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FREI EUSÉBIO, BIOGRAFIA E MERCADO RELIGIOSO- ACÚMULO DE
CAPITAL SIMBÓLICO E AÇÕES PASTORAIS NA CIDADE DE MARACAJÁ
(1956/1973)
Lúcio Vânio Moraes
Mestre em Educação (UNESC) e Doutorando em História Cultural (UFSC)-
Bolsista do FUMDES.
E-mail:[email protected]
Gladir da Silva Cabral
Doutor em Língua Estrangeira-(UFSC), Professor do Curso de Graduação em Letras e
Pós- Graduação em Educação na UNESC, Criciúma-SC.
E-mail:[email protected]
Resumo: O texto analisa por meio da abordagem biográfica, acerca de frei Eusébio
Ferreto, integrante da Ordem dos Freis Capuchinhos, com sede provincial em Caxias do
Sul (RS). Esse frei, ao chegar à recém-criada paróquia de Maracajá (1956), sul de Santa
Catarina, envolveu-se intensamente com os diversos problemas da sociedade. O frei
mostrou-se interessado em divulgar suas ações pastorais, como um reflexo afinado ao
projeto de restauração da Igreja no Brasil, ao desejo da Igreja Católica em legitimar sua
predominância enquanto a detentora do monopólio religioso. Além de visualizar o
processo de normatização da Igreja em Maracajá, nota-se também a busca do frei no
sentido de acumular capital simbólico para legitimar a presença e predominância da
Igreja na sociedade.
Palavras chave: Biografia, Igreja Católica e campo religioso.
Frei Eusébio Ferreto: biografia e acúmulo de capital simbólico
Nos últimos anos houve, entre os pesquisadores da história, um
“amadurecimento intelectual” quanto ao ter, em seu corpus empírico, estudos
biográficos sobre o indivíduo. Nas palavras de Benito Bisso Schmidt (2000, p. 121),
As biografias estão na moda. Basta passar os olhos pelas listas dos livros mais vendidos e pelas vitrines das livrarias para se perceber o “boom” editorial do gênero. Literatos, jornalistas e historiadores, entre outros profissionais, têm-se voltado, com resultados desiguais, para a vida de artistas, políticos, esportistas, operários, ex-escravos, etc.
O interesse por essa nova forma de estudar o passado surge após o processo de
renovação historiográfica no campo acadêmico, que toma para análise o personagem e
suas trajetórias individuais.
No campo mais específico do conhecimento acadêmico, o “retorno” da biografia está ligada à chamada crise da “história científica”. Durante muito tempo, sob a tripla influência de Marx, Durkheim e Braudel, o biográfico, e de forma mais geral o acontecimento, foi visto como a superfície da história, o epifenômeno de estruturas socioeconômicas profundas e impessoais, de uma consciência social externa ao indivíduo e de processos de longa duração não redutíveis às existências individuais. Hoje, pelo contrário, com o descrédito das totalizações, dos modelos explicativos genéricos e das idéias de sujeito universal e de sentido da/na história, ressurge o interesse pelas trajetórias individuais. (SCHMIDT, 2000, p. 121-122).
Uma biografia que se pretenda histórica deve ultrapassar o âmbito de uma vida
particular e chamar atenção para questões de caráter mais amplo, ou seja, deve repensar
a concepção do que é o homem e sua relação com a história. Quanto a isso, Schmidt,
apresenta no seu trabalho as diversas noções de “contexto” e de “contextualização”.
Parafraseando esse autor, uma boa biografia é aquela que “insere” o indivíduo no seu
contexto, buscando relacionar o biografado (relações particulares) com sua época em
que viveu, como se o contexto fosse uma tela pronta e acabada onde se colariam os
personagens. (Idem ibidem). Ao estudar as ideias do frei, parecem que elas são apenas
dele, mas ao relacionar tais ideias com o contexto imediato, explica-se porque ele
pensava assim. A história dele é influenciada por uma história macro, embora isso não
aconteça mecanicamente; aliás ele não é neutro, é construído, mas possui suas
particularidades em Maracajá.
