fundamentos sócio-históricos da...
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APRESENTAÇÃO
A disciplina Fundamentos Sócio-históricos da Educação priorizará temáticas relacionadas à
educação que serão abordadas em suas características sócio-históricas e culturais.
A disciplina se resume ao estudo de processos escolares de socialização dos sujeitos a partir de
configurações que cada período histórico estabelece para a constituição das relações sociais.
Para tanto, essa disciplina promoverá reflexões acerca dos processos escolares de socialização,
enfatizando diferentes pedagogias que organizam e definem no interior das instituições educativas os
saberes legítimos e a formação de subjetividades específicas que ocorrem nas relações de poder.
Objetivamos destacar três tipos de pedagogias: disciplinares, corretivas e psicológicas e suas
implicações nas concepções de espaço e de tempo. Articulando assim as teorias da educação de surdos às
diferentes formas de exercício do poder.
Com o propósito ainda de estudar a produção pedagógica que constituem diferentes formas de
subjetividade, definimos três unidades que contemplam alguns eixos temáticos apresentados na sequência
de sua abordagem:
I UNIDADE:
As diferenças pedagógicas e o tratamento da diversidade
Modelos pedagógicos e tratamento da diversidade: pedagogias disciplinares, corretivas e
psicológicas;
II UNIDADE:
Cultura, Estudos Culturais e Educação
Educação e Cultura
III UNIDADE
Mecanismos disciplinares e a formação escolar de surdos
A resistência dos surdos
A língua de sinais e a escola de surdos
FUNDAMENTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DA EDUCAÇÃO
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UNIDADE I
AS DIFERENÇAS PEDAGÓGICAS E O TRATAMENTO DA DIVERSIDADE
“ Ensinar tudo a todos”
www.catherineshafer.com/theorists.html
A pedagogia moderna define certos pontos de chegada a partir da utilização de estratégias e meios
conduzidos para se atingir os ideais almejados. Esses ideais funcionam como utopias. As utopias são
discursos construtores de pensamentos que são possíveis de se realizarem. As utopias ainda permitem
formular juízos acerca de fatos que ora se aproximam ora se afastam dos objetivos esperados.
Comenius,.pedagogo morávio, perseguia um “ideal pansófico” cujos princípios
contêm em si o seguinte objetivo: “ensinar tudo a todos”. O ideal pedagógico de
Comenius contém sentidos que sustentam a ideia de que “todos tem que saber de
tudo”, e que os educadores devem “ensinar tudo a todos”
O princípio que conduz o discurso de Comenius e que funciona como elemento
chave para qualquer tipo de pedagogia é de que o homem possui aptidões necessárias para receber uma
formação. O homem, defende Comenius, é educável por natureza, ele é portador da educabilidade.
Comenius propõe que a utopia da sabedoria e do dever oriente as ações dos educadores, isto é,
deve-se educar a todos: ao homem, à mulher, ao rico, ao pobre.
O pedagogo ainda chama a atenção da importância de que todos tenham acesso ao conhecimento,
mas ele destaca que a qualidade dos conteúdos deve ser considerada tanto quanto à extensão dos recursos
a serem repassados, isto é, a preocupação não é só com o método mais adequado. As reflexões de
Comenius dizem respeito à importância de um conhecimento científico que funcione como um
conhecimento socialmente válido e constitutivo da condição humana.
A possibilidade de o homem ser escolarizado, isto é, a educabilidade explica a pansofia. A natureza
educável do homem leva Comenius a entender que os homens devem ser instruídos, dada a capacidade de
seu entendimento e de sua dedicação para o conhecimento.
O pedagogo pensa num ensino escolar generalizado que cause a inclusão de todos, tal argumento
confirma ideal pedagógico de que todos tem condição de serem escolarizados e isso deve ser permitido ao
homem, mulher, pobre ou rico devem ingressar na escola.
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A noção da diferença no discurso de Comenius se explica pela educabilidade dos sujeitos. Esses
sujeitos possuem características e aptidões que podem ser reconhecidas no conjunto dos alunos.
Diferenças que não constituem um impedimento para a educação, as diferentes aptidões “são
excessos e defeitos da natureza que devem ser estabelecidos”.
Para isso, Comenius defende a importância do método ser apropriado aos entendimentos
intermediários. O método deve intervir para acabar com as diferenças, quando tais diferenças não
oferecerem as condições adequadas para receber a educação. O professor deve, diante de problemas
relacionados à educabilidade, agir sobre os alunos para restituir-lhes o desejo de aprender, aproximando-
os do ideal pedagógico de Comenius, para que possam percorrer o processo escolar com facilidade.
