militantes, atores políticos e biografados: abdias do ... · pdf file2 o historiado e...

18
Militantes, atores políticos e biografados: Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez. MÍRIAN CRISTINA DE MOURA GARRIDO As relações raciais brasileiras e as formas como elas se consolidaram no Brasil estão no foco das discussões acadêmicas e políticas no país. O confronto não é novo, mas a forma como tem sido debatido e a visibilidade que tem ganhado são um fenômeno novo e, em grande medida, fruto de uma militância aguerrida que emergiu na década de 1970 para denunciar o mito da democracia racial e o efeito danoso que ele causa na sociedade brasileira. Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994) possuem, com toda a certeza, um espaço privilegiado nesse novo movimento negro combativo politicamente e que enxergou na esfera política o meio privilegiado de reverter o preterimento do negro no país. Vinte e um anos de diferença separam o nascimento de Abdias ao de Lélia, as experiências e os contextos em que viveram também são caracterizados por essa distância, contudo ambos se unem em prol de um bem comum: a denúncia e a superação dos danos materiais e simbólicos causados pelo racismo. O artigo que por ora se apresenta no XXVIII Simpósio Nacional de História é parte de discussões mais amplas que serão o produto final do doutoramento da autora. Efetivada a ressalva, espera-se que se compreendam as limitações do texto delineado. Mas ao mesmo tempo, que o escrito possa contribuir para o alargamento das discussões sobre raça e racismo. Para tornar o intento mais didático e a fim de explorar a relação entre os biografados, os contextos de suas vivências e como influíram num processo maior o da ampliação de direitos dos negros brasileiros -, o texto está dividido em 2 partes: a primeira com considerações metodológicas e caracterização dos autores das obras a segunda uma explanação sobre a apreensão das visões de mundo dos dois militantes dispostas nessas obras. Biografias e autobiografia: breve incursão. A década de 1990 caracterizou um boom editorial, desde então, o gênero tem se manifestado amplamente nos catálogos das editoras porque são, sem sombra de dúvida, uma literatura que agrada o público, inclusive o acadêmico. O salto quantitativo das produções já foi alvo de reflexões e vale aqui apontar algumas das considerações elencadas por elas. Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Assis, Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP.

Upload: nguyennga

Post on 13-Feb-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Militantes, atores políticos e biografados: Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.

MÍRIAN CRISTINA DE MOURA GARRIDO

As relações raciais brasileiras e as formas como elas se consolidaram no Brasil estão

no foco das discussões acadêmicas e políticas no país. O confronto não é novo, mas a forma

como tem sido debatido e a visibilidade que tem ganhado são um fenômeno novo e, em

grande medida, fruto de uma militância aguerrida que emergiu na década de 1970 para

denunciar o mito da democracia racial e o efeito danoso que ele causa na sociedade brasileira.

Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994) possuem, com toda

a certeza, um espaço privilegiado nesse novo movimento negro combativo politicamente e

que enxergou na esfera política o meio privilegiado de reverter o preterimento do negro no

país. Vinte e um anos de diferença separam o nascimento de Abdias ao de Lélia, as

experiências e os contextos em que viveram também são caracterizados por essa distância,

contudo ambos se unem em prol de um bem comum: a denúncia e a superação dos danos

materiais e simbólicos causados pelo racismo.

O artigo que por ora se apresenta no XXVIII Simpósio Nacional de História é parte de

discussões mais amplas que serão o produto final do doutoramento da autora. Efetivada a

ressalva, espera-se que se compreendam as limitações do texto delineado. Mas ao mesmo

tempo, que o escrito possa contribuir para o alargamento das discussões sobre raça e racismo.

Para tornar o intento mais didático e a fim de explorar a relação entre os biografados,

os contextos de suas vivências e como influíram num processo maior – o da ampliação de

direitos dos negros brasileiros -, o texto está dividido em 2 partes: a primeira com

considerações metodológicas e caracterização dos autores das obras a segunda uma

explanação sobre a apreensão das visões de mundo dos dois militantes dispostas nessas obras.

Biografias e autobiografia: breve incursão.

A década de 1990 caracterizou um boom editorial, desde então, o gênero tem se

manifestado amplamente nos catálogos das editoras porque são, sem sombra de dúvida, uma

literatura que agrada o público, inclusive o acadêmico. O salto quantitativo das produções já

foi alvo de reflexões e vale aqui apontar algumas das considerações elencadas por elas.

Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –

UNESP/Assis, Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –

FAPESP.

2

O historiado e especialista em biografias Benito Bisso Schmidt (1997) propõe no texto

em questão analisar como se constituiu a volta da produção do gênero e demarcar

aproximações e distanciamentos entre o produto do historiador para o do jornalista. A

vitalidade da biografia no jornalismo está segundo o autor associado ao movimento chamado

new journalism que, resumidamente, define-se pela aplicação de técnicas ficcionais a textos

que não são ficção, tais como a história de vida. No caso da história, a biografia ganha folego

com o enfraquecimento do paradigma estruturalista na academia.

Partindo da concepção de estruturalismo como uma forma de visualizar a história em

seus mecanismos mais amplos, ligados geralmente aos aspectos econômicos, era difícil de

fato na historiografia brasileira emplacar um estudo que tomasse por objeto a vida de um

indivíduo. Mesmo porque a biografia antes de 1960, ao menos no Brasil, ainda carregava o

fardo de uma visão positivista da História no qual os biografados eram os homens

excepcionais, tais como os grandes líderes políticos.

Benito Schmidt afirma que o desenvolvimento da biografia feita por historiadores foi

favorecida pelo “recuo da história quantitativa e serial e o avanço dos estudos de caso e da

micro-história” (1997, p.5). Soma-se a esse cenário, tanto no jornalismo como na história, a

aproximação desses campos com a literatura. Mas as diferenças mais elementares na produção

das duas áreas seriam: (a) o cuidado com as fontes, não apenas no seu levantamento

incansável, caso dos jornalistas, mas na transposição dessas informações ao leitor,

identificando o que pode ser obtido ou não com determinadas fontes; (b) a liberdade ficcional

maior ao jornalista, ao passo que o historiador quando deseja supor algo que não se encontra

na fonte é necessário efetivar a ressalva que o fato “talvez”, “possivelmente” deve ter se

desenrolado como o narrado; (c) o objetivo da biografia em história, em geral, associado a

apreensão de contextos e questões mais amplas do que a trajetória individual, sendo esta uma

forma de compreender parte desse objetivo.

