furo no futuro
TRANSCRIPT
-
Furos no futuro: Utopia e cultura
Edson Luiz Andr de Sousa
O fenmeno completamente diferente para aquele que o olha de costas.
Walter Benjamin 1
Como algum poderia encontrar as palavras para descrever um pesadelo?
Jack London 2
Por vezes, o futuro se apresenta como uma nvoa obscura cobrindo os sonhos com a
fuligem do funcionamento da mquina social e as compulses repetitivas da histria.
Encobre assim, uma das categorias mais essenciais da vida: a esperana. Diante deste
cenrio, das aglomeraes das coisas havidas obstruindo totalmente as categorias do
futuro 3 , nosso desafio saber como abrir furos neste vu do amanh. Os dois acordes
iniciais do texto nos exigem um despertar. Benjamin sublinha que a posio do espectador
constitutiva do campo do olhar, o que significa dizer que o territrio que constitumos
depende da posio em que nos colocamos para desenh-lo e, evidentemente, dos
instrumentos conceituais, histricos, subjetivos, culturais, polticos que temos mo para o
esboo desta geografia. por esta razo que Milton Santos em seu clssico livro A
natureza do espao categrico ao dizer que s podemos pensar o espao como um
conjunto indissocivel de sistemas de objetos e de sistemas de aes4. Assim, muitas vezes
espaos distintos se apresentam como ilusoriamente homogneos. difcil reconhecer isto,
sabemos, pois so muitas as estratgias de camuflar a diferena sob o vu das boas
intenes e sob o manto dos conceitos ferozes que devoram com apetite as impurezas que
marcam as diferenas. Nunca demais prestar ateno ao alerta lcido de Lezama Lima, ao
mostrar o quanto o poder das imagens costura semelhanas produzindo o que ele nomeia
como voracidade das formas5. Muitas destas formas funcionam em nossos tempos como
circuitos pulsionais ativados pela pressa da produo, pela necessidade de ampliar o
1
-
espectro de consumidores, pela sede de poder que inunda nossos espritos confusos com
promessas, culpas e dvidas. Estas duas ltimas se multiplicam quando no conseguimos
responder s imagens ideais que nos so propostas pela mquina do funcionamento social.
Como podemos tocar a dor/espao do outro quando algumas imagens perturbam meu sono?
Neste ponto no podemos esquecer o gesto da senhora Verdurin que sofria de enxaquecas
porque no tinha mais seus croissants, efeitos para ela desastrosos da Primeira Grande
Guerra. Conseguiu ento uma receita e ao saborear o primeiro depois de tanta abstinncia
abre o jornal e se depara com a noticia do naufrgio de um navio britnico afundado por um
submarino alemo. Proust leva sua personagem ao extremo nos alfinetando com uma
reflexo sobre fronteiras:
Enquanto mergulhava o croissant dentro do caf com leite e dava petelecos em
seu jornal para que pudesse ficar bem aberto sem que tivesse necessidade de
retirar a outra mo do pozinho molhado, dizia: Que horror, isto ultrapassa em
horror as mais pavorosas tragdias. Mas a morte de todos aqueles afogados
devia lhe parecer reduzida a um milsimo, pois, com a boca cheia, fazendo
aquelas reflexes desoladas, a expresso que sobrenadava em seu rosto, causada
provavelmente pelo sabor do croissant, to precioso contra a enxaqueca, era
mais a de uma doce satisfao6.
A senhora Verdurin est em muitos lugares e fundamental a reconhecermos tambm
dentro de ns mesmos. Assim, quem sabe, podemos entender um pouco mais sobre nossa
indiferena, nossa negligncia, nossa dificuldade de entender a dor do outro. As estratgias
defensivas turvam nossa viso e, por vezes, nada melhor do que ir dormir e sonhar com
outros mundos para esquecer, ou ento fechar os olhos e cantar uma cano qualquer e nos
distrair com outras imagens. Esta varivel psicolgica, por vezes negligenciada na esfera do
pensamento, no pode ser esquecida, pois do seu reconhecimento que podemos tambm
construir zonas de resistncia. Apostamos, claro, no pequeno rudo que fica, no resto
depois da catstrofe, na inquietao da alma que no se contenta com o croissant.
