas políticas e a

universalização do voto, fenômeno que institucionalizará a individualidade e, terceiro, o

fenômeno industrial que compartimentalizará a experiência do trabalho, levando este a se

especializar e a isolar o indivíduo em uma de suas etapas. Cidades como Nova Iorque, nos

EUA, apresentavam na década de 1990 do século XX uma taxa de aproximadamente 50%

de lares formados por indivíduos solteiros, conforme Jean Baechler.

Na década de 1970 do século XX os urbanistas presenciaram um novo fenômeno

nas grandes cidades ocidentais, a tendência da substituição das áreas centrais como áreas de

moradias, por áreas mais amplas e baratas nos subúrbios. Este fenômeno, somado à

violência e ao trânsito congestionado favoreceu a ascensão da sociedade centrada no lar.

Não podemos naturalmente nos esquecer da televisão, que terá importante impacto na

retenção das pessoas em casa. Este movimento recebeu um apoio de peso da tecnologia da

informação. Krishan Kumar, de certa forma cético em relação às mudanças significativas

promovidas por estas tecnologias nos âmbitos do trabalho e da economia, concorda que nas

relações de consumo e entretenimento estas realmente ocorreram:

A tecnologia da informação, dirigida por um conjunto inteiro de grandes interesses

empresariais, tem sido posta cada vez mais a serviço do consumo baseado no lar. O

243

entretenimento é o exemplo mais óbvio. “Sair para dar uma volta” foi substituído por

“ficar em casa”. (Kumar, 1996: 165)

Jogos eletrônicos, filmes em DVD, relacionamentos amorosos pela Internet,

comunidades virtuais de conhecimento, sexo virtual, compras delivery, comida congelada e

mais uma infinidade de atividades podem e são realizadas no lar, sem os incômodos da vida

nas grandes metrópoles.

Outro fenômeno cultural de fundamental importância relacionado a TI é o

surgimento em torno dela de um subcultura, conhecida como “cultura hacker”. A tendência

de formação de grupos culturais não é nova e pode ser encontrada na modernidade

européia. Raymond Williams identifica esta tendência na sociedade capitalista moderna e

verifica três tipos de formações internas:

(i) as que se baseiam em participação formal de associados, com modalidades

variáveis de autoridade ou decisão interna, e de constituição e eleição;

(ii) as que não se baseiam na participação formal de associados, mas que se organizam

em torno de alguma manifestação pública coletiva, tal como uma exposição, um

jornal periódico do grupo, ou um manifesto explícito.

(iii) as que não se baseiam na participação formal de associados nem em qualquer

manifestação pública coletiva continuada, mas nas quais existe associação

consciente ou identificação grupal, manifestada de modo formal ou ocasional, ou,

por vezes, limitada ao trabalho em conjunto ou a relações de caráter mais geral.

(Williams, 2000:69)

Williams pensa estas questões mirando nos movimentos artísticos de vanguardas

presentes em toda modernidade ocidental. Acreditamos, entretanto, ser possível transportar

244

este modelo para análise dos grupos relacionados à cultura hacker, em especial pelo caráter

intelectual e criativo de sua atuação. Os grupos originados na cultura hacker tendem a

apresentar as características da terceira formação. O autor identifica alguns fatores sociais

que levam estas frações de classe a constituírem-se em grupos dissidentes:

(i) a crise, para muitos artistas, da transição do patronato para o mercado;

(ii) a crise, em certas artes, da transição do trabalho manual para a produção

mecânica; (iii) crises no interior tanto do patronato quanto do mercado, num

período de crise social intenso e generalizado; (iv) o apego de determinados grupos

a uma ordem social pré-capitalista e/ou pré-democrático no qual algumas artes

haviam sido privilegiadas dentro de um privilégio geral; (v) o apego de outros

grupos à democratização da ordem social, como parte do processo de liberação

geral e de enriquecimento humano, para o qual se lhes fosse permitido, as artes

poderiam contribuir; (vi) uma oposição de ordem mais geral, freqüentemente

sobrepondo-se a essas visões políticas diversas e parecendo até unificá-las, ás

práticas e valores de uma civilização “comercial” e “mecânica”, dos quais a prática

e os valores das artes podiam distinguir-se. (Williams, 2000:72-73)

Tais características são encontradas nos grupos de vanguarda na Europa, a partir do

final do século XVIII e início do século XIX. É nesta época que o conceito de cultura se

separa do de civilização e passa a servir mais ao modo de vida interno (da nação). O

próprio conceito de autor e artista está adquirindo seu formato moderno conforme

analisamos no capítulo III.

Williams arrisca algumas hipóteses em relação às características mais gerais

dos grupos de vanguarda surgidos entre 1890 e 1920: (i) eles possuem uma base

metropolitana, em geral a capital do país; (ii) são autônomos; (iii) possuem um certo grau

245

de internacionalização; (iv) muitos de seus membros são imigrantes coloniais, vivendo na

metrópole; (v) muitos possuem línguas locais que foram abandonadas em função da língua

da metrópole e que as línguas de origem podem se manifestar na forma de conflitos

estéticos e de rupturas contra as formas tradicionais da linguagem artística; (vi) que a

concentração e diversidade da metrópole fertilizaram tais movimentos.

Em seguida pretendemos confrontar as idéias de Williams sobre os subgrupos

culturais, com as observações coligidas por Manuel Castells sobre a cultura da Internet de

um modo geral e a “cultura hacker”. Neste caso podemos entender Internet, como sinônimo

de “Informacional” ou de TI, caracterizado por uma estrutura dividida em quatro diferentes

camadas:

a. a cultura tecnomeritocrática;

b. a cultura hacker;

c. a cultura comunitária virtual;

d. a cultura empresarial.

Em um dado momento estas quatro formas de cultura encontravam-se todas unidas

e de certa forma elas ainda se interconectam no modo como produtores e usuários de TI e

da Internet se relacionam entre si e com as estruturas do mundo social. Sobre a relação

entre estas camadas e o conceito de liberdade que parecem compartilhar, Castells afirma:

Essas camadas culturais estão hierarquicamente dispostas: a cultura

tecnomeritocrática especifica-se como uma cultura hacker ao incorporar normas e costumes

a redes de cooperação voltadas para projetos tecnológicos. A cultura comunitária virtual

acrescenta uma dimensão social ao compartilhamento tecnológico, fazendo da Internet um

246

meio de interação social seletiva e de integração simbólica. A cultura empresarial trabalha,

ao lado da cultura hacker e da cultura comunitária, para difundir práticas da Internet em

todos os domínios da sociedade como meio de ganhar dinheiro. Sem a cultura

tecnomeritocrática, os hackers não passariam de uma comunidade contracultural de geeks e

nerds. Sem a cultura hacker, as redes comunitárias na Internet não se distinguiriam de

muitas outra comunidades alternativas. Assim como, sem a cultura hacker e os valores

comunitários, a cultura empresarial não pode ser caracterizada como específica à Internet.

(Castells, 2003: 35)

Segundo Castells, a cultura tecnomeritocrática formou-se na academia e nos

laboratórios de pesquisa de Informática. Suas características fundamentais são: a descoberta

tecnológica como o valor supremo; as descobertas científicas são hierarquizadas a partir de

sua importância para o desenvolvimento das redes de comunicação e dos sistemas

operacionais; a reputação e a relevância das descobertas são desenvolvidas pelos pares; a

coordenação de tarefas e as verbas se concentram em torno de figuras de autoridade que se

encontram em lugares-chaves dentro do campo; a ética do campo exige que o indivíduo

compartilhe seus conhecimentos e use os recursos não apenas para beneficiar-se; o

elemento central do processo é a comunicação aberta do software e os aperfeiçoamentos

realizados em rede.

A tradição científica e acadêmica soma-se a esta nova modalidade de produção de

conhecimento que serve ao mesmo tempo como amplificadora desta tradição. Peka

Himanen, em seu livro sobre a ética hacker afirma que esta é a característica cultural da

sociedade informacional. Os elementos fundamentais desta cultura, segundo Himanen,

seriam a comunicação livre e a cooperação. Castells, ao se referir à cultura hacker e sua

relação estrita com a Internet, a define desta maneira:

247

Neste sentido restrito, a cultura hacker, a meu ver, diz respeito ao conjunto de

valores e crenças que emergiu das redes de programadores de computador que interagiam

on-line em torno de sua colaboração em projetos autonomamente definidos de programação

criativa. (Castells, 2003:38)

Dois aspectos podem ser ressaltados nesta definição : primeiro, a comunicação por

redes e segundo a participação em projetos autônomos, desvinculados de empresas e

instituições acadêmicas.

Para Castells a origem do movimento hacker encontra-se nas lutas pelo código fonte

aberto e pelo software livre que tem na criação do sistema operacional GNU/Linux o seu

ponto culminante, para entender melhor os eventos fundamentais deste desenvolvimento

traçamos o quadro abaixo:

Período/

Ano

Acontecimento/chave

1974 AT&T, empresa americana de Telecomunicações, responsável pelos

laboratórios de tecnologia Bell, foi obrigada pelo governo dos EUA a difundir

as pesquisas dos laboratórios, tornando disponível às universidades americanas

o código fonte do sistema operacional UNIX .

1977 Criação na universidade de Berkeley, por equipe liderada pelos engenheiros

Bill Joy e Chuck Halley, do Berkeley Software Distribution (BDS), versão

aperfeiçoada do UNIX.

1980 UNIX da AT&T e UNIX de Berkeley entram em conflito, o primeiro é vendido

248

comercialmente, o segundo é distribuído gratuitamente e tem seu código aberto.

1984 - Richard Stallman, do MIT (Massachussets Institut Tecnology), juntamente com

um grupo de colaboradores, escreve um novo sistema operacional o GNU,

inspirado no UNIX, mas não submetido ao seu copyright. Paralelamente a esta

iniciativa, Stallman cria a Free Software Foundattion, levantando a bandeira

da livre comunicação e do livre acesso aos softwares.

1983 Lançamento de computadores pessoais com potências sem precedentes.

1991-

1993

Desenvolvimento por Linus Torvalds e de inúmeros colaboradores ao redor do

mundo do sistema operacional batizado de LINUX. Em 1993 este sistema

operacional já apresentava melhor desempenho que os sistemas operacionais

patenteados.

1994 Os diversos conflitos que envolviam o UNIX prejudicaram seu desempenho

comercial, no campo do software livre o LINUX era utilizado apenas por

iniciados. Este vácuo permite que o Windows, sistema operacional da

Microsoft, torne-se hegemônico nos ambientes domésticos e empresariais.

2001 Governos de países como Brasil, Índia, México, China e França, adotam o

Linux e ajudam a desenvolvê-lo.

Tabela 21: principais eventos ligados ao desenvolvimento das Tecnologias da Informação

Diferentemente das tecnoeletites101 inseridas na vida universitária, os hackers

tinham independência de eventuais conflitos e de imposições da burocracia acadêmica. Isto

facilitou sua atuação e permitiu um desenvolvimento mais acelerado de seus insights. 101 Termo usado por Manuel Castells para designar os pesquisadores acadêmicos dedicados as tecnologias da informação.

249

Muitas vezes uma pessoa podia participar dos dois cenários, por um lado, atuava nos

laboratórios e grupos acadêmicos, ao mesmo tempo em que fazia parte de

desenvolvimentos independentes. É por isso, que pode parecer estranho e até arbitrário

tentar separar as tecnoelelites dos hackers independentes, entretanto esta divisão existe no

sentido de subgrupos atuando dentro de uma mesma cultura mais geral.

Outro fenômeno que atuou fortemente na emergência da cultura hacker foi o das

comunidades virtuais, cuja colaboração eletrônica não se restringia apenas à inovação

técnica centrada em computadores. Desta forma, pessoas de diversas áreas distintas do

conhecimento, usuários de computador que não dominavam a linguagem dos códigos

fontes, passaram a utilizar as ferramentas da comunicação em rede a fim de desenvolver

projetos comuns e de resolver problemas relacionados ao conhecimento. Essas redes já

existiam no final da década de 1970 do século XX, conforme nos relata Manuel Castells:

Os primeiros usuários das redes de computadores criaram comunidades virtuais,

(...) e essas comunidades foram fontes de valores que moldaram comportamento e

organização social. Pessoas envolvidas nas redes da Usenet News, na FIDONET, e nos

BBS, desenvolveram e difundiram formas e usos na rede: envio de mensagens, listas de

correspondências, salas de Chat, jogos para múltiplos usuários (...) conferências e sistemas

de conferências. (Castells, 2003: 48)

Com a explosão da Internet na década de 1990, inúmeros usuários que não

possuíam habilidades de programadores adentraram estes espaços virtuais, trazendo

consigo uma rica experiência social, criando comunidades sobre os mais variados temas

eruditos e populares. A cultura comunitária da Internet ampliou de forma decisiva os

princípios de colaboração digital existentes na cultura hacker, e de certa forma,

250

extrapolaram para outros segmentos da sociedade alguns dos princípios desta cultura.

Apesar de sua enorme diversidade e dos diferentes objetivos ou talvez, por causa disso, as

comunidades virtuais apresentam dois princípios fundamentais, o primeiro é o valor da

comunicação livre e horizontal e o segundo é a de formação autônoma de redes.

No primeiro caso temos importantes implicações políticas, já que este princípio de

comunicação direta e de ruptura de hierarquias pode afetar desde as relações de trabalho

nas empresas, até as relações dos consumidores com as empresas, e dos cidadãos

consumidores, como diria Canclini102, e seus representantes. No segundo caso observamos

as inúmeras possibilidades do indivíduo associar-se na Internet à comunidade que melhor

lhe aprouver e no caso de não encontrar nenhuma interessante o suficiente, de criar sua

própria rede. Assim afirma Castells:

Desde os BBSs primitivos da década de 1980 aos mais sofisticados sistemas

interativos da virada do século, a publicação autônoma, a auto-organização e

autopublicação, bem como a formação autônoma de redes constitui um padrão de

comportamento que permeia a Internet e se difunde a partir dela para todo o domínio

social. (Castells, 2003: 49)

O quarto subgrupo a participar da construção da cultura informacional e que possui

estrita relação com a cultura hacker e as tecnoelelites, é o dos empresários. Foram eles que

retiraram a Internet e as aplicações de TI, do domínio restrito dos hackers e das primeiras

comunidades, disseminando estas inovações para importantes parcelas da sociedade. Um

detalhe importante é que muitos dos empresários de TI são oriundos de grupos de hackers

ou das tecnoelites universitárias. E, certamente por isso, muito de suas práticas empresaria is

102 Em sua obra “Consumidores e Cidadãos, Nestor Garcia Canclini, a identidade e cidadania nas sociedades contemporâneas envolvem também as complexas relações de consumo.

251

é influenciada pela tecnológica que os originou. Por exemplo, a imensa maioria das

empresas que se desenvolveram no Vale do Silício nos EUA tinham, como principal ativo,

idéias. Muitas dessas idéias fracassaram, mas algumas delas compõem constituem nos dias

de hoje o alicerce das mais valiosas empresas do planeta. É claro que estes empresários

tecnológicos não reinventaram a roda, precisaram de capital de risco para alavancar seus

negócios, bem como tiveram que se render, na maioria das vezes, à lógica do lucro, que

move a economia capitalista. O saldo final, entretanto, parece ter concedido à forma de

fazer negócios baseada em idéias inovadoras, um estatuto que esta não experimentava

desde as décadas que procederam a segunda revolução industrial.

Steve Jobs, fundador da empresa Apple, e Bill Gates, fundador da Micorsoft, são

dois exemplares deste grupo de novos empresários que se fizeram a partir da cultura

informacional. No princípio eram hackers como uma infinidade de outros jovens

americanos de sua geração, desenvolvendo em suas garagens projetos de computadores e

softwares. O sucesso alcançado por eles motivou novas gerações de hackers a adentrar no

mundo dos negócios de TI, fornecendo a este um exército de novos talentos bem

preparados e motivados para as tarefas que se anunciavam. Em pouco mais de uma década,

a cultura informacional e seus artefatos digitais se espalhou por todo o globo,

transformando-se em sinônimo de prosperidade para as regiões que conseguiram

desenvolvê- la. O modelo ágil da empresa de tecnologia passou a influenciar diretamente os

modelos de gestão empresarial disseminados a partir dos EUA e utilizados por boa parte do

mundo capitalista. Em que pese, os abalos da crise da bolsa eletrônica NASDAQ, vividos

na explosão da bolha especulativa em 2001, as empresas inovadoras baseadas em TI

252

continuam se disseminando pelo globo e seu modelo de sucesso, ajustado após abalos,

continua inspirando uma legião de adeptos. Castells resume assim este cenário:

A atividade empresarial, como dimensão essencial da cultura da Internet, chega

com uma nova distorção histórica: cria a partir de idéias, e mercadoria a partir de dinheiro,

tornando tanto o capital quanto a produção dependentes do poder da mente. Os empresários

da Internet são antes criadores que homens de negócios, mais próximos da cultura do artista

que da cultura corporativa tradicional. Sua arte, no entanto, é unidimensional: eles fogem da

sociedade à medida que prosperam na tecnologia, e adoram o dinheiro, recebendo um

feedback cada vez menor do mundo como ele é. Afinal, para que prestar atenção ao mundo

se o estão refazendo à sua própria imagem? (Castells, 2003, 52)

O mundo dos empresários de TI parece cindir-se em dois por conta da emergência

da Internet e da influência da cultura hacker na forma de estruturação dos negócios. Como

vimos, um dos aspectos elementares da cultura hacker é a colaboração e a livre circulação

dos códigos fontes, o direito universal aos conteúdos digitais, sem qualquer barreira

pecuniária ou jurídica se impondo à livre utilização. O único constrangimento a esta total

liberdade de circulação impõe-se a partir da cultura meritocrática que pressupõe a

concessão do crédito ao criador original. Pensando em termos dos direitos autorais,

estaríamos diante do respeito apenas aos direitos morais, estando os direitos patrimoniais

alienados do criador e tornados livres para uso e modificação. Toda obra criada no seio da

cultura hacker e respeitando sua ética é, portanto, uma obra de domínio público. Pois bem,

parte dos negócios desenvolvidos na rede obedecem a esta ética hacker, é o caso, por

exemplo, de sites como o Google, o Orkut e a Wikipédia. O primeiro, o mais importante

minerador de dados da rede e que oferece aos usuários um riquíssimo ambiente de

comunidades, a mais importante biblioteca digital (Google print) do momento, e um serviço

253

de e-mail grátis(Gmail) com capacidade ilimitada. O Orkut é o mais movimentado site

(pertence a Google) de relacionamentos do mundo, com milhões de usuários em todo o

planeta. A Wikipédia é uma enciclopédia digital, para qual todo o usuário pode contribuir

com verbetes. Ela possui interfaces em dezenas de idiomas, e o sistema de legitimação dos

verbetes publicados é feito pelos próprios usuários que podem criticar e apresentar

inconsistências, promovendo desta maneira a depuração das informações incorretas.

No caso do Google o modelo de negócios é bancado pelos links patrocinados, que

importante destacar, são discretos e aparecem ao lado superior direito da tela, não

interferindo no conteúdo das buscas; todo o serviço é gratuito para os usuários. A

Wikipédia se financia com doações. Outro exemplo de influência da cultura hacker em

negócios digitais é o browser Netescape, e o processador de textos Adobe Acrobat Reader,

distribuídos gratuitamente por suas respectivas proprietárias. Neste caso, os lucros são

garantidos com outros produtos relacionados a eles e com a prestação de serviços.

Aliás, prestar serviços tem sido a forma mais eficaz encontrada pelos adeptos da

cultura hacker para sobreviverem no cenário competitivo da indústria de TI. O sistema

operacional LINUX, utilizado por muitas empresas e governos, transformou-se em uma

importante fonte de receita para estes tecnólogos, que desenvolvem aplicativos e dão

manutenção aos seus usuários. Outra fórmula tem sido a criação de softwares que rodam

neste sistema operacional e são distribuídos gratuitamente pela rede com seus códigos

fontes abertos. Muitas empresas que se interessam pelo software podem contratar seus

criadores para desenvolverem novas funcionalidades ou customizarem o software original

às necessidades da empresa.

254

Do outro lado toda uma cultura do licenciamento e da cobrança de royalties

prevaleceu. A grande maioria das empresas de tecnologia se abriga debaixo da proteção

formal do modelo de propriedade intelectual, travando uma luta feroz contra a pirataria. A

medida em que os países ingressam nos fóruns internacionais como OMC (Organização

Mundial do Comércio) e OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) suas

legislações e sistemas coercitivos ingressam nessa mesma luta. Os resultados, entretanto,

como mostram os números crescentes da pirataria de softwares, parecem desanimadores. O

que poderia representar um sintoma de que o modelo de negócios mais flexível, baseado

nos preceitos da cultura hacker, se encontra melhor acolhido neste novo ambiente. E cso

essa hipótese seja verdadeira, devemos questionar até mesmo a propriedade intelectual não

só de softwares, mas de outros produtos como livros, CDs e imagens.

Dos modelos de grupos culturais identificados por Raymond Williams, acreditamos

que aquele que melhor define os hackers é o terceiro (iii): sem estrutura formal, com

identificação grupal e associações esporádicas para o cumprimento de determinadas tarefas

comuns. Quanto aos fatores sociais que levam estes grupos a se formarem, creio que os

itens (v) e (vi) da descrição de Williams podem auxiliar na compreensão da cultura hacker,

assim, respectivamente, teríamos um apego às questões relacionadas à democratização da

ordem social, representado neste caso pe lo livre acesso aos benefícios da ordem tecnológica

e uma oposição aos modelos capitalistas predominantes, no qual a lógica da propriedade

intelectual é parte integrante e continuada.

Como vimos, entretanto, esta definição se aplica de maneira uniforme aos hackers

independentes, às tecnoelites, aos membros das comunidades virtuais e aos empresários,

255

existindo entre estes últimos uma divisão entre aqueles adeptos de uma adesão maior a esta

cultura e outros que a refutam.

Como exemplo da influência desta cultura hacker baseada na liberdade de

circulação dos códigos fontes e dos conteúdos pela Internet, podemos citar dois grandes

movimentos que se desenvolvem hoje no seio da Internet, mas que também se manifestam

fora deste ambiente, trata-se do movimento do copyleft e do movimento das creatives

commons ambos descritos por nós no capítulo III desta dissertação. Sobre estes

movimentos, o que faltou acrescentar no capítulo III é que o copyleft foi forjado no seio da

cultura hacker, como uma modalidade de licenc iamento para softwares. As licenças

creatives commons são herdeiras diretas do copyleft e buscam expandir o conceito de

software livre para os conteúdos da indústria cultural.

4. Críticas ao conceito de sociedade da informação.

O conceito de sociedade da informação recebeu duras críticas por parte daqueles

que não acreditam estarmos vivendo uma transformação que indique a superação de uma

sociedade industrial por uma sociedade pós- industrial. Seus algozes argumentam que os

principais fatores originados pela sociedade industrial permanecem operantes e que alguns

deles são inclusive reforçados pelo desenvolvimento tecnológico. Segundo Kumar:

Não há dúvida quanto à importância da nova tecnologia de informação em grandes

áreas da vida social e econômica. Mas isso não implica o estabelecimento de um novo

princípio de sociedade ou o advento de uma “terceira onda” de evolução social. Na maioria

das áreas, a tecnologia de informação acelerou processos iniciados há algum tempo antes,

256

facilitou a implementação de certas estratégias de administração de empresas, mudou a

natureza do trabalho no caso de numerosas profissões e apressou certas tendências de lazer

e consumo. Mas não produziu mudança radical na maneira como as sociedades industriais

são organizadas ou na direção em que evoluem. (Kumar, 1997: 164)

A revolução industrial acelerou de maneira significativa o fluxo de produção de

mercadoria. Esta aceleração possibilitou que os produtos fossem reproduzidos em larga

escala e a preços muito inferiores aos praticados pela produção artesanal. Em decorrência

deste fenômeno, ou paralelamente a ele temos o desenvolvimento de uma sociedade de

consumo urbana, o inchaço das cidades e o crescente esvaziamento do campo, que

tardiamente adotará técnicas de produção industriais. Duas conseqüências fundamentais

decorrem da revolução industrial: Primeiro, a aceleração da produção cria uma crise de

qualidade, que exige a criação de mecanismos de controle. Segundo, a eficiência do

controle dependerá do fracionamento das etapas de produção, a especialização.

O taylorismo como paradigma de produção industrial observará estas duas

conseqüências e a elas responderá com uma metodologia de produção baseada na divisão e

especialização do processo produtivo, como formas de assegurar o controle de qualidade e

a eficácia do trabalho. Quando as propostas de Taylor são colocadas em prática pelas

indústrias norte-americanas, a produtividade dá saltos fenomenais, com igual ganho na

qualidade dos produtos. Os críticos da sociedade da informação afirmam que a ascensão do

setor de serviços não significou o fim do taylorismo, mas sim uma intensificação sem

precedentes da divisão e especialização do trabalho. Como exemplo citam as empresas de

call centers e os profissionais de TI, cada vez mais especializados em uma linguagem e

atuando em um compartimento do processo. Quanto às empresas que operam callcenters é

257

importante ressaltar se tratar de um dos segmentos da economia que mais crescem, porém,

com um índice gigantesco de rotatividade de mão-de-obra e de precarização das condições

de trabalho.

A automação e digitalização das tarefas permitiram que o controle sobre os

funcionários aumentasse significativamente, o que seria mais uma prova da intensificação

das características do industrialismo e não sua superação por uma sociedade da informação:

A sociedade de informação não é produto de mudanças recentes(...)mas, sim, de

aumentos na velocidade de processamento material e dos fluxos através da economia

material que se iniciaram há mais de um século. Da mesma forma, o microprocessamento e

a tecnologia da computação, ao contrário da opinião ora em moda, não representam uma

nova força desencadeada apenas há pouco tempo sobre uma sociedade desesperada, mas

tão-somente a etapa mais recente do desenvolvimento contínuo da revolução de controle.”

(Beniger, 1985: 435 apud Kumar, 1997:30-31)

Um dos fortes argumentos dos adeptos da sociedade de informação é o de que a

mão-de-obra tem se qualificado de forma diferente nas últimas décadas, com ênfase na

aquisição de conhecimentos, em uma escolarização mais prolongada. São os trabalhadores

do conhecimento, profissionais que se dedicam cada vez mais às tarefas intelectuais.

Entretanto , como aponta Kumar, a maioria dos postos de trabalho criados nos últimos 20

anos, referindo-se às décadas de 1970 e 1980, encontram-se nos níveis mais baixos da

economia de serviços, onde o grau de habilidades e o conhecimento não são altos. Muitos

dos estudiosos das condições de trabalho têm demonstrado que os reflexos das recentes

mudanças ocorridas na economia capitalista apontam para uma precarização das condições

258

de trabalho, com um enriquecimento horizontal dos cargos 103, na maioria das vezes, não

acompanhado de aumento de salário e benefícios.

A tecnologia de informação tornou possível que uma série de tarefas burocráticas,

outrora realizadas por muitas pessoas, pudessem concentrar-se. Por exemplo, muitas

instituições de ensino delegam aos professores a tarefa de lançar em seus sistemas às faltas

dos alunos e suas respectivas notas. No passado este controle burocrático exigia a presença

de apontadores que recebiam os boletins dos professores e procediam o lançamento de

notas e faltas. Ora, este tipo de mudança vem ocorrendo em todos os segmentos com

intensidades e velocidades distintas.

Mas dentre as questões relacionadas ao mundo do trabalho e do conhecimento, a

que chama mais atenção é a introdução da “gestão do conhecimento” como uma das

matrizes estratégicas das atuais empresas capitalistas. Este modelo de administração

pressupõe que as empresas na sociedade de informação converteram-se em empresas do

conhecimento, ou seja, por toda empresa circula uma quantidade imensa de informações e

conhecimentos, que são mobilizados para a execução das tarefas cotidianas e, para

alimentar as ações da empresa em relação à sua cadeia de valores (composta por clientes,

fornecedores, etc). Estes conhecimentos irrigam as áreas estratégicas e ao menos

municiaram as ações estratégicas da empresa em relação a seus concorrentes e ao meio-

ambiente hostil.

Algumas premissas são fundamentais para entender a “gestão do conhecimento”:

primeiro, que nos encontramos em um cenário extremamente volátil e instável, que

exigindo das empresas constante monitoramento e respostas imediatas e a altura; segundo, 103 Enriquecer horizontalmente significa aumentar as tarefas e funções a que um cargo deve se dedicar, sem que estas mudanças afetem a posição do cargo dentro da hierarquia funcional.

259

que nas organizações contemporâneas grande parte do conhecimento que importa está

guardado na mente dos empregados (colaboradores). Este conhecimento implícito que cada

trabalhador carrega consigo e desenvolve no decorres dos anos de trabalho é o que pode

fazer a diferença neste cenário instável. Para que a empresa seja inovadora e competitiva é

preciso fazer com que o conhecimento circule, ele não pode ficar retido nos bancos de

dados vivos que cada trabalhador representa. A empresa precisa penetrar nestes bancos de

dados a fim de tornar público aquilo que se encontra escondido. Mas como fazer o

conhecimento circular em toda a organização?

As ações adotadas combinam a introdução de uma infra-estrutura tecnológica

formada por softwares e redes de computadores aptos a capturar o conhecimento, indexá-lo

e armazená- lo, bem como em trabalhá- lo para que se torne comunicável (multiplicável),

com incentivos aos trabalhadores que colaboram. Este incentivos variam, podem ser

financeiros e de reconhecimento público. Algumas empresas publicam em livros as

principais contribuições, compondo uma biblioteca da empresa, outras oferecem benefícios

como o financiamento de cursos de pós-graduação e extensão para aqueles engajados no

processo de gestão do conhecimento.

Os benefícios que as empresas esperam conseguir com estas ações são variados, o

primeiro deles é o de reter em seus bancos de dados informações e conhecimentos valiosos

que os trabalhadores carregam com eles quando deixam a empresa. Também é possível

reduzir o tempo de aprendizagem dos recém-contratados, pois muitos conhecimentos que

eles demorariam anos para adquirir já estão disponíveis e formatados para imediata

absorção no processo de indução. Do ponto de vista estratégico, a empresa pode tornar-se

260

mais competitiva e inovadora usando as informações e conhecimentos no desenvolvimento

de produtos e serviços, bem como bloqueando ações dos concorrentes.

O que os parágrafos acima descrevem é uma modalidade aprofundada de exploração

do trabalho por parte do capital, na qual até mesmo o diferencial individual de cada

trabalhador encontra-se à disposição da empresa. Os críticos da sociedade de informação,

poderão dizer a este respeito que nos encontramos no grau mais radicalizado do taylorismo,

já os defensores da sociedade da informação alegam se tratar de uma nova modalidade de

trabalho, no qual os trabalhadores mais valiosos são reconhecidos e recompensados por

suas contribuições à inovação. Outra dura crítica à sociedade da informação vem do

aumento da exclusão que sua rápida emergência tem promovido em todo mundo, deste

assunto trataremos em tópico específico.

5. Sociedade da informação e exclusão digital.

A escrita foi inventada pelo homem há mais de cinco mil anos na Mesopotâmia, seu

desenvolvimento e expansão foi desigual e, por vezes interrompido, mesmo na longa

história dos sumérios (cerca de três milênios), da qual chegaram até nós mais de meio

milhão de documentos em escrita pictórica e cuneiforme. A escrita não se espalhou de

forma uniforme e universal. Como tecnologia a escrita influenciou os diversos povos da

África, Ásia e Europa que mantiveram contatos diretos e indiretos com a região

mesopotâmia. Entretanto, durante toda a Antiguidade e por toda a Idade Média ela

261

permaneceu um privilégio de poucos em meio a um mundo de fluxos orais. Apenas após o

desenvolvimento da imprensa de tipos móveis e de sua longa implantação na Europa (entre

os séculos XV e XIX) é que o letramento tornou-se uma realidade para significativas

parcelas da população. Logo, esta tecnologia da inteligência demorou milhares de anos para

universalizar-se e, podemos dizer que em diversos lugares do mundo ainda continua sendo

privilégio de parte da população.104

A ascensão do pólo informático-midiático 105, assim como muito provavelmente a

ascensão do impresso, excluiu parcelas imensas da população do acesso ao conhecimento e

à informação. Num cenário de cultura predominantemente oral, a exclusão da escrita não

representava um grande empecilho, pois a rígida estrutura social e a permanência de um

tempo circular permitiam aquele que não soubesse ler, um lugar dentro da estrutura. Desta

maneira não saber ler, por exemplo, no império romano, não era necessariamente uma

condição de banimento sócio-cultural. O mesmo não se pode afirmar do fenômeno ocorrido

com a ascensão do impresso. No caso do dissenso cristão promovido por Lutero, por

exemplo, a leitura viria a ser um importante fator de inclusão à nova religião.