Apenas para exemplificar essa liberdade ficcional nos textos selecionados, quando

Sandra Almada – jornalista – descreve como era viver em Franca no período próximo ao fim

da escravidão afirma “Era um privilégio poder ver através dos olhos de Abdias, que assistira

àquele momento tão significativo, e tão de perto, como transcorria a existência negra naquele

início de século” (2009, p.24 – grifos da autora).

Para Ângela de Castro Gomes (2004) “Cartas, diários íntimos e memórias, entre

outros, sempre tiveram autores e leitores, mas na última década, no Brasil e no mundo,

3

ganharam um reconhecimento e uma visibilidade bem maior, tanto no mercado editorial,

quanto na academia” (p.8). O fenômeno é apontado como resultado de três fatores: o gosto

dos leitores; a expansão de uma historiografia que aborda preocupações da esfera política,

cultural e social, e que tem se ocupado em desvendar as práticas de escrita e leitura; a

constituição de centros de pesquisa e documentação que armazenam diversos documentos

privados e públicos e que, portanto, estimulam discussões sobre a guarda e uso desses

materiais, dos quais exemplifica o CPDOC centro de pesquisa do qual é integrante.

Para Gomes estaria na preocupação do historiador ligado a escrita de si não “o que

realmente aconteceu” mas “a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa” (2004,

p.15), no caso da história de vida de militantes – seja de qualquer ordem, movimento social

negro, feminista, ambientalista, etc. – o registro de sua vida se dá exatamente pela sua ligação

ao movimento social e, nada mais natural, que a narrativa seja construída em torno dessa

preocupação do biografado, no caso, como perceberam o racismo e o que os levaram a militar

em prol de uma mudança das relações raciais em âmbito internacional, inclusive.

De acordo com Schmidt “penso ser importante destacar uma das tarefas fundamentais

do gênero biográfico na atualidade é recuperar a tensão, e não a oposição, entre o individual e

o social” (1997,p.16 – grifos do autor), a definição, vai ao encontro do que se espera das

biografias dos militantes. Nelas o indivíduo é focalizado, mas a grande questão é como eles

apreenderam as relações raciais que os transformaram, então, em militantes.

A metáfora do historiador francês Philippe Artières (1998) ilustra parte das

preocupações daquele que faz uso de biografias:

[...] Em toda família, existe com efeito o hábito de dedicar regularmente

longas tardes a reunir e a organizar as fotos relacionadas com a vida de cada

um dos seus membros. Um casamento, um nascimento, uma viagem são

objeto de uma ou de várias páginas. Não colocamos qualquer foto nos nossos

álbuns. Escolhemos as mais bonitas ou aquelas que julgamos mais

significativas; jogamos fora aqueles em que alguém está fazendo uma careta,

ou em que aparece uma figura anônima. E depois as ordenamos esforçando-

nos para reconstruir uma narrativa. Quando a foto é muito enigmática,

acrescentamos um comentário. Quando uma visita chega, começa a

cerimônia das fotos, fazem-se observações, viram-se algumas páginas

rapidamente. Acontece também, com o tempo, de algumas fotos serem

retiradas, porque são comprometedoras, porque não são condizentes com a

imagem que queremos das de nós mesmos e da nossa família. Pois o álbum

de retratos constitui a memória oficial da família; só raramente os amigos

tem lugar nele. O essencial é que em alguns minutos, uma hora no máximo,

possamos justificar o tempo passado e sua coerência. [...] (p.14)

4

Portanto, aquele que se propõe a arquivar a sua própria vida preocupa-se – consciente

ou inconscientemente – primeiro a organizar aquilo que acredita ser relevante; hierarquizar e

selecionar, determinando assim o grau de relevância que o indivíduo atribui a determinado

objeto de arquivamento; e se responsabiliza por guardar esses arquivos. Mais do que

produtores de memórias: “Sempre arquivamos as nossas vidas em função de um futuro leitor

autorizado ou não (nós mesmos, nossa família, nossos amigos ou ainda nossos colegas)”

(ARTIÈRES, 1998, p.34).

No caso dos militantes negros, suas biografias são produzidas muitas vezes por

indivíduos também envolvidos no movimento negro e, portanto, simpáticos as causas dos

biografados. Flávia Rios, por exemplo, construiu sua trajetória acadêmica dentre os temas

raciais e as lutas anti-racistas1 e, é autora de textos biográficos de outros 3 indivíduos

relacionados ao movimento negro ou a identidade negra (Thereza Santos, Hamilton Cardoso,

Carolina de Jesus) ; e Sandra Almada, declaradamente militante do movimento negro e

estudiosa das relações raciais2, também autora do livro que narra a trajetória de 4

personalidades femininas do meio artístico ligadas a luta contra a discriminação.

As duas biografias utilizadas são fruto da Coleção Retratos do Brasil Negro, uma

iniciativa do Grupo Summus publicada pelo Selo Negro – uma das editoras do grupo – e, cujo

objetivo é abordar a vida e obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da militância

negra, segundo o site da editora. Os livros são, portanto, obras encomendadas com um

objetivo pré-estabelecido e seus autores, ao que tudo indica, selecionados pela proximidade de

pesquisa ou de vivência com a militância negra, dos selecionados nenhum é historiador. Faz

parte da coleção até o momento biografias de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli

Carneiro, Nei Lopes, Cruz e Souza, João Candido, Luiz Gama, Lima Barreto, e a história do

Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) do qual são provenientes parte importante dos

indivíduos que formaram o Movimento Negro Unificado em 1978.