Medidas disciplinares também podem ajudar no reconhecimento da diversidade de aptidões. Para
Comenius, a motivação e a disciplina são medidas corretivas para devolver nos alunos a condição excelente
de educabilidade.
A utopia de Comenius se completa com o seguinte ideal educativo: “proceder conforme os
princípios subjacentes ao homem.”
A diversidade não implica a necessidade de criação de diversos métodos, pois o que se afasta do
padrão de normalidade, será em algum momento corrigido. O método deve se adequar com a natureza
educável do homem, objetivando acabar com as diferenças.
Nesse sentido, Comenius defende a necessidade de se adotar a pansofia, ou seja, é desejável e
possível, argumenta o pedagogo, “ensinar tudo a todos” e a todos na escola.
MODELOS PEDAGÓGICOS E TRATAMENTO DA DIVERSIDADE: Pedagogias disciplinares,
corretivas e psicológicas
As concepções de espaço e tempo tiveram lugar de destaque em trabalhos de alguns estudiosos
que destinaram um olhar para essas categorias aos saberes sociológicos, esquecendo o papel importante
que as instituições educativas desempenham na transformação das concepções de tempo e espaço. O
estudo dessas duas categorias ficou a cargo da sociologia do conhecimento e a sociologia educacional
parece ter ficado ausente de tais questões.
A estudiosa Julia Varela www3.feccoo.net/.../com/20080220_com/index.htm
apresenta estudos argumentando que os processos de socialização dos sujeitos nas
instituições escolares põem em jogo certas concepções e percepções de espaço e
tempo.
A estudiosa chama atenção para o fato de que cada período histórico adota as relações
sociais e as relações de poder que incidem na organização e definição de saberes
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legítimos e na constituição de subjetividades específicas. Para Júlia Varela, categorias espaços-temporais,
poder, pedagogias, saberes e sujeitos constituem dimensões que se interelacionam e se ramificam nas
instituições educativas.
A autora nos apresenta três modelos pedagógicos produzidos por modelos históricos distintos: Os
três modelos pedagógicos são: as pedagogias disciplinares, pedagogias corretivas e pedagogias
psicológicas.
Esses modelos pedagógicos têm conseqüências nas concepções de espaço e de tempo, diferentes
modos de exercício do poder, diferentes modos de atribuir um estatuto do saber e ainda na produção de
subjetidades.
Os sociólogos clássicos, em especial Marx, Weber e Durkheim argumentam que a individualização
é um dos traços da Modernidade. No século XVIII, com a criação dos Estados modernos tal procedimento
cresce e se amplia a partir da ligação com a crescente divisão social do trabalho, o aumento da densidade
da população nas cidades e ainda o aumento da propriedade privada
A autora ainda mostra que, na segunda metade do século XVI, se configuram novos modelos de
educação que regulam a socialização das novas gerações pertencentes a grupos sociais dominantes.
Com o início da Modernidade, o homem deve se tornar “civilizado” e cada vez mais individualizado.
PEDAGOGIAS DISCIPLINARES
Foucault mostrou que o tempo e o espaço se reorganizaram no
século XVIII, a partir do exercício de um novo tipo de poder, denominado
poder disciplinar. O poder disciplinar parte do princípio que é mais útil
vigiar do que castigar. Normalizar os sujeitos e fazê-los produtivos é mais
proveitoso do que expulsá-los ou eliminá-los. Essa modelo de poder está
ligado às transformações sociais, políticas e econômicas que ocorreram no
século XVIII.
O poder disciplinar almejou se estender a todo corpo social, mas
seus efeitos foram mais presentes nas instituições e mais concretamente
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nas instituições escolares. As tecnologias disciplinares que produziram novos saberes e novos sujeitos agem
por meio de uma nova organização do espaço e do tempo. O que significa a existência de um tempo e um
espaço disciplinares.
O espaço disciplinar não se prende apenas a uma clausura. Ao indivíduo é destinado um lugar de
modo que ele seja vigiado e localizado permanentemente.
Foucault considerava os colégios religiosos e os quartéis como locais onde se utilizavam as
tecnologias disciplinares.
As pedagogias disciplinares também provocam mudanças importantes em relação ao tempo. O
tempo disciplinar estabelece na prática pedagógica o tempo da formação escolar.