Do ponto de vista metodológico, o historiador deve assumir o risco das análises
desse problema, tomando cuidados necessários, principalmente aqueles que diferem a
leitura do historiador e da de um estudioso mais “descuidado” de biografias. Schmidt,
em seu texto “Construindo biografias... Historiadores e Jornalistas: Aproximações e
Afastamentos”, alerta que
Já no campo da história, apesar da aproximação com a literatura também ser marcante, a margem para a invenção é menos dilatada. Afinal os historiadores, por dever de ofício, têm compromisso muito mais cabal com sujeitos históricos concretos, que existiram na realidade e que chegam até o presente através de documentos. Ou seja, os trabalhos produzidos nesta área, para além de suas qualidades estilísticas, devem prestar contas ao “tribunal de apelação da história”: o passado e seus vestígios. (1997, p. 9).
Nessa linha de pensamento, a escolha metodológica neste texto é pela
abordagem biográfica acerca do capuchinho frei Eusébio Ferreto (1956 a 1973),
integrante da Ordem dos Freis Capuchinhos, com sede provincial em Caxias do Sul
(RS). Esse frei, ao chegar à recém-criada paróquia de Maracajá, envolveu-se
intensamente com os diversos problemas da sociedade, inclusive no campo da
educação. O frei, porta-voz da Igreja Católica nessa cidade, mostrou-se interessado em
divulgar suas ações pastorais, como um reflexo afinado ao projeto de restauração da
Igreja no Brasil, às disputas de reconhecimento após a separação do Estado, ao desejo
da Igreja Católica em legitimar sua predominância enquanto a detentora do monopólio
religioso. Dessa forma, concomitantemente ao estudo da individualidade desse porta-
voz, entende-se de forma geral os “respingos” das aspirações da hierarquia clerical do
Brasil e identifica-se o “modelo eclesiológico” do catolicismo em Santa Catarina.
Nesse sentido, além de visualizar o processo de normatização da Igreja em
Maracajá, nota-se também a busca do frei Eusébio no sentido de acumular capital
simbólico para legitimar a presença e predominância da Igreja na sociedade. Entre
outras, o pároco usa o capital simbólico para envolver a Igreja com os problemas
sociais. Isso permite elaborar leituras de que frei Eusébio tinha interesse em ofertar bens
simbólicos na sociedade a fim de que a Igreja saísse vencedora na disputa no mercado
com outras agências religiosas. Isso leva-me a questionar: De que forma frei Eusébio
interferiu na emancipação político-administrativa da cidade de Maracajá? Como deu-se
o envolvimento de frei Eusébio no setor da agricultura? De que formas deram-se as
relações entre frei Eusébio e as autoridades políticas da região? Como frei Eusébio
interferia em outros setores da sociedade? De que forma frei Eusébio trabalhava a
espiritualidade e a normatização da população católica? Como se deu o envolvimento
de frei Eusébio na construção da escola E. Básica Manoel Gomes Baltazar e a
solicitação de uma diretora religiosa? Quais os fatores que estava ocorrendo no campo
da religião em Maracajá que levou frei Eusébio a reelaborar os planos pastorais da
Igreja?
Frei Eusébio Ferreto era natural de Alfredo Chaves, no Rio Grande do Sul. A
Ordem dos Capuchinhos tem como tradição colocar no sobrenome dos freis a cidade
natal. Frei Eusébio de Alfredo Chaves, assim conhecido em documentos, textos
literários e no imaginário da população católica maracajaense, esteve na liderança como
vigário da paróquia de Maracajá por um período de 17 anos e sete meses. De acordo o
Livro Ata, em 19 de fevereiro de 1956 deu-se posse como vigário efetivo, em
substituição ao frei Cipriano de Antônio Prado, ao reverendo padre frei Eusébio de A.
Chaves. (Livro Tombo, p. 2v)). A despedida foi em 2 de setembro de 1973, deixando a
Paróquia e a Ordem dos Capuchinhos para ingressar no Instituto Religioso “Padres
Missionários de São Francisco”, com sede em União da Vitória, Estado de Paraná.
