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Função accionista do
Estado e golden shares
O caso da golden share da PT
Sumário: 0. Plano de exposição; 1. Conceitos preliminares; 2. As golden shares; 3. As
(re)privatizações e o seu quadro legal como fundamento e origem das golden shares; 4.
Golden shares e os princípios consagrados no direito comunitário; 5. Evolução
institucional do sector das telecomunicações até à PT, sua privatização e criação da
golden share; 6. O acórdão C-171/08; 7. Conclusões; 8. Anexo I; 9. Bibliografia,
jurisprudência e outras fontes.
Trabalho elaborado por:
Miguel Archer
Miguel Costa
Sara Asseiceiro
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0. Plano de exposição
O estudo que se segue pretende efectuar uma análise relativamente sucinta da golden
share detida pelo Estado Português na Portugal Telecom, SGPS, S.A. (PT), em
particular da decisão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) no
Acórdão C-171/08, Comissão/Portugal, de 8 de Julho de 2010.
Assim, o modo como se fará a exposição do tema e da sua análise é o seguinte: em
primeiro lugar, faremos uma aproximação a alguns conceitos que serão relevantes para
compreender a figura da golden share; de seguida, enunciaremos possíveis definições
de golden share – em sentido amplo e em sentido restrito - e optaremos pela segunda
como acepção a considerar neste estudo; em terceiro lugar, veremos que a razão de
golden shares existirem provém do facto de certas empresas terem sido privatizadas; em
quarto lugar, mostraremos em termos genéricos qual a posição da Comissão e do TJCE
em relação à conformidade das golden shares com certos princípios comunitários, e
quais as condições para que essa conformidade se verifique; em quinto lugar,
procedemos a uma análise concreta da evolução do sector das telecomunicações em
Portugal até à PT, momento em que se concretiza a sua privatização e vem
posteriormente a ser criada a golden share do Estado Português; em sexto lugar,
faremos uma análise concreta do acórdão C-171/08, dos argumentos dos intervenientes
e tomaremos posição sobre a decisão tomada pelo TJCE. Por último, faremos breves
conclusões do estudo efectuado.
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1. Conceitos preliminares
Para que possamos compreender e avançar com um conceito de golden share cumpre
esclarecer, em primeiro lugar, quatro conceitos: participação social; direitos gerais e
direitos especiais; e acções privilegiadas.
A participação social corresponde ao conjunto unitário de direitos e obrigações
actuais e potenciais de um sócio1. É em função dessa participação, expressa através da
titularidade de acções2, que uma pessoa detém certos direitos e deveres no âmbito da
sociedade.
Ora, os direitos conferidos por uma participação social podem ser gerais ou
especiais. Os direitos gerais são aqueles que pertencem, em princípio, a todos os sócios
de uma sociedade. São exemplos disso os direitos previstos no art. 21.º, n.º 1 do Código
das Sociedades Comerciais (CSC): direito a quinhoar nos lucros (de acordo com a
respectiva participação social); direito a participar nas deliberações de sócios; direito à
informação; direito a ser designado para os órgãos de administração e de fiscalização da
sociedade. Os direitos especiais são posições jurídicas de vantagem concedidas no
contrato de sociedade a certo(s) titular(es) de certas acções ou categoria de acções
especiais, o que lhe(s) atribui uma posição privilegiada em relação aos restantes, não
podendo esta ser eliminada nem limitada sem o acordo dos respectivos titulares3 – art.
24.º, n.º 5 CSC. Contudo, será através da interpretação do contrato de sociedade que se
poderá determinar se tal prerrogativa especial consiste ou não num direito especial4. Por
outro lado, nos termos do CSC, os direitos especiais só podem ser criados através de
estipulação no contrato de sociedade – art. 24.º, n.º 1 –, pois, se não o forem, estes serão
ineficazes em relação à sociedade5. Não serão legislativamente atribuídos
6.
Nas sociedades anónimas podem existir várias categorias de acções (ordinárias,
privilegiadas e diminuídas) – art. 272.º, al. c) CSC. As acções privilegiadas, que para
este estudo importa compreender, são acções que atribuem ao seu titular uma posição
vantajosa relativamente aos restantes accionistas, só podendo essa vantagem ser
coarctada ou suprimida com o acordo do seu titular7.
No fundo, e em síntese, acções privilegiadas são participações sociais que conferem
ao seu titular uma série de direitos especiais, nos termos do CSC.
1 JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades, 3ª Edição,
Almedina, Coimbra, 2009, p. 207 e PAULO OLAVO CUNHA, Os Direitos Especiais nas Sociedades
Anónimas: as Acções Privilegiadas, Almedina, Coimbra, 1993, p. 142. 2 Sobre as várias acepções de „acção‟, veja-se JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, ob. cit., p. 221 e
PAULO OLAVO CUNHA, ob. cit., p. 141. 3 JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, ob cit., p. 209; PAULO OLAVO CUNHA, ob cit., p. 14.
4 No mesmo sentido, JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, ob cit., p. 211 e ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, vol. I, Das Sociedades em Geral, 2.ª ed., Almedina,
Coimbra, 2007, pp. 566-567. 5 JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, ob. cit., p. 212.
6 JORGE HENRIQUE DA CRUZ PINTO FURTADO, Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina,
Coimbra, 2005, p. 530. 7 JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, ob. cit., pp. 230-231.
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2. As golden shares
Feita a aproximação a conceitos relevantes para a compreensão da realidade da
figura das golden shares, podemos dizer que a sua definição pode ter um âmbito mais
ou menos restrito.
Em termos amplos, as golden shares permitem ao seu titular – que pode ser uma
entidade privada ou pública – intervir de forma atípica e preponderante na vida da
sociedade, sem que exista a correspondente participação social que lhe permitiria ter tal
controlo8. Assim, estes direitos especiais permitem a essa entidade intervir na tomada de
decisões relativamente à sociedade ou, até, quanto à sua estrutura accionista, quando a
amplitude dos poderes conferidos é manifestamente desproporcional à participação no
capital social9.
Numa definição mais restrita, golden shares serão participações sociais detidas por
entidades públicas que, em resultado de uma intervenção legislativa derrogatória do
regime geral das sociedades comerciais, atribuem poderes especiais intra-societários
que não estão ao alcance dos entes privados10
.