A disciplina procede em primeiro lugar a distribuição dos indivíduos no espaço, utilizando
diferentes técnicas que, segundo Foucault, eram entre outras:
A cerca: local heterogêneo a todos os outros e fechado a si mesmo. São exemplos de
encarceramento: os colégios, por meio dos conventos. Os internatos surgem como regime de educação e
são considerados mais perfeitos. Em 1719, houve a construção de centenas de quartéis e o
encarceramento neles será rigoroso.
A clausura: os aparelhos disciplinares trabalham os espaços de maneira flexível. Os indivíduos são
distribuídos de forma a evitar grupos. Nela se encontram as celas dos conventos.
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Os colégios jesuítas em muito contribuíram para configurar um espaço disciplinar em série.
Algumas classificações utilizadas como procedimentos de distribuição e divisão dos alunos no espaço
escolar a partir do século XVIII nos são apresentados por Júlia Varela: filas de alunos na classe, nos
corredores, na Igreja e nas excursões. Os exames cujos resultados atribuem avaliação a cada aluno.
As pedagogias disciplinares trazem também mudanças importantes com relação ao tempo. O
tempo disciplinar estabelece o tempo de formação escolar e ainda organiza os diferentes níveis de
aprendizagem. Esses níveis ou etapas de aprendizagem envolvem exames com grau de dificuldade cada vez
maior.
O modelo em que a aprendizagem era confirmada por meio de uma única prova se desfaz. A nova
forma de entender permite um controle maior do processo de aprendizagem de todos e de cada aluno.
Nesse modelo, o espaço escolar, para Varela, funciona com uma máquina de aprender e permite ao
professor interferir para castigar, corrigir e normalizar os educandos.
O principal dispositivo utilizado pelas disciplinas é o exame que se estabeleceu em várias
instituições como os quartéis, colégios e hospitais e também se aplicou a outros campos abertos como
higiene, entre outros.
As operações disciplinares, analisa Julia Varela, transformam as instituições educativas em
instituições normalizadoras e em espaços de observação normalizadores e normativos, por o exame
provocar duas operações fundamentais: a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora. Ambas
empregadas permitem “decifrar, medir, comparar, hierarquizar e normalizar os educandos”. (VARELA)
As pedagogias disciplinares não constituem tecnologias de repressão, pois os seus efeitos são de
natureza produtiva, entre esses efeitos, Júlia Varela destaca a modificação na percepção social do tempo e
do espaço. Essa mudança tem implicações na organização do espaço e tempo pedagógicos
Tais pedagogias servem também como instrumento para produção de novas formas de
subjetividades e para a produção dos saberes.
As pedagogias disciplinares, Varela argumenta “implicam em novas relações de poder que são
tanto menos visíveis quanto mais física e materialmente estão presentes e quanto mais vinculadas estão ao
processo de aprendizagem”.
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O poder disciplinar, em sua nova configuração, acaba com as penalizações e castigos físicos, e as
correções passam a consistir na repetição de exercícios.
Júlia Varela sintetiza o tempo da pedagogia disciplinar, afirmando que o poder disciplinar joga em
dois terrenos: o da produção dos sujeitos e o da produção dos saberes.
O poder disciplinar surge no final do século XVIII e se perpetuará durante todo o século XIX nos
países ocidentais.
PEDAGOGIAS CORRETIVAS
No início do século XX, surge um novo tipo de poder. Nesse momento
histórico, se reformulam propostas educativas principalmente o modelo
pedagógico proposto por Rosseau.
Rosseau segue os passos de Comenius. Considera que a educação, por um
lado, faz parte do processo formativo da natureza, e por outro, como uma tarefa
da sociedade e suas instituições.
Streck nos mostra que, para Rousseau, havia dois tipos de metáforas: as
orgânicas (a educação requer os mesmos cuidados que o crescimento de uma planta) e
as mecânicas (a escola como uma gráfica ou o ser humano como relógio). Em Rosseau,
há necessidades e limites da natureza ou da sociedade que delimitam o processo
formativo.
O Estado interventor, modelo iniciado por Bismarck na Alemanha, final do
século XX, e que prevaleceu em vários países ocidentais tinha como propósito
resolver questões sociais, buscando também neutralizar as lutas de classe por meio
de uma política de harmonização dos interesses do trabalho e do capital que
permitisse integrar ao movimento operário.
Nesse período, a obrigatoriedade escolar se realizou como um elemento essencial de integração da
classe trabalhadora.
As crianças, principalmente as pertencentes às classes populares se identificam como selvagens.