Porém, o processo de expansão do letramento e sua influência sobre o trabalho e as

relações sociais avançou lentamente durante mais de quatro séculos. A emergência do pólo

informático-midiático tem demonstrado um poder de penetração nas diversas esferas da

vida mais acelerado e intrusivo. Em um cenário globalizado, é possível encontrar o

computador nas mais variadas tarefas: do chão da fábrica aos escritórios de direção. A

104 Os números do analfabetismo funcional encontrado entre os jovens estudantes brasileiros indicam que parcelas significativas das crianças permanecem excluídas do mundo da escrita. 105 Segundo Pierre Levy podemos dividir as tecnologias intelectuais em três grandes pólos históricos: o da oralidade primária, o da escrita e o informático midiático. Estes pólos não são excludentes, mas cada um deles liderou a dinâmica da transmissão e circulação do conhecimento em uma determinada época histórica. (Lévy, 1999)

262

sociedade centrada no lar opera com dispositivos informático-midiáticos. Nas escolas

particulares de ensino médio e fundamental a disciplina informática é ensinada desde as

primeiras séries, tendo as crianças acesso aos novos dispositivos na escola e em suas casas.

Mesmo destino não se encontra reservado às camadas mais pobres da população,

que não por acaso, são aquelas em que o analfabetismo funciona l é o mais elevado. Assim,

para muitos, senão para a maioria, a vida está restrita à logosfera, pois ainda distantes da

grafosfera, deparam-se com a ascensão de um novo continente informacional, que se

sobrepõe ao anterior exigindo a seus possíveis habitantes novas habilidades e recursos.

A tabela que segue mostra como o acesso à Internet distribui-se pelo mundo. Trata-

se de um ranking obtido por pesquisa realizada pela consultoria comScore Networks106 e

refere-se ao mês de março de 2006, quando no mundo, cerca de 694 milhões de pessoas

com mais de quinze anos possuíam acesso à Internet. O número representa cerca de 14% da

população do mundo acima de 15 anos de idade ou pouco mais de 10% da população total

do planeta.

Usuários População País milhões milhões

Usuários/ percapita

EUA 152,04 295,7 1,9 China 74,7 1.306,3 17,5 Japão 52,1 127,4 2,4 Alemanha 31,8 82,4 2,6 Grã-Bretanha

30,1 60,4 2,0

Coréia do Sul

24,6 48,6 2,0

França 23,8 60,7 2,6 Canadá 18,9 32,8 1,7 Itália 16,8 58,1 3,5 Índia 16,7 1.080,2 64,7

106 Dados acessados em 06/05/06 às 15:03 horas, no Jornal O Globo on-line.

263

Brasil 14,1 186,1 13,2

Tabela 22: Relação habitantes/usuários Internet – 10 países

A tabela revela a relação entre o número de habitantes e o número de pessoas com

acesso à Internet nos 10 países com maior número absoluto de usuários. A proporção

encontrada revela também o esforço de inclusão que deverá ser levado a cabo em cada um

desses países. Um ranking pelo número de usuários coloca a China em segundo lugar,

porém quando usamos para classificar a posição o critério de usuários percapita, a China

passa da segunda posição para a penúltima. Esta inversão pouco beneficia o Brasil que sai

de penúltimo para antepenúltimo. Estamos naquele segmento de países em que menos de

10% da população possui acesso freqüente à Internet. Tão importante quanto saber quantos

incluídos um país possui, é saber também qual o perfil de classes deste público. Para tanto

utilizamos os dados da 12° pesquisa POP/Ibope107 de janeiro de 2003, revelavam que 87%

dos usuários da Internet brasileira pertenciam às classes A e B, 12% à classe C e apenas 1%

pertenciam às classes D e E. Dados do mesmo levantamento indicavam que na classe A

cerca de 81% possuíam computador com acesso à Internet em casa, enquanto nas classes D

e E apenas 1% possuíam o mesmo serviço.

Na geografia da Internet o centro confunde-se com o centro político econômico do

mundo capitalista. As principais cidades do mundo são as que contam com maior

acessibilidade à infra-estrutura de redes necessária para o livre acesso. Nos países

periféricos como o Brasil, centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e as

demais principais regiões metropolitanas do Sul e Sudeste apresentam as maiores taxas de

acesso. Nestas regiões o preço de acesso para o usuário é menos proibitivo, já que a infra- 107 Dados obtidos em acesso ao jornal Folha de São Paulo, edição on-line, acessada no dia 14/05/2006 às 19:02 no seguinte endereço eletrônico: http://noticias.uol.com.br/mundodigital/ultimas/ult1345u19.jhtm

264

estrutura de cabos e a rede telefônica possuem condições de receber grandes contingentes

de usuários. Na maioria das cidades do interior e na zona rural o acesso é mais caro, e por

vezes proibitivo, quando feito através do telefone, representa uma ligação interurbana ao

provedor mais próximo, quando feita por satélites é ainda mais cara. Nos grandes centros

metropolitanos também se impõe a geografia do capital, a periferia e as favelas, em geral,

não têm como acessar a Internet em suas modalidades mais eficazes como a banda larga, e

isso se dá, porque o desinteresse econômico não levou o cabo até estas regiões.

É importante deixar claro que não se trata de uma lógica deliberada de exclusão do

negócio informacional, o potente crescimento da Internet e do número de usuário s de

computadores pessoais se deve ao constante barateamento dos preços praticados pelos

fabricantes. O rápido esgotamento dos mercados das classes A e B, que se avizinha,

certamente obrigará as empresas a buscarem outros públicos, limitados, entretanto, por suas

condições econômicas. Deste modo as leis do empreendimento capitalista se aplicam

totalmente a este novo espaço, impedindo que as utopias informacionais da democracia

digital ou da redenção pelo conhecimento estejam longe de se realizar. Ou posto de outro

modo, ainda mais distantes que dantes, já que ao portfólio da desigualdade este é mais um

elemento a compor o álbum da exclusão.

Várias medidas visando a inclusão digital vêm sendo tomadas por empresas,

organizações do terceiro setor e pelas diversas esferas do poder público. Muitas delas

apresentam importantes resultados, como as ações do CDI (Centro de Democratização da

Informática) que já introduziu mais de um milhão de jovens carentes às linguagens do

mundo da informação. Telecentros, computadores em escolas públicas e associações de

moradores também contribuem para amenizar este cenário. O que não nos permite ficar

265

otimistas é a continuidade destes processos. Dentre os jovens incluídos pelo CDI, por

exemplo, quantos passaram a ter acesso perma nente à Internet?

No Brasil é cobrado um imposto de 1% sobre todas as ligações telefônicas que se

destina ao Fundo de Universalização das Telecomunicações (FUST), que deveria financiar

a instalação de computadores em escolas públicas e comunidades carentes. Nos seus cinco

anos de existência o fundo arrecadou mais de 10 bilhões de reais, a maior parte deste

dinheiro foi utilizado por outras áreas do governo. Quando foi utilizado para a inclusão

digital, o projeto parece ter fracassado. No governo Fernando Henrique Cardoso foi

concebido um ambicioso projeto batizado de Governo eletrônico – Serviço de Atendimento

ao Cidadão (GESAC), que visava criar 56.550 postos de atendimento ao cidadão com

acesso à Internet. O programa foi implementado pelo governo Lula, consumiu mais de R$

45 milhões em verbas e parece não ter atingido os resultados desejados Auditoria realizada

pela Controladoria Geral da República constatou que entre os anos de 2003 e 2004 foram

instalados 3.200 centros, os auditores visitaram 120 destas unidades por sorteio e em seu

relatório afirmaram o seguinte:

• Apenas 4% das instituições visitadas apresentavam condições de acesso à

Internet;

• Em 14% das instituições visitadas o acesso é feito apenas por um terminal;

• Muitos computadores apresentavam restrições de software e hardware

• Detectou-se a inexistência de manutenção e a inoperância de parte do

equipamento.

266

• Também se verificou que em muitos casos o acesso aos computadores era

permitido a poucos, como por exemplo, em escolas apenas o corpo diretor e

alguns professores possuíam autorização de utilizar os equipamentos. Estas

restrições também foram observadas em quartéis. 108

Nos restringimos a discutir as questões relacionadas à exclusão digital apenas do

ponto de vista do acesso aos computadores e da conexão destes à Internet, não obstante,

sabemos que esta é apenas a primeira parte de uma longa jornada rumo à inclusão que passa

pelo adequado treinamento dos usuários. Não basta conceder ao usuário o acesso, é

necessário fornecer a ele as ferramentas necessárias para utilizar este novo universo de

conhecimentos de forma “adequada”.

Os relatórios sobre o uso da Internet apontam que as pessoas gastam a maior parte

do tempo navegando nos seguintes segmentos de sites:

EUA Espanha Brasil e-mail e-mail comunidades virtuais games fabricantes de softwares e-mails

interesses gerais ferramentas de busca interesses gerais Leilões interesses gerais bancos

ferramentas de busca comunidades ferrramentas de busca

Tabela 23: Web Brasil, estudo trimestral do Ibope/ NetRatings.

As categorias ferramentas de busca e interesses gerais apresentadas nesta pesquisa

indicam que muitos utilizam a Internet a fim de encontrar informações para pesquisas

escolares, de trabalho ou para adquirir algum conhecimento. Boa parte do tempo é gasto na

busca e seleção de informações, tarefa para a qual os mineradores de dados tem contribuído

cada vez mais com extrema eficácia. Porém não se pode dizer o mesmo da fidedignidade

108 (Informações acessadas no blog do jornalista Josias de Souza, no Jornal Folha de São Paulo edição on-line, acessado em 12/05/2006 às 14:00 h, no seguinte endereço eletrônico).

267

daquilo que se encontra. Como assegurar que uma informação é verdadeira, ou que o texto

encontrado foi escrito por um profissional legítimo em seu campo de atuação? Como

assegurar que mesmo tendo sido a informação publicada por um membro legítimo do

campo, esta não foi adulterada ou corrompida por outros usuários? A resposta é que a

certificação pode se dar de duas maneiras: no primeiro caso, o próprio site acessado, para

manter sua reputação e por estar vinculado a alguma instituição do mundo “analógico”

(como um jornal, revista, ou associação de classe) preocupa-se em manter as informações

protegidas. A segunda possibilidade de certificação da informação se dá pelo próprio

usuário que deverá, a partir de seu próprio repertório, julgar a fidedignidade da informação.

Para se valer desta segunda característica é preciso possuir conhecimentos prévios, a fim de

colher bons frutos em uma navegação. É exatamente esta característica que está ausente na

maioria dos neófitos usuários da rede.

Qualquer professor em nossos dias conhece o drama que é corrigir trabalhos em que

a maior parte do texto é uma cópia da Internet, sem referências ou qualquer relação de

crítica e reflexão. As teclas “Ctrl C” e “Ctrl V” dos computadores transformaram-se nos

maiores escritores de trabalhos escolares de todos os tempos. Para usar adequadamente a

Internet é necessário aprender a aprender, algo que aparentemente encontra-se distante da

maioria das iniciativas de inclusão digital.

268

6. O livro na sociedade da informação.

Se as mudanças apontadas nos tópicos anteriores possuem a intensidade e a

penetrabilidade suficientes para indicar a passagem de uma sociedade industrial para uma

sociedade da informação, talvez seja prematuro afirmar. O que vimos é que no campo

político e econômico as transformações apontam para uma intensificação do modelo

capitalista industrial, com a precariedade do trabalho e a intensificação da exploração.

Outra característica é a penetração desta exploração, ou do mundo da mercadoria, em

espaços que antes pertenciam ao trabalhador, como a memória cognitiva e o conhecimento

implícito. Este fato, entretanto, nos obriga a reconhecer a principal tese de Castells, que

coloca o conhecimento como principal insumo da atual sociedade.

Nos campos da cultura é possível identificar um conjunto de fatores que vêm

transformando a comunicação, a forma de as pessoas se relacionarem e a maneira como

estas adquirem conhecimentos e informações. As mudanças neste último quesito afetam

diretamente o mundo do livro em seus principais pilares de sustentação. Senão vejamos:

• A emergência da cultura hacker e sua influência no mundo da propriedade

intelectual tenciona o modelo dos direitos autorais, que viveu relativa estabilidade

nos últimos dois séculos.

• Um dos fatores importantes do campo editorial é sua estrutura de legitimação, na

qual o livro impresso é a tradução acabada de um ciclo de aceitação pelo qual passa

o texto e seu autor. O investimento necessário para converter um texto em livro e

sua respectiva distribuição, exposição e circulação são consideráveis, e de um modo

269

geral representam o primeiro certificado de autenticidade e validade daquele

conhecimento. Posteriormente outros certificados podem ser conferidos por

jornalistas, comentadores, grupos acadêmicos, etc. A emergência do digital torna

este investimento desnecessário, já que o livro pode ser publicado pelo próprio autor

diretamente na Internet, com custos muito baixos. Mas aquilo que se ganha em

velocidade de publicação e acessibilidade talvez se perca em legitimidade. Esta é

uma importante questão a ser investigada.

• O crescimento da escolaridade no ensino médio e superior não representaram um

aumento no consumo de livros escolares e acadêmicos. Isso se deve principalmente

ao uso da Internet como ferramenta de pesquisa, substituindo os livros de referência

e boa parte dos livros textos utilizados em pesquisas acadêmicas.

• A utilização de mineradores de dados (agentes de busca) dotados de inteligência

artificial - para prospectar idéias armazenadas na Internet, relacionando-as ao

acervo de idéias pessoais que coligimos durante um longo tempo e que se

encontram no banco de dados de nossos computadores pessoais – funciona como

uma extensão de nosso modelo cognitivo, permitindo que a inteligência artificial e o

banco de dados eletrônico participem de nosso processo de criação.

• As mudanças introduzidas pelo uso do processador de texto como o aumento da

velocidade com que escrevemos, a despreocupação com o erro, a possibilidade de

gerar infinitas versões e cópias permitiu que o processo de criação se transformasse.

Antes, para escrever um texto, em geral tínhamos a quase obrigação de pensá-lo

antes de colocá-lo no papel. Hoje colocamos “no papel” (na tela) e pensamos ao

mesmo tempo, dadas as facilidades dos mecanismos digitais. Um efeito lateral deste

270

novo procedimento de criação é mais um passo rumo a perda da aura do impresso

em geral e do livro impresso em particular.

• O conceito de plágio inerente ao processo de criação e fortemente evocado para a

constituição do direito de autor pede força com a emergência ou o retorno da idéia

de conhecimento coletivo, ou inteligência coletiva, com a valorização da mensagem

e a desvalorização ou desconsideração da fonte.

• A convergência das diversas tecnologias da informação em artefatos únicos,

apontada por Carlota Perez Cristopher Freeman e Giovanni Dosi parece consolidar-

se nos celulares de terceira geração que são computadores de mão, telefones,

máquinas fotográficas, gravadores, tocadores de música e exibidores de imagens,

bem como terminais de e-mail, e conferências on- line. Esta tendência aponta para a

introdução nestes aparelhos dos recursos de e-readers, que os transformaria em

leitores dedicados de livros eletrônicos.

• A tendência cada vez mais marcante para a digitalização de conteúdos concede a

estes a possibilidade de serem acessados nos mais variados dispositivos de

leitura.109

• A tecnologia do hipertexto reproduz tecnologicamente no mundo dos artefatos, a

mesma estrutura cognitiva mobilizada por nós na leitura e criação de textos. Esta

homologia entre pensamento e artefato pode modificar nossa forma de ler e

escrever, assim como a possibilidade de armazenar e recuperar informações no

papel, modificou a forma de o homem relacionar-se com o conhecimento e a

109 Este assunto será retomado no capítulo sete no tópico específico sobre desmaterialização de conteúdos.

271

memória, permitindo, por exemplo, o conhecimento descontínuo, fragmentado,

modular.

Este conjunto de aspectos pode ser notado no atual consumo de conhecimento com

implicações diretas no campo editorial. Dois outros fatores poderiam ser citados como

relevantes, o comércio eletrônico de livros impressos e o comércio eletrônico de conteúdos

digitalizados. No capítulo seis nos deteremos na análise das implicações, para o varejo do

livro, da emergência da sociedade de informação e do crescimento da indústria cultural. E

no capítulo sete abordaremos as questões relacionadas à circulação do conteúdo

digitalizado.

272

VI – O varejo do livro no Brasil

1. Uma livraria da década de 1980.

Na década de 80, as livrarias brasileiras encontravam-se divididas em duas

categorias: do ponto de vista da organização estrutural do negócio, eram independentes e de

rede110, e do ponto de vista da segmentação, eram gerais, especializadas, religiosas e

estrangeiras. Quanto à localização, a imensa maioria se encontrava nos principais

corredores (ruas) de comércio das grandes cidades, e na região central das cidades de médio

porte. Algumas, bem poucas, se encontravam em centros comerciais, chamados galerias, e

outras dominavam os principais aeroportos do país. Muitas das livrarias apresentavam uma

peculiaridade quanto à forma de expôr os livros. Em muitas delas o acervo ficava detrás do

balcão, obrigando o cliente a solicitar o livro a um funcionário que o buscava no estoque.

Este modelo de livraria obedecia à lógica de vendas de papelaria, apesar de muitas destas

empresas terem no livro sua principal fonte de receitas.

A presença nos corredores de comércio também era um fator importante. Em São

Paulo, corredores como as ruas Teodoro Sampaio em Pinheiros, Domingos de Morais na

Vila Mariana, Barão de Itapetininga e Augusta na região central da cidade, apresentavam

um bom número de lojas. O mesmo fenômeno podia ser verificado no Rio de Janeiro, Belo

Horizonte, Porto Alegre e nas principais cidades brasileiras em que existiam livrarias. Na

década de 80 também era possível encontrar uma série de redes de livrarias ligadas a

110 Consideramos livrarias independentes aquelas concentradas em no máximo dois pontos de vendas e, redes, grupo de três ou mais pontos de vendas de uma mesma livraria.

273

editoras de livros, a Brasiliense possuía na cidade de São Paulo quatro lojas, mais uma série

de pontos de vendas dentro da Universidade de São Paulo. A Ediouro possuía uma rede de

lojas no Rio e em São Paulo, a editora Ibrasa possuía a rede de lojas Ibrex com pontos nas

principais ruas de comércio da capital paulista. Editoras católicas como Vozes, Paulinas,

Santuário, Loyola e Paulus também possuíam suas cadeias de livrarias, muitas delas

comercializando um mix de livros e produtos religiosos, a Martins Fontes também possuía

lojas em São Paulo, bem como a editora Melhoramentos. Neste período as principais redes

de livrarias brasileiras, a saber, Saraiva e Siciliano, concentravam suas atividades em lojas

de rua. Podemos ainda citar redes como a Gnhoni e livrarias Curitiba no Paraná, Sodiler e

Lasselva dividindo os aeroportos, Dazibao, Sodiler, Ciência Moderna, Unilivro e

Studiolivro no Rio de Janeiro. Em Porto Alegre destacam-se as livrarias do Globo em Santa

Catarina as redes de livrarias alemãs possuíam lojas em Blumenau e Florianópolis.

Informações sobre a década de 70 compiladas por Hallewell nos dão uma visão

geral do cenário imediatamente anterior ao da década de 80:

Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 1972,

56,1% dos 3.012 varejistas que trabalham com livros no Brasil encontravam-se no Rio

Grande do Sul e São Paulo.(...) Area Handbook for Brazil, do exército dos Estados Unidos,

citando um articulista da Manchete, afirmou haver 1.000 livrarias (excluídas outras lojas

que também vendem livros) em todo o país em 1969: 200 na cidade de São Paulo, 100 na

cidade do Rio de Janeiro, 100 em Porto Alegre, 20 em Recife e 5 em Brasília.

Levantamento feito pelo GEIL, com uma definição ainda mais estrita de “livraria”, surgiu

dois anos mais tarde com números totalmente diferentes, mas com distribuição bastante

semelhante: 72 livrarias em todo o Brasil, das quais 22 na cidade de São Paulo, outras 22 no

Rio, 11 em Porto Alegre, 5 em Curitiba, 4 em Belho Horizonte, 3 em Recife, 3 em Salvador

274

e 2 em Brasília.(...) Para fins de comparação, a Espanha (com uma população de 30

milhões) tinha em 1967, 4171 livrarias e 3.943 papelarias que também vendiam livros.

Paris, no fim da década de 70, possuía 2.000 livrarias; a Cidade do Méxic o e Buenos Aires

tinham, cada uma, 500 livrarias. ( Hallewell, 1982:517)

O autor ainda menciona um relatório do SNEL (Sindicato Nacional de Editores) de

1972111, que afirmava existirem 600 livrarias em todo o Brasil. Em 1981, o SNEL lançou a

publicação “Guia das Livrarias” e pontos de venda de livros no Brasil, que listava 1.147

pontos de vendas. No início da década de 80 do século XX, publicações como Isto é a

Publishers Weekly informavam que o Brasil possuía pouco mais de 400 livrarias.112

As diversas fontes primárias de Hallewell, embora divergissem em seus critérios de

classificação, eram unânimes em apontar um declínio permanente da atividade livreira em

todo o país. A justificativa era a baixa rentabilidade do negócio, em face ao aumento

crescente dos aluguéis de lojas nas regiões centrais das cidades. Na década de oitenta é este

o cenário das livrarias brasileiras: a maioria se encontra nos centros de médias e grandes

cidades, seus espaços internos já não são grandes o suficiente para comportar os crescentes

lançamentos da indústria. Em média uma livraria de rua comportava a exposição de 10.000

títulos, podendo manter um estoque com mais 50% deste número em outros títulos e mais

exemplares dos títulos expostos. Este número chegava a aproximadamente 15% do total de

livros ativos nos catálogos das editoras excetuando-se os didáticos.113

Parte destas lojas pertencia a redes locais, que possuíam entre três e 15 lojas, com

um layout padrão paras as diversas regiões da cidade onde atuavam e um tratamento ao

111 Laurence HALLEWELL, “O livro no Brasil”, p.518 112 Ibid. 519 113 Estas informações foram obtidas junto a entrevistas de livreiros para as revistas Editor, Livro Aberto e Anuário Editorial Brasileiro nos anos de 1997, 1998, 1999.

275

consumidor também estandardizado. Do ponto de vista do atendimento pecavam de forma

insistente, pois seus pequenos estoques as impediam de responder as demandas de leitores

que buscavam obras mais específicas, segmentadas. Atendiam apenas aos “leitores

médios”114, consumidor de bestsellers ou de livros escolares. Este modelo também era

praticado por muitas das livrarias isoladas, cuja localização era o único trunfo comercial.

Em marketing existe a teoria dos quatro Ps, que representam Praça (localização do

negócio), Produto (aquilo que é oferecido ao cliente), Promoção (a forma de tornar

conhecida e mais atrativa a oferta) e Preço. Podemos afirmar que estas livrarias padrão e

que compunham a maioria na década de oitenta basearam sua estratégia na força de apenas

um dos Ps do composto de marketing, a saber, a Praça. Para entender melhor a situação das

livrarias no final da década de 1990, transcreveremos um trecho de entrevista realizada por

nós com Jack London em 1997. Nesta época, o livreiro London estava à frente da BookNet,

primeria livraria virtual brasileira e que foi posteriormente adquirida pelo Submarino.

London é um grande conhecedor do mercado livreiro brasileiro e atualmente inaugurou na

cidade do Rio de Janeiro o Armazém Digital, uma livraria dentro da qual funciona um

cinema de arte e uma gráfica digital. A entrevista foi originalmente publicada no Anuário

Editorial Brasileiro de 1998:

Anuário: Você apresentou uma possível solução para o problema editorial115. Você

vê as mega store como outro tipo de solução?

London: Eu tenho acompanhado muito isso, no Brasil e principalmente lá fora,

onde esses modelos costumam acontecer primeiro. A mega store é uma realidade que veio

114 Entendidos como uma categoria de marketing, ou seja, leitores definidos pelas estatísticas de consumo médio . 115 Referia-me ao modelo de parceria proposto por London em resposta anterior, no qual a BookNet atuaria como estoque on-line das livrarias físicas conveniadas.

276

para ficar; no entanto, eu não comungo da idéia de que a mega store vai liquidar o livreiro

tradicional. Nos EUA há três experiências em ascensão: as que crescem cada vez mais,

apesar dos problemas; as livrarias individuais, de nicho e de atendimento personalizado,

que, ao contrário do que se pensa, crescem bastante (como as livrarias universitárias, as

livrarias de bairros, as livrarias temáticas); e as vendas via Internet, que também crescem

muito. O que é que perde? As cadeias médias, ou seja, as cadeias despersonalizadas,

com lojas padrão, onde o cliente nem tem o atendimento da mega store, nem o

atendimento personalizado do livreiro.

Anuário: Dê um exemplo, no Brasil, de uma livraria padrão.

London: Aqui no Rio de Janeiro, nos últimos dois anos, vimos o fim de algumas destas

cadeias. Posso citar a Unilivros, cujas seis ou sete lojas fecharam; a Studiolivro que tinha

sete lojas, hoje também fechadas; a Curió, da Ediouro, que também está fechando. Só nesse

conjunto que citei somam-se de 15 a 20 lojas fechadas, que se enquadram exatamente

dentro desse perfil, ou seja, cadeias médias, lojas idênticas que não caracterizam sua relação

com o público. (...)

Anuário: É possível que 1/3 das livrarias brasileiras tenham este perfil?

London: É possível. Então, eu vejo hoje muitas pequenas e médias cadeias, de três a 15

lojas, com grandes dificuldades. (ANUÁRIO EDITORIAL BRASILEIRO 97/98: 117)

A entrevista de London foi concedida no final de 1997, seu diagnóstico sobre a

derrocada dos modelos de livrarias estandardizadas de rede foi bastante preciso, os dois

anos que se seguiram marcaram a morte de centenas lojas com este formato. Eduardo

Yassuda, presidente da ANL (associação Nacional de Livrarias) me concedeu uma

entrevista no final do ano 2000, publicada na revista Editor, na qual ressalta este fato:

Revista Editor: Você acha que as livrarias independentes estão ameaçadas de fechar?

277

Eduardo Yassuda: Existe a ameaça do fechamento de livrarias que, agora, não se dá mais

no plano das ameaças, pois já é um fato real. Aconteceu em 98, em 99, anos em que

tivemos dificuldades financeiras, redução nas vendas de livros, como mostram pesquisas da

Câmara Brasileira do Livro.

Revista Editor: Você tem números do que isso representou para o mercado?

Eduardo Yassuda: Sim, tenho um levantamento feito por uma distribuidora, que tem nos

cedido inclusive mailing para envio de correspondência, e no ano passado nós mandamos as

correspondências e mais de duzentos endereços voltaram. Ou seja, livrarias que fecharam e

normalmente são livrarias de rua. De 98 para 99 temos o fechamento de 4% das livrarias. O

que também ocorre é que se abrem novas livrarias, então o número se mantém mais ou

menos constante, mas não há um crescimento. (REVISTA EDITOR, vol. 3, fasc. 4,

novembro/dezembro, 2000, 14-15)

O modelo de livrarias que se desenvolvera nas três décadas anteriores viveu um

longo e agonizante ocaso durante a década de 90. Um dos principais fatores a desfechar o

golpe de misericórdia sobre este modelo foi a mudança do perfil dos consumidores do

comércio varejista de rua, iniciado na década de 1980 e que se consolidou nas principais

cidades brasileiras durante a década de 1990. Tratava-se da passagem do consumo de rua

para o consumo em Shoppings Centers. Este fenômeno acompanhou a tendência migratória

das classe médias urbanas em direção aos subúrbios e seus condomínios fechados. O

resultado deste fenômeno é que no início do século XXI mais de 400 livrarias brasileiras se

encontravam em Shoppings centers ou em centros comerciais fechados. Isto equivale

aproximadamente 1/3 das livrarias brasileiras conforme dados da ANL116, ou 60% delas,

116 O atual cadastro de livarrias da ANL registra 1325 Livrarias.

278

caso levemos em conta a visão do presidente da CBL e proprietário de uma das maiores

cadeias de livrarias do país, Osvaldo Siciliano Junior117.

É interessante notar que esta tendência não foi verificada apenas no Brasil, duas

décadas antes nos EUA um fenômeno parecido vitimou grande parte das livrarias de rua,

como nos informa Janson Epstein editor neste período:

Em Nova York e em outras cidades muitos livreiros financiavam seus estoques de

saída lenta operando em locais de sua propriedade, sem despesas de aluguel. Outros

estabeleciam-se em ruas laterais de aluguel barato e dependiam menos dos locais caros e de

grande movimento, bastando apenas avisar os clientes sobre os títulos de seu interesse por

cartões-postais ou telefonemas. Mas com os clientes partindo para os subúrbios, os

proprietários abandonaram estas lojas, a princípio em vintenas, depois em centenas.

Somente poucos reabriram nos subúrbios, onde a população era dispersa e os aluguéis dos

shoppings eram altos demais para sustentar tais negócios excêntricos e marginalmente

lucrativos com seus grandes e amiúde recônditos estoques de catálogos e suas taxas de giro

perigosamente baixas.(Epstein, 2002 100-101)

Aquilo que vitimou livreiros americanos nas décadas de 60 e 70 provocou o mesmo

no Brasil nas últimas duas décadas do século XX. São pouquíssimos os livreiros

independentes que conseguiram sair da rua e ingressar no “maravilhoso mundo novo” dos

shoppings centers”.118

Neste cenário de fechamento de livrarias e estagnação do varejo de livros, uma série

de mudanças irão se processar na segunda metade da década de 1990, alterando de forma

117 Osvaldo Siciliano afirma em artigo escrito para a comemoração do dia mundial do livro que o Brasil possui cerca de 700 livrarias. 118 Podemos citar como exemplos Pedro Herz da livraria Cultura, que abriu lojas em Shoppings em São Paulo e Recife e Jack London que abriu o Armazém Digital na cidade do Rio de Janeiro.

279

significativa os modelos de negócios outrora vigentes no varejo do livro e determinando as

tendências preponderantes nesta primeira década do século XXI. No próximo tópico

analisaremos cada um destes modelos e suas presenças relativas no campo editorial.

2. As novas livrarias.

Mega store: As livrarias mega store surgiram no cenário brasileiro na segunda

metade da década de 1990, como uma resposta do varejo editorial as mudanças pelas quais

as grandes cidades passavam. A rede de livrarias Saraiva, segunda colocada em números de

pontos de vendas naquele momento, foi quem lançou as primeiras lojas neste formato. Os

pontos comerciais escolhidos foram os Shoppings Eldorado e Ibirapuera, respectivamente

nos bairros de Pinheiros e Moema, na cidade de São Paulo. Estas lojas apresentavam uma

metragem superior a 1.500 m², eram oito vezes maiores que as lojas médias da rede. O mix

de produtos era composto de uma área destinada a CDs e VHs, uma área para software,

revistaria, café e espaço para acesso à Internet. O principal produto continuava sendo o

livro, oferecido em número de títulos de seis a oito vezes superior aos ofertados em uma

loja tradicional. Deste modo se buscava solucionar um dos maiores problemas do mercado

editorial brasileiro contemporâneo, o gargalo representado pelo varejo, que possuía espaço

em prateleiras insuficiente para expor os lançamentos juntamente com os títulos de fundo

de catálogo.

Embora o livro fosse o principal produto destas lojas, a somatória das outras ofertas

de produtos e serviços evidenciava uma mudança fundamental no varejo de livros, que é a

280

presença de outros produtos da indústria cultural na cesta de ofertas do varejo. Muitos

editores ciosos em defender a tradição do meio criticavam a presença destes outros

produtos considerando que a livraria estaria desfigurada e apontando para a ameaça de uma

total subordinação do livro a outros produtos de giro mais rápido.

Dentre os projetos das primeiras mega stores aquela que apresentou maior ousadia

foi a loja da editora Ática, inaugurada no bairro de Pinheiros e batizada de Ática Shopping.

Tratava-se de uma loja com mais de 4.000 m² de área de exposição, localizada em prédio

construído especificamente para o projeto. Assim como nas lojas da Saraiva, o Ática

Shopping oferecia um mix de produtos da indústria cultural, com destaque para um piso

inteiramente dedicado aos CDs, área na qual havia um importante espaço destinado às

músicas clássica e étnica. O projeto também se propunha como centro cultural, oferecendo

uma programação diversificada em seu auditório que oferecia programação todos os dias do

ano. O dado curioso deste projeto está não só em sua grandiosidade, mas no fato de que

imediatamente após a festa de comemoração de um ano de existência, a loja, juntamente

com duas filiais abertas, uma no Shopping Morumbi e outra no Shopping Mêtro Tatuapé,

foram vendidas para a cadeia de lojas francesa FNAC.

A mudança de proprietários alterou significativamente o projeto das lojas, que

passaram a vender também produtos eletroeletrônicos com ênfase para as áreas de som,

imagem, informática e telefonia. A FNAC reduziu o espaço de auditório da loja de

Pinheiros, fechou a loja do Shopping Tatuapé e abriu mais cinco lojas em São Paulo, Rio

de Janeiro e Campinas, parte delas lojas de rua, localizadas em endereços nobres.