Se nos parece bastante mais adequada ao estudo a tese restritiva, no entanto, também
se podem levantar alguns problemas. Como a definição demonstra, só há golden shares
se os poderes atribuídos à entidade pública não estiverem ao alcance dos sujeitos
privados, através do regime geral das acções privilegiadas do CSC – art. 24.º. E, na
verdade, muitos dos poderes que são atribuídos ao Estado e outras entidades públicas,
seriam passíveis de ser atribuídos a sujeitos privados (como será o caso do direito de
veto sobre certas deliberações ou quanto à designação de parte dos administradores que
compõem o conselho de administração). Porém, outros não são efectivamente
atribuíveis a sujeitos privados (como por exemplo, o direito a designar administradores
nas sociedades anónimas – art. 391.º, n.º 2, in fine CSC). Por isso, parece-nos que o
conteúdo das golden shares tanto pode resultar do regime geral previsto no CSC, como
da criação de um regime legal derrogatório do regime geral11
. Em suma, enunciadas as
acepções possíveis de golden shares podemos dizer que, no Direito Português, as
8 NUNO CUNHA RODRIGUES, “As “Golden-Shares” no Direito Português” in Direito dos Valores
Mobiliários, Volume VII, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 191-231 (192). Com base nesta acepção
mais ampla, o que se apelidou de acções privilegiadas poderia ser designado de golden shares. 9 PEDRO DE ALBUQUERQUE/MARIA DE LURDES PEREIRA, As “Golden Shares” do Estado Português em
Empresas Privatizadas: Limites à sua admissibilidade e exercício, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p.
13. 10
NUNO CUNHA RODRIGUES, ob. cit., p. 194. Nesta acepção restrita de golden shares não se incluem
portanto as situações onde existe a atribuição de poderes especiais sem que exista, de facto, uma
participação social detida pelo ente público. Daí que se faça a crítica pertinente de que, se não há
participação social, então não há golden share, uma vez que a noção de share implica que haja subscrição
de parte do capital social por uma pessoa. Nesses casos, existirá um poder de natureza legal que permite à
entidade pública que o detenha, mas a isso não se deverá chamar de golden share. 11
Aliás, como refere ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, quando os direitos especiais inerentes a uma certa
categoria de acções é detida pelo Estado ou por outra entidade pública é essa titularidade pública que leva
à designação de golden shares. Cfr. Manual de Direito das Sociedades – Das Sociedades em Especial,
vol. II, Almedina, Coimbra, p. 666.
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golden shares não podem simplesmente ser definidas pela noção ampla nem pela
restrita porque, na prática, o seu âmbito acaba por derivar da mistura das duas
concepções. No entanto, tendo em conta o direito comunitário e a posição da Comissão
e do TJCE, neste estudo teremos fundamentalmente em conta a acepção mais restrita de
golden share, uma vez que para o direito comunitário apenas será relevante a atribuição
de direitos especiais através da intervenção pública do Estado – legislativa e
administrativamente.
3. As (re)privatizações e o seu quadro legal como fundamento
e origem das golden shares
Pode-se dizer que a génese das golden shares do Estado Português reconduz-se às
privatizações de empresas públicas stricto sensu12
ocorridas em Portugal a partir da
década de 90. Tais privatizações só foram possíveis com a criação de um quadro legal
que deu sentido prático à derrogação do princípio constitucional da irreversibilidade
das nacionalizações13
– a Lei Quadro das Privatizações (LQP)14
.
Ora, na verdade, o termo „privatização‟15
é um termo polissémico e que se pode
reconduzir a uma série de acepções16
. Assim, a simples referência a tal conceito, sem
mais, pode suscitar alguma confusão uma vez que este é multiplamente configurável.
12
Referimo-nos ao sentido de empresa pública stricto sensu, uma vez que após a publicação da LQP,
ainda vigorava o conceito de „empresa pública‟ nos termos do D.L. 260/76, de 8 de Abril, que apenas
considerava as “empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades
públicas, para exploração de actividades de natureza económica e social (…)” (art. 1.º), excluindo do seu
âmbito as sociedades comerciais de capitais públicos e as sociedades de economia mista controladas pelo
Estado. Hoje, esse obsoleto sentido de „empresa pública‟ ecoa nas designadas „entidades públicas
empresariais‟ (que são uma fracção das actuais empresas públicas portuguesas), definidas nos arts. 23.º,
n.º 1 e 2 do D.L. 558/99, de 17 de Dezembro. Mas actualmente a designação de „empresa pública‟ é
muitíssimo mais ampla, de acordo com a Directiva da Comissão 80/723/CEE, de 25 de Junho de 1980 e
do referido D.L. 558/99. Nestes, e mais na primeira do que no segundo, tem-se em conta um conceito de
empresa pública em sentido material: será empresa pública a empresa em que o Estado ou outras
entidades públicas possam exercer algum tipo de influência, de modo directo ou indirecto,
independentemente da forma jurídica (pública ou privada). Veja-se, neste sentido, ANTÓNIO CARLOS DOS
SANTOS/MARIA EDUARDA GONÇALVES/MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, Direito Económico,
Almedina, Coimbra, 5.ª ed., 2004, pp. 155 e 183-185. 13
A revisão constitucional de 1989 fez desaparecer do texto da Constituição da República Portuguesa
(CRP) o princípio da irreversibilidade das nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974,
abrindo a porta a verdadeiros processos de privatização e reprivatização superiores a 50% do capital
social, as quais até então seriam inadmissíveis – assim se pôde criar a Lei Quadro das Privatizações. Veja-
se, a este propósito, ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS/MARIA EDUARDA GONÇALVES/MARIA MANUEL
LEITÃO MARQUES, ob. cit., pp. 165-167; PAULO OTERO, Privatizações, Reprivatizações e Transferências
de Participações Sociais no Interior do Sector Público, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 31-32. 14
Lei n.º 11/90, de 5 de Abril. 15
Queremos aqui também incluir o conceito de reprivatização que, no essencial, não se distingue da
privatização, uma vez que acrescenta um elemento a esta que é a exigência de que o bem objecto de
transferência para o sector privado já anteriormente aí tivesse pertencido. Veja-se, neste sentido, PAULO
OTERO, ob. cit., pp. 23-24. Como refere o Autor, “se em termos vulgares as noções de privatização e de
reprivatização têm sempre em comum a ideia de tornar privado algo que o não era, imediatamente ressalta
6
No entanto, e no que diz respeito a este estudo, apenas teremos em conta uma das
acepções, a qual se reconduz à noção em sentido estrito e que tem correspondência
legal17
: “por privatização, em sentido estrito, entende-se a transferência total ou parcial
da propriedade de empresas e/ou bens públicos para entidades privadas”18
.