Julia Varela acrescenta que civilizá-los e domesticá-los era tarefa da escola pública obrigatória, na qual
estão sendo adotadas as pedagogias disciplinares.
Os textos que circulavam na época apresentam claramente as funções de controle social dos
campos educativos que interferem na ressocialização das crianças “insolentes, inquietas, indisciplinadas,
imorais e atrasadas” classificadas como anormais.
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Os pedagogos e os psicólogos definiram como deveriam existir espaços particulares que se
transformaram em espaços exclusivos, em laboratórios de observação que utilizariam tratamentos e
saberes diferentes dos até então usados pelas pedagogias disciplinares.
Nessas instituições de correção, começaram a se aplicar novos dispositivos de poder que tiveram
implicações no modo de utilização do tempo e do espaço, nos modos de se conceber a infância e ainda na
produção de novas subjetividades, que eram inseparáveis de um novo estatuto do saber.
Entre os membros da chamada Nova Escola, destacam-se Maria Montessori e Ovídio Decroly
que, juntamente com outros representantes, aceitam a lei
biogenética fundamental do progresso e pensam que, para ser um
bom civilizado, a criança tem que ser antecipadamente um bom
selvagem.
As pedagogias corretivas põem em ação novas técnicas
pedagógicas destinadas a condicionar o meio às necessidades e
aos interesses infantis, o que implica numa transformação das categorias espaço-temporais nos quais irá se
desenvolver a atividade escolar. A obra de Maria Montessori é considerada como exemplar para dirigir o
ensino pré-escolar.
Montessori elaborou “o material de desenvolvimento, sistemas de objetos- sólidos encaixáveis,
tabuinhas, objetos geométricos para educar os sentidos”.
Para Varela, o método Montessori e Decroly foram os iniciadores de uma redefinição da “infância”
que pensou algumas teorizações de Rousseau as quais se constituíram um dos pilares básicos de uma nova
percepção e construção do sujeito: o sujeito psicológico.
PEDAGOGIAS PSICOLÓGICAS
Muitos representantes da Escola Nova4
4 Escola Nova é um dos nomes dados a um movimento de renovação do ensino que foi especialmente forte na Europa, na América e no Brasil, na primeira metade do século
eram médicos ou especialistas ligados à clínica, isso
justifica o interesse para as funções profiláticas e terapêuticas da educação.
Esse modelo passa a ter uma posição privilegiada em relação a pedagogias tradicionais ou
disciplinares.
As perspectivas apresentadas por eles se intensificaram. O campo da psicologia escolar se ampliou;
psicologia da aprendizagem, psicologia genética, psicologia infantil e outras.
http://www.educador.brasilescola.com/gestao-educacional/escola-nova.htm XX .
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As pedagogias psicológicas se originaram das pedagogias corretivas. A infância considerada
anormal passou a ser objeto de tratamento e de técnicas, de laboratório de experimentação.
Piaget e Freud passam a ser considerados as grandes
referências no final do século XX para a educação
institucional. Os psicanalistas e os seguidores de Piaget
colocam a criança como centro do processo educativo e o
mestre tem a tarefa de ajudar.
Essa forma de socialização escolar também se utiliza
de formas de regulação social e do exercício do poder.
Alguns grupos da burguesia aceitaram para seus
filhos estes modos de educação ligados em suas origens às pedagogias corretivas. Nesses grupos não
estavam os que pertenciam à burguesia tradicional que desejavam para seus filhos uma formação que
reafirmasse sua posição de poder e prestígio.
As pedagogias psicológicas caracterizavam-se por um controle exterior frágil. A criatividade e
atividade infantis são promovidas e as categorias espaço e tempo são adaptáveis às necessidades de
desenvolvimento dos alunos.
O controle interior é mais forte, as normas são definidas cientificamente pelos estágios de
desenvolvimento infantil.
As estratégias pedagógicas definidas por esse modelo propõem um desenvolvimento sem
repressão, mas a criança agora passa a ser mais vigiada e controlada do que nas outras pedagogias. Os
alunos têm menor controle sobre sua aprendizagem, só os professores e especialistas podem conhecer os
progressos ou retrocessos que realizam.
A verdade sobre eles mesmos tornam-se uma realidade distante e alheia.
A partir da década de 60, Varela comenta que as leis e os estágios de desenvolvimento são
substituídos pelas leis do ritmo. O processo de aprendizagem coloca como centro o ritmo individual e as
relações interpessoais. Cada aluno tem seu ritmo que deve ser respeitado.
As leis do ritmo estão relacionadas ao desenvolvimento do corpo, das gestualidades, da imagem.
