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FREI LUIZ TURRA no coração da vida FÉ • MORTE • VIDA Programas radiofônicos vol. 1

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FREI LUIZ TURRA

no coraçãoda vidaFÉ • MORTE • VIDA

Programas radiofônicos

vol. 1

Frei Luiz Turra, autor de várias obras publicadas por Paulinas, encami-nhou para Paulinas Rádio diversas mensagens, textos simples, mas escritos com o coração, com a finalidade de auxiliar muitos sacerdotes, religiosos/as, leigos/as, apresentadores de programas de rádio, que dispõem de pouco tempo para se preparar, para que, dependendo do assunto, possam escolher um texto, um exemplo ou uma mensagem especial em um dos livretos para ilustrar melhor sua fala. Cada tema tem cerca de dois minutos de duração.

Com o título “No coração da vida”, vols. 1-2-3, o autor repassa os vá-rios momentos da vida de cada um: Fé – Festa – Paz – Páscoa – Morte – Vida e Crescimento interior são alguns dos temas tratados.

O melhor da criatividade não é fazer tudo novo. A boa criatividade é aquela que consegue atualizar, qualificar e aprimorar, a partir do chão de suas conquistas já obtidas.

Que estas mensagens possam ajudar a todos nos momentos de incerteza e sejam amplamente divulgadas entre aqueles que estiverem necessitando de uma palavra de conforto e alento.

Noemi Dariva fsp

5300

1-8

ISBN: 978-85-356-4204-9

9 788535 642049

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Turra, LuizNo coração da vida : fé : morte : vida : (programa radiofônicos vol. 1) / Frei

Luiz Turra. -- São Paulo : Paulinas, 2016.

ISBN 978-85-356-4204-9

1. Fé 2. Comunicação - Aspectos religiosos - Igreja Católica 3. Morte - Aspectos religiosos - Cristianismo 4. Vida cristã - Mensagens bíblica (Programa de rádio) I. Título.

16-05830 CDD-248.4

Índice para catálogo sistemático:

1. Vida cristã : Mensagens bíblicas : Programa de rádio 248.4

1a edição

Ficha técnica – Livro

Direção-geral: Eliane De Prá Editora responsável: Noemi Dariva Organização dos textos: Noemi Dariva, fsp Revisão: Noemi Dariva, fsp Gerente de produção: Felício Calegaro Neto Capa e editoração: Manuel Rebelato Miramontes

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados.

Paulinas Rádio

Instituto Alberione Rua Dona Inácia Uchoa, 62, 5º andar, sl. 507

04110-020 – SÃO PAULO – SPFone: (11) 2125-3595; [email protected];

[email protected]

SumárioApresentação ................................................................................................... 6

Não discuto minha fé... ................................................................................... 9

Atravessando a porta da fé..............................................................................11

A fé aponta para o começo ............................................................................ 13

Novos tempos para a fé ..................................................................................15

Quando a fé remove montanhas ....................................................................17

Encantar-se com as testemunhas da fé ...........................................................19

Um jeito para firmar nossa fé .........................................................................21

A comunicação simbólica da fé ..................................................................... 23

Por uma fé animadora e corajosa ................................................................... 25

Preocupados pela fé ....................................................................................... 27

A fé humana e a fé religiosa ........................................................................... 29

Acreditar que Deus crê em mim.....................................................................31

Cruz nossa de cada dia .................................................................................. 33

MORTE

Morte, necessidade e violência ...................................................................... 36

Estar de bem com a morte ............................................................................ 38

Lembrança dos mortos, garantia de vida ....................................................... 40

A morte de Jesus e a nossa morte ................................................................... 42

A bagagem de nosso caminho ....................................................................... 44

A morte com rosto de festa ............................................................................ 46

A morte, acontecimento de cada um ............................................................. 48

O sonho de subir a escada antes de morrer .................................................... 50

Flores para nossos mortos .............................................................................. 52

Velas acesas para nossos mortos .................................................................... 54

Colhemos o que semeamos ........................................................................... 56

O limite do nosso agora ................................................................................ 58

VIDA

Atentos cuidadores da vida .............................................................................61

A leitura pascal da vida ................................................................................. 63

A morte provocadora da vida .........................................................................65

Esperança, atitude criadora da vida ............................................................... 67

Missão cumprida um segredo de vida ........................................................... 69

A arte de saber festejar................................................................................... 71

Resgatar a festa dominical ............................................................................. 73

Ninguém vem ao mundo por nada ............................................................... 75

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ApresentaçãoCom a finalidade de auxiliar as pessoas (missionários, sa-

cerdotes, religiosas, religiosos, leigos, leigas etc.) que, além dos inúmeros afazeres de sua missão no dia a dia, dispõem de uma “horinha” de tempo para dar sua contribuição na evangelização por meio do rádio, Frei Luiz Turra, o já conhecido autor de várias obras publicadas por Paulinas, encaminhou-nos, para publicação, algumas mensagens, simples, mas escritas com o coração. Seu desejo é fazer o bem e ajudar a todos, como também é o nosso, pois conhecemos as dificuldades que todos têm para encontrar tempo para preparar-se!

Com a duração de apenas 2 minutos cada tema, você po-derá acrescentar um comentário, colocar alguma canção que combina com o assunto ou, simplesmente, um fundo musical a seu gosto.

“No coração da vida” - Vol. 1 contém assuntos para cada momento da vida de cada um! Neste primeiro volume, sele-cionamos artigos sobre Fé – Morte – Vida, pois achamos que são temas fundamentais para a vida do cristão e, praticamente, abrangem toda a nossa vida, pois sabemos que há situações de duras provações, enfrentadas por famílias, que acompanham com carinho a enfermidade e a morte de seus entes queridos, as quais podem ser amenizadas com um caloroso abraço ou uma simples expressão: “Missão cumprida!” “Estou com você, coragem!”.

A certeza da missão cumprida gera paz, alegria interior e ânimo para continuar e aceitar todo sofrimento. Mas, para isso, é necessário ter muita fé, amor e, sobretudo, abastecer--se com a oração!

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O papa Francisco, falando aos jovens, diz que as Bem--aventuranças são o segredo para uma vida nova e intensa. Porque “viver sem fé, sem um patrimônio para defender, sem sustentar uma luta constante na missão, não é viver, mas apenas sobreviver”.

Que estes textos possam ajudá-lo a vivenciar, sempre mais, a fé, o amor e a Misericórdia!

Noemi Dariva, fsp

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Não discuto minha fé...Num círculo de palestras de formação cristã, em Porto

Alegre, passaram muitos especialistas em assuntos de teologia. Todos eram bem formados e ótimos comunicadores. O número de participantes era grande e interessado. Não faltavam per-guntas, nem respostas. Havia discussões e até discordâncias dos ouvintes, especialmente quando se tratava temas de moral e ecumenismo.

Entre os participantes havia gente de todas as idades e níveis culturais.

Uma simpática Senhora, de cabelos brancos e sempre sorri-dente, vinha acompanhada de sua filha e sentava no seu canto com o terço na mão. Manifestava interesse em acompanhar os assuntos, mas também desfilava as contas do rosário tem-po inteiro. Sem nenhuma pretensão, a simpática Senhora foi chamando atenção de muitos participantes do curso.

No final de tudo, como é costume, a coordenação encami-nhou uma avaliação em grupo. No grupo onde estava a Senhora do terço, também estava um indivíduo que se julgava meio dono da verdade. Vendo-a com o terço na mão começou criti-car sua atitude e questionar sua forma antiga de religiosidade. Foi o momento, onde a sabedoria dos simples se manifestou na frase da mulher: “Não discuto minha fé, prefiro vivê-la”.

O grupo de avaliação ficou em suspense, mas admirado. No final do curso teve um momento para depoimentos. Foi então que a Senhora do terço levantou-se com seu tradicional sorriso e falou com simplicidade. Avaliou o círculo de palestras como muito positivo e oportuno e também fez um depoimento de sua experiência de vida cristã. Ressaltou que era analfabeta, tinha aprendido o catecismo antigo de cor e, por muitos anos,

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fora a única catequista numa região do interior do Rio Grande do Sul. A região era pobre, em tudo. Além da catequese, que passava com muito amor às crianças, ia também visitar os doentes e levar comida a muitos famintos abandonados.

Como dona de casa, dedicava-se ao cuidado dos filhos e do marido e rezava muito, especialmente durante o trabalho cotidiano. “A oração foi a fonte da minha coragem”. Por fim, agradeceu a oportunidade de participação; elogiou o fulano que a questionou no grupo e afirmou categoricamente: “Não discuto minha fé, prefiro vivê-la”. Nesta hora foi aplaudida por todos como se tivesse feito a melhor palestra do curso. Por fim, o último palestrante da noite concluiu: “A síntese de tudo o que foi dito nas palestras foi comunicada pela Senhora do terço, obrigado!”

Não existe um instrumento para medir a qualidade da fé, nem mesmo a quantidade. Só o saber sobre Deus é muito pouco. Só dizer que se tem fé, também é insuficiente, pois a fé, sem obras é morta.

Viver a fé, implica no conhecimento, sim, mas também na experiência da afeição e nas ações decorrentes das convicções e de nossos afetos. Creio que a Senhora do terço, com seu sorriso, suas convicções, sua participação comunitária e suas obras de caridade, realmente são uma síntese da autenticidade da fé.

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Atravessando a porta da féComo quem entra em terreno e ambiente desconhecido e não

domesticado, assim é a travessia pela porta da fé. Começam e continuam as perguntas; tem-se a sensação do surpreendente, do risco e da obscuridade, mas ao mesmo tempo a certeza de que há horizontes infinitos que nos esperam, luzes que vão se acendendo e surpresas que nem imaginamos. A porta da fé está sempre aberta para todos e em todos os tempos.

Não se atravessa a porta da fé sem um certo “espírito de aventura”. Abraão, o Pai da fé começou atravessar a porta da fé, seguro sem ter nenhuma segurança, mas unicamente firmado na promessa de Deus. Bem entendida, esta aventura da fé nos impele a caminhar para frente, sem olhar para traz, movidos por esperanças e não por saudades.

Na medida em que vamos andando no caminho da fé e a cultivarmos, logo percebemos que esta vai iluminando, irri-gando e fecundando toda a nossa vida. Pela fé promovemos a justiça, a paz e o amor, sobretudo com os mais necessitados. Se por acaso nos refugiamos na fé, apenas para não sofrer pelos problemas materiais e imediatos, revelamos uma ideia errada de fé.

Quem atravessa a porta da fé, necessariamente, vai se en-volvendo com a mesma causa de Jesus, independentemente se as coisas vão bem ou mal. Ao testemunho da “verdadeira face de Deus”, temos que anexar o testemunho de nosso amor pelos humanos. Na medida em que nos envolvemos nas boas causas que humanizam e promovem a vida, mais a fé vai se tornando luminosa e autêntica, pois “a fé sem obras é morta” (Tg 2,14).

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Atravessando a porta da fé, progressivamente, vamos nos dando conta de que esta não se baseia em alguma coisa secun-dária do nosso viver. Porém, certamente a fé sustenta de modo particular os que atravessam momentos difíceis, ajudando-os a vivê-los e a colocá-los em um horizonte mais amplo. A fé não nos dispensa dos passos normais que humanamente devemos dar e do nosso compromisso com a vida. Porém, em tudo e para tudo confere sentido e oferece razões para ser ou não ser, para fazer ou não fazer, para viver e conviver.

Numa pequena história irônica de um antigo livro de teolo-gia, conta-se que num dia de tempestade, um navio estava se afundando. O comandante apavorado, começou a gritar: “Os ateus às bombas e os crentes a rezar!” Diante da tragédia nem um e nem outro tinha a solução, mas ainda era melhor rezar para tentar arrancar forças repentinas que pudessem inspirar alguma positiva reação.

Para podermos atravessar com elegância e dignidade a porta da fé e prosseguirmos com decidida perseverança, ne-cessitamos fazê-lo na certeza de um encontro com aquele que disse: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). Melhor que as provas racionais para convencer alguém da importância da fé, é preciso que a prova seja o nosso viver como humanos, na realidade do cotidiano, na sua evidência social. Por causa do encontro com Jesus Cristo nos tornamos mais humanos e amigos da vida.

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A fé aponta para o começoNada agradável é a sensação de quem está percorrendo

um caminho desconhecido e este chega ao fim. Não tendo como ir adiante, o jeito é dar uma ré e procurar outra estrada alternativa. Se todos os caminhos levam a Roma, certamente a possibilidade de prosseguir pode ser auxiliada com uma volta para traz. Com o tempo não é assim! O único final do tempo só acontece quando se abre diante de nós a eternidade. Um minuto, uma hora, um dia, uma semana, um mês e um ano que passa não nos permitem voltar atrás.

Chegamos ao final de um ano! Por maiores que sejam nossas teimosias não há como parar o relógio da vida. Para não nos vermos com a mão no arado, olhando para traz, o melhor jeito é jogar o foco de luz para frente e perceber que a fé sempre aponta para o começo. Cada entardecer já traz consigo o anúncio de um amanhecer. Cada noite que nos envolve já aponta para um novo dia. Cada etapa do caminho percorrido garante um novo caminho.