O conjunto de razões elencadas pelo Estado Português para se proceder à
(re)privatização consta do art. 3.º da LQP. Tratam-se, na verdade, das justificações
legitimadoras de uma operação de (re)privatização. Pois bem, desse modo a
(re)privatização deve propor-se, em geral, a modernizar as unidades económicas e a
aumentar a sua competitividade, assim como a reestruturar e reforçar alguns sectores
produtivos da economia nacional, em prol da sua eficiência; a reforçar a capacidade
empresarial do país; a promover a redução do peso do Estado na economia; e a
dinamizar o mercado de capitais, possibilitando uma ampla participação dos cidadãos
portugueses na titularidade do capital das empresas. Assim, “se numa óptica
microeconómica, a política de privatizações visaria melhorar o funcionamento das
empresas, numa óptica macro-económica, teria em vista restaurar em pleno os
mecanismos de mercado em determinados sectores e reduzir o peso do Estado na
economia”19
. Em síntese, poderemos dizer que a decisão de (re)privatização tem “como
suporte justificativo razões de política económica ligadas a uma optimização ou boa
administração do sector público empresarial”20
.
Ora, a legitimidade para a criação de golden shares em empresas a privatizar nasce
do art. 15.º da LQP21
, em particular o seu n.º 3, que se refere às golden shares em
sentido próprio. Da sua leitura retira-se que o Estado Português, enquanto legislador,
quis reservar para si poderes de gestão da empresa, quis de algum modo poder controlá-
la, já que agora passará a estar plena ou quase plenamente na mão dos privados. Como
que na privatização se visa tornar privado aquilo que nunca o havia sido, enquanto que na reprivatização
se pretende «devolver» para a área privada algo que anteriormente aí já esteve integrado”. Do facto de o
art. 1.º da LQP delimitar o seu âmbito às reprivatizações não significa que não pode haver privatizações –
é que a estas não se aplicaria nunca aquele princípio da irreversibilidade das nacionalizações. Assim,
ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS/MARIA EDUARDA GONÇALVES/MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, ob.
cit., p. 167. 16
Sobre as várias acepções de privatização, veja-se ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS/MARIA EDUARDA
GONÇALVES/MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, ob. cit., pp. 159-163; PAULO OTERO, ob. cit., pp. 11-14. 17
Art. 6.º, n.º 1, LQP: “A reprivatização da titularidade realizar-se-á, alternativa ou cumulativamente,
pelos seguintes processos: a) Alienação das acções representativas do capital social; b) Aumento do
capital social.” 18
ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS/MARIA EDUARDA GONÇALVES/MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, ob.
cit., p. 160. 19
ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS/MARIA EDUARDA GONÇALVES/MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, ob.
cit., p. 164. 20
PAULO OTERO, ob. cit., p. 36. 21
Art. 15.º, n.º 1 LQP: “A título excepcional, e sempre que razões de interesse nacional o requeiram, o
diploma que aprovar os estatutos da empresa a reprivatizar poderá prever, para garantia do interesse
público, que as deliberações respeitantes a determinadas matérias fiquem condicionadas a confirmação
por um administrador nomeado pelo Estado. Art. 15.º, n.º 3 LQP: “Poderá ainda o diploma referido no n.º
1 do artigo 4.º, e também a título excepcional, sempre que razões de interesse nacional o requeiram,
prever a existência de acções privilegiadas, destinadas a permanecer na titularidade do Estado, as quais,
independentemente do seu número, concederão direito de veto quanto às alterações do pacto social e
outras deliberações respeitantes a determinadas matérias, devidamente tipificadas nos mesmos estatutos”.
7
são acções privilegiadas, esses poderes de gestão são desproporcionados em relação ao
número de acções de que o Estado é efectivamente titular. Assim, no limite, detendo o
Estado apenas uma acção, essa acção poderá conferir-lhe o direito especial de nomear
um ou mais administradores ou até mesmo de direito de veto em determinadas
deliberações sociais.22
4. Golden shares e os princípios consagrados no direito
comunitário
As golden shares são instrumentos criados pelos Estados-membros como forma de
prosseguir certas finalidades, aquando da privatização de certas empresas públicas, que
operavam em sectores económicos considerados essenciais23
:
a) Condicionar a alienação da empresa a determinados accionistas;
b) Assegurar que a empresa mantém o respectivo objecto social e local de registo
e/ou sede;
c) Prevenir a alienação da empresa e/ou dos bens quando entendidos como
estratégicos;
d) Certificar que os novos proprietários da empresa respeitam as regras
previamente estabelecidas;
e) Garantir o fornecimento de serviços e bens de interesse económico geral;
f) Salvaguardar a segurança pública, a saúde pública e a defesa nacional.
O grande problema em torno das golden shares é saber se estas são ou não
conformes ao direito comunitário. A sua existência pode colocar em causa princípios
basilares da União Europeia, designadamente a liberdade de estabelecimento e a
liberdade de circulação de capitais, previstas no Tratado de Roma (arts. 43.º e 56.º
TCE, respectivamente) e hoje no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
(arts. 49.º e 63.º TFUE, respectivamente). Quer a fixação de limites à detenção de
participações sociais por entidades estrangeiras por imposição de autoridades nacionais,
quer a utilização de instrumentos como as acções públicas privilegiadas (golden shares)
têm sido condenadas pelas autoridades comunitárias, uma vez que tais mecanismos
violarão as liberdades enunciadas24
.
Em primeiro lugar cumpre determinar o que é que se deve entender como liberdade
de circulação de capitais e em que medida é que as golden shares a podem afectar. O
22
ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS/MARIA EDUARDA GONÇALVES/MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, ob.
cit., pp. 176-179. 23
NUNO CUNHA RODRIGUES, ob. cit., p. 196; PEDRO DE ALBUQUERQUE/MARIA DE LURDES PEREIRA, ob.
cit., p. 21. 24
NUNO CUNHA RODRIGUES, ob. cit., p. 198.
8
TJCE e a Comissão têm considerado que qualquer medida que possa impedir, restringir
ou tornar menos atraente quer o investimento directo (ou seja, o investimento com
objectivo de alcançar uma participação social na sociedade em causa) quer o
investimento de carteira (com mero fim de aforro/poupança) é considerada restritiva da
livre circulação de capitais25
. Na realidade, como já aqui se demonstrou, a existência de
tais poderes permite ao Estado ou a outras entidades públicas exercer um controlo sobre
essas sociedades, que não está de forma alguma ligada à detenção de uma participação
social, porque ou essa participação é residual ou, em alguns casos, nem sequer existe.