Os autores dessas pedagogias as tornam cada vez mais psicologizadas são eles: J.L.Moreno, Karl
Rogers, e outros.
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As pedagogias psicológicas operam com o sistema de regulação espaço-temporal que permite certa
flexibilidade do tempo e do espaço. Permitem adaptar as tarefas da aprendizagem ao ritmo interno de cada
aluno.
Frente ao poder disciplinar, característico das pedagogias tradicionais, o psicopoder, característico
das pedagogias psicológicas, utiliza tecnologias que tornam os alunos mais dependentes e manipuláveis
quanto mais liberados acreditem que são.
As mudanças que têm se operado nas últimas décadas provocam uma percepção e uma construção
determinada do mundo, dos saberes e dos sujeitos.
A transmissão de categorias de pensamento na escola hoje, e sua interiorização são muito
importantes para a manutenção da ordem social e da ordem escolar.
Nesse sentido, as análises e discussões sobre a organização das escolas não podem evitar os
problemas relacionados com as categorias e as formas de subjetividades, o estatuto do saber e os
mecanismos de poder.
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UNIDADE II
CULTURA, ESTUDOS CULTURAIS E EDUCAÇÃO
Nos dias de hoje, parece se tornar cada vez mais visíveis as diferenças culturais. Também têm sido
muito freqüentes as disputas sobre a diferença e entre os diferentes.
As discussões sobre o que seja cultura sobre o que seja educação e as relações entre ambas fazem
de tais disputas.
As questões culturais tem sido objeto de interesse de diferentes setores e a instituição educativa
constitui uma delas.
A centralidade que se dá a cultura para se refletir sobre o mundo é justificada não por que se deve
adotar a cultura como um lugar superior as demais áreas de conhecimento como a política, a econômica, a
educacional, mas a sua centralidade se dá por atravessar tudo o que acontece nas nossas vidas e todas as
representações que fazemos desses acontecimentos. (HALL, 1997).
Ao longo dos dois ou três séculos, as discussões sobre a Cultura e a educação tenham sido pouco
profundos. Por muito tempo, a modernidade não questionou os conceitos de Cultura e educação.
Acreditou-se, de um modo geral e sem maiores questionamentos, que cultura designava o
conjunto de tudo aquilo que a humanidade havia produzido de melhor em diferentes campos, como
artísticos, filosóficos, científicos, etc. Por isso, a cultura foi considerada por muito tempo como única e
universal. Veiga-Neto destaca que única porque se referia àquilo de melhor havia sido produzido e
universal porque se referia à humanidade um conceito totalizante, sem exterioridade.
A educação era entendida como o caminho para chegar às formas mais superiores da Cultura,
tendo por modelo as conquistas já realizadas pelos grupos sociais mais educados e, por isso, mais cultos.
EDUCAÇÃO E CULTURA
O pensamento pedagógico moderno adotou o entendimento de cultura em que o principal objeto
dos debates era saber quais os marcadores culturais que definiriam o que deve ser colocado como
avaliação para definir a verdadeira cultura, a alta cultura.
Kant em um conhecido texto Sobre a pedagogia, mostra que a educação
compreende o cuidado, a disciplina e a instrução e que é pela ação dessas últimas
que se dá a formação.
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Kant como outros autores alemães do século XVIII como Goethe, Schiller e outros diferencia
Cultura de civilidade, uma não necessariamente dependente da outra.
Veiga-Neto aponta que a diferenciação é fundamental para
compreender a importância do conceito de Cultura. Esses autores definiram as
três principais características que rodeiam o conceito de Cultura ao longo da
Modernidade.
Em primeiro lugar o seu caráter diferenciador e elitista. O povo
alemão entendia a civilidade como um conjunto de atitudes humanas que
eram ligadas ao comportamento, como boas maneiras, delicadeza, gesticulação, e outros.
A cultura era entendida como um conjunto de produções e representação do conhecimento.
Em segundo, o caráter único e unificador era defendido por Kant.
O filósofo assumia um entendimento generalizante, essencialista, e abstrato sobre o indivíduo e a
sociedade, a educação escolarizada foi logo colocada a serviço de uma Modernidade que deveria se tornar
a mais homogênea e a menos ambivalente possível.
Isso significa a negação de tudo e de todos a um mesmo, para Veiga-Neto, isso em termos culturais
significa uma identidade única e a rejeição de toda e qualquer diferença.
Em terceiro lugar, o caráter idealista de Cultura. Kant defendeu e acreditou na possibilidade e
desejo de uma cultura única e universal.