Precisamos do compromisso tico de testemunhar aquilo que somos capazes de ver. Por
isto que Sigmund Freud tem toda razo ao lembrar que quando o caminhante canta na
2
-
escurido, recusa seu estado de angstia, mas no por isso pode ver mais claramente7. A
angstia, neste ponto, pode nos ajudar a ver, sobretudo porque introduz a dimenso da
dvida, do no sei, esburaca as imagens potentes do que claro e estabelecido. A
angstia funciona, portanto, como motor de novas imagens nos obrigando a um trabalho de
entendimento daquilo que vemos e que no cabe mais em nossas categorias conceituais.
Precisamos ver e assim resistir cegueira que tenta diluir algumas fronteiras. Na verdade, a
diluio de fronteira pode ser uma forma de conquista hegemnica drenando para o espao
do outro a exata medida de seus meridianos e paralelos. A histria nos mostra a catstrofe
destas estratgias de dominao e que vai dos planos dos reis conquistadores ao dogma de
algumas religies que nunca toleraram o Deus do vizinho.
O esforo de entendimento deste cenrio o que indica Jack London com o segundo
acorde inicial deste texto. Que palavra expressa, portanto, este pesadelo? Aqui percebemos
o compromisso maior com a narrao, com o esforo de transmisso, descrio do que
vemos, do que sentimos, do que sonhamos. A pergunta de London j nos coloca de antemo
diante de um desencontro entre pesadelo e palavra. H algo que excede no pesadelo (uma
dimenso traumtica) e que a palavra em seu esforo herico tenta recuperar. Contudo, esta
insuficincia no deve ser tomada como desqualificao da nomeao da cena, pelo
contrrio, o em falta da palavra que nos obriga a continuar buscando sempre um contorno
mais preciso do pesadelo. A cultura, neste ponto, deveria vir justamente para acionar as
fissuras destas brechas discursivas. Alis, neste ponto preciso que vamos poder situar a
funo das utopias como uma espcie de furo no plano dos conceitos e imagens institudas,
abrindo portanto a possibilidade de novos conceitos e novas imagens. A utopia instaura um
outro tipo de contato acionando uma compreenso que vem plena de esperana, de
inveno, recusando a repetio das catstrofes, a que assistimos passivos e resignados. A
utopia aqui pensada como marca maior da funo da cultura, ou seja, aquela que ainda
sabe cultivar o solo e que, mesmo que possa planejar o plantio, no sabe exatamente qual
ser o contorno e a dimenso da colheita. Se ope portanto aos que preferem no ver, j
que, como diz Mrio Peixoto, a vista das coisas profunda demais para to pequeno
contato8. Fazer contato a funo fundamental da cultura, ou seja, estabelecer e organizar
para um determinado coletivo uma herana compartilhada e um patrimnio de histria, de
smbolos mas sobretudo de ideais. Perder a dimenso do ideal compartilhado, dentro desta
3
-
perspectiva, seria perder um dos traos mais fundamentais de uma cultura. Portanto, a
utopia esburaca o opacidade dura das prescries morais, dos programas partidrios, dos
manuais do bom consumidor e sobretudo interroga o ufanismo raivoso e sedutor do
tecnicismo delirante que regula finalmente (ou quer regular) as formas do viver. Contra a
burocratizao do amanh9, instituda para todos, por vezes lutamos com pequenas espadas
onde criamos pequenos manuais de conduta (burocracias menores disfaradas de
liberdade), acreditando que esta pequena criao possa nos salvar do abismo maior. Nos
vemos diante da cena pattica do sujeito que pensa reagir coao violenta da imagem
imposta goela abaixo simplesmente comprando o produto do concorrente, j que no tolera
ficar sem nada. Assim, sua pressa em consumir (mesmo a cultura) lhe deixa exausto,
subtraindo-lhe a chance de indagar sobre a lgica e o ritmo do funcionamento desta
mquina. Walter Benjamin neste ponto visionrio, de certa forma, quando aponta a deriva
que a inflao da informao produz no tempo e condio da narrao. Nomeia este
movimento como empobrecimento radical da experincia, j que as histrias que nos
representam escapam como os gros de areia na mo quando a mar da cultura do dinheiro
nos restringe o horizonte. Esta onda foi muito bem analisada por Fredric Jameson em seu
ensaio A cultura do dinheiro, onde podemos encontrar a pulsao de imagens na rede de
erotizao do consumo.
