histÓria eclesiÁstica de eusÉbio - volume i

566

Upload: escribavaldemir

Post on 15-Apr-2017

1.536 views

Category:

News & Politics


4 download

TRANSCRIPT

Page 1: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I
Page 2: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

FINALIDADE DESTA OBRAOs materiais literários do autor não têm fins lucrativos,

nem lhe gera quaisquer tipo de receita. Os custos do livro são unicamente para cobrir despesas com produção, transporte, impostos e revendedores. Sua satisfação consiste em contribuir para o bem da educação, uma melhor qualidade de vida para todos os homens e seres vivos, e para glorificar o único Deus Todo-Poderoso.

AUTORIZAÇÃO

O livro pode ser reproduzido e distribuído por quaisquer meios, usado e traduzido por qualquer entidade religiosa, educacional ou cultural sem prévia autorização do autor. Todos os meus livros são de domínio público.

[ 2 ]

Page 3: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

AUTOR: Escriba de Cristo é licenciado em Ciências Biológicas e História pela Universidade Metropolitana de Santos; possui curso superior em Gestão de Empresas pela UNIMONTE de Santos; é Bacharel em Teologia pela Faculdade das Assembleias de Deus de

Santos; tem formação Técnica em Polícia Judiciária pela USP e dois diplomas de Harvard University dos EUA sobre Epístolas Paulinas e Manuscritos da Idade Média. Radialista profissional pelo Senac de Santos, reconhecido pelo Ministério do Trabalho. Nasceu em Itabaiana/SE, em 1969. Em 1990 fundou o Centro de Evangelismo Universal; hoje se dedica a escrever livros e ao ministério de intercessão. Não tendo interesse em dar palestras ou participar de eventos, evitando convívio social.

[ 3 ]

SOLICITAÇÃO AOS LEITORES: Se você encontrar erros gramaticais ou se você fala outro idioma e puder colaborar traduzindo esta obra, em qualquer dos casos entre em contato

Page 4: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

CONTATO: https://www.facebook.com/centrodeevangelismouniversal/

https://www.facebook.com/escribade.cristo

Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)

CENTRO DE EVANGELISMO UNIVERSAL

-CGC 66.504.093/0001-08

[ 4 ]

M543 Escriba de Cristo, 1969 – História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia comentada pelo Escriba

Itabaiana/SE, Amazon.com Clubedesautores.com.br, 2016

388 p. ; 21 cm

ISBN-13: 978-1537690285

ISBN-10: 1537690280

1. História Eclesiástica 2. Eusébio de Cesaréia

3. Cristianismo 4. Igreja Antiga I - Titulo

CDD 270

Page 5: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

SUMÁRIO LIVRO I

I. Propósito da Obra.

II. Resumo da doutrina sobre a preexistência de Nosso Salvador e Senhor, o Cristo de Deus, e da atribuição da divindade.

III. De como os nomes de Jesus e de Cristo já eram conhecidos desde a antiguidade e honrados pelos profetas inspirados por Deus.

IV. De como o caráter da religião anunciada por Cristo a todas as nações não era novo nem estranho.

V. De quando Cristo se manifestou aos homens.

VI. De como, segundo as profecias, em seus dias terminaram os reis por linha hereditária que regiam a nação judia e começou a reinar Herodes, o primeiro estrangeiro.

VII. Da suposta discrepância dos evangelhos acerca da genealogia de Cristo.

VIII. Do infanticídio cometido por Herodes e o final catastrófico de sua vida.

[ 5 ]

Page 6: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

IX. Dos tempos de Pilatos.

X. Dos sumos sacerdotes dos judeus sob os quais Cristo ensinou.

XI. Testemunhos sobre João Batista e Cristo.

XII. Dos discípulos de nosso Salvador.

XIII. Relato sobre o rei de Edessa.

LIVRO II

I. Da vida dos apóstolos depois da ascensão de Cristo.

II. Da emoção de Tibério ao ser informado por Pilatos dos feitos referentes a Cristo.

III. De como a doutrina de Cristo em pouco tempo se propagou por todo o mundo.

IV. De como, depois de Tibério, Caio estabeleceu Agripa como rei dos judeus e castigou Herodes com o desterro perpétuo.

V. De como Fílon foi embaixador junto a Caio em favor dos judeus.

VI. Dos males que desabaram sobre os judeus depois de sua maldade contra Cristo.

VII. De como Pilatos também se suicidou.

[ 6 ]

Page 7: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

VIII. Da fome nos tempos de Cláudio.

IX. Martírio do apóstolo Tiago.

X. De como Agripa, também chamado Herodes, perseguiu os apóstolos e logo sentiu a vingança divina.

XI. Do impostor Teudas.

XII. De Elena, rainha de Adiabene.

XIII. De Simão Mago.

XIV. Da pregação do apóstolo Pedro em Roma.

XV. Do evangelho de Marcos.

XVI. De como Marcos foi o primeiro a pregar aos egípcios o conhecimento de Cristo.

XVII. O que Fílon conta sobre os ascetas do Egito.

XVIII. Obras de Fílon que chegaram até nós.

XIX. Calamidades que se abateram sobre os judeus de Jerusalém no dia da Páscoa.

XX. Do que ocorreu em Jerusalém nos dias de Nero.

XXI. Do egípcio, também mencionado pelos Atos dos Apóstolos.

[ 7 ]

Page 8: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XXII. De como Paulo, enviado preso da Judéia a Roma, fez sua defesa e foi absolvido de toda acusação.

XXIII. De como Tiago, chamado irmão do Senhor, sofreu o martírio.

XXIV. De como Aniano foi nomeado primeiro bispo da Igreja de Alexandria depois de Marcos.

XXV. Da perseguição nos tempos de Nero, na qual Paulo e Pedro foram adornados com o martírio pela religião em Roma.

XXVI. Dos inumeráveis males que envolveram os judeus e da última guerra que eles moveram contra os romanos.

LIVRO III

I. Em que partes da terra os apóstolos pregaram sobre Cristo.

II. Quem foi o primeiro que presidiu a Igreja de Roma.

III. Sobre as cartas dos apóstolos.

IV. Sobre a primeira sucessão dos apóstolos.

V. Sobre o último assédio dos judeus depois de Cristo.

[ 8 ]

Page 9: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

VI. Sobre a fome que os oprimiu.

VII. Sobre as profecias de Cristo.

VIII. Dos sinais que precederam a guerra.

IX. De Josefo e os escritos que deixou.

X. De que maneira cita os livros divinos.

XI. De como Simeão dirige a Igreja de Jerusalém depois de Tiago.

XII. De como Vespasiano ordena que se busquem os descendentes de Davi.

XIII. De como o segundo bispo de Roma é Anacleto.

XIV. De como o segundo a dirigir os alexandrinos é Abílio.

XV. De como o terceiro bispo de Roma, depois de Anacleto, é Clemente.

XVI. Da carta de Clemente.

XVII. Da perseguição sob Domiciano.

XVIII. Sobre o apóstolo João e o "Apocalipse".

XIX. De como Domiciano ordena a morte aos descendentes de Davi.

[ 9 ]

Page 10: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XX. Dos parentes de nosso Salvador.

XXI. De como o terceiro a dirigir a Igreja de Alexandria é Cerdon.

XXII. De como o segundo na de Antioquia é Inácio.

XXIII. Relato sobre o apóstolo João.

XXIV. Da ordem dos evangelhos.

XXV. Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o são.

XXVI. Sobre o mago Menandro.

XXVII. Da heresia dos ebionitas.

XXVIII. Do heresiarca Cerinto.

XXIX. De Nicolau e dos que dele tomam o nome.

XXX. Dos apóstolos cujo matrimônio está comprovado.

XXXI. Da morte de João e de Felipe.

XXXII. De como sofreu o martírio Simeão, bispo de Jerusalém.

XXXIII. De como Trajano impediu que se perseguisse os cristãos.

[ 10 ]

Page 11: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XXXIV. De como o quarto a dirigir a Igreja de Roma é Evaristo.

XXXV. De como o terceiro na igreja de Jerusalém é Justo.

XXXVI. Sobre Inácio e suas cartas.

XXXVII. Dos evangelistas que ainda então se distinguiam.

XXXVIII. Da carta de Clemente e os escritos que falsamente lhe atribuem.

XXXIX. Dos escritos de Papias.

LIVRO IV

I. Quais foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Trajano.

II. O que padeceram os judeus nos tempos de Trajano.

III. Os que saíram em defesa da fé nos tempos de Adriano.

IV. Os bispos de Roma e de Alexandria nos tempos deste.

V. Os bispos de Jerusalém, desde o Salvador até os tempos de Adriano.

[ 11 ]

Page 12: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

VI. O último assédio de Jerusalém, nos tempos de Adriano.

VII. Quem foram neste tempo os líderes da gnosis de enganoso nome.

VIII. Quem foram os escritores eclesiásticos nos tempos de Adriano.

IX. Uma carta de Adriano dizendo que não se deveria perseguir-nos sem julgamento.

X. Quem foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Antonino.

XI. Dos heresiarcas daqueles tempos.

XII. Da Apologia de Justino dirigida a Antonino.

XIII. Uma carta de Antonino ao concilio da Ásia sobre a nossa doutrina.

XIV. O que se recorda sobre Policarpo, discípulo dos apóstolos.

XV. De como, nos tempos de Vero, Policarpo sofreu o martírio junto com outros da Cidade de Esmirna.

XVI. De como Justino o Filósofo, sendo de avançada idade, sofreu martírio pela doutrina de Cristo na cidade de Roma.

[ 12 ]

Page 13: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XVII. Dos mártires mencionados por Justino em sua própria obra.

XVIII. Que tratados de Justino chegaram a nós.

XIX. Quem esteve frente à frente das igrejas de Roma e de Alexandria sob o reinado de Vero.

XX. Quem esteve à frente da igreja de Antioquia.

XXI. Dos escritores eclesiásticos que brilharam naquele tempo.

XXII. De Hegesipo e dos que ele menciona.

XXIII. De Dionísio, bispo de Corinto, e das cartas que escreveu.

XXIV. De Teófilo, bispo de Antioquia.

XXV. De Felipe e de Modesto.

XXVI. De Meliton e dos que ele menciona.

XXVII. De Apolinário.

XXVIII. De Musano.

XXIX. Da heresia de Taciano.

XXX. De Bardesanes o Sírio e das obras que se diz serem suas.

[ 13 ]

Page 14: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

LIVRO V

I. Quantos foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela religião na Gália.

II. De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que haviam falhado na perseguição.

III. Que aparição teve em sonhos o mártir Atalo.

IV. De como os mártires recomendavam Irineu em sua carta.

V. De como Deus atendeu as orações dos nossos e fez chover do céu para o imperador Marco Aurélio.

VI. Lista dos bispos em Roma.

VII. De como inclusive até aqueles tempos realizavam-se por meio dos fiéis grandiosos milagres.

VIII. De como Irineu menciona as diversas Escrituras.

IX. Os que foram bispos sob Cômodo.

X. De Panteno, o filósofo.

XI, De Clemente de Alexandria.

XII. Dos bispos de Jerusalém

[ 14 ]

Page 15: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XIII De Ródon e as dissensões que mencionados marcionitas.

XIV. Dos falsos profetas catafrigas.

XV. Do cisma de Blasto em Roma.

XVI. O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua companhia.

XVII. De Milcíades e os tratados que compôs.

XVIII. Em que termos Apolônio refutou aos catafrigas e quem ele menciona.

XIX. De Serapion sobre a heresia dos frígios.

XX. O que Irineu discute por escrito com os cismáticos de Roma.

XXI. De como Apolônio morreu mártir em Roma.

XXII. Que bispos eram célebres naquele tempo.

XXIII. Da questão então movida sobre a Páscoa.

XXIV. Sobre a dissensão na Ásia.

XXV. De como houve acordo unânime entre todos sobre a Páscoa.

XXVI. Quanto chegou a nós de Irineu.

[ 15 ]

Page 16: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XXVII. Quanto chegou dos outros que floresceram naquela época.

XXVIII. Dos que acolheram a heresia de Artemon desde o princípio, qual foi seu comportamento e de que modo ousaram corromper as Escrituras.

Tradução de WOLFGANG FISCHER

PREFÁCIO

O autor e a obra

Eusébio, bispo de Cesaréia, nasceu em cerca de 270, faleceu no ano 339/340. A data de seu nascimento só pode ser inferida de sua obra, pois ele narra a perseguição dos cristãos sob Valeriano (258-260) como sendo algo do passado, e os eventos seguintes como sendo contemporâneos seus. Não se sabe onde nasceu, mas passou a maior e mais importante parte de sua vida em Cesaréia, na época a maior cidade romana da Palestina. Era de família desconhecida, mas certamente cristã, como indica seu nome. Eusébio nada fala de si mesmo em sua extensa obra. Foi bispo de Cesaréia de 313 ou 315 em diante. Em 303 começa a última e maior

[ 16 ]

Page 17: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

perseguição aos cristãos, durando até 311. Não se sabe em que circunstâncias Eusébio atravessou essa tormenta. Assistiu pessoalmente a martírios em Tiro e na Tebaida (Egito), ele próprio foi preso, mas não executado, tendo sido posteriormente acusado de apostasia. Sua formação teológica foi baseada no estudo da obra de Orígenes. Durante os debates contra o arianismo Eusébio foi um dos principais defensores de uma posição mediadora, que procurava manter unificada a indefinição dogmática dos primeiros pais da Igreja. Para a dogmática posterior ele é suspeito de ser semi-ariano, o que pode ter sido a causa do rápido desaparecimento de muitos de seus escritos. Sua obra se constitui de livros históricos, apologéticos, de exegese bíblica e doutrinária. Escreveu mais de 120 volumes, a maioria dos quais perdidos, alguns são conhecidos apenas por traduções. Dos originais restam nada mais do que fragmentos. Tratou de todos os temas e personalidades ligados à Igreja, citando extensamente e comentando cerca de 250 obras de muitos autores que de outra maneira estariam perdidos, sendo conhecidos apenas através de Eusébio.

A HISTÓRIA ECLESIÁSTICA Não se trata de uma História da Igreja, como seria entendida hoje. A Igreja não é, para ele e seus contemporâneos, objeto de história, já que é uma entidade criada por Deus, e portanto transcendente. O que o historiador pode fazer é

[ 17 ]

Page 18: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

relatar os fatos, as pessoas e as instituições com ela relacionados. Dessa forma, relatam-se acontecimentos, mas não se analisa um desenvolvimento histórico. A motivação da obra, como explicitada no início do primeiro livro, é registrar a sucessão dos "santos apóstolos", os grandes feitos, os que se sobressaíram, as heresias, as perseguições e a proteção de Deus sobre seu povo. A obra é dividida em dez livros com a seguinte estrutura: I-VII: Uma contínua sucessão de temas iniciada talvez antes da perseguição, com material reunido até mais ou menos o ano 311. VIII: Atualização da obra com os acontecimentos mais recentes. IX-X: Longa extensão do livro VIII, com desfecho escrito após a inauguração da Igreja de Tiro. A forma final da obra foi atingida após quatro edições, tendo os nove primeiros livros sido publicados antes do Edito de Milão (311) e o décimo livro em 323/5. A importância da obra nos dias de hoje é múltipla: Para o estudo da historia antiga é uma rica fonte de referências e uma compilação de obras anteriores. Para a Igreja, tem o valor de registro dos primórdios de sua história. Para os cristãos traz o testemunho daqueles que viveram as perseguições dos primeiros séculos, que com seu martírio nos dão uma lição de perseverança e fé, e ao mesmo tempo nos mostram um sinal de esperança em qualquer época de crise.

Nas notas de rodapé que dão referência a versículos bíblicos de livros em que há diferença de

[ 18 ]

Page 19: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

divisão entre as versões católica e reformada, esta última aparece entre parênteses. Ex.: 105 Sl 67:32 (68:31).

História Eclesiástica, obra indispensável a quem deseja compreender a história dos primeiros séculos do cristianismo, é, sem dúvida, a obra mais importante de Eusébio de Cesaréia, destacando-se como a mais conhecida e mais citada. Compreende 10 livros, escritos ao longo doa nos 312 e 317, nos quais o autor se propõe tratar "daqueles que oralmente ou por escrito, foram mensageiros da palavra de Deus em cada geração", iniciando com uma história sumária de Cristo, desde o seu nascimento, e encerrando com a dupla vitória do imperador Constantino: sobre Maxêncio em 312 e sobre Licínio em 324. Portanto, este volume abrange o período dos primeiros séculos e retrata a sucessão dos bispos, as dificuldades causadas à Igreja pelas perseguições, o diálogo e o enfrentamento verbal com os pagãos e os judeus, o surgimento das heresias e dos heréticos e o triunfo eclesiástico associado ao triunfo constantiniano. Esse conteúdo é de riqueza inestimável, sobretudo por ter sido elaborado junto a fontes seguras, trazendo à história posterior estas mesmas fontes em forma de extratos enriquecidos com muitas citações de escritos da época. Por meio dessas citações é possível conhecer textos e documentações em geral que se perderam ao longo do tempo e foram conservados nessa obra, que, por mais

[ 19 ]

Page 20: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

essa razão, é de grande importância no universo da patrologia e da história da Igreja.

O livro História Eclesiástica de Eusébio da Cesaréia, apresenta este livro que foi escrito originariamente em grego, há mais de 1600 anos, agora ao seu alcance.

A obra completa de Eusébio da Cesaréia é considerada um clássico da literatura mundial sobre a história da Igreja e é a fonte histórica mais consultada no mundo para se conhecer o período da igreja primitiva após o livro de Atos dos apóstolos. Um relato do período do martírio dos cristãos e o destino dos apóstolos de Cristo.

Com o livro História Eclesiástica você pode ter acesso à história da igreja de maneira verídica e conhecer os milagres realizados por Deus nos primórdios da fé cristã e se inspirar nos exemplos da fé dos mártires.

[ 20 ]

Page 21: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

LIVRO - I

I (Propósito da obra)

1. É meu propósito consignar as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus; e também quantos, quais e quando, absorvidos pelo erro e levando ao extremo suas fantasias, proclamaram publicamente a si mesmos introdutores de um mal-chamado saber e devastaram sem piedade, como lobos cruéis, o rebanho de Cristo;

[ 21 ]

Page 22: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Eusébio se propôs a enumerar os grandes servos de Deus desde os dias apostólicos até seus dias.

2. e mais, inclusive as desventuras que se abateram sobre toda a nação judia depois que concluíram sua conspiração contra nosso Salvador, assim como também o número, o caráter e o tempo dos ataques dos pagãos contra a divina doutrina, e a grandeza de quantos por ela, segundo a ocasião, enfrentaram o combate em sangrenta tortura; também os martírios de nosso próprio tempo e a proteção benévola e propícia de nosso Salvador. Ao empreender a obra não tomarei outro ponto de partida que o princípio dos desígnios de nosso Salvador e Senhor Jesus, o Cristo de Deus.

A queda de Jerusalém no ano 70 d.C. foi um grande evento na história da religião, e Eusébio não deixa passa despercebido este grande evento histórico.

3. Mas, por isso mesmo, a obra pede a compreensão benevolente para mim, que declaro ser superior a nossas forças apresentar acabado e inteiro o prometido, posto que somos até agora os primeiros a abordar o tema, como quem enfrenta um caminho deserto e sem pistas. Rogamos ter a Deus como guia e o poder do Senhor como colaborador, porque de homens que nos tenham precedido por este mesmo caminho, na verdade, não conseguimos encontrar uma simples pegada; apenas, se tanto, pequenos indícios através dos quais, cada um a

[ 22 ]

Page 23: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

sua maneira, nos deixaram como herança relatos parciais dos tempos transcorridos e de longe nos estendem como tochas suas próprias palavras; desde lá em cima, como de uma atalaia distante, nos chamam e nos mostram por onde se deve caminhar e por onde devemos encaminhar os passos da obra sem erro e sem perigo.