A rede de livrarias Siciliano, a maior do país em número de pontos de vendas

durante a década de 1990, aderiu tardiamente ao fenômeno das mega livrarias. Seu modelo

281

mostrou-se diferenciado ao das precursoras. As lojas consideradas megas apresentavam um

espaço médio de exposição de 500 m². A maioria das lojas estavam localizadas em

shoppings centers, muitas delas substituindo antigas lojas de rua. O mix de produtos incluía

CDs e posteriormente DVDs ao tradicional composto por livros e artigos de papelaria. No

final da década de 1990 a rede Siciliano contava com 60 pontos de venda, sendo que 50%

destas lojas eram consideradas mega stores pelos gestores da empresa. Atualmente são 63

lojas, 54 delas localizadas em shoppings centers e nove em ruas de comércio. A proporção

entre lojas tradicionais e mega stores permanece a mesma, com destaque para o lançamento

de um novo tipo de loja chamada “Espaço Siciliano”, com 2.000 m² de área, que reúne

livraria, floricultura, restaurante, loja de venda de ingressos, cafeteria, e fraldário. (No caso

do “Espaço”, a Siciliano administra o conjunto dos empreendimentos que têm por âncora a

livraria, mas que na verdade é um pequeno centro de compras que explora a sinergia entre

estes negócios).

A rede de livrarias Nobel também possui dentro de seu portfólio de franquias o

conceito de lojas mega store. São lojas que possuem o espaço médio de 300 m² ( as lojas

com espaços mínimos da rede possuem cerca de 50 m²), e trabalham com um mix de

papelaria, livros, CDs, DVDs, tabacaria, revistaria e softwares. Das 138 lojas da rede de

franquiados atuais, 16 podem enquadrar-se na categoria de megas, sendo que nove estão

posicionadas em Shoppings e sete em ruas de comércio.

Existem também livreiros independentes que apostaram no modelo de mega

livrarias, produzindo espaços diferenciados, é o caso da livraria Cultura com suas lojas no

Conjunto Nacional e no Shopping Villa Lobos em São Paulo, no Rio de Janeiro as lojas da

Letras e Expressão, da Livraria da Travessa e o Armazém Digital. Em Curitiba a nova

282

livraria do Chain, também em Curitiba e em Joinvile as mega stores da rede de livrarias

Curitiba. Em Ribeirão Preto uma das lojas da rede local Paraler. Em Belo Horizonte a rede

de livrarias leitura também conta com suas mega stores. Este movimento pode ser

detectado em todas as grandes cidades brasileiras e apresenta-se de duas formas, por um

lado as grandes redes nacionais que buscam um melhor posicionamento nas cidades

abrindo uma grande livraria, por outro, livreiros locais se antecipando ao movimento das

grandes redes, ampliando suas lojas e criando uma barreira de entrada aos concorrentes de

atuação nacional.

Atualmente a livraria Saraiva cuja ação pioneira introduziu este modelo de lojas no

varejo brasileiro conta com 31 lojas, sendo que 14 destas são mega stores, das quais apenas

uma localiza-se em rua de comércio, estando as demais em shopping centers. Das 31 lojas

apenas oito encontram-se em tradicionais ruas de comércio, localizando-se as demais nos

centros de compras.

Um breve balanço do movimento desferido pela introdução do modelo de mega

livrarias apresenta os seguintes pontos:

• Hegemonia dos pontos em shopping centers;

• Espaços diferenciados de lojas, na maioria dos casos superiores a 500 m² e

muito maiores em extensão e sofisticação aos espaços das antigas livrarias

de rua.

• Ampliação do portfólio de produtos com a introdução de produtos e

serviços, na sua maioria ligados à indústria cultural e, portanto, com

pregnância em relação ao livro.

283

• Permanência do livro como principal produto do mix , tanto no quesito

espaço de exposição, quanto na presença relativa em relação ao faturamento

total da loja.

Nosso levantamento identificou 98 livrarias que se enquadram no perfil das

mega stores, sendo que 91 estão ligadas a redes de livrarias e sete pertencem a livreiros

independentes.

Livrarias Universitárias: Outro fenômeno observado na década de noventa é a

expansão e profissionalização das editoras universitárias que consigo trouxeram um

movimento de criação de livrarias universitárias. O processo foi deflagrado pela editora da

universidade de São Paulo, EDUSP, que sob a direção de João Alexandre Barbosa,

modernizou seu projeto editorial e ampliou a capilaridade de seus pontos de vendas. O

mesmo movimento pode ser observado nas editoras da UNB, UFRJ, UNESP, UFMG,

UFRGS, entre outras. Logo uma rede de pontos de vendas de livros ligados às editoras

universitárias pode ser encontrado em todo o país. O grau de profissionalização destas

livrarias é desigual, muitas delas servem principalmente ao catálogo da editora à qual se

vinculam, outras trabalham com títulos das outras editoras universitárias e algumas delas se

portam como livrarias de livros universitários comercializando livros nacionais e

importados ligados às áreas de interesse de professores e alunos das instituições que

atendem, sem discriminar a natureza da editora de origem dos livros se universitárias ou

comerciais. A determinação do número de pontos de vendas também não é fácil, porém

existem duas fontes às quais pudemos recorrer: a primeira foi o site da ABEU (Associação

Brasileira das Editoras Universitárias), por onde obtivemos a informação de que existem no

Brasil 113 editoras universitárias; a segunda foi visitar o site de cada editora, buscando

284

informação acerca dos pontos de vendas existentes. Identificamos 68 pontos de vendas,

sendo que apenas a EDUSP responde por 13 pontos, seguida pela editora da UNB,

EDUNESP e EDUFRGS. No Anuário Editorial Brasileiro 1999/2000 existem registros de

89 livrarias Acadêmicas/Universitárias. A diferença entre os números do Anuário e o

encontrado por nossa pesquisa se deve ao fato de que muitas livrarias universitárias que

constam do Anuário não estão ligadas à editoras universitárias, pertencendo a livreiros

independentes. Este número deve inclusive ser superior às 89 que aparecem no Anuário

Editorial, pois de 2000 para cá uma série de novos campis universitários se abriram no

Brasil, muitos deles com pontos de vendas de livros. Apenas a rede Nobel de livrarias,

abriu 10 pontos em Universidades como UNIP e UNIBAN.

Livrarias especializadas: Apesar do mercado editorial ter se diversificado nas

últimas décadas, seguindo de perto a tendência por fragmentação observada na sociedade

capitalista de consumo, a segmentação não tem produzido grandes movimentos no

segmento de varejo, não havendo, portanto, uma relação homóloga com as editoras que

atuam de forma segmentada. De um modo geral, apenas os grandes centros urbanos como

São Paulo e Rio de Janeiro, possuem um amplo espectro de livrarias especializadas. Além

das livrarias universitárias, existem livrarias técnicas dedicadas a livros de eletrônica e

informática, de artes, jurídicos, de negócios, de psicologia, de humanidades, de auto-ajuda,

de esoterismo, dedicados ao maravilhoso e fantástico, didáticas e paradidáticas, de idiomas,

entre outras. Nas demais regiões do país, a segmentação é frágil.

A fonte que utilizamos para aferir o número de livrarias especializadas foi o

Anuário Editorial Brasileiro 1999/2000, segundo a pesquisa do Anuário, das 1832 livrarias

brasileiras, 151 eram técnicas, não ficando claro a especilidade técnica à qual se dedicavam,

285

114 eram jurídicas, 264 eram didáticas e paradidáticas, 24 eram de auto-ajuda, nove eram

de idiomas, 29 se dedicavam ao esoterismo. Ou seja, aproximadamente 1/3 das livrarias

brasileiras são especializadas. Entretanto, o especializado aqui se refere a um escopo

restrito de segmentação não correspondente à segmentação encontrada nos catálogos

editoriais.

Livrarias religiosas: Este é um universo que apresenta uma enorme dificuldade de

prospecção, pois a maioria dos pontos de vendas de livros religiosos encontram-se nos

próprios templos, apresentando uma capilaridade gigantesca com matizes diferenciadas

conforme o grau de institucionalidade da religião abordada. As livrarias cristãs evangélicas

são as que apresentaram nos últimos anos o maior crescimento, segundo dados da ANLE

(Associação Nacional de Livrarias Evangélicas)119 existem no Brasil 1.200120 livrarias de

livros evangélicos, movimentando cerca de R$ 750 milhões por ano. Segundo a mesma

fonte, o número de evangélicos cresce quatro vezes mais que a população geral e mantém

um índice de leitura de 7,1 livros por ano, número 3,5 vezes maior que o da média da

população.

Outro importante movimento gerador de livrarias é o movimento espírita que possui

livrarias e bancas de livros espíritas espalhados por todo o país. O Anuário Editorial de

1999/2000 lista 30 livrarias espíritas, porém, sabe-se que os pontos de vendas de livros

espíritas são essencialmente bancas localizadas em praças e logradouros de grande

circulação nas cidades, e quiosques nos locais de prática religiosa.

119 http://www.cbl.org.br/content.php?recid=2277 - Acessado 01/06/2006 às 18:00h 120 Não fica claro se este número inclui lojas em templos, mas na visão do autor desta dissertação parece ser o mais provável, ou ao menos o conceito de livraria deve incluir pequenos quiosques espalhados pelo país, assim como as bancas espíritas.

286

A mesma edição do Anuário também revela a presença no Brasil de 180 livrarias

cristãs entre evangélicas e católicas. A principais editoras católicas possuem suas próprias

redes de livrarias, são os casos da Paulus, Vozes, Paulinas, Santuário e Ave Maria. Mas

novamente neste caso o número de livrarias esconde a abrangência dos pontos de vendas,

que em geral encontra-se em todas as paróquias.

Livrarias virtuais: As livrarias virtuais, ou livrarias on- line são empresas de varejo

de livros que atuam na rede mundial de computadores. São basicamente de duas naturezas:

1. Atuam exclusivamente na Internet, comercializando livros e outros produtos, por

exemplo: Submarino.

2. São livrarias que atuam no mundo físico e no ambiente digital, valendo-se deste

novo canal como uma nova fonte de receita e como uma abertura a novas

possibilidades de negócios, por exemplo: Nobel, Saraiva, Siciliano, etc.

Trataremos deste assunto em um tópico específico, quando abordarmos o comércio

eletrônico de livros.

Franquias: Os modelos de franquias relacionados ao mundo das livrarias foram

lançados no Brasil pela Editora Nobel no ano de 1992. O modelo baseado no sucesso dos

franchinsings de grandes redes de fast food como Mcdonalds e Habibs, trabalhava com a

seguinte lógica, empacotar o conhecimento de décadas no ramo editorial do grupo Nobel na

forma de um produto que pudesse seduzir empresários dispostos a investirem no ramo de

livrarias, desta forma atraindo investimentos para a área, que se encontrava carente desde o

início da década de 1970. O formato da oferta também obedecia a uma lógica de mercado,

o tamanho das lojas deveria ser modesto, propiciando assim que pequenos investidores

287

entrassem no negócio. A fórmula era também flexível quanto à localização das lojas, se em

shoppings centers, ruas de comércio ou outros pontos de forte fluxo de pessoas. A

vantagem do modelo para os novos livreiros estava na diminuição de tempo relacionado à

curva de aprendizagem quanto ao tipo de estoque e de livros que deveriam expor, algo

crítico em um mercado de giro baixo, que em geral paga elevados aluguéis. Como

vantagem adicional havia os descontos negociados em compras compartilhadas pelos

membros da franquia, fato que permitiria economias de escala nas compras, com

atratividade na margem obtida por livros vendidos. O empreendimento pode ser

considerado um imenso sucesso, pois a rede Nobel, que possuía em 1992 menos de uma

dezena de livrarias, conta hoje com 138 lojas, presentes em 22 estados brasileiros, em 67

cidades. O modelo da franquia acrescentou ao seu portfólio novos tipos de lojas que podem

variar de tamanho e composição de estoques. A ampliação se deu para cima 121 com o

modelo de mega livrarias e para baixo com os quiosques. Desta forma os investimentos

para aquisição da franquia possuem uma amplitude flexível que parte de R$ 48.000

(quiosques) e vai a R$ 321.000,00 (mega stores)

A rede de livrarias Siciliano ingressou em 2004 no ramo das franquias, maior rede

de lojas de livros na década de 1990, a rede foi superada em números de lojas pela franquia

da Nobel. Seu ingresso no ramo de franquias já permitiu a abertura de cinco novas livrarias.

Sua taxa de franquia e modelo de negócios são mais restritivos que o da Nobel, por

exemplo, apresenta uma taxa de franquia de R$ 380.000,00 para uma loja de 100 m² que é

o tamanho mínimo. A rede também restringe o portfólio de ofertas das franqueadas a livros,

121 Segundo Michael Porter uma empresa pode ampliar sua linha de produtos ou serviços para cima, quando busca um público mais qualificado, ou para baixo quando visa um público de menos qualificado (perspectiva sócio-econômica), a linha também pode ser ampliada lateralmente quando se busca atuar em nixos de mercado.

288

revistaria e papelaria, enquanto a Nobel trabalha com uma ampla gama de produtos da

indústria cultural e de software e itens de tabacaria. Todas as lojas da rede Sic iliano que

foram franqueadas até o momento encontram-se em shopping centers.

Este é o conjunto de modelos de livrarias que atuam no mercado brasileiro. Deste

ponto de vista podemos afirmar que a diversificação em relação ao modelo de décadas

anteriores surgido nos anos noventa, representou o ocaso do ponto de rua tradicional. Ainda

nos resta falar acerca do número total de livrarias existentes no país. Neste ponto existem

grandes discordâncias, quanto mais afiada a navalha do corte, menor é o número de

livrarias encontrado, algo como o que se podia verificar à época dos estudos de Hallewell.

Usando três fontes diferentes que se encontram à nossa disposição chegamos a três

números distintos:

O Anuário Editorial Brasileiro de 1999/2000 trabalha com o número de 1.832

livrarias dos mais variados segmentos. A ANL (Associação Nacional de Livrarias) aponta,

em seu estudo de 2005, existirem no Brasil, cerca de 1.318 livrarias também divididas em

diversas categorias. Em declaração dada na comemoração do dia mundial do livro no ano

de 2003, o presidente da CBL, Oswaldo Siciliano, afirmava existirem no Brasil cerca de

700 livrarias. Os números do Anuário Editorial são menos políticos, já que sua pesquisa

não estava ligada a nenhuma associação de classe e sua forma de financiamento eram os

próprios editores que utilizavam suas informações para contatar livreiros por todo o país.

Quanto aos números da CBL e da ANL não se pode dizer o mesmo, já que para estas

associações é importantíssimo sensibilizar o governo para a precariedade de nossa rede

livreira, sem dúvida o calcanhar de Aquiles do setor. Abaixo, uma tabela comparativa entre

os dados levantados por Hallewell e dados atuais:

289

Número de livrarias no Brasil conforme várias fontes

Fonte Primária Ano Hallewell Dados atuais

Revista Manchete 1969 1000

IBGE 1972 3012

GEIL 1970 72

SNEL 1972 600

Revista Istoé 1980 400

SNEL 1981 1147

Anuário Editorial 2000 1832

CBL 2003 700

ANL 2006 1318

Tabela 24: Comparação números de livrarias Brasil – fontes variadas

O cruzamento possível entre estes dados pode gerar conclusões opostas: caso nos

valhamos da visão rígida de livraria do GEIL122 e a compararmos com a declaração de

Oswaldo Siciliano da CBL, teríamos tido um aumento expressivo de cerca de 1.000% no

número de livrarias brasileiras em um período de 33 anos. Caso comparemos a visão do

Anuário com a do IBGE teríamos tido um decréscimo de aproximadamente 40% no mesmo

período. Ainda se compararmos os números da ANL com os do SNEL, teríamos um

crescimento de 15% em 24 anos. Creio que as comparações mais corretas a serem feitas são

as que comparam os números do Anuário com os do IBGE e os números do SNEL com os 122 Grupo Executivo da Indústria do Livro.

290

da ANL, pois a natureza das fontes possui certa similaridade bem como seus objetivos, a

tendência verificada, em um caso decréscimo e noutro, um pequeno aumento pode ser

explicada pela diferença dos períodos abordados, já que os números do IBGE são do início

da década de 1970 enquanto os do SNEL são do início dos anos 80. A comparação entre a

pesquisa do GEIL e a declaração do presidente da CBL também devem ser levadas em

consideração e ela aponta, senão para o aumento do número dos pontos de vendas de livros,

ao menos para a tendência de uma crescente qualificação dos pontos de venda existentes.

Como resultado do confronto com estes números concluímos que o número de

pontos de vendas têm declinado nos últimos 35 anos. A grandeza deste declínio não pode

ser mensurada dada à disparidade dos dados existentes. Paralelamente ao declínio do

número de livrarias, acompanhamos um processo de aperfeiçoamento da base instalada e a

multiplicação de modelos, que torna o varejo atual mais diversificado e alinhado as

tendências mais gerais do varejo de bens de consumo e serviços.

3. O comércio eletrônico de livros.

O comércio eletrônico de livros foi iniciado no Brasil pela BookNet, experiência

capitaneada pelo livreiro do Rio de Janeiro, Jack London. A experiência teve início em

1996, período em que o número de usuários da Internet brasileira era ainda muito pequeno.

A adesão das editoras ao modelo, foi rápida e em pouco mais de uma ano de atividade o

portfólio de editoras oferecido pela BookNet saltou de 29 para 213, correspondendo a

63.000 títulos. Para se ter noção da extensão de seu catálogo, basta compará- lo ao do Ática

291

shopping, maior livraria brasileira com 4.000m² de área de exposição e que à época

orgulhava-se de possuir em suas prateleiras 100% dos livros ativos dos catálogos nacionais

( neste período o Ática Shopping oferecia 70.000 títulos nacionais).

Em outubro de 1997 a BookNet vendeu 30.000 livros, cifra correspondente ao

movimento mensal de cinco livrarias de médio porte. Os projetos de London eram ousados:

seu objetivo era capilarizar as ações da BookNet, transformando-a em uma distribuidora

virtual de livros para centenas de livrarias existentes no país e que careciam de um catálogo

de produtos completo, pois como já explicitado neste capítulo, os espaços em prateleira

tornavam-se cada vez mais insuficientes para dar conta dos títulos lançados somados aos

fundos de catálogos. A BookNet instalaria terminais de computadores nestas livrarias, de

modo que o livreiro passaria a contar com um estoque virtual, ao qual recorreria sempre

que o cliente solicitasse um livro que fisicamente não se encontrava na livraria. Hoje, dez

anos mais tarde, está experiência parece banal, porém, naquela época, representava uma

transformação considerável no modelo de atendimento das livrarias, que na maioria das

vezes não atendia o cliente alegando estar o livro esgotado, ou simplesmente não possuí- lo

ou conhecê- lo.

A experiência da BookNet foi bem-sucedida e motivou sua compra pelo Submarino,

que ao iniciar sua operação de varejo eletrônico precisava de uma base de clientes já

consolidada. Durante a Bienal Internacional do Livro do ano 2.000, em São Paulo, muitos

estandes refletiam as mudanças que o comércio eletrônico e a era da informação prometiam

para o mundo do livro. A Xerox montara um site de impressão digital com exposição de e-

books readers, e impressão do primeiro livro em cores totalmente produzido com

tecnologia digtal, tratava -se da carta de Pero Vaz de Caminha, ricamente ilustrada, em

292

edição de luxo. I-editora e Foglio, duas editoras de e-books possuíam estandes na feira.

Representantes da 00:00h, principal editora de e-books da Europa circulavam, pela feira e, é

claro, existiam enormes estandes das operações de e-commerce do Submarino, da Siciliano

e da Saraiva. O varejo tradicional acordará para o fe nômeno digital e se preparava para

competir com as empresas “100% digita is”.

A emergência da Internet criou para o varejo tradicional do livro uma série de

oportunidades outrora impossíveis de realizar. Em um país de dimensões continentais como

o Brasil, as novas tecnologias da informação tornaram possível a capilarização da

distribuição de produtos culturais e seu acesso por pessoas que vivia em em regiões rurais

ou em municípios que não eram servidos por livrarias. Quando analisamos o modelo de

franquias da Nobel, de todos o mais acessível do ponto de vista de formato e custos de

entrada, percebemos que a imensa maioria das cidades que possuem lojas têm mais de

150.000 habitantes, não que este seja um número mágico, mas cidades pequenas não

apresentam um volume suficiente de compras para justificar a presença de uma livraria

principalmente com um estoque razoável imobilizado.

A existência da Internet tornou possível que pequeninos pontos de vendas pudessem

se instalar em pequenas localidades, utilizando estoques virtuais como os idealizados pela

BookNet. Também tornou possível que pessoas que moram em cidades não atendidas por

livrarias adquirissem livros através das livrarias virtuais. Este fenômeno, entretanto, está

distante de explorar todo seu potencial. Primeiro pela dificuldade que representava e

representa o acesso discado à Internet em localidades que não possuem provedores, o preço

é proibitivo, segundo, porque a imensa maioria da população, em especial nas localidades

periféricas, não possuem computadores e muito menos acesso à Internet e, terceiro, porque

293

a ausência de uma política de capilarização de livrarias que necessariamente teria de

envolver o governo e as compras governamentais123, parece distante de se materializar.

Outro fenômeno que se tornou possível com a Internet foi o e-commerce, real

alternativa dos editores realizarem integração para frente124 na cadeia de valores,

posicionando-se como livreiros. Qualquer editora, por menor que seja, pode vender seus

títulos através da rede. Este fenômeno pode ser feito, inclusive oferecendo desconto aos

clientes, pois, como vimos no capítulo dois, mais de 50% do preço final do livro fica com a

livraria e a distribuidora. Mas a venda direta de livros corresponde a apenas um dos

inúmeros benefícios que a rede pode trazer para uma editora. Abaixo relaciono parte das

oportunidades:

1. Gestão de relacionamento com os leitores: Quem são os leitores dos livros que

lanço? Grande parte dos editores teriam dificuldades em responder a esta pergunta,

isto porque, para a maioria das editoras, a gestão deste relacionamento é feita pela

livraria, que dificilmente dará um tratamento diferenciado one to one, para leitores

de lirvos da editora X ou Y. O resultado é que na maioria das vezes os contatos de

compra dos leitores não geram quaisquer feedbacks para a editora. Ora, hoje é

possível que uma editora a partir de uma ferramenta de CRM (Customer

Relationship Management) que gerencia de forma digital os contatos que os

usuários estabelecem com a empresa através de seus site, 0800, call center e contact

123 O governo federal possui um poderoso programa de compra de livros para os ensinos médio e fundamental e para a constituição de bibliotecas escolares. Essas compras são centralizadas, não passando pelo canal livrarias. Isto é feito para baratear o custo dos livros, entretanto tem como efeito colateral desestimula eventuais empreendedores de pequenas e médias cidades a abrirem livrarias, que num primeiro momento teriam dificuldades de sobreviver com os livros didáticos e paradidáticos sendo distribuídos gratuitamente. 124 Segundo Michael Porter, uma empresa realiza integração para frente na cadeia de valores quando ela passa a realizar os negócios de seus clientes imediatos, por exemplo, uma editora que cria uma rede de livrarias ou uma gráfica que cria uma editora. Integração para trás ocorre quando uma empresa passa a realizar os negócios de seus fornecedores imediatos, por exemplo, uma livraria que vira editora.

294

center, realizar um inventário das informações que este cliente busca e obter dele

preciosas informações sobre seus hábitos de leitura, e a relação destes hábitos com o

catálogo da editora.

2. A editora como imprensa: Não é novidade que a imprensa brasileira cobre mal o

mercado editorial. Os cadernos de leitura dos jornais são escassos em número de

páginas e freqüência semanal, não dando conta da avalanche de lançamentos que as

editoras disponibilizam a cada mês. Um jornal de ponta como a Folha de S. Paulo,

comenta cerca de 120 livros por mês, mas o mercado lança mais de 2000 títulos.

Logo, a imensa maioria permanece oculta. A Internet tornou possível que as

empresas se convertam em imprensa. Muitas empresas já possuem revistas

eletrônicas em seus sites, que discutem temas relacionados à sua área de atuação e,

naturalmente, exploram editorialmente seus produtos e serviços. No Brasil posso

citar o exemplo da empresa Natura, ela possui uma revista eletrônica que usa o

mesmo software de exibição do Jornal do Brasil e atende parte de seus 400 mil

colaboradores com as informações expressas na revista. Empresas como

Wolkswagen, Microsoft, Puma, entre outras têm desenvolvido sites específicos e

revistas, inclusive impressas, relacionadas a produtos. Tal fenômeno atesta o

potencial da Internet como ferramenta de comunicação empresarial e torna mais

tênues as fronteiras entre o editorial e o mundo da mercadoria. Estranhamente as

editoras que possuiriam maior pregnância com este tipo de ação, pois são notáveis

geradoras de conteúdos, mantêm-se afastadas deste processo. As oportunidades são

imensas, cada área de conhecimento coberta pelo catálogo poderia gerar uma seção

da revista eletrônica, cada autor é um potencial articulista da publicação. Dentre os

295

inúmeros originais recusados pelo editor por sua pretensa inviabilidade econômica,

muitos poderiam ser testados na forma de artigos, contos ou capítulos publicados no

site. Para cada livro lançado poderia ser feito um site específico com entrevista do

autor, fac-símile, obras relacionadas, resenhas que saíram em outros meios, etc. E

tudo isso estaria a serviço do leitor que possuiria no site da editora, não apenas a

oportunidade de adquirir o livro, mas principalmente a oportunidade de conhecer

mais a respeito de suas áreas de interesse.

3. Comunidades virtuais: outra importante forma de potencializar o relacionamento

com os leitores seria a criação de grupos de discussão (chats e fóruns) dos livros,

autores e temas abordados pela editora, colocando em contato os diversos leitores e

obtendo nestes ambientes virtuais de colaboração, informações preciosas para

futuras ações editoriais, além de sedimentar o relacionamento com os leitores.

4. Narrativas Paralelas: Para as editoras que trabalham com narrativas ficcionais existe

a oportunidade de criar universos paralelos dos livros lançados, permitindo que os

leitores, a partir de um ponto da trama, criem suas próprias narrativas, dando novas

versões para a trama do autor.

5. Pesquisas de opinião: Com um portal editorial ativo é possível realizar pesquisas de

opinião com os leitores, obtendo valiosas informações sobre a recepção de livros

existentes e testando idéias para futuros lançamentos.

6. Do ponto de vista comercial é possível criar clube de leitores, cartões de fidelidades

e realizar inúmeras promoções envolvendo as livrarias tradicionais como, por

exemplo, oferecer antecipadamente lançamentos através de uma rede de livrarias,

296

para os clientes especiais do site, convidar para lançamentos com a presença do

autor, etc.

Destas oportunidades, apenas a venda direta com desconto se choca com o canal

livraria, de modo que a não utilização destas ferramentas por parte dos editores não

pode ser atribuída ao receio de provocar um conflito de canais de comercialização com

seus respectivos distribuidores.

Pesquisa que realizamos na Bienal Internacional do Livro de 2004, em São Paulo,

com 103 editores125 obteve o seguinte resultado quanto a utilização da Internet como

canal de comercialização de livros:

• 98% das empresas entrevistadas possuíam sites na Internet;

• Deste universo 36% não vendiam livros pelo site;

Daquelas que comercializavam livros pela Internet:

• 42% faturavam cerca de 2% de seu faturamento total pela Internet;

• 28% faturavam cerca de 3%

• Apenas 5% faturavam mais de 10% de seu faturamento total pela rede.

• Outras 25% alegaram fa turar menos de 1% de seu faturamento de vendas

advindas do comércio eletrônico.

O Diagnóstico do Setor Editorial Brasileiro revelou que a venda de livros na

Internet representava em 2003 menos de 0,5% do total de vendas de varejo do mercado

125 Conforme o Anuário Editorial Brasileiro 1999/200, existiam no Brasil cerca de 900 editoras , portanto este número corresponde a mais de 10% das editoras, mas deve ser matizado, pois entre 2000 e 2004, talvez o número de casas editoriais possa ter aumentado.

297

nacional. A pequena presença do canal Internet quando confrontada com o total de

vendas do mercado não deve obscurecer nossa visão quanto a seu potencial. Quando

analisamos a série histórica de 2000 a 2003 da pesquisa Diagnóstico do Setor Editorial,

avaliando os diversos canais de varejo, identificamos queda em quase todos os canais

de vendas. As livrarias, por exemplo, apresentaram queda de 26% em número de

exemplares vendidos. Os únicos canais que apresentaram altas foram o porta a porta,

com 95% a mais de exemplares vendidos, e o setor de Internet que cresceu 760%. Não

sabemos que ritmo de crescimento este canal haverá de apresentar nos próximos anos,

porém, caso mantenha o mesmo ritmo, poderá em vinte anos superar a venda das

livrarias.

Também o fato de 5% das editoras alegarem obter mais de 10% de seus

faturamentos pela Internet é um sinal de que o potencial deste canal é muito grande e

ainda bastante inexplorado pela maioria das casas editoriais.

4. Desmaterialização de conteúdos e o comércio eletrônico.

De certa forma, o texto sempre foi imaterial em sua constituição. O texto da

oralidade que se fixou nas tabuinhas de argila e nas paredes dos palácios e templos nas

antigas Suméria e Egito era ao mesmo tempo o mesmo que os antigos bardos declamavam

em torno das fogueiras ou em ocasiões célebres. Mas também era outro, cristalizado e

destituído de sua instabilidade e agilidade próprias da oralidade. Com as sucessões de

suportes este texto irá se materializar de várias formas, cada uma destas tentará moldar suas

298

características às demandas do suporte. Pedra, argila, papiro, pergaminho, papel, película,

fita magnética, pixels.

O estudo da indústria cultural evidencia a natureza imaterial dos componentes do

texto, que ora se encontram em um livro, ora em uma tela, ora na prateleira de uma loja de

brinquedos. A emergência da Internet apenas tornou evidente esta faceta do texto e colocou

na ordem do dia a questão da migração de suportes.

O livro impresso alcançou seu apogeu como receptáculo privilegiado do

conhecimento humano por apresentar as seguintes características: portabilidade,

indexabilidade, baixo custo de produção e durabilidade. Estas quatro características não

foram adquiridas pelo objeto livro de uma só vez. A primeira delas, a indexabilidade, foi

possível com a mudança de formatos, do volumen, forma de organizar em rolos, para o

codex , forma de organizar em cadernos, que prevalece até hoje. Esta mudança se iniciou no

século I de nossa era, mas só por volta do século V o codex tornou-se hegemônico. As

vantagens do codex sobre o volumen são várias: passou-se a utilizar os dois lados do

suporte, pôde-se reunir um número maior de textos dentro de um único volume, criaram-se

condições para a indexação na forma de páginas. Com o codex crio u-se a tipologia formal,

abriu-se assim caminho para toda a padronização de formatos associados aos gêneros e

tipos de livros, normatização da qual são herdeiras as formas atuais de editoração. A

indexação também permitiu o surgimento, séculos depois, da cultura de citações,

importantíssima para o desenvolvimento do conhecimento científico.

A portabilidade é resultado da revolução gutemberguiana da impressão com tipos

móveis, pois quando o papel se transforma na principal matéria-prima do livro, este diminui

de peso e passa a ser transportado para toda parte.

299

O baixo custo de produção também é resultado da disseminação da impressão. Os

antigos manuscritos eram produtos artesanais, já os livros impressos serão produzidos em

escala industrial. A questão da durabilidade é um tanto controversa, há aqueles que afirmam

serem os manuscritos em couro mais duráveis que os em papel. Esta vantagem física,

entretanto, perde completamente a importância quando lembramos que o número de

exemplares manuscritos era muito menor, de forma que a pseudo fragilidade do livro

impresso era anulada pelo grande número de exemplares que circulavam, aumentando as

chances de preservação.

No cenário da convergência digital, essas quatro características ganham novas

proporções, vejamos: o conteúdo de um livro digitalizado pode ser indexado das mais

variadas maneiras. Do ponto de vista dos metadados, pode-se buscar através de

mineradores de dados qualquer palavra ou frase presente no texto, aumentando

imensamente as possibilidades de utilização tecnocientífica do conteúdo. A portabilidade é

aprimorada, já que o conteúdo pode estar armazenado em qualquer parte, estando acessível

de qualquer terminal ligado a Internet. Outra variante deste processo está na utilização de

mecanismos dedicados à leitura, erroneamente chamados de e-books.126 Estes mecanismos

podem armazenar milhares de páginas, diminuindo para gramas aquilo que seriam dezenas

de quilos. O exemplo mais conhecido destes mecanismos são os computadores de mão

(palmtops) cujas dimensões de tela e resolução de leitura, porém, estão muito aquém das

apresentadas pelos mecanismos exclusivamente desenvolvidos para este fim. Os custos

também podem ser reduzidos em relação aos livros impressos; essa redução não deve ser

126 Consideramos como livro eletrônicos todo o livro produzido em suporte digital, e não apenas os utilizados nos mecanismos dedicados à leitura.

300

extraordinária, mas pode influenciar o preço final, aumentando sua acessibilidade

econômica.