J disse que as questes culturais tendem a se propagar para as econmicas
e sociais. Vamos considerar primeiramente a dimenso econmica da
globalizao, dimenso esta que parece sempre estar se expandindo para todo o
resto: controla as novas tecnologias, refora os interesses geopolticos, e, com a
ps-modernidade, finalmente, dissolve o cultural no econmico e o
econmico no cultural. A produo das mercadorias agora um fenmeno
cultural, no qual se compram os produtos tanto por sua imagem quanto por seu
uso imediato. Surgiu toda uma indstria para planejar a imagem das
mercadorias e as estratgias de venda: a propaganda tornou-se uma mediao
fundamental entre a cultura e a economia10.
4
-
Aqui podemos pensar nesta tenso entre as imagens necessrias que do aos
sujeitos um sentido de histria, uma herana compartilhada, um territrio comum de
esquecimentos e desejos, de sonhos compartilhados que produzem coletivos potentes e
imagens aleatrias, vindas de qualquer lugar e que se impem pela fora ertica e retrica
da mquina de convencimento, produzindo novos coletivos com fronteiras curiosas entre os
que tm e os que no tm acesso a tais privilgios. O preocupante, na verdade, no tanto a
presena de tais imagens de consumo instantneo mas a fora de destruio que acabam
produzindo sobre as experincias que nos singularizam. Assim, chegamos, na tica de
Walter Benjamin, a um novo tempo de pobreza. Hoje, ainda mais claro este cenrio do
que h setenta anos, quando Benjamin escreveu este pequeno artigo. A apatia crtica, a
resignao generalizada diante da fora do mercado, e principalmente o descrdito na
potncia das utopias, categoria esquecida e desacreditada no debate de idias, j que
tornou-se um adjetivo til para desqualificar uma ao, desenham um cenrio de desolao.
Pensar hoje esta economia de imagens, este imperativo do gozo instantneo que sacrifica
patrimnios culturais est na ordem do dia. Este cenrio vai desde prdios histricos
destrudos para virarem estacionamentos rotativos, a desolao do debate poltico e de
idias arquitetado por um marketing calculado. Recentemente, estive visitando o que
sobrou da srie de casas/faris que o grande artista e arquiteto brasileiro Flavio de Carvalho
construiu em So Paulo, esprito visionrio que tanto marcou a cultura visual de nosso pas.
Da srie de casas pouco sobrou: nenhum registro, nenhuma marca no texto da cidade para
que os que chegam possam ali encontrar histria. Trago este exemplo, entre dezenas que
poderia mencionar, pois estas casas foram praticamente os nicos projetos arquitetnicos
efetivamente construdos dos inmeros que props. Ali, na Alameda Lorena, no corao da
cidade, algumas runas das casas, redesenhadas por outros arquitetos de planto
organizando os espaos do comrcio e implodindo os espaos da histria. Na loja de tintas
ningum sabia a histria do prdio, no restaurante japons ainda podia-se ver os recortes
retangulares na parede lateral como o rabisco que resiste ao apagamento, e no caf high-life
podia-se ao menos comer distrado um croissant como a senhora Verdurin. A nica placa
que encontrei fazia palavras cruzadas no ptio interno da casa, uma senhora de mais de 80
anos, que me contou um pouco da histria destas casas. Este o cenrio/desafio que temos
pela frente. Benjamin nos alerta sobre o que ele chama uma nova barbrie:
5
-
Pois qual o valor de todo o nosso patrimnio cultural, se a experincia no
mais o vincula a ns? A horrvel mixrdia de estilos e concepes do mundo do
sculo passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais
podem nos conduzir, quando a experincia nos subtrada, hipcrita ou
sorrateiramente, que hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa
pobreza. Sim, prefervel confessar que essa pobreza de experincia no mais
privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbrie11.