Devemos a Eusébio esta obra prima, de importante interesse dos cristãos e teólogos, posto que podemos neste livro conhecer o desenvolvimento histórico da Igreja de Cristo com suas vitórias e derrotas.

4. Para tanto nós, depois de reunir o que achamos de aproveitável para nosso tema daquilo que estes autores mencionam aqui e ali, e colhendo, como de um prado espiritual, as frases oportunas dos velhos autores, tentaremos dar corpo a uma trama histórica e estaremos satisfeitos por poder preservar do esquecimento as sucessões, se não de todos os apóstolos de nosso Salvador, ao menos dos mais importantes nas Igrejas mais ilustres que ainda hoje são lembradas.

Eusébio nos informa que seus livros de HISTÓRIA ECLESIÁSTICA têm como um dos intuitos registrar as sucessões dos apóstolos.

5. Acredito que é de toda forma necessário que me ponha a trabalhar este tema, pois não sei de nenhum escritor eclesiástico até hoje que se tenha preocupado

[ 23 ]

Page 24: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

com este gênero literário. Espero ainda que se mostre utilíssimo para todos quantos se ocupem em adquirir uma sólida instrução histórica.

Eusébio foi fantástico, em perceber que faltava na literatura cristã, um compêndio que registrasse os anais da igreja.

6. Já anteriormente, nos Cânones cronológicos por mim redigidos, compus um resumo de tudo isso, ainda assim, na presente obra lançar-me-ei a uma exposição mais completa.

Eusébio já havia escrito uma obra escrita chamada CÂNONES CRONOLÓGICAS.

7. E começarei, como disse, pelas disposições e a teologia de Cristo, que em elevação e grandeza excedem ao homem.

8. Já que, efetivamente, quem se disponha a escrever as origens da história eclesiástica deve necessariamente começar por remontar-se à primeira disposição de Cristo mesmo - pois foi d'Ele mesmo que tivemos a honra de receber o nome - mais divina do que possa aparecer ao vulgo.

II [Resumo da doutrina sobre a preexistência de Nosso Salvador e

[ 24 ]

Page 25: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Senhor, o Cristo de Deus, e da atribuição da divindade]

1. Sendo a índole de Cristo dupla: uma, semelhante à cabeça do corpo, e por esta o reconhecemos como Deus, e outra, comparável aos pés, mediante a qual, e para nossa salvação ele se revestiu de homem, sujeito ao mesmo que nós, nossa exposição a seguir será perfeita se iniciarmos o discurso de toda sua história partindo dos pontos principais e dominantes. Deste modo, a antiguidade e o caráter divino dos cristãos ficará patente aos olhos de todos que pensam que [o cristianismo] é algo novo, estranho, de ontem e não de antes.

Eusébio revela que Cristo era reconhecido como Deus, ele mesmo foi contemporâneo de grandes debates sobre a divindade de Cristo, que ameaçou a unidade da igreja nos primeiros séculos.

2. Nenhum tratado poderia bastar para explicar em pormenores a própria substância e natureza de Cristo, por isso o Espírito divino diz: Sua linhagem, quem a narrará?; pois na verdade ninguém conheceu o Pai senão o Filho, e ninguém conheceu alguma vez ao Filho, segundo sua dignidade, senão o próprio Pai que o engendrou.

[ 25 ]

Page 26: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Eusébio não pretende que sua coleção de HISTÓRIA ECLESIÁSTICA seja um livro de teologia, que debaterá assuntos como a Cristologia.

3. E quem, a não ser o Pai, poderia conceber sem impureza a luz que é anterior ao mundo e a sabedoria inteligente e substancial que precedeu aos séculos, o Verbo vivente no Pai e que desde o princípio é Deus, o primeiro e único que Deus engendrou antes de toda a criação e de toda a produção de seres visíveis e invisíveis, o general do exército espiritual e imortal do céu, o anjo do grande conselho, o servidor do pensamento inefável do Pai, o fazedor de todas as coisas junto ao Pai, a causa segunda de tudo depois do Pai, o Filho de Deus, genuíno e único, o Senhor, o Deus e Rei de todos os seres, que recebeu do Pai a autoridade soberana e a força, junto com a divindade, o poder e a honra? Porque, em verdade, segundo o que dizem d'Ele os misteriosos ensinamentos das Escrituras: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito.

O mistério da pessoa de Deus está difundida em todas as culturas, quando em muitas religiões primitivas, os homens acreditavam que Deus subsistia três pessoas. Ainda que os pagãos desvirtuaram isso em politeísmo e triteísmo.

[ 26 ]

Page 27: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

4. E isto mesmo que ensina o grande Moisés, como o mais antigo dos profetas, ao descrever, sob a inspiração do espírito divino, a criação e a ordenação do universo: o criador e fazedor do universo cedeu a Cristo e apenas a Cristo, seu divino e primogênito Verbo, o fazer os seres inferiores; e com Ele o vemos conversando acerca da formação do homem; Disse também Deus: Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança?

Eusébio cita o livro de Gênesis 1.26 que mostra que em Deus havia uma pluralidade de pessoas.

5. Fiador desta sentença é outro profeta, ao falar assim de Deus em certa passagem de seus hinos: Pois ele falou, e foi feito; ele ordenou, e foi criado. Introduz aqui o Pai e criador dispondo com gesto régio, na qualidade de soberano absoluto, e o Verbo divino, não outro que o mesmo que nos foi anunciado, como segundo depois d'Ele e ministro executor das ordens paternas.

6. A este já desde o alvorecer da humanidade, todos quantos nos foi dito que sobressaíram por sua retitude e sua religiosidade: os companheiros do grande servidor Moisés, e antes dele Abraão, o primeiro, assim como seus filhos e todos que se mostraram justos e profetas, ao contemplá-lo com os olhos límpidos de sua inteligência, o reconheceram e renderam-lhe o culto devido como o Filho de Deus.

[ 27 ]

Page 28: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. E Ele mesmo, sem desviar em nada de sua piedade para com o Pai, tornou-se para todos o mestre do conhecimento do Pai. E assim lemos que o Senhor Deus foi visto por Abraão, que estava sentado no carvalhal de Manré, sob a forma de um homem comum. 9 Abraão se prostra de pronto e, ainda que o olhe com seus olhos de homem, ainda assim o adora como Deus, suplica-lhe como Senhor e confessa saber de quem se tratava, ao dizer textualmente: Senhor, tu que julgas toda a terra, não vais fazer justiça?

8. Porque, se nenhuma razão pode admitir que a substância não criada e imutável de Deus todo-poderoso se transforme na forma de homem, nem que com a aparência de homem criado engane os olhos dos que o veem, nem que a Escritura forje enganosamente tais coisas, um Deus e Senhor que julga toda a terra e faz justiça, e que é visto sob a aparência de homem, nem se permitindo dizer que se trata da causa primeira do universo, que outro poderia ser proclamado como tal, senão seu único e preexistente Verbo? Sobre ele também se diz nos salmos: Mandou seu Verbo e os sanou e os livrou de sua corrupção

Is 53:8; Mt 11:27; Pv 8:23; Jo 1:1-3; Gn 1:2; Sl 32:9; Gn 18:1-3; Gn 18:25; Sl 106 (107):

[ 28 ]

Page 29: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

DEPOIS apareceu-lhe Javé nos carvalhais de Manre, estando ele assentado à porta da tenda, no calor do dia. 2 E levantou os seus olhos, e olhou, e eis três homens em pé junto a ele. E vendo-os, correu da porta da tenda ao seu encontro e inclinou-se à terra, (Gênesis 18.1-2). O Pai, o Filho e Espírito Santo aparecem para Abraão, conforme vemos na passagem de Gênesis 18. Eusébio trás a tona este texto bíblico, lembrando que em seus dias havia grande contenda na igreja sobre a triunidade de Deus.

9. Moisés o proclama claramente segundo Senhor depois do Pai quando diz: Fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor sobre Sodoma e Gomorra. Também a Sagrada Escritura o proclama Deus quando apareceu a Jacó na figura de um homem e falou a ele dizendo: Já não te chamarás Jacó, e sim, Israel, pois lutaste com Deus, e então Jacó chamou àquele lugar "Visão de Deus", dizendo: Porque vi Deus face a face, e a minha vida se salvou.

Euzébio diz que a Sagrada Escritura o (Jesus) proclama Deus. Nos dias de Euzébio a questão da divindade de Cristo já havia se resolvido.

10. E não se pode supor que estas aparições divinas mencionadas sejam de anjos inferiores e servidores de Deus, pois quando algum destes aparece aos homens, não se cala a Escritura, mas chama-os por

[ 29 ]

Page 30: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

seu nome, não Deus nem sequer Senhor, mas anjos, como é fácil provar com incontáveis passagens.

11. E a este Verbo, Josué, sucessor de Moisés, depois de havê-lo contemplado não de outra maneira que em forma e figura de homem também, chama-o príncipe do exército de Deus, como fazendo-o chefe dos anjos e arcanjos do céu e dos poderes superiores, e como sendo poder e sabedoria do Pai e a quem foi confiado o segundo posto do reinado e do principado sobre todas as coisas.

12. Porque está escrito: Estando Josué perto de Jericó, levantando os olhos, viu diante dele um homem que trazia na mão uma espada nua; chegou-se Josué a ele, e disse-lhe: És tu dos nossos, ou dos nossos adversários? Respondeu ele: Eu sou o general do exército do Senhor; acabo de chegar. Então Josué se prostrou sobre o seu rosto na terra e disse-lhe: Que diz meu Senhor ao seu servo? Respondeu o general do exército do Senhor a Josué: Descalça as sandálias de teus pés, porque o lugar em que estás é santo.

13. De onde, partindo das próprias palavras, observarás que este é o mesmo que se revelou a Moisés, pois efetivamente a Sagrada Escritura refere-se a ele nos mesmos termos: Vendo o Senhor que ele se aproximava para ver, o Senhor, do meio da sarça, o chamou, e disse: Moisés, Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui. E disse o Senhor: não te chegues para cá; tira as sandálias dos

[ 30 ]

Page 31: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

pés, porque o lugar em que estás é terra santa. E lhe disse: Eu sou o Deus de teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó.

14. E que ao menos há uma substância anterior ao mundo, viva e subsistente, que serviu de ajuda ao Pai e Deus do universo na criação de todos os seres, chamada Verbo de Deus e Sabedoria. Além das provas expostas, nos foi dado ouvi-lo da própria Sabedoria em pessoa que, pela boca de Salomão, nos inicia claramente em seu próprio mistério: Eu, a Sabedoria, plantei minha lenda no conselho e invoquei o conhecimento e a inteligência; por meu intermédio reinam os reis, e os potentados administram justiça; por meu intermédio os grandes são engrandecidos; e por meu intermédio os soberanos dominam a terra(19).

O Cristo é anterior o mundo, ele não foi criado, foi criador.

15. Ao que acrescenta: O Senhor me criou como princípio de seus caminhos em suas obras, antes dos séculos assentou meus fundamentos. No princípio, antes que fizesse a terra, antes que brotassem as fontes das águas, antes de firmar os montes e antes de todos os outeiros, engendrou a mim. Quando preparava os céus, eu estava com Ele; e quando tornava perenes os mananciais que estão sob o céu, eu estava com Ele a dirigir. Eu me sentava ali onde a cada dia Ele se agradava

[ 31 ]

Page 32: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

e me encantava estar diante d'Ele em toda ocasião, quando Ele se congratulava por ter terminado o universo (20).

16. Brevemente pois, está exposto que o Verbo divino existia antes de tudo, e também a quem apareceu, já que não o fez a todos.

Gn 19:24. Gn 32:28. Gn 32:30. Js 5:14. 1 Co 1:24. Js 5:13-15. Ex 3:4-6. 19 19 Pv 8:12, 15-16. 20 Pv 8:22-25, 27-28, 30-31.

17. Mas por que não foi isto ensinado antes, antigamente, a todos os homens e a todas as nações, assim como é agora? Talvez possa explicá-lo esta resposta: a vida primitiva dos homens era incapaz de encontrar um lugar para o ensinamento de Cristo, todo sabedoria e virtude.

18. De fato, logo no início, depois de seu primeiro tempo de vida feliz, o primeiro homem se afastou dos mandamentos divinos e lançou-se nesta vida mortal e perecível, trocando as delícias divinas do começo por esta terra maldita. E seus descendentes povoaram toda nossa terra, e com exceção de uns poucos aqui e ali, foram manifestamente degenerando e chegaram a ter uma conduta própria de animais e uma vida intolerável (21).

19. Não lhes ocorria sequer pensar em cidades, nem em normas, nem em artes, nem em ciências. De leis

[ 32 ]

Page 33: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

e juízos, assim como da virtude e da filosofia não conheciam nem o nome. Como gente rude e selvagem, levavam vida nômade por lugares desertos. Com a excessiva maldade a que livremente se entregaram, corrompiam o raciocínio natural e toda semente de inteligência e suavidade próprias da alma humana. E a tal ponto se entregavam sem reservas a toda iniquidade, que por vezes se corrompiam mutuamente, às vezes se matavam uns aos outros, ocasionalmente praticavam a antropofagia, levaram sua ousadia até a combater contra Deus e travar estas guerras de gigantes por todos conhecidas, e pensaram em fortificar a terra contra o céu e preparar-se, em seu louco desvario, para fazer guerra àquele que está sobre tudo.

20. Aos que levavam tal vida, Deus, que tudo controla, perseguiu com inundações e incêndios devastadores, como se fossem uma floresta selvagem espalhada pela terra, e os abateu com fomes contínuas, com pestes e guerras, e ainda fulminando-os do alto, como se com estes remédios tão amargos tentasse eliminar uma espantosa e gravíssima enfermidade das almas.

21. Então pois, quando estavam realmente a ponto de chegar ao estupor da maldade, como o de uma tremenda embriaguez que obscurecesse e afundasse em trevas as almas de quase todos os homens, a Sabedoria de Deus, sua primeira e primogênita criatura, o próprio

[ 33 ]

Page 34: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Verbo preexistente, por um excesso de amor aos homens, se manifestou aos seres inferiores, algumas vezes por meio de visões de anjos e outras por si mesmo, como poder salvador de Deus, a alguns poucos dos antigos varões amigos de Deus, e não de outra maneira que em forma de homem, a única em que poderia aparecer para eles.

22. Mas uma vez que, por meio destes, a semente da religião se estendeu a uma multidão de homens, e surgiu dos primeiros hebreus da terra uma nação inteira que se apegou à religião, Deus, por meio do profeta Moisés, entregou a estes, como a homens que continuavam em seu antigo estilo de vida, imagens e símbolos de certo misterioso sábado e da circuncisão, e iniciou-os em outros preceitos espirituais, mas não revelou-lhes o próprio mistério.

23. Mas a sua lei ficou famosa, e como uma brisa perfumada difundiu-se entre os homens. Então, a partir deles, as mentes da maioria dos povos se foi suavizando por influência de legisladores e filósofos daqui e d'acolá, e a própria condição de animais rudes e selvagens foi-se transformando em suavidade, ao ponto de chegarem a uma paz profunda, amizade e trato de uns com os outros. Pois bem, assim é que finalmente, no início do império romano e por meio de um homem que em nada diferia de nossa natureza quanto à substância corporal, se manifestou a todos os homens e a todas as nações

[ 34 ]

Page 35: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

espalhadas pelo mundo considerando-os preparados e dispostos já a receber o conhecimento do Pai, aquele mesmo mestre de virtudes em pessoa, o colaborador do Pai em toda boa obra, o divino e celestial Verbo de Deus, e tão grandes coisas realizou e padeceu quantas se achavam nas profecias; estas haviam proclamado de antemão que um homem e Deus ao mesmo tempo viria a habitar nesta vida e realizaria maravilhas e seria reconhecido como mestre da religião de seu Pai para todas as nações; também haviam proclamado a maravilha de seu nascimento, a novidade de seus ensinamentos, suas obras admiráveis e, como se isto fosse pouco, a forma de sua morte, sua ressurreição de entre os mortos e sobretudo sua divina restauração nos céus.

Euzébio acredita que Jesus Cristo se manifestou no mundo na plenitude dos tempos, quando Deus teria encontrado a humanidade mais propícia e civilizada para receber o Messias. Não acho assim, porque mataram o salvador... E esta descrição dos homens logo após a queda como animais selvagens, também não me parece verdade. As leis dos sumérios e babilônios mostram que eles tinham a milhares de anos atrás uma boa noção de vida em grupo e civilidade. O próprio ato de Noé construir uma balsa tão bem estruturada para suportar tamanha tripulação revela que eles tinham capacidades intelectuais elevadas. As pirâmides do Egito, e a cidade de Ur dos Caldeus revelam também uma engenharia avançada.

[ 35 ]

Page 36: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Euzébio parece defender uma evolução civilizatória da humanidade, se isso fosse verdade, as duas piores matanças da humanidade não teriam acontecido agora no último estágio da humanidade, no século XX.

24. Quanto ao reinado final do Verbo, o profeta Daniel, contemplando-o sob influência do espírito divino, sentiu-se divinamente inspirado e descreveu assim, bem ao estilo humano, sua visão: (21) Esta visão tão pessimista não provém das Escrituras, mas da filosofia grega. Porque eu - disse - estava olhando até que foram colocados tronos, e um ancião de muitos dias se assentou. E sua roupa era alva como a neve, e seu cabelo como lã limpa; seu trono era uma chama de fogo, e suas rodas, fogo ardente. Um rio de fogo brotava diante d'Ele e milhares de milhares o serviam e miríades e miríades estavam diante d'Ele. Sentou-se o tribunal e se abriram os livros (22).

25. Após poucas linhas continua dizendo: Eu estava olhando, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem que dirigiu-se ao Ancião de muitos dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio e glória e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, não passará, e o seu reino não será destruído (23).

[ 36 ]

Page 37: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

26. Pois bem, está claro que todas estas coisas não poderiam referir-se a outro que a nosso Salvador, ao Deus-Verbo, que no princípio estava em Deus e que, por causa de sua encarnação nos últimos tempos, foi chamado Filho do homem.

27. Mas fiquemos contentes com o que foi dito, para a presente obra, pois em comentários especiais já reuni as profecias que tangem a Jesus Cristo, nosso Salvador, e em outros escritos dei uma melhor demonstração de tudo que expusemos acerca d'Ele.

III (De como os nomes de Jesus e de Cristo já eram conhecidos desde a antiguidade e honrados pelos profetas inspirados por Deus)

1. É chegado o momento de demonstrar que também entre os antigos profetas, amigos de Deus, já se honravam os nomes de Jesus e de Cristo.

2. Moisés mesmo foi o primeiro a conhecer o nome de Cristo como o mais augusto e glorioso quando fez entrega de figuras, símbolos e imagens misteriosos das coisas do céu, conforme a voz que lhe dizia: Vê pois, farás todas as coisas segundo o modelo que te foi mostrado no monte (24); e celebrando ao sumo sacerdote

[ 37 ]

Page 38: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de Deus tanto quanto é possível a um homem, proclama-o "Cristo" (25). A esta dignidade do supremo sacerdócio, que para ele ultrapassa a qualquer dignidade dos homens, sobre a honra e a glória, adiciona o nome de Cristo. Portanto, ele conhecia o caráter divino de Cristo.

3. Mas o mesmo Moisés, por obra do espírito divino, conhecia de antemão bem claramente também o nome de Jesus, considerando-o mesmo digno de um privilégio único. Na verdade, nunca se havia pronunciado este nome entre os homens antes de ser conhecido por Moisés. Este aplica o nome de Jesus pela primeira e única vez àquele que, novamente conforme a figura e o símbolo, ele sabia que viria a sucedê-lo depois de sua morte no comando supremo (26).