(Livro Tombo, p.29).
A cidade de Maracajá teve forte influência do frei Eusébio Ferreto para o
desenvolvimento da economia, da política, da cultura e da religião católica. Frei
Eusébio foi uma das pessoas que iniciou e incentivou o processo de emancipação
política e administrativa do município.(SCARDUELLI, 2005).
Como narrou o sr. Scarduelli, o processo de emancipação de Maracajá teve
início com o frei. O Livro Tombo coloca que em “10 abril de 1967 foi lançada pelo
Vigário a idéia de ser criado o novo município de Maracajá... houve adesão e agiu-se”
(Livro Tombo, p.23v). Nota-se que, para a concretização da emancipação do município,
o frei teve o apoio de lideranças políticas dessa localidade. Frei Eusébio enumerou as
pessoas envolvidas nesse processo: “Os vereadores por Maracajá, José Tomás da
Silveira, José Jovelino Costa encaminharam o pedido na câmara de Araranguá do
desmembramento de Maracajá depois de ter recebido total apoio do Prefeito Osmar
Nunes” (Livro Tombo, p.24).
A relação do campo religioso com a política é analisada pelo historiador Pierre
Bourdieu, que discute a manutenção e a legitimação do poder constituído nessa relação.
A religião é entendida como um sistema simbólico, logo, de poder, em que são
oferecidos bens simbólicos que estruturam conhecimentos, visões de mundo. No campo
religioso brasileiro, a Igreja Católica procurou “andar de mãos dadas” com o poder
político. A política reforça e enaltece a religião e vice-versa.
A estrutura das relações entre o campo religioso e o campo do poder comanda, em cada conjuntura, a configuração da estrutura das relações constitutivas do campo religioso que cumpre uma função externa de legitimação da ordem estabelecida na medida em que a ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política, ao passo que a subversão simbólica da ordem simbólica só consegue afetar a ordem política quando se faz acompanhar por uma subversão política desta ordem. (1974, p. 69).
Entre outras coisas, percebe-se como frei Eusébio possuía uma imagem de
autoridade e referência, pois, além de ser um guia espiritual da população, era também
uma pessoa que exercia poder na política maracajaense. O fato de possuir educação
superior, conhecimentos em diversas áreas na sociedade e, parafraseando Bourdieu, ser
detentor do “monopólio do sagrado” somava-se a outros elementos, constituindo, assim,
uma imagem positiva do frei. (Idem, p. 39).
Tal imagem de frei Eusébio, revestida do poder religioso, permitia o respaldo em
atividades que “encabeçava” para o bem do município. Nisso, o frei lutou em prol das
pessoas agricultoras, no campo da educação, da política e em outras áreas da sociedade.
Na área da agricultura, organizou juntamente com os agricultores, lideranças e
alguns comerciantes da localidade a construção de um Centro Rural, para melhor
atender os agricultores. O texto escrito diz que, no mês de dezembro de 1961, “deu-se a
Benção da pedra fundamental da sede do centro rural. Compareceram autoridades e
povo que deram seu integral apoio”. (Livro Tombo, p. 17). Em junho de 1962, por um
período de seis meses, já estava construído o centro rural, o que na visão de frei Eusébio
foi vitória para a população maracajaense. “Em 05 de Junho: inaugurou-se a sede do
centro rural que agrupa uns 200 sócios agricultores, assistidos pela ACARESC. Foi uma
vitória essa realização em que a paróquia muito tem ajudado”. (Livro Tombo, p.18).
As reflexões de BOURDIEU sobre poder simbólico permitem-nos analisar as
obras pastorais de frei Eusébio e perceber que a Igreja era detentora do poder simbólico.
Nesse sentido, os bens simbólicos construídos garantem a determinadas instituições o
poder e a legitimidade no campo religioso. Para BOURDIEU, o poder simbólico seria
uma força estruturante que construiria a realidade, procurando dar sentidos que
necessitariam ser reconhecidos como naturais, legítimos. Segundo ele:
o poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo [...] só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (1986, p. 14).