Neste ponto o prprio Flvio de Carvalho nos desenha um horizonte de reflexo
mostrando o quanto a criao anda de mos dadas com a utopia quando inscreve um
movimento de contrafluxo diante do institudo como senso comum. clssica sua
experincia de ter decidido caminhar no contrafluxo de uma procisso em So Paulo em
1931 para entender e provocar o princpio de movimento da massa. Esta experincia, que
quase terminou tragicamente, pois Flvio de Carvalho quase foi linchado pela massa de
fiis enfurecida, funciona como paradigma da interrogao que se faz necessria para que
possamos entender minimamente para onde estamos indo e o que levamos nas mos e no
esprito12. A utopia cumpre esta funo de contrafluxo, de anteparo de nossas certezas,
esburacando a excessiva naturalizao com a qual vestimos os acontecimentos. A utopia,
portanto, suspende os falsos destinos que vestimos como forma de anestesiar o que temos
de mais precioso, nossa responsabilidade diante da vida e do amanh. A utopia como um
furo de imagem foi equivocadamente (e ainda ) lida como prescritiva, anunciando as
formas ideais e finalmente o segredo da felicidade compartilhada. Grande equvoco. Todos
os grandes utopistas nunca pretenderam o lugar de deuses. Os textos utpicos nada mais
so que fices que buscam simplesmente pela fora da imaginao abrir uma ferida crtica
nas paisagens de nosso tempo. Pretendiam, portanto, provocar suas pocas com
pensamentos e assim abrir novas fronteiras para a imaginao e a responsabilidade diante
da histria. Thomas Morus e sua Utopia, Tommaso Campanella e sua Cidade do Sol,
Francis Bacon e sua Atlntida e tantos outros materializaram em texto o que Ernst Bloch
nomeia como Princpio Esperana13. Esperana crtica que para sonhar para frente precisa
conhecer minimamente alguns princpios de funcionamento da mquina social.
6
-
A utopia, nesta perspectiva, tem muito mais uma dimenso de subtrao de um
excesso de imagens e de sentido, exatamente como na interpretao psicanaltica,
suspendendo as certezas do sujeito, do que prescrevendo novos cdigos de conduta e
projetos de felicidade. Tomar a utopia como revelao da verdade uma espcie de recusa
ao compromisso que cada um tem com sua imaginao. Neste sentido, recusar o texto
utpico implica sucumbir resignadamente aos textos que j vivemos e assinamos embaixo
muitas vezes sem saber. Aqui encontramos a catstrofe anunciada por Walter Benjamin
quando a vincula com a experincia da repetio: Que as coisas continuem como antes, eis
a catstrofe14. Sabemos o quanto a sede de poder fez de algumas utopias um maquinrio
cruel, autoritrio, dogmtico. A utopia que nos interessa no aquela que sabemos, mas
justamente aquela que ainda no sabemos e que precisamos inventar. Neste ponto, voltamos
novamente a Jameson, que enfatiza que o texto utpico abre uma espcie de negativo, de
subtrao, nos confrontando com alguns desertos de imaginao que cultivamos. Neste
deserto a utopia seria como colocar um pouco de gua na mo e assim produzir um oceano
e depois uma margem como surpreendentemente anuncia o poeta argentino Juan Gelman:
no ponha gua em sua mo
porque vir o oceano
e a margem depois15
com esta margem que construiremos outras fronteiras para o pensamento, aquela
que parte do pressuposto de que todo ato criativo um ato utpico16. Para Jameson a utopia
vale por aquilo que revela sobre o nosso em falta com a histria. O texto utpico, de
alguma forma, poderia apontar para as espcies de fronteiras que no nos deixam transitar.