O livro de Abdias do Nascimento, com coautoria de Elé Semog, selecionado como

uma das fontes de discussão para esse texto consiste numa autobiografia, para a qual estou

atenta sobre a constituição do documento, sabendo que “Numa autobiografia, a prática mais

acabada desse arquivamento [da própria vida], não só escolhemos alguns acontecimentos,

1 Informação obtida em: Grupo Summus. Disponível em:

http://www.gruposummus.com.br/selonegro/autor//Flavia+Rios Acesso em: 11 ago 2014. 2 CULTNE – Damas Negras – Sandra Almada. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=hFsYgx7ph90 Acesso em 02 de jun 2015.

5

como os ordenamos numa narrativa; a escolha e a classificação dos acontecimentos

determinam o sentido que desejamos dar às nossas vidas.” (ARTIÈRES, 1998, p.10). A

autobiografia em questão demarca claramente o que é fruto das entrevistas – portanto

narrativa de Abdias – e o que consiste das impressões e comentários adicionais de Semog,

portanto a coautoria não prejudica o acesso a construção da narrativa de Abdias do

Nascimento, na época já bastante idoso para realizar o intento sozinho. De forma geral é

válido ter em mente que:

Passamos assim o tempo a arquivar nossas vidas: arrumamos,

desarrumamos, reclassificamos. Por meio dessas práticas minúsculas,

construímos uma imagem, para nós mesmos e às vezes para os outros [...] O

arquivamento do eu não é uma pratica neutra; é muitas vezes a única ocasião

de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser

visto (ARTIÈRES, 1998, p.10-31)

Atenta a Ilusão Biográfica, a leitura e análise das biografias e autobiografias partiu do

pressuposto que a linearidade imposta no texto, a ausência de conflitos nas ações – dúvidas

normais em tomadas de decisão -, o escrito e o ocultado, fazem parte da construção da

imagem ou identidade que o biografado desejou tornar público3. Porém, essas considerações

de forma alguma invalidam o uso e análise dessas fontes na pesquisa acadêmica, inclusive

porque permite acesso exatamente ao que almejo: a visão de mundo construído por Abdias do

Nascimento e Lélia Gonzalez e por eles transformados em estratégias do movimento negro.

Para completar uma explanação rápida das fontes selecionadas aponto a escolha do

texto de autoria de Lélia Gonzalez no livro Lugar de Negro. Não se trata diretamente de uma

autobiografia, mas a construção pela autora da trajetória dos movimentos negros brasileiros

em diferentes períodos e suas formas de atuação. Contudo, a ênfase recai sobre o movimento

articulado em 1978 da qual a autora foi personagem ativo e isso transparece na escrita do

texto, por isso, considerado por mim também um relato de vida.

A tabela a seguir busca de forma didática sistematizar as informações relativas aos

autores das obras selecionadas nesse artigo como fonte e suas possíveis inspirações para a

produção das mesmas. Efetivada essas considerações a próxima sessão trabalhará

efetivamente com o conteúdo das biografias e autobiografias.

3 Cf. BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da

História Oral. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 1988.

6

Nome do

autor / obra

Área de trabalho/estudo Informações relevantes sobre

autores e suas obras

Sandra

Almada.

Abdias

Nascimento.

Jornalista, Mestre em Comunicação pela

Universidade do Rio de Janeiro, tem por

estudo os temas mídia e representação,

segundo lattes da pesquisadora. Leciona

atualmente na Universidade Estácio de Sá.

Também autora de outra obra

biográfica: Damas Negras –

Sucessos, lutas, discriminação:

Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de

Souza, Zezé Motta. 1.ed. Rio de

Janeiro: Mauad, 1995.

Alex Ratts.

Lélia

Gonzalez.

Doutor em Antropologia pela USP é professor

na Universidade de Goiás, como não mantêm

currículo lattes, as informações do grupo

summus são de que atua nos temas: quilombos

e relações raciais.

Flávia Rios.

Lélia

Gonzalez.

Graduada em Ciências Sociais é também

doutora na área tendo por orientadores

especialistas reconhecidos internacionalmente

(Antonio Sérgio Guimarães e Edward Telles).

Os temas de investigação são: gênero, ações

coletivas, relações raciais e ações afirmativas

no ensino superior. Atualmente leciona no

Instituto Federal de São Paulo.

Possui textos biográficos de outros

militantes (Hamilton Cardoso e

Thereza Santos) e personagens

importantes para a identidade

negra (Carolina de Jesus).4

Éle Semog.

Abdias do

Nascimento: o

griot e as

muralhas.

Poeta, escritor, não há indicações sobre

formação superior. Militante em entidades

negras, em especial fundação CEAP (Centro

de Articulação das Populações

Marginalizadas). Concorreu em 1998 ao cargo

de deputado federal pelo PDT.

Afirma ter conhecido Abdias do

Nascimento no Congresso, para o

qual na década de 1990 se tornou

assessor e amigo íntimo.

Abdias do

Nascimento.

Abdias do

Nascimento: o

griot e as

muralhas.

Graduado em Economia, na época

Universidade do Brasil. Literato, artista

plástico, militante e fundador de diversas

entidades, com ênfase para o TEN (Teatro

Experimental do Negro). Ocupou diversos

cargos políticos pelo PDT entre os anos 1983 a

1999.

A obra configura parcialmente o

gênero “escrita de si”, o autor

narra as experiências vividas.

Lélia

Gonzalez.

Lugar de

Graduada em História e Geografia, UERJ

1958, e Filosofia na mesma instituição em

1963. Militante e fundadora de diversas

Texto é reflexão da autora sobre a

trajetória dos movimentos negros,

com ênfase no período pós 1978,

4 RIOS, Flavia . A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural (São

Paulo. Online), v. 21, p. 73-96, 2014; OLIVEIRA, F. N. ; RIOS, Flavia . Consciência Negra e Socialismo: a

trajetória de Hamilton Cardoso(1953-1999). Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 4, p. 507-

530, 2014; RIOS, Flavia . Carolina de Jesus na Cena Cultural Contemporânea. In: Dinha; Fernandez. Raffaela.