Como humanos que somos não é estranho, que ao chegar-mos ao final de um ano, ouçamos certos lamentos: Estamos envelhecendo! O tempo corre impiedosamente e ninguém consegue parar! Estou cansado! Não aguento mais o corre--corre da vida! etc. Estas e outras lamúrias, até certo ponto, fazem parte de nossos desabafos naturais. O pior não é o lamento, mas o risco de ir se entregando e se acomodando como se fôssemos vítimas do calendário.

A fé cristã, quando cultivada no cotidiano da vida não nos permite chegar ao fim de ano caídos sob o peso de um fardo insuportável. Se o cansaço chegar é importante ouvir, como ditas a nós, as palavras de Jesus Cristo: “Vinde a mim, todos

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vós que estais cansados e carregados de fardos e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e sede discípulos meus... e encontrareis descanso para vós. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).

A vida nos ensina que o risco de carregar a cruz sem Cristo é tornar a vida insuportável. A fé garante que as piores cruzes, com Cristo, preparam as mais felizes vitórias. A fé sempre aponta para o começo! Quem se dá conta desta verdade, con-segue chegar ao fim de ano com sabedoria, com realismo e sonhos de esperança.

Sabendo que a fé aponta para o começo, somos chamados a sintonizar e entender os segredos da vida. Um dos mais importantes segredos que a vida nos ensina pode ser colhido quando aprendemos a avaliar os acontecimentos do passado. O bom discípulo de Cristo, também é chamado a ser discípulo da vida. A vida ensina! A história continua sendo mestra da vida!

A alegria de termos chegado ao final de um ano, já é, por si só um motivo de exultação. Quanta gente começou o ano e foi colhida pela irmã morte. Poder concluir uma etapa da vida, mesmo com quedas e provações é um imenso dom. A gratidão que deve brotar do coração deve ser espontânea porque não estamos enterrando uma fatia de nossa vida, mas estamos seguros de estarmos ressuscitados nesta etapa que termina para começar.

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Novos tempos para a féCom frequência ouvem-se desabafos angustiantes e sinceros,

de muitos pais, avós e até religiosos que lamentam a distância de seus filhos e das novas gerações das práticas religiosas. Ao experimentar certas situações não faltam expressões como estas: “A fé está se indo!”... “Não é mais como antigamente!”... “Estamos perdidos!”.

Não faltam aqueles que compram brigas, insistindo na obrigação das práticas e até acenam para desgraças que amea-çam os indiferentes. A tática da imposição e a apelação para o medo parece ser uma estratégia que produz efeito contrário. É bom lembrar o que nos diz a carta de João: “No amor não há temor; ao contrário, o perfeito amor lança fora o temor, porque o temor implica um castigo, e o que teme não chega à perfeição do amor” (1Jo 4,18).

Não podemos esquecer que houve um tempo em que todo o mundo ocidental era cristão. Todas as atividades se deixavam orientar pelo cristianismo, mais precisamente pela Igreja: a ciência, a literatura, as artes, as instituições políticas e sociais etc... Por ser um fenômeno de massa, o cristianismo era mais uma religião sociológica, do que fruto de uma adesão pessoal livre, consciente e responsável.

Hoje, vivemos uma situação contrária. Pretende-se retirar Deus do mundo, da cultura e das instituições. No entanto, o que se constata é que as razões de crer e não crer se tor-nam cada vez mais fortes e mais vivas. Não nos enganamos quando afirmamos que o clima de nosso momento favorece mais o ateísmo ou a indiferença religiosa do que a fé cris-tã. Nesta realidade, para muitos, a situação se torna uma

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ocasião de aprofundamento da fé e, para outros tantos, uma ocasião de abandono.

Nesta “mudança de época”, o que nos cabe pensar e fazer? Seria melhor nos situar como assistentes passivos, ou com o passar do tempo, ver as consequências? Poderíamos voltar a ser combativos e bater de frente com a descrença, ou até po-lemizar com os que pensam de modo diferente? Quais seriam os caminhos para uma fé renovada?

Diante das muitas inquietações da fé, lembrei-me da parábola da árvore na montanha. Quando estava no meio do bosque cerrado, podiam chegar ventos fortes e tempestades que ela se sentia protegida pelas outras que lhe davam segurança. Porém, quando o agricultor derrubou o bosque e a deixou sozinha no descampado, as coisas mudaram.

Cada vento e cada tempestade era uma ameaça a sua que-da, pois não tinha mais a proteção a seu lado. Depois de uma longa crise ela decidiu firmar e aprofundar as raízes. Só então se sentiu segura para crescer e se expandir.

Não podemos mais fazer depender a qualidade da fé pela unanimidade dos que creem. Todo o tipo de ventania se abate sobre a humanidade em tempos de mudanças rápidas, profundas e globais. Nesta fase da história os novos ventos de Pentecostes estão a exigir decisões pessoais conscientes e livres para que as raízes da fé garantam a fecundidade gera-dora de novas comunidades.

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Quando a fé remove montanhas

Se um jornalista chegasse ao público para registrar opi-niões sobre a pergunta: “Quando a fé remove montanhas?” Tomados de surpresa, muitos nada falariam, outros tomariam ao pé da letra a pergunta e, de imediato, negariam qualquer possibilidade, outros, tentando compreender a comparação, confirmariam pessoas e fatos surpreendentes movidos pela força da fé.

Depois de uma reclamação dos discípulos por não terem conseguido expulsar um demônio, Jesus os repreende dizendo: “Foi por causa da fraqueza de vossa fé, pois em verdade vos digo: se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a esta montanha: transporta-te daqui para lá e ela se transportará, e nada vos será impossível” (Mt 17,19-29).

Assim como Jesus repreendeu os discípulos, também repreendeu a Pedro quando este começou caminhar sobre o mar. Vacilante ia afundar. Jesus estende a mão e lhe faz ver a carência de fé causadora desta insegurança perigosa. O mesmo Jesus que repreende seus seguidores pela pouca fé, elogia a mulher Cananeia que pedia socorro no meio da multidão por sua filha endemoninhada e lhe diz: “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!” (Mt 15,28). Algo parecido acontece com o Paralítico, cujo leito lhe foi apresentado a Jesus por um buraco no teto da casa. “Jesus vendo sua fé” (Mc 2,5) o liberta.

Jesus não diz que a fé deve ser do tamanho de uma mon-tanha. Basta que seja como um grão de mostarda para remo-ver uma montanha. Com esta imagem podemos imaginar o potencial que a fé possui dentro da vida e para a vida. Creio

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que seja com este argumento que há gente, com o mínimo de possibilidades, que consegue promover milagres em benefício da humanidade. Outros com grandes possibilidades fazem o mínimo ou até se aproveitam para destruir e prejudicar. Na verdade, a fé faz a diferença.

Remover montanhas é investir no bem para superar o mal; é ter a firmeza inabalável dos mártires; é denunciar as injustiças que obstaculizam a fraternidade e a solidariedade; é conseguir com o pouco fazer muito; é promover o diálogo da reconciliação quando, sem esta poderia se desencadear uma guerra; é acreditar no amor contra a onda do individualismo; é apostar na verdade, quando a mentira parece ser a qualida-de dos espertos; é confiar tanto, como se tudo dependesse de Deus e ser tão responsável, como se tudo dependesse de nós.

Remover montanhas, é também acolher, sem preconceito, o convite do Papa Bento XVI, quando no início do seu ponti-ficado e também na carta “Porta Fidei” nos diz: “A Igreja, no seu conjunto, e os Pastores, nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens para fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude” (A Porta da Fé, n. 2).

É honroso para a humanidade investir na educação da fé que possibilita a remoção de tantas montanhas, às vezes tão altas que impedem a luz do sol e o desabrochar das esperanças de um novo tempo. Do tamanho de um grão de mostarda é possível uma nova primavera. Vamos crer!

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Encantar-se com as testemunhas da fé

Em nossa vida necessitamos aprender a captar as lições que

nos chegam da lei dos contrastes. Aprendemos a valorizar a

luz, quando nos vemos ameaçados pelas trevas. Acordamos

para o valor inestimável da água, quando somos atingidos por

uma estiagem. Dispensamos mais atenção e cuidado à saúde,

quando nos vemos fragilizados pela doença.

Creio que, em nosso tempo esta lei dos contrastes também

atinge os humanos nas crises políticas, econômicas, sociais

e religiosas. Quanto mais se publicam notícias de trapaceiros

e corruptos, enganadores e ladrões, violentos e agressores,

mais necessitamos trazer a público as testemunhas da fé do

passado e do presente.

Mesmo que a mídia não ajude muito a contemplar o en-

cantamento pelas testemunhas da fé, a humanidade sempre

encontra um jeito de fazê-lo. Basta ver as multidões presentes

nos santuários e nas Romarias dedicadas a Maria neste Brasil.

“Um sinal grandioso apareceu no céu: uma mulher vestida

de sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de

doze estrelas” (Ap 12,1). O mundo atual necessita destes sinais,

testemunhas de fé. Por isso é importante ver brilhar “como

astros no mundo, mensageiros da Palavra de vida” (Fl 2,15-16).

O mesmo que se diz de Maria, também se diz dos santos e

santas, homens e mulheres que acertaram na vida, movidas e

movidos pelo dinamismo da fé. Estes e estas comprovam ao

coração da humanidade que o tempo não faz esquecer a quem

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vive o Evangelho e se empenha “até que Cristo se forme” em suas vidas (cf. Gl 4,19).

O encantamento pelas testemunhas da fé foi confirmado quando ocorreu a morte de João Paulo II, onde a multidão gri-tava na praça de São Pedro: “Santo, já!” Sua beatificação, em tempo recorde, confirma o resultado de um clamor unânime da humanidade, especialmente da juventude. E as jornadas mundiais da juventude, o que revelam?

Aqui, em nosso Brasil, também podemos lembrar o en-cantamento pelas testemunhas da Fé como: Madre Paulina, Irmã Dulce, Irmã Doroty Stang, Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes de Almeida etc. Aliás, o próprio João Paulo II, ao beatificar a Madre Paulina, dizia: “O Brasil precisa de santos”. Junto a estes e estas que foram lembrados, em nossas comunidades e famílias cristãs poderíamos elencar uma lista interminável de testemunhas de fidelidade, dedicação, doação e serviço.

Sempre é importante para nós, que haja alguém para nos lembrar algo que já sabemos. Por exemplo: que Deus é Pai e nos ama, que devemos amar-nos com sinceridade, que Cristo nossa esperança ressuscitou. Desta forma, nos damos conta que o Cristianismo é simples e, por isso, os simples o entendem tão bem e tão rapidamente.

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Um jeito para firmar nossa fé

Livros podem nos ajudar a esclarecer o rosto da fé, mas também podem nos confundir. Cursos e estudos podem oferecer pistas e luzes, ou até mesmo atalhos e sombras que complicam a revelação daquele que se revela aos simples e pequeninos. Opiniões humanas podem favorecer ao diálogo da fé, mas opiniões são sempre opiniões e não dogmas.

O filósofo Kierkegaard nos afirma: “O homem não se prepara para o cristianismo pela leitura de livros ou pelas perspectivas histórico-mundiais, mas pelo aprofundamento na existência”. Aprofundando o sentido da existência humana, encontramos a luz da verdade que ilumina a todo o ser humano que vem a este mundo.

Quando as pessoas, ao longo de sua história, ficam atentas ao melhor de si mesmas, a seus profundos e bons anseios; quando escutam suas vozes mais íntimas e sagradas que ne-nhuma outra pessoa pode escutar, então começam a perceber o eco de uma voz anterior. É claro que, muitas vezes, a esta voz e a esta presença se interpõe a porta de nossa condição e nossas situações que podem ocultá-la.

Um jeito possível e diário para firmar a nossa fé é superar a superficialidade de nosso viver. Com frequência, ao emitir opiniões sobre pessoas, avaliando-as como positivas, se afirma: “Fulano...fulana... é uma pessoa centrada!” Esta expressão nada tem a ver com egocêntrica. Centrada é a pessoa que não se deixa estraçalhar pela loucura da alienação. Centrada é a pessoa que tem um eixo de segurança que lhe garante ser ela mesma, harmonizada em todas as relações.

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Aqui fica bem a lembrança da comparação dada por Cristo no Evangelho de Mateus 7,24-27. Quem ouve a Palavra de Deus e a leva a sério é como quem constrói a casa sobre a rocha. Quem ouve e não liga é como quem constrói sobre a areia. Ventos contrários não faltam a uns e outros, nem temporais e tempestades. Porém, a casa construída sobre a rocha não cai, mas desmorona a casa construída sobre a areia.

Uma recomendação de Cristo em seu Evangelho é exercício da vigilância. Estar atento aos profundos anseios do próprio ser; dar-se conta da presença e dos clamores dos outros, es-pecialmente dos sofredores; escutar a Palavra que ressoa na criação; observar o que se passa por dentro dos fatos e acon-tecimentos ao nosso redor; procurar ouvir e meditar a palavra da Escritura e, principalmente encontrar-se com Jesus Cristo é um caminho que garante o cultivo permanente da fé.