No se trata portanto de anunciar o sonho que falta, mas sobretudo indicar o fracasso do
sonho que cultivamos (por vezes, exatamente, o sonho de consumo).Vejamos o que diz
sobre este ponto:
A vocao da utopia o fracasso; o seu valor epistemolgico est nas
paredes que ela nos permite perceber em torno das nossas mentes, nos limites
7
-
invisveis que nos permite detectar, por mera induo, a lama da poca presente
que se gruda nos sapatos da Utopia alada, imaginando que isso a prpria fora
da gravidade. Como nos ensinou Louis Marin em seu Utopiques, o texto
utpico realmente nos d a vvida lio daquilo que no podemos imaginar: s
que no o faz pela imaginao concreta, mas sim por meio dos buracos no
texto, que so a nossa prpria incapacidade de ver alm da poca e suas
concluses ideolgicas17.
Litoral e rasuras
At este ponto podemos perceber dois movimentos possveis em relao s
fronteiras do pensamento. Por vezes, apagar fronteiras abre a possibilidade do trnsito, do
nomadismo, da imaginao. Esta perspectiva revela tambm o artificialismo de algumas
fronteiras que demarcam linhas em espaos muitas vezes homogneos e contnuos. Esta
uma discusso complexa principalmente dentro do espectro das fronteiras dos estados
nacionais e a qumica da histria e cultura que nem sempre funcionam a partir de uma
geografia poltica. Homi Bhabha analisa com rigor esta questo sobretudo no captulo
Disseminao: o tempo, a narrativa e as margens da no moderna18. Joga ali, de forma
provocadora, com a idia de uma nao disseminada (disseminao), ou seja, diluda em
outras espcies de fronteiras. Se o pensamento e uma histria cultural compartilhada fazem
lao social, no exatamente o carimbo em meu passaporte que marca a diferena com
meu vizinho. No precisamos ir muito longe, basta pensar em alguns povos sem naes
institudas e reconhecidas para que a questo adquira sua potncia de problema.
Por outro lado, h tambm uma apagamento de fronteira que perturba quando o que
apagado justamente o que constitui o coletivo. Este ponto j foi mencionado
anteriormente, quando lembrado o trgico da destruio dos smbolos e marcas discursivas
que constituem a histria de uma comunidade. Aqui a fronteira aberta tem a funo de fazer
penetrar outras imagens ativadoras de movimento e, com a melhor das boas intenes,
implodir focos de resistncia cultural. Refiro-me aqui, por exemplo, a uma certa indstria
cultural ativada como estratgia de poder, de universalizao do gosto, de anestesiamento
8
-
da diferena j que o mercado unificado facilita o preenchimento das planilhas de
contabilidade do consumo. No se pode esquecer neste ponto a voracidade de um
imperialismo cultural que reatualiza sempre a discusso de princpios sobre as estratgias
de compartilhamento de heranas culturais. Claro que este compartilhamento se d na
maior parte das vezes como uma rua de mo nica: h os que produzem e os que
consomem, h os que pensam e os que repetem, h os que mandam e os que obedecem, h
os que vendem e os que compram, h os patres e os empregados, h os que vivem e os que
morrem. Como j mencionado, aqui que a economia encontra sua interseco de base
com a cultura.
Os Estados Unidos fizeram um enorme esforo, desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, para assegurar a dominao de seus filmes em mercados
estrangeiros isso foi conseguido, por via poltica, atravs da incluso de
clusulas especficas em tratados e pacotes de ajuda econmica19.
O imprio da imagem funciona como foco e aglutinador de energia. Algumas destas
imagens implodem as utopias, pois no toleram serem contrariadas em sua hegemonia.
Funcionam como ralos que absorvem a potncia de muitos, os sonhos tmidos, o tempo de
trabalho, o suor sacrificial para manter o mnimo e at mesmo o prazer de viver. Imagens-
monoplio que se enraizam no hmus dos fantasmas20, nos fazendo sentir desamparados
sempre que surge alguma ameaa de perder tais imagens. Em contraponto a esta lgica,
tambm podemos encontrar imagens que nos despertam desta letargia e passividade
ativando nossa imaginao, nossa capacidade de colocar boas questes ao mundo e tentar
compreender onde estamos. Aqui a pequena imagem tambm potente: o verso do poeta, a
imagem do artista, o enredo do escritor, a reflexo do pensador, a palavra vulco pode
acionar uma verdadeira revolta do pensamento.