(Org.). Onde estaes felicidade?. 1ed.São Paulo: Me parió Revolução, 2014, v. , p. 99-108.

7

Negro. entidades, entre as mais destacadas o MNU e

Nzinga-Coletivo Feminista. Pleiteou cargo

legislativo tendo, contudo alcançado a

suplência, mas tornou-se então assessora de

Benedita da Silva pelo PT, 1982.

no qual atuou fortemente.

Fonte: Plataforma Lattes; Site da Editora Summus; e obras referendadas como fonte do artigo.

Abdias e Lélia: o negro revoltado e a pretinha atrevida.

A primeira informação a ser levada em consideração quando se estuda a militância

negra é que não existe um movimento negro único, mesmo que a sigla MNU tente contradizer

o fato. A informação consta da própria Lélia Gonzalez uma das mais proeminentes ativistas

contemporâneas, fundadora e participante de diversas entidades negras no Brasil (Movimento

Negro Unificado, Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, Grêmio Recreativo e Escola de

Samba Quilombo, por exemplo):

Na verdade, falar do Movimento Negro implica no tratamento de um tema

cuja complexidade, dada a multiplicidade de suas variantes, não permite uma

visão unitária. Afinal, nós negros, não constituímos um bloco monolítico, de

características rígidas e imutáveis (GONZALEZ, 1982, p. 18).

As trajetórias de Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez demonstram isso. Na sessão

que se segue apresentarei essa trajetória de forma resumida, baseada nas biografias e

autobiografias, com o intuito de apresentar como viam as relações raciais no Brasil e como

poderiam agir para alterar essa realidade. Não se trata de um resumo das obras, nem tão pouco

a produção de uma nova biografia, mas o uso das obras para a leitura do contexto de vivência

desses dois indivíduos e suas ações. Trajetórias que são difíceis de recuperar, senão pelo

auxílio de outros militantes, textos produzidos por eles ou existentes dada atuação de ambos

no Congresso – ou como ocupante de cargo ou como convidada em sessões específicas para a

discussão de políticas voltadas aos negros – e, por isso, constituem também a possibilidade de

acesso à história de vida de pessoas de fora do circuito hegemônico do poder econômico,

político ou cultural.

Das duas obras publicadas pela Editora Summus a construção do texto segue a

seguinte lógica: a vida na infância; a formação educacional e a percepção do ser negro; os

8

projetos políticos, institucionalizados ou não, em que se envolveram; e na reta final as

contribuições a posteriori dessas atuações. É válido mencionar que parte das entrevistas

dispostas na autobiografia de 2006 foram aproveitadas como corpo documental por Sandra

Almada. A autobiografia transcorre de forma cronológica, mesmo que em dados momentos

Abdias afirme que a memória não ajuda a pensar no fluxo contínuo, assumo então como

provável o fato das entrevistas terem transcorrido de uma forma e a transposição de outra.

A vida na infância e a questão do pertencimento racial foi sentido por nossos

personagens de forma muito diferente. Lélia era a décima sétima filha de um total de dezoito,

filha de empregada doméstica de descendência indígena e pai ferroviário e negro, nascida em

Belo Horizonte tendo depois migrado para o Rio de Janeiro graças ao sucesso no futebol de

seu irmão Jaime de Almeida, Gonzalez afirmava ter conseguido uma formação educacional

fora do comum aos negros graças a essas especificidades:

nessa família todos trabalhavam, ninguém passava da escola primária [...]

para sustentar o resto da família. Mas, no meu caso, o que aconteceu foi que,

[por ser] uma das últimas, a penúltima da família [...] a visão de meus pais

em relação a mim já foi uma visão de neta (Lélia Gonzalez Apud RATTS,

RIOS, 2010, p.23)

Por sua vez, Abdias do Nascimento era o segundo filho de um grupo de sete irmãos,

pai sapateiro e mãe cozinheira, doceira e costureira, além de ama-de-leite o que é bastante

destacado nas entrevistas que o militante deu, talvez para enfatizar reminiscências da

escravidão, “quase todos os meus irmãos têm irmão-de-leite” (Abdias Nascimento Apud

NASCIMENTO, SEMOG, 2006, p.30), ambos negros, sendo a avó paterna ex-escrava que

havia sido estuprada por um português, ato do qual o pai de Abdias é fruto. A oportunidade de

estudar para Abdias é apresentada como mais tortuosa, trabalhando desde os 9 anos

entregando leite e carne na cidade de Franca, onde nasceu, Abdias tentou diversificadas

formações:

Abdias também tentara aprender violão, piano, pistão, telegrafia, mas foram

projetos de curtíssima duração, todos derrotados, apesar dos esforços do

menino, pelas condições de vida muito adversas. Dessas empreitadas,

entretanto, uma vingaria. Aos 11 anos entrou para a Escola de Comércio

Ateneu Francano. Nessa época, ia ao grupo escolar de manhã, trabalhava a

tarde e à noite fazia o curso de contabilidade, que levaria a cabo com

seriedade e no final do qual começaria a procurar emprego mais de acordo

com sua nova formação (ALMADA, 2009, p.34)

9

Se Abdias teve que aliar trabalho aos estudos, ao que Lélia afirmava ocasionalmente

fazer com serviço de babá dos filhos de dirigentes dos clubes de futebol que o irmão foi

jogador, o francano contava ainda com o desestímulo do pai segundo a narrativa o biografado:

Não, nada de estudar! O filho adotivo do doutor Petraglia acabou se

suicidando porque ninguém queria se tratar com aquele médico negro. Negro

que quer estudar dá nisso. Então tire isso da cabeça, de fazer estudo superior,

ser doutor, tire isso da cabeça! (Abdias Nascimento Apud ALMADA, 2009,

p.38)

O pai de Abdias provavelmente desejava proteger o filho de frustrações posteriores.