4. Nunca antes seu sucessor havia usado o nome de Jesus, mas era chamado por outro nome, Ausé, exatamente o que lhe haviam dado seus pais (27). Moisés deu-lhe o nome de Jesus como um privilégio precioso, muito maior do que o de uma coroa real. Deu-lhe este nome porque, em realidade, o próprio Jesus, filho de Navé, era portador da imagem de nosso Salvador, o único que, depois de Moisés e depois de haver concluído o culto simbólico por ele transmitido, o sucederia no comando da verdadeira e sólida religião.

5. E desta maneira Moisés, dando-lhes a maior honra, aplicou o nome de Jesus Cristo nosso Salvador

[ 38 ]

Page 39: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

aos dois homens que, segundo ele, mais sobressaíam em virtude e glória sobre todo o povo, a saber, o sumo sacerdote e aquele que haveria de sucedê-lo no comando.

22 Dn 7:9-10. 23 Dn 7:13-14. 24 Ex 25:40 cf. Hb 8:5. 25 Lv 4:5-16; 6:22. 26 Nm 13:16. 27 Ausé é a forma usada na LXX, assim como Jesus mais adiante; no texto masorético os nomes são Oséias e Josué.

Em todo o texto de Euzébio ele busca nos mostrar que Jesus Cristo é o Messias, o Deus encarnado que se revelou na plenitude dos tempos.

6. Está claro também que os profetas posteriores anunciaram a Cristo por seu nome e deram testemunho adiantadamente, não apenas da conspiração do povo judeu que seria levantada contra Ele, mas também do chamamento que Ele faria a todas as nações. Uma vez será Jeremias, quando assim diz: O espírito de nosso rosto, o Cristo Senhor, de quem havíamos dito: "A sua sombra viveremos entre os povos", caiu preso em sua armadilhas (28). Outra vez será Davi, que exclama perplexo: Por que se amotinaram as nações e os povos imaginaram planos vãos? Levantaram-se os reis da terra e os príncipes se uniram contra o Senhor e seu Cristo (29); e logo acrescenta, falando na própria pessoa de Cristo: O Senhor me disse: Tu és meu filho, eu, hoje, te

[ 39 ]

Page 40: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

gerei. Pede-me, e eu te darei as nações em herança e os confins da terra em possessão (30).

7. Mas, deve-se saber que, entre os hebreus, o nome de Cristo não era ornamento apenas dos que estavam investidos do sumo sacerdócio e eram ungidos simbolicamente com óleo preparado, mas também dos reis, que eram ungidos pelos profetas por inspiração divina e faziam deles imagens de Cristo, pois efetivamente estes reis já levavam em si mesmos a imagem do poder real e soberano do único e verdadeiro Cristo, Verbo divino, que reina sobre todas as coisas.

8. Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram convertidos em Cristos, figuradamente, por meio da unção com o óleo (31), de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai.

9. Prova disto é que nenhum dos que antigamente foram ungidos simbolicamente: nem sacerdotes, nem reis, nem profetas, possuíram tão alto poder de virtude divina como está demonstrado que possuiu Jesus, nosso Salvador e Senhor, o único e verdadeiro Cristo.

10. Ao menos nenhum deles, por mais que brilhasse por sua dignidade e por sua honra entre os seus em tantas gerações, deu jamais o nome de cristãos aos

[ 40 ]

Page 41: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

seus súditos, aplicando-lhes figuradamente o nome de Cristo. Nem tampouco seus súditos renderam-lhes a honra de culto, nem foi de nenhum deles a disposição de que após a sua morte estivessem preparados para morrer pelo mesmo a quem honravam. E por nenhum deles houve tamanha comoção de todas as nações do vasto mundo. E assim é, que a força do símbolo que havia neles era incapaz de operar como operou a presença da verdade demonstrada através de nosso Salvador.

11. Este não tomou de ninguém os símbolos e figuras do sumo sacerdócio, nem descendia, quanto à carne, de família sacerdotal, nem foi elevado à dignidade real por um corpo de guarda composto de homens; nem mesmo foi um profeta igual aos de antigamente nem obteve entre os judeus nenhuma precedência de honra ou de qualquer outro tipo; e, ainda assim, está adornado pelo Pai de todas estas prerrogativas, e não por figura, mas em verdade mesmo.

12. Assim, sem ter sido objeto de nada semelhante ao que descrevemos, está proclamado Cristo com mais razão que todos aqueles, e sendo Ele mesmo o único e verdadeiro Cristo de Deus, encheu o mundo inteiro de cristãos, isto é, de seu nome realmente venerável e sagrado. Já não são figuras e imagens o que Ele entrega a seus seguidores, mas as próprias virtudes em sua pureza e uma vida no céu com a própria doutrina da verdade.

[ 41 ]

Page 42: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

13. E a unção que recebeu não foi preparada com substâncias materiais, mas algo divino pelo Espírito de Deus, por sua participação na divindade incriada do Pai. É justamente isto que ensinava Isaías quando clamava, como se o fizesse com a própria voz de Cristo: O Espírito do Senhor está sobre mim, por isto me ungiu: enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, a apregoar aos cativos a liberdade e aos cegos o ver de novo (32).

Cristo verdadeiramente é apresentado como participando da natureza incriada do Pai. Como costumamos dizer: Maria é mãe do corpo físico de Jesus. O Espirito que estava nele era o Filho de Deus;

14. E não apenas Isaías. Também Davi dirige-se ao mesmo Cristo e lhe diz: Teu trono é, ó Deus, eterno e para sempre; o cetro do teu reino, cetro de retidão. Amaste a justiça e odiaste a maldade, por isso te ungiu Deus, o teu Deus, com óleo de alegria, mais que aos teus companheiros (33). Aqui, o primeiro versículo do texto o chama Deus; o segundo honra-o com o cetro real.

15. Em continuação, depois de seu poder divino e real, mostra o mesmo Cristo, em terceiro lugar, ungido não com o óleo que procede de matéria física, mas com o óleo divino da alegria, representando sua excelência, sua superioridade e sua diferença em relação aos antigos, ungidos mais corporeamente e figuradamente.

[ 42 ]

Page 43: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

28 Lm 4:20. 29 Sl 2:1-2. 30 Sl 2:7-8. 31 Recorde-se que "Cristo" significa "ungido". 32 Is 61:1; Lc 4:18-19. 33 Sl 44:7-8 (45:6-7).

16. Em outra passagem, o mesmo Davi revela as coisas que se referem a Cristo com estas palavras: Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha destra enquanto ponho teus inimigos sob os teus pés (34). E também: Do meu seio te criei antes do alvorecer. Jurou o Senhor e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque (35).

17. Pois bem, este Melquisedeque aparece nas Sagradas Escrituras como sacerdote do Deus Altíssimo (36) sem que fosse assinalado com algum óleo preparado e sem que fosse aparentado com o sacerdote hebreu por sucessão hereditária alguma. Por isso é que nosso Salvador é proclamado com juramento Cristo e Sacerdote segundo sua ordem e não segundo a de outros, que haviam recebido símbolos e figuras.

18. E por isso que a história tampouco nos transmitiu que Cristo tivesse sido ungido corporeamente entre os judeus, nem que tivesse nascido de uma tribo sacerdotal, pelo contrário, que recebeu seu ser de Deus mesmo antes do alvorecer, isto é, antes da criação do mundo, e que tomou posse de um sacerdócio imortal e duradouro pela eternidade sem fim.

[ 43 ]

Page 44: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

19. Uma prova sólida e patente desta unção incorpórea e divina é que, de todos os homens de seu tempo e dos que se seguiram até hoje, unicamente Ele, entre todos e no mundo inteiro, foi chamado e proclamado Cristo; somente a Ele reconhecem sob este nome, dão testemunho d'Ele e se recordam d'Ele todos, tanto gregos quanto bárbaros; e até hoje seus seguidores, espalhados por toda a terra habitada, seguem dando-lhe honras de rei, honrando-o mais do que aos profetas e glorificando-o como o verdadeiro e único sumo Sacerdote de Deus, e acima de tudo isto, por ser Verbo de Deus, preexistente e nascido antes de todos os séculos, e por haver recebido do Pai as honras divinas, adoram-no como a Deus.

O texto grifado acima é incompatível com a designação de que Cristo é incriado. Se é incriado, ele nunca nasceu. Uma certa incongruência de Euzébio.

20. E o que é mais extraordinário: que aqueles que a Ele estamos consagrados não somente o honramos com a voz e com palavras, mas também com a plena disposição da alma, ao ponto de estimar mais o martírio por Ele do que nossa própria vida.

IV (De como o caráter da religião anunciada por Cristo a todas as nações não era novo nem estranho)

[ 44 ]

Page 45: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. É bastante o que foi dito, para iniciar minha narração, para que ninguém pense que nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo é algo novo devido a sua época de vida em carne mortal. Mas, para que ninguém possa ainda supor que sua doutrina é nova e estranha, como se tivesse sido criada por um homem recente e em nada diferente dos demais homens, explicaremos também brevemente este ponto.

2. Não faz muito tempo, efetivamente, que brilhou sobre todos os homens a presença de nosso Salvador Jesus Cristo, e um povo, novo no conceito de todos, fez sua aparição assim, de repente, conforme as inefáveis predições dos tempos; um povo não pequeno, nem fraco, nem localizado em algum recanto da terra, mas ao contrário, o mais numeroso e o mais religioso de todos os povos, indestrutível e invencível por ser em todo momento objeto do favor divino, o povo ao qual todos honram com o nome de Cristo.

3. Um dos profetas que contemplou antecipadamente com os olhos do Espírito de Deus a futura existência deste povo encheu-se de tal assombro que se pôs a gritar: Quem viu semelhante coisa? E quem falou assim? Nasce uma terra em um dia e nasce um povo de uma vez! (37) E o mesmo profeta faz também alusão em outro lugar ao nome futuro deste povo, quando diz: E os meus servos serão chamados por um nome novo, que será bendito sobre a terra (38).

[ 45 ]

Page 46: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

4. Mas se está claro que nós somos novos, e que este nome de cristãos só foi realmente conhecido entre todas as nações recentemente, ainda assim e apesar disto demonstraremos aqui que nossa vida e o caráter de nossa conduta, adaptada aos próprios preceitos da religião, não é invenção nossa de ontem, mas que, por assim dizer, manteve-se em vigor desde a primeira criação do homem, graças ao bom senso daqueles antigos varões amigos de Deus.

34 Sl 109(110):1. 35 Sl 109:3-4(110:4). 36 Gn 14:18-20. 37 Is 66:8. 38 Is 65:15.

5. O povo hebreu não é um povo novo, pelo contrário, é sabido por todos que os homens sempre o reconheceram por sua antiguidade. Pois bem, seus documentos e escritos mencionam alguns homens antigos, escassos e espaçados no tempo, é certo, mas em troca, excelentes em religiosidade, em justiça e em todas as demais virtudes. Destes, alguns viveram antes do dilúvio, outros depois. E dentre os filhos e descendentes de Noé destaca-se especialmente Abraão, de quem os filhos dos hebreus se gabam de ter por autor e primeiro pai.

6. Se, remontando-se desde Abraão até o primeiro homem, alguém dissesse que todos estes varões, cuja justiça está bem documentada, foram

[ 46 ]

Page 47: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

cristãos, ainda que não por nome, mas por suas obras, não estaria enganado.

7. Porque o que este nome significa é que o cristão, devido ao conhecimento de Cristo e de sua doutrina, sobressai por sua sobriedade, por sua justiça, pela firmeza de seu caráter, pelo valor de sua virtude e pelo reconhecimento de um só e único Deus de todas as coisas, e a atitude daqueles homens em relação a estas coisas em nada era inferior à nossa.

8. Não se preocuparam com a circuncisão corporal, como tampouco nós; nem da guarda do sábado, como tampouco nós; nem da abstenção destes ou daqueles alimentos, nem de afastar-se de tantas outras coisas, como Moisés deixou por tradição para que se cumprissem como símbolos, e que nós, os cristão de agora, tampouco guardamos. Em troca, claramente conheceram ao Cristo de Deus que, como demonstramos antes, apareceu a Abraão, tratou com Isaac, falou a Israel e conversou com Moisés e com os profetas posteriores.

Vemos que a Igreja nos tempos de Eusébio não guardava o sábado nem se abstinha de alimentos, porque esta é uma doutrina desde o começo da igreja. O apóstolo Paulo, doutrinador do cristianismo deixou esta determinação clara em cartas como a carta aos Romanos e aos Gálatas.

[ 47 ]

Page 48: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

9. Por isso poderás ver que aqueles amigos de Deus são também dignos do sobrenome de Cristo, conforme a sentença que diz sobre eles: Não toqueis a meus Cristos, nem façais mal a meus profetas39.

10. Daí se percebe claramente a necessidade de crer que aquela religião, a primeira, a mais antiga e mais venerável de todas, tesouro daqueles mesmos varões amigos de Deus e companheiros de Abraão, é a mesma que recentemente foi anunciada a todos os povos pelos ensinamentos de Cristo.

11. Talvez se possa alegar que Abraão recebeu muito tempo depois o mandamento da circuncisão, mas também se proclama e se dá testemunho de sua justificação por sua fé, anterior a este mandamento, pois diz assim a divina Escritura: E creu Abraão em Deus, e foi-lhe imputado para justiça40.

12. E a ele, assim justificado, mesmo antes da circuncisão, Deus, que lhe apareceu (e este Deus era o próprio Cristo, o Verbo de Deus), comunicou um oráculo a respeito dos que em tempos futuros seriam justificados do mesmo modo que ele; os termos da promessa são: E em ti serão benditos todos os povos da terra (41); e também: E se fará um povo grande e numeroso, e nele serão benditos todos os povos da terra (42).

13. Agora pois, pode-se estabelecer que isto foi cumprido em nós, porque efetivamente Abraão foi

[ 48 ]

Page 49: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

justificado por sua fé no Verbo de Deus, o Cristo que lhe apareceu, depois que deu adeus às superstições de seus pais e ao erro de sua vida anterior, e após confessar um só Deus, que está sobre todas as coisas, e de honrá-lo com obras de virtude, não com as obras da lei de Moisés, que veio mais tarde. E sendo assim, a ele foi dito que todas as tribos da terra e todos os povos seriam benditos nele.

14. Pois bem, nos dias de hoje esta mesma forma de religião de Abraão só é praticada, com obras mais visíveis do que as palavras, entre os cristãos espalhados por todo o mundo habitado.

39 Sl 104 (105):15. 40 Gn 15:6. 41 Gn 12:3; 22:18. 42 Gn 18:18.

15. Portanto, o que poderia ainda impedir-nos de reconhecer uma única e idêntica vida e forma de religião para nós, os que procedemos de Cristo, e para aqueles antigos amigos de Deus? Deste modo teremos demonstrado que a prática da religião que nos foi transmitida pelo ensinamento de Cristo não é nova nem estranha, mas, para dizermos a verdade, a primeira e única verdadeira. E baste-nos isto.

[ 49 ]

Page 50: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

V - (De quando Cristo se manifestou aos

homens)

1. Bem, depois deste preâmbulo, necessário para a história eclesiástica a que me propus, só nos resta começar nossa espécie de viagem, partindo da manifestação de nosso Salvador em sua carne e depois de invocar a Deus, Pai do Verbo, e ao mesmo Jesus Cristo, nosso Salvador e Senhor, Verbo celestial de Deus, como nossa ajuda e nosso colaborador na verdade da exposição.

2. Corria pois o ano 42 do reinado de Augusto e o vigésimo oitavo desde a submissão do Egito e da morte de Antônio e de Cleópatra (com a qual se extinguiu a dinastia egípcia dos Ptolomeus), quando nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo nasceu em Belém da Judéia, conforme as profecias a seu respeito (43), nos tempos do

[ 50 ]

Page 51: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

primeiro recenseamento, e sendo Quirino governador da Síria (44).

3. Este recenseamento de Quirino também é registrado pelo mais ilustre dos historiadores hebreus, Flavio Josefo, ao relatar outros feitos referentes à seita dos galileus, surgida naquela ocasião, e a qual também é mencionada pelo nosso Lucas nos Atos quando diz: Depois deste se levantou Judas o, galileu, nos dias do recenseamento, e arrastou o povo atrás de si. Também este pereceu, e todos os que o seguiram se dispersaram (45).

4. A estas indicações o mencionado Josefo acrescenta literalmente no livro XVIII de suas Antiguidades o seguinte: "Quirino, membro do senado, homem que havia desempenhado já os outros cargos pelos quais passou, sem omitir um só, até chegar a cônsul e grande por sua dignidade em todos; os demais, assumiu na Síria acompanhado por uns poucos, enviado por César como juiz da nação e censor dos bens."

Já dá para vê que Eusébio era diferenciado, um cara letrado, historiador mesmo, procurou apontar o tempo exato que Jesus Cristo surgiu na história.

5. E pouco depois diz: "Mas Judas o gaulanita - da cidade chamada Gaula -, tomando consigo a Sadoc, um fariseu, andava instigando à rebelião; dizia que o censo não conduziria a outra coisa que não uma

[ 51 ]

Page 52: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

escravidão declarada, e exortava o povo a aferrar-se à liberdade."

6. E sobre o mesmo escreve no livro II de suas Histórias da guerra judaica: "Por esse tempo certo galileu, chamado Judas, provocou a rebelião dos habitantes do país, reprovando-lhes a submissão ao pagamento do tributo aos romanos e ao submeter-se a amos mortais além de Deus." Assim escreveu Josefo.

VI - [De como, segundo as profecias, em seus dias terminaram os reis por linha hereditária que regiam a nação judia e começou a reinar Herodes, o primeiro estrangeiro]

1. Foi nesse tempo que assumiu o reinado sobre o povo judeu, pela primeira vez, Herodes, de família estrangeira, e cumpriu-se a profecia feita por meio de Moisés, que dizia: Não faltará chefe saído de Judá nem governante nascido de sua carne até que chegue aquele

[ 52 ]

Page 53: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

para quem está reservado (46), e sinaliza-o como esperança das nações.

43 Mq 5:1 (5:2). 44 Lc 2:2. 45 At 5:37. 46 Gn 49:10.

2. Esta predição efetivamente não havia sido cumprida durante o tempo em que ainda lhes era permitido viver sob governantes de sua própria nação, começando com o próprio Moisés e continuando até o império de Augusto. Nos tempos deste é que pela primeira vez um estrangeiro, Herodes, se vê investido pelos romanos com o governo dos judeus: segundo nos informa Josefo, era idumeu por parte de pai e árabe por parte de mãe. Mas, segundo Africanus - que não era mau historiador —, os que dão informação exata sobre Herodes dizem que Antípatro (este era seu pai) era filho de um certo Herodes de Ascalon, um dos chamados hieródulos (47), que servia no templo de Apolo.

3. Este Antípatro, ainda criança, foi raptado por bandidos idumeus e viveu com eles, porque seu pai, pobre como era, não podia oferecer resgate por ele. Criado em meio a seus costumes, mais tarde firmou amizade com Hircano, sumo sacerdote judeu. Dele nasceu o Herodes dos tempos de nosso Salvador...

4. Tendo pois o reino judeu vindo às mãos de tal pessoa, a expectativa das nações, conforme a profecia, estava também à porta; haviam desaparecido do reino os

[ 53 ]

Page 54: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

príncipes e mandatários descendentes por via de sucessão entre si do próprio Moisés.

5. Ao menos tinham reinado antes do cativeiro e da migração para a Babilônia, começando com Saul - o primeiro - e por Davi. E antes dos reis, foram governados por mandatários chamados juízes, que tinham começado também depois de Moisés e de seu sucessor, Josué.