A todas essas características se junta a intensificação da imaterialidade torna ndo o

texto digital a base para inúmeras experiências narrativas, para transmutação em novos

gêneros e formatos, do livro para o cine ma, o teatro, o game, a citação, o e-mail. Tudo isso

certamente era possível no formato impresso, porém ganha uma rapidez e uma evidência

maior no formato digital.

O impresso é de certa forma um limitador desta característica imaterial, pois é

portador de uma materialidade auto-referente e una. Enquanto na tela de meu computador

uma multidão infinita de textos se atualizam (materializam) e se virtualizam

(imaterializam), nas páginas de um livro impresso, apenas aquele texto, com aquela

tipologia, formatação, tipo de papel e encadernação são possíveis. Esta materialidade

reforça a característica de estabilidade que o texto escrito concede ao conhecimento, já o

ambiente digital afrouxa esta relação conduzindo novamente o texto a um ambiente

instável, como outrora desfrutado na oralidade.

Como efeito lateral, a imaterialidade do livro eletrônico permite que sua mercancia

assuma novas características. Enquanto o impresso exige grandes espaços de exposição,

ambientes apropriados de conservação, atendentes especializados e uma logística onerosa e

lenta, o livro eletrônico prescinde de todo este aparato. Exige outro aparato, por certo, uma

infra-estrutura tecnológica, um programa de exibição, um banco de dados para

armazenagem, engenhos de controle e proteção, interfaces de exposição, mas tudo isso com

uma escalabilidade jamais imaginada no cenário do impresso. Pois a materialização do

texto no impresso se dá num único ponto do tempo e do espaço, enquanto a materialização

301

do eletrônico acontece em qualquer ponto do tempo e espaço desde que sua matriz tenha

sido concebida e disponibilizada. A seguir trataremos mais de perto da produção e

distribuição de livros eletrônicos no Brasil.

5. A venda de livros eletrônicos no Brasil.

No atual estágio do capitalismo informacional, de nada vale uma tecnologia que não

possa ser operacionalizada na forma de um negócio. Ou posto de outro modo, toda nova

tecnologia já nasce sendo cortejada por diversos modelos de negócios. As tecnologias

ligadas à comunicação possuem uma longa trajetória de definição de modelos de negócios

que se iniciaram com o mercado editorial de livros e se multiplicaram com a emergência

dos outros meios. Assim, no caso dos livros estabeleceu-se a venda do exemplar e uma

remuneração dividida entre os membros da cadeia de valores. No caso dos periódicos

impressos, a venda dos exemplares avulsos, a publicidade e as assinaturas compuseram a

cesta de remuneração do setor. O rádio de forma pioneira e a TV posteriormente adotaram

o modelo da gratuidade para os usuário s financiando a exibição a partir da publicidade.

Mais recentemente criou-se o modelo da TV fechada que se vale de assinaturas,

publicidade e venda avulsa de alguns programas (assim como os periódicos) para manter no

ar sua operação. A Internet como o mais recente dos meios tem utilizado um pouco de

todos os modelos anteriores em um processo de tentativas, erros e acertos, na busca de um

modelo eficaz. É um equívoco tratar a Internet como um bloco unitário de programas e

funcionalidades, na verdade existem diversos tipos de funcionalidades e de produtos

302

comunicacionais se valendo da rede como meio, por isso, diversos modelos de viabilidade

econômica emergem dos oceanos de pixels. Em linhas gerais temos :

• A cobrança pelo provimento do serviço que em geral encontra-se associado

a algum tipo de conteúdo informacional e de entretenimento;

• A gratuidade no serviço de provimento associada a gratuidade do conteúdo,

mantidas pela publicidade e por serviços;

• Modelos mistos que oferecem gratuidade e cobram por serviços adicionais;

• Conteúdo pago ligado a algum produto impresso;

• Conteúdo pago puramente digital, em geral ligado a segmentos

especializados como finanças, direito, ciências etc;

• Sites empresariais gartuitos;

• Sites de instituições com conteúdo gratuito;

• Sites de instituições com conteúdo pago.

• Sites de e-commerce que oferecem serviços e produtos pagos pela Interenet.

Em pólos opostos, portanto, se encontram os modelos da gratuidade e o da

cobrança, no meio existem várias fórmulas de sustentação que combinam aspectos das

polaridades em questão. Ao analisarmos as mídias podemos utilizar o modelo de

classificação desenvolvido por Bernard Miège que identifica três modelos fundamentais de

negócios: o de mercadorias culturais, o da cultura de fluxo (flot) e o de produção de

informação. No primeiro caso temos os produtos editoriais como livros, CDS, fitas de

303

vídeo, DVDs, filmes exibidos em cinema etc. Tais produtos necessitam ser vendidos ao

consumidor, diretamente ou através de distribuidores, o mercado possui pequenas e médias

empresas e alguns grandes oligopólios. Organiza-se com base no pagamento de direitos

autorais e busca atingir um mercado consumidor de massas segmentado. No segundo caso

temos a produção da televisão e do rádio, cuja amplitude e continuidade de difusão são

significativamente maiores que os do modelo anterior. É um mercado marcado pela

obsolescência dos produtos e, por isso, necessita de um fluxo contínuo de novas atrações.

Neste campo cultura e informação estão em intersecção e, o financiamento se dá

principalmente através da publicidade e do Estado. Há uma grande concentração de

empresas e o controle de oligopólios. O terceiro modelo que envolve sites e jornais e

revistas impressos e digitais, mistura parte dos dois modelos anteriores.

Isto posto nos resta identificar a estratégia adotada pelo livro eletrônico a fim de

obter viabilidade econômica.

Editoras e modelos de negócios.

As editoras de livros eletrônicos no Brasil adotaram um modelo de negócios que

alia característcias da velha economia editorial com o aproveitamento de algumas das mais

importantes oportunidades abertas pela Internet para se realizar negócios. Analisamos o

modelo de três editoras de livros eletrônicos, a I-Editora (Edições Inteligentes), a Papel e

Virtual e a E-Papers, as três estabelecidas há mais de cinco anos e pioneiras na produção e

comercialização de livros eletrônicos no Brasil.

I-Editora- fundada em 1999 por Victor Kupfer e André Cymbalista, com aporte financeiro

do grupo Nobel, esta editora nasceu com a proposta de levar para a Internet títulos de fundo

de catálogo das principais editoras brasileiras, oferecendo-os no formato eletrônico, ou no

304

formato impresso a partir do modelo de impressão por demanda127, de forma lateral a

editora propunha trabalhar com novos autores que pagariam pela edição de seus livros

eletrônicos e de suas possíveis edições impressas. Durante sua curta existência a empresa

modificou sua composição societária recebendo aportes de um grupo de investimento

liderado pelo ex-presidente do Banco Central Brasileiro, o economista Gustavo Franco.

Uma análise do seu catálogo revela que a estratégia de levar livros de fundo de catálogo

para o formato digital fracassou, enquanto que a combinação de versão eletrônica e

impressa da edição de novos autores, pa rece ser a alternativa bem sucedida. Mais

recentemente a empresa assumiu uma nova personalidade agregando novos profissionais e

direcionando sua proposta claramente para a prestação de serviços editoriais. O novo nome

fantasia é Edições Inteligentes, dentro do qual a I-editora é apenas um dos braços. A

empresa oferece um portfólio de serviços que direcionado a autores independentes se

compõe de: copydesk, preparação e diagramação, arte da capa e orelha, impressão,

marketing, divulgação, comercialização, dis tribuição e ghost writing128. O autor pode

comprar parte ou todo o portfólio e a promessa é de que ele estará disponível, no site da

editora e nas livrarias do país. A empresa conta com um catálogo de mais de 1.300 títulos

em 35 áreas do conhecimento. Não há hegemonia de uma área, sendo que a área com maior

número títulos é a de poesia com 55. Os direitos autorais permanecem totalmente sob o

domínio do autor.

Papel e Virtual: fundada em 1998 por um empresário/acadêmico e um funcionário da

Xerox do Brasil, a empresa posicionou-se desde o início como uma editora de livros em

127 Sistema de impressão que se tornou possível com as máquinas digitais de impressão, propiciava a diminuição dos de pré-impressão, tornando viável economicamente a impressão de poucos exemplares. 128 Serviço que consiste em escrever livros para “autores” que possuem idéias, mas não a competência da escrita criativa.

305

versões eletrônicas e impressas. Vender estes serviços para novos autores e fazer através de

seu site o comércio dos livros editados, que também podem ser vendidos pelos autores. Seu

catálo go conta com mais de 1000 títulos, divididos em 60 gêneros, dos quais o de poesia

conta com 102 títulos. A amplitude do catálogo é imensa, os gêneros são técnicos,

acadêmicos, esotéricos, de auto-ajuda, profissionais , etc. Dos autores são cobrados os

serviços de revisão, editoração, arte da capa, publicação virtual e impressão (quando

existir), porém os direitos autorais dos livros permanecem com o autor. Das vendas virtuais

e físicas o autor recebe 20% e este também pode encomendar exemplares para revender,

recebendo por estes um desconto maior.

E-Papers: A empresa iniciou suas atividades em 1999 na incubadora de empresas da UFRJ

(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e desde o início trabalhou com versões impressas

e digitais dos livros. Seu catálogo, diferentemente das duas editoras anteriores, é composto

essencialmente de livros cuja decisão editorial passa pelo crivo de pregnância com uma

linha editorial, bem como pela seleção de um conselho. Assim, comporta-se mais como

uma editora tradicional do que como uma prestadora de serviços editoriais. Possui um

catálogo de forte apelo acadêmico e para dar conta de edições de literatura e outros gêneros

lançou um novo selo editorial. Seu catálogo é composto de 309 títulos, dos quais 241 são

edições próprias estes livros encontram-se agrupados em 33 áreas do conhecimento, sinal

de que a aparente seleção não impediu uma grande amplitude ao catálogo. Os serviços

editorias são também cobrados dos autores. A empresa oferece seus serviços também para

empresas. O comércio dos livros é feito essencialmente através do site.

Outras experiências neste campo adotam variações destes modelos de negócios com

predominância para a cobrança do autor na publicação. Devido à coincidência de editora e

306

livraria, as funções de edito r configurado como um selecionador de textos que se

enquadrem dentro de uma linha editorial e que obedeçam a critérios de pregnância,

qualidade e atratividade comercial parecem encontrar-se subordinados a uma lógica de

prestação de serviços. Os “editores virtuais”, em sua grande maioria, são prestadores de

serviços que tornam possível ao autor publicar seu livro nas prateleiras digitais e também,

em muitos casos, no formato impresso.

O preço dos livros adota o seguinte critério: as versões digitais são 50% mais

baratas que as versões impressas. Os títulos são tão variados quanto a proposta editorial

permitir, desta forma, no caso da E-papers, existe uma certa proximidade entre as áreas e a

maioria dos títulos que poderiam ser enquadrados como acadêmicos e técnicos. Já nas

outras duas editoras analisadas, o número de títulos é imenso para o pequeno espaço de

tempo em que existem e assim também são os seus catálogos. Este processo praticamente

extingue o papel estratégico do editor como selecionador e o coloca na condição apenas de

prestador de serviços, tornando o empreendimento editorial não uma aposta em produtos,

mas sim uma atividade facilitadora, que transfere para o autor os riscos da empreitada.

Quanto ao comércio de livros, os títulos destas editoras são vendidos, em seu

formato digital, apenas por elas em seus sites, ou seja, não despertaram o interesse nas

demais livrarias virtuais. Alguns títulos físicos podem ser encontrados em livrarias

tradicionais, especialmente os da I-Editora. Do ponto de vista de venda de exemplares, não

existe qualquer estatística oficial sobre as vendas destas editoras. De qualquer maneira a

venda de exemplares não é a única e, talvez nem mesmo a principal fonte de receitas destas

empresas, cumprindo a prestação de serviços um papel fundamental.

307

Finalmente, mas não menos importante, é constatar que as editoras tradicionais

mantêm-se distantes deste modelo de negócios, com exceção de uma poucas iniciativas

ligadas ao mundo dos livros técnico universitários, especificamente nas áreas jurídicas, de

administração, economia e contabilidade. Neste caso temos algumas iniciativas em curso:

Editora Pearson Education: É um dos maiores grupos editorias do mundo, presente no

Brasil desde 1996, atua nas áreas de idiomas, universitária e técnica. Adquiriu em 2000 a

editora Makron Books, e atualmente é uma das editoras líderes na área de livros de

negócios. Em 2005 lançou sua biblioteca virtual que permite aos usuários alugarem, para

leitura por 30 dias, o conteúdo digital de seus livros. O usuário acessa o conteúdo do livro e

pode imprimir até 10% do mesmo. O preço do aluguel, corresponde a 10% do preço de

capa do livro. Em outra frente a editora oferece o serviço de livros customizados, através do

qual professores e universidades podem solicitar a impressão de um livro texto com partes

extraídas de variados livros do catálogo da Pearson, podendo inclusive acrescentar partes

geradas pelo próprio professor ou instituição. Estas duas experiências são bastante

inovadoras, no primeiro caso o livro eletrônico não é fornecido para download,

permanecendo hospedado e protegido nos bancos de dados da editora, o que se

disponibiliza é o acesso ao conteúdo via Internet. No segundo caso, os professores

universitários passam a ser editores, à medida em que criam livros que atendam de forma

específica a suas necessidades.

Editora Saraiva: A editora possui forte tradição no segmento jurídico, esta tradição

transformou-se em um portal na Internet, o SaraivaJur, que realiza a interface entre a

editora e a comunidade jurídica, comercializando livros, jurisprudências e códigos em

308

formatos impresso e eletrônico. O portal funciona através de assinaturas que permitem o

acesso ilimitado a seu principal produto, a jurisprudência brasileira on- line.

6. Comparação com mercado de língua inglesa.

O desenvolvimento e a comercialização de livros eletrônicos no mercado de língua

inglesa, apresenta uma dinâmica bastante diferenciada do mercado brasileiro. As diferenças

são muitas, em primeiro lugar a AAP (American Publishers Association) tem dedicado

esforços para entender e regulamentar o mercado de conteúdos eletrônicos. Muitos editores

tradicionais como a Simon & Schuster, Harper Collins, Time Warner, McGraw Hill, entre

outros, têm lançado versões eletrônicas de seus catálogos, inclusive de importantes best-

sellers. A lista abaixo apresenta os e-books mais vendidos no ano de 2004, seus respectivos

preços em dólares129

1. The Da Vinci Code by Dan Brown (Doubleday - $14.95)

2. Angels & Demons by Dan Brown (PocketBooks - $6.99)

3. Deception Point by Dan Brown (PocketBooks - $6.99)

4. Digital Fortress by Dan Brown (St. Martin's Press - $5.99)

5. Darwin's Radio by Greg Bear (Del Rey - $6.99)

129 Os dados foram obtidos junto a organização não governamental Open eBook Fórum, formada pelos principais editores de eBooks. O fórum se propõe internacional, mas reflete basicamente o mercado editorial americano, embora as vendas de livros na Internet sejam feitas para usuários de todo o mundo. Estes dados podem ser acessados no seguint endereço eletrônico: http://www.idpf.org/pressroom/pressreleases/2004bestsellers.htm (acessado em 12/06/2006 as 11:17 h)

309

6. Holy Bible, New International Version - International Bible Society (Zondervan -

$14.99)

7. I, Robot by Isaac Asimov (Spectra - $4.99)

8. Electronic Pocket Oxford English Dictionary & Thesaurus Value Pack (Oxford

University Press - $19.95)

9. Darwin's Children by Greg Bear (Del Rey - $6.99)

10. Merriam-Webster's Collegiate® Dictionary (Merriam-Webster - $25.95)

A segunda diferença é que empresas de varejo tradicional se aventuraram a

comercializar em seus sites versões eletrônicas. Foi o caso da Barnes and Nobels entre

2000 e 2004, da Amazon que possui um amplo catálogo de conteúdos eletrônicos e das

próprias editoras que se dedicam à venda direta. Quando comparamos 2003 com 2002 o

mercado de e-books de língua inglesa cresceu 40%, entre 2004 e 2003 o crescimento foi de

25%, e de 2005 e 2004 o crescimento registrado foi de 23%. O número de exemplares

vendidos em 2005 foi de 1.692.964 e o faturamento em dólares das editoras foi de

US$11.875.783,00. A base da pesquisa de 2005 foram 18 editoras, contra 19 que

responderam em 2003 e 2004. Séries trimestrais são realizadas pela Open eBook Forum, e

refletem apenas a base restrita de editoras associadas. Existe um amplo mercado de

documentos eletrônicos compostos por e-papers, revistas acadêmicas, entre outros que não

é medido pela pesquisa. De qualquer maneira quando comparados com os números do

mercado de livros impre ssos, os números do comércio de e- livros é muito pequeno, em

2002, segundo fontes do Euromonitor compiladas no estudo de Earp e Kornis, o

310

faturamento obtido pelos mercados de língua inglesa chegava a 41 bilhões de dólares. Ou

seja, a venda de livros eletrônicos representaria pouco mais de 0,3%. Mas o mais

importante dos números do e-book está relacionado ao seu constante crescimento anual,

que é infinitamente superior ao do mercado de livros impressos que se encontra estagnado.

Nesta mesma pesquisa o número de vendas do livro eletrônico é bastante superior, e gira

em torno de 6% do mercado global de livros no mercado americano, tendo representado em

2002 cerca de US$ 122 milhões, porém, na categoria de livros eletrônicos encontram-se

também CD-Roms e áudio-books, um dado importante para nossa análise é o número de

exmplares de e-books comercializados em 1998 que foi de 100 mil unidades, quando

comparamos este numero com o de 2005 podemos identificar a escala do crescimento que

este mercado apresenta.

Dentre as empresas editoriais de origem americana, com atuação global e cuja

estratégia de negócios envolve diretamente a comercialização de produtos em formato

eletrônico, destaca-se a Thompson Corp, a empresa atua em 53 países nas áreas de direito,

contabilidade, treinamento de RH, pesquisa científica, negócios e saúde. No Brasil possui o

IOB, editora que fornece no formato eletrônico informações para profissionais de direito e

ciências contábeis e a editora Thompson Learning (antiga editora Pioneira). Segundo Earp

e Kornis a empresa possui mais de 12.000 produtos compostos por cerca de 800 milhões de

páginas, 56% de seu faturamento total anual que é de US$ 7,7 bilhões, advém da venda de

conteúdos eletrônicos, grande parte dele comercializado na forma de assinaturas. Isto

significa que com o comércio de conteúdos eletrônicos a Thompson obtém uma receita

anual cinco vezes maior que a soma de receitas obtidas por todas as editoras brasileiras de

livros impressos, demonstrando haver imensas oportunidades de negócios no comércio

311

eletrônico de conteúdos, do qual o e-book é parte relevante. Sua estratégia de acesso a uma

base de dados facultado através de assinaturas aponta para um caminho de comércio

diferenciado para os conteúdos eletrônicos, ao invés de um livro, vende-se o ingresso à

biblioteca.

7. Conclusões provisórias.

O varejo do livro no Brasil viveu um processo de mudança na última década. O

número de pontos de vendas diminuiu e o espaço relativo do livro dentro das livrarias

também. Uma série de produtos da indústria cultural dividem o espaço de muitas livrarias

com os livros. A maioria das novas livrarias estão sendo abertas em shopping centers, ou

em outros tipos de espaços de consumo e grande circulação, como aeroportos,

universidades, complexos de exibição de filmes, etc. Esta tendência onera o m² e torna mais

crítica a dependência do giro de mercadorias, fator determinante para a presença de novos

produtos no mix das livrarias. A Internet vem se consolidando como canal de vendas de

livros impressos, representando para as redes de livrarias uma nova oportunidade de

expansão e capilarização das ações. Diferentemente de épocas pretéritas o atual modelo de

livrarias é mais diversificado, no layout, tamanho, portfólio de produtos e perfil dos

atendentes. A segmentação observada no mercado editorial não afetou diretamente o

mercado livreiro, havendo pouquíssimas livrarias especializadas, a maioria possui um

catálogo amplo. Como mostram os números da pesquisa realizada pela CBL e o Instituto

João Pinheiro, a presença relativa da livraria como canal de comercialização de livros vem

declinando no decorrer dos anos. O grande vilão deste processo são as compras

governamentais que ao passarem por fora das livrarias inviabilizam a existência destas na

312

maioria dos municíp ios e periferias brasileiras, tornando o mercado profundamente

dependente das relações institucionais. O comércio de livros eletrônicos no Brasil é

incipiente e não passa pelo canal livraria, não influenciando, portanto, o desempenho dos

canais tradicionais de vendas. A venda direta de livros pelas editoras tem aumentado

significativamente com o advento da Internet, porém a grande maioria das empresas usa

ainda de forma muito incipiente este meio.

No próximo capítulo entenderemos melhor a configuração tecnológico do livro

eletrônico, de modo que poderemos, finalmente, discutir as perspectivas deste em relação

ao impresso e as possibilidades abertas pelas principais tendências tecnológicas no campo

da edição de conteúdos no formato eletrônico.

313

VII – Características técnicas do livro eletrônico.

1. Tecnologias da comunicação.

As tecnologias da comunicação desenvolvidas no decorrer da longa marcha

industrial do Ocidente encontraram um momento especial na conexão de computadores em

rede, naquilo que atualmente chamamos de Internet. Como vimos no capítulo cinco, os

pilares centrais do capitalismo informacional são os computadores, e a rede de conexões

estabelecidas entre estes. A natureza comunicacional dos computadores já se encontrava

nos princípios da informática, fato que pode ser evidenciado pela teoria cibernética, até

hoje, uma das mais influentes entre os desenvolvedores de hardware e software. Outra

característica importante dos artefatos informacionais, presentes nos primórdios desta

tecnologia, eram as capacidades inspiradoras que estes poderiam ter sobre nossa forma de

conceber e recepcionar textos. Steven Jonhson, em seu artigo “Cabeças de silício”, ressalta

este fato:

O título seminal em que (o engenheiro elétrico) Vannevar Bush (1890- 1974), em

1945, antecipava a concepção da máquina de informação moderna , acionada por

hipertexto, era “Como poderíamos pensar”. O maravilhoso relato de Howard Rheingold,

fundador do site Eletric Minds e autor de “Smart Mobs” (multidões inteligentes), sobre as

experiências dos pioneiros da computação era intitulado “Ferramentas para pensar”.

(Johnson, 2005 – domingo 13/02/2005 – caderno Mais - FSP)

Uma das preocupações de Johnson neste artigo é demonstrar que os pioneiros da

informática acreditavam que profundas mudanças se processariam na forma como as

314

pessoas criariam e recepcionariam textos a partir da introdução do computador e do

hipertexto. As idéias mais radicais trabalhavam com as possibilidades da prórpia forma de

pensar ser afetada pelos novos mecanismos. De certa maneira, como já apontamos no

capítulo cinco, o computador produziu algumas importantes mudanças na nossa forma de

escrever textos, tornado-a não apenas mais veloz, mas também como um processo em que a

elaboração e a escrita ocorrem pari passo, pois os erros podem ser imediatamente apagados.

A operação de ferramentas de busca dotadas de inteligência artificial tornou a construção

de textos e idéias um verdadeiro brainstorm , e a utilização de bancos de dados pessoais

amplificou de forma exponencial nossa capacidade de confrontar idéias. Isso posto, parece

que as profecias dos gurus da informática se realizaram, em parte, no que diz respeito à

construção de textos.

O fenômeno da recepção também passa por grande transformação, à medida em que

os mais diversos conteúdos são digitalizados ou publicados diretamente na rede. A

mudança mais perceptível é a do acesso, que agora, em parte, pode ser imediato e

independente de uma visita física à biblioteca. Um fato que se desenvolve enquanto escrevo

este capítulo ilustra esta situação. Este semestre estou130 ministrando aulas da disciplina

Metodologia Científica para os cursos de Comunicação Digital da UNIP. Para o trabalho

final, solicitei aos alunos um projeto de pesquisa, no qual cruzem um objeto com uma

teoria do campo da comunicação. Alguns alunos estão montando um projeto sobre as

transformações ocorridas na fotografia com a emergência das tecnologias digitais. Sugeri

que utilizassem alguns textos do Walter Benjamin para o trabalho, entre eles o “Pequena

história da fotografia” e “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Os dois

130 Em geral tenho usado a terceira pessoa do plural para apresentar esta dissertação, neste caso, por se tratar de uma experiência muito particular, quebrei esta seqüência me valendo da primeira pessoa do singular.

315

textos possuem versões digitalizadas disponíveis na WEB, fato que os alunos descobriram

imediatamente, já que nos encontrávamos no laboratório de informática quando sugeri as

referências bibliográficas.

Para além da agilidade e como já mencionado no capítulo cinco, o conjunto de

textos e informações coligidos no decorrer de minha vida intelectual, podem ser

transportados para a um banco de dados criado e alimentado e que pode se encontrar

hospedado em qualquer lugar da rede mundial de computadores. Quando procedo uma

busca nestas informações, posso descobrir relações inusitadas que, através de um processo

associativo, sugerirá novos caminhos. Este procedimento sugerido pelo artigo “Cabeças de

Silício”, tem sido bastante fértil, no referido artigo, Steven Johnson expõe sua experiência

pessoal no uso destas ferramentas:

Estou trabalhando em um projeto que envolve a história dos esgotos de Londres.

Noutro dia, realizei uma busca que incluía a palavra "esgotos" diversas vezes. Porque o

software sabe que a palavra "resíduo" é muitas vezes empregada ao lado da palavra

"esgoto", me conduziu a uma citação que explicava a maneira pela qual os ossos evoluíram

nos corpos dos vertebrados: reaproveitando os resíduos de cálcio criados pelo metabolismo

das células. Esse resultado pode parecer incongruente, mas me conduziu a uma longa e

frutífera jornada lateral sobre a maneira pela qual sistemas complexos - quer se trate de

cidades, quer se trate de corpos - encontram maneiras produtivas de empregar o resíduo que

geram. Ainda é cedo, mas é bem possível que eu obtenha todo um capítulo do livro dessa

centelha de idéia. (Johnson, 2005)

Tanto a citação utilizada por Johnson, quanto as versões dos textos de Benjamin

encontradas pelos alunos padece de um dos principais problemas que envolvem as

pesquisas na Internet e a utilização de banco de dados ilimitado, como fonte de pesquisa

316

científica, qual seja, a integridade, legitimidade e credibilidade das informações obtidas. Os

três adjetivos alinhados possuem pontos de intersecção, mas não podem ser utilizados como

sinônimos. Entendemos por integridade dos dados a semelhança rígida destes com as fontes

originais. Por legitimidade, a aceitação destes dados como válidos pelo campo do

conhecimento estudado e credibilidade refere-se à reputação, tanto do autor dos dados

quanto do site que o abriga e publica na Internet.

Para aferir legitimidade, credibilidade e integridade há que se ter competência de

repertório, podemos deduzir que Johnson, um veterano pesquisador e escritor reúne

condições necessárias para validar os conhecimentos coligidos, mas não se pode pensar o

mesmo, por exemplo, em relação à média do alunado do ensino universitário da rede

privada. No capítulo três desta dissertação, nos referimos ao mercado editorial como um

sistema perito, constituído de agentes responsáveis pela reunião, revisão e publicação de

conhecimentos. Um dos efeitos diretos da criação do campo é o estabelecimento de

legitimadores de conteúdos, função implícita de todo o sistema de trocas simbólicas. O

mesmo ainda não pode ser afirmado acerca da Internet, devido a sua característica fluída,

avessa à institucionalização e estabilidade.

2. Desmaterialização de conteúdos.

Segundo Bernard Miège, o futuro das “indústrias do conteúdo”, dentre as quais se

encontra a indústria editorial, depende das técnicas de informação e de comunicação. “O

futuro das indústrias do conteúdo é dependente das técnicas da informação e da

317

comunicação (TIC), de quem elas constituirão um componente essencial e onde

representam a principal fonte de valor. ”131 (Miège, 2000: 7)

Para o autor, as indústrias do conteúdo representam a condição atual das indústrias

culturais, cada vez mais dependentes das TIC (tecnologias da informação e comunicação).

As formas e modelos de negócios destas indústrias não são resultado de uma ruptura radical

promovida pela informatização, mas, sim, a permanência em constante adaptação de

fórmulas plasmadas na passagem da produção artesanal para a industrial de conteúdos

culturais.

Para Miège, a emergência do paradigma info-comunicacional não se dá em oposição

às práticas sociais dominantes, mas sim integrado e como acelerador delas. Como subsídio

às suas idéias, se vale de teóricos das indústrias culturais, como Nicholas Garnham, para

quem as mercancias da cultura possuem três características específicas: primeiro, cada

produto da indústria cultural é um protótipo, cujo aproveitamento dependerá da reprodução

e distribuição e das economias de escala representadas pela maximização da audiência;

segundo, apresentam uma demanda elástica e instável, de modo que nada é previamente um

sucesso ou um fracasso, exigindo a criação de diversos protótipos que comporão o catálogo

e terão a oportunidade de testar suas sortes; terceiro, os produtos não são destruídos em seu

consumo, criando, por vezes, a possibilidade de excesso de produtos no mercado, fazendo

com que os produtores e distribuidores adotem estratégias de oferta limitada.

Em seus textos da década de 1990, Miège já trabalhava com a caracterização de que

as indústrias culturais atuavam sobre três modelos de negócios fundamentais, os modelos

editorial, de flot e um modelo misto. O primeiro forjou-se a partir da edição de livros e, 131 Traduzido por Karina Medeiros de Lima, para sua resenha do livro “As indústrias do conteúdo e a ordem informacional”.

318

posteriormente, se entendeu para os outros modelos e têm por base a cobrança dos usuários

pela posse ou audiência dos conteúdos. O segundo desenvolveu-se a partir da década de

1920 com o rádio e depois se estendeu à televisão, sendo mantido pela publicidade. O

terceiro, utilizado por jornais, revistas e mais recentemente por portais de informação

mescla os dois modelos anteriores.

Segundo o autor, na década de 1980, o modelo de flot aumentou de tal forma sua

força que passou a colo nizar os outros modelos, penetrando inclusive os conteúdos

mobilizados por estes meios. Sob o signo da lógica econômica exacerbada, as indústrias

culturais vivem uma importante transformação devido à emergência das TIC:

O crescimento das modalidades tornado possível pela extensão das TIC, e a

mobilização dos conteúdos informacionais e culturais pelo conjunto do setor da

comunicação, em vista do sucesso de seus programas industriais, coexistem com a aparição

de novas indústrias da informação e da cultura. A emergência das indústrias do conteúdo

deve ser encarada como uma das tendências marcantes das sociedades contemporâneas.

(Miège, 2000: 74)

Então, quais seriam as características desta nova fase das indústrias culturais

denominadas de indústrias do conteúdo? O autor de “As indústrias do conteúdo e a ordem

informacional” nos apresenta algumas das tendências deste renovado capitalismo da

cultura:

1) A individualização das práticas e a extensão do pagamento pelos consumidores: A

extensão e diversificação da ofe rta de produtos ampliam as possibilidades de

cobrança criando uma diferenciação de conteúdos, que torna justificável o

pagamento. É o caso, por exemplo, da TV por assinatura. A sociedade centrada no

319

lar, e a tendência ao individualismo contemporâneo, encontram-se no consumo de

produtos culturais. Os aparelhos de MP3, como o iPod, são um exemplo deste

consumo cultural individualizado.

2) Crescimento dos mercados consumidores. O caráter imaterial dos conteúdos

culturais geram novas oportunidades de negócios, bem como a presença destes

conteúdos nos diversos campos da cultura tornam possível a expansão do mercado

consumidor. Isto requer imensos investimentos em promoção e a criação de cadeias

de valores estratégicas que absorvem o conteúdo de várias formas. Por exemplo:

cinema, game, DVD, TV por assinatura e finalmente TV aberta.

3) Desmaterialização dos suportes: os diversos suportes nos quais os conteúdos são

materializados, como papel no caso dos impressos e o metal no caso de imagens e

sons, abre espaço para o on-line, um banco de dados localizado não se sabe onde,

mas que pode ser acessado por infinitas portas que são os computadores plugados

na Internet. Esta característica intensifica as possibilidades do item anterior,

atingindo públicos diversos.

4) A característica estratégica da difusão de produtos: O processo de distribuição dos

produtos culturais encontra-se mais do que nunca ligado às telecomunicações. Por

cabo, satélite ou através do ar, os conteúdos digitalizados podem circular

diretamente até os lares dos consumidores. A diversificação de conteúdos e de

mercados e o fato de os consumidores estarem dispersos por todo o mundo

favorecem a centralização e a concentração da produção, pois estas indústrias ficam

cada vez mais dependentes de grandes aportes financeiros. Os novos canais de

distribuição (telecomunicações) são intensivos em capital, fazendo com que

320

poderosos grupos financeiros passem a atuar no mercado promovendo aquisições,

fusões e destruições de empresas. Para o autor as próximas décadas serão marcadas

por uma forte concentração do capitalismo midiático, visando o controle de

transmissão de dados.