“Deus está neste lugar e eu não o sabia” (Gn 28,16). Esta expressão de Jacó, pode ser a nossa, quando aprendemos a entrar em sintonia e superar a loucura da dispersão do coti-diano. Para firmar nossa fé, podemos fazer dois passos com bons resultados. O primeiro é a descoberta das pegadas de Deus em nosso momento, aparentemente dominado pela in-credulidade. “Deus está neste lugar e neste tempo e eu não o sabia!”. O segundo é a sintonia com a silenciosa, real e inconfundível presença de Deus no coração da realidade, no centro de nosso ser.

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A comunicação simbólica da fé

A humanidade movimenta-se dentro de um imenso misté-rio de grandezas e experiências surpreendentes. Ao mesmo tempo que as pessoas rezam, também calculam. Movimentam--se entre o mundo transcendente e o mundo concreto que é o nosso chão. Como humanos, sonhamos e fazemos planos matemáticos e precisos.

Nossa mentalidade ocidental ocupa-se muito com o imedia-to, o visível, o audível, o tangível e o mensurável, em prejuízo das linguagens simbólicas e poéticas. Diz-se que a ciência deve presidir o conhecimento. Esta seria a linguagem séria da objetividade e do rigor. A religião e a arte, por exprimirem sentimentos e estados de ânimo vão ficando na sombra, sem utilidade.

Na verdade esta divisão de linguagem não respeita a nos-sa mais profunda verdade e não condiz com a revelação do Antigo e do Novo Testamento. A linguagem exata e objetiva da ciência garante-lhe a autenticidade. Porém, somos porta-dores de sentimentos e desejos ilimitados. Comprovamos que as palavras não são suficientes para manifestar a riqueza de nossos sentimentos.

Faz parte da vida, o recurso aos gestos, sinais e símbolos que nos ajudem a comunicar o que as palavras não são capazes de expressar. A comunicação simbólica é uma grande riqueza à qual o homem sempre recorreu. Os acontecimentos decisivos da existência sempre são acompanhados por linguagens e gestos simbólicos: o nascer, o morrer, as escolhas importantes da vida, o alimento na casa.

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Toda a arte da comunicação necessita dos símbolos. A qualidade de nossa experiência de fé não pode deixar de lado esta forma peculiar de comunicação. Nossas igrejas, em geral são monumentos simbólicos de fé, para a fé. Por sermos muito imediatistas e parciais na atenção, nem sempre nos damos conta da riqueza simbólica da fé de nossos vitrais, altares, imagens e até mesmo da arquitetura. O próprio Ano litúrgico, elaborado a partir de uma história, confere ao tempo uma dimensão simbólica da fé, para a fé.

A Bíblia está repleta de símbolos: do jardim do Éden à ci-dade do Apocalipse, da linguagem dos profetas à linguagem das Parábolas. Até os milagres são entendidos pelo evangelho de João como sinais (cf. Jo 2,11; 4,54; 20,30-31). Deus não se coloca no âmbito das evidências imediatas. A pessoa de fé se dirige a ele e fala dele com a linguagem dos símbolos. Apesar de revivê-lo em tudo, percebe a impossibilidade de falar dele como se fala de outras coisas.

A linguagem simbólica vela e revela. A transcendência de Deus não pode ficar prisioneira de nossos conceitos. Lembra-mos a comunicação do Mistério de Deus a Moisés no livro do Êxodo. Seu vulto não poderá ser contemplado face a face (Ex 33,18-23. A mesma lógica está nas manifestações do Res-suscitado aos discípulos e a Maria Madalena (cf. Jo 20,11-29).

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Por uma fé animadora e corajosa

Confesso com sinceridade que ao ler o capítulo onze da Carta aos Hebreus, fico impressionado com o elogio à fé dos antigos. Não há como ficar indiferente diante de tantos per-sonagens que marcaram a história, movidos pelo ânimo e a coragem da fé. Com a certeza na frente e a história nas mãos não pararam no caminho, nem deram para atrás, mas andaram em frente firmados na promessa. “No entanto, todos eles, se bem que pela fé, tenham recebido um bom testemunho, não alcançaram a realização da promessa. É que Deus estava pre-vendo algo melhor para nós: não queria que eles chegassem sem nós, à plena realização” (Hb 11,39-40).

Não há como pensar na fé cristã que não seja animadora e corajosa. Sabemos que a dinâmica da fé, como diz Paulo aos hebreus 11,1 vem da posse antecipada do que se espera; é um meio para demonstrar as realidades que não se veem. Porém, esta verdade animadora e corajosa não dispensa nossa realidade humana sempre propensa a duvidar e experimentar a insegurança.

Quando pensamos em Maria, na hora da anunciação, logo a vemos dando-se o direito de perguntar ao anjo e buscar explicação. Diante de sua perturbação, o anjo lhe diz: “Não tenhas medo, Maria!” No final do diálogo, Maria proclama sua adesão corajosa de fé, dizendo: “Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra!”

Por razões diferentes de Maria, José também entra em conflito na missão que o esperava. Ao saber da gravi-dez de Maria, antes de passarem a conviver, pensou em

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despedi-la secretamente. Nos tormentos de um sonho, o anjo do Senhor lhe disse: “José, Filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, pois o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. José, ao despertar do sono, agiu conforme o Anjo do Senhor lhe ordenara” (Mt 1,20ss).

Se percorrermos as grandes vocações Bíblicas, também confirmaremos que a fé corajosa e animadora nunca nos en-contra tão seguros. Porém, na medida que vamos nos decidindo e respondendo, também vamos encontrando forças que nem imaginamos ter. Deus nunca se deixa vencer em generosida-de, anima-nos e encoraja-nos a prosseguir o caminho, custe o que custar.

A fé animadora e corajosa que vem de Deus como dom, também conta com nossa santa teimosia em abraçar aquelas causas que, para o Reino são fundamentais: a luta pela justiça, a promoção da paz e a dedicação para o crescimento da civi-lização do amor: “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21,1).

A fé animadora e corajosa está centrada no Cristo teste-munhado na Bíblia. Necessita ser constantemente medida e corrigida neste Cristo. A fé, que é graça, não fica inoperante. Ela é dinâmica e desafiante. Nossa resposta à graça da fé é a obediência. Fé vai muito além de um sentimento religioso e se concretiza na obediência do dia a dia ao Deus da vida que nos coloca a serviço da vida no amor a todos, especialmente os que se encontram ameaçados pela cultura da morte.

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Preocupados pela féTudo anda tão rápido, que as preocupações estão sempre

correndo em nossa frente. O cotidiano do viver atual parece não ter mais chão para firmar os pés e nem nos deixar dor-mir sonos tranquilos. Tem-se a impressão de que a carroça passou à frente dos bois e anda meio desgovernada. O elenco das preocupações pessoais, familiares, sociais, eclesiais etc. parece confirmar aquele provérbio popular que diz: “Se correr o bicho pega, se parar o bicho come!”

Dentro de tantas preocupações pelo imediato da vida, como: o alimento, a saúde, o estudo, o trabalho, a moradia e outras, ainda vale a pena investir na preocupação pela fé? O mundo do circunstancial é tão envolvente e ocupa tanto nossos horá-rios do dia e da noite que as questões fundamentais da vida parecem não ter maior relevância. Com facilidade relega-se ao esquecimento o que deveria ser lembrado como essencial do viver humano.

Há alguns dias ouvi de uma pessoa, aparentemente culta, esta frase: “Fé não dá dinheiro”. Em contrapartida, um outro vadio inventou uma igreja do tamanho dos seus interesses, convencido de que “religião dá muito dinheiro”. Não me cabe fazer juízo, nem de um, nem do outro. Porém, é certo que os dois representam o pensamento de muitos.

Com o que vale a pena nos preocupar? “Fé não dá dinhei-ro!” Certamente não dá resultados imediatos e nem garante prestígio, nem poder e nem certos prazeres. Além do mais a autêntica fé, ao exigir obras e doação, fica realmente incômoda para quantificar resultados. A quinta Campanha da Fraterni-dade de 1968 teve como lema: “Crer com as mãos”. O cartaz trazia uma mão aberta, revelando atitude de generosidade em

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todos os sentidos. Ali a frase do amigo poderia ser verdadeira, se dissesse: “A fé dá dinheiro também!” Este “dar” se tornaria o gesto de uma fé cristã que passa da mente para o coração e do coração para as mãos.

Hoje, talvez, a fé pode não mais preocupar multidões. A fé que se vê desalojada de muitas instituições, pode ser tirada da lista das preocupações imediatas, porém, ninguém a tira das profundezas do ser. O coração é maior que a inteligência. E como diz Pascal, “é o coração que sente Deus e não a razão”. Com esta e outras conclusões, penso ser melhor substituir “preocupação pela fé” por “ocupação com a fé”. A fé não é intermitente, mas é uma constante no viver humano. Ocupados com a fé, deixamos permanentemente a luz acesa na trajetória humana, a fim de que nenhum abismo nos surpreenda.

“E a religião dá muito dinheiro?” Para os mal-intencionados, a boa fé das pessoas pode ser um grande campo de exploração. Se um fulano funda uma “religião”, não significa que o faça em nome da fé, mas geralmente o faz movido por interesses imediatos seus. Nesse tipo de visão a religião passa a ser um negócio que enriquece alguns e empobrece a tantos, engana-dos por milagres fáceis. Aliás, há estudos atuais que provam ser este um caminho para os que vão se desiludindo e vão aumentando o número dos descrentes.

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A fé humana e a fé religiosaFé humana e fé religiosa interagem, se ajudam e se qua-

lificam uma à outra, não se contrapõem. Por vezes temos a tendência de pensar que fé só interessa no âmbito da religio-sidade, imaginando que ela não circula entre as coisas da vida por aqui, no chão de nosso viver. Na verdade, nossas relações interpessoais necessitam fortemente da fé para se tornarem verdadeiras, humanas e humanizantes.

A fé humana joga com a necessária confiança. Na confiança nos abrimos aos outros com mais segurança. A desconfiança é sempre uma antecipação de juízo que nos distancia dos ou-tros e pode nos levar ao isolamento. Na vida real é preferível deixar-se enganar por confiar, do que viver desconfiando de todos e morrer na solidão.

A fé religiosa busca assegurar-se na relação com Deus, como raiz primeira e última de nossa existência. Esta fé reli-giosa, antes de ser uma ideia é uma experiência envolvente, decorrente de nosso próprio viver. Aos cidadãos de Atenas, no meio do Areópago, Paulo proclama: “Deus não está longe de cada um de nós. Nele vivemos, nos movemos e existimos!” (At 17,27b-28).

A adesão pessoal ao outro é indispensável para a vida. Nós não podemos nos imaginar desvinculados, numa redoma de isolamento. Viver é comunhão! Todo o nosso ser, desde a configuração do corpo, está voltado para o outro. Nossos sentidos são janelas de comunhão, graças à qual a vida se torna significativa e irradiante. Por meio da fé, a pessoa rompe com sua solidão, sente-se motivada para as tarefas mais árduas, pois assim nosso viver se torna útil e significativo.

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A fé humana e a fé religiosa nos fazem caminhar no terre-no da esperança. Quando se confia plenamente em alguém, espera-se dele algo importante para o futuro. Assim deveria ser a união conjugal na edificação de um lar. Evidentemente, essa confiança presente e futura não pode se dar sem o amor. Fé, esperança e amor não são três virtudes e atitudes diversas, mas três aspectos da unidade interpessoal, graças à qual, a vida se torna relevante e atraente.

A experiência da fé humana pode se tornar um pressuposto aberto e favorável à fé religiosa, quando for bem cultivada e verdadeira. Por exemplo: para uma criança que põe fé no pai e na mãe e é correspondida na fidelidade, não é difícil ir pas-sando para a fé religiosa em caminho de serena normalidade. Porém, para uma criança que vive a experiência de fé humana traída e rompida em seus pais, o clima de revolta e decepção vai dificultar muito no exercício da fé religiosa.

Na medida em que a fé religiosa vai favorecendo um pro-cesso de conversão ao Deus vivo e verdadeiro, também vai firmando e aperfeiçoando a fé humana. A pessoa que assim se cultiva, vai se tornando sempre mais confiável e capaz de oferecer confianças em suas múltiplas relações. Os santos e santas não passam a ser anjos ou seres extraterrestres. Quanto mais cultivam a santidade, mais humanos e humanas se tor-nam; e quanto mais humanas, mais transparecem o Divino.

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Acreditar que Deus crê em mim

Jamais me sentiria autorizado a pôr defeitos na forma como nós fomos catequizados, ou evangelizados no passado. Cada tempo tem seus modos e também seus discursos sobre a fé. Atualmente, há necessidade de ajudar as pessoas a crer com ânimo e alegria e jamais pensar na relação com Deus, como uma atitude pesada e marcada pelo medo.