Possivelmente essa relação com os estudos e o período de nascimento dos biografados esteja

relacionado à forma como o pertencimento racial foi apreendido por ambos. Nascido em 1914

em um município cercado por fazendas Abdias descreve sua infância já demarcada por uma

pertença:

Pena eu não ser um bom memorialista. Talvez eu não consiga contar

detalhes, lembrar das minúcias das histórias e dos “causos”, ou da maneira

de cada uma daquelas pessoas falar; da ênfase, da entonação , que com

certeza tornava cada uma daquelas narrativas mais curiosa e mais

impressionante. Mas o importante é que , naqueles momentos, ali entre nós,

manifestava-se uma literatura – de longa tradição africana –, e tratava-se de

assuntos relacionados com as nossas questões de família racial. As histórias

versavam sobre uma escravidão que acabara recentemente. Por ali viviam

homens e mulheres bastante idosos e outros mais jovens, que tinham sido

escravos, ou que pegaram o finalzinho da escravidão. Embora não tivesse

parentes ali, isso me fazia lembrar da minha avó Ismênia, que veio do nosso

continente africano. (Abdias Nascimento Apud SEMOG; NASCIMENTO,

2006, p.37- grifos do autor)

Mesmo alertando as falhas impostas a memória Abdias reconstrói o cenário da sua

distante infância e atribui uma essência cultural africana ao descrito – o que claro, não devia

ser atribuído na época em que isso ocorreu, mas depois do contato do biografado com a

cultura africana nos tempos de exílio -. Na continuidade do texto construído por Nascimento

ele fala da liberdade dos passeios nessas fazendas que eram acompanhados das professoras

contratadas pelos fazendeiros, a partir desse ponto afirma já perceber – mesmo criança – a

existência dos resquícios da escravidão:

10

Não há dúvidas que esta situação era uma herança da escravidão, uma

relação dúbia que não tinha nada a ver com solidariedade. Durante uma parte

da minha infância convivi com essa estrutura, com essa maneira de

tratamento. Nós, os “negrinhos”, estávamos naquela condição de protegidos

das sinhazinhas. Meus irmãos ficavam felizes quando ganhavam presentes;

mas eu recebia com desconfiança, pressentindo um jogo maldoso nessas

relações. Assim, eu fui uma exceção entre aqueles sete irmãos,

aparentemente bem ajustados na sociedade “branca” brasileira. A outra

exceção foi minha irmã, que se suicidou, possivelmente porque também não

conseguiu se ajustar. (Abdias Nascimento SEMOG; NASCIMENTO, 2006,

p.38 – grifos do autor)

Abdias não sabia explicar o porquê desse despertar quando a educação dada aos

irmãos era a mesma que a dele. O não ajustamento dele, somado ao desejo de uma

prosperidade que Franca não lhe oferecia, o levou a sair do interior rumo a capital do Estado.

Se de fato o “sentir-se negro” veio na infância ou é uma leitura feita a posteriori não é

possível mensurar, mas fica a narrativa do militante como registro de uma forma de

resistência ao processo de aculturação.

Lélia Gonzalez narra uma experiência totalmente diferente e que vai ter reflexo nas

lutas travadas enquanto militante:

Fiz escola primária e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem

cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque, na medida que eu

aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais minha

condição de negra (Lélia Gonzalez 1979 Apud RATTS, RIOS, 2010 p.31)

Gonzalez concluiu o colégio, ou científico como era chamado, no famoso Colégio

Pedro II em 1954. A boa formação garantiu a Lélia a fluência no francês, tornando-se em uma

fase de sua vida tradutora. Em seguida entrou para Universidade Estadual do Rio de Janeiro,

aonde se graduou em Geografia e História em 1958 e Filosofia em 1962. A trajetória

educacional de Lélia não a colocou em contato com um pertencimento negro, o confronto que

a levou a auto identificação se deu graças a relação com o primeiro marido e a família dele. O

marido em questão, Luiz Carlos Gonzalez era espanhol e é descrito na biografia como

interessado nas questões políticas tendo ele despertado a esposa para mundo do qual ela vivia

afastada. De acordo com Lélia Gonzalez:

A família do meu marido achava que nosso regime matrimonial era, como eu

chamo, de “concubinagem”, porque mulher negra não se casa legalmente

com homem branco; é uma mistura de concubinato com sacanagem, em

11

última instância. Quando eles descobriram que estávamos legalmente

casado, aí veio o pau violento em cima de mim; claro que eu me transformei

numa “prostituta”, numa “negra suja” e coisa desse nível... Mas meu marido

foi um cara muito legal, sacou todo o processo de discriminação da família

dele, e ficamos juntos até sua morte. [...] Luiz Carlos foi muito importante

pra mim [...] ele rompeu com a família, ficou do meu lado e começou a

questionar minha falta de identidade comigo mesma. Isso dói [...], por isso

eu tenho orgulho de trazer o nome dele. Eu nunca troquei o meu nome, podia

estar com meu nome de solteira, Lélia de Almeida, mas é uma homenagem

que eu presto a esse homem branco tão sofrido [...] essa pessoa demonstrou

uma solidariedade extraordinária [...] e foi a primeira pessoa a me questionar

com relação ao meu próprio branqueamento. (Apud RATTS; RIOS; 2010,

p.52-53 – grifos da autora e cortes do texto original)

Os questionamentos do marido sobre pertencimento racial, o rompimento familiar por

conta da discriminação sofrida pelo casa, somado a morte trágica dele – suicídio – são

abordados como ponto fulcral para a mudança de comportamento de Lélia. Por intermédio

desses elementos Gonzalez começou a se questionar sobre sua auto identificação e se

aproximou de núcleos de discussões raciais dentro da universidade – na qual já atuava como

professora -, em seguida, aproximou-se também da umbanda e procurou auxílio na

psicanálise. Lélia Gonzalez já usufruía de certos benefícios garantidos a classe média,

contudo a discriminação não deixou de se fazer presente em seu cotidiano.