6. Pouco depois do regresso da Babilônia serviram-se ininterruptamente de um regime político de oligarquia aristocrática (eram os sacerdotes que estavam à frente dos assuntos), até que o general romano Pompeu atacou Jerusalém, assaltou-a à força e profanou os lugares santos entrando até a parte mais escondida do templo. E àquele que até esse momento havia se mantido por sucessão hereditária, na qualidade de rei e de sumo sacerdote - chamava-se Aristóbulo - mandou acorrentado a Roma, junto com seus filhos, e entregou o sumo sacerdócio a seu irmão Hircano. A partir daquele momento o povo judeu inteiro tornou-se tributário dos romanos.

7. Desta forma, assim que Hircano, último a quem chegou a sucessão dos sumos sacerdotes, foi levado cativo pelos partos, o senado romano e o imperador Augusto colocaram a nação judia nas mãos de Herodes, o primeiro estrangeiro, como já foi dito.

[ 54 ]

Page 55: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

8. Em seu tempo ocorreu visivelmente a vinda de Cristo e, segundo a profecia, seguiu-se a esperada salvação e vocação dos gentios. A partir desse tempo, efetivamente, os príncipes e mandatários originários de Judá, quero dizer, os que vinham do povo judeu, desapareceram, e em seguida naturalmente viram perturbados também os assuntos do sumo sacerdócio, que até então vinha sendo passado de modo estável de pais a filhos em cada geração.

9. Encontramos importante testemunho de tudo isso em Josefo, que explica como Herodes, assim que os romanos lhe confiaram o reino, deixou de instituir sumos sacerdotes vindos da antiga linhagem, pelo contrário, distribuiu esta honra entre gente sem expressão. E diz ainda que na instituição dos sacerdotes Herodes foi imitado por seu filho Arquelau e depois dele pelos romanos, quando tomaram para si o governo dos judeus.

10. O mesmo Josefo explica como Herodes foi o primeiro a fechar sob seu próprio selo as vestimentas sagradas do sumo sacerdote, não permitindo mais aos sumos sacerdotes levá-las sobre si, e que o mesmo foi feito por seu sucessor Arquelau, e depois deste pelos romanos.

11. Tudo o que foi dito sirva também como prova do cumprimento de outra profecia referente à manifestação de Jesus Cristo nosso Salvador. No livro de

[ 55 ]

Page 56: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Daniel (48), a Escritura determina clara e expressamente um número de semanas até o Cristo-príncipe - acerca do que fiz uma exposição detalhada em outra obras - e profetiza que, depois de cumpridas estas semanas, seria extinta por completo a unção entre os judeus. Agora, pois, demonstra-se claramente que também isto se cumpriu com o nascimento de nosso Salvador Jesus Cristo. Sirva o dito como exposição necessária para a verdade das datas.

Interessante que já nos dias de Euzébio a teologia escatológica já se debruçava sobre a questão das setenta semanas de Daniel, um pilar da doutrina do fim dos tempos. Ao final das 69 semanas o Messias foi tirado da Terra, e começou o grande parêntese da Igreja.

VII - [Da suposta discrepância dos evangelhos acerca da genealogia de Cristo]

[ 56 ]

Page 57: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Posto que ao escrever seus evangelhos Mateus e Lucas nos transmitiram (49) genealogias diferentes acerca de Cristo, que para muitos parecem ser discrepantes, e como cada crente, por ignorância da verdade, se esforça por inventar sobre estas passagens, vamos adicionar as considerações sobre este tema que chegaram a nós e que Africanus, mencionado a pouco, recorda em carta a Aristides, acerca da concordância das genealogias nos evangelhos. Refuta as opiniões dos demais como forçadas e mentirosas, e expõe o parecer que recebeu, nestes mesmos termos:

47 Escravos dos templos. 48 Dn 9:24-27. 49 Mt 1:1-17; Lc 3:23-38.

2. "Porque, efetivamente, em Israel os nomes das famílias se enumeravam segundo a natureza ou segundo a lei. Segundo a natureza, por sucessão de nascimento legítimo; segundo a lei (50), quando um morria sem filhos e seu irmão os engendrava para conservar seu nome (a razão é que ainda não se havia dado uma esperança clara de ressurreição, e arremedavam a prometida ressurreição futura com uma ressurreição mortal, para que se perpetuasse o nome do falecido).

3. Como queira, pois, que os incluídos nesta genealogia uns se sucederam por via natural de pais a filhos, e os outros, ainda que gerados por uns, recebiam o nome de outros, de ambos os grupos se registra a

[ 57 ]

Page 58: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

memória: dos que foram gerados e dos que passaram por sê-lo.

4. Deste modo, nenhum dos evangelhos engana: enumeram segundo a natureza e segundo a lei. De fato, duas famílias, que descendiam de Salomão e de Natã respectivamente, estavam mutuamente entrelaçadas por causa das ressurreições dos que haviam morrido sem filhos, das segundas núpcias e da ressurreição da descendência, de forma que é justo considerar os mesmos indivíduos em diferentes ocasiões filhos de diferentes pais, dos fictícios e dos verdadeiros, e também que ambas genealogias são estritamente verdadeiras e chegam até José por caminhos complicados, mas exatos.

5. Mas para que fique claro o que foi dito, vou explicar a transposição das linhagens. Quem vai enumerando as gerações a partir de Davi e através de Salomão encontra que o terceiro antes do final é Matã, o qual gerou a Jacó, pai de José (51). Mas, partindo de Natã, filho de Davi, segundo Lucas (52), também o terceiro para o final é Melqui, pois José era filho de Heli, filho de Melqui.

6. Portanto, sendo José nosso ponto de atenção, deve-se demonstrar como é que nos é apresentado como seu pai um ou outro: Jacó, que traz sua linhagem de Salomão, e Heli, que descende de Natã; e de que modo, primeiramente os dois, Jacó e Heli, são irmãos; e ainda

[ 58 ]

Page 59: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

antes, como é que os pais destes, Matã e Melqui, sendo de linhagens diferentes, aparecem como avós de José.

7. Assim é que Matã e Melqui se casaram sucessivamente com a mesma mulher e tiveram filhos, filhos de uma mesma mãe, pois a lei não impedia que uma mulher sem marido - porque este a houvesse repudiado ou porque houvesse morrido - se casasse com outro.

8. Pois bem, de Esta (pela tradição era assim que se chamava a mulher), Matã, o descendente de Salomão, foi o primeiro, gerando a Jacó; tendo morrido Matã, casou-se a viúva com Melqui, cuja ascendência remonta a Natã e que, sendo, como dissemos antes, da mesma tribo, era de outra família. Este teve um filho: Heli.

9. E assim encontramos que, sendo de duas linhagens diferentes, Jacó e Heli são irmãos por parte de mãe. Morrendo Heli sem filhos, seu irmão Jacó casou-se com sua mulher, e dela teve um terceiro filho, José, o qual, segundo a natureza, era seu (e segundo o texto, pois por isso está escrito: Jacó gerou a José (53), mas, segundo a lei, era filho de Heli, já que Jacó, sendo seu irmão, suscitou-lhe descendência.

10. Portanto não se tirará autoridade a sua genealogia. Ao fazer a enumeração, o evangelista Mateus diz: Jacó gerou a José; mas Lucas procede ao contrário: O qual era, segundo se cria (porque também acrescenta

[ 59 ]

Page 60: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

isso), filho de José, que era filho de Heli, filho de Melqui (54). Não seria possível expressar mais corretamente o nascimento segundo a lei: vai remontando um a um até Adão, que foi de Deus (55), e até o final omite o "gerou", para não aplicá-lo a este tipo de paternidade.

Eusébio nos traz uma excelente explicação para a aparente contradição na genealogia de Jesus apresentada por Mateus e Lucas. Vemos como o historiador é cuidadoso e meticuloso em cada detalhe sobre a origem genealógica de Jesus, o homem.

11. E isto não está sem provas nem é improvisado. Efetivamente, os parentes carnais do Salvador, por geração ou simplesmente pelo ensino, mas sendo verdadeiros em tudo, transmitiram também o que segue. Uns ladrões idumeus assaltaram Ascalom, cidade da Palestina; de um templo de Apolo, construído diante dos muros, levaram cativo, junto com os despojos, a Antípatro, filho de certo hieródulo chamado Herodes. Não podendo o sacerdote pagar um resgate por seu filho, Antípatro (50) Gn 38:8; Dt 25:5-6; Lc 20:28. 51 Mt 1:15-16. 52 Lc 3:23-24. Nesta passagem Africanus comete um erro: Em Lucas Melqui está em quinto lugar, foi educado nos costumes dos idumeus, e mais tarde fez amizade com Hircano, o sumo sacerdote da Judéia.

53 Mt 1:16. 54 Lc 3:23-24. 55 Lc 3:38.

[ 60 ]

Page 61: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

12. Logo tornou-se embaixador junto a Pompeu em favor de Hircano, para quem conseguiu o reino devastado por seu irmão Aristóbulo; e ele mesmo prosperou muito, pois logo conseguiu o título de epimeletés da Palestina (56). A Antípatro, assassinado por inveja de sua grande fortuna, sucedeu seu filho Herodes, que mais tarde, por decisão de Antônio e Augusto e por decreto senatorial, reinaria sobre os judeus. Este teve como filhos Herodes e os outros tetrarcas. Todos estes dados coincidem com as histórias dos gregos.

13. Além disso, estando inscritas até então nos arquivos as famílias hebreias, inclusive as que remontavam aos prosélitos, como Aquior (57) o amonita, Rute a moabita (58) e os que saíram do Egito misturados aos hebreus (59), Herodes, por não ter nada com a raça dos israelitas e magoado pela consciência de seu baixo nascimento, fez queimar os registros de suas linhagens, acreditando que passaria por nobre, já que outros também não poderiam remontar sua linhagem, apoiados em documentos públicos, aos patriarcas ou aos prosélitos ou aos chamados "geyoras", os estrangeiros misturados.

14. Em realidade, uns poucos mais cuidadosos, que tinham para si registros privados ou que se lembravam dos nomes ou haviam-nos copiado, se ufanavam de ter a salvo a memória de sua nobreza. Ocorreu que entre estes estavam aqueles de que falamos

[ 61 ]

Page 62: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

antes, chamados despósinoi por causa de seu parentesco com a família do Salvador e que, desde as aldeias judias de Nazaré e Cocaba, visitaram o resto do país e explicaram a referida genealogia, começando pelo Livro dos dias, até onde alcançaram.

15. Seja assim ou de outro modo, ninguém poderia encontrar uma explicação mais clara. Eu ao menos penso assim, e assim também todo aquele que tenha boa vontade. Ainda que não esteja comprovada, ocupemo-nos dela, porque não é possível expor outra melhor e mais clara. Em todo caso, o Evangelho diz inteiramente a verdade."

16. E ao final da mesma carta adiciona o seguinte: "Matã, da linhagem de Salomão, gerou a Jacó. Morto Matã, Melqui, o da linhagem de Natã, gerou da mesma mulher a Heli. Portanto Heli e Jacó são irmãos uterinos. Morto Heli sem filhos, Jacó dá-lhe uma descendência gerando a José, filho seu segundo a natureza, mas de Heli segundo a lei. Assim é que José era filho de ambos". Assim diz Africanus.

17. Estabelecida desta maneira a genealogia de José, também Maria aparece junto a ele, obrigatoriamente, como sendo da mesma tribo, já que, ao menos segundo a lei de Moisés, não era permitido misturar-se às outras tribos (60), pois é prescrita a união em matrimônio com um do mesmo povo e da mesma

[ 62 ]

Page 63: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tribo, para que a herança familiar não rodasse de tribo em tribo. Que seja isto o bastante.

VIII - [Do infanticídio cometido por Herodes e o final catastrófico de sua vida]

1. Nascido Cristo em Belém de Judá, conforme as profecias (61) no tempo mencionado, Herodes, ante a pergunta dos magos vindos do Oriente que queriam saber onde se achava o nascido rei dos judeus - porque tinham visto sua estrela, e o motivo de sua viagem tão longa era seu empenho em adorar como Deus ao recém-nascido -, bastante perturbado pelo assunto, como se estivesse em perigo sua soberania - ao menos era o que ele realmente pensava -, depois de informar-se com os doutores da lei dentre o povo onde esperavam que haveria de nascer o Cristo, assim que soube que a profecia de Miquéias indicava Belém, ordenou mediante um edito matar os meninos de peito de Belém e redondezas, de dois anos para baixo, segundo o tempo exato indicado pelos magos, pensando que também Jesus, como era natural, teria certamente a mesma sorte que os outros meninos de sua idade.

[ 63 ]

Page 64: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

(56) Espécie de procurador, talvez não apenas militar, mas também administrativo. (57) Jdt 5:5;14:10 (livro não pertencente ao cânone hebraico). (58) Rt 1:16-22; 2:2; 4:19-22. 59 Ex 12:38; Dt 23:8. 60 Nm 36:8-9. 61 Mq 5:l (5:2); Mt 2:5-6.

2. Mas o menino, levado para o Egito, adiantou-se ao plano: um anjo apareceu a seus pais indicando-lhes de antemão o que iria acontecer. Isto é o que nos ensina a Sagrada Escritura do Evangelho (62).

3. Mas, além disso, é conveniente dar uma olhada na resposta pelo atrevimento de Herodes contra Cristo e os meninos de sua idade. Imediatamente depois, sem a menor demora, a justiça divina o perseguiu quando ainda transbordava de vida e lhe mostrou o prelúdio do que o aguardava para depois de sua saída desta vida.

4. Não é possível resumir agora as sucessivas calamidades domésticas com que se enevoou a suposta prosperidade de seu reino: os assassinatos de sua mulher, de seus filhos e de outras pessoas muito próximas a sua família por parentesco e por amizade. O que se pode supor a respeito disso deixa à sombra qualquer representação trágica. Josefo o explica extensamente em seus relatos históricos.

[ 64 ]

Page 65: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. Mas sobre como um flagelo divino o arrebatou e ele começou a morrer já desde o momento em que conspirou contra nosso Salvador e contra os demais meninos, será bom escutar as palavras do próprio escritor, que no livro XVII de suas Antiguidades judaicas descreveu o final catastrófico da vida de Herodes como segue: "A doença de Herodes fazia-se mais e mais virulenta. Deus vingava seus crimes.

6. Com efeito, era um fogo suave que não denunciava ao tato dos que o apalpavam um abrasamento como o que por dentro aumentava sua destruição; e logo uma vontade terrível de comer algo, sem que nada lhe servisse, ulcerações e dores atrozes nos intestinos, e sobretudo no ventre, com inchaço úmido e reluzente nos pés.

7. Em torno do baixo-ventre tinha uma infecção parecida; mais ainda, suas partes pudendas estavam podres e criavam vermes. Sua respiração era de uma rigidez aguda e extremamente desagradável pela carga de supuração e por sua forte asma; em todos os membros sofria espasmos de uma força insuportável.

8. O certo é que os adivinhos e os que têm sabedoria para predizer estas coisas diziam que Deus estava fazendo-se pagar pelas muitas impiedades do rei." Isto é o que o autor citado anota na mencionada obra.

[ 65 ]

Page 66: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Tenho percebido ao longo da história da humanidade e no dia-a-dia que Deus age discretamente geralmente dá um tempo e logo providencia uma tragédia na vida dos malfeitores e dos seus descendentes. Herodes é mais um exemplo desta minha teoria.

9. E no livro segundo de seus relatos históricos nos dá uma tradição parecida acerca do mesmo assunto, escrevendo assim: "Então a enfermidade se apoderou de todo o seu corpo e foi destroçando-o com variados sofrimentos. A febre na verdade era fraca, mas era insuportável a comichão em toda a superfície do corpo, as dores contínuas do ventre, os edemas dos pés, como de um hidrópico, a inflamação do baixo-ventre e a podridão verminosa de suas partes pudendas, ao que se deve acrescentar a asma, a dispnéia e espasmos em todos seus membros, ao ponto de os adivinhos dizerem que estes sofrimentos eram um castigo.

10. Mas ele, mesmo lutando com tais padecimentos, ainda se aferrava à vida, e esperando salvar-se imaginava curas. Atravessou o Jordão e utilizou as águas termais de Calirroe. Estas vão desaguar no mar do Asfalto (63), e como são doces são também potáveis.

11. Ali os médicos decidiram aquecer com azeite quente todo seu purulento corpo em uma banheira cheia de azeite; desmaiou e revirou os olhos, como se estivesse acabado. Armou-se grande alvoroço entre os criados, e

[ 66 ]

Page 67: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

com o ruído voltou a si. Renunciando desde então à cura, mandou distribuir a cada soldado 50 dracmas e muito dinheiro aos chefes e a seus amigos.

12. Regressou então e chegou a Jericó, já vítima da melancolia e ameaçado pela morte. Pôs-se a tramar uma ação criminosa. De fato, fez reunir os notáveis de cada aldeia de toda a Judéia e mandou encerrá-los no chamado hipódromo.

13. Chamando depois sua irmã Salomé e seu marido Alexandre, disse: Sei que os judeus festejarão minha morte, mas posso ainda ser pranteado por outros e ter uns funerais esplêndidos se vocês atenderem minhas ordens. Assim que eu expirar, fazei com que cada um dos homens aqui detidos seja imediatamente cercado por soldados e fazei com que os matem, para que a Judéia inteira e cada casa, ainda que à força, chore por mim."

62 Mt 2:1-7; 16:13-15. 63 O Mar Morto.

14. E um pouco mais adiante diz: "Depois, torturado também pela falta de alimento e por uma tosse espasmódica e abatido pelas dores, tramava antecipar a hora fatal. Pegou uma maçã e pediu uma faca, pois tinha o costume de cortá-la para comê-la. Depois, olhando em volta por medo de que houvesse alguém para impedi-lo, levantou sua mão direita com a intenção de ferir-se."

[ 67 ]

Page 68: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

15. Além destes detalhes, o mesmo escritor refere que, antes de morrer de todo, mandou que matassem outro de seus filhos legítimos, terceiro que somou aos outros dois já assassinados anteriormente (64), e no mesmo momento, de repente e entre enormes dores, expirou (65).

A crueldade de alguns homens na história da humanidade só é explicada pela existência do Mal, o Mal é uma entidade viva que assombra os homens fracos de espírito como era Herodes.

16. Assim foi o final de Herodes, justo e merecido pelo infanticídio perpetrado em Belém por atentar contra nosso Salvador. Depois disto, um anjo se apresentou em sonhos a José, que vivia no Egito, e ordenou-lhe partir com o menino e sua mãe para a Judéia, explicando-lhe que estavam mortos os que buscavam a morte do menino, ao que acrescenta o evangelista: Porém, ouvindo que Arquelau reinava no lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá, mas avisado em sonhos, retirou-se para a região da Galiléia (66).

IX - [Dos tempos de Pilatos]

[ 68 ]

Page 69: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. O historiador acima citado corrobora a notícia da subida de Arquelau ao poder depois de Herodes e descreve de que maneira, por testamento de seu pai Herodes e por decisão de César Augusto, recebeu em sucessão o reino judeu, e como, tirado do poder após dez anos, seus irmãos Felipe e Herodes o Jovem, junto com Lisanias, governaram suas próprias tetrarquias.

2. O mesmo Josefo, no livro XVIII de suas Antiguidades, declara que no ano 12 do império de Tibério (pois foi este o sucessor no Império, depois dos cinquenta e sete anos de reinado de Augusto), Pôncio Pilatos obteve o governo da Judéia, no qual se manteve por dez anos completos, quase até a morte de Tibério.

3. Portanto está claramente refutada a patranha dos que agora, ultimamente, divulgaram umas Memórias contra nosso Salvador, nas quais a própria data anotada é a primeira prova da mentira de tal farsa.