Recordo um fato paradigmático na vida de São Frei Pio de Pietrerlcina. Num entardecer, lá estava Frei Pio, portador das chagas, contemplando uma colina à frente do convento de San Giovanni Rotondo. Enquanto olhava, carregado de sonhos e intenções, achegou-se a ele um médico que por lá passava. Ao perguntar o que o Frei estava pensando, respondeu: “Deus está me inspirando a construir, nesta colina, um grande hos-pital para aliviar o sofrimento de tantos mutilados de guerra e sofredores sem socorro”. De imediato, Frei Pio convidou-o a participar desta obra de Deus.

O médico olhou para o Frei com um sorriso sincero e disse: “Frei, eu não acredito em Deus!” Foi então que Frei Pio teve um lance profético e inspirado. Olhou para o médico e disse: “Meu irmão, não importa que tu não creias em Deus, Deus crê em ti!” Conta-se que a partir desta afirmação, começou a conversão do médico. Tornou-se um grande colaborador na efetivação da obra, a “Casa Alívio do sofrimento”.

Quando uma pessoa sabe que é acreditada, resgata a autoestima; reúne forças para corresponder à credibilidade e ajunta energias para responder positivamente. Mencionamos aqui a vocação de Jeremias. “A Palavra do Senhor foi-me

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dirigida nestes termos: Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu já te conhecia. Antes de saíres do ventre de tua mãe, eu te consagrei e te fiz profeta das nações” (Jr 1,4-5).

Acreditar que Deus crê em mim é a lógica do amor que sempre começa com a iniciativa divina. “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou primeiro!” (1Jo 4,10). O fato decisivo que confirmou a conversão de Paulo, aconteceu desde o momento em que ele se deu conta do quanto Deus nele acreditava e qual era o preço de tal credibilidade. Isto ele o declara quando proclama: “Ele me amou e se entregou por mim!” (Gl 2,20).

Todo o acontecimento Jesus Cristo em sua vida, paixão, morte e ressurreição é um hino de credibilidade à dignidade humana. Daí o respeito e a reverência que Cristo sempre re-velou em suas palavras, em seus encontros e em suas ações redentoras. Para ele não havia vida humana que não pudesse ser salva. Aos menos acreditados da sociedade, Cristo con-firmou toda a credibilidade, a ponto de dar a vida.

Apesar de todas as negações e traições, Cristo nos amou até o fim. Foi fiel ao projeto do Pai. Sua morte confirma que ninguém acreditou tanto na vida quanto Cristo. Sua Ressur-reição confirma o quanto valeu a pena investir no amor.

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Cruz nossa de cada diaA cruz é assunto difícil de se falar. Mais difícil é aceitá-la, e

pesada demais para carregá-la. Num encontro informal de ami-gos, depois de terem participado da celebração da Sexta-Feira Santa, abriu-se um diálogo interessante. Inclusive comentava-se o sermão do Padre. Um amigo dizia para o outro: “Eu tenho dificuldade de pensar e de ouvir falar da cruz, mas acho que preciso me acostumar, porque não dá para pensar e falar de Cristo, sem cruz”. Outro afirmava: “Eu detesto a cruz e não a aceito de jeito nenhum!” Um terceiro, muito calmo, dizia: “Eu também não lido fácil com a cruz, mas preciso aceitá-la porque sem ela não consigo viver minha fé”.

Cruz é assunto para não se falar em qualquer lugar e nem de qualquer modo. Neste bate-papo dos amigos, há verdades muito sábias. O primeiro desabafo revela um caminho de conversão. “Preciso me acostumar!” Esta não parece ser uma atitude passiva de um acomodado na fé. Este amigo, como tanta gente, gostaria de seguir um Cristo fácil e festivo, elegante e light, mas a sua sinceridade de fé não lhe permite. Ele sabe que sem o Crucificado, não existiria o Ressuscitado. Então sua fé seria vã. Tantos deuses sem cruz já foram inventados na história!

O segundo amigo confessou que detestava a cruz e não a aceitava de jeito nenhum, e ponto final. Então surge a pergunta: como pode uma pessoa assim participar de uma cerimônia de Sexta-Feira Santa? Quem o conhecia melhor, sabia que ele era um bom cristão, mas não admitia a cruz imposta a ele e a tanta gente. Cruz imposta não se pode aceitar! São tantas cruzes que pesam demais nos ombros dos pobres, desprezados e excluídos; são as cruzes insuportáveis

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das crianças abandonadas e dos jovens que se veem apri-sionados pela droga; são as cruzes que se multiplicam nas periferias sociais e existenciais. Foi por estas e tantas outras que o Cristo foi crucificado para garantir a possibilidade de redenção.

O terceiro amigo se faz, um pouco, representante de todos nós que nos dizemos cristãos. Sabemos de nossa tendência natural de fugir da cruz e adorar apenas o Ressuscitado. Porém, este Ressuscitado nos disse: “Se alguém quiser seguir-me, tome a sua cruz, cada dia, e siga-me!” (Mc 8,34).

Nós somos discípulos da Cruz proposta e não imposta. Esta cruz tem um nome que se chama: “AMOR”. Até mesmo, porque não existe amor sem cruz e nem cruz libertadora sem amor. Acolher a cruz proposta não é masoquismo, mas sabedoria e dignidade: “Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, não poderá produzir frutos” (Jo 12,24).

A proposta da cruz traz consigo a lógica da vida nova. Só há certeza que a chama se acende, quando há uma vela que se doa. Só há um filho que nasce, quando há uma mãe que se dispõe para o parto. Só há um dia que amanhece quando uma noite chega e se dispõe a passar. É assim: “Quem quiser guardar a vida para si, perde-a e quem a doa por amor, garante-a” (cf. Mc 8,35). Bem-vinda a Cruz nossa de cada dia!

MORTE

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Morte, necessidade e violência

Sempre lembro um fato acontecido no início do meu ministé-

rio sacerdotal. Fui chamado, com urgência, a visitar e ministrar

a Unção dos Enfermos ao pai de um confrade capuchinho.

Em vida, sempre foi um homem correto, austero, batalhador

e participante da comunidade. No dia da visita, encontrei-o

debilitado, com muitas dores e incapaz de se erguer da cama.

Logo que entrei na casa deste enfermo, ao ver-me, nem

esperou a saudação e disse-me por duas vezes em dialeto:

“Padre, ho bisogno di morrir! Si! ho bisogno di morrir!” (Pa-

dre, tenho necessidade de morrer!) De imediato perguntei-lhe

qual era o motivo desta afirmação. Ele respondeu-me: “Não

vê como eu estou?” Nunca esqueci esta cena e esta profunda

verdade da existência humana.

A morte é uma necessidade: “Eu preciso morrer!” Assim

como o parto é uma necessidade para o primeiro nascimento,

a morte é também um parto necessário para o nascimento

definitivo. No fim de nove meses não há como querer ficar

protelando. A pessoa necessita nascer imperiosamente.

Parto é partida para um horizonte novo e incomparavelmente

maior e melhor do que a segurança do seio materno. Se uma

criança pudesse se expressar e manifestar sua vontade, certa-

mente, jamais desejaria passar por este momento traumático,

enfrentando a passagem da segurança e proteção materna para

uma aventura desconhecida. O parto é uma necessidade, mas

também uma violência.

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Santo Inácio de Antioquia, quando estava se aproximando do martírio, escrevia aos romanos: “Meu parto se aproxima”. Com razão Franklin dizia: “Morrendo, acabamos de nascer”. O desabrochar da plenitude para a vida é uma necessidade irrenunciável, mas também é uma violência. É na morte que a pessoa acaba de se gerar e ser gerada. Não há como viver, sem caminhar para a morte. “Cada dia morremos um pouco” (1Cor 15,31) Nossa história confirma que, desde o dia que nascemos, vamos morrendo em prestações. A vida e a morte andam sempre de mãos dadas. Porém, “ainda que o nosso físico vai se desfazendo, o nosso ser interior vai se renovando cada dia” (2Cor 4,16).

A vida vira um desastre quando nos vemos apenas na di-mensão biológica. Enquanto seres espirituais nos completamos na morte. “Há um tempo de dar à luz e um tempo de morrer. Oxalá que a mim também suceda nascer em tempo desejado e morrer em tempo oportuno... De certo modo, somos pais de nós mesmos, nos concebemos e nos damos à luz a nós mesmos” (São Gregório de Nisa. Século IV).

Como conclusão, penso ser importante treinar a integra-ção da morte para não encará-la em seu rosto trágico. O que podemos fazer de melhor, na caminhada da vida, é investir no amor-caridade, pois é por aí que nos eternizamos, como o desabrochar normal para a plenitude. Num dos mais belos teatros sobre Francisco, no final de sua vida, ele cantava: “Vienni dolce morte!” (Venha doce morte!). Para quem sem-pre a chamou de “Irmã”, só podia tratá-la assim no momento de sua chegada.

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Estar de bem com a morteCertamente, uma das realidades com a qual nos sentimos

humanamente desconfortáveis, é a realidade inevitável da morte. A humanidade, em todos os tempos a revestiu com as mais contraditórias roupagens, desde as mais trágicas, até as mais serenas e elegantes. Tantos preferem não pensar nela, outros a afugentam com argumentos filosóficos e racionais. Muitos a encaram com revolta e indignação, outros tantos a veem como uma dimensão da própria vida, tendo consciência de que não há vida sem morte.

Para ir ficando de bem com a morte, nada melhor do que ir se dando bem com a vida. Quem está de bem com a vida não vive estremecido porque é mortal: sabe se ocupar de tal maneira com a vida e o que fazer dela, que não gasta energias e nem perde tempo em anular-se com a morte; anda de mãos dadas com a vida.

É normal dos humanos desejar o sucesso de seu viver. Porém, quanto mais o procuramos e o transformarmos num alvo, mais estamos sujeitos a nos equivocar. Quando somos movidos a este ímpeto, a realidade da morte é sempre uma ameaça. O sucesso da vida, como a felicidade, acontece como consequência de uma causa maior do que a pessoa, pela qual se investe tudo.

Quando as pessoas têm tudo, ou o suficiente para viver, e pouco ou nada porque viver, perde-se o sentido da vida e, mais ainda, da morte. Quando a vida tem sentido e a causa abraçada é maior, também o sofrimento e a morte necessa-riamente o terão. Aflições e morte fazem parte da existência humana. O que importa decisivamente é aprender e saber o que a vida espera de nós.

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Deus espera que não o decepcionemos e que saibamos viver e morrer, não miseravelmente, mas com orgulho. O ser humano tem a capacidade de viver e até de morrer por seus ideais e valores. Uma das principais características da existência humana, está na capacidade de se elevar acima das condições biológicas, psicológicas e sociais e de crescer para além delas.

Na realidade, para poder dar-nos bem com a morte, ne-cessitamos dar sempre o passo além do natural e perceber este recurso que nos é dado de transcender, sem deixar a realidade, onde nosso viver está plantado. A partir do futuro, a fé cristã nos ensina viver o presente. A partir da eternidade, somos chamados a administrar bem o que se passa no tempo da vida presente.

Em geral, o grande medo da morte se abate sobre nós, quando nela pensamos o fim do viver, quando achamos que terminou o caminho e nada mais temos a esperar.

Somos seres finitos, com desejos infinitos. Estes desejos que nos apontam horizontes sempre maiores e abertos, não podem ser entorpecidos por idolatrias fugazes. É de Deus que nós viemos, em Deus que nós vivemos e para ele que nós retornamos.

A experiência de Deus passa pelo aprendizado do melhor viver, do mais amar e do aprender a morrer com dignidade. Quanto mais nos abrirmos corajosamente na fé, mais nos tor-namos dispostos a amar e a não morrer, mesmo que a morte nos colha de surpresa.

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Lembrança dos mortos, garantia de vida

O dia de finados sempre vem carregado de sentimentos, lembranças e emoções que nenhuma lógica humana sabe justificar. O clima diferente faz diminuir as palavras e con-cretizar gestos de vida, homenagens e sinais de proximidade com quem já não está mais fisicamente próximo. Um ar de mistério movimenta multidões aos cemitérios, jazigos, túmulos e até mesmo nos espaços onde as cinzas foram espalhadas.

A cada ano confirma-se aquela verdade popular que nos afirma: “O pior da morte não é morrer, mas ser esquecido”. Aqui nota-se que a imortalidade não é tanto uma questão a ser explicada pela lógica humana, nem a ser negada pela nossa razão, nem confundida com doutrinas humanas que se cristalizam nos tempos. A imortalidade de cada vida humana nos é garantida na profundidade de nosso mistério, lá onde nos conectamos em linha direta com a fonte da vida, com o amor criador de Deus.

Os que nos amaram e aqueles que amamos, não passam. São presenças inesquecíveis que fazem parte de nosso ser e nossa história. O dia de finados é um momento onde volta-mos a sintonizar, a partir da fé em Jesus Cristo, com aqueles e aquelas, que continuam falando no silêncio, que estão presentes na ausência e, pela comunhão em Deus, estão em comunhão conosco.

“Para qualquer pessoa que reflete, a fé dá-lhe uma resposta à sua angústia sobre a sorte futura. Ao mesmo tempo oferece a possibilidade de comunicar-se, em Cristo, com os irmãos queridos já arrebatados pela morte, trazendo a esperança de

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que eles já tenham alcançado a verdadeira vida junto de Deus” (Gaudium et Spes, n. 18).