Ora, tais poderes, na interpretação da Comissão e do TJCE, levam a uma retracção por
parte dos investidores, pois estes sujeitar-se-ão, se decidirem investir em tal sociedade,
às posições que os entes públicos tomem com base nos poderes especiais detidos nessas
sociedades. Em suma, a Comissão e o TJCE têm considerado que, quer certos
poderes/limitações de carácter legal, quer a titularidade de acções públicas privilegiadas
(golden shares), coloca em causa a liberdade de circulação de capitais, na medida em
que impede ou desincentiva potencialmente os investidores, nacionais ou estrangeiros, a
deter participações sociais nessas sociedades onde existem os poderes especiais26
.
Baseiam a sua posição no argumento que não basta proibir os actos que a limitam, mas
é também necessário criar condições para que esta liberdade se possa efectivar27
.
Todavia, as liberdades enunciadas também são passíveis de serem limitadas. Há,
assim, certos casos em que é admissível a criação ou manutenção de golden shares em
determinadas empresas privatizadas. O art. 58.º do TCE (65.º TFUE) permite aos
Estados-membros tomar certas medidas que possam limitar a liberdade de circulação de
capitais, quando estejam em causa razões de ordem pública, segurança ou saúde
pública.
25
Acórdão C-483/99, Comissão/França, de 4 de Junho de 2002, Colect., p.I-4781, n.º40. Sobre o assunto,
PEDRO DE ALBUQUERQUE/MARIA DE LURDES PEREIRA, ob. cit., p. 27; NUNO CUNHA RODRIGUES, ob. cit.,
p. 202. São exemplos de mecanismos que podem criar esse desincentivo a existência de disposições que
permitem ao Estado vetar certas decisões das sociedades ou lhe permitem designar administradores –
mecanismos típicos das golden shares. 26
A posição expressa pela Comissão é bem clara: “Academic research has documented significant
improvements in companies‟ performance criteria following privatisation, namely in terms of
profitability, increased capital investment spending, improved operating efficiency and increase in their
work force. However, research has also demonstrated that the presence of special rights in a privatised
company has a negative effect on the performance of that company. The failure to transfer complete
control and to exercise the right incentives, combined with the uncertainty concerning government
intervention and the cost of imposing certain conditions, has an impact on the market valuation of the
company and may result in an under-pricing of the company’s share. Consequently, government receipts
from privatisation may be less than otherwise would have been.” Commission Staff Working Document -
Special rights in privatised companies in the enlarged Union–a decade full of developments, 27-07-2005,
http://ec.europa.eu/internal_market/capital/docs/privcompanies_en.pdf. Veja-se também, NUNO CUNHA
RODRIGUES, ob. cit., p. 202. 27
PEDRO DE ALBUQUERQUE/MARIA DE LURDES PEREIRA, ob. cit.,p. 20.
9
O TJCE tem-se pronunciado sobre a conformidade ou não de tais direitos especiais,
dizendo que estes só serão conformes ao direito comunitário se respeitarem quatro
pressupostos28
:
a) Aplicação de modo não discriminatório;
b) Justificarem-se por razões expressamente previstas no Tratado ou por razões
imperativas de interesse geral;
c) Serem aptas a garantir a realização do objectivo a que se propõem;
d) Não ultrapassarem o que é necessário para atingir esse objectivo.
De acordo com as condições acima indicadas temos de estar em presença de uma
daquelas razões, isto é, ordem, segurança ou saúde pública, devidamente justificada,
objectivada e fundamentada, no caso concreto. Por sua vez, não basta a alegação da
existência desses motivos, é necessário também que a sua aplicação não gere efeitos
discriminatórios, sob pena de se frustrarem os objectivos dos Tratados. As últimas duas
condições dizem respeito à necessidade de observância do princípio da
proporcionalidade. Assim, a medida em causa tem de ser apta e idónea a satisfazer o
fim para o qual foi criada: a defesa da ordem, segurança ou saúde pública. Por último, a
medida só será conforme será proporcional se for a medida menos restritiva que seja
necessária para atingir o fim justificável.
Por conseguinte, na interpretação da Comissão e do TJCE, só se forem preenchidos
estes requisitos é que os direitos especiais detidos pelos Estados-membros em
sociedades serão conformes ao direito comunitário.
5. Evolução institucional do sector das telecomunicações
até à PT, sua privatização e criação das golden share
O que dissemos em geral sobre as privatizações e golden shares, foi concretizado
praticamente com a privatização da Portugal Telecom (PT). Por isso, e face ao exposto e
explicado, será esclarecedor proceder a um enquadramento sucinto da evolução
institucional do sector das telecomunicações até à Portugal Telecom, pois só assim se
compreende como funcionava este sector até 1995, data em que se iniciou a privatização
da PT e a partir da qual se veio criar a golden share actualmente detida pelo Estado
Português, ilegal aos olhos do Tribunal de Justiça das Comunidades, cuja apreciação
será feita infra.29
28
NUNO CUNHA RODRIGUES, ob. cit., p. 205. 29
Sobre a história do sector das telecomunicações e da PT em particular (consultado em 22-11-2010):
http://www.telecom.pt/InternetResource/PTSite/PT/Canais/SobreaPT/Quem+Somos/A+nossa+historia/
10
Tendo em conta o quadro constante do Anexo I30
, e não querendo efectuar uma
análise demasiado extensiva, poderemos dizer que por volta de 1970 em Portugal o
sector das telecomunicações era explorado por três operadores: a Empresa Pública
Telefones de Lisboa e Porto (TLP, E.P.), a qual veio substituir a Anglo Portuguese
Telephone Company, que vinha sendo já desde 1887 concessionária dos serviços
telefónicos nas áreas de Lisboa e Porto; a CTT - Correios e Telecomunicações de
Portugal, E. P. (CTT, E.P.), para o resto do território nacional; e a Companhia
Portuguesa Rádio Marconi (CPRM), que já vinha sendo concessionária dos serviços de
rádio-telegrafia e telefonia sem fios, sendo a sua atribuição assegurar o tráfego
internacional.