Além dessas atividades realizadas para a sociedade, frei Eusébio também
demonstrou preocupação em realizar construções na paróquia e, de forma concomitante,
oferecer amparo espiritual à população católica. Como descreveu frei Eusébio no Livro
Ata, o salão de festas já estava sendo construído no mês de abril de 1957: “em 25 de
abril deu-se início dos trabalhos para a construção do Barracão para as festas”.(Livro
Tombo, p. 5). No mês de maio do mesmo ano veio o trator do Estado para realizar um
trabalho de terraplanagem: “em 25 de maio uma máquina trator do Estado, cedida pelo
sr. Moacir veio proceder a terraplanagem para a construção do salão de festas da
paróquia”. (Idem ibidem).
A construção da nova igreja iniciou-se no mês de janeiro de 1959, dia da festa da
Padroeira Nossa Senhora da Conceição, com a benção da pedra da “tão esperada e
desejada igreja”. Conforme o Livro Tombo, observa-se que nessa festa havia a
presença de autoridades religiosas, representantes políticos da região, que foram
convidados pelo frei Eusébio, e grande número de pessoas.
Em 06 de janeiro Festa da Padroeira e Benção da Pedra Fundamental da artística Matriz nova de Maracajá. Missa celebrada por Dom Anselmo Pietrulla, Bispo Diocesano, com a Presença do prefeito de Criciúma Ado Faraco, representante de Araranguá e muito povo. Esteve presente o Ver. Padre Paulo Pietuzzelis da Scan. O discurso do Sr. Bispo foi um apelo a generosidade. Mostrou desejo de consagrar a nova matriz, que seria a primeira da diocese. Houve almoço para as autoridades e o povo tomou parte nos festejos populares abrilhantados pela banda musical de Araranguá.
Outras obras, como a construção da casa paroquial em 1966, da gruta Nossa
Senhora de Fátima em 1965, do salão de festas São Pedro em 1969 e das capelas
pertencentes à paróquia de Maracajá, também foram erigidas no período de frei
Eusébio.
Frei Eusébio, normatização de comportamentos e concorrência no mercado
religioso
A Igreja Católica, sendo liderada por frei Eusébio, procurava manter a fé
católica acesa nos féis até mesmo em períodos do ano em que os movimentos religiosos
não eram tão lembrados. Ou seja, as festividades não possuíam vínculos com o
espiritual, mas era lembrada a “festa profana”. Festa profana, no imaginário católico,
seriam movimentos não ligados aos ensinamentos de acordo com a doutrina católica, ou
seja, locais que remetem à representação da “perdição do mundo”, como: carnaval,
bares, jogos de baralhos, carreiras, bebedeiras (uso do álcool) e outros elementos não
eram aceitos pelo catolicismo, pois desviariam a atenção das pessoas da devoção dos
santos, da meditação e das orações nas capelas.
Em suma, frei Eusébio criava estratégias para chamar a atenção dos fiéis nesse
período, com visitas de pessoas religiosas à matriz, onde dirigiam estudos, os
conhecidos “exercícios espirituais”. Tais exercícios (discursos) eram prolongados
durante os dias da Semana Santa, com as tradicionais conferências de classes. O
objetivo era direcionar a atenção das pessoas para a religiosidade católica e não para a
vida profana, que enfraquece a vida espiritual. Os resultados, como veremos, eram
positivos: “Em 03 de março de 1957 início do retiro para os dias do carnaval. Pe. Frei
Afonso de Caxias, veterano, missionário Capuchinho, dirigiu os exercícios Espirituais.
A Igreja sempre lotada, mais de 400 pessoas”( Livro Tombo, p. 4).
Percebe-se que havia sempre a preocupação de desenvolver atividades na nova
paróquia em prol da evangelização na localidade. Quando terminava um movimento
religioso, logo existia a organização para promover outro. Quando se passaram somente
quatro meses do “exercício espiritual”, frei Eusébio estava fazendo os preparativos para
as “Santas Missões”. Esse evento já era muito apreciado pela população católica quando
Maracajá já era Paróquia de Araranguá.