A morte dos outros faz pensar também na nossa, pois esta é inevitável para todos. Esta realidade, longe de diminuir o sentido da vida, nos dá argumentos para viver plenamente cada momento com gosto de eternidade. E este gosto de eter-nidade nos é oferecido pela possibilidade de amar, pois só o amor nos eterniza.

O que marcou a condição humana dos que morreram e o que marca a nossa condição humana como vivos, é a experiência de nos sentirmos sempre diante do horizonte da morte, não como fim, mas como partida. Outro parto faz acontecer um novo nascimento. Este horizonte, longe de ser um argumento de medo e fuga, dará às nossas ações um caráter de transcen-dência e irrepetibilidade.

O dia de finados, além de ser um momento de comunhão, intercessão e homenagem aos nossos mortos, é também uma oportunidade para lembrar que nosso viver também está sem-pre diante de um espaço de tempo limitado. E é isso que dá às nossas opções e compromissos um caráter de urgência que jamais teriam, se não vivêssemos diante de um horizonte finito.

Como a liberdade de quem já partiu, a nossa também é chamada a se responsabilizar diante da provisoriedade da vida. Assim nossos atos cotidianos adquirem um valor tão decisivo que não nos permitem ser indiferentes e nem nos acomodar. Nosso viver tem um peso eterno de glória, se com glória investimos nossa liberdade e nossas escolhas.

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A morte de Jesus e a nossa morte

“Somente a morte do Filho de Deus poderia modificar radicalmente a nossa morte. Depois que o Cristo morreu pela salvação do mundo, a vida de Deus e a sua glória entraram definitivamente no mundo. Não existe no universo aconteci-mento mais importante do que esta morte” (K. Rahner). A partir deste acontecimento único, a morte mudou de nome e passou a pertencer ao reino da vida. A morte de Cristo mudou para sempre o nosso destino. Hoje sabemos de que lado está a vitória.

Apesar de tudo, não podemos esquecer que a vida de Cristo não foi uma alegre caminhada para a morte, como às vezes podemos imaginar ingenuamente. Cristo amava a vida. Sua paixão pela vida o fazia decidido, envolvido e entregue a esta causa que se tornou maior que a sua própria vida. O Reino da vida era seu horizonte envolvente.

Jesus queria colocar sua vida por inteiro ao serviço de todos. Na metade de sua vida pública, porém, começa prever a própria morte, noticiando-a aos seus discípulos (Mc 8,31). Vemo-lo como uma vítima da intolerância, um sacrificado por um falaz cálculo político.

Em Jesus travou-se a luta entre o desejo de um batismo de sangue heróico, decorrente de sua vocação de servo de Deus (Lc 12,50; Mc 10,38) e seu amor à vida e aos seus (Mc 14,3-9; Jo 11,53; 12-27-28). Jesus não esconde sua crise mais angus-tiante. A cena do Getsêmani está muito distante da apatia dos estoicos, assemelhando-se ao desespero de Jó (Mt 26,36ss; Lc 22,39ss). O grito da cruz expressa o sentimento terrível

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de abandono do Pai e a sensação de frustração em relação à obra de amor que havia realizado na terra.

Observando a morte de Jesus apenas como um fato humano e imediato, tem-se a impressão de que a lei venceu o Evange-lho e a “justiça melhor” não deu em nada. Para os apóstolos a morte de Jesus representou a morte de suas esperanças. O jeito mesmo é voltar a Emaús.

Aquele grupo de homens que havia deixado tudo para seguir Jesus, já não era mais capaz de nada, a não ser esconder-se ou fugir. Parecia mais morto do que Jesus. Mas nem tudo ter-minou com sua morte. A incrível força do Evangelho voltou a surtir a partir da própria morte de Jesus. O credo de sua comunidade é este: o Crucificado vive para sempre junto de Deus, sinal de esperança para nós.

Todo este drama não basta para fazer de Cristo um Sal-vador. O que resgata a sua morte e a transfigura para ele e para nós, é a incontida força do amor com que fez o dom da própria vida. É neste amor mais forte do que a morte que ele nos liberta da violência e do ódio, do fanatismo e do medo, do orgulho e da autossuficiência, para tornar-nos como ele disponíveis a Deus e aos outros, capazes de amar e perdoar, de ter confiança e reconstruir, de crer no ser humano, ultra-passando as aparências e as deformações.

Concluímos esta reflexão evocando as palavras do Apóstolo Pedro: “... Reconheçam de coração o Cristo como Senhor, estando sempre prontos a dar a razão de sua esperança a todo aquele que pede a vocês...” (1Pd 3,15).

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A bagagem de nosso caminho

Tende a aumentar sempre mais a mobilidade das pessoas que se põem a caminho, movidas pelos mais diferentes mo-tivos. Às vezes é uma semana pesada do corre-corre de uma grande cidade que reclama uma saída ao litoral; às vezes são os negócios que obrigam viagens próximas ou distantes, de mais dias, menos dias. Enfim, a bagagem de nosso caminho é sempre necessária para o mínimo de conforto. Faz parte de nosso mundo pessoal ou familiar. Não podemos ignorar as necessidades primárias de nosso vestir, de nossa higiene pessoal e de nossa proteção.

Esquecer a bagagem, ou perdê-la no caminho é sempre um desconforto e uma preocupação. A sensação de quem desce de um voo e não encontra mais sua bagagem é parecida com a de quem se vê sem chão debaixo dos pés. Ainda que se tenha toda a possibilidade de resgatá-la, mesmo assim o fato nos deixa mal.

A bagagem de nosso caminho, para alguns, é pouca e simples, mesmo que a viagem seja longa e por muito tempo. Para outros, é enorme e complicada, mesmo que a viagem seja breve e por pouco tempo. Há bagagens de todos os jeitos que revelam a mentalidade dos peregrinos. Conheci um intelectual que vivia lendo livros, e não saía sem levar sua minibiblioteca na bagagem. A obsessão por livros era tanta que, facilmente, esquecia as roupas, calçados e material de higiene.

Um fato real me foi narrado por um destes viajantes que, antes de partir, entulhava seu carro de tudo o que era possível, incluindo, na bagagem, o seu cachorro de estimação.

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Num entardecer de neblina, indo para um lugar de descanso, perdeu os rumos e desceu ladeira abaixo, demolindo tudo, incluindo a morte do seu cachorro. Alguém viu o acidente e foi ao encontro para socorrê-lo. Lá estava o acidentado gritando: “Perdi meu cachorro! Perdi meu cachorro! Não sobrou mais nada!” A pessoa que o socorreu, perguntou: “Estás vivo? Es-tás bem?” O infortunado respondeu: “Sim! Mas perdi tudo!”

Passado o susto da ocorrência, o carro foi guinchado e levado a uma oficina; o viajante foi socorrido, voltando de-pois para casa. Quando serenou o tumulto interior, o viajante deu-se conta de que não basta levar cachorros de estimação pelo caminho, nem muita bagagem. É preciso providenciar outro tipo de bagagem no caminho da vida, algo que lhe dê segurança e garantia na viagem da existência, com a qual podemos chegar e nos apresentar diante de Deus, sem medo de perdê-la, nem depreciá-la. De um acidente acordou para a busca de uma sincera espiritualidade.

Portanto, é fundamental acolher a sugestão de Jesus Cristo: “Não ajunteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferru-gem destroem e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, ajuntai para vós tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, nem os ladrões assaltam e roubam. Pois, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Mt 6,19-21).

A bagagem da vida não é guardada em malas, nem carregada em carros, nem mesmo na mochila dos ombros. É a bagagem de uma vida rica de sentido, de um coração impregnado de valores humanos e cristãos.

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A morte com rosto de festaEste artigo, para mim, é especial porque brota de um acon-

tecimento e uma experiência familiar muito querida. Jamais a esquecerei! À primeira vista parece mostrar o lado avesso da festa. Na verdade, porém, confirma até onde a fé pode dar rosto de festa aos fatos da vida.

Depois de três anos de enfermidade, meu pai foi acolhido pela irmã morte, fazendo a sua Páscoa definitiva. Naquele dia a intensidade da fé, com a qual ele viveu, contagiou a todos os que lhe prestaram a última despedida.

A Missa celebrada no momento da despedida, foi con-celebrada por um grande número de Freis, meus irmãos da Família Capuchinha. Uma multidão de amigos e parentes veio confirmar a solidariedade.

O Coral da Igreja Imaculada Conceição de Caxias do Sul-RS se fez presente para cantar hinos de esperança e ressurreição. Por coincidência, há pouco havíamos gravado o CD, próprio para exéquias: “Vida agora e sempre”, com a Paulinas Comep. A Missa foi realmente um forte momento Pascal.

Após a Missa, fomos ao cemitério para a despedida e a bênção do túmulo. Lá foi outro momento no qual consegui-mos entender melhor a parábola do “grão de trigo lançado na terra” que não morreu. Nosso pai foi acolhido pela vida eterna. Terminada toda a celebração, acompanhei minha mãe no caminho de volta à casa. No trajeto ela me comentava: “Que bonito o enterro de teu pai!... Foi uma festa! Quando eu morrer, gostaria que fizessem uma festa parecida”.

Um enterro com rosto de festa, parece ser um acontecimento raro. É mais fácil e comum que algumas festas terminem em

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enterro. Quando se preza pouco a vida, brinca-se com ela e, por não gostar de brincadeira e aventura, a vida termina se vingando e nos enterrando na tristeza e no desespero. Quando se preza a vida com o argumento da fé, consegue-se revesti-la de tanta dignidade, que até a morte passa a se tornar uma festa!

Pensei, e ainda penso... no sentimento e nas palavras de minha mãe que, também recebeu uma festa na sua partida. Somente a fé pode dar rosto de festa, quando se consegue ver o lado certo da vida e da morte. E isto só é possível a partir de Jesus Cristo, que veio para ser luz no percurso da vida e no abismo da morte. Nele, até a morte trocou de nome e passou a ser vida ressuscitada.

A fé não esconde o lado trágico, nem traumático do sofri-mento e da morte, mas lhe confere um atestado de garantia de que a última palavra é da vida. O próprio Jesus viveu a angústia do abandono e da agonia, mas, na entrega à vontade do Pai garantiu a maior festa de vitória, a festa de todas as festas. Aleluias festivos ressoam em todas as partes da terra. Cristo ressuscitou!

A fé faz ver e motiva a tecer o lado certo da vida e da mor-te. É o único argumento que pode conferir dignidade, festa e grandeza, superando a tendência natural da depreciação de nosso natural processo de desgaste. “Mesmo se o nosso homem exterior vai se arruinando, o nosso homem interior, pelo contrário, vai-se renovando dia a dia” (2Cor 4,16).

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A morte, acontecimento de cada um

Como não há vidas iguais, também não há mortes iguais. Mesmo que muitas vidas sejam ceifadas num mesmo acidente, a morte colhe cada pessoa em seu momento existencial único e diferente. Esta passagem, cada pessoa a faz sem acompa-nhante, nem acusador, nem defensor. A máxima solidão é experimentada no morrer de cada um. Nesta solidão da pas-sagem, a morte se torna bendita, porque passa a ser a única porta pela qual se pisa o eterno chão da plenitude do amor.

Nossa condição humana é marcada permanentemente por nos sentirmos sempre diante do horizonte da morte, que dá às nossas ações uma marca de transcendência e valor único. Estamos sempre diante de um espaço de tempo limitado. Esta verdade é que vai dando valor a cada ação, cada opção e cada compromisso. O horizonte finito de nosso viver não nos permite esbanjar a oportunidade da vida com seus momentos oportunos.

Mal comparando, o que dá relevância e significado a cada jogada de um bom atleta numa partida de futebol, é o limite do tempo. Um tempo indefinido para uma partida tiraria totalmente a garra, a determinação e a luta por uma vitória. Por saber o limite do tempo é que torna o atleta aguerrido e desafiado em seu desempenho. Diante da caducidade da vida, a liberdade se concentra e se aguça para que os atos da vida tenham consistência, como investimento de eternidade.

Por mais que se queira definir a morte, toda a lógica humana perde sua capacidade. Na Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II “Alegria e Esperança” n. 18, afirma-se: “Diante

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da morte, o enigma da condição humana atinge seu ponto alto... A semente de eternidade que a pessoa leva dentro de si, irredutível a só matéria, insurge-se contra a morte. Todas as conquistas da técnica, ainda que utilíssimas, não conseguem acalmar o homem”.

Por ser um acontecimento de cada um, uma passagem pessoal não há como negar a angústia humana diante da morte. A própria Bíblia está impregnada da angústia de morrer. O próprio Cristo não foi poupado da angústia em seu momento final da crucificação. Sentiu-se abandonado por todos, até pelo Pai.

Ninguém de nós consegue lembrar, nem descrever o que aconteceu em nosso parto, quando nascemos para esta vida. Mesmo assim não se nega o acontecimento traumático, por deixarmos o ventre seguro da Mãe e sairmos para um mundo antes inimaginável. Bem maior e mais intenso é o momento crítico do segundo parto, do tempo para a eternidade. É por este motivo que, na caminhada da vida, vamos nos tornando os parteiros de nós mesmos.