5) Convergência tecnológica: a convergência entre informática, telecomunicações e a

indústria cultural não é um resultado “natural e irreversível”. Ela é fruto de

necessidades de grupos econômicos que buscam economia de escala e escopo num

cenário de disputa de ativos que são empresas e contratos destes três segmentos.

Este processo envolve questões políticas e resistências dos diversos agentes que se

vêem ameaçados por grupos maiores e mais poderosos. Como exemplo disso temos

a Rede Globo e seu movimento intitulado “Conteúdo Brasil”, do qual tratamos no

capítulo quatro.

6) Multimídia: como resultado da convergência a multimídia propicia uma série de

oportunidades para a criação e a renovação dos conteúdos informacional e ficcional.

Ao concluir seu livro sobre indústrias do conteúdo, Bernard Miège se vale das

idéias de Jean- Guy Lacroix e de Gaetam Tremblay para firmar um diagnóstico do papel

que estas indústrias possuem na atual fase do capitalismo informacional:

O seu avanço pode ser interpretado como um movimento dialético complexo

incluindo simultaneamente 1. a integração das atividades culturais e comunicacionais no

espaço mercadológico e industrial; 2. a redefinição de normas de produção resultantes

desta integração; 3. a extensão das características do setor cultural no conjunto da

produção econômica; 4. uma diluição concomitante de sua especificidade e sua densidade

321

nos campos da cultura e da comunicação. (Lacroix e Trembbaly, 1997, apud Miège,

2000:111)

O livro eletrônico emerge como uma das resultantes destas características e se insere

nos processos listados acima, em especial nos itens 1, 2 e 3. Antes de tratar destas questões

buscarei caracterizar o livro eletrônico e os aspectos técnicos que o compõem.

3. Surgimento do livro eletrônico.

Vannevar Bush, um dos gurus da informática, idealizara em 1945 um mecanismo

que permitiria o armazenamento e a recuperação de livros, artigos e anotações pessoais de

forma rápida e economicamente viável. Batizado de Memex, o desajeitado equipamento

seria uma espécie de fóssil dos atuais computadores pessoais e tinha em sua concepção a

funcionalidade de ligar-se em rede a bancos de dados que forneceriam todo o tipo de

informação; neste sentido, era também um ancestral da Internet. Caso desejemos ser mais

específicos, o Memex de Bush era uma espécie de prótese da memória humana, algo que

nossos computadores pessoais já são, caso os usemos da forma criativa como propõe

Steven Johnson. Mas o Memex era também um precursor dos atuais mecanismos dedicados

de leitura, chamados de e-books. Esta denominação, entretanto, gera muita confusão, pois

estes aparelhos portáteis, criados com a capacidade de armazenar textos, gr áficos, desenhos

e planilhas, reproduzindo em suas telas a sensação de leitura das páginas de um livro, são

armazenadores e exibidores de conteúdos, mas não são o próprio conteúdo. Além disso,

como acontece com os nossos computadores pessoais, os e-books necessitam de programas

322

para exibição e manipulação dos conteúdos, softwares que representam a interface e que

simulam a leitura dos livros suportados em papel.

Afinal como definir o e-book? Segundo Furtado, a Association of American

Publishers caracteriza o e-book, como “ uma Obra Literária sob a forma de objeto digital,

consistindo em um ou mais standards de identificação, metadata, e um corpo de conteúdo

monográfico, destinado a ser publicado ou acessado eletronicamente” (Association of

American Publishers, 2000:56 apud Furtado, 2006: 52). Nesta definição fica evidente,

como destaca Furtado, que a preocupação é com a designação de um conteúdo “único” que

possa ser protegido pelo copyright. A referência é feita ao conteúdo, mas também ao tipo

de empacotamento de dados, cuja configuração pressupõe-se monográfica. Para Roncaglia

existe uma concepção bastante extensa quando se fala em e-book , podendo esta se aplicar a

qualquer “texto completo, orgânico e suficientemente longo (monografia), disponível no

formato eletrônico que permita – entre outras – a distribuição em rede e a leitura através de

qualquer tipo de dispositivo hardware, dedicado ou não.” (Roncaglia 2001b, apud Furtado,

2006: 57) O autor acrescenta que: “tendo em consideração a sua extensão e as

características de completude e organicidade, se o texto em questão, em vez de estar

disponível em formato eletrônico, fosse impresso, seria provavelmente impresso sob a

forma de livro. (Roncaglia, 2001b, apud Furtado, 2006: 58)

Parece haver uma necessidade de, ao referir-se ao texto digital compará-lo a um

livro, valendo-se deste como metáfora para esta nova configuração. Ocorre que, em muitos

aspectos, o que se convencionou chamar e-book difere enormemente do livro impresso.

Vejamos:

323

• Um e-book é, antes de mais nada, um ajuntamento de dados expressos

numericamente em código binário;

• Para que estes dados se expressem de forma a serem recepcionados pelo leitor, faz-

se necessário que sejam traduzidos por uma interface gráfica, em geral, a camada

visível de um software dedicado à leitura e composição de textos.

• Finalmente, para que ocorra a possibilidade de leitura, também necessitamos de um

hardware, que funcione ao mesmo tempo como receptáculo dos dados e do software

e que possua um écran para exposição da interface e dos dados convertidos em

textos.

• Simultaneamente uma fonte de energia deverá alimentar o hardware a fim de que o

processo de exibição possa ocorrer.

Nenhuma das características acima é comum ao livro impresso, já que nele a

interface é a própr ia manifestação impressa do texto. Nenhuma fonte de energia é

necessária para a leitura, nenhum artefato material, além do próprio livro se faz necessário

para que a leitura ocorra durante o dia. No caso do livro impresso, texto e artefato são uma

mesma coisa. No caso do livro eletrônico, o texto encontra-se codificado em uma

combinação de dados.

A indústria de TI lançou pela primeira vez um produto denominado de e-book, em

1998. Eram iniciativas simultâneas da SoftBook Press que lançou o Soft eBook Reader e da

NuvoMedia Inc. que lançou o Roket eBook, aparelhos dedicados a leitura e armazenamento

de textos, podiam armazenar até 5000 páginas com textos, gráficos e tabelas, o equivalente

a cerca de 20 livros de 250 páginas. Os softwares de que eram dotados os aparelhos

324

também permitiam anotações, mudança do tamanho de fontes, grifo e marcação dos pontos

em que se parava a leitura. O Rocket eBook tornou-se o mais popular destes aparelhos e

logo atraiu um grupo de usuários que, como clientes missionários, se dedicaram a

digitalizar textos para serem lidos nestes aparelhos.

Nos poucos anos que nos separam do lançamento destes primeiros aparelhos

diversos modelos foram lançados e descontinuados. Três problemas fundamentais afetaram

a vida destes primeiros aparelhos dedicados à leitura:

1. Que padrão de softwares (linguagem) seria utilizado nos leitores? Muitas empresas

optaram por padrões proprietários132 o que tornava a leitura dos textos em outros

aparelhos, como Desktops e Laptops, inviável ou pelo menos trabalhosa, já que era

necessário instalar o software de leitura.

2. Que conteúdos ler, já que a maioria dos livros disponibilizados eram de domínio

público e de fácil acesso no formato impresso?

3. Que tipo de segurança estes produtos ofereciam para que o mercado editorial

disponibilizasse seus catálogos para a venda neste formato?

Nuvo-media e SoftBook Press foram compradas pela Gemstar em janeiro de 2000. Esta

empresa lançou quatro modelos de e-books readers, até que no início de 2006 anunciou o

encerramento de suas atividades; outros produtos foram lançados, como o goReader, o

Microsoft IPM-NET Myfriend e o Citale Cybook todos estes aparelhos possuem em

comum o fato de serem dedicados exclusivamente a leitura de livros eletrônicos e, por isso,

conhecidos em inglês como e-books devices. Além destes aparelhos dedicados, uma série

132 Padrão proprietário na indústria de software designa um padrão de propriedade de uma única companhia, obrigando os usuários da funcionalidade a recorrerem sempre a este, quando utilizam o produto.

325

de outros dipositivos portáteis também são utilizados como leitores de e-books, é o caso dos

PDAS/Pocket PCs, dos Palm Pilots. São menores que os leitores dedicados e possuem uma

série de outras funcionalidades, como agenda pessoal, processador de texto, máquina

fotográfica, gravador de voz, tocador de MP3, câmera fotográfica e mecanismo de acesso à

Internet. Outros tipos de aparelhos surgiram recentemente como o eBookMan, o hie-book e

o GoReader, que são ao mesmo tempo computadores de mão como os citados

anteriormente, mas com a dimensão dos e-book devices, de forma que podem ser

considerados mecanismos híbridos.

Quanto aos softwares destinados à geração, exibição e manipulação dos textos

eletrônicos, dois se tornaram “hegemônicos”, o Adobe Acrobat eBook Reader e o

Microsoft Reader. A utilização destes softwares nos PDAs e atualmente em alguns

telefones celulares que também são PDAs os têm tornado bastante populares. Juntamente

com os softwares se junta um conceito de DRM (Digital Rights Management), cuja função

é impedir ou facilitar a realização de algumas operações do usuário com o conteúdo do

livro eletrônico.

Em 2006, a Sony, uma das maiores empresas da área de entretenimento eletrônico

do mundo, presente nas indústrias cinematográfica, fonográfica e de games, anunciou o

lançamento de seu e-book device, batizado de Sony Reader. A empresa afirma que seu

leitor de livros possui capacidade para armazenar 80 títulos, ocupando cada obra uma

média de 800 Kb. A tela de exibição possui 6 polegadas e resolução de 800 x 600. Em

termos de energia, funciona com uma bateria recarregável de litium. O Sony Reader possui

64 MB de memória interna e lê os formatos BBeB Book, PDF e MP3.O pequeno "Reader"

mede 17.5 x 12.5 x 1.27 cm e pesa apenas 250 gramas. Será comercializado a partir de

326

2006 a um preço que varia entre os 300 e os 400 dólares no mercado americano. A empresa

tem a pretensão de transformar o seu leitor no iPod133 dos e-books e para tanto negocia o

conteúdo com editoras como a HarperCollins, Penguin e Random House, Os arquivos

digitais para este suporte poderão ser adquiridos em sua loja virtual a Connect, que já

vende MP3 há alguns anos. A presença de um player como a Sony aponta para um novo

começo deste mercado, em especial para os detentores de conteúdos que passam a contar

com um parceiro financeiramente forte para financiar os custosos processos de segurança

necessários à manutenção da integridade dos arquivos e a sua comercialização legal.

Porém, para muitos editores, a presença da Sony, cujo faturamento de apenas um dos

cartuchos de seu Playstation II rende mais do que todo o faturamento anual do mercado

editorial brasileiro, pode representar uma ameaça real. Este fato pode certamente afastar

muito conteúdo de sua livraria virtual, atrasando e até abortando este projeto. A pequena

aderência dos editores já aconteceu antes, por exemplo, com a RCA, antiga detentora da

Gemstar e com a Barnes and Nobels que desistiu de vender conteúdos de livros eletrônicos

em seus sites.

Apesar do estrondoso lançamento da Sony e de seu posicionamento como fornecedora

de hardware, software e conteúdo, a tendência do mercado de e-books device aponta para

aparelhos multifuncionais que dentre suas diversas funções possibilitem também a leitura

adequada dos textos, pois existe uma relação deste segmento das indústrias culturais (de

conteúdo) e as tendências mais gerais que envolvem as TIC. Segundo Nicolaas

Hazewindus: “os diferentes mundos da televisão, telefone, e processamento de dados estão

começando a partilhar tecnologias similares e a sobrepor-se. Esta convergência tecnológica

133 Executor de músicas em MP3 da Apple, que se tornou líder na área de execução de músicas no padrão digital protegido, ou seja, com pagamento de royalties .

327

acarreta um conjunto de outros movimentos de convergência em matéria de produtos,

mercados e negócios.” (Hazewindus et. Al. 2000, apud Furtado, 2006: 48)

Outro aspecto que merece menção em relação aos e-books diz respeito à forma

como estes são construídos do ponto de vista da linguagem textual e de sua superação

através de uma construção hipertextual. Para alguns teóricos a metáfora excessivamente

rígida do livro impresso, a qual se submeteu o eletrônico, está aquém do potencial do e-

book, pois uma ruptura fundamental ocorreu entre o texto e seu suporte: “É passar do livro-

objeto, ao livro interativo, ao livro em rede, ao livro multimídia.” (C lement, 2000: 129 e

141, apud Furtado, 2006: 64)

A glorificação do hipertextual como oportunidade de superação e transcendência

presente na experiência do livro eletrônico encontrou solo fértil nas teorias pós-modernas

que identificavam o fim das grandes narrativas e, por derivação, do narrador, a

fragmentação da verdade em diversos pontos de vistas e a abolição de hierarquias espaciais

e temporais, bem como de um centro ordenador e hierarquicamente superior. Deste modo à

defesa da experiência hipertextual, por parte de alguns teóricos assume um papel político,

que os leva a considerar esta modalidade de texto como a mais natural aos processos

cognitivos e, portanto, uma manifestação da evolução do texto rumo à forma mais

adequada de expressão.

Poucas foram as experiências hipertextuais que conseguiram romper o gueto dos

grupos de vanguarda artística e poética. Existem diversas iniciativas de estudar

profundamente as implicações desta nova manifestação textual no campo da educação e das

artes, entretanto, quando nos referimos ao mundo da edição de livros eletrônicos, o que

328

encontramos é ainda a transposição de textos impressos, ou a construção multimídia

hierarquizada de obras de referência como enciclopédias e dicionários.

Acreditamos que agora é possível apresentar uma classificação do fenômeno do e-

book em suas diversas partes:

Hardware: mecanismos que permitem a exibição e manipulação dos conteúdos

eletrônicos; podem ser dedicados exclusivamente a este fim, ou apresentar uma série de

outras funcionalidades. Vão desde os computadores pessoais, até os computadores de mão,

passando pelos e-book readers.

Software: são de duas naturezas, existem aqueles criados com base em formatos que

visam possibilitar a leitura, existem formatos Markup como o HTML (HiperTe xt Markup

Language), o XML (Extensible Markup Language) e formatos Layout, tais como o PDF

(Adobe Acrobat`s Portable Document Format) e o .LIT(Micorosoft Reader`s Litarature). A

estes formatos podem corresponder softwares vendidos individualmente, através de pacotes

ou instalados diretamente nos hardwares. Além destes formatos, existem aplicações que se

juntam, a elas a fim de assegurar a segurança e o gerenciamento dos conteúdos que serão

exibidos através destas camadas de interface, às aplicações que permitem o DRM, em geral

se baseiam em criptografia, tornando possível através do uso de chaves, a comercialização

de conteúdos de formas variadas, por exemplo: só para leitura na tela do computador

pessoal (PC); para leitura em tela do PC, mas com direito de transferir uma única vez para

um computador de mão ou e-book reader, só para leitura em tela com direito a uma

impressão, e qualquer outra combinação envolvendo transferência de arquivos e

possibilidades de impressão e manipulação de dados. Um detalhe, o DRM permite a venda

do livro completo, mas também de partes como páginas e capítulos.

329

Conteúdo: o conteúdo é formado pelo conjunto de textos criados diretamente para

exibição no meio digital, ou traduzidos do meio impresso para o digital. Podem ser artigos,

e-papers, capítulos de livros, livros inteiros, obras de referência, obras multimídia e

hipertextos. Estes conteúdos podem ser livres licenciados sobre as diversas modalidades de

copyleft, ou protegidos sob a forma do copyright. Para efeito de definição do livro

eletrônico, creio que a definição utilizada no primeiro capítulo desta dissertação permanece

válida, acrescida de apenas um adendo que diz respeito às características hipertextuais e

multimidiáticas que esta obra pode assumir.

4. Bibliotecas digitais.

Uma das principais fontes para leitura de livros eletrônicos são as bibliotecas

digitais, criadas por ONGs, instituições de ensino e pesquisa, editoras virtuais, ou por

“hackers” dedicados à disseminação da tecnologia digital. Existem milhares de las na

Internet. No mundo lusófono, uma série de importantes bibliotecas digitais colocam à

disposição do leitor centenas de milhares de textos das mais diversas áreas. Segundo

Cunha 134:

Na biblioteca digital, definida por dezenas de autores, pode-se encontrar uma ou

várias das características seguintes:

a) acesso remoto pelo usuário, por meio de um computador conectado a uma rede;

b) utilização simultânea do mesmo documento por duas ou mais pessoas;

134 CUNHA, Murilo Bastos da. Desafios na construção de uma biblioteca digital . Ci. Inf. , set./dez. 1999, vol.28, no.3, p.257 -268. ISSN 0100-1965

330

c) inclusão de produtos e serviços de uma biblioteca ou centro de informação;

d) existência de coleções de documentos correntes onde se pode acessar não somente a

referência bibliográfica, mas também o seu texto completo. O percentual de documentos

retrospectivos tenderá a aumentar à medida que novos textos forem sendo digitalizados

pelos diversos projetos em andamento;

e) provisão de acesso em linha a outras fontes externas de informação (bibliotecas,

museus, bancos de dados, instituições públicas e privadas);

f) utilização de maneira que a biblioteca local não necessite ser proprietária do documento

solicitado pelo usuário;

g) utilização de diversos suportes de registro da informação tais como texto, som,

imagem e números;

h) existência de unidade de gerenciamento do conhecimento, que inclui sistema inteligente

ou especialista para ajudar na recuperação de informação mais relevante. (Cunha, 1999: 258)

Durante um certo período as bibliotecas digitais ofereciam apenas informações

bibliográficas e resumos dos respectivos textos que podiam ser encontrados em suas

prateleiras físicas. Esta aplicação, entretanto desenvolveu-se e boa parte das atuais

bibliotecas digitais oferecem textos completos para acesso de seus usuários. Abaixo

apresento exemplo de bibliotecas digitais em língua portuguesa:

Biblioteca virtual do estudante brasileiro: Criada em 1997, pela escola do futuro

da Universidade de São Paulo, a Biblivirt tem como objetivo oferecer arquivos de textos,

imagens e sons, bem como dicas de links para estudantes do ensino médio e fundamental.

Uma das principais funções da Biblivirt, além de tornar disponível gratuitamente para

alunos de língua portuguesa, textos fundamentais de literatura e material de estudo, é o de

331

tornar-se um referencial seguro na rede, atuando como certificadora dos conteúdos que

disponibiliza. A Biblivirt pode ser acessada no seguinte endereço:

http://www.bibvirt.futuro.usp.br

Portal domínio público: lançado em 2004 pelo Ministério da Educação, o portal

pretende disponibilizar obras de referência, textos acadêmicos e um amplo acervo literário,

musical e visual que se encontre em domínio público ou cujos autores estejam dispostos a

abrir mão do direito patrimonial, tornando disponíveis suas obras para os usuários. O portal

pode ser acessado no seguinte endereço: www.dominiopublico.gov.br

Acesso Livre Capes: Disponibiliza periódicos com textos completos, bases de

dados referenciais com resumos, patentes, teses e dissertações, estatísticas e outras

publicações de acesso gratuito na Internet selecionados pelo nível acadêmico, mantidos por

importantes instituições científicas e profissionais e por organismos governamentais e

internacionais. O portal pode ser acessado no seguinte endereço:

http://acessolivre.capes.gov.br

SCIELO(Scientific Electronic Library Online)

Biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos

com textos na íntegra do Brasil, Chile, Cuba, Espanha e Venezuela. Do Brasil são 159

períódicos listados, com milhares de números e centenas de milhares de artigos.A

biblioteca pode ser acessada no seguinte endereço: www.scielo.com.br

332

Reposcom - Repositórios Institucionais em Ciências da Comunicação: Coleção da

produção científica (livros, capítulos de livros, teses, dissertações, trabalhos apresentados

em Congressos, filmes, videos etc.) produzidos por associações, núcleos de pesquisas e

programas de pós-graduação em ciências da comunicação dos países de língua portuguesa.

O acervo é composto de aproximadamente 9000 artigos ligados à área de comunicação e

disponíveis gratuitamente pelo site nos formatos PDF e HTML. O acesso se dá através do

seguinte link: http://reposcom.portcom.intercom.org.br/

Uma lista completa das bibliotecas digitais em língua portuguesa ocuparia dezenas

de páginas e não é objetivo desta dissertação, o que desejo evidenciar com estes poucos

links, é que existe uma imensa base de dados digital, com, provavelmente milhões de

textos, oferecidos a partir de fontes seguras. Está base cresce a cada dia em ritmo superior

ao da produção impressa. Este fenômeno de alguma forma está influenciando a maneira

como leitores e produtores de textos se relacionam e certamente terá influências sobre o

futuro do e-book e do mercado editorial.

5. Blogs.

Os blogs são ferramentas de publicação de textos na Internet. A princípio começaram

como a extensão digital dos diários de adolescentes, mas rapidamente, por sua característica

pública, se transformaram no centro de gravidade de home pages pessoais, produzidas

assincronicamente, mas disponíveis a qualquer momento para o acesso dos mais variados

usuários e abertas a partir de uma janela pop-up, na qual os visitantes podem registrar suas

333

impressões e comentários, tornando polifônico o espaço editorial ocupado originalmente

pelo autor do blog.

Esses espaços a princípio utilizados como diários de adolescentes foram apropriados

por jornalistas, escritores e consultores, se transformando num espaço privilegiado de

contato entre estes profissionais e seus interlocutores. Grande parte do jornalismo analítico

representado pelos colunistas dos grandes diários impressos já apresenta blogs, abrindo um

espaço ágil e interativo para que estes cronistas da realidade se encontrem com seus leitores

admiradores e críticos. O novo uso dos blogs conferiu a este novo formato do texto um

status de seriedade e legitimidade, que de certo modo se espalhou não apenas para os blogs

dos cronistas profissionais, mas também para inúmeras páginas de autores independentes

que encontraram neste formato a oportunidade de publicarem seus textos sem qualquer

mediação editorial. Alguns destes autores que iniciaram sua experimentação literária em

blogs transformaram seus textos eletrônicos em livros, a partir de iniciativas pessoais ou

através de editoras tradicionais. Comentando esta experiência, no que chama de geração 00,

a poeta Elisa Andrade Buzzo comenta esta experiência:

A internet através dos blogs, principalmente, funciona como um espaço de

autopublicação e experimentação constante, papel em branco em que se rabisca e se

escreve e se altera e se apaga. Impressionante a quantidade de blogs de literatura que

brotaram nos últimos anos. Também entrei nessa euforia (ou será melhor dizer moda?). No

fundo, parece sempre haver uma esperança juvenil de que essa produção seja

“reconhecida” em livro, o que já aconteceu com alguns blogs de prosa. No entanto,

creio que esse viés do blog, ainda que válido, seja apenas um resultado de sua

importância. O blog possibilita que um texto entre em consonância (ou dissonância)

com imagens, sons ou mesmo vídeos postados, sua reunião cria uma comunidade virtual

334

ativa. Ainda há a interatividade, um canal de comunicação através dos comentários

entre leitores-autores, autores-autores. (Buzzo, 2006)135

As questões levantadas pela artista parecem estar presentes em inúmeros blogs que

visitados, são espaços múltiplos, com predominância de textos, mas também com fotos,

vídeos e arquivos sonoros. Alguns possuem centenas de comentários, outros apresentam

pouca participação dos leitores, mas isso parece não desmotivar os autores que continuam

publicando seus poemas, contos e crônicas do cotidiano. 136 Apenas na Web brasileira

existem centenas de milhares de blogs, sobre os mais variados temas e com os mais

variados fins; quantos destes são dedicados à produção de textos, seria difícil precisar. O

que importa para nossa investigação é que esta parece ser uma nova forma da expressão

textual em geral e da produção literária em particular.

6. Substituição tecnológica: como outras indústrias criativas estão recebendo o

fenômeno da mudança de suportes: o caso do DVD.

A seguir pretendemos apresentar um breve relato sobre a passagem do formato VHS

utilizado para gravação e reprodução de filmes para o formato digital popularizado como

DVD. Acredito que este acontecimento pode fornecer subsídios para nossa análise das

relações que envolvem a emergência do livro eletrônico e sua convivência com o livro

135 Buzzo, Elisa Andrade: Novos autores na poesia brasileira. Disponível em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=1919. Acessado em 16/06/2006 136 Um exemplo de escritor que estreou na Internet e depois migrou para o mundo do livro impresso, é o de Daniel Galera, editor do eZine Cardos Online entre 1998 e 2001. Fundou em 2001, juntamente com outros escritores, a editora Livros do Mal. Publicou eletronicamente dois livros, “Dentes Guardados” (2001) e “Até o dia em que o cão morreu” (2003). Em 2006 publicou pela Cia das Letras o romance “Mãos de Cavalo”.

335

impresso. Erik Felinto, nos fala em seu artigo, “ Novas tecnologias, antigos mitos:

apontamentos para uma definição operatória de imaginário tecnológico”, da presença de

metáforas e mitemas que indicam uma certa cosmovisão que penetra na cultura e de certa

forma se introduzem e são assimilados como se fossem “naturais”. Segundo Lucien Sfez,

esse imaginário possui um caráter circular e autogerador:

A serviço de uma ordem, as técnicas solicitadas não são entretanto somente

meios visando a este fim, elas têm sua vida própria, isto é, um funcionamento, que exige

que o universo onde elas vivem reflita seus próprios traços(...) A técnica assim

reinvindicada instaura, pois, um mundo à sua imagem (Sfez 1996: 110 apud Felinto,

2003: 181)

As novas TIC, como apontou Miège, colonizaram as indústrias culturais da música,

do cinema e da edição, promovendo nestas uma nova dinâmica, diferente e ainda mais

mercantil que a observada na era industrial:

Hay que subrayar dos elementos de dicha definición: 1) la continuidad necesaria de la

programación y la necesidad de renovar permanentemente los productos, lo que implica una

regularidad sin fallos; y 2) la interferencia entre el campo de la cultura y el campo de la

información, que corresponde, por otra parte, a situaciones muy diversas: periódicos, diarios de

información, revistas, documentales, programas destinados al público infantil, programas de

variedades, programas con vocación literaria o artística, programas educativos, etc., todo tipo de

categorías de programas, que es interesante difundir por diversos medios, tanto en los medios

generalistas de comunicación de masas para los que fueron preparados, como en los nuevos medios

(las redes de comunicación por cable, por ejemplo) que son fuertes consumidores de programas,

dado que tienen unos limitados medios de producción propia. Los productos de flujo y las

mercancías culturales tenderán, por tanto, a aproximarse. (Miège, 1998)

336

A hegemonia assumida pelo modelo de flot, intimamente ligada à experiência

tecnológica, introduz no campo das mercadorias culturais o conceito de obsolescência

presente no campo tecnológico. Computadores, aparelhos celulares, produtos eletro-

eletrônicos, todos padecem de uma crônica mortalidade. Todos já nascem velhos e deverão

ser substituídos por novos modelos, quando mudar a estação. Essa lógica foi observada na

indústria cultural primeiro com a substituição das TVs preto e branco pelas coloridas,

fenômeno que durou cerca de 20 anos, depois pela substituição do vinil pelo CD na

indústria fonográfica, processo que demorou cerca de 10 anos para se consolidar e

finalmente a substituição do VHS pelo DVD que aconteceu em três anos entre 2001 e 2004.

A rapidez e eficácia deste processo se devem a uma coordenação perfeita de

interesses entre as diversas partes da cadeia de valores do audiovisual. Este circuito é

formado por fabricantes de conteúdos (os estúdios) ? fabricantes dos aparelhos de DVD

? gravadores de mídia ? distribuidores ? exibidores cinematográficos (donos das salas

de cinema) ? emissoras de TV a cabo ? locadoras de vídeo ? canais abertos de TV.

Os fabricantes de conteúdos se acertaram com os fabricantes de aparelhos de modo

que a oferta do hardware ocorria em paralelo com a do conteúdo. A cadeia de exibição dos

filmes que premia a novidade estabeleceu prazos rígidos entre o lançamento do filme nos

cinemas, seu lançamento em DVD para as locadoras, sua exibição em TV paga e o

respectivo lançamento em DVD para a venda no varejo, na ponta final da cadeia de

exibição, a TV aberta, ficou com uma defasagem de aproximadamente dois anos em

relação ao lançamento cinematográfico. De forma simultânea o espaço do DVD para

locação aumentava nas locadoras enquanto o preço do hardware despencava nas lojas de

eletro-eletrônicos. Canais alternativos como bancas de jornal, lojas de discos e

supermercados passaram a comercializar o produto que na forma de VHS atingia apenas

337

timidamente estes pontos. Desta maneira o conjunto da indústria migrou de um suporte para

outro, dinamizando seu modelo de negócios que sofreu algumas alterações em sua

formação, sem entretanto modificar sua essência. O efeito colateral da migração foi o

aumento geométrico da pirataria, que aparentemente é satisfatoriamente compensado pelo

ganho de escala obtido com a venda de filmes em DVD nos diversos pontos de varejo.

Miège defende que o modelo de flot vem ampliando sua influência sobre o modelo

editorial, sem, entretanto que este perca totalmente sua autonomia. Filmes, fonogramas e

livros sempre se valeram do modelo editorial para serem comercializados, de modo que a

velocidade como os dois primeiro migraram para o mundo digital poderia ser entendida por

muitos como antecipação do que ocorreria no mundo do livro, mas isto não se verificou até

o momento. A fim de identificar possíveis motivos que levaram editores e autores a

resistirem à digitalização da indústria editorial, realizamos uma pesquisa de campo com

autores e editores, cujos dados serão expostos e analisados no capítulo oito, que segue.

338

VIII – Novas Identidades

1. Deslocamentos: o editor e o autor em face a emergência do livro eletrônico.

As mudanças no cenário tecnológico, econômico e político em relação ao livro

ocorrem em simultaneidade com alterações nas identidades dos agentes deste campo,

editores, autores e leitores. Nosso estudo se restringiu a autores e editores. Neste capítulo,

apresentaremos os dados consolidados e agrupados das pesquisas como subsídio para

verificar quais aspectos destas identidades se encontram em deslocamento, as possíveis

resistências e, por conseqüência os conflitos que estas deflagrarão com relação à

emergência do ambiente digital e do livro eletrônico. Para esta análise realizamos duas

pesquisas de campo, que são um desdobramento da primeira pesquisa realizada com 103

editores durante a Bienal do Livro de 2004.

2. Pesquisa com autores.

A pesquisa com autores foi realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2006, os

questionários foram compostos por perguntas fechadas e abertas e buscaram identificar o

perfil atual dos autores brasileiros e sua relação com os meios digitais em geral e com o e-

book em particular. Algumas perguntas visaram prospectar os possíveis desencaixes em

curso nas identidades dos autores. A pesquisa foi feita através da Internet, valendo-se de

uma lista atualizada de escritores. Foram enviados 400 e-mails contendo informações sobre

a pesquisa e o questionário . 37 autores responderam, porém sete questionários tiveram de

339

ser invalidados, por motivos variados. Assim foram tabulados dados de 30 escritores de

diversos gêneros. A seguir apresentamos cada uma das perguntas presentes no questionário,

os dados agrupados exibidos em gráfico e uma descrição objetiva dos dados. A análise

crítica dos mesmos ocorrerá no capitulo nove.

A primeira parte do questionário de autores se destinou ao registro dos dados

pessoais:

I - Dados Pessoais

01 - Nome: e-mail:

Principal ocupação profissional: site:

A segunda parte buscava detectar o histórico autoral, ou seja, o número de livros

editados, os gêneros em que se vinculavam, a origem do financiamento da edição, etc.

II - Histórico Autoral

02 – Quantos livros já escreveu?

Média de livros escritos 9,68 livros por autor

03 – Quantos livros foram publicados?

Média de livros publicados 7,36 publicados por autor

340

04 – Os livros que publicou podem ser classificados em quais dos segmentos abaixo

relacionados (escolha no máximo dois):

( ) Auto-ajuda ( ) Científico, técnico, universitário ( ) Jurídico

( ) Didático ( ) Infantil ( ) Prosa (novela, conto, romance, biografia)

( ) Poesia ( ) Teatro

Gráfico 07 - Pesquisa autores: Gêneros

Gêneros

6%15%

3%

15%

27%

34%Auto Ajuda

Científico

Didático

Infantil

Poesia

Prosa

Os segmentos de prosa e poesia representam juntos, mais de 50% da amostra.

05 – Acerca dos livros publicados, qual das seguintes afirmativas é a mais correta:

a – ( ) Todos foram editados por editoras e estas arcaram com todos os custos.

b – ( ) Todos foram editados por mim que financiei todos os custos.

c – ( ) Parte foi editada por mim e parte por editoras.

d – ( ) Todos foram editados por editoras, mas eu ajudei a financiar as edições.

341

Financiamento da publicação

60%23%

17% 0%

ABCD

Gráfico 08- Pesquisa autores: Fonte de financiamento da publicação

Aproximadamente 60% dos livros publicados foram investimento de editores, cerca

de 23% dos autores bancaram a publicação de seus livros e 17% deles já publicaram livros

as suas expensas, mas também outros com investimento de editores, nenhum publicou por

editoras que cobram pela edição.