É importante lembrar que a Igreja Católica em Maracajá nesse período se
colocava como a “mãe mestra”, protetora, intercessora da população para com Deus,
salvadora, condutora de bons costumes, e estabelecia o poder de um discurso religioso
que normatizava, fortalecendo assim a catolicidade, legitimidade e predominância na
região. Ela procurava controlar a vida espiritual das pessoas, alertando-as, cuidando
delas para que não se envolvessem com os prazeres “carnais”.
As “Santas Missões” eram uma das festividades que direcionava as pessoas em
busca da espiritualidade católica. Possuía duração de duas a três semanas e
movimentava a maioria dos fiéis católicos das capelas para sua realização. Eram dias de
palestras, procissões, missas e terços que possibilitavam ao povo católico ter maior
presença e ligação com o religioso. No imaginário da população católica, as “Santas
Missões” eram um momento de reflexão, renovação espiritual, meditação sobre
importância da evangelização de outras pessoas. Anunciar o Cristo ressuscitado a outras
pessoas da comunidade era o discurso dos capuchinhos nas suas palestras.
O historiador Élio Cantalício Serpa, que discute Igreja e poder em Santa
Catarina, nos ajuda a compreender tal preocupação da Igreja. A Igreja Católica se
representava como uma instituição criada por “direito divino”, “bíblico”. Ou seja, Jesus
Cristo fundou a Igreja. Logo, tal instituição se representava como uma “sociedade
perfeita”, sem pecado, evangelizadora, tinha condições de mostrar o caminho da
salvação para as pessoas. Por isso, era uma instituição monopolizadora do discurso
religioso, modificando os comportamentos dos fiéis. (SERPA, 1997, p. 37-38). Sendo
assim, nas reflexões de Serpa, os fiéis deveriam obedecer às normas e regras do que a
Igreja estabelecia. É notável em Maracajá, nas datas especiais que possuíam vínculo
com a religiosidade católica, como os “dias santos”, dia “das almas”, semana das
“Santas Missões” e outras, que não se poderia freqüentar locais profanos, a saber: os
bares, que incentivavam ao jogo, bebedeiras, e os salões de bailes. Essas práticas
deveriam ser abolidas, como já foi visto, pois enfraqueceriam a fé do fiel católico. E, se
havia resistência de algumas pessoas, estas seriam “excomungadas”, ou seja, excluídas
da comunhão da “Santa Igreja”. Observa-se como frei Eusébio agiu em época das
Santas Missões no ano de 1959, quando uma autoridade não respeitou seus pedidos, ou
melhor, o que a “Santa Igreja” pediu.
Na capela de Canjicas após renitente persistência ao querer realizar baile na festa do senhor Bom Jesus em tempo de missões na paróquia vi-me obrigado a amaldiçoar aquele salão, sendo propriedade do Sr. S. B, subdelegado daquele districto (sic) e promotor de outros maus divertimentos em tempos de missões, induzindo o povo fiel a muitas bebedeiras e a busca de coisas profanas.
O povo do lugar está simplesmente revoltado com a desobediência daquela autoridade. Pedi ao proprietário que parasse com os bailes, não deu importância ao que a Santa Igreja pediu, fui obrigado então a excomungar o proprietário e fechar o salão. (Livro Tombo, 1959, p.12).
É perceptível no texto acima como a Igreja possuía um projeto de
homogeneização para fabricação de “bons católicos”, pois o que não faz parte do
processo de normatização é posto para ser “examinado”, um diferente e passa ser
transformado num “caso”, objeto de excomunhão da Igreja. Nota-se que o padre não só
tem poder para excomungar a pessoa, mas até para fechar o estabelecimento. Nesse
sentido, pode-se afirmar que a Igreja possui poder simbólico de criar identidade
religiosa, constituir imaginários para os sujeitos católicos.