Abdias do Nascimento, porém, tem outra experiência com a ida a capital de seu

estado. Diferente de Lélia que havia migrado com a família e que se formou - e se

embranqueceu, segundo ela, dado o ensino que recebeu – Abdias resolve ir para São Paulo

munido de cartas de recomendações de ex-patrões de sua mãe e a formação em Contabilidade

que obtivera em Franca, biografado e biógrafo narram da seguinte forma a experiência:

“Foi com uma cusparada, com uma cusparada no meus sonhos, que São

Paulo me recebeu naquele ano de 1929!” Havia muito rancor na voz de

Abdias. Tratava-se de um dos pronunciamentos mais carregados de revolta.

Fazia essa observação enquanto consultava os registros em DVD de fase

diferentes de sua trajetória. (ALMADA, 2009, p.39)

Abdias do Nascimento se desencanta com a recepção da capital e afirma responder

toda a hostilidade e atos de discriminação com bofetões, o que lhe garantiu o apelido de

“negro revoltado”. As ocupações foram das mais variadas: alistou-se no exército; cursou

economia na Escola de Comércio Álvares Penteado; depois no Rio de Janeiro para onde fugiu

dada a perseguição política que sofria na capital paulista, foi faxineiro; revisor do jornal O

12

Radical; graduou-se em Economia na então Universidade do Brasil (atual UERJ); entrou na

ação Integralista Brasileira em 1937, saindo, segundo ele por perceber que a questão racial

não tinha espaço no movimento; preso – um processo correu a revelia enquanto viajava com

amigos poetas pela América Latina – criou o Teatro do Sentenciado.

Com 30 anos Abdias já havia se envolvido com grupos de artistas, realizado o

Congresso Afro-Campineiro (13 de maio de 1938) e sentia agora a falta de uma organização

que demonstrasse a capacidade dos negros nas artes – sempre apreendida no sentido político –

e assim, cria o Teatro Experimental do Negro:

O Teatro Experimenta do Negro veio para combater isso tudo [preterimento

dos atores negros e secundarização, folclorização e uso obsceno dos

personagens negros], mas ele veio também para ser a favor. A favor da

história negra, a favor da cultura negra, a favor de todos os valores positivos

que a cultura africana trouxe para o Brasil e que continuam até hoje

menosprezados, secundarizados, agredidos e floclorizados. O Teatro

Experimental do Negro veio com um lado de combate – vamos dizer, que é o

lado negativo -, e outro que é positivo: trazer uma contribuição nova e de

afirmação. Com essas perspectivas de luta social e artística, viemos para

influir nos critérios estéticos do espetáculo brasileiro. (Abdias Apud

SEMOG; NASCIMENTO, 2006, p.123)

Com uma estética divergente da europeia (branca), atuando na formação profissional

de atores negros, mas ao mesmo tempo contribuindo para sua apreensão da cultura afro-

brasileira, o TEN é considerado um dos marcos da militância negra na história do Brasil. Mas

o TEN não se restringia à questão cultural, havia uma inserção no campo político, inclusive

com a organização de Convenções, Eventos e Concurso; entre as preocupações estava

também a discussão e possíveis propostas da relação do negro com a Constituinte de 1946.

Segundo Éle Semog, dada a representatividade de Abdias nas manifestações dos negros pela

igualdade o cerco da ditadura militar começou a se fechar, motivando o exílio do biografado:

Com o endurecimento do regime militar, e a repressão intensa instituída pelo

AI-5, fui obrigado a deixar o país. A questão racial virou assunto de

segurança nacional, a sua discussão era proibida. Fui incluído em diversos

Inquéritos Policiais Militares, sob a estranha alegação de que seria

encarregado de fazer a ligação entre o movimento negro e a esquerda

comunista. (Abdias Apud SEMOG; NASCIMENTO, 2006, p.123)

Lélia Gonzalez também não escapou da vigilância da Ditadura Militar:

13

As informações sobre Lélia aparecem pela primeira vez nos fichários do

Dops em 1972, quando era professora da Universidade Gama Filho. Nessa

ocasião, foi solicitada a averiguação sobre seu possível envolvimento no

“recrutamento de adeptos à doutrina marxista” na citada universidade. No

entanto, nada foi comprovado após investigação. Com base nos depoimentos

recolhidos para a pesquisa, pressuponho que o recrutamento teria alguma

relação com a prática de reuniões na casa da Léia para discussões filosóficas

(BARRETO, 2005, p.24 Apud ALMADA, 2010, p.54-55)

O destino dos dois militantes se cruzariam numa empreitada comum, no Ato Público

de 7 de julho de 1978, realizado nas escadarias do Teatro Municipal em São Paulo, ambos na

condição de apoiadores do movimento que ali se tornava público, o Movimento Negro

Unificado Contra a Discriminação Racial – posteriormente simplificado para Movimento

Negro Unificado -. O MNU era fruto da insatisfação com a condição de preterimento histórico

do negro, somado as recentes mortes de Robson Silveira da Luz e Nilton Lourenço e a

expulsão de quatro atletas negros do time juvenil do Clube de Regatas Tietê das dependências

do clube. E era organizado especialmente por militantes de São Paulo, em especial, aqueles

que faziam parte do Centro de Cultura e Arte Negra, tais como: Miton Barbosa, Rafael Pinto e

Hamilton Cardoso. Lélia estava na condição de representante do Grêmio Recreativo e Escola

de Samba Quilombo e Abdias como apoiador do movimento, e na época já famoso por seu

envolvimento em temáticas raciais – mesmo que ainda morasse em Nova York -. Lélia se

envolveu intensamente com as reuniões e estratégias lançadas pelo Movimento Negro

Unificado. Abdias foi apoiador e ficou responsável por levar aos Estados Unidos as

informações relacionadas ao novo movimento que surgia no Brasil.