Na passagem do tempo para a eternidade, da vida presente para a vida futura, não temos como passar uma procuração a ninguém para que administre a nossa decisão final. Se nosso viver é um acontecimento que nos chama a ser sujeitos e não objetos, o nosso morrer também, e muito mais, necessita de nossa resposta pessoal intransferível. “Cada um prestará contas perante Deus da própria vida, segundo o bem e o mal que tiver feito” (cf. 2Cor 5,10).

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O sonho de subir a escada antes de morrer

Começo narrando o fato acontecido, num sábado à tarde, na igreja onde realizo o meu ministério de Pároco: A configura-ção do templo, planejado há mais de noventa anos, na França, projetou uma torre alta em sua frente. Por estar no morro Santo Antônio garante uma visibilidade singular, tanto para quem olha, a partir dela, como para quem a olha de lugares distantes e diversos da cidade de Porto Alegre.

Para subir a mencionada torre, há cento e setenta e dois degraus em forma de espiral. Antes da Missa da tarde, uma Senhora octogenária disse-me: “Frei, estou percebendo que minha vida vai chegando ao fim. Desde jovem cultivo o sonho de poder subir a escada da torre e, de lá, contemplar a cidade de Porto Alegre”. No mesmo instante eu disse a ela: “Vamos agora! Eu a acompanho!” Muito disposta ela decidiu realizar o sonho. Quem ficou com receio de sua impossibilidade fui eu. Mas, afinal, sem atropelos começamos subir a longa escada, degrau por degrau, e assim chegamos ao topo.

Ao chegarmos no terraço, esta santa mulher se emocionou e, após contemplar a cidade, disse: “Agora que eu realizei o meu sonho, posso morrer em paz!” Nesta hora lembrei-me do Velho Simeão que sonhava ver a chegada do Salvador e também exclamou que poderia morrer em paz. Evidentemente, não há comparação entre os objetivos alcançados por um e por outro. Mas é muito forte a alegria de quem aguarda, dia a dia, a realização do seu sonho e se dispõe a subir, degrau por degrau, o caminho do encontro.

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Diante da mesma escadaria com seus numerosos degraus, aconteceu com um jovem uma experiência contrária. Con-vidado pelos colegas de grupo a subir os degraus, disse que não iria, por ser difícil demais. Ficaria esperando o dia que houvesse um elevador. O pior acontece quando alguém, que se vê diante de uma escada, fica embaixo cuspindo raiva contra aqueles que a fizeram!... Sem colocar o pé no primeiro degrau, imagina chegar... e nunca chega!

Os degraus são feitos para subir!... e não se chega sem fazê-los, um a um!... Uma das grandes tentações de nossos tempos, é querer chegar ao topo da felicidade, sem fazer o esforço de subir os degraus de um processo de maturidade e conversão. Educar a vontade para conquistar, degrau por degrau, a verdadeira qualidade de vida, parece ser uma das mais urgentes necessidades.

Estamos enrolados na cultura do nivelamento por baixo, onde as escadas da vida parecem ser uma afronta à liberda-de e aos direitos de ser feliz aqui e agora. Ter sonhos bons é provocar o desejo de subir, degrau por degrau, as escadas mais altas e difíceis, de uma vida rica de sentido. À medida em que se vai concretizando os bons sonhos, com realismo e coragem, determinação e boa vontade, podemos ir nos pre-parando para morrer em paz, por termos vivido uma vida em constante ascensão.

“Quem semeia entre lágrimas, colherá com alegria. Quando vai, vai chorando, levando a semente para plantar; mas quando volta, volta alegre, trazendo seus feixes” (Sl 126,5-6).

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Flores para nossos mortosConheço uma criança da comunidade paroquial que, sema-

nalmente, vai levar flores no túmulo de sua mãe, falecida em acidente. Um dia desses, um dos funcionários do cemitério perguntou à criança qual era o motivo de sua prática semanal. Com toda a espontaneidade, a criança respondeu: “Faço isso porque sei que a mãe está viva e as flores têm vida!”

O que faz esta criança pensar assim e dar sinais do que crê é uma certeza que, antes de estar na mente, está no coração e no sangue. Como ela, multidões fazem isto em homena-gem aos que partem. No sepultamento de um jovem familiar meu, eram incontáveis as coroas de flores que lhe serviram de homenagem. Uma a uma, eram todas colocadas ao redor do caixão, transformando o cenário num verdadeiro jardim. Alguém, misturando as lágrimas com a gratidão, por tantos sinais de solidariedade, dizia-me: “Frei, nesta hora o que nos consola é a fé em Deus e a solidariedade das pessoas amigas”.

A solidariedade se confirma também na presença silenciosa e nas flores para nossos mortos. Estes são gestos simbólicos que se transformam em hinos à vida. O símbolo das flores aponta para a beleza, que ajuda superar o rosto indesejado da morte. Flores vivas em homenagem à vida, são, por si só, reveladoras de fé que transcende a aparência e apontam para uma vida que continua.

É quase impossível que um humano consiga ficar indife-rente diante da realidade da morte dos outros e da certeza da morte que já carrega consigo. Como revesti-la de flores se tudo parece espinho? Como acolhê-la com ternura, se ela nos agride radicalmente em nosso desejo de viver? Há alguns anos assisti um inédito teatro sobre a vida de São Francisco.

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Quando chegou o momento da morte, ele cantava: “Vem, ó doce morte! Traga contigo o perfume da eternidade! Vem, ó doce morte!” Na cena, então, aparece a Irmã Clara trazendo--lhe flores do campo. Ao colocá-las em seu peito, deu o último suspiro. Será isso somente poesia?

Será a prática semanal da criança que vai levar flores para sua mãe falecida, apenas uma rotina? As coroas nos velórios dos amigos, serão apenas uma formalidade de conveniência? Na verdade, creio que as flores sinalizem um pouco do mistério daquela fé escondida e silenciosa que até os descrentes podem experimentar. Se negamos que a vida continua e a eternidade habita em nós, as flores para nossos mortos não passariam de uma inútil formalidade.

Sabemos que o Cristianismo tem autoridade para oferecer o significado imenso dos pequenos gestos em homenagem à vida. Uma flor desabrochada sinaliza a semente plantada, que se sujeitou a morrer para confirmar a beleza da ressurreição no desabrochar para a fecundidade da vida. Uma poetisa ale-mã, enfrentando as angústias da sua história escreve: “Ainda tenho flores do deserto em meus braços. Ainda trago em meus cabelos o orvalho dos vales da primeira humanidade. Ainda tenho orações, nas quais ecoam os campos. Ainda sei como se vive piedosamente a tormenta e como se bendiz a água...”

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Velas acesas para nossos mortos

Dar-se conta da necessidade da linguagem simbólica da religião é um sinal de sabedoria. Não somos anjos, nem simples animais, nem demônios, nem super-homens ou supermulhe-res. Símbolos são símbolos e não simbolizados. Fazem parte de nossa linguagem comunicativa. O simbolizado é sempre surpreendente, misterioso e inatingível aos sentidos. Sabemos algo do que seja o amor, mas não temos uma definição matemá-tica, nem um acesso total ao amor. Uma flor para uma pessoa amada não é todo o amor, mas um sinal motivado pelo amor.

Velas acesas para nossos mortos não desvendam a eterni-dade no tempo, nem permitem por em retirada às sombras da morte. Velas acesas, em chama, para nossos mortos são uma linguagem aproximativa que nos ajuda a sentir a luminosidade da vida que não se deixa prender pelas trevas da morte.

Conheci uma Igreja deste Brasil que decidiu substituir as velas acesas por pequenas luzes que, ao receberem uma moeda, acendem por um determinado tempo. A intenção de quem decidiu instalar este mecanismo era boa: evitar a poluição e o estrago das pinturas do templo. Porém, a reação popular veio pelo lado do simbólico. Quem chegasse para acender uma lâmpada, não via, nem sentia nada mais do que um mecanismo frio e sem vida.

Depois de um determinado período de experiência bem intencionada, mas frustrada, o Padre se viu forçado a cons-truir um velário, em lugar adequado para favorecer o diálogo simbólico de fé. Até parece um retrocesso ao primitivo,

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quando um velário eletrônico poderia dar sinal de evolução e modernidade.

Porém, a vela acesa expressa um dinamismo carregado de sentido. É fogo acendendo o fogo; é movimento natural que o vento pode apagar e, por isso, necessita de proteção; é o tremular que acena para a movimentada e frágil caminhada da fé; é o consumir-se por uma causa nobre, sem cobrar, nem reclamar; é o acenar para a grande luz que não vacila nem se apaga.

Conheço pessoas simples, e de acentuada vivência de fé, que se posicionam diante da simbólica vela acesa e passam horas em oração e contemplação. São estas pessoas que sabem usar o símbolo para entrar no mundo do simbolizado. Por ser tão rico o mundo do simbolizado, um símbolo não se reduz a um pobre e pequeno objeto descartável, mas a algo sagrado e respeitável.

Ao acompanhar um sepultamento de uma senhora da comu-nidade, vi em suas mãos, junto ao terço, uma vela enfeitada. Um familiar dizia-me que esta era a vela de seu batismo. Ela deixou escrito, no testamento, que desejava ser sepultada levando a vela para confirmar a fé que um dia foi acesa no batismo e, na morte, passaria a fazer parte da grande luz do Ressuscitado.

Velas acesas para nossos mortos recordam e apontam para um significado maior do que uma formalidade conveniente, ou um simples objeto. “Deus é luz e nele não há trevas” (1Jo 1,5). “Eu sou a luz do mundo, quem me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). Velas acesas para nossos mortos ajudam a tornar transparente a opacidade da morte.

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Colhemos o que semeamosNão sei quem disse, nem quando disse, mas imagino que

seja muito sábia a pessoa que assim afirmou: “Todos somos livres em escolher a semente para semear, mas todos somos obrigados a colher aquilo que semeamos”. Do livro do Profeta Oséias, tornou-se popular a célebre frase que afirma: “Quem semeia vento, colhe tempestade!” (Os 8,7).

Não podemos encarar essa verdade como um fatalismo irreversível, mas todo o cuidado é pouco, quando estamos semeando no canteiro do tempo que nos é dado, como espaço de nossa oportunidade na história. Sabemos que, se um atleta não é cuidadoso e zeloso no treino, terá muita dificuldade, senão impossibilidade de vitória em qualquer partida.

No campo do mundo há muita gente agarrada ao “presen-tismo” que imagina não existir o dia de amanhã. Quando os dias se sucedem, veem-se colhendo joio em lugar do trigo, porque se enganaram na semeadura. A semente plantada hoje, em nome da liberdade do “vale tudo”, amanhã poderá nos surpreender com um “nada vale”, deixando-nos de mãos vazias, mente frustrada e coração amargurado.

Nessa história das colheitas frustradas, é comum inves-tir acusações a outros, como causadores destas desgraças. Esse tipo de procedimento parece ser uma epidemia dos irresponsáveis.

Diante de tantas situações onde se colhem frutos amargos, ouve-se, com frequência, filhos acusando pais, pais acusando filhos, alunos acusando professores e professores acusando alunos, povo acusando seus governantes e governantes acusan-do o povo. A epidemia da acusação é sempre um mecanismo

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de fuga que clama o remédio da corresponsabilidade e da participação.

Se é frustrante escolher a semente errada na hora da semea-dura, em nome da liberdade, parece ser igual ou pior a sensação de nada semear quando o tempo é propício e indignar-se com a terra, na hora da colheita, porque esta não produziu.

Conta-se que, numa região agrícola de nosso Estado, um proprietário de uma produtiva gleba de terra, gostava muito de se divertir e esbanjar. Um dos vizinhos, muito zeloso, encontrou-se com ele e lembrou-o que estaria na hora de plantar o trigo. Este logo respondeu que era inteligente e sabia se governar. Em seu calendário já havia definido fazer uma viagem turística por três meses. Ao regressar da viagem, contemplou os campos vizinhos que exibiam trigais fecundos e admiráveis.

Em sua vaidade e autossuficiência achou que podia re-cuperar o tempo perdido. Lavrou a terra e semeou a melhor espécie de trigo. Esse germinou e ia crescendo, mas na hora da colheita nada produziu, pois havia sido semeado fora do tempo. Indignado, moveu um processo contra o vendedor da semente, como se fosse o culpado de sua frustração. Além de perder o trigo, perdeu a causa e o dinheiro investido com seu advogado.

A vida de cada pessoa tem seu tempo limitado aqui na terra. Cada “hoje” da vida é uma oportunidade que não volta mais. Não deixe para amanhã o que deve semear hoje, porque amanhã pode ser tarde demais.

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O limite do nosso agoraNão há como tirar de nossa existência o título: “somos

mortais!” Se, de um lado, a morte nos atemoriza, de outro, nos coloca diante de uma verdade inerente à nossa condição humana. Nós não suportaríamos uma vida indefinida, pois é o caráter finito e passageiro que confere importância e sabor às coisas deste mundo e desta história. Se pudéssemos dispor de um tempo indefinido, o conceito de cada momento passaria a ser encarado com indiferença. Não teríamos argumento para dar-lhe o verdadeiro valor. A vida assim, se transformaria num tédio insuportável.