06 – Para os títulos editados por editoras comerciais ou institucionais, foram firmados

contratos de edição entre você e estas?

( ) Sim ( ) Não

100% daqueles que publicaram por editoras firmaram contratos.

07 – Este(s) contrato(s) prevêem a edição da(s) obra(s) em quais suportes/meios (possível

mais de uma alternativa):

342

( ) Eletrônico – e-book

( ) Impresso

Gráfico 09- Pesquisa autores: Contrato editoria versus suporte

Relação do contrato editoria X Suportes

76%

24%

ImpressoIMPR. + ELETR.

A hegemonia do impresso manifesta-se inclusive nos contratos.

III - Identidade de Autor

A terceira parte da pesquisa buscava identificar a identidade do autor, ou como estes

se relacionam com o lado autoral, em especial nos vieses pecuniários e de autodefinição.

08 – Sobre os ganhos obtidos com os direitos autorais dos livros, qual das frases abaixo se

aproxima mais da realidade:

a – ( ) Correspondem a minha principal fonte de renda.

b – ( ) Representam parte importante de minha renda.

343

c – ( ) Representam uma complementação de minha renda.

d – ( ) São irrelevantes para a composição de minha renda.

Importância dos livros na renda pessoal

0% 10%

40%50%

ABCD

Gráfico 10- Pesquisa autores:Importância dos livros na renda pessoal

Para 50% dos autores a atividade de escritor contribui de forma marginal em suas

rendas, para 40% representa um complemento, apenas para 10% ela representa parte

importante, enquanto ninguém respondeu que vive exclusivamente desta atividade.

09 – Quando você preenche algum formulário que exige a designação de profissão, que

profissão você preenche neste campo?

344

Profissão

5% 10% 5%

5%

5%

28%13%

5%

14%5% 5%

AposentadoAtorConsultorEngenheiroGerente de sistemasEscritorJornalistaPublicitárioProfessorTerapeutaOutros

Gráfico 10- Pesquisa autores:profissão

28% porcento dos entrevistados se autodeclaram escritores, a docência e o

jornalismo são as outras identidades profissionais mais citadas.

10 – Ao escrever um novo livro, qual das frases abaixo descreve melhor sua relação com a

possível audiência:

a – ( ) Não me preocupo com a audiência

b – ( ) Tento equilibrar o que acredito ser a demanda da audiência com minhas

necessidades criativas.

c – ( ) Preocupam-me minhas necessidades criativas e as repercussões da obra entre

meus pares (outros escritores, crítica, etc)

d – ( ) Preocupo-me basicamente com a audiência e com as impressões que a obra

causará no editor.

345

e – ( ) Tento equilibrar minhas demandas criativas com as impressões que a obra causará

ao editor.

Relação com a audiência

50%

30%

10%7% 3%

A BCD

E

Gráfico 11- Pesquisa autores:relação com audiência

Metade dos entrevistados diz não se importarem com a audiência quando criam seus

trabalhos. Este “descaso” com os receptores é predominante no caso dos poetas e

prosadores. Entre os que se preocupam com a audiência e o editor predominam os que

escrevem livros didáticos e de auto-ajuda.

IV - Autoria e meios eletrônicos

11 – Você usa a Internet para ler que tipos de conteúdos (possível mais de uma alternativa):

( ) Notícias ( ) Artigos ( ) Teses ( ) Pesquisas

( ) Livros eletrônicos (e-books) ( ) Blogs

346

Conteúdo lido na Internet

0 5 10 15 20 25 30

Notícias

Artigos

Teses

Pesquisas

livros eletrônicos

blogs

Seqüência1

Gráfico 12- Pesquisa autores:conteúdo lido na Internet

Na leitura realizada através do meio Internet, predominam os artigos e notícias. Os

blogs aparecem em posição intermediária enquanto os e-books são mencionados por menos

de 10% dos entrevistados.

12 – Quando você deseja ler um texto relativamente extenso, disponível na Internet, qual

sua atitude:

( ) Ler diretamente na tela do computador.

( ) Imprimir para ler o conteúdo no suporte papel.

347

Suporte da leitura feita através da Internet

10%

90%

Tela

Imprime

Gráfico 12- Pesquisa autores:suporte da leitura feita através da Internet

Cerca de 97% dos entrevistados utiliza a Internet para leitura, porém quando se trata

de textos mais extensos a opção entre ler na tela do computador ou no formato impresso,

demonstra que a segunda opção é hegemônica, com 90% dos entrevistados afirmando que

imprimem para ler.

13 –Em quais meios e formatos eletrônicos você já editou?

( ) Nenhum ( ) Sites ( ) Periódicos eletrônicos

( ) Livros eletrônicos ( ) Outros: Blogs

Formatos eletrônicos em que editou

15%

52%

21%

3% 9%Nenhum

Sites

Periódicos

E-books

Blogs

Gráfico 13- Pesquisa autores: formatos eletrônicos em que editou

348

A publicação de artigos e e-papers predomina entre os entrevistados, que são

exibidos em sites, revistas eletrônicas e blogs. A publicação de livros eletrônicos é

incipiente.

14 – A Internet tornou possível um contato mais direto entre autores e leitores, permitindo

que os textos cheguem aos receptores sem a intermediação do aparato editorial. Em sua

opinião, qual o futuro papel do editor:

( ) Deixar de existir

( ) Continuar atuando da mesma forma apenas incluindo os meios eletrônicos em seu

portfólio

( ) Mudar profundamente sua forma de atuar

( ) Não tenho posição firmada a este respeito

Gráfico 13a- Pesquisa autores: futuro papel do editor

Opinião sobre o futuro papel do editor

5%

63%

9%

23%

AB

CD

A imensa maioria, 63% acredita que os editores continuarão atuando da mesma

forma, tendo apenas que incluir o e-book em seus catálogos.

349

15 – Você possui um Site?

( ) Sim ( ) Não

Os entrevistados demonstram possuir uma forte relação com a Internet, 55% responderam

ter site pessoal.

16 – Você possui um Blog?

( ) Sim ( ) Não

Aproximadamente 25% possuem Blogs.

17 – A emergência da Internet, reavivou antigos conceitos sobre a autoria, como o de obras

coletivas e o de conteúdos livres. O conceito de copyleft em contraposição ao de copyright

é uma das mais forte ideologias que circulam pela “rede”. No campo das produções

artísticas existem as licenças criativas ou creatives commons. São quatro modalidades

possíveis de licenciamento da obra: que vão da renúncia aos benefícios materiais, até a

liberação do conteúdo inclusive para ser modificado. Você está familiarizado com estes

conceitos.

( ) Sim ( ) Não ( ) Apenas parcialmente

Gráfico 13b- Pesquisa autores: conhecimento das licenças criativas

C o n h e c i m e n t o d a s l i c e n ç a s c r i a t i v a s

0 5 10 15 2 0

S I M

N Ã O

P A R C .

S e q ü ê n c i a 1

350

A maioria não conhecia o modelo de linceciamento próprio da cultura hacker.

18 – Você publicaria uma obra com os direitos autorais livres?

( ) Sim ( ) Não

• 80% afirmou que não publicaria seus textos valendo-se das licenças criativas ou do

copyleft.

Em caso afirmativo quais das seguintes modalidades licenças escolheria (pode ser

escolhida mais de uma modalidade):

a - ( ) Atribuição – significa que a obra pode ser copiada e distribuída respeitando-se o

crédito do autor.

b – ( ) Uso não comercial – significa que o usuário pode copiar e distribuir, mas não

comercializar.

c - ( ) Não a obras derivadas – veta a criação de novos conteúdos a partir do original.

d -( ) Compartilhamento pela mesma licença – permite obras derivadas desde que

respeitem o mesmo modelo de licenciamento

Dos 20% que disseram concordar em publicar nestas modalidades de licenças,

atribuição e uso não comercial foram as formas escolhidas, apenas um dos entrevistados

mencionou a opção c, que visa proteger a integridade da obra.

19 – Você acredita que, no futuro, os autores poderão prescindir das casas editoriais,

obtendo resultados financeiros com a publicação direta via Internet?

( ) Sim ( ) Não

Sobre a possibilidade de, no futuro, com desenvolvimento dos meios digitais, os

autores prescindirem de edito res para publicar suas obras, 70% acreditam que isto não

ocorrerá, contra aproximadamente 23% que acreditam ser esta uma possibilidade real.

351

Justifique sua resposta: Dentre aqueles que responderam “não”, algumas questões

mereceram destaque, nesta ordem de menção:

1) Perenidade do livro impresso, com ênfase na materialidade;

2) Incapacidade do artista em tratar de negócios;

3) Desestruturação da Internet;

4) Fragilidade da proteção à propriedade intelectual na Internet.

Entre os que responderam “sim”, as justificativas mais mencionadas são:

1) Possibilidade de vender arquivos digitais pela Internet como já é feito com músicas.

2) Desinteresse das editoras tradicionais;

3) Possibilidade de ganhar mais do que os royalties obtidos com as editoras.

20 – Em que aspectos o crescimento da Internet tem afetado sua relação com as editoras?

Foram mencionadas duas mudanças fundamentais: facilidade e agilidade de

comunicação. Cerca de 50% consideraram que nada mudou.

21 – Em que aspectos o desenvolvimento da Internet afetou sua relação com os leitores?

Foram mencionados o aumento da comunicação, o feedback e a ampliação dos

relacionamentos. Cerca de 15% consideram que não houve qualquer mudança.

22 – A emergência dos meios eletrônicos afetaram de alguma maneira a sua forma de criar?

Em caso de resposta positiva, que aspectos foram afetados ou modificados? Existem três

posturas diferentes em relação a esta questão: cerca de 33% consideram que sua

produtividade na hora de escrever, formatar o texto e pesquisar informações, foi afetada

positivamente. Aproximadamente 62% afirmam que nada mudou e 5% afirmam que mudou

não apenas a velocidade de produção, mas também a forma de pensar e estruturar textos.

352

3. Pesquisa com editores.

Foram entrevistados 18 editores, distribuídos entre as categorias editoriais:

científico, técnico, universitário; geral, religiosa, didática e geral. As entrevistas foram

realizadas na Bienal Internacional do Livro de São Paulo de 2006 e por meio da Internet

entre os meses de fevereiro e abril do referido ano. As editoras entrevistadas foram

escolhidas aleatoriamente entre as 103 que responderam aos questionários na pesquisa

realizada em 2004. Foram enviados 68 questionários por e-mail, dos quais 13 retornaram

preenchidos, sendo que dois foram invalidados por motivos diversos.

QUESTIONÁRIO : O Editor e o livro eletrônico

01 – Você já se interessou em publicar livros no formato eletrônico?

( ) Sim ( ) Não

Já se interessou em publicar e-books

0

2

4

6

8

10

12

14

sim não

simnão

353

Gráfico 14 - Pesquisa editores: interesse por publicar e-books

• 66,5% responderam que sim;

• 33,5% responderam que não.

02 – Qual das frases abaixo melhor representa o seu conhecimento das diversas tecnologias

relacionadas ao livro eletrônico (e-book).

A - ( ) Conheço as tecnologias e os modelos de negócios que elas possibilitam.

B - ( ) Conheço superficialmente algumas tecnologias.

C - ( ) Desconheço as tecnologias envolvidas, bem como os modelos de negócios.

D - ( ) Conheço as tecnologias envolvidas.

E - ( ) Conheço os modelos de negócios, mas desconheço as tecnologias.

Conhecimento de tecnologias e modelos de negócios

33%

50%

11% 6% 0%ABCDE

Gráfico 15 - Pesquisa editores: conhecimento de tecnologias e modelos de negócios

354

Metade dos entrevistados revelou conhecer superficialmente as novas tecnologias,

1/3 dos editores afirmou conhecer tecnologias e modelos de negócios e 11% revelaram total

desconhecimento.

03 – Sua editora já publicou algum livro em suporte eletrônico?

( ) Sim ( ) Não

6

12

0

2

4

6

8

10

12

SIM NÃO

Já publicou um e-book

SIM

NÃO

Gráfico 16 - Pesquisa editores: já publicaram e-books

• 66,5% responderam que não;

• 33,5% responderam que sim.

Dentre os que responderam que sim é importante ressaltar que boa parte publicou obras

em CD-Rom.

355

04 – Em caso de resposta negativa para a pergunta anterior enumere, em ordem crescente,

do mais importante (1), para o menos importante (3), os três principais motivos que os

mantém afastados deste formato/(suporte).

A - ( ) Desconhecimento da tecnologia

B - ( ) Vulnerabilidade da Internet (pirataria)

C - ( ) Baixa atratividade econômica

D - ( ) Custos elevados

E - ( ) Falta de parceiros confiáveis (livrarias e distribuidoras virtuais)

F - ( ) Receio de ficar dependente da área de TI (tecnologia da informação)

G - ( ) Receio de prejudicar as vendas dos livros em papel

H - ( ) Precaução em relação a possíveis conflitos com os livreiros

I - ( ) Outros:...................................................................................

Motivos para não usar o suporte eletrônico

0123456789

10

A B C D E F G H I

Motivos

men

ções Primeiro

SegundoTerceiro

Gráfico 17 - Pesquisa editores: motivos para não usar suporte eletrônico

356

Dentre um conjunto de motivos para não usar o suporte eletrônico o mais

mencionado foi sua baixa atratividade econômica, seguida do receio de competir com

outros meios.

05 – No site de sua editora existe algum aplicativo (software) de CRM (Gerenciamento de

Relacionamento com os Clientes) que permite uma maior compreensão dos interesses dos

leitores e um contato mais pessoal?

( ) Sim ( ) Não

5

13

0

2

4

6

8

10

12

14

SIM NÃO

Possui ferramenta de CRM

SIMNÃO

Gráfico 18 - Pesquisa editores: adesão à ferramentas de CRM.

Mais de 70% das editoras entrevistadas não possui ferramentas de CRM suportando

seus sites e negócios on-line.

06 – Sua editora usa a Internet para realizar pesquisas com seus leitores?

( ) Sim ( ) Não

357

2

16

0

2

4

6

8

10

12

14

16

SIM NÃO

Pesquisas com leitores

SIM

NÃO

Gráfico 19 - Pesquisa editores: uso do site para pesquisas com leitores.

Pouco mais de 10% das editoras usa a Internet para realizar pesquisas com os

leitores que possam influenciar suas decisões editoriais.

07 - A Internet tornou possível um contato mais direto entre autores e leitores, permitindo

que os textos cheguem aos leitores sem a intermediação do editor. Este fato, ao mesmo

tempo em que facilita o fluxo de conteúdos, gera uma inflação de informação, cuja origem

e qualidade podem ser questionadas. Em sua opinião, qual o futuro do papel de editor:

A – ( ) Continuar atuando da mesma forma, apenas incluindo os meios eletrônicos em

seu portfólio.

B – ( ) Mudar profundamente sua forma de atuar.

C – ( ) Não tenho posição firmada a este respeito.

D – ( ) Outros

358

Futuro do papel do editor

77%

0%

17%6%

ABCD

Gráfico 20 - Pesquisa editores: futuro do editor

• 77% afirmaram que o editor continuará atuando da mesma maneira, apenas

incluindo os meios eletrônicos em seu portfólio.

• 17% não possuem posição sobre o assunto.

08 – A emergência da Internet reavivou antigos conceitos sobre a autoria, como o de obras

coletivas e o de conteúdos livres. O conceito de copyleft, em contraposição ao de copyright,

é uma das mais fortes ideologias que circulam pela “rede”. No campo das produções

artísticas existem as licenças criativas ou creatives commons. São quatro modalidades

possíveis de licenciamento de obras artísticas e literárias: Atribuição – significa que a obra

pode ser copiada e distribuída, respeitando-se o crédito do autor. Uso não comercial –

significa que o usuário pode copiar e distribuir, mas não comercializar. Não a obras

derivadas – veta a criação de novos conteúdos a partir do original. Compartilhamento

pela mesma licença – permite obras derivadas desde que respeitem o mesmo modelo de

359

licenciamento que vão da renúncia aos benefícios materiais, até a liberação do conteúdo

inclusive para ser modificado. Você está familiarizado com estes conceitos?

( ) Sim ( ) Não ( ) Apenas parcialmente

Conhecimento de copyleft e creatives commons

0 2 4 6 8 10

SIM

NÃOPARCIAL

MENTE

Seqüência1

Gráfico 21 - Pesquisa editores: conhecimento de copyleft e creatives commons

A maioria conhece apenas parcialmente as novas modalidades de licenciamento

baseadas em copyleft. Cerca de 25% desconhecem esta forma de tratar a propriedade

intelectual.

09 – Você considera estas modalidades de licenciamento uma ameaça ao atual modelo de

direitos autorais.

( ) Sim ( ) Não ( ) Apenas parcialmente

360

Ameaça do copyleft e das creatives commons

0 2 4 6 8 10

SIM

NÃO PA

RCIALMEN

TE

Seqüência1

Gráfico 22 - Pesquisa editores: percepção de ameaças à propriedade intelectual

Dentre os que conhecem muito ou apenas parcialmente existe a percepção de que

estas formas podem ameaçar o atual modelo do copyright.

10 – Em seus contratos de direitos autorais está prevista a publicação da obra em quais

suportes?

( ) Apenas impresso ( ) Impresso e eletrônico ( ) outros...........................

361

Suportes contratados com autores

0 2 4 6 8 10 12

SÓIMPRESSO

IMPR. +ELETR.

Seqüência1

Gráfico 23 - Pesquisa editores: suportes contratados com autores

Cerca de 45% dos editores já prevêem em seus contratos com os autores a extensão

para os meios eletrônicos.

11 – Segundo sua percepção os livros eletrônicos são:

A – ( ) Um novo formato que não concorre com o dos livros tradicionais.

B – ( ) Um formato que concorre com os livros impressos, sem ameaçá- los.

C – ( ) Um formato que pode vir, no futuro, a superar o formato impresso.

D – ( ) Um formato que encontrará seu espaço, mas que dificilmente superará o impresso.

362

Percepções do e-book em relação ao impresso

0 2 4 6 8 10

A

B

C

D

Seqüência1

Gráfico 24 - Pesquisa editores: percepção do e-book em relação ao impresso

A imensa maioria das respostas concentrou-se nos itens D e A, refletindo

aparentemente uma visão do e-book como um novo produto que não será um substituto

para o livro impresso.

12 - Em sua opinião, quais dos motivos abaixo, em ordem de importância, são os

responsáveis pela baixa penetração do livro eletrônico, até o momento? (coloque em ordem

de 1 a 5, sendo 1 o mais importante).

A – ( ) Falta de segurança.

B – ( ) Ameaça ao modelo tradicional de negócios de livros impressos.

C – ( ) Inadequação da tecnologia ao modelo de negócios de livros.

D – ( ) Inadequação da tecnologia aos hábitos de leitura dos consumidores.

E – ( ) Elevado custo de implantação e manutenção.

F – ( ) Ceticismo de editores e livreiros.

G – ( ) Falta de uma estrutura jurídica adequada ao novo modelo de negócios.

363

0 2 4 6 8 10

A

B

C

D

E

F

G

QuintoQuarto TerceiroSegundoPrimeiro

Gráfico 25 - Pesquisa editores: motivos responsáveis pela baixa penetração do e-book

Os editores entrevistados consideraram como principal motivo para a baixa

penetração do e-book, sua inadequação aos hábitos de leitura dos consumidores de livros. O

segundo motivo mais relevante seria a incompatibilidade da tecnologia com o modelo de

negócios, em seguida, teríamos a falta de segurança, também a falta de uma estrutura

jurídica adequada e praticamente com a mesma relevância, mas mencionado mais vezes

que o item anterior, teríamos o ceticismo de editores e livreiros.

No capítulo nove faremos uma leitura mais detida destes dados, cruzando-os com

questões teóricas e dados levantados nos capítulos anteriores.

364

IX – Configurações contemporâneas do meio editorial no Brasil: a

introdução do livro eletrônico, choque entre outsiders e estabelecidos.

1. Definição de outsiders e estabelecidos.

No estudo etnográfico Os estabelecidos e os outsiders, os sociólogos ingleses

Norbert Elias e John L. Scotson acompanharam a vida de dois grupos de moradores da

pequena aldeia de Winston Parva, no interior da Inglaterra. O que chamou a atenção dos

pesquisadores para a rela ção destes grupos foi que, apesar da coincidência racial, étnica e

sócio-econômica dos habitantes pertencentes aos dois grupos, havia entre eles uma divisão:

por um lado, um grupo auto-percebido como estabelecido e, outro, que se percebia e era

percebido como outsider. Os primeiros afirmavam sua identidade em um princípio de

antiguidade (anterioridade) como moradores da região; já o segundo grupo, de moradores

mais recentes, tinha como traço distintivo rótulos cunhados pelos estabelecidos para o

exercício do preconceito e da segregação. Para os autores, o estudo, apesar de

despretensioso, converteu-se em um importante laboratório para identificar possíveis

propriedades das relações de poder e interdependência em variadas configurações sociais.

Anunciamos no capítulo um que confrontaríamos o estudo em questão, com o ingresso no

meio editorial dos adeptos das TIC. A seguir apresentamos um breve inventário da pesquisa

realizada em Winston Parva e alguns de seus desdobramentos conceituais. Os autores

deixam claro os aspectos que buscavam estudar quando se referiam às relações entre

estabelecidos e outsiders na pequena aldeia:

365

É evidente que se está fazendo referência à rede de relações entre pessoas que se

organizam como uma unidade residencial – de acordo com o lugar em que normalmente

vivem. As pessoas estabelecem relações quando negociam, trabalham, rezam ou se

divertem juntas, e essas relações podem ou não ser altamente especializadas e organizadas.

(Elias & Scotson,2000:165)

Entre estes grupos em especial nos estabelecidos, desenvolveu-se rapidamente um

sentimento de ameaça ilusória. Segundo os autores esta é uma característica que pode ser

observada em outras relações do mesmo tipo. Parte da explicação para este sentimento

encontra-se no que segue:

Em ordens sociais de extrema mobilidade, é comum que as pessoas sejam

extremamente sensíveis em relação a tudo que possa ameaçar sua posição. É comum que

elas desenvolvam angústias relacionadas ao status. Por isso os moradores mais antigos de

Winston Parva imediatamente perceberam na conduta dos recém-chegados muitas coisas

que feriam sua sensibilidade e que lhes pareciam ser marcas de inferioridade social. (Elias

& Scotson,2000:167-168)

Outro aspecto relevante do estudo é a valorização do termo “velho”, que em outros

contextos e ciências poderia ser considerado como algo decadente e pejorativo. A

antiguidade como elemento distintivo pode ser notada em diferentes contextos sociais,

neste caso o termo velho assume um valor sociológico e está alinhado no campo daquilo

que é nômico137, tradicional e socialmente correto.

A base desta tradição se dá a partir de redes, estabelecidas quando os valores são

transmitidos geração após geração. É necessário , entretanto, diferenciarmos o tipo de

137 O contrário de anômico, referente ao conceito de anomia presente na obra de Émile Durkheim e posteriormente apropriado de várias formas por gerações de sociólogos.

366

herança e valores transmitidas em sociedades modernas como a dos operários de Winston

Parva, com aquelas transmitidas em sociedade medievais. Nas sociedades de artesãos a

herança cultural era um fator distintivo direto; já entre os proletários, que vende m sua força

de trabalho e não conhecimento artesanal, os processos de herança cultural estão vinculados

com mais força em hábitos e costumes. O termo “antigo” também figurou de forma

destacada nas observações dos estudados; sua presença a princípio parecia se referir a uma

determinada família, mas na verdade se tratava de uma construção mais ampla:

Portanto, embora o termo “antigo” se afigure, à primeira vista, um atributo de

determinada família, na verdade ele concerne a uma rede de famílias, a uma formação

social em que homens, mulheres e crianças, na ordem de descendência socialmente

regulada a que nos referimos como “famílias”, podem ser reconhecidos uns pelos outros,

durante várias gerações, como respeitando certos padrões comuns em contraste com outros.

(Elias & Scotson,2000:171)

Não existe necessariamente uma relação de estima entre estas famílias antigas,

apenas encontram-se unidas por uma ameaça que consideram comum. De modo que a

semelhança decorre da alteridade causada pela presença do novo grupo:

O fato de as “famílias antigas” se conhecerem e terem sólidos vínculos entre si, no

entanto, não significa necessariamente que elas se estimem. É apenas em relação aos

intrusos que elas tendem se unir. Entre si, podem competir e quase invariavelmente o

fazem, de maneira branda ou acirrada, conforme as circunstâncias... (Elias & Scotson,

2000:172)

Um dos motivos identificados pelos pesquisadores como gerador de divisões entre

os grupos foi à maneira própria de se comportar dos recém-chegados, que se chocava com a

ordem estabelecida. Ocorre que em muitos casos, um longo tempo pode se passar até que

367

estes se apercebam da “anomia” de seu comportamento. Neste transcurso os estabelecidos

obtêm suficiente material para justiçar seus preconceitos.

Um ponto fundamental nas hipóteses desenvolvidas por Elias e Scotson é o estudo

dos indivíduos em configurações sociais. De modo que a dicotomia reducionista presente

em grande parte dos estudos de ciências sociais que opõe o indivíduo à sociedade é tratada

de forma diferente:

A longa controvérsia entre os que reivindicam a prioridade para “o indivíduo” e os

que a reivindicam para “a sociedade” é, pura e simplesmente, sob a máscara de uma

discussão de fatos, uma controvérsia sobre sistemas de crença.(...) Nos dados observáveis,

não há nada que corresponda a uma conceituação como “indivíduo” e “sociedade”, que

implica que existam de fato indivíduos sem sociedades e sociedades sem indivíduos, os

quais, de algum modo, constituem grupos distintos de objetos e podem ser separadamente

estudados. A base factual da controvérsia relativa aos valores é bem simples. Os indivíduos

sempre aparecem em configurações e as configurações de indivíduos são irredutíveis. (Elias

& Scotson,2000:184)

Nestas configurações se estabelecem relações de poder de forma que elas

engendram forças coercitivas contra seus membros expressas a partir da posição ocupada

pelos grupos na formação.

As figurações estabelecidos-outsiders possuem regularidades e divergências

recorrentes. (...) No fundo sempre se trata do fato de que um grupo exclui outro das chances

de poder e de status, conseguindo monopolizar estas chances. A exclusão pode variar em

modo e grau, pode ser total ou parcial, mais forte ou mais fraca. Também pode ser

recíproca. (Elias & Scotson,2000:207-2008)

368

A abordagem da sociedade como configurações e a teoria dos campos de Pierre

Bourdieu têm pontos em comum. O campo, pressuposto por este autor constitui uma

representação do tipo espacial, com uma estrutura definida, onde os diversos grupos que o

constituem competem entre si com o intuito de dominar as melhores posições estruturais.

Ao longo deste processo, eles acabam por modificar em parte a estrutura. O habitus

funciona como um conjunto de práticas sociais negociadas e tornadas tradicionais no

decorrer do tempo de existência de um campo. Ao cruzarmos estas idéias com as

observações de Elias e Scotson, poderíamos supor que um único campo – Winston Parva –

apresenta variadas configurações sociais que, no decorrer de sua existência, geram,

influenciam e modificam as suas relações de poder, de influência e de prestígio . Ou, em

outras palavras: em um determinado campo, o ingresso de novos grupos invariavelmente

representa conflitos de maior ou menor extensão com aqueles já estabelecidos na estrutura,

de modo que as conclusões tiradas na aldeia de Winston Parva, podem ser úteis para a

análise de um campo em uma determinada configuração, já que este é a representação de

uma estrutura social.

Mas, então, por que não ficar apenas com a teoria de Bourdieu? Porque em Elias e

Scotson encontramos um experimento que nos permite: Primeiro, reconhecer um grupo de

características que ocorrem quando da chegada de um novo grupo, em uma determinada

comunidade. Segundo: estas características identificadas foram convertidas em conceitos

que podem ser estendidos a outros fenômenos sociais que apresentarem premissas

semelhantes.

369

2. A influência da cultura hacker.

Este é outro fator de ameaça ao atual modelo de negócios predominante no mercado

editorial. Como bem identifica Bernard Miège, este modelo se baseia na cobrança de um

ticket138 de cada usuário para a aquisição de uma peça única, que pode ser a exibição de um

filme, a posse de um CD de músicas ou um livro. Dentre estes três produtos das indústrias

culturais, o livro é aquele que mais resistência tem demonstrado à sua assimilação pela

lógica digital. Certamente a questão dos direitos autorais e da propriedade intelectual

influenciam esta situação. Em nossa pesquisa com os autores procuramos identificar a

posição destes em relação aos modelos de licenciamento de conteúdos derivados da cultura

hacker, a saber: o copyleft e os creatives commons. As respostas tabuladas das perguntas

17 e 18 do questionário de autores e já comentadas no capítulo oito demonstraram que:

1. Mais de 50% dos autores desconheciam estas modalidades de licenciamento.

2. Quando questionados sobre a aderência a estes modelos, apenas 20% se disseram

dispostos a abrir mão, parcialmente, de seus direitos, em especial da exploração

comercial dos mesmos.

A pesquisa demonstrou que a imensa maioria dos autores são usuários da Internet,

com mais de 84% tendo publicado em algum formato eletrônico, sendo que 55%

responderam possuir um site pessoal e, 25%, um blog. O perfil destes autores, enquanto

usuários dos meios digitais de comunicação é avançado, mas a maioria parece não refletir

os aspectos centrais da cultura hacker.

138 No caso de livros, pagamos pelo exemplar, no cinema pelo ingresso etc.

370

Quando avaliamos a relação dos editores com esta cultura, prospectada nas

perguntas oito e nove do questionário de editores, os resultados são os seguintes:

1. Aproximadamente 78% possuem conhecimento pleno ou parcial destas modalidades

de licenciamento, conhecimento muito superior ao dos autores, fato justificado pela

posição que ocupam na cadeia de valores do livro, fortemente ligada aos negócios e

dependente economicamente da propriedade intelectual;

2. Cerca de 61% dos editores consideram que esta modalidade de licenças ameaça de

alguma maneira o atual modelo editorial.

O fato de entenderem como ameaça ao atual modelo de negócios fica evidente nas

respostas dadas à pergunta número 10, do questionário de editores: 45% destes já realizam

contrato para os meios impresso e eletrônico, muito embora editem majoritariamente no

meio impresso. 139

Quando os autores foram questionados acerca de seus contratos autorais, apenas

24% revelou estar incluído no contrato uma cláusula extensiva para o meio digital. Como

um número ínfimo de autores já publicou em e-books, podemos deduzir que a presença

deste item no contrato se deve a uma preocupação do editor em proteger os conteúdos nos

novos meios.

A liberalidade com que a cultura hacker trabalha com os conteúdos e a forma como

esta se relaciona parece estar distante do meio editorial. Quando perguntamos para os

editores sobre a forma que utilizam seus sites para se relacionarem com os seus

leitores/clientes, perguntas cinco e seis do questionário de editores, mais de 70% das

139 Analisamos a totalidade dos catálogos dos editores entrevistados. Apenas 25% deles ofereciam obras no formato eletrônico, neste caso obras infantis e de referências em CD-ROM. Duas editoras mantinham alguns títulos de fundo de catálogo ofertados no portal da i-Editora.

371

editoras não possuem ferramentas de CRM, e pouco mais de 10% utilizam os sites para

realizar pesquisas com os leitores.

Quanto aos autores, aspectos como interatividade, obras abertas, participação em

comunidades virtuais, obras coletivas e hipertextuais parecem estar distantes de suas

preocupações.

As três perguntas finais do questionário dos autores buscavam avaliar que mudanças

a utilização da Internet e do computador haviam causado nas suas relações com leitores,

editores e no processo de criação. A mudança percebida está apenas na agilidade da

comunicação entre autores e editores. Quando se trata de pensar no futuro da edição, 70%

acreditam que o editor continuará cumprindo seu papel atual. Interessante que os motivos

apontados pelos autores como sendo importantes para esta manutenção têm a ver

diretamente com a relação de dependência que têm com os editores:

§ Perenidade do livro impresso, com ênfase na materialidade;

§ Incapacidade do artista em tratar de negócios;

§ Desestruturação da Internet;

§ Fragilidade da proteção à propriedade intelectual na Internet.

Excetuando o primeiro item, todos os outros se referem a esta relação de

dependência que, no campo editorial, os autores mantêm em relação aos editores. Entre os

autores, apenas 5% acusaram mudanças em seus processos criativos, e o item mais

importante em relação aos leitores diz respeito à comunicação, que melhorou com o

advento dos novos meios.