Frei Eusébio possuía imagem revestida do poder religioso; “sujeito autorizado”,
tanto que suas ordens, ao serem proferidas, eram acatadas pela maioria da população
católica. Era a “palavra do padre”, “o frei Eusébio quem disse isso”. E, se ele falou,
então está dito, não existe meia verdade, mas unicamente a verdade em suas palavras. A
rigor, o discurso de frei Eusébio calcava-se no aparato institucional: o saber da Igreja
Católica. Nesse sentido, os discursos pronunciados por ele eram fundamentados em uma
instituição que exercia certo poder de coerção sobre outros discursos. E, nas
perspectivas de (FOUCALT, 1999, p. 17-18), para a eficácia do discurso é fundamental
que esteja relacionado com uma verdade: os discursos proferidos pela Igreja Católica.
Além de frei Eusébio ser portador de uma verdade, ele é reconhecido no
imaginário católico como uma pessoa portadora de poderes sobrenaturais, designado
por Deus para estabelecer normas e autoridade para proferir o que é certo ou errado.
Dito em outras palavras, frei Eusébio, em seus discursos, possuía poder e autoridade
para ser ouvido e ter referência positiva por ser representante de Deus. Ora, tomando
como referência as reflexões de Eni Orlandi sobre o discurso religioso, que é marcado
por características autoritárias, pode-se dizer o locutor (frei) pertence a uma hierarquia
espiritual e o ouvinte a um plano temporal. Nesse sentido, as representações do frei
davam-lhe autoridade de seus discursos.
O padre é autorizado pela Igreja para ser a voz de Deus e proferir um discurso em nome de Deus, mas, ao mesmo tempo, é como se falasse no lugar de Deus, revelando a vontade dEle sobre o mundo. A voz do padre manifestando-se como a voz de Deus passa a ser aceita como verdadeira. (ORLANDI, 1987, p. 239-262).
Quando frei Eusébio coloca que foi obrigado a amaldiçoar o salão de festas,
fechar as portas e excomungar o proprietário daquele estabelecimento, percebe-se nele o
acúmulo de poder simbólico para falar em nome de Deus. Ora, a legitimidade de um
discurso, seu poder não está nas palavras que são proferidas, sejam lúdicas, simples ou
bem pronunciadas, mas no capital simbólico que elas representam. Na perspectiva de
Bourdieu, dialogando com Austin,
As enunciações servem tanto para “descrever um estado de coisas ou afirmar um fato qualquer” como também para “executar uma ação” porque o poder das palavras reside no fato de não serem pronunciadas a título pessoal por alguém que é tão-somente “portador” delas. O porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador. (1996, p. 89).
Orlandi definiu o discurso religioso como um discurso autoritário, onde não há
reversibilidade de fato. Todavia, para a autora, a condição para que haja discurso é a
possibilidade de reversibilidade. Então, para manter-se enquanto discurso, cria-se a
ilusão de reversibilidade.
Diríamos que essa ilusão pode ser de duas direções: de cima para baixo, isto é, Deus partilha com os homens suas propriedades; de baixo para cima, ou
seja, o homem se alça até Deus. Essas são as formas de ultrapassagem. (Idem, p.251).
O mesmo fenômeno também se percebe na prática da pregação evangélica. O
pastor prega a palavra, portanto revestido de um poder sobrenatural. E neste caso,
Locutor (o sujeito, Deus) e ouvintes (os sujeitos, homens) pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação: o mundo espiritual domina o temporal. O locutor é Deus, logo, de acordo com a crença, imortal, eterno, infalível, infinito e todo-poderoso; os ouvintes são humanos, logo, mortais, efêmeros falíveis, finitos, dotados de poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens (ORLANDI, 1987, p. 244).
Em um trabalho desenvolvido por Luís Alberto de Boni e Rovílio Costa sobre os
italianos no Rio Grande do Sul, entende-se também o poder dos discursos dos padres
nas comunidades de imigração daquele estado. Percebe-se que isso ocorreu não somente
em Maracajá, mas de forma bastante diferenciada em outras localidades do Brasil: o
poder do discurso religioso na voz dos freis.