4. De fato, situam suas atrevidas invenções acerca da paixão do Salvador no quarto consulado de Tibério, que coincide com o sétimo ano de seu reinado, tempo no qual está demonstrado que Pilatos não tinha ainda se apresentado na Judéia, ao menos se tomarmos

[ 69 ]

Page 70: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Josefo como testemunha, que claramente assinala em seu livro já citado que Tibério instituiu Pilatos governador da Judéia justamente no décimo segundo ano de seu império.

O encaixe cronológico da vida de Jesus com os eventos no império romano podem apresentar algumas dificuldades, mas que não se tornam problemas insuperáveis. Estamos lidando com eventos que ocorreram a milhares de anos, no caso de Eusébio, alguns séculos depois, portanto não devemos nos perder do grande foco que foi a vinda de Cristo, diante de dificuldades temporais.

X - [Dos sumos sacerdotes dos judeus sob os quais Cristo ensinou]

1. Foi portanto nestes tempos, segundo o evangelista (67), estando Tibério César no décimo quinto ano de seu império e Pilatos no quarto ano de sua procuração, e sendo tetrarcas do resto da Judéia, Herodes, Lisanias e Felipe, que nosso Salvador e Senhor Jesus, o Cristo de Deus, tendo cerca de trinta anos (68),

[ 70 ]

Page 71: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

se apresentou para o batismo com João (69) e deu início então à proclamação do Evangelho (70).

64 No ano 29 a.C. Herodes matou sua segunda esposa, Mariana; em 7 a.C. os filhos que teve dela, Alexandre e Aristóbulo, e apenas cinco dias antes de sua morte, em 4 a.C. matou Antípatro, filho de sua primeira mulher, Doris. 65 Aos setenta anos, provavelmente em março ou abril de 4 a.C. 66 Mt 2:22. 67 Lc3:1. 68 Lc 3:23. 69 Mt 3:13. 70 Mt 4:17; Mc 1:14.

2. Diz ainda a divina Escritura que todo o tempo de seu ensino transcorreu durante o sumo sacerdócio de Anás e Caifás (71), mostrando que efetivamente todo o tempo de seu ensino se cumpriu nos anos em que estes exerceram seus cargos. Portanto, começou durante o sumo sacerdócio de Anás e continuou até o começo do de Caifás, o que não chega a dar um intervalo de quatro anos completos.

3. De fato, como as normas legais naquele tempo estavam já de certa forma relaxadas, havia-se quebrado aquela segundo a qual os cargos referentes ao culto de Deus seriam vitalícios e por sucessão hereditária, e os governadores romanos investiam com o sumo sacerdócio pessoas diferentes e em tempos também diferentes, sem que durassem no cargo mais de um ano.

O culto a Deus sempre corre o risco de ser manipulado por políticos espertalhões como ocorreu com

[ 71 ]

Page 72: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Anás e Caifás. Hoje em dia tem muito líder cristão colocado pelo príncipe deste mundo e não por Deus, e é gente que está presidindo muitas igrejas pelo mundo afora.

4. Relata pois Josefo, que depois de Anás se sucederam quatro sumos sacerdotes até Caifás. Na mesma obra Antiguidades escreve o seguinte: "Valério Grato destituiu do sacerdócio a Anás e tornou sumo sacerdote a Ismael, filho de Fabi; mas trocando também este ao cabo de pouco tempo, designa como sumo sacerdote a Eleazar, filho do sumo sacerdote Anás.

5. Mas transcorrido um ano, destituiu também a este e entregou o sumo sacerdócio a Simão, filho de Camito. Mas nem para este durou a honra do cargo mais de um ano, sendo seu sucessor José, também chamado Caifás."

6. Por conseguinte, está demonstrado que todo o tempo do ensino de nosso Salvador não chega a quatro anos completos, posto que desde Anás até a nomeação de Caifás foram quatro os sumos sacerdotes que, em quatro anos, exerceram o cargo anual. Tem razão o texto evangélico ao menos em apontar Caifás como sumo sacerdote do ano que se cumpriu a paixão do Salvador (72). Por não discordar da observação precedente, fica também corroborada a duração do ensino de Cristo.

[ 72 ]

Page 73: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Além disso, nosso Salvador e Senhor chama os doze apóstolos pouco depois do início de seu ensino, e somente a eles dentre os demais discípulos, por privilégio especial, deu o nome de apóstolos (73). Depois designou outros setenta, e também a estes enviou, de dois em dois, adiante dele a todo lugar e cidade por onde ele iria (74).

XI - [Testemunhos sobre João Batista e Cristo]

1. Não muito depois, Herodes o Jovem mandou decapitar João o Batista. O texto sagrado do Evangelho também o menciona (75) e Josefo o confirma, ao menos quando faz referência a Herodias e de como Herodes se casou com ela, apesar de ser mulher de seu irmão, depois de repudiar sua primeira e legítima esposa (filha de Aretas, rei de Petra) e de separar Herodias de seu marido, que ainda vivia; menciona também que por causa dela deu morte a João e promoveu uma guerra contra Aretas, cuja filha tinha desonrado.

[ 73 ]

Page 74: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. E diz ainda que nesta guerra, durante a batalha, o exército de Herodes foi desbaratado por inteiro, e que tudo isso aconteceu por ter atentado contra João.

3. O mesmo Josefo confessa que João era um homem extremamente justo e que batizava, confirmando assim o que está escrito sobre ele no texto dos evangelhos. Menciona ainda que Herodes foi destronado por culpa da mesma Herodias, e com ela foi desterrado, condenado a habitar na cidade de Viena, na Gália (76).

4. Isto é o que narra no mesmo livro XVIII das Antiguidades, onde escreve sobre João o que segue textualmente: "Para alguns judeus parece que foi Deus que desbaratou o exército de Herodes, fazendo-o pagar muito justamente pelo que fez a João, chamado o Batista.

5. Porque Herodes havia-lhe dado morte. Era um homem bom e que exortava os judeus ao exercício da virtude, a usar da justiça no trato de uns com os outros e da piedade para com Deus, e a aceitar o batismo. Porque desta maneira também o batismo lhe parecia aceitável, não como instrumento de perdão para alguns pecados, mas para a purificação do corpo, desde que a justiça já de antemão houvesse purificado a alma.

71 Lc 3:2; Mt 26:57. 72 Mt 26:3-57; Jo 11:49; 18:13, 24, 28. 73 Mt 10:1-ss.; Mc 3:14-ss.; Lc 6:13; 9:1-ss. 74 Lc 10:1. 75 Mt 14:1; Mc 6:14-29; Lc 3:19-20; 9:7-9. 76 Engana-se o autor. Quem foi desterrado para Viena foi

[ 74 ]

Page 75: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Arquelau; Herodes o Jovem foi desterrado para Lion (Lugdunum).

E como outros se fossem aglomerando em torno de João (pois ficavam suspensos escutando suas palavras), Herodes, temeroso de que uma tal força de persuasão sobre os homens conduzisse a alguma revolta (já que em tudo pareciam proceder segundo os conselhos de João), pensou que o melhor era antecipar-se e fazê-lo matar antes que armasse uma revolução, em vez de ver-se envolto em dificuldades por uma mudança de situação e ter que se arrepender mais tarde. E João, devido à suspeita de Herodes, foi mandado prisioneiro a Maqueronte, a célebre fortaleza mais acima, e ali foi executado."

Depois de explicar tudo isto a respeito de João, na mesma obra histórica menciona também nosso Salvador nos seguintes termos: "Por este mesmo tempo viveu Jesus, homem muito sábio se é que de homem devemos chamá-lo, porque realizava obras portentosas, era mestre dos homens que recebiam com prazer a verdade e atraiu não somente muitos judeus, mas também muitos gregos.

Este era o Cristo. Havendo-lhe infligido Pilatos o suplício da cruz, instigado por nossos líderes, os que primeiro o haviam amado não cessaram de amá-lo, pois ao fim de três dias novamente apareceu-lhes vivo. Os

[ 75 ]

Page 76: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

profetas de Deus tinham dito estas mesmas coisas e outras incontáveis maravilhas sobre ele. A tribo dos Cristãos, que dele tomou o nome, ainda não desapareceu até hoje."

Há suspeita que este trecho do livro de Flavio Josefo tenha sido adulterado e acrescentado esta descrição sobre Jesus. Eu tenho minhas suspeitas, a bajulação exagerada de uma pessoa que não era cristão dizendo que “se é que de homem devemos chamá-lo”, parece-me bom demais para ser verdade. Não podemos negar que dentro do cristianismo sempre houve falsários, como há até hoje que usam de quaisquer método para alcançar seu intento, é como se dissessem em suas consciências: Uma mentira para a glória de Deus. Isto não é aceito pelo Senhor.

Quando um escritor saído dentre os próprios judeus transmite desde o começo em suas próprias obras estas coisas referentes a João Batista e a nosso Salvador, que subterfúgio resta aos que tramaram contra eles as Memórias, sem que fique evidente seu descaramento? Mas seja bastante o que foi dito.

XII [Dos discípulos de nosso Salvador]

[ 76 ]

Page 77: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Dos apóstolos do Salvador, pelo menos os nomes aparecem claramente em todos os evangelhos (77). Dos setenta discípulos por outro lado, em nenhum lugar se encontra lista alguma; mesmo assim, sabe-se ao menos que Barnabé era um deles; dele fazem menção especial os Atos dos Apóstolos(78), igualmente Paulo quando escreve aos Gálatas (79). Dizem ainda que também Sóstenes, um dos que escrevem com Paulo aos Coríntios, era um deles (80).

2. A referência se encontra em Clemente, no livro V das Hypotyposeis, onde afirma que também Cefas - de quem Paulo diz: Mas quando Cefas veio a Antioquia, enfrentei-me com ele81-, era um dos setenta discípulos e que sua homonímia com o apóstolo Pedro era casual.

3. E um documento (82) ensina também que Matias - o que foi juntado à lista dos apóstolos em substituição a Judas - e o outro que com ele teve a honra de disputar a sorte foram dignos de serem dos setenta (83). Diz-se ainda (84) que também Tadeu era um deles, sobre este chega a nós um relato que exporei em seguida (85).

77 Mt 10:2-4; Mc 3:16-19; Lc 6:14-16. 78 At 4:36; 9:27; 11:22-30; 12:25; 13:15. 79 Gl 2:1, 9, 13. 80

[ 77 ]

Page 78: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1 Co 1:1. 81 Gl 2:11. 82 Significando tradição passada por escrito. 83 At 1:23-26. 84 Tradição oral, sem registro escrito. 85 Para Mt 10:3 e Mc 3:14, 18. Tadeu era um dos doze, mas em Lucas ele não aparece.

4. Mas observando bem, encontraremos que os discípulos do Salvador eram muito mais do que os setenta, aceitando o testemunho de Paulo, que diz que depois de sua ressurreição dentre os mortos apareceu primeiro a Cefas, depois aos doze, e depois destes a mais de quinhentos irmãos juntos, sobre os quais afirmava que alguns já tinham morrido, mas que a maior parte ainda vivia no tempo em que ele escrevia estas coisas (86).

5. Depois diz que apareceu a Tiago. Pois bem, este era também um dos mencionados irmãos do Salvador. Portanto, de qualquer forma, os apóstolos à imagem dos doze eram muitos mais - o próprio Paulo o era -, prossegue dizendo: depois apareceu a todos os apóstolos. Sobre este tema, baste o que foi dito.

XIII - [Relato sobre o rei de Edessa]

[ 78 ]

Page 79: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. O relato acerca de Tadeu (87) é como segue. A fama da divindade de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, devido ao seu poder milagroso, alcançou a todos os homens, e com a esperança de cura de suas enfermidades e moléstias de toda espécie, atraía a inumeráveis pessoas que habitavam inclusive no estrangeiro, muito longe da Judéia.

2. Nestas condições se achava o rei Abgaro, que reinava excelentemente sobre os povos do outro lado do Eufrates e tinha seu corpo destroçado por uma doença terrível e incurável para o poder humano. Assim que chegaram a ele notícias recorrentes sobre o nome de Jesus e os milagres unanimemente testemunhados por todos, converteu-se em seu suplicante, enviando um mensageiro com uma carta na qual pedia para ver-se livre da enfermidade.

3. Mas Jesus não atendeu de imediato a seu chamamento. Mesmo assim, fez-lhe a honra de uma carta de próprio punho e letra na qual prometia enviar-lhe um de seus discípulos que o curaria da enfermidade e ao mesmo tempo levaria a salvação para ele e para os seus.

4. Não passou muito tempo sem que Jesus cumprisse sua promessa. Depois de sua ressurreição de entre os mortos e de sua ascensão aos céus, Tomás, um dos doze apóstolos, movido por Deus, enviou à região de Edessa Tadeu - que também era um

[ 79 ]

Page 80: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

dos setenta discípulos de Cristo - como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, e por meio dele se cumpriu o que o Salvador havia prometido.

5. Temos de tudo isto testemunho escrito, tirado dos arquivos de Edessa, que naquele tempo era a corte. Nos documentos públicos que neles se guardam e que contém os feitos antigos e dos tempos de Abgaro, encontra-se também o referido testemunho, conservado deste então e até hoje. Mas nada melhor do que ouvir as próprias cartas que tiramos dos arquivos e que, traduzidas do siríaco (88), dizem textualmente como segue: CÓPIA DA CARTA ESCRITA POR ABGARO, TOPARCA, A JESUS E ENVIADA A JERUSALÉM PELO MENSAGEIRO ANANÍAS.

Acho por demais interessante que encontramos em Eusébio alguém de grande cultura e entusiasmo em documentar a história do cristianismo. Graças a homens audaciosos e de espírito empreendedor como o dele pudemos ter acesso a documentos que nos contam de particularidades dos tempos de Cristo.

6. "Abgaro Ucama (89), toparca, a Jesus, o bom salvador que surgiu na região de Jerusalém, saudações: Tem chegado a meus ouvidos notícias acerca de tua pessoa e de tuas curas, que, ao que parece, realizas sem empregar remédios ou ervas, pois pelo que se conta, fazes com que os cegos recobrem a visão e que

[ 80 ]

Page 81: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

os coxos andem; limpas os leprosos e retiras espíritos impuros e demônios; curas os que estão atormentados por longa enfermidade e ressuscitas mortos.

7. E eu, ao ouvir tudo isto de ti, pus-me a pensar que, de duas possibilidades uma: ou és Deus, que descendo pessoalmente do céu realizas estas maravilhas, ou és filho de Deus, já que fazes tais obras.

8. Este é, pois, o motivo para escrever-te rogando-te que te apresses a vir a mim e curar-me do mal que me aflige. Porque também tenho ouvido que os judeus andam murmurando contra ti e querem fazer-te mal. Muito pequena é minha cidade, mas digna, e bastará para os dois (90)."

9. Esta é a carta que Abgaro escreveu, iluminado então por um pouco de luz divina. Mas será bom que escutemos a carta que Jesus enviou a ele pelo mesmo correio, carta de poucas linhas, mas de muita força, cujo teor é o que segue: RESPOSTA DE JESUS A ABGARO, TOPARCA, POR MEIO DO MENSAGEIRO ANANÍAS.

86 1 Co 15:5-7. 87 Cf. 12:3. 88 Eusébio provavelmente copiou os documentos já traduzidos anteriormente. 89 Abgaro o Negro. 90 Gn 19:20.

1. "Bem-aventurado tu, que creste em mim sem ter me visto. Porque de mim

[ 81 ]

Page 82: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

está escrito que os que me viram não crerão em mim, e que aqueles que não me viram crerão e terão a vida. Mas, acerca do que me escreves de ir para junto de ti, é necessário que eu cumpra aqui por inteiro minha missão e que, depois de havê-la consumado, suba novamente ao que me enviou (91). Quando tiver subido, te mandarei algum de meus discípulos, que sanará tua doença e trará a vida a ti e aos teus."

11. A estas cartas estava anexado ainda, em siríaco, o seguinte: "Depois da ascensão de Jesus, Judas, chamado também Tomás, enviou-lhe como apóstolo a Tadeu, um dos setenta, o qual chegou e se hospedou na casa de Tobías, filho de Tobías. Quando se espalhou a notícia sobre ele, avisaram a Abgaro que havia chegado ali um apóstolo de Jesus, como tinha sido descrito na carta.

12. Começou pois Tadeu, com o poder de Deus (92), a curar toda enfermidade e fraqueza, ao ponto de todos se admirarem. Mas, quando Abgaro ouviu falar dos prodígios e maravilhas que operava e de que também curava, veio-lhe a suspeita de se seria o mesmo do qual Jesus falava na carta, ali onde dizia: Quando tiver subido, te mandarei algum de meus discípulos, que sanará tua doença.

[ 82 ]

Page 83: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

13. Fez pois chamar a Tobías, em cuja casa se hospedava, e lhe disse: Tenho ouvido dizer que veio certo homem poderoso e que se aloja em tua casa. Traga-o a mim. Foi-se Tobías para junto de Tadeu e lhe disse: O toparca Abgaro mandou chamar-me e me ordenou que te levasse até ele para que o cures; e Tadeu respondeu-lhe: Subirei, posto que fui enviado a ele com poder." 14. "No dia seguinte Tobías madrugou, e tomando consigo a Tadeu, foi até Abgaro. Entrou Tadeu, estando ali presentes de pé os nobres do rei, e no momento de fazer sua entrada, uma grande visão apareceu a Abgaro no rosto do apóstolo Tadeu. Ao vê-la, Abgaro se prosternou ante Tadeu, deixando em suspenso todos os que o rodeavam, pois eles não haviam contemplado a visão, que só se mostrou a Abgaro.

15. Este perguntou a Tadeu: És tu em verdade discípulo de Jesus, o filho de Deus, o que me disse: te mandarei algum de meus discípulos que te curará e te dará vida? E Tadeu respondeu: Porque é muito grande a tua fé naquele que me enviou, por isso fui enviado a ti. E se ainda crês nele, segundo a fé que tenhas, assim verás cumpridas as súplicas de teu coração.

16. E Abgaro respondeu-lhe: de tal maneira cri nele, que quis tomar um exército e aniquilar os judeus que o crucificaram, se não me tivesse feito desistir o medo ao Império romano. E Tadeu lhe disse: Nosso

[ 83 ]

Page 84: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Senhor cumpriu a vontade do Pai, e uma vez cumprida, subiu ao Pai.

17. Disse-lhe Abgaro: Também cri nele e em seu Pai, e Tadeu disse: Por isto vou pôr minha mão sobre ti em seu nome. E assim que o fez, no mesmo instante curou-se o rei de sua enfermidade e das dores que tinha.

18. E Abgaro se maravilhou, porque tal como tinha ouvido dizer sobre Jesus, assim acabava de experimentar de fato por obra de seu discípulo Tadeu, que o tinha curado sem remédios nem ervas. E não somente a ele, mas também a Abdon, filho de Abdon, que sofria de gota e que, aproximando-se também de Tadeu, caiu a seus pés, suplicou com suas mãos e foi curado. E muitos outros concidadãos curou Tadeu, operando maravilhas e proclamando a palavra de Deus.

1. Depois disso disse Abgaro: Tadeu, tu fazes estes milagres com o poder de Deus, e nós ficamos maravilhados. Mas eu te rogo que também nos dês alguma explicação sobre a vinda de Jesus, como foi, e também sobre seu poder: em virtude de que poder operava ele os prodígios de que ouvi falar.

20. E Tadeu respondeu: Agora guardarei silêncio. Mas amanhã, já que fui enviado para pregar a

[ 84 ]

Page 85: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

palavra, convoca em assembleia todos teus concidadãos, e eu pregarei diante deles, e neles semearei a palavra da vida: sobre a vinda de Jesus: como foi; e sobre sua missão: por que o Pai o enviou; e sobre seu poder, suas obras e os mistérios de que falou no mundo: em virtude de que poder realizava isto; e sobre a novidade de sua mensagem, de sua humildade e humilhação: como se humilhou a si mesmo depondo e reduzindo sua divindade, e como foi crucificado e desceu ao Hades, e fez saltar o ferrolho que desde sempre prevalecia e ressuscitou mortos, e como, tendo descido só, subiu a seu Pai com uma grande multidão.