Nos anos 20 do século passado, começaram a surgir mudanças no conceito de Cultura. As primeiras
sugestões vieram de Antropologia, da Linguística e da Filosofia. Também a Sociologia questionou o
monoculturalismo.
Recentemente, segundo Veiga-Neto, os Estudos Culturais foram eficazes no sentido de defenderem
que melhor falarmos de culturas em vez de falarmos em cultura.
Alguns filósofos da linguagem, principalmente Wittgenstein, modificam o
entendimento tradicional da linguagem, assumindo a impossibilidade de
fundamentá-la fora dela.
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A chamada virada lingüística pluraliza e nos leva a falar em linguagens e culturas. Outra
conseqüência lingüística, segundo Veiga- Neto, decorre do cruzamento entre culturas e a educação se dá
no plano da ética. Para esse autor, no caso de uma linguagem auto-suficiente e um conhecimento
monocultural, cabe à educação apenas dizer àqueles que estão entrando no mundo, o que é mesmo esse
mundo e como ele funciona.
O multiculturalismoé humilde, na medida em que assume que nunca saberá o que esse mundo e
como ele funciona.
A virada lingüísticapara Veiga – Neto nos permitiu admitir que estamos sempre mergulhados na
linguagem e numa cultura, de forma que o dizemos sobre elas não está jamais isentos delas mesmos.
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UNIDADE III
MECANISMOS DISCIPLINARES E A FORMAÇÃO ESCOLAR DE SURDOS
Michel Foucault, ao problematizar a sociedade disciplinar, afirma que os mecanismos disciplinares,
desde o século XVIII, atuavam de forma isolada sobre o indivíduo e no século XIX passam a atuar no
coletivo da população.
A escola constitui um espaço muito eficiente para a educação, a vigilância, o controle
principalmente durante a infância.
A educação explorada na Modernidade difere da educação promovida pelos religiosos no século
XVI e que se voltava para nobres e herdeiros.
Os filhos surdos de nobres precisavam aprender a falar, ler, escrever, assistir à missa e confessar-se
mediante a palavra oralizada.
A estudiosa Maura Lopes nos conta que uma das principais preocupações
dos instrutores de surdos nobres era a possibilidade que cada surdo se aproximasse
dos demais.
Evitavam-se principalmente possíveis encontros entre os surdos nobres e os
outros, a preocupação maior era manter a diferença entre esses diferentes.
Os filhos de pobres eram recolhidos por instituições de caridade. Por isso, o
processo educacional separou de forma progressiva o modo educativo das instituições em dois tipos:
instituições para nobres e instituições para pobres.
Para os estudantes nobres, é destinado o conhecimento científico, para os pobres alguns
conhecimentos que lhe permitiram ser servis.
A partir da modernização do discurso pedagógico, a escola se apropria de saberes científicos para
classificar a infância em fases de desenvolvimento e para representar a juventude como um período ora
perturbado, ora promissor.
A educação das crianças e dos jovens está de tal maneira voltada para a escola que as famílias
atribuem à escola a responsabilidade pela orientação de seus filhos.
As famílias de surdos encontram nas escolas, em regime de internato, uma forma de garantir o
desenvolvimento dos filhos. A surdez, compreendida como um problema de saúde, castigo ou algo a ser
corrigido, era tratada de forma a diminuir seus efeitos aparentes, fazendo-se os sujeitos surdos falarem
com se fossem ouvintes.
Em trabalhos do século XVIII, há relatos que apontam como era tida como incompreensível a
educação dos surdos, principalmente no que se refere aos métodos de ensino que adotavam a oralização.
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O destaque dado à oralização e à normalização dos surdos não cogitava e não permitia que se
pensasse em formar uma turma somente de alunos surdos, pois haveria o risco de que eles resistissem aos
tratamentos e aos métodos de ensino.
O francês Charles-Michel de L’Épée funda nos anos 1760 em Paris a primeira escola
pública para surdos.
O método de L’Épée consistia em ensinar sinais que não correspondiam a objetos
específicos e mostrar desenhos quando queria que os surdos compreendessem
algumas ações, depois procurando associar o sinal com a palavra escrita em francês.
O método de L’Épée tinha como partes necessárias do processo de ensino a repetição
e memorização.
A surdez no final do século XIX se torna um espaço de cultura e, portanto de reflexão filosófica.
A educação de surdos passou a ser produtiva e a gerar outros discursos que estabelecem olhares
diferentes sobre a formação, o corpo e a língua surda.