Posteriormente, no início dos anos 90, tendo já sido derrogado o princípio
constitucional da irreversibilidade das nacionalizações e publicada a LQP, é criada a
Teledifusora de Portugal, S.A., cujo objectivo é explorar todas as infra-estruturas de
teledifusão; é criada a Telecom Portugal, S.A., que recebe a competência de explorar os
serviços de telecomunicações que até então tinha sido desempenhada pela CTT, E.P.
(que fica exclusivamente afecta ao serviço de correios); é criada a Comunicações
Nacionais, SGPS, S.A. (CN, SGPS, S.A.), que consistiu numa holding estatal destinada
a gerir todas as participações do Estado no sector (isto é, as participações do Estado na
TLP, E.P., TDP, S.A., CPRM e Telecom Portugal, S.A.).
Em 1994/1995, constitui-se um único operador nacional de telecomunicações por
fusão das empresas do sector detidas pela holding estatal CN, SGPS, S.A. – é designado
de Portugal Telecom, S.A..
Estavam, portanto, criadas as condições para que se procedesse à privatização da
PT31
, a qual ocorreu de modo faseado através de cinco fases32
.
Pouco depois da primeira fase de privatização parcial do capital da PT são aprovados
os Estatutos da sociedade, em 4 de Abril de 199533
. De uma leitura cuidada aos
30
Quadro retirado da demonstração do projecto de “História e Património do Grupo Portugal Telecom”,
com MARIA FERNANDA ROLLO como investigador principal, p. 3 (consultado em 22-11-2010):
http://ihc.fcsh.unl.pt/resources/04a34e5efa1fa67f3f99963c405c7fe8/DEMO%20PHPGPT_OUTUBRO_2
004.pdf 31
Veja-se o preâmbulo do D.L. 44/95, de 22 de Fevereiro, que procede à primeira fase de privatização
parcial da Portugal Telecom, S.A.: “(…) estão agora reunidas as condições que permitem abrir o capital
da Portugal Telecom, S.A., ao sector privado (…)”. 32
1.ª fase (1995) – 27,26 % do capital social é transmitido para privados; 2.ª fase (1996) – 21,74 % (49 %
do capital social é privado); 3.ª fase (1997) – 26 % (75 % do capital social é privado, passando a maioria
do capital a ser privado); 4.ª fase (1999) – 13,5 % (88,5 % do capital social é privado); 5.ª fase (2000) –
11,4 % (99,9 % do capital social é privado). 33
Cuja data será relevante para a decisão do TJ no sentido da sua ilegalidade, como se verá infra no ponto
6.. Outra questão completamente diferente, suscitada por NUNO CUNHA RODRIGUES é a de que a golden
share da PT será também ilegal face ao direito interno, com o argumento de que o pacto social da PT,
conferindo direitos especiais que não se encontram previstos no Código das Sociedades Comerciais
(CSC), não foi publicado em diploma legal ou anexo, condição necessária para criar esses mesmos
direitos. Veja-se, NUNO CUNHA RODRIGUES “Golden-Shares” – As empresas participadas e os
privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 367-368.
11
Estatutos da PT34
pode retirar-se que houve de facto a atribuição de golden share ao
Estado Português. Desde logo, o art. 5.º, n.º 1, fazendo a distinção entre acções
ordinárias e acções da categoria A, dispõe que estas serão detidas maioritariamente pelo
Estado e que gozam dos privilégios resultantes das regras estabelecidas nos artigos 14.º,
n.º 2 e 19.º, n.º 2 dos Estatutos.35
Que direitos especiais conferem as acções da categoria
A ao Estado Português? Ora vejamos.
Nos termos do art. 14.º, n.º 2 (em conjugação com o art. 15.º), verificamos que
relativamente a uma série ampla de deliberações sociais, o Estado dispõe de um
verdadeiro direito de veto, uma vez que tais deliberações não serão aprovadas contra a
maioria dos votos correspondentes às acções da categoria A. As matérias de deliberação
sobre que incide a possibilidade de exercício de direito de veto são as seguintes: a
eleição da mesa da Assembleia Geral, Presidente da Comissão de Auditoria e do
Revisor Oficial de Contas; a aplicação dos resultados do exercício; as alterações dos
estatutos e aumentos de capital, limitação ou supressão de direito de preferência e a
fixação de parâmetros para aumentos de capital a deliberar pelo Conselho de
Administração; a emissão de obrigações ou outros valores mobiliários e fixação do
valor daquelas que o Conselho de Administração pode autorizar; a autorização da
deslocação da sede da sociedade para qualquer local do território nacional; a autorização
sobre a participação em mais de 10 % do capital social de accionistas que exerçam
actividade concorrente; a aprovação dos objectivos gerais e os princípios fundamentais
das políticas da sociedade; a definição dos princípios gerais de política de participações
em outras sociedades e sobre as respectivas aquisições e alienações.
Por outro lado, o art. 19.º, n.º 2 confere um outro tipo de direito especial ao Estado:
na eleição de um terço do número total de administradores (que é de quinze no mínimo
e de vinte e cinco no máximo) para o Conselho de Administração, sendo aí incluído o
Presidente, a maioria simples dos votos emitidos deve incluir a maioria dos votos
conferidos às acções pertencentes à categoria A. Ou seja, é atribuído ao Estado um
poder de controlo de gestão sobre a PT, uma vez que este tem o poder de influenciar a
designação deste ou daquele administrador, inclusive o Presidente.
Ora, é por terem sido atribuídos estes direitos e nos termos em que foram conferidos,
que veio a Comissão por acção de incumprimento contra o Estado Português, nos
termos do art. 228.º TCE, invocando que houve incumprimento das obrigações que lhe
incumbem, por força dos arts. 56.º e 43.º TCE, respeitantes à liberdade de circulação de
capitais e à liberdade de estabelecimento.
34
Versão actualizada dos Estatutos da PT (consultada em 22-11-2010):
http://www.telecom.pt/NR/rdonlyres/8DB5C914-8B0B-4166-BD4E-
BC0A39DF1AB0/1451297/ESTATUTOS11mar2010_p.pdf 35
Existe claramente uma tentativa de evasão à configuração destas acções privilegiadas como sendo
golden shares em sentido restrito (por derrogação legal do regime do CSC): por um lado, refere-se que
elas serão detidas maioritariamente pelo Estado e não na sua totalidade; por outro, o art. 5.º, n.º 2 estipula
que tais privilégios são direitos especiais atribuídos à respectiva categoria de acções em obediência ao art.