Portanto, seria preciso talvez pensar as fronteiras a partir dos movimentos possveis
no trnsito entre estes territrios. Dentro desta perspectiva, claro, a fronteira pensada em
sua condio de passagem. curioso o ponto de partida de Jacques Lacan em relao a este
ponto quando diz que a fronteira, com certeza, ao separar dois territrios, simboliza que
9
-
eles so iguais para quem a transpe, que h entre eles um denominador comum21. neste
mesmo texto Lituraterra que Lacan indica uma diferena que pode nos ajudar em nossa
reflexo. Lacan prope o termo litoral para marcar a radicalidade de um encontro de
heterogneos, j que se trata de duas superfcies distintas: mar e terra. A fronteira, como j
vimos, muitas vezes institui uma diferena em espaos homogneos. Encontrar, portanto,
alguns litorais implica uma radicalidade de identificao de limites fundamentais para
sabermos qual o ponto de partida que permite um contato efetivo com o outro, com a
alteridade, com o estrangeiro. O litoral nos esclarece sobre a borda de nosso saber, de nossa
histria, de nossas fantasias e, ousaria dizer, de nossas utopias possveis. O litoral
resguardaria, assim, uma singularidade que faz margem, construindo novas imargens. Neste
ponto, embora no mencione em seu texto, Lacan se aproxima de Benjamin, j que estas
praias so construdas a partir da condio de narrar, de transmisso, cuja forma extrema e
sublime seria justamente a literatura. Literatura, como lembra Lacan, na condio de
acomodao de restos22. Na condio de narrar encontraramos o valor maior da
transmisso e chance para cada um de fazer contato efetivo com sua experincia.
Nenhuma experincia pode ser regulada por uma tcnica e coordenada por um
funcionamento de automatismos, eficincias limpas. H necessidade, claro, de uma
tcnica rasurada pelas dvidas e inquieta com o futuro. A deriva tecnicista do espirito
utpico preocupante. Milton Santos analisa com rigor este mapa e reage de forma lcida a
estes novos imperativos metodolgicos e muitas vezes kafkianos. Chama ateno o quanto
uma determinada tcnica pode ser uma mquina de destruio do diferente e de excluso de
tudo que estrangeiro.
Vivemos todos num emaranhado de tcnicas, o que em outras palavras
significa que estamos todos mergulhados no reino do artifcio. Na medida em
que as tcnicas hegemnicas, fundadas na cincia e obedientes aos imperativos
do mercado, so hoje extremamente dotadas de intencionalidade, h igualmente
tendncia hegemonia de uma produo racional de coisas e necessidades; e
desse modo uma produo excludente de outras produes, com a multiplicao
de objetos tcnicos estritamente programados que abrem espao para essa orgia
de coisas e necessidades que impem relaes e nos governam. Cria-se um
10
-
verdadeiro totalitarismo tendencial da racionalidade isto , desta racionalidade
hegemnica, dominante , produzindo-se a partir do respectivo sistema certas
coisas, servios, relaes e idias23.
A burocratizao do amanh
O amanh nos acossa. Temos medo quando no sabemos. Portanto, o saber vem por
vezes legitimar a recluso que nos impomos diante do desconhecido. Para nos defendermos
no precisamos muito: basta insistir na lgica do ontem e assim confirmar que a
continuidade dos princpios e dos funcionamentos legitima os adgios ontolgicos de uma
racionalidade insuflada pelas formas institudas. Criar abrir descontinuidades,
interrupes neste fluxo do mesmo. Nesta anlise, a variante psicolgica no pode aqui ser
negligenciada, pois a passividade anda de mos dadas com a tristeza que constata que tudo
est sempre to igual, e que h, enfim, algum que pensa por ns, que faz por ns, e o que
pior , que vive por ns. No h, portanto, revolta sem a alegria da inveno, sem o
entusiasmo de compartilhar com o outro um sonho.