91 At l:2-ss.;Jo 16:5. 92 Mt 10:1.

Interessante notar que a crença de que Jesus ao subir ao céus levou consigo os salvos da antiga aliança que se encontravam no hades superior já era pregada nos tempos apostólicos e revivida por Eusébio que registrou este documento maravilho do rei Abgaro.

21. Mandou pois Abgaro que ao amanhecer se reunissem todos seus cidadãos e que escutassem a pregação de Tadeu, e ordenou que lhe dessem ouro e prata sem poupar. Mas ele não o aceitou e disse: Se deixamos o nosso, como poderíamos tomar o alheio? Baste para o momento este relato, que não será inútil, traduzido literalmente da língua Siríaca. (93) Isto

[ 85 ]

Page 86: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

seria os anos 28-29 d.C; o texto segue a Era Selêucida, iniciada em 1º de outubro de 312a.C.

LIVRO - II

Este livro foi composto com extratos de Clemente, de Tertuliano, de Josefo e de Fílon.

[Prólogo]

[ 86 ]

Page 87: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Todos os dados da História Eclesiástica que era necessário estabelecer como prólogo: o referente à divindade do Verbo salvador, a antiguidade dos dogmas de nossa doutrina e a sobriedade da forma de vida evangélica dos cristãos; e não apenas isso, mas também o que se relaciona com a recente manifestação de Cristo, com a atividade anterior à paixão e com a escolha dos apóstolos; tudo isto está bem explicado no livro anterior, com razões abreviadas.

2. Mas no presente vamos considerar também os fatos que se seguiram à sua ascensão. Uns iremos anotando das Sagradas Escrituras, outros tomaremos de fora, dos tratados que oportunamente citaremos.

I - [Da vida dos apóstolos depois da ascensão de Cristo]

1. O primeiro pois, que a sorte designou para o apostolado em substituição a Judas o traidor foi Matias, que também tinha sido um dos discípulos do Salvador, como já foi provado. Por outro lado os apóstolos, mediante a oração e imposição das mãos, instituem ainda com destino ao ministério e para o serviço comum, a alguns homens de boa reputação, em número de sete: Estevão e seus companheiros (94). Também foi Estevão, depois do Senhor e quase no momento em que recebia a imposição de mãos, como se o tivessem

[ 87 ]

Page 88: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

promovido para isto mesmo, o primeiro a ser morto a pedradas pelos mesmos que mataram o Senhor (95), e desta maneira o primeiro também a levar a coroa, a que alude seu nome, dos vitoriosos mártires de Cristo.

2. Naquele tempo também Tiago, o chamado irmão do Senhor (96) - porque também ele era chamado filho de José; pois bem, o pai de Cristo era José, já que estava casado com a Virgem quando, antes que convivessem descobriu-se que havia concebido do Espírito Santo, como ensina a Sagrada Escritura dos evangelhos -; este mesmo Tiago pois, a quem os antigos puseram o sobrenome de Justo, pelo superior mérito de sua virtude, refere-se que foi o primeiro a quem se confiou o trono episcopal da Igreja de Jerusalém.

TRONO EPISCOPAL – Nos tempos de Eusébio já vimos que o poder temporal dos líderes do cristianismo já se desenvolveu para uma forma de governo episcopal, dando corpo a heresia de um papa que governe os cristãos. A igreja não precisa de “trono episcopal.”

3. Clemente, no livro VI das Hypotyposeis, adiciona o seguinte: "Porque -dizem - depois da ascensão do Salvador, Pedro, Tiago e João, mesmo tendo sido os preferidos do Salvador, não tomaram para si esta honra, mas elegeram como bispo de Jerusalém Tiago o Justo."

4. E o mesmo autor, no livro VII da mesma obra, diz ainda sobre ele o que segue: "O Senhor,

[ 88 ]

Page 89: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

depois de sua ascensão, fez entrega do conhecimento a Tiago o Justo, a João e a Pedro, e estes o transmitiram aos demais apóstolos, e os apóstolos aos setenta, um dos quais era Barnabé.

5. Houve dois Tiagos: um, o Justo, que foi lançado do pináculo do templo e morto a golpes com um bastão; e o outro, o que foi decapitado." Também Paulo menciona Tiago o Justo quando escreve: Outro apóstolo não vi além de Tiago, o irmão do Senhor (97).

6. Por este tempo também se cumpriu o prometido por nosso Salvador ao rei de Osroene, pois Tomás, por impulso divino, enviou Tadeu a Edessa como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, como acabamos de provar com documentos ali encontrados (98).

7. Tadeu, estando no lugar, cura a Abgaro pela palavra de Cristo e deixa pasmos com seus estranhos milagres a todos os presentes (99). Quando já os tinha bastante predispostos com suas obras conduziu-os à adoração do poder de Cristo, e acabou fazendo-os discípulos da doutrina do Salvador. Desde então e até hoje toda a cidade de Edessa está consagrada ao nome de Cristo, dando assim prova nada comum dos benefícios que nosso Salvador lhes fez.

94 At 6:1-6. 95 At 7:58-59. 96 Gl 1:19. 97 Gl 1:19. 98 vide I:XIII:5. 99 vide I:XIII: 11-18.

[ 89 ]

Page 90: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

8. Baste o que foi dito, tomado de antigos relatos, e voltemos outra vez à Sagrada Escritura. Em seguida ao martírio de Estevão produziu-se a primeira e grande perseguição contra a Igreja de Jerusalém por parte dos mesmos judeus. Todos os discípulos, exceto os doze, dispersaram-se por toda a Judeia e Samaria. Alguns, segundo diz a Escritura divina, chegaram à Fenícia, Chipre e Antioquia. Não estavam ainda preparados para ousar compartilhar com os gentios a doutrina da fé, e assim anunciaram-na somente aos judeus.

9. Neste tempo também Paulo ainda assolava a Igreja: entrava nas casas dos fiéis, arrancava à força os homens e mulheres e os encarcerava (100).

10. Mas também Felipe, um dos que foram escolhidos para o serviço junto com Estevão e que se achava entre os dispersos, desceu a Samaria e cheio do poder divino, foi o primeiro a pregar a doutrina aos Samaritanos. Tão grande era a graça divina que operava nele, que atraiu com suas palavras o próprio Simão Mago e uma grande multidão (101).

11. Por aquele tempo Simão tinha conseguido tamanha fama com seu mágico poder sobre os iludidos que ele mesmo acreditava ser o grande poder de Deus. Foi então que, pasmo ante as incríveis maravilhas operadas por Felipe com o poder divino,

[ 90 ]

Page 91: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

infiltrou-se e levou o fingimento de sua fé em Cristo ao ponto de ser batizado (102).

12. O que também é de admirar é que até agora aconteça o mesmo com os que ainda hoje compartilham de sua terrível heresia, os quais, fiéis ao método de seu antepassado se infiltram na Igreja como sarna pestilenta, e causam o maior estrago àqueles em quem conseguem inocular o veneno incurável e terrível oculto neles. Mesmo assim, a maioria já foi expulsa à medida que foram surpreendidos nesta perversidade, como o mesmo Simão, quando Pedro o desmascarou e o fez pagar o merecido.

O cristianismo é uma fonte de riqueza para os espertalhões, muitos dissimuladamente fazem a conta, se eu tiver dez pessoas dando dízimo ganho um salário igual a média deles, se tiver cem membros ganho dez vezes o salário de um assalariado médio, com mil membros fico rico!!!!! Deus só fica olhando as intenções dos corações.... Gastar o dinheiro do dízimo auxiliando os pobres quase nenhuma igreja gasta. A prioridade é a casa, o carro e o salário dos empresários de Cristo.... Ehh vida de Simão!!

13. Mas, enquanto dia a dia a pregação salvadora ia progredindo, alguma disposição da

[ 91 ]

Page 92: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

providência trouxe para fora da Etiópia um nobre da rainha daquele país, que ainda hoje em dia, segundo costume ancestral, é regido por uma mulher (103). Este nobre, primeiro dos gentios a conhecer os mistérios da doutrina divina, por ter encontrado Felipe104, e primogênito dos crentes no mundo, segundo refere um documento, depois de regressar à terra pátria, foi o primeiro a anunciar a boa nova do conhecimento do Deus de todas as coisas e a função vivificadora de nosso Salvador entre os homens, devido a isto, graças a ele, realizou-se a profecia que diz: Etiópia corre a estender suas mãos a Deus105. 14. Além dos citados, Paulo, o instrumento escolhido106 não por parte dos homens nem por meio dos homens, mas por revelação do próprio Jesus Cristo e de Deus Pai, que o ressuscitou de entre os mortos, foi proclamado apóstolo: uma visão e uma voz do céu107 no momento da revelação o consi-deraram digno da chamada.

II - [Da emoção de Tibério ao ser informado por Pilatos dos feitos referentes a Cristo]

1. A fama da assombrosa ressurreição de nosso Salvador e de sua ascensão aos céus já havia alcançado a grande maioria. Havia sido imposto aos governadores

[ 92 ]

Page 93: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

das nações o antigo costume de informar o ocupante do cargo imperial de todas as novidades ocorridas em suas regiões, para que nada escapasse de seu conhecimento. Pilatos, portanto, informou ao Imperador Tibério sobre tudo o que corria de boca em boca por toda a Palestina sobre a ressurreição de nosso Salvador Jesus de entre os mortos.

2. Informou-o também de seus outros milagres e de que o povo já acreditava que ele era Deus, porque depois de sua morte ressuscitou de entre os mortos. Diz-se que Tibério levou o assunto ao senado, e que este o rechaçou, aparentemente porque não o havia aprovado previamente - pois uma antiga lei prescrevia que, entre os romanos, ninguém poderia ser divinizado se não o fosse por voto e por decreto do senado -, mas na realidade era porque a doutrina salvadora da pregação divina não necessitava de ratificação nem de recomendação vinda dos homens.

100 At 8:3. 101 At 8:5-13. 102 At 8:13. 103 Não mais ao tempo de Eusébio, mas da fonte por ele consultada. 104 At 8:26-39. 105 Sl 67:32 (68:31). 106 At 9:15. 107 At 9:3-6; 22:6-9; 26:14-19.

3. Desta forma pois, o senado romano rechaçou o informe apresentado sobre nosso Salvador. Tibério, por outro lado, conservou sua primeira opinião e não tramou nada de errado contra a doutrina de Cristo.

[ 93 ]

Page 94: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Pilatos se tornou uma biografia controversa na literatura antiga, há tradições que falam do seu fim triste e outra de sua conversão. Fico em dúvida se algum cristão falsário não tenha adulterado registros para endossar o cristianismo a força, talvez os ateus tenham alguma razão em alguns pontos em que duvidam da autenticidade de certos relatos. Todavia, a causa ateísta é uma causa perdida. As evidências de Deus e do Cristo histórico não se pode desmanchar com hipóteses.

4. Tertuliano, fiel conhecedor das leis romanas, homem insigne por outros méritos e ilustríssimo em Roma, expõe todos estes fatos em sua Apologia pelos cristãos, que escreveu no próprio idioma romano e que está traduzida em língua grega, expressando-se textualmente como segue:

5. "Mas, para que discutamos partindo da origem de tais leis, existia um antigo decreto de que ninguém podia ser consagrado como deus antes de ser aprovado pelo senado. Marco Emílio assim o fez a respeito de certo ídolo, Alburno. Também isto vai a favor de nossa doutrina: que entre vós a divindade seja outorgada por arbítrio dos homens. Se um deus não agrada ao homem, não chega a ser deus. Assim, quanto a isto, convém que o homem seja propício a Deus!

6. Tibério, pois, sob o qual apareceu no mundo o nome de cristão, quando lhe anunciaram esta doutrina

[ 94 ]

Page 95: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

procedente da Palestina, onde primeiro começou, comunicou-o ao senado, explicando aos senadores que dita doutrina o agradava. Mas o senado a rechaçou por não tê-la aprovado previamente. Tibério, por outro lado, persistiu na sua declaração e ameaçou de morte aos acusadores dos cristãos." A providência celestial tinha disposto este ânimo ao imperador a fim de que a doutrina do Evangelho tivesse um início livre de obstáculos e se propagasse por toda a terra.

III - [De como a doutrina de Cristo em pouco tempo se propagou por todo o mundo]

1. Assim, sem dúvida por uma força e uma assistência de cima, a doutrina salvadora, como um raio de sol, iluminou subitamente toda a terra habitada. De pronto, conforme as divinas Escrituras, a voz de seus evangelistas inspirados e de seus apóstolos ressoou em toda a terra, e suas palavras nos confins do mundo (108).

2. Efetivamente, por todas as cidades e aldeias, como numa época fervilhante, constituíam-se em massa igrejas formadas por multidões inumeráveis. Os que por herança ancestral e por um antigo erro tinham suas almas presas da antiga moléstia da superstição idólatra, pelo

[ 95 ]

Page 96: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

poder de Cristo e graças ao ensinamento de seus discípulos e aos milagres que os acompanhavam, tendo rompidas suas penosas prisões, afastaram-se dos ídolos como de amos terríveis e cuspiram fora todo o politeísmo demoníaco e confessaram que não há mais do que um só Deus: o criador de todas as coisas. E a este Deus honraram com os ritos da verdadeira religião por meio de um culto divino e racional, o mesmo que nosso Salvador semeou na vida dos homens.

3. Pois bem, como quer que a graça divina já se difundisse pelas demais nações, e em Cesaréia da Palestina Cornélio e toda sua casa haviam sido os primeiros a aceitar a fé em Cristo por meio de uma aparição divina e do ministério de Pedro, também em Antioquia ela foi aceita por toda uma multidão de gregos aos quais haviam pregado os que foram dispersados quando da perseguição contra Estevão (109). A Igreja de Antioquia já florescia e se multiplicava quando, estando presentes numerosos profetas chegados de Jerusalém (110), e com eles Barnabé e Paulo, além de uma multidão de outros irmãos, pela primeira vez o nome de Cristãos brotou dela, como de uma fonte caudalosa e fecundante.

4. Ágabo era também um dos profetas que estava com eles e predizia como iminente uma grande fome, devido a isto Paulo e Barnabé foram enviados para pôr-se a serviço da assistência aos irmãos" (111).

[ 96 ]

Page 97: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

108 Sl 18:5 (19:4); Rm 10:18.109 At 11:19-26. 110 At 11:27. 111 At 11:28-30.

IV - [De como, depois de Tibério, Caio estabeleceu Agripa como rei dos judeus e castigou Herodes com o desterro perpétuo]

1. Morreu pois Tibério depois de reinar por cerca de vinte e dois anos. Depois dele tomou o poder Caio (112), que em seguida pôs sobre Agripa a coroa do comando sobre os judeus, fazendo-o rei das tetrarquias de Felipe e de Lisanias, às quais não muito depois juntou a de Herodes, depois de condenar este (que era o Herodes do tempo da paixão do Salvador), junto com sua mulher Herodías, ao desterro perpétuo por causa de seus muitos crimes, Josefo também é testemunha destes fatos.

2. Por este tempo tornava-se conhecido por muitos um tal Fílon, varão notabilíssimo, não somente entre os nossos mas também entre os que procediam de uma educação profana. Descendia de família hebréia, mas não era em nada inferior aos que brilhavam por sua autoridade em Alexandria.

[ 97 ]

Page 98: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. A extensão e a qualidade de seus trabalhos acerca das ciências divinas pátrias se evidencia por sua obra, e quanto a sua capacidade para os conhecimentos filosóficos e os estudos liberais da educação profana, nada há que dizer quando a história dá conta de seu cuidado especial pelo estudo da filosofia de Platão e de Pitágoras ao ponto de suplantar todos seus contemporâneos.

V - [De como Fílon foi embaixador junto a Caio em favor dos judeus]

1. Fílon conta em cinco livros as calamidades dos judeus nos tempos de Caio, e ao mesmo tempo comenta a demência deste ao proclamar-se deus e cometer mil desmandos em seu governo, assim como as misérias dos judeus sob seu império e a embaixada que a ele (Fílon) foi confiada na cidade de Roma em favor de seus compatriotas de Alexandria. Descreve como se apresentou perante Caio em defesa das leis pátrias e como não conseguiu ao final mais do que zombarias e sarcasmos, faltando pouco mesmo para perder sua própria vida neste incidente.

[ 98 ]

Page 99: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. Estes fatos são também mencionados por Josefo no livro XVIII de suas Antiguidades; escreve textualmente: "E houve uma revolta em Alexandria entre os judeus ali residentes e os gregos, e foram eleitos três embaixadores de cada facção para apresentar-se perante Caio.

3. Um dos embaixadores alexandrinos era Ápion, que havia caluniado muito os judeus dizendo, entre outras coisas, que viam com maus olhos o honrar a César, pois enquanto todos os que estavam submetidos à soberania de Roma construíam altares e templos a Caio e em tudo o mais o equiparavam aos deuses, somente os judeus achavam indigno honrá-lo com estátuas e jurar por seu nome.

4. Muitas e graves acusações foram proferidas por Ápion, naturalmente com a esperança de exaltar o ânimo de Caio. Fílon, que presidia a embaixada dos judeus, homem ilustre em tudo, irmão do alabarca (113) Alexandre e hábil filósofo, tinha suficiente capacidade para lidar com as acusações em seu discurso de defesa.

5. Mas Caio interrompeu-o e ordenou que se retirasse para longe. Estava irritadíssimo e era claro que tomaria sérias medidas contra eles. Fílon saiu dali ultrajado e disse aos judeus de sua comitiva que precisariam ter ânimo, que Caio havia se enfurecido

[ 99 ]

Page 100: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

contra eles, mas que na verdade estava atentando contra Deus." Até aqui Josefo.

6. Mas o próprio Fílon, em sua obra Embaixada, expõe com todos os detalhes e exatidão o que fez na ocasião. Deixarei de lado quase tudo e citarei somente aquilo que ajude os leitores a ter uma prova manifesta das desventuras que ao mesmo tempo ou em rápida sequência caíram sobre os judeus por causa dos crimes contra Cristo.

O povo judeu é o povo escolhido, sua eleição é perpétua, mas Deus sempre castigou o seu povo. As desgraças que caem de tempos em tempos sobre os judeus é corretivo paterno. Mas não queira ser instrumento de castiga-los.

7. Narra pois, em primeiro lugar, que nos tempos de Tibério, Sejano, homem então de grande ascendência e influência junto ao imperador, tomou muito a sério a ideia de acabar por completo (112) Caio César Augusto Germânico, mais conhecido como Calígula. (113) Alabarca, arrecadador superior de impostos. Com a raça dos judeus na cidade de Roma; e que na Judéia Pilatos, sob o qual havia sido cometido o crime contra o Salvador, havia atentado contra o templo, que ainda se erguia em Jerusalém, de uma forma que ia contra o que está permitido aos judeus, exacerbando-os terrivelmente.

[ 100 ]

Page 101: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

VI - [Dos males que desabaram sobre os judeus depois de sua maldade contra Cristo]

1. Fílon segue narrando que, depois da morte de Tibério, Caio assumiu o poder e começou a cometer muitas atrocidades contra muitos, mas sobretudo de forma a prejudicar tanto quanto possível a toda a raça judia. Mas será melhor conhecer isto brevemente por suas próprias obras, nas quais escreve textualmente:

2. "Extraordinariamente caprichoso era o caráter de Caio para com todos, mas muito especialmente contra a raça judia, à qual tinha um ódio implacável. Nas cidades, começando por Alexandria, apoderou-se das sinagogas e encheu-as de imagens e estátuas com sua própria figura (pois ele que permitia a outros erguê-las, também as erigia por seu próprio poder), e na Cidade Santa o templo, que até então saíra intacto por ser considerado digno de toda inviolabilidade, foi por ele transformado em seu próprio templo, chamando-o: Templo de Caio, Novo Zeus Epifano."