24.º, n.º 4 do CSC.
12
6. O acórdão C-171/08
No acórdão do processo C-171/08, a Comissão pede ao TJCE que declare que a
República Portuguesa incumpriu as obrigações presentes nos arts. 43.º e 56.º TCE (arts.
46.º e 63.º TFUE). Ora estes artigos estabelecem que são proibidas quaisquer restrições
quer à “liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-membro no território
de outro Estado-membro”, quer aos “movimentos de capitais entre Estados-membros e
entre Estados-membros e países terceiros”. Tendo em conta estes preceitos, o pedido da
Comissão tem como fundamento o facto de a República Portuguesa ter mantido na
Portugal Telecom, SGPS, S.A. (PT) direitos especiais que lhes foram atribuídos em
conexão com golden shares, direitos que terão um efeito prejudicial para o mercado
comum europeu36
.
A Comissão argumenta então que as acções privilegiadas detidas pela República
Portuguesa não são de natureza privada, uma vez que lhe terão sido exclusivamente
atribuídas e destinam-se necessariamente a permanecer na sua titularidade. Serão,
portanto, acções intuitu personae (intransmissíveis). Sabendo que o artigo 24.º, n.º4
CSC determina que “os direitos especiais só podem ser atribuídos a categorias de acções
e transmitem-se com estas”, defende a Comissão que a criação das acções em causa não
decorre de uma aplicação normal do direito das sociedades, mas sim de uma derrogação
deste regime37
. Assim, o facto de o Estado Português deter tais direitos especiais faz
com que haja a restrição de investimentos nessa sociedade. Conclui a Comissão,
portanto, que existem restrições à livre circulação de capitais e à liberdade de
estabelecimento e que essas restrições são injustificadas e desproporcionais, uma vez
que o exercício dos direitos especiais apenas depende da condição de serem invocadas
razões de interesse nacional e não mais do que isso. Isto é, há uma violação do princípio
da proporcionalidade porque o exercício destes direitos ocorre de modo amplamente
discricionário, já que, basta ao Estado Português alegar que há razões de interesse
nacional. É, portanto, entendimento da Comissão que não estão preenchidos os
pressupostos para que a golden share em causa possa ser conforme ao direito
comunitário38
.
Por seu lado, a República Portuguesa argumenta que os direitos especiais conferidos
ao Estado são proporcionados aos objectivos que visam atingir39
e que as acções em
causa são meras acções privilegiadas de direito privado, não podendo ser equiparadas a
golden shares em sentido restrito. Primordialmente porque o Decreto-Lei n.º 44/95 (que
procede à primeira fase de privatização da PT) limita-se a admitir a possibilidade de
36
Veja-se supra ponto 4. e nota de rodapé 26. 37
Ver supra ponto 2. 38
Pressupostos enunciados supra no ponto 4. 39
Que são garantir a prestação dos serviços de telecomunicações “em caso de crise, de guerra, de
terrorismo, de riscos naturais e de outros tipos de ameaças”. As autoridades portuguesas associam assim a
detenção dos direitos especiais a razões de segurança e de ordem públicas. Cfr. ponto 45.º do Acórdão C-
171/08, Comissão/Portugal, de 8 de Julho de 2010.
13
prever (e não criar por si), nos estatutos da PT, acções privilegiadas. Em segundo lugar,
porque esta previsão não impõe a criação dessas mesmas acções.
A decisão do TJCE está em sintonia com os argumentos da Comissão, apresentando
quatro argumentos fundamentais. Em primeiro lugar, considera que são golden shares
as acções de categoria A previstas na PT, pois destinam-se, de facto, a permanecer na
propriedade do Estado, não sendo, desta forma, transmissíveis, derrogando-se assim a
regra do art. 24.º, n.º 4 CSC. Em segundo lugar, assume que a criação das mencionadas
acções privilegiadas deve ser exclusivamente imputada ao Estado Português, uma vez
que tendo este aberto a possibilidade de criação de golden shares (art. 15.º LQP), veio
depois, enquanto accionista maioritário da sociedade em causa40
, proceder à criação de
acções dessa natureza, atribuindo-as a si próprio. Em terceiro lugar, considera que a
detenção pelo Estado Português das acções privilegiadas constitui uma restrição à livre
circulação de capitais na acepção do artigo 56.º, n.º 1 TCE, porque é susceptível de
dissuadir os investidores de outros Estados-membros, condicionando o acesso ao
mercado único41
. Por último, o TJCE refere que, apesar de o artigo 15.º, n.º 3 da LQP
prever a possibilidade de criação de acções privilegiadas que conferissem poderes
especiais ao Estado, sujeitos a um princípio de excepcionalidade e à condição de que
sejam exercíveis apenas por razões de interesse nacional, na verdade, nem este diploma
nem os Estatutos da PT estabelecem critérios quanto às circunstâncias em que os
referidos poderes especiais podem ser exercidos. Ora, é esta situação de incerteza que
leva a considerar que há uma violação grave da liberdade de circulação de capitais bem
como da liberdade de estabelecimento, pois confere às autoridades nacionais uma
margem de apreciação tão discricionária, que não se pode considerar proporcionada aos
objectivos de interesse público que se visam prosseguir. No fundo, “razões de interesse
nacional” é um conceito demasiado amplo e indeterminado, que confere às autoridades
nacionais uma margem de exercício de tais poderes muito discricionária.
Feito o excurso pelos argumentos que levaram à decisão do TJCE no sentido de que
a golden share do Estado Português na PT é ilegal, cabe agora analisar os argumentos
decisivos para este acórdão: que as acções privilegiadas em causa consistem numa
verdadeira golden share stricto sensu (acção pública privilegiada) ; que, em concreto,
estas acções privilegiadas implicam restrições à liberdade de circulação de capitais (e
subsidiariamente ao direito de estabelecimento).
Acções privilegiadas do Estado na PT como verdadeiras golden shares
Foi em nome da prossecução do interesse público que o Estado Português privatizou
a PT. Simplesmente, o Estado Português quis criar certos mecanismos de controlo de
40
Recorde-se que os Estatutos da PT foram aprovados em 4 de Abril de 1995, altura em que o Estado
Português era ainda sócio maioritário da sociedade, bastando-lhe a sua própria participação para aprovar
os Estatutos como bem lhe aprouvesse. 41
Reveja-se os argumentos utilizados pela Comissão e pelo TJCE supra ponto 4.