372

3. Ausência de um modelo de negócios.

Dois terços dos editores disseram já ter demonstrado interesse na publicação de e-

books. Metade dos editores revelou conhecer superficialmente a tecnologia e 33% afirmou

conhecer as tecnologias envolvidas e o modelo de negócios, número que corresponde ao de

editores que disseram já terem tido uma experiência com o modelo eletrônico. Quando

perguntados acerca dos motivos que os levaram a não utilizar os meios digitais, aqueles que

jamais publicaram neste meio afirmaram que seriam a baixa atratividade econômica da

operação, seguido pelo receio deste meio canibalizar o impresso. A questão número 12 do

questionário de editores revela outros aspectos importantes em relação a expectativa destes

com a publicação eletrônica de livros. Dois motivos aparecem como sendo os principais

para a baixa penetração do e-book : em primeiro lugar, os editores julgam que existe uma

rejeição por parte dos leitores, expressa na frase “inadequação aos hábitos de leitura”. Em

segundo, a inadequação da tecnologia ao modelo de negócios do livro.

Como vimos no capítulo três, a introdução do livro impresso e a lenta substituição

do manuscrito criaram uma nova cadeia de valores para o produto livro. O gráfico, o editor

e o livreiro eram completamente estranhos à logosfera, na qual proliferava o manuscrito. A

própria configuração de autor, construída simultaneamente ao desenvolvimento da

grafosfera, era distinta. A nova cadeia de valores estabeleceu-se a partir de uma sinergia e

às vezes sobreposição de papéis entre estes três agentes: gráfico, editor e livreiro. Apenas

após uma longa divisão de trabalho, ocorrida ao longo de séculos de civilização ocidental,

tais figuras passaram a representar funcionalidades estanques dentro da cadeia de valores.

373

Quando os editores falam em inadequação da tecnologia ao modelo de negócios

estão vislumbrando um conjunto de mudanças que o ingresso de novos elos na cadeia de

valores pode gerar. Por um lado, o papel do gráfico, espécie de irmão siamês do editor,

desde os primórdios da impressão, deixa a cadeia de valores, sendo substituído pelo

fornecedor de tecnologia, que deverá receber os arquivos originais, fornecendo meios para

a proteção e transmissão destes arquivos, através da rede mundial de computadores. E

quem é o fornecedor de tecnologia? Em geral, tecnólogos que de uma forma ou de outra

participam da cultura hacker. Essa participação pode se dar de forma mais ativa no caso de

desenvolvedores que trabalham com a plataforma Linux, ou de maneira la teral, como

consumidores de inovações e “pesquisadores” das redes virtuais. Lembro que no capítulo

cinco demonstramos que muitos dos atuais empresários de softwares já foram hackers e

que entre eles se desenvolve uma luta econômica e ideológica, tendo como principais

expoentes no momento as empresas Microsoft por um lado, e Google, do outro. Existem

diversos casos de pirataria envolvendo reprografia e mesmo impressão gráfica. Já foram

descobertas, por exemplo, cópias impressas de livros protegidos por direito autoral,

circulando por livrarias. Neste caso, se tratavam de obras incluídas em listas de leitura

obrigatória para vestibulares. Portanto, não existe imunidade nem mesmo na materialidade

impressa. Entretanto, aparentemente, o controle e a repressão do mundo tangível da

impressão é sabidamente muito mais fácil do que a repressão aos abusos e violações que

possam vir a ser cometidas no meio digital. Ainda mais sabendo que grande parte dos

usuários e dos desenvolvedores que habitam este mundo são adeptos de uma visão

heterodoxa a respeito da propriedade dos conteúdos. Assim sendo, a criação de uma nova

cadeia de valores para a produção de livros no formato digital poderia seguir os seguintes

caminhos:

374

Hipótese 1: Autor ? Editor ? Gestor Tecnológico ? site do Editor? Leitor

Neste caso, saem da cadeia de valores o fornecedor de papel, o gráfico, o

distribuidor e o livreiro, ingressando nesta cadeia o gestor tecnológico.

Hipótese 2: Autor ? Editor ? Gestor Tecnológico ? site do Livreiro ? Leitor.

Neste caso saem da cadeia de valores o fornecedor de papel, o gráfico e o

distribuidor; ingressando nesta cadeia o gestor tecnológico que funciona como interface

entre o editor e o livreiro.

Hipótese 3: Autor ? Prestador de serviços editoriais ? Gestor Tecnológico ? Leitor

Neste caso, saem da cadeia de valores papeleiro, gráfico, editor, distribuidor e

livreiro. Ingressam o prestador de serviços editoriais e o gestor tecnológico.

Hipótese 4: Autor ? Editor como gestor tecnológico ? Leitor

Nesta caso saem da cadeia de valores papeleiro, gráfico, distribuidor e livreiro. O

editor desenvolve uma solução tecnológica caseira, assumindo a gestão do processo.

Em todas as hipóteses as figuras do gráfico e do fornecedor de papel são as mais

afetadas pelo projeto. Entretanto, como pudemos observar nos modelos de negócios das

editoras virtuais que atuam no Brasil, a presença da impressão por demanda dos e-books,

tem preservado, por enquanto, um naco deste mercado para gráficos e papeleiros. A

situação do livreiro aparece ameaçada em três das hipóteses trabalhadas, e é um fato no

mercado brasileiro que a venda dos e-books e de suas versões impressas tem sido realizada

diretamente pelas editoras prestadoras de serviços. No mercado americano este processo é

híbrido, havendo a participação de editoras e de livrarias.

375

Uma cadeia de valores que comercialize o livro eletrônico, preservando as atuais

categorias de participantes deste negócio é possível, entretanto, ela é incompatível com o

uso dos mecanismos dedicados de leitura140 que, de saída tiram do negócio a parte

industrial, gráficos e papeleiros, podendo também ameaçar fortemente os livreiros, já que

no modelo da Sony (atual player do negócio) a venda dos conteúdos seria realizada em seu

site que atualmente comercializa MP3.

4. Configuração defensiva.

A questão número 12 do questionário de editores buscou identificar na percepção

destes os motivos que faziam do livro eletrônico, sete anos após sua introdução no mercado

brasileiro, ainda uma aposta, e não uma realidade comercial efetiva. Os editores

entrevistados consideraram como principal motivo para a baixa penetração do e-book, sua

inadequação aos hábitos de leitura dos consumidores de livros. Quanto a esta resposta que

foi de longe a mais citada, deveríamos nos perguntar se este é um fato ou um desejo

daqueles que respondem. A observação que tenho realizado junto aos meus alunos nos

últimos dois anos, e o sucesso de experiências como a Biblivirt, nos fornecem indícios do

contrário. Principalmente entre os mais jovens, a leitura em telas de computadores parece

estar se desenvolvendo rapidamente, incorporando-se aos seus hábitos e sendo moldada por

eles, mas este, por enquanto é só um palpite. A avalanche de blogs que proliferam pela

140 Aparelhos portáteis com telas maiores que as dos computadores de mão (palms) que simulam o manuseio de um livro. Um exemplo seria o recém lançado reader da empresa Sony.

376

Internet também aponta em direção contrária às observações dos editores, realçando o

caráter ideológico que ela subliminarmente aparenta.

O segundo motivo citado, como sendo mais relevante, foi a incompatibilidade da

tecnologia com o modelo de negócios. Isto fica evidente com as hipóteses de novas cadeias

de valores apresentadas anteriormente. Pelas iniciativas tomadas até o momento pelas

editoras entrevistadas, poucas parecem dispostas a investir na mudança deste modelo.

Quando juntamos as duas respostas mais citadas ficamos tentados a indagar: será que a

indisposição dos editores quanto aos novos modelos de negócios sugeridos pela introdução

do e-book não os faz deduzir (ou seria desejarem) que os leitores não se adaptam a este

produto?

Nos parece que os editores brasileiros têm adotado uma postura defensiva em

relação aos livros eletrônicos. Muitos pesquisaram acerca do tema, tentaram entender a

tecnologia e os possíveis modelos de negócios, para, em seguida aguardar e ver o que

acontece. Ocorre que eles são peças fundamentais para que este mercado decole, sem os

conteúdos trancados nos cofres da propriedade intelectual, o mercado de e-books

permanecerá marginal e comercialmente desinteressante. Talvez os editores saibam disso e

seja esta a aposta estratégica.

5. As margens: posição da indústria gráfica.

A expansão da Internet, e dos meios eletrônicos em geral, mereceu atenção por

parte da indústria gráfica. Pesquisas foram desenvolvidas a respeito do tema, visando

377

avaliar os efeitos desses novos meios sobre o uso do papel e da impressão. Um dos mais

importantes deles a promovido pela Fundação de Sistemas de Documentos Eletrônicos

(EDSF), realizada em 2000 e denominada, Printing in the Age of the Web & Beyond,

examinou mais de 100 tipos de produtos gráficos distribuídos em 13 categorias.

Especificamente sobre os livros as conclusões foram as seguintes:

(...) redução de 18 por cento. A maior tendência na edição de livros será a

publicação por encomenda, literalmente um a um. Os livros eletrônicos não constituirão

ameaça até 2020, mas gradativamente ma is indivíduos disponibilizarão mais livros na

Internet. Esses livros serão impressos por encomenda, provavelmente em livrarias.

(Romano, Frank J. in Imagix News n°10, 6-9)

Durante o mais importante encontro anual da indústria gráfica internacional,

ocorrido na Alemanha, a DRUPPA 2000 141, a emergência dos livros eletrônicos foi

discutida dentro de um painel acompanhado por personalidades do meio gráfico de 15

países. O painel intitulado Offset Printing vs. Digital Printing - Discussion Round on the

Future of the Printing Industry, focou sua atenção nas oportunidades abertas para a

impressão digital, defendendo a tese de que a Internet representava mais uma

oportunidade que uma ameaça. No mesmo ano a Heildelberg, principal fabricante de

equipamento gráfico do mundo, lançou uma campanha com vídeos e seminários voltados

para a defesa do impresso. Paralelamente uma série de novidades no campo da impressão

e do suporte papel foram desenvolvidas a fim de criar barreiras de entrada aos produtos

digitais: 141 Foi neste ano que o autor norte americano Stephen King, lançou pela editora Simon & Shuster a edição virtual de seu livro “Rinding the Bullet”, que em poucos dias recebeu 500.000 downloads à US$ 2,50 cada. O livro era publicado em capítulos, porém nas semanas subseqüentes ao sucesso inicial o nível dos acessos diminui consideravelmente. De qualquer maneira a experiência fez ascender o sinal amarelo no mundo da edição impressa.

378

a. Impressão com relevo e vernizes especiais;

b. Papéis revestidos foscos;

c. Tintas com fragrâncias

d. Papéis editoriais com diferentes texturas e colorações.

Estas medidas visavam fortalecer os vínculos sensoriais dos leitores com o objeto

livro, permitindo que designers e gráficos tirassem o máximo das potencialidades deste

formato. Um breve passeio pelas estantes das livrarias demonstra empiricamente que estas

características se incorporaram ao padrão de produção editorial nos últimos anos, com um

incremento significativo, por exemplo, nas capas dos livros. 142

Os custos com produção gráfica caíram fortemente nos últimos anos, a introdução

de sistemas digitais na pré-impressão, e o desenvolvimento do print-on-demand criaram

para os editores alternativas a uma possível atratividade das tecnologias substitutas, em

especial a do e-book.

6. O que podem as partes?

Neste cenário em que no campo editorial emerge uma nova tecnologia trazendo

consigo novos personagens, entrantes143 na linguagem dos negócios, é importante que

delimitemos o poder de cada um dos segmentos envolvidos:

142 Este tipo de tecnologia pode ser mais bem percebida em livros de arte, guias turísticos, algumas revistas e em peças promocionais que se valem do setor editorial. 143 Termo utilizado por Michael Porter em seu livro Estratégia competitiva, para designar novos concorrentes que adentram um determinado segmento da indústria.

379

Indústria do papel: possui forte alavancagem financeira, investe fortemente em

novos produtos, com ênfase na valorização de aspectos sensoriais.

Indústria gráfica: segmento que, no Brasil, vem se modernizando com pesados

investimentos em equipamentos e tecnologias digitais. As mudanç as tecnológicas

propiciaram maior rapidez no processo de pré- impressão, com eliminação da etapa do

fotolito com sistemas como o direct-to-plate e direct-to print. A questão do preço cobrado

junto aos editores em relação ao tamanho das tiragens tem caído nos últimos anos, o que

favorece a decisão de muitos editores de apostarem em tiragens menores. O print-on-

demand criou uma alternativa aos custosos estoques das editoras, permitindo que os

editores mantenham ativos seus fundos de catálogos, imprimindo pequenas quantidades.

Em muitos casos as gráficas passaram a oferecer outros serviços, como armazenamento e

logística, ampliando a participação do setor no processo de “empacotamento” e entrega de

conteúdos editoriais.

Editores: são ainda o ponto central dos senderos do livro. O papel de certificadores

do conhecimento alcançado nos longos anos de desenvolvimento do mercado editorial os

torna peças-chaves na seleção, edição, formatação e distribuição dos conteúdos. Os

vínculos estabelecidos com a imprensa e a academia garantem que as obras editadas

alcancem seus públicos, ampliando o poder dos editores em relação aos autores. Os

contratos de edição que asseguram os direitos das obras e o receio dos autores em relação

aos novos meios permitem que os editores continuem centralizando o fluxo de conteúdos

editoriais. Os novos meios de comunicação digitais, como celulares de banda- larga, Internet

e TV digital terão de negociar com os editores para terem acesso aos conteúdos mais

cobiçados.

380

Livreiros: Com a ampliação do portfólio das livrarias e a necessidade de produtos

que girem cada vez mais rápido, os livreiros passaram a impor aos editores condições

bastante desfavoráveis no que tange a descontos e prazos de pagamento. A proliferação de

casas editoriais e a crescente variedade de títulos criaram uma grande dependência dos

editores em relação às livrarias. Por outro lado, a emergência dos meios de comunicação

digital se tornou ao mesmo tempo oportunidade e ameaça ao atual modelo de negócios. A

posição de livreiros parece confortável no curto prazo, mas quando pensamos em longo

prazo ela encontra uma série de fragilidades, o que aponta para uma constante diminuição

relativa do livro, no portfólio das livrarias, a não ser que novas modalidades de negócios de

conteúdos passem a utilizar as vantagens deste canal presencial de vendas.

Gestores de tecnologia: Sob esta alcunha podemos incluir os editores de e-books,

grandes empresas como a Adobe, Sony, Palm, Apple e Microsoft, em cujos negócios a

tecnologia para a e-books ocupa um espaço marginal, até pequenas software houses e

integradores que, com base em plataformas abertas ou proprietárias, desenvolvem soluções

para a área. A maioria destes entrantes possuem forte alavancagem financeira e um

poderoso patrimônio tecnológico. Alguns deles, como a AOL, valeu-se desta alavancagem

para encurtar seu caminho de acesso ao conteúdo, adquirindo o maior grupo editorial do

mundo, o Time –Warner. Outras empresas, como a Micorsoft e a Adobe, têm estabelecido

parcerias com as editoras para oferecer tecnologia de DRM. A sombra do Google e sua

política “hacker”, de certa forma contamina a presença destes players no campo da edição,

de modo que o campo editorial os encara não como sócios, mas sim como fornecedores de

diversas tecnologias, algumas das quais desnecessárias e incomodas.

381

7. O receio das novas tecnologias.

A falta de segurança acompanhada da ausência de uma estrutura jurídica adequada

foram considerados pelos editores (questão 12) como sendo, respectivamente, o terceiro e o

quarto fatores responsáveis pelo insucesso do e-book. Entre os autores, nas perguntas

abertas (questões 20,21 e 22), o fato de a Internet ser desestruturada e insegura foi apontado

como motivo para a sobrevivência da função do editor. Diferentemente do que se poderia

imaginar, os autores encontram-se muitos mais imersos no universo digital que os editores.

O fato de utilizarem precariamente a Internet como ferramenta de comunicação e vendas

pode ser explicada pela resistência ao meio. É curiosa uma resposta que apareceu em um

dos questionário s de editores para a pergunta número 4, na qual se deveria apontar entre um

elenco de motivos, os três que mais os afastavam da edição no formato eletrônico: um

importante editor do mercado, após assinalar as três questões inclui, uma quarta, afirmando

ser a principal: “s implesmente, não gosto!”.

No capítulo seis abordamos uma série de características relacionadas às

possibilidades abertas pelas TIC para os negócios das empresas. No questionário de

editores, em suas duas fases, descobrimos que 98% das editoras possuem sites e utilizam o

e-mail como meio de comunicação, porém percebemos também que a utilização destes

meios é bastante precária. Caso utilizássemos uma metáfora de imersão digital, diríamos

que a grande maioria das editoras colocou apenas os pés nas águas. E muitas colocaram

apenas um dos pés.

A resposta do editor citado anteriormente reflete a atitude das editoras que pode ser

percebida através de uma análise minuciosa de seus sites. A maioria funciona apenas como

382

um catálogo eletrônico, uma transposição do catálogo impresso para o meio digital. Se

nem mesmo as funcionalidades comunicacionais das TIC, que não influenciariam

significativamente o modelo de negócios, estão sendo utilizadas, que dizer daquelas ligadas

à comercialização de conteúdos desmaterializados?

Então, o ceticismo dos editores e livreiros, apontado pelos editores como um dos

importantes motivos do insucesso do e-book, possa ser também um ceticismo quanto à

eficácia das TIC como auxiliares para a implementação de seus negócios. É importante

ressaltar que essa utilização primária das TIC não é privilégio dos edito res; ela ocorre em

todos os segmentos empresariais com maior ou menor grau. O que chama atenção é o fato

de haver profunda pregnância entre as editoras e as funcionalidades tornadas disponíveis

pelos novos meios.

8. No campo editorial, uma relação entre estabelecidos e outsiders.

Os recém-chegados tecnólogos que, com suas ofertas de novas tecnologias e

modelos de negócios, procuram penetrar no meio editorial, podem ser pensados à luz da

dos conceitos elaborados por Elias e Scotson no estudo da aldeia de Winston Parva. Neste

caso, os atuais habitantes do campo editorial – editores, gráficos, livreiros e autores –

seriam considerados os estabelecidos, enquanto os outsiders seriam os recém-chegados

tecnólogos, muitos dos quais partidários da cultura hacker.

O campo editorial, assim como as comunidades, são compostos por uma teia de

relações sedimentadas ao longo de variados períodos de tempo. No meio editorial estas

383

relações podem definir o sucesso ou fracasso de novos projetos influenciando, a obtenção

de crédito e o acesso aos tradicionais canais de distribuição. O meio é bastante segmentado

e valoriza fortemente as relações institucionais. Como prova deste fato, temos o número de

associações de classe que o compõem, 13, número elevado para um mercado com cerca de

5000 empresas: ANL, ABDR, ABEC, ABDLC, ANLC, FE, ANE, CBL, SNEL,

ABRIGRAF, LIBRE, ANATEC, ANER.

Em qualquer campo empresarial, as ameaças de tecnologias substitutas e de

entrantes (novos concorrentes) são reais constituem fatores de desestabilização da

rentabilidade144. Os recém-chegados trazem consigo estes dois elementos, não pertenciam

ao campo e são portadores de uma tecnologia substituta que, em muitos casos, se confunde

com novas empresas, potenciais ameaças às condições vigentes. Podemos citar apenas dois

exemplos: a Google com seu Google Print, que propõe tornar disponível, gratuitamente, 1/5

do conteúdos de livros para leitura pela Internet, sem que haja o recolhimento de direitos

autorais, e a Sony, que em sua loja virtual pretende oferecer os catálogos integrais das

editoras para leitura em seu e-book reader. Essas empresas adentram o campo,

demonstrando um comportamento próprio que se choca com as tradições desenvolvidas

neste, no desenrolar dos anos.

É natural, portanto, que os estabelecidos no campo, que no dia a dia são empresas

concorrentes, que mantém um permanente estado de competição entre si, que estes se unam

para refratar a ameaça comum. E neste caso, basta uma decisão, para que a “ameaça” dos

outsiders permaneça por um tempo sob controle, que é a não disponibilização de seus

conteúdos para o comércio eletrônico. E é assim que estão agindo as editoras em relação ao

144 Segundo Michael Porter são cinco as forças que atuam sobre a empresa podendo erodir sua rentabilidade: concorrência, substitutos, entrantes, fornecedores e clientes.

384

Google Print, até janeiro de 2006, apenas duas editoras brasileiras haviam aderido à

proposta do portal. Foi assim com o Portal Sophya 145 da Xerox do Brasil, que propunha a

realização do comércio de conteúdos das editoras nacionais em um portal de e-learning; foi

assim com a I-Editora, que obteve a adesão de pouquíssimas editoras que ofereceram, na

versão eletrônica, apenas títulos comercialmente desinteressantes de seus fundos de

catálogos. Desse modo à instalação dos tecnólogos no meio editorial ocorre de forma

marginal: os títulos disponíveis pertencem a autores independentes, ou são obras de

domínio público.

A atual configuração do campo editorial apresenta-se constituída por uma

hierarquia, as editoras tradicionais ocupam espaço privilegiado em relação aos autores e

livreiros independentes, porém as redes de livrarias e o governo possuem uma imensa força

de pressão em relação ao preço, à forma e ao conteúdo dos produtos editoriais. Esta

configuração de forças é aparentemente estável, mas articula-se em uma tensão

permanente, com movimentos de aquisições de catálogos e passes, de autores bem como

com a entrada no mercado nacional de empresas estrangeiras. E é, como um grego nas

entranhas de um cavalo, que alguns destes recém-chegados podem adentrar o mercado

editorial brasileiro. Como muitas das mais importantes editoras locais são de propriedade

de grandes grupos internacionais, um acordo destes com a Sony, a Microsoft ou mesmo a

Google, podem colocar catálogos inteiros à disposição dos internautas. Portanto, as relações

de poder que no micro-espaço do mercado editorial brasileiro pendem favoravelmente aos 145 Entre os anos de 2000 e 2002, fui contratado pela Xerox do Brasil para exercer o papel de gerente de conteúdos do Portal Sophya. Entre minhas incumbências estava a tarefa de convencer os editores brasileiros à tornarem disponíveis através do Portal, os conteúdos de seus respectivos catálogos. Nesta época contatei dezenas de editores. Apesar de todas as condições de segurança apresentadas pela Xerox e seus parceiros, Adobe e Microsoft, e de o modelo ser baseado na cobrança e repasse de direitos autorais, os editores demonstraram enorme ceticismo e resistência ao projeto. A descontinuidade do projeto por parte da companhia me impediu de avaliar o grau de adesão que, certamente, no lançamento da plataforma era muito baixo.

385

editores locais, podem, no plano internacional, favorecer o ingresso destes players

eletrônicos.

Por enquanto, no âmbito local, os tecnólogos são vistos como estranhos pelos

editores, suas soluções tecnológicas são simplesmente ignoradas. Apenas uma livraria

brasileira comercializa textos eletrônicos, o Armazém Digital; Submarino, Saraiva, Cultura

e FNAC, importantes livrarias virtuais, não vendem e-books.146 Portanto, o cenário parece

momentaneamente favorável à manutenção do e-book à margem das grandes questões

editoriais.

Além do ingresso via editoras globalizadas, outros movimentos podem fazer com

que a presença do e-book avance no meio editorial brasileiro. Neste caso a hipótese 3 para

uma nova cadeia de valores me parece a mais atraente, ou seja, que as editoras

desenvolvam, em parceria com tecnólogos, soluções para tornar acessíveis seus catálogos

no formato digitais, oferecendo acesso aos seus conteúdos, sem, entretanto, perder o

controle dos mesmos. Neste caso, é ofertada uma biblioteca de conteúdos, no modelo

adotado mundialmente pela Thompson e que no Brasil a Person vem implementando desde

o final de 2005.

Cabe ainda ressaltar que o conflito existente entre os estabelecidos e os outsiders no

meio editorial é velado. Manifesta-se nas entrelinhas, nas atitudes, no tipo de aderência que

as editoras demonstram às novas tecnologias. O volume de negócios do livro eletrônico

ainda não gerou conflitos mais amplos que poderiam acabar em tribunais, porém esta não é

uma hipótese descartável. Os próximos movimentos de empresas como, Google, Sony e

146 Aqui me refiro ao conteúdo em formato digital de textos para download . É provável que estas livrarias vendam CDs com enciclopédias e outras obras de referência que, de uma maneira ampliada, poderiam também ser consideradas obras eletrônicas. Entretanto, o modelo de negócios ainda é baseado na materialidade do suporte, neste caso o CD.

386

Microsoft, devem ser acompanhados com atenção, pois possuem um grande potencial de

atrito.

A seguir, apresentaremos nossas conclusões acerca da introdução do livro eletrônico

no mercado editorial brasileiro, buscando articular as várias hipóteses e conclusões

provisórias desenvolvidas no decorrer desta pesquisa de mestrado.

387

CONCLUSÕES

No primeiro capítulo desta dissertação, levantamos uma série de hipóteses sobre a

introdução do livro eletrônico e seu relacionamento com a mídia impressa. Durante o

processo de qualificação, compusemos uma lista com estas hipóteses, assim como outras

surgiram no decorrer desta dissertação. Ao concluirmos nossa pesquisa propomos o

confronto com cada uma delas, a fim apresentar uma síntese daquilo que pudemos verificar.

1. A lenta introdução do livro eletrônico: hipóteses revisitadas.

a. O formato impresso do livro encontra-se em transição para o formato

eletrônico.

Acreditamos que esta afirmação encontra-se mal-formulada. Ao dizermos que o

formato impresso do livro encontra-se em transição, pressupomos de imediato que este

processo é o destino “natural” do impresso ao eletrônico. O que a pesquisa demonstrou é

que existem dois movimentos bastante distintos. Por um lado, o mercado editorial de livros

impressos permanece não sendo diretamente afetado pela emergência do meio eletrônico.

Por outro, está se formando, à margem, uma geração de leitores de textos publicados no

meio digital. Estes textos assumem diversos formatos, podem ser a simples transposição

para o digital de um texto impresso, um diário eletrônico (blog), até uma obra composta em

hipertexto.

388

Um fato relevante que acreditamos foi evidenciado por nossa pesquisa é o de que a

introdução de um novo formato para o livro extrapola o campo da tecnologia, invadindo os

campos social, jurídico, econômico e cultural. As mudanças tecnológicas em geral ocorrem

de forma a ocultar dos usuários, suas reais implicações políticas e estruturais. Para muitas

das novas tecnologias o caminho introdutório é suave, quase imperceptível para os usuários

e, neste sentido, as observações da midiologia sobre a estratégia de invisibilidade própria

das tecnologias possui uma grande validade. 147 Entretanto, no caso específico do livro, tal

característica perde força. Podemos inclusive afirmar que a lenta introdução do livro

eletrônico desmascara o ardil tecnológico da invisibilidade e aquilo que deveria parecer

“natural” é revelado como um exercício de força.

Debray nos deixa claro que o “midio”, de midiologia, não é uma referência ao

médium e, sim, ao conjunto de mediações técnicas, culturais e sociais que intermedeiam um

conjunto de acontecimentos e sua circulação. Ao agirem nesse espaço intermediário este

composto midialógico atua em ambas as faces daquilo que entremeia. Como hipótese de

trabalho a teoria de Debray defende que a estratégia de armazenamento e circulação do

conhecimento e da informação é que define a especificidade de uma midiasfera. O autor

afirma que as midiasferas se sobrepõem, ao mesmo tempo em que assumem uma dinâmica

específica. Reivindica estarmos vivendo em uma videosfera, título assumido em referência

ao artefato mais comum de acesso ao conhecimento e a informação disponível em nossos

dias.

Ao submetermos nosso objeto, a eventual passagem do livro impresso para o livro

eletrônico, a chamada midiologia, constatamos que a dinâmica da atual midiasfera vem

colonizando-o de forma lenta. É sobretudo nos bastidores que um imenso aparato técnico 147 Podemos citar como exe mplo o caso do DVD, abordado anteriormente nesta dissertação.

389

vem se transformando, na forma como os livros chegam às editoras, na revisão, editoração

e pré-impressão. Na comunicação com distribuidores e livrarias, na forma como em uma

livraria se obtém informações sobre um título. Na maneira como a imprensa eletrônica nos

aproxima dos títulos impressos. No comércio eletrônico. É, sobretudo neste entorno, que a

videosfera tem exercido sua hegemonia, de certa forma pavimentando o caminho para

mudanças mais visíveis como a transição de suportes de leitura. Processo ainda desfigurado

e aberto a soluções que no momento estão ainda se formando.

b. O formato eletrônico apresenta um composto de vantagens, do ponto de vista

do usuário final (leitor) em comparação ao formato impresso.

Existe um conjunto de vantagens potenciais do formato eletrônico do livro em

ralação a seu formato impresso: compactação, imaterialidade, acessibilidade,

indexabilidade, manuseabilidade, custos menores, etc. Entretanto, muitas destas vantagens

potenciais não se tornaram realidade devido a questões de natureza jurídica, econômica e

política. Por exemplo, a acessibilidade depende substancialmente da digitalização e

autorização dos detentores do direito autoral, bem como da existência de uma infra-

estrutura que permita o acesso remoto aos dados. O nó desta questão parece residir na

autorização autoral, porém, quando analisamos com mais profundidade, percebemos que o

problema está nas mãos dos editores que não parecem nem um pouco entusiasmados em

desatá- lo.

Mas o eletrônico também apresenta algumas desvantagens técnicas e a principal

delas tem a ver com a forma como se processa o acesso ao conteúdo. Em geral, ele ocorre

através da tela de computadores que são pontos fixos a apresentam desvantagens, quando

390

comparadas à inteface impressa, em quesitos como portabilidade e manuseio. Os

mecanismos portáteis dedicados à leitura, os e-books, se propõem a ser a solução. Nos

últimos oito anos diversas tentativas foram feitas para a introdução destes dispositivos, mas

todas elas fracassaram. A atual tentativa em curso promovida pela Sony também esbarra no

maior de todos os problemas: a quantidade de conteúdo disponível. E, novamente,

retornamos ao nó editorial.

c. Que as mudanças em curso representam o conjunto das mudanças ocorridas

em épocas passadas: do volumen ao codex, do manuscrito ao impresso.

Roger Chartier acredita que a introdução da impressão não representou a mais

importante mudança na longa história do livro; com ela competem outras transições, como

a passagem do volumen para o codex. Aliás, o termo transição seria mais apropriado que

revolução nos dois casos. Quando se refere à atual transição do impresso para o eletrônico,

Chartier emprega o termo revolução e, inclusive, parece considerar as mudanças atuais,

mais dramáticas para o leitor, que aquelas sentidas pelos leitores do passado que se

depararam com fenômenos assemelhados.

É por isso que esta revolução, fundada sobre uma ruptura da continuidade e sobre a

necessidade de aprendizagens radicalmente novas, e, portanto de um distanciamento com

relação aos hábitos, tem muito poucos precedentes tão violentos na longa história da cultura

escrita. A comparação com duas rupturas menos brutais faz sentido. No início da era cristã,

os leitores do códex tiveram que se desligar da tradição do livro em rolo. Isso não fora fácil,

sem dúvida. A transição foi igualmente difícil, em toda uma parte da Europa do século

391

XVIII, quando foi necessário adaptar-se a uma circulação muito mais efervescente e

efêmera do impresso. (Chartier, 1998: 93)

As principais mudanças processadas na passagem do volumen para o códex foram:

i) a possibilidade de agrupar em um volume uma quantidade maior de texto; ii) a

possibilidade de paginar e indexar que permitia um manuseio mais eficaz do texto; iii) a

liberação das mãos para anotações.iv) A possibilidade de arquivamento e recuperação mais

ágil. Na mudança do manuscrito para o impresso encontramos as seguintes mudanças: i)

substituição do pergaminho pelo papel como suporte; ii) reprodução em grande escala; iii)

maior rapidez na reprodução e circulação iv) maior oferta e por conseqüência, maior

acessibilidade v) criação de uma nova cadeia de valores formada por gráficos, editores e

livreiros; vi) criação de uma estrutura jurídica.

As mudanças em curso que podem ser percebidas quando comparamos o impresso

com o eletrônico são as seguintes: i) mudança do suporte impresso para o eletrônico; ii)

passagem da materialidade para a imaterialidade; iii) maior acessibilidade; iv) maior

manuseabilidade; v) hiperindexabilidade; vi) reprodução ilimitada; vii) instantaneidade de

reprodução; viii) mudança na cadeia de valores. ix) mudança na estrutura jurídica; x)

mudança na forma de armazenar e recuperar textos.

Quando confrontamos os pontos de mudança, percebemos que a transição atual é,

como apontado por Chartier, mais complexa que as passagens anteriores, porque reúne

fatores presentes em ambas. A passagem do volumen para o códex apresentou como

elemento mais dinâmico a mudança de formato, impactando diretamente a forma de

organização e leitura do texto. A passagem do manuscrito para impresso apresentou como

elemento mais dinâmico a escala de produção. No segundo caso, uma nova cadeia de

valores se formou sem encontrar grande resistência da cadeia de valores anterior. Em

392

poucas gerações a função de copista foi substituída pela de impressor. A Igreja e as

universidades que compuseram as principais clientes da impressão incentivaram a

mudança, abrindo suas portas ao impresso.