Nós vivemos sempre diante de um espaço de tempo limi-tado. É isso que dá às nossas opções um caráter de urgência e de agilidade. Jamais teriam essa dinâmica, se não vivêssemos diante de um horizonte finito. Nossa consciência está sem-pre atenta a tornar nossa liberdade responsável pelos nossos pensamentos, afetos e opções. Deus não nos chamou à vida para sermos aventureiros, mas responsáveis pelo destino que vamos decidindo.

Uma comparação muito simples pode nos ajudar a entender isso. Pensando numa partida de futebol, damo-nos conta de que o limite do tempo é o elemento que confere toda a relevância que determina o ardor da luta na conquista da vitória. Dentro do espaço de tempo que os atletas dispõem, investem todos os recursos e capacidades para conquistar o troféu.

A experiência do atletismo também era simbólica para o Apóstolo Paulo: “Nas corridas de um estádio, todos correm, mas bem sabeis que um só recebe o prêmio. Correi, pois, de tal maneira que o consigais. Todos os atletas impõem a si mesmo

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privações; e o fazem para alcançarem uma coroa corruptível. Nós o fazemos por uma coroa incorruptível” (1Cor 9,24-25).

A vida humana é um instante no fluir do tempo, mas este instante é de absoluta importância para nós. São as nossas decisões de cada dia que vão tecendo e preparando a definitiva decisão. O que marca a nossa condição humana é a vigilância de quem se sente sempre diante do horizonte da morte. É ela que confere um caráter de transcendência e irrepetibilidade às nossas ações. Mesmo fazendo as mesmas atividades diárias, nada repetimos. Cada ato é novo e cada dia é novo e único.

Pensando no limite do agora somos também chamados a pensar no que vem depois. O depois será tão melhor, quanto mais o agora for assumido e vivido com criatividade, dina-mismo e amor. De agora em agora, vamos passando para o depois e, a partir do agora e do depois, edificamos um viver que se projeta para a plenitude na eternidade. O merecido e verdadeiro título de “imortal” não parece ser aquele que a cultura consagra. Imortal é quem procura edificar com amor uma existência doada à causa da vida.

Penso ser justo pensarmos no limite de nosso agora, não para lhe dar pouco valor, mas entendê-lo e acolhê-lo como dom precioso, único e irrepetível e como responsabilidade de nossa liberdade. Serei agora os meus sonhos de amanhã, e serei amanhã o que plantei agora.

VIDA

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Atentos cuidadores da vida“A primeira coisa que se pede a nós, cristãos de hoje, é

que amemos o nosso tempo... Cada um de nós deve descobrir

a responsabilidade, a dor e o júbilo da nossa hora” (Cardeal

Pirônio). Não é difícil imaginar que outros tempos seriam

melhores para acertar a vida e preparar uma morte feliz. No

entanto, bem morre, aquele que bem vive no seu tempo, sua

oportunidade.

A tentação de fugir e deixar que passem no vazio os nos-

sos dias é uma das causas mais fortes do medo da morte e do

desperdício da vida. Para bem viver e fazer da morte o passo

para a plenitude, precisamos impregnar de amor e sentido o

nosso dia a dia.

Paulo Claudel, grande escritor francês, nos diz que para

compreender uma vida, como para compreender uma paisa-

gem, é necessário escolher bem o ponto de vista. Para nós,

humanos, o melhor ponto de vista é a morte. A partir da morte

avaliamos o conjunto dos acontecimentos de nossa história e

a qualidade de nossas escolhas. Em que vale a pena investir?

O que mesmo permanece para sempre? O posicionamento

diante da vida muda conforme o posicionamento da morte e

vice-versa.

Todo o cuidado é pouco para que a nossa liberdade vá se

adequando à vontade de Deus, pois esta é a vontade que mais

nos convém. Confiar a Deus o sentido da vida é encontrar

nele o sentido da morte. Isto é possível quando se cultiva uma

verdadeira espiritualidade, sem a qual nos vemos mal e não

nos entendemos no viver e, menos ainda, no conviver.

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Leonardo Boff, em seu livro Saber cuidar, nos diz: “Cuidar do espírito significa cuidar dos valores que dão rumo à nossa vida e das significações que geram esperança para além de nossa morte... Cuidar do espírito é cuidar da espiritualidade, experienciando Deus em tudo e permitindo seu permanente nascer e renascer no coração. Então poderemos preparar-nos, com serenidade e jovialidade, para a derradeira travessia e para o grande encontro”.

O insistente tema da “vigilância” não é acidental. Diante de Jesus, o Mestre da vida e o vencedor da morte, é necessário mobilizar todas as nossas atenções e energias num aprendizado de discípulos capazes de tomar a cruz de cada dia e segui-lo. Comportar-nos sob o sinal da vigilância é acolher as chances de realização que a vida nos oferece constantemente nos cla-mores e indigências dos irmãos (juízo).

Vigilância é própria de quem se põe por inteiro na luta em favor da vida. Esta atenção, transformada em amor-caridade, é o segredo de uma vida bem sucedida. Vigilância é luta que prepara um grande encontro e leva a alcançar a meta.

Seremos sempre mais atentos cuidadores da vida, na medida em que vamos descobrindo seu valor em nós, nos outros e no mundo. Este valor é tão alto que custou a morte e o sangue de Cristo. Investindo neste valor que é a vida para todos é preparar o juízo favorável que garante a tomada de posse do Reino que nos está preparado.

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A leitura pascal da vidaNo percurso de nossa vida aqui na terra, não nos custa cercar

de encantamento os fatos extraordinários e positivos que nos atingem. Também é fácil nos sensibilizar por acontecimentos tristes e dolorosos que podem nos surpreender. Diante de uns e outros, nem sempre sabemos o que dizer e o que pensar, mas temos consciência do que sentimos.

Os dias vão se sucedendo, as semanas, meses e anos tam-bém. Num piscar de olhos o tempo se vai. Nosso viver aqui na terra tem os dias contados e os cemitérios registram as datas de nascimento e de morte de todos os que passam por aqui. O que aconteceu neste espaço de tempo aqui vivido? Como foi a intensidade desta existência única, intransferível e insubstituível? Eis a questão!

Aqui aprendemos a lidar com coisas e máquinas; vamos treinando habilidades que dominam a natureza e transformam cenários; acompanhamos fatos de uma extremidade a outra da terra em poucos segundos; aprimora-se o domínio da ciência e da técnica e novas invenções facilitam os meios ao nosso alcance. Porém, como é difícil aprender a ler o simples mistério de nossa vida cotidiana, desde o amanhecer ao por do sol!

Geralmente, quando se pergunta a alguém: “Como vai? Ou como está?” ouve-se a resposta: “Vamos indo!...” E assim a vida vai! Com razão alguém escreveu num para-choque de caminhão: “O importante não é somar anos à vida, mas vida aos anos!” Ter consciência e dar relevância aos momentos de nosso viver, ao que somos e fazemos, é um grande atestado de sabedoria. A vida não é um suceder-se de improvisos e empurrões.

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Nós cristãos temos uma chave de leitura para a vida e os fatos. Temos uma luz que incide no cotidiano sem oscilar. À luz do Mistério Pascal de Cristo, podemos aprender a fazer a leitura pascal da vida, sem nada perder, mas tudo a ga-nhar. Paulo apóstolo confirma esta dinâmica pascal da vida quando diz: “Mesmo que o nosso físico vai se desgastando, o nosso interior, pelo contrário, vai se renovando cada dia... O que é visível é passageiro, mas o que é invisível é eterno” (2Cor 4,16-18).

É natural chegarmos à noite, após um dia de trabalhos, preocupações e ocupações de todo o tipo, colocarmos a cabeça no travesseiro para o justo descanso. Nesta hora, não basta dizer a si mesmo: “O que passou, passou!” Também não é bom encerrar o dia levando para o sono o gosto amargo de nossos problemas enfrentados. Se treinarmos a leitura Pascal da vida, vamos percebendo que a alternância vida e morte não é uma fatalidade, mas um processo de gestação que pode se eternizar no amor nos passos do Crucificado-Ressuscitado.

Mesmo experimentando nossas humanas contradições, onde se alternam erros e acertos, êxitos e fracassos, saúde e doença, vitórias e derrotas, amores e desamores, sabemos que a última palavra é sempre da vida e não da morte. Com os olhos fixos em Jesus, nos entenderemos mais e melhor e aprenderemos a conviver com este mistério de vida que habita em nossos corações.

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A morte provocadora da vida

Este título pode parecer estranho e complicado. Refletindo e meditando no dia de finados, surgiu-me esta reflexão que decidi escrever. É possível que algum leitor discorde, ou duvide desta verdade. Se acontecer, creio que haja razões para isso. Para tanto vamos pensar juntos. Quando se fala em morte, logo temos a ideia de que seja o fim de tudo. Terminou a ação, os recursos humanos se foram, a medicina não tem o que fazer senão registrar a causa do fato. Enfim, revestimos a morte como a realidade que tudo paralisa.

Olhando com realismo, sabemos que o sofrimento e a morte são realidades humanas que estão sempre provocando a capacidade científica para encontrar soluções, remédios e cuidados para que as pessoas tenham qualidade de vida e longevidade em sua existência aqui na terra. Viver mais, viver melhor, viver sem morrer, parece o sonho motor que mais impele reais investimentos de tempo, capacidades, meios de defesa e mesmo bens econômicos.

Apesar de tanto empenho, tantas descobertas, tantos êxitos, tantos recursos e tantos discursos, a morte continua sendo inevitável para todo o ser humano. Se a razão se vê sem ar-gumentos ou até derrotada, se os apegos e afeições encontram barreiras inexpugnáveis diante da morte, o coração e a raiz do ser da cada pessoa, continua se sentido fortemente provocado pela morte.

Como nos certificamos desta provocação tão forte que habita em nós? Como podemos atribuir à morte, aparente-mente inerte, tamanha força provocadora? Certamente essa

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inquietação que nos acompanha e habita as profundezas de nosso ser, não é uma realidade circunstancial, mas essencial. Nós não queremos morrer! Nem queremos que morram aqueles e aquelas que amamos e nos amam.

Nossa condição mortal nos provoca para a imortalidade. A eternidade nos provoca a superar os limites do tempo. Toda a questão está em nos dar conta de que Deus nos chama para a “vida em plenitude”. E a plenitude não se fecha no limite do tempo e nem do espaço. Somos mais! Nosso viver é maior do que o período de tempo que aqui vivemos e datamos em nossos túmulos. Teimosamente queremos que nossa vida continue e se eternize.

Neste anseio incontido de eternização de nosso viver, há um único investimento que garante o êxito. São João da Cruz dizia que nós seremos julgados pelo amor. Na vida e na his-tória, tudo passa, mas só não passa o amor.

O amor tem muitas faces. Revela-se na paciência, na fide-lidade, na bondade, na generosidade, no perdão, na ternura, nas muitas obras de misericórdia, na alegre participação da comunidade, na oração, na acolhida dos sacramentos e na celebração do Mistério Pascal de Cristo, que se renova em cada Missa participada.

Deixar-nos provocar pela morte, significa encostar a nossa vida com nossas cruzes e luzes, limites e superações, naquele que deu a maior, melhor e definitiva resposta à provocação da morte: Jesus Cristo, o Crucificado-Ressuscitado. Amém!

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Esperança, atitude criadora da vida

Dizem os estudiosos que a pior crise do nosso tempo não é econômica, nem social e nem política, mas a crise de esperança. Se esta, como atitude criadora da vida, está em crise, o próprio dinamismo da vida se vê ameaçado. Daí a constatação real de que estamos, hoje, ameaçados pela cultura da morte. Não nos é difícil constatar que andamos oscilando entre o entusiasmo e o desencanto diante da vida, entre a euforia pelo avanço técnico e a impotência diante do destino, entre o sentimento de domínio da natureza e a deteriorização do meio ambiente.

Não nos é possível viver sem esperança ou sem esperanças. Sejam elas vitais ou triviais, esperanças pequenas ou grandes, a curto prazo ou a longo prazo. É evidente que cada tempo tem seus acertos e seus erros, suas esperanças e suas decepções, seu desejo de viver e seus cansaços existenciais, seu dinamismo de criatividade e suas acomodações. Conhecer as aventuras da esperança é envolver-se na íntima aventura do ser humano no que tem de admiração e desconcerto.

A esperança está profundamente enraizada no coração humano. Gabriel Marcel, um filósofo cristão, dizia que a es-perança é a matéria da qual está tecida a nossa alma. Mesmo que as previsões do futuro humano não sejam das melhores, ninguém arranca da alma humana a força criadora da espe-rança. Continua verdadeira a frase dos antigos: “A esperança é a última que morre”.

A esperança como atitude criadora da vida necessita supe-rar o pessimismo reinante e a desconfiança da vida cotidiana.

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Esta esperança desponta e se renova numa constante relação com a fé e a caridade. Cada uma das virtudes teologais fe-cunda a outra para um dinamismo de vida incontida que vai se eternizando no amor.