Ambos concordavam, portanto, com o que propunha o MNU e ergueram a bandeira da

entidade. Para compreender de forma breve apresento a Carta de Princípios do Movimento

Negro Unificado – discutido no I Congresso do MNUCDR nos dias 14,15 e 16 de dezembro

de 1981, segundo Gonzalez. Ela aponta a certeza de que a escravidão e o racismo legou a

parcela negra da sociedade piores condições de vida que a desfrutada pelos brancos:

NÓS, membros da população negra brasileira – entendendo como negro todo

aquele que possui na cor da pela, no rosto ou nos cabelos, sinais

característicos dessa raça –, reunidos em Assembléia Nacional,

CONVENCIDOS da existência de:

- discriminação racial

- marginalização racial, política, econômica, social e cultural do povo

brasileiro

- péssimas condições de vida

- desemprego

14

- subemprego

- discriminação na admissão de empregos e perseguição racial no trabalho

- condições sub-humanas de vida dos

, presidiários

- permanente repressão, perseguição e violência policial

- exploração sexual, econômica e social da mulher negra

- abandono e mal tratamento dos menores, negros em sua maioria

- colonização, descaracterização, esmagamento e comercialização de nossa

cultura

- mito da democracia racial

(Carta Princípios do MNU 1982, GONZALEZ; HASENBALG; 1982 p.65-

66)

Os militantes identificavam a disparidade econômica e social não somente como

consequência do período escravocrata, mas da postura racista que continuou lesando-os pós-

abolição. Mas não se tratava somente de um documento denunciativo, ele era composto

também dos elementos por eles (militantes) vislumbrados como alvos de atuação, cujo

objetivo será reverter o acesso limitado dos negros nas diversas áreas, tal como: saúde,

educação, trabalho e valorização cultural.

RESOLVEMOS juntar nossas forças e lutar por:

- defesa do povo negro em todo os aspectos políticos, econômicos, sociais e

culturais através da conquista de:

- maiores oportunidades de emprego

- melhor assistência à saúde, à educação e à habitação

- reavaliação do papel do negro na História do Brasil

- valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização,

folclorização e distorção

- extinção de todas as formas de perseguição, exploração, repressão e

violência a que somos submetidos

- liberdade de organização e de expressão do povo negro

E CONSIDERANDO ENFIM QUE:

- nossa luta de libertação deve ser somente dirigida por nós

- queremos uma nova sociedade onde todos realmente participem

- como não estamos isolados do restante da sociedade brasileira

NOS SOLIDARIZAMOS:

a) com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores populares da sociedade

brasileira que vise a real conquista de seus direitos políticos, econômicos e

sociais;

b) com a luta internacional contra o racismo.

POR UMA AUTÊNTICA DEMOCRACIA RACIAL!

PELA LIBERTAÇÃO DO POVO NEGRO!

(Carta Princípios do MNU 1982, GONZALEZ; HASENBALG; 1982 p.65-

66)

Por intermédio da leitura do documento é possível apreender que para os militantes do

MNU as ações para reversão da discriminação racial envolviam questões do campo simbólico

15

(tal como valorização, fim da estigmatização e conhecimento da cultura do negro) ao lugar

concreto (emprego, saúde, habitação). Certamente, a solução para esses diferentes elementos

não se daria unicamente pela criação do MNU e, por isso, parte dos militantes do movimento

e simpatizantes lançaram estratégias conjuntas para reverter o preterimento do negro na

sociedade brasileira.

Dentro dessa apreensão da militância novamente os caminhos de Lélia e Abdias se

aproximam. Ambos irão trilhar o caminho da “militância institucionalizada”, isto é, em nome

das causas negras irão pleitear cargos eletivos nas primeiras eleições diretas realizadas

durante o processo de abertura política do país. Abdias opta por se filiar ao Partido

Democrático Trabalhista (PDT), partido que abrigou uma pauta exclusiva para discussão de

questões raciais, fruto do desejo de Abdias e de sua boa relação com o idealizador do PDT,

Leonel Brizola; Lélia filia-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), recém-criado e originário da

classe trabalhadora de São Paulo que ganhou destaque nacional pelas greves realizadas no

ABC no final da década de 1978. Abdias é eleito deputado federal em 1983 (seu primeiro

cargo político de muitos outros mandatos), Lélia não obtém sucesso no pleito, mas torna-se

assessora de Benedita Silva eleita para vereadora em 1983 pelo PT-RJ (Silva terá também

longa vida política).

De Abdias é possível recuperar desse período seus discursos feitos no Congresso

Nacional, de Lélia constam seus discursos na Subcomissão dos Negros, Populações

indígenas, Pessoas Deficiente e Minorias, que objetivava contribuir para a formação na nova

Constituição Brasileira, 1988. Os dois trechos demonstram que mesmo com anos de diferença

de idade, tendo a experiência de vida reservado diferentes formas e momentos de se

compreender pertencentes à população negra; os dois personagens alvo desse artigo

compreendiam as relações sociais brasileiras profundamente marcadas por um racismo que

contamina inclusive as instituições:

A estrutura de dominação racista, a estrutura branca de dominação do negro

ainda perdura até os nossos dias [...] Srs. Congressitas, eu tenho denunciado

frequentemente desta tribuna, o racismo institucional, o racismo estrutural

que existe na Constituição do Brasil, nas constituições das instituições

brasileiras (Discurso de Abdias do Nascimento, DIÁRIO DO CONGRESSO

NACIONAL, 1983, P.2141).

O censo de 1980 está aí demonstrando que na nossa sociedade a hierarquia

permanece. No que diz respeito ao acesso aos melhores salários nas

16

diferentes profissões, vamos encontrar a relação hierárquica ao acesso aos

melhores salários nas diferentes profissões, vamos encontrar a relação

hierárquica e no primeiro plano está o homem branco, abaixo a mulher

branca, em seguida o homem negro e, finalmente a mulher negra. É

importante ressaltar que o racismo que existe na nossa sociedade tem que ser

encarado olho no olho. Chega de ficarmos disfarçando que somos

democratas, raciais, que batemos no ombro do pretinho, mas não admitimos

que casa com nossas filhas, porque é demais! Chega desta postura

paternalista que marca todas as relações da sociedade brasileira, as relações

dos donos do poder com relação aos explorados, oprimidos e aos dominados;

relações de compadrio, relações pessoais. (Discurso de Lélia Gonzalez,

DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSITUINTE –

SULPLEMENTO, 1987, P.121)

Essa forma de apreender o mundo os colocou diante do cenário político como em que

o Estado era devedor de uma reparação para com maior parte da população, uma vez que é

também o reprodutor da disparidade racial. Diferente de militâncias do passado que atribuíam

ao próprio negro a força e a necessária organização para resolver o “problema negro”, Abdias

e Lélia acreditavam que por intermédio da valorização da cultura afro-brasileira e africana o

sentimento positivo de pertencer etnicamente se desenvolveria, e caberia ao Estado garantir

meios para essa valorização e essa reversão da realidade excludente.