A burocratizao do amanh uma forma de controle do tempo. Tempo/carto ponto
desenhando as rotinas que tanto preservamos e amamos. Por isto, a queixa que dirigimos a
estes fluxos so fragmentos de discurso amoroso. Controlar o tempo um dos instrumentos
mais potentes da lgica do poder. Tempo institudo pela lgica do mercado, do fluxo de
valores de mercadorias, da velocidade das campanhas publicitrias, defendendo sob o
manto de uma teoria desenvolvimentista do progresso, a virtude da pacincia e da espera.
Este cenrio, como sabemos, se mantm mesmo que poucos sejam os escolhidos e
apaream como a nata de um caldo aquecido pelo sacrifcio de muitos. Estes ltimos, nos
faz crer esta lgica de funcionamento, perderam a chance por pura incompetncia de viver
deles prprios. Esta uma condio radical de cegueira que no nos permite, neste ponto,
visualizar o litoral comentado antes. Quando a cultura no consegue escrever minimamente
11
-
estes espaos heterogneos, de articulao crtica entre diferentes, perdemos a linha do
horizonte que nos indica uma direo. Como lembra Alfonso Sastre:
O pior inimigo da vida a homogeneidade. A cultura uma atividade que
se ope ao fato que nossa realidade se converte em uma sopa entrpica. A
entropia significa a desordem que a base da morte... O pensamento nico e
linguagem nica s produz ridculos espantalhos24.
A utopia , portanto, uma espcie de freio no delrio mimtico que padecemos. Ela
vem opor a tendncia repetio. A utopia rompe com a paixo da analogia ao propor um
no lugar. A forma utpica, fundamentalmente, num primeiro momento coloca em cena um
no ao presente. A utopia introduz a categoria do possvel e por isso faz fratura na
histria. Nunca sabemos at onde uma cultura que aposte no espirito utpico pode nos
levar. O fundamental, na verdade, no antecipar este lugar, mas simplesmente
compreender que sua funo nos colocar em marcha e que possamos, como diz, Ernst
Bloch ultrapassar a obscuridade do instante vivido.
A conscincia utpica quer enxergar bem longe, mas no fundo apenas para
atravessar a escurido bem prxima do instante que acabou de ser vivido, em que todo o
devir est deriva e oculto de si mesmo25.
A utopia implode qualquer burocracia pela sintonia que tem com o fazer potico
tanto na sua condio de inveno de novas metforas bem como (e talvez seja este o ponto
mais radical) uma suspenso de sentido que reativa a imaginao. Precisamos cada vez
mais de um pensamento potico que, uma vez instaurado, produza efetivamente um fazer
poltico no sentido pleno da palavra. A produo potica revigora a lngua, toca com
coragem nos limites do dizvel, contorna com determinao as fronteiras do informe,
aceitando assim o desafio lanado por Jack London, de termos que narrar nosso pesadelo
por mais difcil que seja. Produz, portanto, um pensar contra. Assim busca esburacar o vu
de cegueira que a racionalizao e o tecnicismo contemporneo nos impem.
12
-
Hannah Arendt muito clara ao situar a burocracia como uma das formas
contemporneas mais eficazes de dominao. Como ningum pode ser tomado como
responsvel, a burocracia fica entregue ao domnio de Ningum.
O domnio de Ningum claramente o mais tirnico de todos, pois a no h
ningum a quem se possa questionar para que responda pelo que est sendo
feito. este estado de coisas que torna impossveis a localizao da
responsabilidade e a identificao do inimigo, que est entre as mais potentes
causas da rebelde inquietude espraiada pelo mundo de hoje, da sua natureza
catica, bem como da sua perigosa tendncia para escapar ao controle e agir
desesperadamente26.