O padre, entre os imigrantes, gozou de um status invejável, não tanto por sua pessoa – seguidamente alvo de duras críticas – como pelo cargo ocupado. Nele encontravam-se conjugados a maior cultura da localidade (muitas vezes o único indivíduo que possuía uma educação superior) e a auréola dos poderes sobrenaturais da religião; por isso, sua palavra mesmo em assuntos profanos, tornáva-se geralmente decisiva, e suas bênçãos e maldições ainda hoje são tidas como bênçãos e maldições proferidas por Deus.(BONI; COSTA, 1979, p. 116).
Os capuchinhos orientavam e exigiam comportamentos condizentes com a moral
católica romanizada, a qual, quando existiam resistências como vimos acima, punia,
expulsava e excomungava. Tal vigilância se consubstanciava em disciplina e, nas
reflexões de Michel Foucault, contribuía para constituir corpos dóceis: “Um corpo que
pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado é dócil.”(2000, p. 117).
A compreensão que se faz na perspectiva de Foucault quanto ao processo de
fabricação do sujeito não se baseia em leituras econômicas, como a Igreja inculcando
para o capitalismo. Embora o trabalho de normatização da Igreja contribua para essa
questão também, o que analiso focaliza-se na área cultural da constituição do sujeito no
campo da religião, entre outras perspectivas, na fabricação do “bom católico”, devoto e
obediente das normas do catolicismo.
A historiadora Claricia Otto, que buscou compreender algumas práticas da Igreja
Católica em Rodeio – Blumenau como uma instituição panóptica, faz uma leitura
importante das obras de Michel Foucault. Tais reflexões são significativas para entender
o trabalho vigilante da Igreja Católica em Maracajá nos discursos e práticas dos porta-
vozes.
É possível aproximar alguns pensamentos de Foucault com este trabalho quando
analiso os discursos dos porta-vozes na constituição do sujeito católico dócil e religioso.
A Igreja Católica, como uma instituição que legitima sua presença na sociedade
pelas ações desenvolvidas em todos os setores, possui a auréola sobrenatural como
“perfeita”, “salvadora”, se coloca como soberana para intervir, vigiar e disciplinar os
sujeitos. De acordo com Otto,
“Foucault conceitua a sociedade de fins do século XVIII e séculos XIX e XX de ‘sociedade disciplinar’, cuja principal característica é o panoptismo”, descrito como “uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua, em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos”. (2006, p. 49).
Obviamente, Otto não analisa o panóptico de Jeremy Bentham na sua
materialidade, circunscrito na geografia como um dispositivo de poder de vigilância,
mas o panóptico no sentido da internalização do olhar externo, algo que atinge a
“alma”, introjetado no ser humano como uma “auto-vigilância” por meio da qual o
sujeito católico se percebe vigiado o tempo todo. Nesse sentido, os sermões dos porta-
vozes em Maracajá nas missas, quanto ao incentivo para as rezas, participação nas
procissões e outras normas, são discursos normativos que fabricam o que é ser
“católico”, diferenciando o “bom católico” do “mau católico”. A rigor, a intenção dos
agentes era introjetar nos fiéis, por meios de diversas práticas discursivas, o saber
católico.
Embora a Igreja tenha poder de normatizar os comportamentos por meio dos
seus projetos espirituais e materiais extensivos na sociedade, alguns católicos buscam
driblar e resistir, como foi, grosso modo, o caso do proprietário supracitado, que
continuou a fazer bailes, mesmo com a proibição do frei Eusébio durante as missões.
Isso revela que o poder não está depositado somente na Igreja Católica, mas está
presente nas relações sociais. Na obra Microfísica do poder, não existe uma teoria
geral do poder em Foucault, ou seja, um poder centralizado que respinga os demais. Por
exemplo, o poder do Estado vai passando para os demais na sociedade. A rigor,
Foucault diz que o poder não é um objeto, mas está estabelecido nas relações sociais
cotidianas. A Microfísica do poder sugere que o poder está em todos os lugares e é
como uma teia. Nessa mesma direção, Roberto Machado coloca que:
Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda uma estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede de poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças. E como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. (1989, p. XV).