A atuação deles em torno do MNU os faz compactuar com os fatores de luta elencados

no documento Carta de Princípios, aqui apresentado. Outros poderiam ser pormenorizados,

mas os limites impostos na escrita me fazem destacar um argumento fulcral que os aproxima:

a questão de isonomia. Tratado por Abdias no Projeto na Lei n.1.332 de 1983 (Dispões sobre

a ação compensatória visando à implementação do princípio de isonomia social do negro, em

relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado

pelo art.153, parágrafo 1 da Constituição da República) e enfatizado na palestra de Lélia em

1988 na ocasião da Subcomissão mencionada:

E nesse momento em que aqui estamos, para discutir a questão da

Constituinte, não podemos, se pretendemos efetivamente construir uma

sociedade onde o princípio de isonomia efetivamente se concretize, não

podemos mais construir mentiras que abalem a possibilidade que são uma

grande ameaça à possibilidade da construção da Nação brasileira, porque

sem o crioléu, sem os negros, não se construirá uma Nação neste País! Não

adianta continuarmos com essa postura paternalista de bater nos ombros,

mas que na hora H fecha todas as portas para que o negro, com toda a sua

competência histórica, tenha acesso ao mercado de trabalho, à organização

dos partidos políticos. Sempre somos as bases, já perceberam isso? Ou então

somos cooptados pelas resentarmos [sic] o teatro da democracia racial. Não

17

queremos mais isso. (Discurso de Lélia Gonzalez, DIÁRIO DA

ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSITUINTE – SULPLEMENTO, 1987,

P.122 – grifos meus)

Isonomia significa equidade, justiça, igualdade; juridicamente trata-se de compreender

que todos são iguais perante a lei, mas que situações desiguais devem ser compreendidas em

suas especificidades, uma vez que, não deve haver distinção de classe, grau ou poder

econômico entre os homens. Abdias e Lélia recorrem ao pedido de isonomia para a efetivação

de fato de uma nação que considere a existência das diferenças e planeje pensando nelas.

Considerações Finais

O texto que por ora se encerra não é a criação de uma biografia, ou resumo de

biografias. Tratei de utilizar biografias e textos complementares para observar como a

trajetória de militantes da causa negra se aproximam e se distanciam de acordo com suas

experiências.

Mais do que incongruências busquei as afinidades de Abdias do Nascimento e Lélia

Gonzalez. Ambos importantes para a militância negra contemporânea, simbolizam lutas

travadas contra o preterimento histórico do negro e que tem consequências danosas ainda

hoje, basta refletir sobre resultados como os apresentados pelo Mapa da Violência 2014 no

qual consta a informação de que

os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos

no Brasil, e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino,

moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Dados

do SIM/Datasus do Ministério da Saúde mostram que mais da metade dos

56.337 mortos por homicídios, em 2012, no Brasil, eram jovens (30.072,

equivalente a 53,37%), dos quais 77,0% negros (pretos e pardos) e 93,30%

do sexo masculino. (WAISELFISZ, 2014, p.9)

Portanto, são lutas que não morreram com os militantes e que devem se propagar nas

discussões acadêmicas, políticas e dentro da sociedade civil, tendo o texto buscado contribuir

um pouco nesse sentido.

Fontes

ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. São Paulo: Selo Negro, 2009.

18

Diário da Assembléia Nacional Constituinte – Suplemento. [Discurso de Lélia Gonzalez]

Disponível em

http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/sup62anc20mai1987.pdf#page=1201987

Publicado em 20 de maio de 1987.

Diário do Congresso Nacional. [Discurso Abdias do Nascimento] Disponível em:

http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD22OUT1983.pdf#page=29 . Ata da 138º

Sessão de 21 de outubro, publicado em 22 de outubro de 1983.

GONZALÉZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero,

1982.

RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.

SEMOG, Éle; NASCIMENTO, Abdias. Abdias do Nascimento: o griot e as muralhas. Rio

de Janeiro: Pallas, 2006.

Referências Bibliográficas

ALMADA, Sandra. Damas Negras – Sucessos, lutas, discriminação: Chica Xavier, Léa

Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta. 1.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a Própria Vida. Revista Estudos Históricos. Arquivos

Pessoais, n.21,1998.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. Usos e

abusos da História Oral. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

CULTNE – Damas Negras – Sandra Almada. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=hFsYgx7ph90 Acesso em 02 de jun 2015.

GOMES, Ângela de Castro. Introdução. In: GOMES, Ângela de Castro. Escritas de si,

escritas da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

Grupo Summus. Disponível em:

http://www.gruposummus.com.br/selonegro/autor//Flavia+Rios Acesso em: 11 ago 2014.

OLIVEIRA, F. N. ; RIOS, Flavia . Consciência Negra e Socialismo: a trajetória de Hamilton

Cardoso(1953-1999). Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 4, p. 507-530,

2014;

RIOS, Flavia . A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime

militar. Plural (São Paulo. Online), v. 21, p. 73-96, 2014;

RIOS, Flavia . Carolina de Jesus na Cena Cultural Contemporânea. In: Dinha; Fernandez.

Raffaela. (Org.). Onde estaes felicidade?. 1ed.São Paulo: Me parió Revolução, 2014, v. , p.

99-108.

SCHIMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias... Historiadores e Jornalistas:

aproximações e afastamentos. Revista Estudos Históricos. v.19, p. 1997.

WAISELFISZ; Julio Jacobo. Os Jovens do Brasil. Mapa da violência 2014. Brasília: 2014