Não é em vão que a simbologia da esperança é uma âncora. Ela é a âncora de todas as virtudes, o apoio interior necessário, não só porque salva do desespero o pobre no deserto, mas também porque é o apoio de todos os que caminham na fé e se dirigem a Deus numa atitude de busca e de agradecimento. A fé põe a pessoa a caminho, mas a esperança o mantém e o impele na marcha, mesmo que seja depois a caridade que decide as leis do jogo do homem peregrino.

A esperança mantém em tensão a pessoa de fé e o projeta para o futuro. Graças à esperança, a vida humana se transforma em busca e em desejo infinito. Não ter mais nada e ninguém a esperar é o caminho da anulação do mais precioso potencial que a vida possui como dom e responsabilidade.

O desejo de infinito que sempre nos impele para o mais e o melhor, não é uma paixão inútil, nem um ímpeto psicológico, mas uma força e um impulso que Deus mesmo imprimiu no ser humano. Santo Agostinho viveu esta realidade e a expressou quando afirmava que o nosso coração anda sempre inquieto até que não repouse no Senhor. Porém, necessitamos cuidar para não nos equivocar, imaginando que algo finito venha saciar nossa sede do infinito.

Com o olhar fixo no futuro, o Cristão administra o presente e impregna de sentido tudo o que faz e tudo o que é.

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Missão cumprida um segredo de vida

Não há como negar que os dias da vida se sucedem e nós passamos pelo tempo como nossa oportunidade. Se a vida é um chamado que é fruto do amor confiante de Deus a cada pessoa, nela está concomitantemente uma missão a ser cum-prida no tempo que nos é dado na história. Insistimos em afirmar que ninguém vem ao mundo por nada e menos ainda para fazer o mal.

Quando o profeta Jeremias recebe a missão de ser profeta para as nações, ele responde a Deus: “Ah! Senhor Deus, não sei falar, sou uma criança”. O Senhor lhe respondeu: “Não digas: ‘Sou uma criança’, pois a quantos eu te enviar irás, e tudo o quanto eu te mandar dizer, dirás. Não tenhas medo deles, pois estou contigo para defender-te” (Jr 1,6-8).

Quando Moisés recebe a missão de libertar o seu povo no Egito, resiste e tenta se justificar por ser gago. Mas Deus in-siste e lhe garante a ajuda de seu irmão Arão, homem de boa eloquência. Até a humilde jovem Maria, ao ser escolhida para a missão de ser Mãe de Jesus, se dá o direito de questionar o Anjo. Deus não chama ninguém para pouca coisa. Quem se apequena e tenta diminuir a responsabilidade da missão é a pessoa. Ao natural é sempre mais fácil se acomodar e se justificar.

Não podemos esquecer que entre os humanos há também um instinto de morte que, ao natural tenta anular os outros no êxito de sua missão, para garantir uma autopromoção. O êxito da missão não vem pela medida da quantidade, mas pelo nível da qualidade e magnanimidade das intenções, das

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decisões e do amor. Bem dizia a Madre Tereza de Calcutá: “Em geral, não temos oportunidades de fazer grandes coisas, mas sempre podemos fazer as coisas, mesmo pequenas, com grande amor”.

Há situações de duras provações, enfrentadas por pessoas e famílias que acompanham com carinho a enfermidade, e a morte de pessoas queridas, que podem ser amenizadas com uma simples expressão: “Missão cumprida!” Quantas vezes já comprovei o efeito positivo desta certificação. A certeza da missão cumprida gera paz, alegria interior e ânimo de conti-nuar. Porém, quando se abandona a missão a ser cumprida, logo vem o desconforto e até o remorso de não ter feito o que se devia fazer a alguém que era merecedor.

Citei o exemplo acima para confirmar o quanto a vida cobra de nós no cumprimento da missão, mas também o quanto com-pensa administrar, cada dia, procurando fazer com dedicação o melhor que nos cabe fazer. Omitir-se em assumir a própria missão é caminhar para o vazio de uma vida sem sentido.

Na proposta das Bem-aventuranças que o Cristo apresenta, está o caminho para a missão cumprida, como segredo de vida. O Papa Francisco falando aos jovens da Holanda diz que as Bem-aventuranças são o segredo para uma vida nova e intensa. Por que “viver sem fé, sem um patrimônio para defender, sem sustentar uma luta constante na missão, não é viver, mas apenas sobreviver”.

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A arte de saber festejarFestejar faz parte da natureza! Já ouvi tanta gente dizendo:

“Meu cachorro de estimação faz festa quando chego em casa; o papagaio canta e chama meu nome, quando me aproximo; a natureza festeja a chegada da chuva e o sertão começa florir; a primavera é a maior festa da natureza!” etc. Realmente a dimensão festiva é inerente a este universo criado por Deus. O Deus da festa fecunda a vida e a vida se expressa real, ou simbolicamente festejando e acolhendo o Criador.

Se todos os seres criados festejam, a pessoa, carregada de dinamismos, criatividade e consciência, mais do que todos, necessita fazer festa. Temos necessidade de fazer, agir, trabalhar e construir. Temos um potencial de saber que nos move ao conhecimento mais diverso e surpreendente. Compreendemos que nosso viver implica em aprender adorar, a aperfeiçoar o senso estético e cultivar o riso e o lazer. Porém, não podemos deixar de dar a devida importância ao direito de festejar.

Não somos só razão, só trabalho, ou só adoração. Não so-mos só palavra, sentimento ou um corpo mecânico. Somos também festa, fantasia e criatividade. A dimensão festiva é um direito da vida e um dever de fazê-lo acontecer com toda a elegância possível, para que a festa nos torne mais integrados com a nossa identidade e a nossa convivialidade.

Tanta gente entende o direito da festa e o jeito certo de fazê--la acontecer. Criam-se rituais; enfeitam-se espaços; apela-se para a música como linguagem de animação; promovem-se banquetes requintados ou simples; organizam-se eventos de todos os tamanhos para que o direito à festa esteja ao alcance de todos. Afirma-se também que a festa dos pobres, mesmo com o mínimo, proporciona o máximo de alegria.

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Há festas espontâneas, onde ninguém é o dono da festa. Acontecem como expressão de uma alegria partilhada, onde todos vão se tornando os donos da festa. Há vitórias deseja-das, mas incertas. Quando estas acontecem o contágio dos vitoriosos se encarrega de fazer acontecer a festa. Um exemplo típico acontece quando se entra na torcida do próprio time e, no final do jogo, é garantida a vitória. O mesmo acontece quando se investe por um candidato de confiança e este che-gando ao final da contagem das urnas, garante a eleição. Ali vão se criando os jeitos de festejar.

Quando alguém promove uma festa e pensa nos convidados, além de garantir um momento aprazível em todos os sentidos, pensa no melhor, prevenindo-se para não passar qualquer vergonha no final da festa. Dentro deste clima de festa, lem-bramos de Maria e Jesus nas Bodas de Caná. Ali acontece o primeiro milagre de Jesus, provocado pela sensibilidade de sua Mãe, ao perceber a vergonha da falta de vinho. “Eles não têm mais vinho!” Jesus realiza seu primeiro sinal messiânico em ambiente de festa, porque ele veio para impregnar a vida da nova festa do Reino. Na festa do Reino, ninguém mais vai passar vergonha, nem chorar, nem revestir-se de luto e derrota.

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Resgatar a festa dominicalNão é bom viver de saudades, mas é bom ter saudade das

experiências que marcaram a vida positivamente. Uma das boas lembranças que cultivo é o modo como vivi o Domingo na minha infância. Já o dia de sábado começava trazer os ares e o gosto da festa dominical. Encaminhava-se tudo, para que o dia seguinte fosse vivido no aconchego familiar e na celebração da comunidade. Sabia-se que o Domingo era um dia sagrado e diferente.

Os tempos foram passando, as transformações foram acontecendo, as mentalidades foram mudando, os meios evoluíram, mas o sentido original do Domingo não mudou. O rigorismo da lei da obrigatoriedade da Missa Dominical e as intrigas familiares por sua observância, foram machucando o verdadeiro rosto do Dia do Senhor. O tom impositivo da obrigatoriedade, sem motivações, desgastou muito a imagem do Domingo. A Igreja, porém nunca cessou de publicar o seu sentido benéfico e verdadeiro à vida humana e à sociedade.

Em lugar de ser um simples feriado, o Domingo precisa ser acolhido como tempo favorável à vida para fazer a experiência mais elevada da dignidade humana. Por ser a Páscoa semanal do Cristão, o Domingo é o nosso dia mais precioso. A ele aplica-se a exclamação do Salmista: “Este é o dia que o Se-nhor fez: exultemos e cantemos de alegria” (Sl 118(117),24).

Antes das mais diversas manifestações festivas domi-nicais, o Domingo deve provocar a festa na consciência e no coração da pessoa. Sendo assim, não passaremos para a segunda-feira, como se nada tivesse acontecido no dia an-terior. A segunda-feira necessita carregar uma bagagem de

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novas motivações de vida e de fé para podermos sustentar a coragem da luta e o sentido do cotidiano.

O Domingo celebra o início da “nova criação” (cf. 2Cor 5,17); vive e revive a ressurreição de Cristo e nele a nossa sucessiva Páscoa da vida, celebrada no momento Eucarístico semanal. Um autor do século IV, numa homilia dominical dizia que o “dia do Senhor” é o “Senhor dos dias”. São Je-rônimo afirma: “O Domingo é o dia da ressurreição, é o dia dos cristãos, é o nosso dia”. E o Concílio Vaticano II deixa claro que o Domingo é “o principal dia de festa”. Foi assim estabelecido não só para dividir o ritmo do tempo, mas para nos revelar o sentido profundo do tempo.

Concluo este artigo, citando o Beato João Paulo II: “É Cristo quem conhece o segredo do tempo e da eternidade e nos entrega o ‘seu dia’, como um dom sempre novo do seu amor. É preciso implorar a graça da descoberta sempre mais profunda deste dia, não só para viver em plenitude as exigências próprias da fé, mas também para dar resposta concreta aos anseios íntimos e verdadeiros existentes em todo o ser humano. O tempo dado a Cristo, nunca é tempo perdido, mas tempo conquistado para uma profunda humanização das nossas relações e da nossa vida” (Carta apostólica Dia do Senhor).

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Ninguém vem ao mundo por nada

Como ressoaria ofensiva a atitude de alguém que chegasse a nós e nos dissesse: “Você veio ao mundo por nada!” Uma expressão assim não estaria apenas nos ofendendo e ameaçando nos anular, mas também negando a decisão amorosa de Deus de nos chamar à vida e confiar em nós.

Se é ofensiva a expressão: “Você veio ao mundo por nada”, pior ainda seria admitir que Deus envie ao mundo pessoas para fazer o mal. Na realidade somos livres e, como tais, vamos afirmando nossa presença construtiva ou destrutiva. Porém, ao optarmos pelo mal teremos que prestar contas a quem nos chamou para o bem.

A vida de cada ser humano que é gerado e nasce não é um acontecimento acidental nem neutro. Com a vida gerada começa o milagre de um chamado que se antecipa a toda liberdade. “Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu já te conhecia. Antes de saíres do ventre, eu te consagrei” (Jr 1,5).

Creio firmemente, que o começo do ato de fé deva dar-se conta desta iniciativa de amor que nos distingue com um cha-mado tão singular. Como é nociva a ideia de que, ao nascer uma criança, nasce mais um ou mais uma. Para Deus não há mais um e nem mais uma. Cada pessoa é única no dinamismo de seu amor criador e criativo. Junto com o ato de fé neces-sitamos iluminar o milagre de cada vida que vem ao mundo.

Na medida em que vamos descobrindo e acolhendo a con-fiança amorosa de Deus em relação à própria vida, fica mais fácil aprender a olhar o outro com sua específica vocação. Iluminando o próprio viver, vamos acendendo luzes para

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identificar a dignidade específica de cada pessoa com quem convivemos. Viver e conviver não são dois acontecimentos, mas um só. Quem reconhece a grandeza de seu viver, vai con-seguindo entender a surpreendente necessidade de conviver em harmonia.

Geralmente por dentro de uma convivência tumultuada, há um conceito errado da própria vida. Não é por nada que Cristo ordena que se ame a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.

O mesmo chamado original de Deus à vida, continua eco-ando no viver cotidiano de cada um. Deus não faz greve de silêncio e nem se torna indiferente a cada filho que chamou. Não há um dia em que Deus me chama e, quando peco, Deus se cala. No coração da vida o amor é sempre atual e renovador. A sociedade ocidental, muitas vezes, vai colocando de lado as pessoas na medida em que avançam na idade.

A vida da pessoa não é um objeto que se avalie pela utilidade ou inutilidade. Não há vidas sobrando. Ninguém está por nada aqui nesta terra. Cada pessoa tem uma missão a cumprir. Num tempo em que se dá tanta atenção aos meios de comunicação e os queremos sempre mais sofisticados, necessitamos resgatar a valorização da vida de cada pessoa como o maior e mais sagrado bem existente sobre a terra.

Na verdade, ninguém vem ao mundo por nada, menos ainda para fazer o mal. Cada vida é querida por Deus e a cada pessoa há uma confiança reservada no decurso da vida.