14
gestão sobre esta sociedade. Daí ter criado e atribuído a si mesmo, com a aprovação dos
Estatutos da PT, os já analisados direitos especiais42
. Simplesmente, como bem referiu o
TJCE na nossa opinião, ao tempo em que os Estatutos da PT foram aprovados, o Estado
Português era ainda sócio maioritário, pois ainda tinha sido avançada a 1.ª fase da
privatização. Bastava-lhe, portanto, a sua participação para aprovar os Estatutos num
determinado sentido. O mesmo é dizer que para a criação daqueles direitos especiais, na
verdade, bastou apenas a palavra do Estado. É essa sua concreta hegemonia societária
que, no fundo, leva-nos a considerar que não se está em presença de simples acções
privilegiadas tituláveis por qualquer pessoa, pública ou privada, mas sim perante uma
verdadeira golden share, no sentido que já foi delimitado.
Restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais
Como já foi referido, devem ser qualificadas como “restrições” para este caso as
medidas nacionais que são susceptíveis de impedir ou de limitar a aquisição de acções
nas empresas ou que são susceptíveis de dissuadir os investidores dos outros Estados-
membros. No nosso entender, tal susceptibilidade verifica-se no caso concreto, uma vez
que há um conjunto de importantes decisões que dependem do acordo do Estado
Português, as quais terão decididamente impacto sobre o investimento na PT. É claro
que temos consciência que é dificilmente comprovável e quantificável o prejuízo
concreto da existência de tal golden share na PT e esta será uma crítica razoável a fazer
à posição da Comissão e do TJCE. Mas, por outro lado, parece-nos que é fechar os
olhos à realidade dizer que a existência deste tipo de prerrogativas do Estado não tem
um efeito dissuasor do investimento na sociedade em causa. Há, certamente, indícios de
tal efeito.
Condições de conformidade da golden share da PT com os princípios
comunitários
Cumpre analisar se os princípios comunitários da liberdade de circulação de capitais
e de estabelecimento, neste caso da golden share PT, foram respeitados.
Como se viu, estes princípios que estão em causa, não constituem realidades
absolutas, pois o art. 58.º, n.º1, alínea b) TCE, prevê a possibilidade de os Estados-
membros condicionarem a livre circulação de capitais ao tomarem medidas relacionadas
com a ordem ou segurança pública.
Esta protecção dos interesses nacionais deve ser levada a cabo em harmonia com o
princípio da não discriminação. Isto significa que os Estados-membros não devem
exercer os seus poderes de forma discriminatória no âmbito de processos de
privatização, nomeadamente favorecendo entes nacionais em detrimento de entes
42
Veja-se supra ponto 5.
15
estrangeiros. Ora, no caso concreto da PT, pode dizer-se que o facto de o Estado
Português ser accionista minoritário, mas detentor de poderes especiais, pode afectar a
intervenção de terceiros43
nas actividades da empresa, condicionando44
a possibilidade
de os accionistas participarem, de forma efectiva, na gestão da sociedade ou no seu
controlo.
Seguindo a linha do que até aqui tem vindo a ser exposto, e tendo em conta o caso
concreto, é necessário determinar-se se a detenção das acções privilegiadas tem o intuito
de assegurar um interesse fundamental da sociedade em caso de ameaça real e grave.
Para isso é essencial recorrer à jurisprudência do Tribunal de Justiça.
Foi no acórdão Comissão/Bélgica, de 4 de Junho de 2002 que o TJCE reconheceu
que a segurança no aprovisionamento mínimo em produtos petrolíferos é uma razão de
segurança pública que justifica um entrave à livre circulação de mercadorias. Neste
acórdão TJCE reconheceu que certas “preocupações […] podem […] justificar que os
Estados-Membros conservem uma determinada influência nas empresas inicialmente
públicas e posteriormente privatizadas, quando essas empresas actuam nos domínios
dos serviços de interesse geral ou estratégicos”45
. Todavia, essa influência deve ser
estritamente limitada ao necessário para garantir obrigações fundamentais de interesse
público. Por esta razão, o TJCE deu ênfase ao «princípio do respeito da autonomia de
decisão da empresa» em questão. Por conseguinte, o Estado deverá sempre identificar o
interesse público específico que justifica a protecção. Acresce que as regras que
conferem ao Estado direitos especiais devem ser baseadas em critérios objectivos e
precisos que não excedam o necessário para proteger esse interesse público e garantir
a possibilidade de uma fiscalização jurisdicional efectiva46
.
Ora, tendo em conta esta jurisprudência do TJCE, é claramente visível que a
República Portuguesa não estabeleceu quaisquer critérios objectivos e precisos que
justificassem a detenção, comunitariamente legítima, de acções especiais que teriam
como consequência limitar a livre circulação de capitais e a liberdade de
estabelecimento.
Neste sentido, é essencial ressaltar que quando o Estado privatiza uma empresa, a
livre circulação de capitais exige que a autonomia económica da empresa seja protegida,
excepto se houver uma necessidade de salvaguardar interesses públicos fundamentais
reconhecidos pelo direito comunitário. Assim, por ser estranho ao funcionamento
normal do mercado, qualquer controlo de uma empresa privatizada por parte do Estado
deve estar relacionado com a realização das actividades de interesse económico geral
associadas a essa empresa.
43
Neste caso, quer de nacionais, quer de estrangeiros. 44
Este condicionamento está relacionado com o facto de os Estados-membros poderem fixar limites às
detenções sociais, visto que os poderes inerentes a essas participações assim o permitem. Veja-se, NUNO
CUNHA RODRIGUES “Golden-Shares” – As empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto
accionista minoritário, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 315. 45
Acórdão C-503/99, Comissão/Bélgica, de 4 de Julho de 2002, Colect. P. I-4809 n.º 43. 46
Acórdão C-503/99, Comissão/Bélgica, de 4 de Julho de 2002, Colect. P. I-4809, n.os
51 e 52.
16
Desta forma, pode concluir-se que as golden shares podem ser conformes ao direito
comunitário, mesmo quando estão em causa medidas nacionais susceptíveis de afectar o
exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo TCE. Para isso é necessário que
se verifiquem as quatro condições obrigatórias e cumulativas enunciadas supra47
.
Vejamos o caso da golden share da PT.
Aplicação de modo não discriminatório - o facto de o Estado ser detentor deste tipo
de acções faz com que outras entidades de outros Estados-Membros, que eventualmente
quisessem participar na sociedade não o façam. Simplesmente, não nos parece que em
concreto haja neste caso em análise diferenciação de tratamento entre nacionais e não
nacionais. Não nos parece que haja violação desta condição.