As famílias apelam para os conhecimentos dos campos da Psicologia, da Psicopedagogia e da
Educação Especial para educar seus filhos. Todos os especialistas, segundo Lopes, parecem convencidos,
quando se encontram na escola especial, de que todos os surdos devem usar a língua de sinais, devem
participar das atividades organizadas pela instituição, devem trabalhar e mostrar o desenvolvimento do
potencial surdo.
A dificuldade da escola quando aceitou o surdo como sujeito cultural, mesmo tendo uma visão
restrita do que constitui essa cultura surda, está em articular, controlar e disciplinar uma nova ordem para
os discursos acerca da surdez e dos surdos.
A RESISTÊNCIA DOS SURDOS
Na história da surdez, verifica-se que o enfoque clínico reabilitador se impôs em relação a outros.
Dificultando até certo ponto a compreensão da surdez fora de uma lógica normalizadora.
Mas, os surdos resistem às práticas ouvintistas, corretivas e normalizadoras que se orientam pelo
enfoque clínico reabilitador.
Outros saberes principalmente a Antropologia, a Sociologia, os Estudos Culturais e a Pedagogia
contribuíram fora do registro terapêutico para outra inscrição dos surdos, a inscrição no registro
culturalista.
Para Lopes, os surdos, ao se organizarem, lutam e resistem aos modelos dos saberes e a própria
ordem dos documentos oficiais.
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Nos movimentos de resistência, os surdos em direção para a conquista de um espaço surdo, dos
direitos de terem uma língua e de serem reconhecidos como um grupo cultural se acentuaram a partir da
década de 1990. Nesses movimentos, os saberes dos surdos vão questionando os saberes oficiais.
Para Lopes, diante dos movimentos de inclusão de surdos em escolas de ouvintes, há surdos que
estão se negando a se respeitarem de seu grupo. Sabe-se que os surdos se mantém unidos em associações
de surdos, em grupos de igreja e em escolas específicas. Entre todos esses espaços, a escola parece se
constituir como o lugar principal e mais produtivo de articulação e resistência cultural.
A identidade surda, entendida como uma conquista de economias discursivas, não pode ser vista
como algo essencial, como algo em que a diferença possa ser considerada uma qualidade natural do surdo.
Lopes argumenta que entre as mudanças ocorridas nos modos de sobre a surdez e sobre os surdos.
Entre essas mudanças, Lopes apresenta:
a necessidade da presença surda como referência cultural e lingüística dentro da escola;
a possibilidade de os surdos articularem-se em movimentos surdos, em prol da conquista de
seus direitos.
Mesmo diante dessas conquistas, para Lopes, ainda falta o reconhecimento dos surdos como um
grupo cultural que precisa de um espaço geográfico para acontecer e que suas lutas, pelo permanente
reconhecimento de sua diferença possam um dia cessar. E conclui a autora: “Ser surdo é viver
permanentemente reivindicando um olhar do outro sobre si e viver permanentemente suspeitando de seu
próprio olhar sobre si mesmo.”
A LÍNGUA DE SINAIS E A ESCOLA DE SURDOS
A educação de surdos envolve como os processos lingüísticos se constituem ao longo da história
dos surdos e da surdez
Brito em seu livro Integração social e educação de surdos comenta que foi na Universidade Federal
do Rio de Janeiro que os estudos sobre surdos muito se desenvolveram. A autora ainda comenta que é
difícil a condição dos surdos, pois existem no Brasil pelo menos duas línguas de sinais. Uma é a
desenvolvida em uma tribo na selva Amazônica pelos indios Urubus-Kaapor e a outra seria a Língua
Brasileira de Sinais usada em outras regiões e centros urbanos.
A língua de sinais dos centros urbanos (LSCB) teve grande circulação entre os ouvintes que deram
novos significados conforme os saberes da época. A língua de sinais foi considerada por especialistas,
principalmente da área de saúde como um conjunto limitado de gestos.
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Por isso, a partir de uma orientação baseada na idéia de normalidade ouvinte, os surdos foram
submetidos a processos como: Oralismo, Comunicação Total e o Bilinguismo, tais processos foram
articulados aos três modelos de pedagogia que estudamos anteriormente, disciplinares, corretivas e
psicológicas, a partir dos estudos de Varela e a que Lopes acrescenta a de vigilância.