Atualmente, a cadeia de valores estabelecida possui controles jurídicos e

econômicos que não existiam no passado. A constituição da sociedade atual e o papel que

cumpre o Estado na regulação das práticas comerciais encontram-se muito mais

estruturados que há 550 anos. Estes fatores fazem da atual transição um processo

aparentemente mais negociado que o anterior. No passado a mudança foi resultado de um

acordo implícito entre a demanda dos leitores e o empreendedorismo dos impressores.

Atualmente, o papel dos leitores convive com a mediação do campo editorial, que usa de

sua legitimidade para controlar a oferta de conteúdos.

d. A emergência da sociedade de informação modifica significativamente a forma

com que as pessoas obtêm conhecimento e se entretêm, causando

deslocamentos importantes no consumo dos bens simbólicos que atendem a

estas necessidades.

Um aspecto importante para a possível transição do livro impresso para o eletrônico

são as influências do atual capitalismo informacional. Nas conclusões do capítulo cinco

elencamos os fatores que afetam a atual produção, armazenagem e circulação da

informação e do conhecimento. Neste cenário os meios eletrônicos encontram-se na

liderança e o livro impresso opera de forma lateral, funcionando como um elemento

legitimador das formas de circulação eletrônica. Assim, estudantes, pesquisadores e

393

empresários usam cada vez mais o meio eletrônico como fonte de conhecimento. O

impresso permanece como fonte “primária” e como fronteira de legitimidade. Os artefatos

de acesso ao conhecimento também se multiplicam. A TV digital, o computador pessoal e o

celular são janelas de acesso, cada vez mais completas e convergentes.

O uso cotidiano de processadores de textos, bancos e mineradores de dados vêm

transformando a forma como se produzem e se consomem textos. O hipertexto também

compõe este rol de novas modalidades de textos ligados à emergência dos meios digitais,

seu uso é ainda restrito a práticas criativas de vanguarda. Quando empregado na forma de

hiperlinks em artigos, por exemplo, constitui-se em uma modalidade ampliada de notas e

citações. Suas aplicações mais radicais, como a criação de obras coletivas e polifônicas

ainda se restringe à vanguarda.

Apesar de o número de usuários dos meios digitais crescer constantemente, a

exclusão digital é ainda um dos fatores a limitar a expansão do consumo de conteúdos

eletrônicos e, por isso, é mais um dos limitadores ao desenvolvimento do e-book . Este fator

é de especial relevância em um país como o Brasil, no qual o mercado editorial é

dependente das compras governamentais. Como mostramos no capítulo dois,

aproximadamente 2/3 dos livros produzidos se destinam aos alunos da rede pública,

atendidos pelas compras governamentais. Como este universo está afastado dos

computadores e da Internet, o mercado de e-books no país, está, na origem, restrito a um

escopo limitado.

A pesquisa Retrato da Leitura no Brasil148 realizada no ano de 2001 com o

patroc ínio da CBL revelou que aproximadamente 20% dos brasileiros, presentes na

148 A pesquisa realizada pelo instituto Franceschini sob o patrocínio da CBL, SNEL e BRACELPA e ABRELIVROS, em 46 cidades brasileiras, 130 entrevistas por cidade, sendo que na cidade de São Paulo

394

amostra, com mais de 14 anos compravam livros. Este perfil estava dividido da seguinte

maneira: 17% da classe A, 36% da classe B, 33% da classe C e 14% das classes D e E.

Propomos cruzar estes dados com o perfil dos usuários de Internet brasileiros, levantados

por pesquisa Realizada pelo Instituto Ipsos-Opinion149, nos meses de agosto e setembro de

2005, que revelou a penetração da Internet nos domicílios brasileiros é a seguinte: 85,57%

na classe A, 63,31% na classe B, 27,4% na classe C e 7,65% nas classes D/E150.

Classes Compra de livros:

Franceschini

Acesso individual

à Internet: IPSOS

A 17% 85 %

B 36% 63%

C 33% 27%

DE 14% 7,65%

Tabela 25: comparação pesquisas compra de livros versus acesso à Internet

A comparação dos dados revela que a penetração da Internet é maior que o número

de compradores de livros nas classes A e B, é um pouco menor na classe C, enquanto nas foram realizadas 433 entrevistas. As entrevistas foram realizadas entre dezembro de 2000 e janeiro de 2001. Esta pesquisa pode ser acessada em: http://www.crb7.org.br/cursoseventos/retratodaleituranobr.ppt#8 149 “Realizada pelo Instituto Ipsos-Opinion, nos meses de agosto e setembro de 2005, a TIC DOMICÍLIOS 2005 mediu a penetração e uso da internet em domicílios, incluindo uso de governo eletrônico, comércio eletrônico, segura nça, educação e barreiras de acesso. A metodologia utilizada seguiu o padrão internacional da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da Eurostat (Instituto de Estatísticas da Comissão Européia), permitindo a comparabilidade internacional. A amostras probabilísticas da pesquisa foi desenhada de forma a apresentar uma margem de erro de, no máximo , 1,5% no âmbito nacional e de 5% regionalmente. As entrevistas foram realizadas presencialmente, em 8.540 domicílios e com indivíduos a partir dos 10 anos. Os resultados permitem a apresentação dos indicadores por 15 regiões e áreas metropolitanas, classe social, instrução, idade e sexo .” 150 O critério de classificação de classes utilizado pelas duas pesquisas é o da ANEP (Associação Nacional de Empresas de Pesquisa)

395

classes D e E, o número de compradores de livros é quase o dobro do daqueles que

possuem acesso individual à Internet. Entre as pessoas que possuem maior renda e que,

portanto possuem condições econômicas de acesso tanto aos livros quanto à Internet, a

penetração deste meio é superior àquela observada na compra de livros. Podemos também

deduzir que as pessoas que utilizam a Internet estão se valendo deste meio para obter parte

dos conhecimentos e informações que outrora eram obtidos em outros meios, dentre eles,

os livros. A pesquisa IPSOS revelou que 87% das pessoas usam a Internet para se

comunicar, 80,96% para obter informações, 71% para lazer e 47% utilizam em atividades

ligadas à educação. Não possuímos dados que nos permitam afirmar que está havendo uma

substituição de meios, porém a queda na venda de livros científicos, técnicos, universitários

acusada nas pesquisas tabuladas no capítulo dois desta dissertação aponta para este

caminho.

É possível supor que a inclusão digital das classes C, D e E observe movimento similar aos

das classes A e B, isto é, o uso da Internet supere o da compra de livros. Para aferirmos isso,

entretanto, seria necessário que fizéssemos uma pesquisa de recepção, a fim de verificar a

proporção de tempo dispensado com a leitura de livros em relação àquele utilizado na navegação

em oceanos digitais. É importante lembrar que as mídias concorrem entre si pela atenção da

audiência e que a adesão a um detreminado meio, em geral, representa a perda de audiência de

outro meio.

e. No formato eletrônico uma convergência constante de mídias tende a modificar

a própria estrutura textual que o livro apresentava em seu formato impresso.

396

As TIC apresentam uma dinâmica continuada rumo a uma futura convergência de mídias e

padrões. Como exemplo deste processo podemos citar a TV digital, que em seu projeto prevê

oferecer aos telespectadores, acesso à Internet, como os atuais computadores. Este mesmo sinal

de televisão digital poderá ser acessado através de telefones celulares e computadores de mão.

A convergência das mídias parece apontar para uma convergência de conteúdos, que podem ser

exibidos nos diversos meios. Um produto total, aos moldes da indústria cultural que pode, por

exemplo, no mesmo pacote, oferecer as diversas adaptações do livro Senhor dos Anéis, o livro,

o jogo, o filme, o documentário, a trilha sonora. Tudo isso através de um canal de e-commerce

acessado através do celular, da TV ou do computador. Parece ser esse o sonho dos

empacotadores digitais. Como vimos, entretanto, pelo menos no que diz respeito ao conteúdo

dos livros, esta possíve l realidade parece estar distante, menos por uma questão de tecnologia

que por questões de ordem política e cultural.

Outra possibilidade para o livro em meio a convergência de mídias é que ele se transforme

em um livro multimídia, com recursos de imagem, voz e navegação. Este fenômeno já pode ser

observado nas enciclopédias eletrônicas. A experiência de navegação por estes conteúdos é rica

e acrescenta a experiência da leitura, outras informações que podem ampliar o conhecimento

acerca do tema prospectado. Quando pensamos no livro texto, ainda não encontramos

experiências similares. O investimento neste tipo de obra é muito alto e parece se justificar

apenas para obras de referência que podem ser vendidas a preços elevados em grande escala.

Outro motivo é o de que, talvez os resultados, para um romance ou um ensaio acadêmico, não

possuam a mesma atratividade que os alcançados em uma obra de referência; a baixa

penetração do hipertexto utilizado em livros aponta para esta hipótese.

f. O livro faz parte do cenário das indústrias culturais e obedece às leis relacionadas a

estas indústrias.

397

A colonização do modelo editorial pelo modelo de flot, detectado por Bernard Miège,

obedece a uma lógica das indústrias culturais, isto é, os dois modelos sempre conviveram em

relativo equilíbrio durante um longo período. Recentemente o desenvolvimento das tecnologias

digitais de comunicação que tornaram possível a transposição de conteúdos para diversos formatos,

e o ingresso de players da telefonia e da indústria informátic a, na seara da indústria cultural,

desequilibraram a balança em favor do modelo de flot. Este fenômeno exige uma diversificação

cada vez maior dos conteúdos, a aceleração da obsolescência e a subordinação àquilo que os

departamentos de marketing julgam ser o “gosto” médio da audiência.

A resistência observada no mercado editorial aos formatos eletrônicos é indício de que este

campo possui uma autonomia relativa sobre os demais campos das indústrias culturais. Esta

autonomia tem diminuído à medida que as empresas editoriais são adquiridas por grandes grupos de

comunicação. Estas aquisições buscam a sinergia entre os conteúdos e as mídias provenientes das

diversas empresas adquiridas. Aqueles conteúdos que podem se adequar ao modelo de flot são

mantidos em catálogo e vertidos para os novos meios: um personagem de HQ vai para o cinema e

também para as lojas de games eletrônicos. O material de fundo e catálogo que for considerado

inadequado é abandonado. Os produtos destes grupos tendem a ocupar cada vez mais espaço nas

prateleiras das livrarias, reduzindo com isso o espaço reservado a produtos editoriais que não se

adequem a esta lógica.

g. A introdução do livro eletrônico ocorre de forma mais lenta, do que outras

transições de suportes midiáticos, devido a características específicas da cadeia

de valores editorial, estabelecida na grafosfera e que se preservam na

videosfera.

398

Como vimos, a cadeia de valores do campo editorial possui relações sedimentadas

no decorrer de um longo período. A participação deste meio no sistema formado pelas

outras indústrias culturais manteve uma convivência equilibrada, com espaço para o

desenvolvimento de fundos de catálogos que obedeciam a uma lógica de consumo de longo

prazo, com baixa obsolescência. Os apelos de mercado, portanto, não eram os únicos a

motivarem os editores, de forma que longevos catálogos se formaram no decorrer do século

XX. A pressão exercida pela outras indústrias culturais não conseguiu solapar por completo

esta característica do segmento editorial. Ele ainda necessita dos fundos de catálogos para

se manter, mas paradoxalmente é obrigado a lançar cada vez mais títulos em tiragens

menores. Algumas especificidades da cadeia de valores editorial, na qual as novas

tecnologias aparecem mais como concorrentes que como parceiras, parecem motivar uma

certa cautela dos editores em relação a estes novos meios em geral e ao e-book em

particular.

h. Uma ascendente cultura hacker, fenômeno próprio da sociedade de

informação, tende a disputar espaço com a cultura tipográfica, promovendo

mudanças significativas no cenário jurídico, econômico, político e cultural do

campo editorial.

As idéias centrais da cultura hacker expressas em modelos de licenciamento de

conteúdos como as creative commons e o copyleft e na valorização de uma meritocracia

criativa, extrapolam o campo das TIC, adentrando outros espaços da vida social e

econômica. Os modelos de negócios inspirados nesta cultura apresentam uma

399

liberalidade para a propriedade intelectual, não observada nas diversas indústrias

culturais. Em geral, baseiam sua atuação na prestação de serviços acessórios ao

conteúdo que disponibilizam. Estas idéias, entretanto, não encontram acolhida no

campo editorial que tem nos direitos autorais a pedra angular de sua existência. A

digitalização dos livros e sua respectiva comercialização pela Internet aproximam os

livros do mundo do software, abrindo caminho para a defesa dos modelos de

licenciamento que modificam completamente a forma de tratar os direitos autorais.

A configuração defensiva adotada por editores brasileiros se negando a oferecer

seus conteúdos no formato eletrônico é influenciada pelo recusa a esta ideologia da

cultura hacker. A desconfiança que esta cultura desperta parece se estender ao

relacionamento mantido com o ambiente das TIC, fato que pode ser constatado na

forma como os editores utilizam a Internet.

i. Aspectos como inclusão digital e comércio eletrônico são capitais para

desenvolvimento do novo formato.

O número de internautas brasileiros varia conforme a pesquisa que se utiliza. A

supracitada pesquisa realizada pelo instituto IPSOS constatou que 24% dos brasileiros

possuíam acesso à Internet em 2005, algo como 42 milhões de pessoas. Quando se trata

do número de indivíduos com acesso à Internet em casa, este número cai para 9% ,

cerca de 16,7 milhões de pessoas. Os dados desta pesquisa devem ser matizados, pois a

coleta de dados foi realizada nas 12 regiões metropolitanas mais populosas do Brasil. A

inclusão do Brasil “profundo” nesta amostra poderia fazer o número de usuários cair.

No capítulo cinco, utilizamos dados da recente pesquisa realizada pela consultoria

400

comScore Networks, que aferiu existirem no Brasil cerca de 14, 1 milhões de usuários

freqüentes da Internet. A pesquisa POP-Ibope, de 2003, também citada no capítulo

cinco, apontava que 87% dos usuários da Internet pertenciam às classes A e B, sendo

que menos de 1% pertenciam as classes D e E.

Sejam quais forem as pesquisas utilizadas, a constatação é a mesma: a base de

excluídos é muito grande, porém, ela está em constante declínio, graças a uma série de

ações de ONGs e do poder público. Outrossim, o número de usuários da Internet já

ultrapassa o número de compradores de livros. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura

no Brasil de 2000/2001, 26 milhões de brasileiros eram leitores, enquanto que 17

milhões possuíam acesso constante ao livro. Quando levamos em consideração o fato,

levantado no capítulo 2, de que a produção de livros no Brasil se encontra estagnada há

muitos anos, que a navegação na Internet inc lui grande quantidade de conteúdo para

leitura151 e que o número de internautas aumenta em um ritmo muito maior que o de

leitores de livros, então deduzimos que o futuro da leitura no Brasil passa pelo meio

digital. A pergunta, então, seria: Por que o futuro do livro também não passaria?

j. A convergência das mídias poderá desfechar um golpe fatal ao atual modelo de

negócio editorial.

Uma das mais importantes tendências relacionadas ao emergente capitalismo

informacional é a convergência das diversas tecnologias da informação em artefatos únicos,

conforme apontado por Carlota Perez, no capítulo cinco. Este fato já pode ser notado nas

151 A navegação é, em geral, textual, lemos para navegar, e grande parte do conteúdo dos sites é composta por material escrito.

401

indústrias de celulares e de computadores de mão. A TV digital também promete trazer

consigo esta multi- funcionalidade. Acoplada a esta tendência está a digitalização de

conteúdos das diversas indústrias culturais. Para se ter uma idéia do poder desta tendência,

no mercado brasileiro de telefonia celular, cerca de 10% da receita é proveniente de

conteúdo. 152 O grupo Abril, maior grupo editorial do país, já oferece através de celulares,

cerca de 80 produtos.153 Quando da introdução da prensa de tipos móveis, o primeiro

movimento editorial, foi o de reeditar clássicos da Antiguidade e da Idade Média. Como

vimos no capítulo três, por cerca de 50 anos, as reedições superavam as novidades. Ao

traçarmos um paralelo entre a transposição do manuscrito para o impresso e o atual

movimento de digitalização de conteúdos, verificamos que um grande número de

“clássicos” vem sendo transposto para o novo meio, é o caso do VHS que vira DVD e

recebe uma edição especial; do relançamento de discos esgotados, agora no formato digital,

a transposição de coleções inteiras de periódicos e de programas de TV, com destaque para

os seriados. A última fronteira parece ser mesmo o mercado editorial. Ele constitui-se em

uma poderosa reserva de conteúdos, e antes que novidades significativas apareçam no

campo do conteúdo digital, nada nos faz acreditar que o assédio a esta reserva diminua,

pelo contrário, ele deve aumentar. Só para registrar, o grupo Abril, que por ora digitaliza

suas revistas, é o proprietário de duas das maiores editoras de livros do país, as editoras

Ática e Scipione.

Um dado curioso sobre o conteúdo digitalizado até o momento é que este pertence

majoritariamente aos segmentos do entretenimento e da informação rápida.

Minoritariamente encontramos conteúdos dedicados ao conhecimento, entendido como um

152 Revista Meio e Mensagem, Volume XXVIII, 29 de maio de 2006, 6-7 p. 153 Idem. 46-47

402

material mais voltado para a reflexão, e cuja recepção exige maior dedicação. Uma dedução

desta tendência seria a de que os segmentos editoriais mais cobiçados são aqueles

destinados ao entretenimento, especificamente o segmento de best-sellers. A lista de e-

books mais vendidos no mercado americano, apresentada no capítulo sete, corrobora esta

percepção.

k. A sobrevivência do editor e do livreiro está ligada diretamente à compreensão

deste novo cenário e a criação de uma nova cadeia de legitimação para a

produção e divulgação da informação-conhecimento.

Em geral, nas previsões sobre o, tecnológico, corre-se permanentemente o risco de

se incorrer em arrombos de futurologia. O risco das previsões é o de misturar a leitura de

tendências com os desejos pessoais. Ressaltamos que temos consciência deste risco, mas

ele não nos impede de fazermos algumas observações, que entendemos, poderão ser úteis à

compreensão do mercado editorial, no futuro próximo.

Quer editores e livreiros assim o desejem ou não, um movimento está em curso no

campo cultural: a leitura e a produção de textos, trabalhados no suporte eletrônico. Este

movimento envolve milhões de pessoas ao redor do mundo e, no Brasil, cerca de 20% da

população. Este número é crescente e se articula em torno desta sociedade centrada no lar,

na qual o tempo livre é utilizado para o consumo de bens simbólicos, dos quais os produtos

das indústrias culturais são, de longe, os mais utilizados.

A convergência de mídias e artefatos tecnológicos apontam para a abertura de uma

janela interativa, pela qual os usuários poderão acessar os conteúdos desmaterializados,

consumindo-os das mais variadas formas: exibidos em uma tela, impressos, armazenados

403

em um banco de dados, ou apenas acessados de algum ponto neste grande banco de dados

que é a Web.

Neste cenário parece existir um espaço para o livro e a leitura que precisa ser

negociado e construído pelos atuais membros do campo editorial. O que observamos, no

entanto, é um certo descaso para com este meio, como se fosse um rio que passa ao largo, e

cuja cheia, no máximo, irá respingar em nossas botas. Mas esta não é a realidade. Enquanto

desenvolvem a conhecida estratégia do avestruz, milhões de jovens lêem e escrevem blogs,

os trabalhos escolares são cada vez mais realizados valendo-se dos meios digitais. E, se

cultura é, como afirma Debray, “a renegociação incessante entre nossos valores e nossos

utensílios”154, então, mais cedo ou mais tarde, uma nova geração de leitores estará formada.

Não mais sob a influência da atual cadeia de legitimação do campo editorial, mas orientada

por outros valores, muitos deles reconhecíveis naquilo que chamamos de cultura hacker.

A maneira como os editores utilizam a Internet, e a imersão digital de seus sites

atuais apontam para uma profunda miopia com relação as reais possibilidades do meio.

Pontos nodais de uma rede de produtores de conteúdos, os editores parecem negligenciar

esta característica genética. Desde sua origem, constituíram-se em selecionadores, árbitros

da forma e do conteúdo, tornaram-se líderes de um sistema perito dedicado à logística das

idéias. Esta função, longe de ter se esgotado, parece ganhar mais relevância em meio a uma

torrente de conteúdos desestruturados oferecidos através da Internet.155

Neste sentido, antes mesmo de disponibilizar os conteúdos dos livros em formato

digital, os editores podem promover uma profunda imersão digital de seus negócios,

154 Debray, 1995: 149 155 O Google, mais conhecida ferramenta de mineração de dados, tinha como base de prospecção, cerca de 19 bilhões de páginas em setembro de 2005. Informação obtida no seguinte endereço: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI683978-EI4802,00.html – acessado em 22/06/2006, as 06:40 h.

404

atuando de forma ativa na construção de uma cadeia de valores de conteúdos editoriais

eletrônicos. Para tanto, poderiam adotar algumas medidas sugeridas no capítulo seis, tais

como: a gestão do relacionamento com os leitores; a editora como imprensa; o fomento de

comunidades virtuais de interesse; pesquisas de opinião; clubes de leitores, etc. Os sites das

editoras podem se transformar em verdadeiros celeiros de conteúdos certificados e, com

isso, promover no campo dos conteúdos imateriais, aquilo que muitas lojas de varejo vêm

fazendo no cenário do comércio de bens de consumo. É sabido que os consumidores se

sentem mais à vontade em comprar de lojas virtuais que possuam suas correspondentes no

mercado tradicional (atual). Ao transferirem a confiança de suas operações tradicionais para

o espaço virtual, empresas como o Ponto Frio e as Lojas Americanas conquistaram

rapidamente sucesso ao passo, que lojas 100% virtuais, como o Submarino, demoraram

muito mais tempo para emplacar.

l. A superação do conflito entre os representantes do campo informacional e do

campo editorial pode redundar na adoção mais rápida dos novos formatos.

Acreditamos que se desenrola uma disputa entre os membros estabelecidos do

campo editorial e os recém-chegados entrantes do campo informacional. Estes outsiders,

aparentados dos editores pela vinculação comum à economia capitalista, se diferenciam

destes pela forma como encaram a utilização dos conteúdos editoriais. No campo jurídico,

já se possui legislação e procedimentos que dão conta da proteção da propriedade

intelectual nos meios digitais. A Lei brasileira dos direitos autorais de 1998 é explícita na

defesa da extensão dos direitos de autor para as mídias digitais. Portanto, o receio da

omissão jurídica não se justifica. A inadequação do modelo de negócios editorial

405

tradicional parece manter os editores afastados desses novos meios, mas existe um outro

motivo que é o receio de perder o controle sobre os conteúdos digitalizados, em especial, o

de ficar nas mãos dos tecnólogos, senão adeptos, ao menos aparentados da cultura hacker.

A solução deste problema pode se dar de inúmeras maneiras. As editoras poderiam

de forma consorciada investir no desenvolvimento de soluções comuns para o comércio de

conteúdos. Aquelas que possuem maior alavancagem financeira podem fazê- lo de forma

doméstica, cooptando quadros do campo informacional. Outra alternativa seria a de criar

uma estrutura interna de verificação que permitiria a contratação de serviços terceirizados

que seriam constantemente monitorados por uma equipe de tecnólogos da editora.

Existem variados caminhos para a superação deste gap tecnológico, porém, para

ultrapassá- lo é preciso que antes, o campo editorial rompa com o ceticismo que afirma

possuir em relação às mídias digitais, fato confirmado pelo grau de imersão digital

verificado nos sites editoriais. Este processo parece estar distante de ocorrer e,

provavelmente só se dará quando algum abalo comercial erodir de forma direta as vendas

de livros impressos. Por exemplo, a obtenção de sucesso comercial da iniciativa da Sony,

apresentada no capítulo sete.

2. TIC, o e-book e o futuro dos diversos segmentos editoriais.

O futuro dos diversos segmentos do mercado editorial quando pensados à luz das

TIC deverá caminhar para um aprofundamento da imersão digital. O grau a que esta

imersão chegará e a velocidade em que ocorrerá não cabe a este trabalho prever. É possível,

406

entretanto, traçar um cenário provável, dentre os inúmeros possíveis, para os diversos

segmentos do mercado editorial:

Autores: As novas gerações de escritores possuem uma forte imersão digital, é provável

que a maioria dos novos escritores tenham suas obras publicadas, primeiro nos meios

eletrônicos, para depois alcançarem os meios digitais. A médio156 prazo serão minoria os

autores que não possuam sites, ou algum meio de divulgação eletrônica de textos. A idéia

de autor, construída durante a modernidade, com toda sua carga simbólica de culto a

individualidade e a genialidade, parece abrir espaço para uma concepão menos individual e

glamurosa. Obras abertas, construções textuais coletivas, participações em coletâneas

deverão conviver com o modelo tradicional de autoria.

Editores: A médio prazo, as obras impressas continuarão sendo as legitimadoras do

conhecimento. Provavelmente um patamar superior a ser galgado por um autor que

publicou no meio eletrônico, seja ter sua obra publicada no meio impresso. Provavelmente

muitos dos noos escritores prescindirão do impresso e mesmo assim alcançarão sucesso.O

crescimento do número de usuários da Internet e o amadurecimento das primeiras gerações

de internautas deve levar os editores a se interessarem mais pelo meio. No caso particular

do Brasil, a entrada do governo federal na aquisição de conteúdo no formato eletrônico,

como já sugerido pelo MEC através de seu Portal Domínio Público, pode acelerar este

processo. O ingresso do governo poderá se dar através do ensino fundamental, caso o plano

em curso de inclusão de todas as escolas até 2010 se efetive. O desenvolvimento de novos

aparelhos dedicados à leitura de conteúdos eletrônicos, como o Reader, lançado pelo Sony,

também pode acelerar este processo. É importante ressaltar que mesmo a longo prazo as

156 Para efeito de uma linha do tempo considero curto prazo cinco anos, médio prazo 10 anos e longo prazo um período entre 20 e 50anos.

407

edições digitais deverão conviver com o formato impresso em catálogos que poderão

apresentar cinco linhas básicas de produtos:

1. Obras integrais lançadas apenas no formato eletrônico;

2. Obras integrais lançadas no formato impresso e eletrônico;

3. Fragmentos de obras (objetos de conhecimento157) como capítulos e tópicos

lançados em formato eletrônico;

4. Obras impressas produzidas com a reunião de objetos de conhecimento;

5. Obras integrais lançadas no formato impresso, com ênfase na materialidade,

utilizando-se de papéis especiais e acabamentos refinados.

Do ponto de vista dos catálogos, os livros destinados aos canais tradicionais no

formato impresso devem obedecer à lógica das indústrias culturais, enquanto nas obras em

formato eletrônico poderão atuar de forma híbrida, ao mesmo tempo satisfazendo ao

público da indústria cultural, mas também oferecendo pordutos para a vanguarda, assim é

possível que independência, própria do campo editorial, mantenha -se através do meio

eletrônico.

Livreiros: Para os livreiros a lógica das indústrias culturais deverá alterar ainda mais o

cenário das lojas. Cada vez mais produtos ligados a estas indústrias deverão ocupar os

espaços antes exclusivos dos livros. Paralelamente, as oportunidades de negócios na

Internet deverão transformar as livrarias virtuais em lojas de eletroeletrônicos, algo que já

ocorre com o Submarino e a FNAC. À medida em que o livro eletrônico ocupar maior

157 Em e -learning se trabalha com este conceito. Trata-se de idéias fundamentais que podem ser destacadas de um material mais amplo, por possuírem independência semântica e transversalidade do ponto de vista educacional, servindo para o entendimento de conteúdos diversos: por exemplo, o mito da caverna de Platão, ou uma explicação didática da teoria da relatividade.

408

espaço nos catálogos das editoras, as livrarias poderão participar do negócio investindo em

tecnologia e segurança e prestando serviços diversos, como a impressão de conteúdos

personalizados, e de produtos como o exemplo 4 do item anterior.

3. E, finalmente...

Ao realizarmos uma pesquisa, em geral submetemos o objeto à teorias, este

movimento gera uma reação inversamente proporcional: que é a submissão das teorias à um

objeto. Neste caso, o método, não é aquilo que planejamos no ínicio, mas sim o caminho

percorrido.

Estabelecemos como quadro geral a divisão em midiasferas, assumindo os

pressupostos da midiologia de que estamos vivendo um período em que os utensílios de

transmissão e recuperação das idéias já não é mais o impresso gráfico, e sim a mídia

eletrônica, cuja interface é o écran. Em um cenário mais restrito optamos por abordar o

meio editorial, envolvido pela midiasfera a partir da teoria dos campos de Pierre Bourdieu.

Como apresentado no capítulo um, a idéia da sociedade como dividida em campos, cada

um apresentando uma formação própria e relativamente autônoma, na qual o conceito de

habitus representa o grau de liberdade que o indivíduo possui dentro do campo, nos serviu

como ferramenta conceitual para abordar o mercado editorial brasileiro. A resistência do

campo editorial em digitalizar seus conteúdos em dissonância com outros campos da

indústria cultural pode ser explicada por esta autonomia relativa relacionada aos campos.

409

Bourdieu admite que no interior de cada campo ocorrem mudanças nas

configurações de poder, já que novos agentes podem trilhar novas caminhos, sem que isso

represente um abalo significativo da estrutura. Submetemos a teoria dos campos às

hipóteses conceituais desenvolvidas por Elias e Scotson, no estudo sobre outsiders e

estabelecidos. Dessa forma o campo é pensado como uma estrutura na qual configurações

de poder se formam e se modificam no decorrer do tempo; estas mudanças configuracionais

envolvem a atuação de concorrentes que habitam o campo e entrantes que originados em

outros campos, penetram no campo em questão, preciptando novas mudanças

configuracionais.

Para o caso específico do campo editorial identificamos a atual cadeia de valo res do

livro impresso como os estabelecidos e os tecnólogos do campo informático que buscam

penetrar no campo editorial, como os outsiders.

Este ingresso possui potencial para promover mudanças na configuração atual do

campo, sem que necessariamente isso represente um abalo mais significativo na estrutura,

porém como esta mudança deve se processar em paralelo com a mudança mais geral da

midiasfera, as conseqüências para o campo podem ser mais profundas, do que aquelas

observadas, por exemplo, quando da entrada no mercado de livros de empresas oriundas de

outros campos, conforme retratado por Jason Epstein em sua análise do mercado

americano, registrada na obra O Negócio do Livro.

A análise diacrônica transpassou transversalmente esta dissertação. Em vário s

momentos procuramos identificar nas transições de suporte e de formato vividas

anteriormente pelo livro, pontos de aproximação e distanciamento com as mudanças atuais,

de modo que, ao final deste trajeto, podemos afirmar que as mudanças atuais parecem ser

410

mais agudas, pois implicam em transformações outrora presentes de forma isolada em uma

ou outra das transições avaliadas, mas que agora se encontram combinadas, como já

apontamos no item um dessa conclusão.

Assim, consideramos cumprido o compromisso epistemológico assumido no

capítulo um desta dissertação. Acreditamos que neste trajeto conseguimos evidenciar que

um fenômeno aparentemente “banal”, considerado quase natural, da substituição de uma

tecnologia por outra, pode conter implicações para os campos mais variados da vida social.

Esperamos ter demonstrado que a discussão estanque deste fenômeno apenas em uma

dimensão – econômica, cultural, jurídica ou política – não dá conta da complexidade que o

envolve.

Finalmente, gostaríamos de apresentar uma última afirmação a respeito do livro.

Nos parece que este artefato forjado no decorrer da história ocidental, portador de uma

unidade semântica, ligado diretamente a um autor, que por séculos representou a

cristalização do conhecimento humano e um espelho da identidade iluminista, que este

objeto passa, assim como as identidades do sujeito, por uma profunda transição. Ela aponta

para um descentramento (ou seria para um novo centro?), no qual conceitos como autoria

individual, propriedade intelectual e unidade da obra, perdem força para conceitos como

autoria coletiva, domínio público e obras polifônicas e fragmentárias. Neste contexto os

utensílios tecnológicos são a expressão da cultura e não o contrário . Talvez, por este mesmo

motivo a idéia de venda de livros eletrônicos pensados como objetos unitários, homólogos

ao livro impresso, esteja demonstrando pouca atratividade, enquanto modelos como os da

411

Thompson158 que oferecem acesso a verdadeiras bibliotecas digitais de objetos do

conhecimento estejam obtendo imenso sucesso.

O resultado futuro deste processo depende dos agentes retratados nesta dissertação,

mas será também resultado de como os receptores receberão os novos formatos e das

negociações que estes haverão de travar com os estabelecidos e os outsiders. E é este o

desafio que gostaria de trilhar nos próximos anos, em um futuro doutorado: verificar como

os receptores estão se relacionando com os emergentes formatos eletrônicos e como os

escritores que atuam neste meio estão reinventando o conceito de autoria do livro, pois,

parodiando o poeta Paulo Leminski: uma dissertação não começa com um conto nem

termina com um ponto.

158 Lembro que o faturamento da Thompson com conteúdos digitais é quatro vezes mais do que todo o faturamento do mercado editorial brasileiro de livros impressos.

412

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