A Igreja Católica, enquanto instituição disciplinadora, em suas práticas
discursivas procurava manter o cotidiano religioso dos fiéis católicos ocupados com o
sagrado, estabelecendo, assim, poucos espaços para atividades profanas. Nesse sentido,
outra estratégia para manter a população vinculada aos ensinamentos devocionais
católicos foi a criação de “locais sagrados”. Tais espaços são carregados de imagens
bíblicas (discursos e narrativas) que sustentam e legitimam, especificamente, os rituais
católicos. Um desses espaços é o conhecido “Morro da Cruz”, local venerado onde os
católicos representam seus rituais.
Na perspectiva de Foucault, o discurso está presente nas classes em geral, nas
práticas sociais, nos textos escritos, na arquitetura, nas materialidades das praças,
escolas e outros. O “Morro da Cruz” é um elemento a ser investigado pelo viés do
discurso como materialidade trabalhada por meio dos símbolos católicos. Nesse sentido,
o espaço físico também é um texto, uma narrativa que pode ser lida, decifrada e
possibilita ao historiador estudar os desejos ali depositados. Em outras palavras, a
materialidade cultural de uma cidade revela como determinados grupos, neste caso o
projeto disciplinar dos porta-vozes, pretendiam construir e solidificar um imaginário
social em uma localidade, ou seja, constituir identidade católica.
Quando Maracajá ainda pertencia à paróquia de Araranguá, desde 1950,
conhecido como “Ano Santo”, todos os anos no período da “semana santa” e
principalmente na “sexta-feira santa” eram feitas peregrinações ao Morro Mãe Luzia,
que no imaginário católico é conhecido por “Morro da Cruz”, situado na localidade de
Espigão da Toca e Espigão da Pedra. Nesse morro os católicos fazem caminhadas e
procissões com o propósito de pagar promessas por uma graça recebido. São pessoas
que receberam a cura de uma enfermidade ou um dinheiro que estava em demanda na
justiça, um emprego, um livramento de morte ou algo parecido. A maioria das pessoas
sobe o morro para lembrar o sofrimento de Cristo, ato conhecido como “penitência”.
Em quase duas décadas que frei Eusébio esteve em Maracajá, deixou marcas
registradas não só no imaginário da população católica, como registros na arquitetura
religiosa da cidade. Na ata de despedida de frei Eusébio existem informações que nos
ajudam a compreender as atividades que realizou juntamente com a comunidade na
Paróquia:
Após 17 anos e 7 meses como vigário de Maracajá, Frei Eusébio Ferreto deixa a Paróquia e a Ordem para ingressar no instituto Religioso “Padres Missionários de São Francisco”, com sede em União da Vitória, Estado de Paraná. Durante as quase duas décadas em que aqui permaneceu, entre muitas atividades espirituais desenvolvidas junto ao povo, Frei Eusébio ainda construiu a Igreja Matriz, Salão Paroquial, a Residência dos Freis Capuchinhos e foi a alma da emancipação política do município. Como é evidente Frei Eusébio deixou imensa saudade no seio do povo de Maracajá e teve a honra de sair sem deixar inimigos.(Livro Tombo, p. 29).
Tais fatores oportunizaram muitas representações do frei Eusébio no imaginário
da população católica maracajaense e de pessoas das cidades próximas. Ao perguntar
aos católicos quem foi frei Eusébio, eles respondem dizendo que foi um grande líder
religioso, homem que evangelizava, dava “remédios”, “um santo”, que “tinha prestígio
por ser religioso”, que estava envolvido com problemas sociais e políticos, benzia as
plantações, os animais, dava bênçãos nas casas, incentivava a educação e outros.
Analisando obras de pessoas que escreveram sobre frei Eusébio, como o cronista
Claudino Biff em seu livro Crônicas da Diocese de Tubarão, percebe-se que ele “foi
um homem benfazejo. Fez de tudo: teologia, evangelização, reino de Deus e curas. Fez
catolicismo e curou a gentes” (2003, p. 158-159).
Referências bibliográficas
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Fontes Consultadas
Paróquia de Maracajá. Livro Tombo (1959- 1980).
Sr. Lauro Scarduelli. Entrevista concedida a Lúcio Vânio Moraes dia 11/4/2005.