O oralismo teve se lugar a partir do século XIX e está presente até hoje. Muitas foram as críticas
feitas ao oralismo, inclusive por se acreditar que ele é o responsável pelo fracasso na educação dos surdos
e do projeto de incluí-los na educação dos ouvintes. A dificuldade de comunicação e a impossibilidade do
surdo de conseguir apropriar-se da língua portuguesa levaram a considerações de que os surdos eram
pessoas incapazes e que devido à surdez, apresentavam déficit cognitivo e dificuldade de socialização.
No final do século XX, se inaugurou a Comunicação Total como uma das filosofias que aparece
marcando algumas mudanças no cenário educacional
A comunicação total era vista, por alguns, como uma forma mais aberta e flexível da comunicação
surda, pois, segundo Goes, permitia o uso de múltiplos meios de comunicação, buscando trazer para a sala
de aula os sinais utilizados pelas comunidades de pessoas surdas.
Alguns autores, contudo atribuem um caráter reducionista ao método. Para Brito, a Comunicação
Total é um desdobramento do oralismo.
Diante da insatisfação dos especialistas do século XX com a educação dos surdos, surge uma nova
expressão: o bilingüismo.
Este passa a ser entendido como algo que se opõe as demais filosofias inventadas na educação de
surdos.
A corrente do bilingüismo entende que a língua dos surdos deve ser aprendida o mais cedo
possível. O português, como língua majoritária ensinada de preferência, em sua modalidade escrita, deve
ser a segunda língua aprendida pelo surdo.
Muitas são as experiências de educação bilíngüe desenvolvida hoje dentro e fora do Brasil.
Em muitas das escolas dos Estados Unidos, Venezuela, Cuba, Uruguai e França e outros países.
Para os surdos, viver numa condição bilíngüe implica viver concomitantemente numa condição
bicultural. A convivência surda, tanto com a comunidade surda quanto com a comunidade ouvinte, produz
traços identitários distintos nos sujeitos surdos, pois eles partilham de elos que os posicionam de formas
específicas, ora como surdos, quando estão na comunidade surda, ora como não ouvintes, quando estão
entre ouvintes, ressalta Lopes.
Para Skliar,uma proposta de educação bilíngüe para surdos pode ser
definida como “uma oposição aos discursos e às práticas clínica hegemônicas
características da educação e da escolarização dos surdos nas últimas décadas
e como reconhecimento político da surdez como diferença”.
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Lopes ressalta que a educação bilíngüe para surdos orienta-se a partir de dois eixos: um deles
refere-se à condição bicultural vivida pelos sujeitos; o outro eixo refere-se à condição bilíngüe entendida a
partir do domínio surdo da língua de sinais em sua modalidade gestual e visual e do não domínio surdo de
uma língua oral. O bilingüismo surdo no que diz respeito ao português, refere-se a uma modalidade escrita.
Uma proposta bilíngüe pressupõe o domínio de duas línguas, em qualquer modalidade que elas
possam ser articuladas. Contudo, no caso dos surdos, há o domínio da língua de sinais, porém não há a
fluência na língua portuguesa.
Lopes argumenta que talvez devêssemos pensar o uso do termo bilíngüe para se designar a
condição do sujeito surdo que possui uma língua própria- a Língua Brasileira de Sinais- e que utiliza o
português a partir do lugar de um surdo (que não é o mesmo lugar de um brasileiro ouvinte).
Lopes, ao discutir a língua de sinais e a educação de surdos destaca que assumir a condição de
surdez, e, a partir dela, lutar para que a diferença surda seja reconhecida e respeitada para que políticas
educacionais sejam pensadas. Para tanto, continua a autora, é fundamental construirmos propostas
educativas mais consistentes.
Referências
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HALL, Stuart, (1997). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, v. 22, n° 2, jul./dez., p. 17-46.
LOPES. Maura Corcini. Surdez & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1997.
NARODOWSKI, Mariano. Comenius e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001
SKLIAR, Carlos. A invenção e a exclusão da alteridade “ deficiente” a partir dos significados da normalidade. Educação e realidade. Porto Alegre, v. 24, n. 2, jul/dez., 1999.
STRECK, D. R. Rousseau e a Educação. Rousseau e a Educação. Belo Horizonte: NARODOWSKI VARELA, Julia. Categorias espaço-temporais e socialização escolar: do individualismo ao narcisismo. IN: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Escola básica na virada do século: cultura.política e currículo. São Paulo: Cortez, 1996.
VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Revista Brasileira de Educação, Campinas: Autores Associados; Rio de Janeiro: ANPEd, n. 23, p. 5-15, maio/ago. 2003. Número especial.
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