Razões imperiosas de interesse geral - a golden share na PT tem de ser fundada em
razões de ordem pública ou de segurança pública, nos termos do art. 58.º, n.º 1, b) TCE.
Houve, de facto, a invocação por parte da República Portuguesa de razões de segurança
pública. No entanto, não basta por si só a invocação em abstracto de que se existem
razões de segurança para aquela posição privilegiada do Estado. É necessário proceder à
objectivação no caso concreto dessa razão imperiosa de interesse geral. O Estado
Português não logrou na concretização dessas razões pelo que não se pode considerar
preenchida esta condição.
Proporcionalidade e adequação - a terceira e quarta condição prendem-se com o
facto de a golden share ter de estar em harmonia com o princípio da proporcionalidade
lato sensu, nomeadamente sendo adequadas para garantir a realização do objectivo que
prosseguem. Ora, neste caso não houve fundamentação nem objectivação das razões da
sua existência pelo que é ininteligível se há de facto respeito pela proporcionalidade e
adequação. Não nos parece igualmente verificada esta condição
47
Ponto 4.
17
7. Conclusões
Do estudo efectuado, podemos retirar as seguintes conclusões:
1. O conceito de golden share não se deve reconduzir simplesmente à noção de
acção privilegiada, mas sim de acção pública privilegiada: participação social detida
por entidade pública que, em resultado de uma intervenção legislativa derrogatória do
regime geral das sociedades comerciais, atribui poderes especiais intra-societários que
não estão ao alcance dos entes privados.
2. As golden shares são produto da vontade de o Estado, aquando da privatização de certa
sociedade por si dominada, querer controlá-la no futuro de diversas maneiras: condicionar a
alienação da empresa a determinados accionistas; assegurar que a empresa mantém o
respectivo objecto social e local de registo e/ou sede; prevenir a alienação da empresa
e/ou dos bens quando entendidos como estratégicos; certificar que os novos
proprietários da empresa respeitam as regras previamente estabelecidas; garantir o
fornecimento de serviços e bens de interesse económico geral; salvaguardar a segurança
pública, a saúde pública e a defesa nacional.
3. O TJCE tem-se pronunciado sobre a conformidade das golden shares com o
direito de estabelecimento (art. 43.º TCE) e liberdade de circulação de capitais (art. 56.º
TCE), assumindo a posição de que estes só serão conformes ao direito comunitário se
respeitarem quatro pressupostos: aplicação de modo não discriminatório; justificarem-
se por razões expressamente previstas no Tratado ou por razões imperativas de
interesse geral; serem aptas a garantir a realização do objectivo a que se propõem; não
ultrapassarem o que é necessário para atingir esse objectivo. Caso contrário, serão
qualificadas como medidas nacionais que impedem, restringem ou dissuadem o
investimento.
4. Os Estatutos da PT atribuem direitos especiais ao Estado que levam à qualificação
da sua participação social, como sendo de uma acção privilegiada.
5. As acções privilegiadas do Estado Português na PT são uma verdadeira golden
share, pois ao tempo em que os Estatutos da PT foram aprovados aquele era ainda sócio
maioritário.
6. A existência desta golden share na PT não será conforme ao princípio da liberdade
de circulação de capitais porque não são respeitados os referidos pressupostos de
conformidade com o direito comunitário e, desse modo, a restrição a essa liberdade é
injustificada.
19
9. Bibliografia, jurisprudência e outras fontes
Bibliografia
1. ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS/MARIA EDUARDA GONÇALVES/MARIA MANUEL
LEITÃO MARQUES, Direito Económico, Almedina, Coimbra, 5.ª ed., 2004
2. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, vol. I, Das
Sociedades em Geral, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007
3. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades – Das Sociedades
em Especial, vol. II, Almedina, Coimbra,
4. JORGE HENRIQUE DA CRUZ PINTO FURTADO, Deliberações de Sociedades Comerciais,
Almedina, Coimbra, 2005
5. JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol. II, Das
Sociedades, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009
6. NUNO CUNHA RODRIGUES, “As “Golden-Shares” no Direito Português” in Direito dos
Valores Mobiliários, Volume VII, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 191-231
7. NUNO CUNHA RODRIGUES “Golden-Shares” – As empresas participadas e os
privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, Coimbra Editora, Coimbra,
2004
8. PAULO OLAVO CUNHA, Os Direitos Especiais nas Sociedades Anónimas: as Acções
Privilegiadas, Almedina, Coimbra, 1993
9. PAULO OTERO, Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações
Sociais no Interior do Sector Público, Coimbra Editora, Coimbra, 1999
10. PEDRO DE ALBUQUERQUE/MARIA DE LURDES PEREIRA, As “Golden Shares” do
Estado Português em Empresas Privatizadas: Limites à sua admissibilidade e exercício,
Coimbra Editora, Coimbra, 2006
20
Jurisprudência
1. Acórdão C-483/99, Comissão/França, de 4 de Junho de 2002
2. Acórdão C-503/99, Comissão/Bélgica, de 4 de Julho de 2002
3. Acórdão C-171/08, Comissão/Portugal, de 8 de Julho de 2010
Outras fontes
1. Versão actualizada dos Estatutos da PT (consultada em 22-11-2010):
http://www.telecom.pt/NR/rdonlyres/8DB5C914-8B0B-4166-BD4E-
BC0A39DF1AB0/1451297/ESTATUTOS11mar2010_p.pdf
2. Quadro retirado da demonstração do projecto de “História e Património do Grupo
Portugal Telecom”, com MARIA FERNANDA ROLLO como investigador principal, p. 3
(consultado em 22-11-2010):
http://ihc.fcsh.unl.pt/resources/04a34e5efa1fa67f3f99963c405c7fe8/DEMO%20PHPGP
T_OUTUBRO_2004.pdf
3. Sobre a história do sector das telecomunicações e da PT em particular (consultado em
22-11-2010):
http://www.telecom.pt/InternetResource/PTSite/PT/Canais/SobreaPT/Quem+Somos/A+
nossa+historia/
4. Commission Staff Working Document - Special rights in privatised companies in the
enlarged Union–a decade full of developments, 27-07-2005 (consultado em 22-11-
2010):
http://ec.europa.eu/internal_market/capital/docs/privcompanies_en.pdf