3. O mesmo autor, num segundo livro que escreveu, intitulado Sobre as virtudes, narra outras inumeráveis e indescritíveis calamidades ocorridas aos

[ 101 ]

Page 102: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

judeus em Alexandria nesta época. Com ele concorda também Josefo, ao notar igualmente que os infortúnios que caíram sobre toda a raça judia tiveram início nos tempos de Pilatos e dos crimes contra o Salvador.

4. Mas ouçamos o que este declara textualmente no livro II de sua Guerra dos judeus quando diz: "Enviado por Tibério à Judéia como procurador, Pilatos faz entrar durante a noite em Jerusalém, encobertas, as efígies do César, as chamadas insígnias. Ao nascer o dia isto produziu enorme comoção entre os judeus, que aproximando-se para ver, ficaram aterrorizados: suas leis tinham sido pisoteadas, já que de forma alguma permitiam que na cidade se levantassem imagens."

5. Se comparamos tudo isto com a Escritura do Evangelho, veremos que não tardaram muito para serem alcançados pelo grito que proferiram em presença do próprio Pilatos quando gritavam que não tinham outro rei que não o César (114).

6. Mas há ainda outra calamidade que alcançou os judeus e que o mesmo escritor narra em continuação como segue: "E depois disto causou outra agitação quando esvaziou o tesouro sagrado chamado Corbã, gastando-o para trazer as águas desde uma distância de trezentos estádios. Ante isto o povo enfureceu-se e, quando Pilatos se apresentou em Jerusalém, rodearam-no vociferando a uma só voz.

[ 102 ]

Page 103: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Mas ele contava já com a agitação dos judeus e tinha ordenado que se misturassem entre eles soldados armados, camuflados com trajes do povo, proibidos de usarem as espadas, mas com ordem de golpear com bastões os que gritassem. De seu assento ele deu o sinal. Os judeus foram feridos, muitos morreram sob os golpes e muitos foram esmagados pelos demais em fuga. A plebe, impressionada pelo infortúnio dos caídos, emudeceu."

8. O mesmo autor faz saber ainda que além destas ocorreram em Jerusalém muitas outras revoltas, afirmando que desde aquele tempo, nem na cidade nem em toda a Judéia faltaram sedições, guerras e maldosas tramas de uns contra outros, até que finalmente chegou o assédio de Vespasiano. Assim é que a justiça divina alcançava os judeus por seus crimes contra Cristo. (114) Jo 19:15. Mas parece que Josefo indica que isto ocorreu pouco depois da chegada de Pilatos, portanto antes da paixão.

VII - [De como Pilatos também se suicidou]

[ 103 ]

Page 104: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Não se deve ignorar uma tradição que nos conta como também o mesmo Pilatos dos dias do Salvador viu-se envolto em tão grandes calamidades nos tempos de Caio - cuja época foi explicada -, que se viu forçado a suicidar-se e converter-se em carrasco de si mesmo: a justiça divina, ao que parece, não tardou muito em alcançá-lo. Também os gregos que deixaram escritas as séries de olimpíadas junto com os acontecimentos de cada época a isto se referem.

VIII - [Da fome nos tempos de Cláudio]

1. Caio, porém, não chegou a cumprir os quatro anos de exercício do comando. Sucedeu-o como imperador Cláudio, sob o qual se abateu sobre o mundo uma grande fome (e isto nos transmitem em suas histórias mesmo os escritores mais alheios a nossa doutrina) e cumpriu-se a predição do profeta Ágabo, segundo os Atos dos Apóstolos, de que era iminente uma grande fome sobre todo o mundo.

2. Lucas descreveu nos Atos a grande fome dos tempos de Cláudio, e depois de narrar como os irmãos de Antioquia enviaram socorro aos irmãos da Judéia por meio de Paulo e Barnabé, cada qual segundo suas possibilidades, acrescenta:

[ 104 ]

Page 105: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

IX [Martírio do apóstolo Tiago] 1. Naquele tempo - evidentemente o de Cláudio -

o rei Herodes pôs-se a maltratar alguns da Igreja. E matou Tiago, o irmão de João, com a espada (115).

2. Acerca deste Tiago, Clemente, no livro VII de suas Hypotyposeis, acrescenta um relato digno de menção, afirmando tê-lo tomado de uma tradição anterior a ele. Diz que aquele que o introduziu ante o tribunal, comovido ao vê-lo dar testemunho, confessou que também ele era cristão.

3. "Ambos pois, diz Clemente, foram levados juntos dali, e no caminho pediu que Tiago o perdoasse, e este, depois de olhá-lo um instante, disse: A paz esteja contigo, e beijou-o. E assim é que ambos foram decapitados ao mesmo tempo."

4. Então, como diz a divina Escritura (116), vendo Herodes que sua façanha de assassinar Tiago tinha agradado aos judeus, tentou-o também contra Pedro, encarcerou-o e pouco faltou para que o executassem também se um anjo, por aparição divina, não houvesse aparecido a ele durante a noite e não o tivesse retirado milagrosamente da prisão, deixando-o livre para o ministério da pregação. Esta foi a providência disposição no que diz respeito a Pedro.

[ 105 ]

Page 106: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

X - [De como Agripa, também chamado Herodes, perseguiu os apóstolos e logo sentiu a vingança divina]

1. O merecido pelos atentados do rei contra os apóstolos não demorou, e o ministro vingador da justiça divina alcançou-o em seguida. Imediatamente depois da conspiração contra os apóstolos, segundo narra o livro dos Atos, pôs-se a caminho de Cesaréia, e ali, estando adornado com esplêndidas e regias vestimentas e colocado no alto diante de uma tribuna, dirigiu a palavra ao povo. Todo o povo aplaudiu seu discurso, como se fosse voz de Deus e não de homem, e neste mesmo instante - narra a Escritura - um anjo do Senhor o feriu, e convertido em pasto para os vermes, morreu (117).

2. É de se admirar como também concordam quanto a este estranho acontecimento a Escritura divina e a narrativa de Josefo. É evidente que Josefo atesta a verdade no livro XIX de suas Antiguidades, onde explica o ocorrido com as palavras que se seguem:

115 At 12:1-2. 116 At 12:13-17. 117 At 12:19, 21-23.

3. "Havia terminado o terceiro ano de seu reinado sobre toda a Judéia e ele se achava na cidade de

[ 106 ]

Page 107: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Cesaréia, antes chamada Torre de Stráton. Estava ali celebrando jogos públicos em honra de César, por cuja saúde sabia ele que se realizavam estas festas. A eles tinha comparecido grande multidão de autoridades e dignitários da província.

4. No segundo dia da festa, havendo posto um traje todo feito de prata, que resultava num tecido admirável, entrou no teatro ao raiar do dia, então a prata, iluminada pelos primeiros raios do sol, refulgia admiravelmente e lançava reflexos que atemorizavam e faziam estremecer a todos que colocavam suas vistas sobre ele.

5. Logo começaram os aduladores, por todos os lados, a levantar suas vozes, que para ele de nada valiam, chamando-o deus e dizendo: Sede-nos propício! Se até aqui nós o tememos como a um homem, desde agora confessamos que és superior à natureza mortal.

6. O rei não os repreendeu nem tentou rechaçar a ímpia adulação. Mas pouco depois, levantando os olhos viu um anjo (118) planando sobre sua cabeça, e em seguida pensou que aquele anjo seria causa de males como por algum tempo fora de bens. A angústia oprimiu-lhe o coração.

7. E sobreveio-lhe uma repentina dor no ventre, que começou com grande intensidade. Pondo os olhos sobre os amigos, disse: Eu, vosso deus, recebi a ordem

[ 107 ]

Page 108: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de devolver a vida. O destino se apressou em desmentir vossas vozes mentirosas de agora a pouco. Eu, que vocês chamavam imortal, sou agora conduzido à morte. Devo aceitar o destino como Deus o quis, porque de forma alguma vivi mal, mas com grande ventura.

8. Enquanto dizia isto, a força da dor o esgotava. Dirigiu-se pois com cuidado para dentro do palácio. A todos foi chegando o rumor de que irremediavelmente morreria em pouco tempo. Mas a multidão, com suas mulheres e seus filhos, logo veio a prostrar-se segundo os costumes pátrios e começou a suplicar pelo rei. Os choros e lamentos enchiam tudo, e o rei, deitado no dormitório do alto, vendo-os embaixo inclinados, prostrados, também não pôde conter as lágrimas.

9. Acabado pela dor intestinal de uns cinco dias contínuos, morreu aos cinquenta e quatro anos de idade, no sétimo de seu reinado. Reinou quatro anos sob César Caio, governou as tetrarquias de Felipe durante três e no quarto recebeu também a de Herodes. Reinou ainda três anos sob o império de César Cláudio."

10. Estou admirado de como Josefo, neste e em outros pontos, confirma a verdade das divinas Escrituras. É certo que para alguns poderia parecer que discordam quanto ao nome do rei (119), mas o tempo e o modo de agir mostram que se trata do mesmo, devendo-se a troca

[ 108 ]

Page 109: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de nome a um erro de escrita ou a que um mesmo tivesse dois nomes, como ocorre com muitos outros.

Eusébio ficou impressionado com as narrativas de Flavio Josefo, nós também ficamos. Mas devemos pensar que o cristianismo realmente estava chamando a atenção dos historiadores como Flavio Josefo e outros, primeiro porque o fenômeno do cristianismo ocorria no seio do judaísmo, e Flavio Josefo era um judeu que estava inteirado nos movimentos sociais dentro de Israel, e em segundo lugar, o cristianismo se tornou um movimento tão forte que não dava para os historiadores e o governo romano fazer de conta que os cristãos não existiam.

XI [Do impostor Teudas]

1. Já que Lucas, nos Atos, apresenta Gamaliel dizendo, na sentença sobre os apóstolos, que no tempo assinalado surgiu Teudas, que dizia ser alguém, e que ao ser eliminado todos os que nele creram se dispersaram, comparemos também o que Josefo escreve sobre isto, pois efetivamente, na obra citada há pouco, narra isto textualmente como segue:

2. "Sendo Fado procurador da Judéia, certo impostor chamado Teudas conseguiu persuadir uma grande multidão a que tomassem seus bens e o seguissem até o rio Jordão, pois dizia que era profeta e

[ 109 ]

Page 110: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

afirmava que com seu comando separaria o rio para fazê-lo mais facilmente transponível. Enganou muitos falando assim.

3. "Fado não lhes permitiu saborear sua loucura, mas enviou contra eles um esquadrão de cavalaria que caiu-lhes em cima de surpresa, e deu morte a muitos e capturou muitos vivos. O próprio Teudas foi pego vivo, cortaram-lhe a cabeça e a levaram a Jerusalém." Em continuação a isto, Josefo menciona também a grande fome que houve nos tempos de Cláudio, como segue:

118 Em seus manuscritos Josefo fala de uma coruja. 119 O Novo Testamento chama-o Herodes, Josefo prefere Agripa; na realidade, tinha os dois nomes. 120 At 5:34-36.

XII - [De Elena, rainha de Adiabene]

1. "Neste tempo ocorreu que houve a grande fome na Judéia. Durante esta, a rainha Elena gastou muito dinheiro na compra de trigo egípcio, que distribuía aos necessitados."

[ 110 ]

Page 111: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. Vemos que também isto concorda com o texto dos Atos dos Apóstolos, que relata como os discípulos de Antioquia decidiram enviar algo, cada um segundo suas possibilidades, em socorro dos que habitavam na Judéia; o que fizeram enviando-o aos anciãos por mãos de Barnabé e Paulo (121).

3. Desta Elena mencionada pelo escritor ainda hoje vêem-se esplêndidas colunas nos subúrbios da atual Elia. Dizia-se que havia sido rainha do povo de Adiabene.

XIII - [De Simão Mago] 1. No entanto, havendo-se propagado a fé em

nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo a todos os homens, o inimigo da salvação dos homens já tramava antecipar-se na captura da cidade imperial e para lá conduziu Simão, de quem já falamos acima (122). De fato, seguindo as hábeis artes deste homem, ganhou para o erro muitos habitantes de Roma.

2. Isto é demonstrado por Justino, que se distinguiu em nossa doutrina não muito tempo depois dos apóstolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente. Em sua primeira Apologia, dirigida a Antonino, em favor de nossa fé, escreve como segue:

[ 111 ]

Page 112: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. "E depois da ascensão do Senhor ao céu, os demônios levaram alguns homens a dizer que eram deuses, e estes não somente não foram perseguidos por vós, mas até foram considerados dignos de honras. Um tal Simão, samaritano, originário da aldeia chamada Giton, que em tempos do César Cláudio realizou mágicos prodígios em vossa imperial cidade, Roma, por arte dos demônios que nele operavam, foi tido por deus, e como a um deus foi honrado por vós com uma estátua no rio Tibre, entre as duas pontes, com a inscrição latina seguinte: SIMONIDEO SANCTO (123), ou seja: A Simão, o Deus santo.

4. E quase todos os Samaritanos, além de uns poucos de outras nações, proclamam-no e adoram-no como ao Deus primeiro. E a uma certa Elena, que na época andava com ele, e que primeiro estava num prostíbulo -em Tiro da Fenícia -, chamavam-na o Primeiro Pensamento nascido dele".

5. Isto segundo Justino. Também Irineu concorda com ele quando, no primeiro de seus livros Contra as heresias, traça um retrato deste homem e de sua ímpia e nefasta doutrina. Expô-la em detalhe nesta minha obra seria supérfluo, podendo os que o queiram informar-se também da origem, vida e princípios das falsas doutrinas dos heresiarcas que depois dele foram se sucedendo um após outro, assim como de suas práticas,

[ 112 ]

Page 113: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

meticulosamente transmitido no mencionado livro de Irineu.

6. Recebemos pois por tradição que Simão foi o primeiro autor de toda heresia. Dele até hoje aqueles que, participando de sua heresia fingem a filosofia dos cristãos, sóbria e celebrada universalmente por sua pureza de vida, chegam de novo à superstição idólatra da qual pareciam estar livres, pois se prosternam diante de escritos e de imagens do próprio Simão e de sua companheira, a já citada Elena, e se esforçam em render-lhes culto com incenso, sacrifícios e libações.

7. Mas suas mais secretas práticas, das quais se diz que quem pela primeira vez as escuta fica estupefato e, segundo uma expressão escrita que corre entre eles, espantado, verdadeiramente estão cheias de espanto, de frenesi e de loucura, e são tais que não somente não podem ser colocadas por escrito, mas que nem sequer com os lábios pode um homem sensato pronunciar o mínimo, pelo exagero de obscenidade e costumes infames.

121 At 11:29-30. 122 A identificação de Simão o herege com Simão o Mago é duvidosa. 123 A estátua, encontrada em 1574, tem a inscrição: SEMONI SANCO DEO FIDIO SACRUM, sendo uma homenagem a um antigo deus Sabino SEMO.

[ 113 ]

Page 114: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

8. Porque tudo quanto se possa pensar de mais impuro e vergonhoso fica bem superado pela abominável heresia destes homens, que abusam de mulheres miseráveis e carregadas verdadeiramente de males de todo tipo.

Nos tempos modernos estamos vivendo uma epidemia de Simãos, mágicos, gente que estão desvirtuando o rebanho e fazendo para si imagens para serem deificados. Há uma vaidade sem precedentes de pregadores que colocam fotos gigantes nas portas dos templos evangélicos, líderes buscando a glória terrena.

XIV - [Da pregação do apóstolo Pedro em Roma]

1. A este Simão, pai e autor de tão grandes males, o poder malvado e odiento de todo bem, inimigo da salvação dos homens, destacou-o naquele tempo como grande adversário dos grandes e divinos apóstolos de nosso Salvador.

2. No entanto a graça divina e celestial veio em socorro de seus servidores, e somente com a aparição e

[ 114 ]

Page 115: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

presença destes extinguiu rapidamente o fogo ateado pelo maligno, e por meio deles humilhou e abateu toda altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus (124).

3. Por isso nenhuma maquinação, nem de Simão nem de nenhum outro dos que então proliferavam, prevaleceu naqueles tempos apostólicos: a luz da verdade e o próprio Verbo divino, que recentemente tinha brilhado sobre os homens, florescendo sobre a terra e convivendo com seus próprios apóstolos, triunfava sobre tudo e dominava tudo.

4. Em seguida o mencionado impostor (125), como ferido nos olhos da mente por um ofuscamento divino e extraordinário quando anteriormente o apóstolo Pedro pôs a descoberto suas malvadas intenções na Judéia, empreendeu uma longa viagem para além do mar, e foi-se fugindo de oriente a ocidente, convencido de que somente ali seria possível viver segundo suas ideias.

5. Chegou à cidade de Roma, e com a grande ajuda do poder que nela se assenta (126), em pouco tempo alcançou tamanho êxito em seu empreendimento, que os habitantes do lugar chegaram a honrá-lo como a um Deus, dedicando-lhe uma estátua.

6. Não chegaria muito longe esta prosperidade. De fato, pisando em seus calcanhares, durante o próprio império de Cláudio, a providência universal, santíssima e

[ 115 ]

Page 116: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

amantíssima dos homens, levava sua mão em direção a Roma, como contra um tão grande flagelo da vida, o firme e grande apóstolo Pedro, porta-voz de todos os outros devido a sua virtude. Como nobre capitão de Deus, equipado com as armas divinas (127), Pedro levava do oriente aos homens do ocidente a apreciadíssima mercadoria da luz espiritual, anunciando a boa nova da própria luz, da doutrina que salva as almas: a proclamação do reino dos céus.

XV [Do evangelho de Marcos]

1. Assim foi que, por habitar entre eles a doutrina divina, o poder de Simão se extinguiu e foi reduzido a nada, junto com ele mesmo. Em troca, o resplendor da religião brilhou de tal maneira sobre as mentes dos ouvintes de Pedro, que não ficavam satisfeitos apenas ouvindo-o uma vez, nem com o ensinamento não escrito da pregação divina, mas com todo tipo de pedidos importunavam Marcos - de quem se diz que é o Evangelho e que era companheiro de Pedro - para que lhes deixasse também um memorial escrito da doutrina que de viva voz lhes era transmitida, e não o deixaram em paz até que o homem o tivesse terminado, e desta forma

[ 116 ]

Page 117: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tornaram-se a causa do texto chamado Evangelho de Marcos.

A autoria do segundo livro biográfico de Jesus é atribuída ao evangelista Marcos com respaldo nesta narrativa de Eusébio, historiador cristão mais importante da história.

2. E dizem que o apóstolo, quando por revelação do Espírito soube o que tinha sido feito, alegrou-se pela boa vontade daquela gente e aprovou o escrito para ser lido nas igrejas. Clemente cita o fato no livro VI de suas Hypotyposeis (128), e o bispo de Hierápolis chamado Papias apóia-o também com seu testemunho. Marcos é mencionado por Pedro em sua primeira carta; dizem que esta foi escrita em Roma mesmo, e que isto se dá a entender ao chamar a cidade, metaforicamente, de Babilônia, com estas palavras: Saúda-vos aquela que está em Babilônia, eleita convosco, e meu filho Marcos.

124 2 Co 10:5. 125 At 8:18-23. 126 i.é. o demônio. Sobre a estátua, vide nota 123. 127 Ef 6:14-17; 1Ts 5:8. 128 Clemente na verdade diz que Pedro "nem o impediu nem o estimulou".

[ 117 ]

Page 118: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XVI - [De como Marcos foi o primeiro a pregar aos egípcios o conhecimento de Cristo]

1. Dizem que este Marcos foi o primeiro a ser enviado ao Egito, e que ali pregou o Evangelho que ele havia posto por escrito e fundou igrejas, começando pela de Alexandria.