A confiana exagerada na tcnica, no saber fazer, deixou o amanh de mos cheias
de regulamentos, de projetos de aes, de estatutos, de bulas, de manuais de instrues.
Com as mos ocupadas com tantas prescries, no foi possvel agarrar os vapores das
novas idias.
Para ativarmos novas idias precisamos, portanto, de uma cultura da utopia. Neste
ponto talvez nos seja possvel encontrar o litoral mais fundamental de nossa humanidade j
que como lembra Ernst Bloch no incio de sua trilogia sobre o Principio Esperana: A falta
de esperana , ela mesma, tanto em termos temporais quanto em contedo, o mais
intolervel, o absolutamente insuportvel para as necessidades humanas27.
13
-
1 BENJAMIN, Walter. Karl Kraus in: KRAUS, Karl. Cette grande poque, Petite Bibliothque Rivages, Paris, 1990, p. 50.2 LONDON, Jack. O pago, Editora Dantes, Rio de Janeiro, 2000, p.22.3 BLOCH, Ernst. O princpio esperana, Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2005, p. 184 SANTOS, Milton. A natureza do espao, Edusp, So Paulo, 2002, p. 21.5 LIMA, Lezama. A dignidade da poesia, Editora tica, So Paulo, 1996, p. 127 6 PROUST, Marcel. Pliade, Gallimard, Paris, Tomo III, pp. 772-3. 7 FREUD, Sigmund. Inibio, Sintoma e Angstia, Obras Completas, Tomo III, Biblioteca Nueva, Madri, p. 2839.8 PEIXOTO, Mrio. Poemas de permeio com o mar, Aeroplano Editora, Rio de Janeiro, 2002, p. 63.9 Ver SOUSA, Edson. A burocratizao do amanh. Revista Porto Arte, Ps-Graduao em Artes Visuais UFRGS, Editora da UFRGS, Porto Alegre, n 24 (no prelo).10 JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro ensaios sobre a globalizao, Editora Vozes, Petrpolis, 2001. p. 22.11 BENJAMIN, Walter. Experincia e Pobreza in: Obras Escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica, Editora Brasiliense, So Paulo, 1994, p. 115.12 Desenvolvi mais amplamente estas idias no texto Monocromos psquicos: alguns teoremas in: RIVERA, Tania & SAFATLE, Wladimir. Sobre Arte e Psicanlise, Editora Escuta, So Paulo, 2006.13 BLOCH, Ernst. O princpio esperana, Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2005.14 BENJAMIN, Walter. Paris, capitale du XIX sicle, Cerf, Paris, 1989, p. 491.15 GELMAN, Juan. A mo in: Isso, Editora da Unb, Braslia, 2004.16 Desenvolvo amplamente esta reflexo no texto Por uma cultura da Utopia in: BOETTCHER, Claudia. Unicultura, Editora da UFRGS, Porto Alegre, 2002.17 JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. Editora tica, So Paulo, 197718 BHABHA, Homi. O local da cultura. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 1998.19 JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro ensaios sobre a globalizao, op. cit. p. 23.20 Referncia ao poema/texto de Ren Passeron, Por uma poanlise, in: SOUSA, Edson; TESSLER, Elida: SLAVUTZKY, Abro. A inveno da vida: arte e psicanlise, Artes e Oficios, Porto Alegre, 2001, p. 9.21 LACAN, Jacques. Lituraterra. Outros Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p. 18.22 LACAN, Jacques, op. cit., p. 16.23 SANTOS, Milton. Por uma outra globalizao do pensamento nico conscincia universal, Editora Record, Rio de Janeiro, 2000, p. 128.24 SASTRE, Alfonso. Los Intelectuales y la utopia. Editorial Debate, Madrid, 2002, p. 43.25 BLOCH, Ernst. Princpio Esperana, op. cit., p. 146.26 ARENDT, Hannah. Sobre a violncia. Relume Dumar, Rio de Janeiro, 1994, p. 33.27 BLOCH, Ernst. Princpio Esperana, op. cit., p. 15.
Furos no futuro: Utopia e cultura Edson Luiz Andr de Sousa