2. E surgiu ali, na primeira tentativa, uma multidão de crentes, homens e mulheres, tão grande e com um ascetismo tão conforme a filosofia e tão ardente, que Fílon achou que era digno colocar por escrito suas práticas, suas reuniões, suas refeições em comum e tudo o mais referente ao seu modo de vida.

XVII - [O que Fílon conta sobre os ascetas do Egito]

1. Um documento diz que Fílon, nos tempos de Cláudio, chegou a Roma para conversar com Pedro, que então estava pregando aos dali. Isto na verdade pode não

[ 118 ]

Page 119: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

ser inverossímil, já que a própria obra de que falo - composta por ele mais tarde, passado muito tempo - contém claramente as regras da Igreja, observadas ainda em nossos dias.

2. Ocorre no entanto que, ao descrever com a maior exatidão possível a vida de nossos ascetas, fica evidente que ele não somente conhecia, mas também aprovava, reverenciava e honrava os valores apostólicos de seu tempo, de origem hebraica ao que parece, e que por isso conservavam ainda a maior parte dos antigos costumes muito à maneira dos judeus.

3. Em primeiro lugar, no livro que intitulou Da vida contemplativa ou Suplicantes, Fílon deixa bem estabelecido que não acrescentaria ao que contasse nada contrário à verdade nem de sua própria criação. Diz que eram chamados terapeutas, e as mulheres que estavam com eles terapeutisas, e comenta as razões de tais nomes: ou porque como médicos livravam aqueles que os cercavam dos sofrimentos causados pela maldade às almas, curando-os e cuidando deles, ou pela limpeza e pureza de seu serviço e culto à divindade.

4. Portanto não é necessário estender-se discutindo se Fílon colocou-lhes ele mesmo este nome, escrevendo o nome que correspondia à índole desses homens, ou se na verdade já se chamavam assim aos

[ 119 ]

Page 120: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

primeiros quando começaram, já que o nome de cristãos ainda não era bem conhecido em qualquer lugar.

5. De qualquer forma, em primeiro lugar atesta seu afastamento das riquezas, afirmando que, quando começam a viver esta filosofia, cedem seus bens aos parentes e assim, livres de toda preocupação pela vida, saem para fora das muralhas para seguir sua vida em campos isolados e em bosques, sabendo que o convívio com pessoas de sentimentos diferentes é nocivo e sem proveito. Naquele tempo, ao que parece, os que agiam assim exercitavam-se em imitar com sua fé entusiástica e ardorosa a vida dos profetas.

Realmente, uma conversão profunda nos leva a perder o interesse pelas riquezas deste mundo e acabamos sentindo uma atração irresistível para ir aos campos isolados e aos bosques. Isto tem ocorrido comigo nos últimos dez anos, e olha que conheço o evangelho de Cristo faz trinta e dois anos.

6. Com efeito, também nos Atos dos Apóstolos, que são reconhecidos como autênticos, descreve-se que todos os discípulos dos apóstolos vendiam suas posses e riquezas e as repartiam a todos conforme a necessidade de cada um, de forma que entre eles não havia indigentes (129). Portanto, segundo diz o livro (130), todos os que possuíam campos ou casas os vendiam, e levando o produto da venda, depositavam-no aos pés dos apóstolos,

[ 120 ]

Page 121: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de modo que os repartissem a cada um segundo suas necessidades.

7. Fílon, depois de atestar práticas semelhantes a estas continua dizendo textualmente: "Este tipo de homens se encontra em muitos lugares do mundo, pois é mister que tanto a Grécia como as terras bárbaras participem do bem perfeito. Mas onde abundam é no Egito, em cada um dos chamados nomos (131), e sobretudo em torno de Alexandria.

8. Os melhores de cada região são enviados a um tipo de colônia, como a uma pátria dos terapeutas, um lugar muito adequado, que se encontra às margens do lago Mareia, sobre uma colina baixa, nas melhores condições devido à segurança e à salubridade do ar." Descreve então como eram suas moradias, e sobre as igrejas da região diz o que segue:

129 At 2:45. 130 At 4:34-35. 131 Distritos em que era dividido o Egito.

9. "Em cada casa há uma sala sagrada, que se chama oratório privado e monastério (132), na qual se isolam e realizam os mistérios da vida sagrada. Nela não introduzem bebida, nem alimento, nem nada do que é necessário para o corpo, mas leis, oráculos anunciados por meio dos profetas, hinos e tudo aquilo com que o conhecimento e a religião crescem e se aperfeiçoam." E depois de outras coisas, diz:

[ 121 ]

Page 122: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

10. "O tempo que vai do alvorecer ao ocaso é empregado inteiramente nesta prática: leem as Escrituras Sagradas, filosofam e expõe a filosofia pátria empregando a alegoria, já que pensam que a expressão falada é símbolo da natureza oculta, que se manifesta em alegorias.

11. Possuem também escritos de antigos varões que foram os fundadores de sua seita e deixaram numerosos monumentos de sua doutrina em forma de alegorias. Tomam-nos por modelos e imitam sua maneira de pensar e agir."

12. Isto parece ser, portanto, o que disse o homem que os ouviu interpretar as Sagradas Escrituras. E talvez os escritos dos antigos, que ele diz que possuem, sejam possivelmente os Evangelhos, os escritos dos apóstolos e algumas explicações que interpretam, como é natural, os antigos profetas, que são as que contêm a Carta aos Hebreus e outras cartas de Paulo.

13. Depois Fílon continua escrevendo o que segue sobre como compõem para si novos salmos: "De forma que não somente se dedicam à contemplação, mas também compõem cantos e hinos a Deus, em todas as formas de metros e melodias, ainda que marcando-os forçosamente com números bastante graves."

14. Muitas outras coisas sobre o tema são explicadas no mesmo livro, mas pareceu-me necessário

[ 122 ]

Page 123: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

enumerar aquelas pelas quais se expõe as características da vida da Igreja.

15. Mas se a alguém parecer que o que dissemos não é próprio unicamente da forma de vida segundo o Evangelho, mas pode aplicar-se também a outros, além dos indicados, que se convença pelas palavras seguintes de Fílon, nas quais, se sua intenção é boa, encontrará um testemunho incontestável sobre este ponto, pois escreve assim:

16. "Começam estabelecendo como fundamento da alma a continência, e sobre esta edificam as demais virtudes. Nenhum deles tomaria alimento ou bebida antes do pôr-do-sol, pois entendem que a luz é conveniente para filosofar, enquanto que às necessidades do corpo servem bem as trevas; por isso deixam o dia para aquele mister, e um breve espaço da noite para estas.

Ainda que pareça exagerado tais práticas e que tais costumes não são ensinados nem no Antigo e nem no Novo Testamento, devemos deveras respeitar a intimidade que alguns cristãos primitivos tinham com Deus.

17. Alguns inclusive descuidam do alimento durante três dias: neles está mais arraigado o amor pela ciência. Outros de tal maneira se alegram e deleitam no banquete da sabedoria, que tão rica e abundantemente lhes abastece de doutrina, que podem resistir o dobro do

[ 123 ]

Page 124: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tempo e tomar apenas o alimento necessário ao fim de seis dias, por costume." Cremos que estas palavras de Fílon referem-se clara e indiscutivelmente aos nossos.

Jejuam seis dias seguindo, se alimentando somente no sétimo dia revela a força de espírito destes cristãos.

18. Mas se depois do que foi dito alguém ainda se empenhar em contradizê-lo, afaste-se também este de sua incredulidade e convença-se com provas mais claras, que não podem ser achadas em outra parte senão na religião cristã segundo o Evangelho.

19. Diz efetivamente que, com os homens de que fala convivem também mulheres, a maioria das quais chegam virgens à velhice depois de guardar a castidade, não por necessidade como algumas sacerdotisas dos gregos, mas sim por convicção voluntária, devido ao seu zelo e sede de sabedoria, com a qual se esforçam em viver, sem importar-se em nada com os prazeres do corpo e desejosas de ter não filhos mortais, mas imortais, os quais somente a alma amante de Deus pode gerar de si mesma.

O celibato voluntário era relativamente praticado nas comunidades cristãs do passado.

20. Um pouco mais adiante expõe ainda mais claramente o que segue: "Mas eles fazem as

[ 124 ]

Page 125: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

interpretações das Sagradas Escrituras por meio de sentidos simbólicos, em alegorias, já que toda a legislação parece a estes homens semelhante a um ser vivo: como corpo têm as expressões convencionadas; como alma, o sentido invisível encerrado nas palavras, sentido que esta seita começou a contemplar como que refletida no espelho dos homens, a beleza extraordinária dos conceitos."

Os piedosos modernos do século XX no Brasil, a Congregação Cristã no Brasil também tem uma leitura bíblica nos seus cultos voltada a interpretação alegórica.

21. Para que acrescentar a tudo isto suas reuniões num mesmo lugar, o modo de vida que levam (132) Fílon não fala de igreja, como diz Eusébio, mas de habitação sagrada, com o duplo nome de oratório privado e monastério (lugar para uma só pessoa). Separadamente os homens e as mulheres e os exercícios que nós mesmos por costume ainda praticamos, sobretudo os que costumamos realizar na festa da Paixão do Salvador: abstinência, vigílias noturnas e a aplicação às palavras divinas?

22. Tudo isto nos transmitiu muito exatamente o mencionado autor em sua própria obra, com o mesmo caráter que se pode observar até hoje somente entre nós. Descreve as vigílias completas da grande festa, os exercícios que nela são feitos e os hinos que costumamos

[ 125 ]

Page 126: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

dizer, e como, enquanto um vai salmodiando com ritmo e ordenadamente, os demais escutam em silêncio e repetem com ele somente o estribilho dos hinos, e também como nos dias assinalados deitam-se sobre leitos de palha e não tomam do vinho em absoluto - como escreve textualmente -, nem sequer carne, antes têm como única bebida a água e como condimento do pão apenas sal e hissôpo.

Vemos que alguns grupos antigos começaram a pratica da festa da Paixão de Cristo e do hábito de se abster de comer carne nos dias santos. Estes costumes se perpetuaram na história da igreja Católica, mas não tem apoio na doutrina bíblica. Respeito as devoções pessoais de cada um com Deus e suas particularidades, só não pode virar doutrina e normas exigidas para todos os cristãos observarem.

23. Além disso, descreve a ordem de precedência daqueles a quem estão confiados os ofícios eclesiásticos públicos, o serviço e as presidências do episcopado, que estão acima de todas. Quem desejar um conhecimento exato de tudo isto pode consegui-lo na mencionada obra do referido autor.

24. E que Fílon escreveu isto depois de aceitar os primeiros arautos da doutrina evangélica e dos costumes que desde o princípio transmitiram os apóstolos, é evidente para todos (133).

[ 126 ]

Page 127: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XVIII - [Obras de Fílon que chegaram até nós]

1. Rico em linguagem, de pensamentos amplos, sublime e elevado na contemplação das divinas Escrituras, Fílon fez sobre as palavras sagradas uma exposição variada e multiforme. Primeiro, em ordem concatenada e seguida, expôs detalhadamente as dificuldades do conteúdo do Gênesis nos livros que intitulou Alegorias das leis sagradas, depois, em parte distinguindo, suprimindo e fazendo concordar capítulos das escrituras postos num mesmo quadro de referência, nos mesmos a que aplicou o título Problemas e soluções sobre o Gênesis e sobre o Êxodo, respectivamente.

2. Tem além destes alguns estudos de certos problemas particularmente trabalhados, como são: dois livros Sobre a agricultura, e outros dois Sobre a embriaguez (134) e alguns outros que levam títulos diversos e apropriados, tais como Sobre as coisas que o sóbrio entendimento deseja e abomina (135), Sobre a confusão das línguas, Sobre a fuga e a invenção, Sobre o agrupamento para o ensino, Sobre quem é o herdeiro das coisas divinas ou Sobre a divisão em partes iguais e

[ 127 ]

Page 128: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

desiguais, e também Sobre as três virtudes que Moisés descreveu junto com outras.

3. Há também a obra Sobre as trocas de nomes e o por quê destas trocas, na qual diz que escreveu também os livros I e II Sobre os testamentos (136).

4. Também é sua a obra Sobre a emigração e vida do sábio perfeito segundo a justiça (137) ou Sobre as leis não escritas; e também Sobre os gigantes ou De como a divindade não muda, assim como os livros I-V da obra De como, segundo Moisés, é Deus quem envia os sonhos. Estas são as obras que chegaram até nós das que tratam sobre o Gênesis.

Obras de Fílon listadas abaixo com o título em latim:

De Aeternitate Mundi De Abrahamo

De Migratione Abrahami De Mutatione Nominum

De Plantatione, De Agricultura

De Confusione Linguarim, De Congressu Eruditiones Gratia

De Decalogo, De Sacrificius Abelis et Cainis

De Posteritate Caini, De Ebrietate

De Escrecationibus, De Fuga et Inventione

[ 128 ]

Page 129: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

De Gigantibus, De Josepho

De Opificio Mundi, De Vita Contemplativa

De Vita Mosis, De Sobrietate

De Somniis, De Specialibus Legibus

De Virtutibus, De Praemiis et Poenis

Legum Allegoriae, Legatio ad Gaium

In Flaccus, Quaestiones in Genesim

Quaestiones in Exodum, Quis Serem Divinarum Heres Sit

Quod Deterius Potiori Insidari Soleat,

Quod Deus Sit Immutabilis,

Quod Omnis Probus Líber Sit.

5. Quanto ao Êxodo, conhecemos dele o seguinte: os livros I-V de Problemas e soluções, as obras Sobre o tabernáculo, Sobre o decálogo e os livros I-IV Sobre as leis que em especial se referem aos capítulos principais do decálogo; Sobre os animais para os sacrifícios e espécies de sacrifícios e Sobre os prêmios para os bons, e castigos e maldições para os maus, que estão na lei.

[ 129 ]

Page 130: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

6. Além destas todas, dão-se como suas obras de um só livro, como: Sobre a Providência (138), o tratado que compôs Sobre os judeus, O Político e ainda Alexandre ou de como os animais irracionais têm razão, e também De como todo homem mau é escravo (139), ao qual se segue outra obra: De como todo homem bom é livre.

133 Eusébio trata Fílon como "um dos nossos", um escritor cristão, no que é seguido por Jerônimo, apesar de este duvidar da autenticidade do texto de Fílon. 134 O segundo livro foi perdido totalmente. 135 Desta obra só se conservaram fragmentos. 136 Isto indica que Eusébio já não conheceu diretamente esta obra, que está perdida. 137 São na verdade duas obras: Sobre a emigração e Sobre a vida do sábio perfeito segundo a justiça. 138 Só se conserva completa uma tradução armênia; em grego somente o que foi transmitido por Eusébio.

7. Depois destas compôs a obra Da vida contemplativa ou Suplicantes, da qual citamos passagens sobre a vida dos varões apostólicos (140); e diz-se que são também suas as Interpretações dos nomes hebreus que há na Lei e nos Profetas.

8. Chegou Fílon em Roma nos tempos de Caio, e diz-se que seus escritos sobre a teofobia de Caio, que ele intitulou, com sua ponta de ironia, Sobre as virtudes,

[ 130 ]

Page 131: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

foram por ele expostos diante do senado romano reunido, nos tempos de Cláudio, de forma que suas obras foram muito admiradas e consideradas dignas de ser colocadas nas bibliotecas.

9. Por este tempo Paulo realizava sua viagem desde Jerusalém até o Ilírico (141), Cláudio expulsava os judeus de Roma e Áquila e Priscila, lançados de Roma com os demais judeus, desembarcavam na Ásia e conviviam com o apóstolo Paulo, que consolidava os fundamentos daquelas igrejas, recém lançadas por ele. Quem nos ensina tudo isto é também a sagrada escritura dos Atos (142).

XIX - [Calamidades que se abateram sobre os judeus de Jerusalém no dia da Páscoa]

1. Cláudio ainda regia o império quando ocorreu que, na festa da Páscoa, produziu-se em Jerusalém uma insurreição e uma confusão tamanhas que apenas dentre os judeus, que se apertavam com toda a força nas saídas do templo, morreram trinta mil, esmagados uns contra os outros, transformando-se a festa em dor para toda a

[ 131 ]

Page 132: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

nação e em pranto para cada família. Também isto é expressamente referido por Josefo.

2. Cláudio estabeleceu como rei dos judeus Agripa, filho de Agripa, e enviou Félix como procurador de toda a região da Samaria, da Galiléia e da chamada Peréia. Depois de ter exercido o comando durante treze anos e oito meses, morreu, deixando Nero como sucessor no império.

XX – [Do que ocorreu em Jerusalém nos dias de Nero]

1. Nos tempos de Nero e sendo Félix procurador da Judéia, os sacerdotes se levantaram uns contra os outros; Josefo o descreve textualmente no livro XX de suas Antiguidades, como segue:

2. "Os sumos sacerdotes levantaram disputa contra os sacerdotes e principais personalidades do povo de Jerusalém, e cada um deles criou para si uma tropa de homens dos mais atrevidos e revolucionários e fez-se seu chefe. Quando se enfrentavam insultavam-se uns aos outros e lançavam pedras. Não havia ninguém que o

[ 132 ]

Page 133: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

reprimisse, pelo contrário, como numa cidade sem governo, isto acontecia com toda a liberdade.

3. Tamanho descaramento e audácia se apoderou dos sumos sacerdotes, que se atreveram a enviar escravos às eiras para tomar para si os dízimos devidos aos sacerdotes, e chegou-se ao ponto de sacerdotes pobres morrerem na indigência. Assim é como a força dos facciosos prevalecia sobre toda a justiça."

A corrupção humana não conhece limites, nem mesmo na religião, vejam o que os sumos sacerdotes faziam com os sacerdotes. A Igreja católica também já teve seu tempo de tirania se enriquecendo e o povo católico na pobreza, enquanto o clero vivia na riqueza. Hoje a mesma corrupção que acompanhou a história do povo de Deus continua, e podemos dizer que de forma mais intensa. Pastores evangélicos tiranizam os membros e os pastores de baixo escalão, é muito comum em muitas igrejas pentecostais, o pastor-presidente viver regalada e esplendidamente enquanto os obreiros vivem as minguas. Nenhum cristão deve dar o seu dízimo ou oferta para uma igreja cuja estrutura é tirana e contaminada de forma explícita.

4. Relata também o mesmo escritor que naquele tempo surgiu em Jerusalém certa espécie de ladrões que, segundo diz, em pleno dia e no meio da cidade assassinavam quem quer que os encontrassem.

[ 133 ]

Page 134: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. Principalmente nos dias de festas, misturavam-se à multidão levando adagas (143) escondidas sob as roupas e com elas apunhalavam seus adversários. Quando estes caíam, os próprios assassinos uniam-se aos que manifestavam sua indignação, e por isso, com tal aparência de honradez, não havia quem os descobrisse.

139 Obra perdida. 140 Vide XVII:7-ss. 141 Rm 15:19. 142 At 18:2, 18-19,23. 143 Estas adagas eram as sicae, o que deu origem à palavra sicário, aquele que mata com a adaga e a traição.

6. O primeiro que degolaram foi o sumo sacerdote Jonatan, e depois dele, a cada dia foram matando muitos. O medo era mais terrível do que as calamidades, pois todos esperavam a morte a qualquer momento, como numa guerra.

XXI - [Do egípcio, também mencionado pelos Atos dos Apóstolos]

1. Em continuação, acrescenta depois de outros detalhes: "Com uma praga pior do que esta, foram os judeus prejudicados pelo pseudoprofeta Egípcio. De fato, chegou este ao país como feiticeiro e com ares de

[ 134 ]

Page 135: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

profeta. Conseguiu reunir trinta mil iludidos e os conduziu ao deserto até o monte chamado das Oliveiras, de onde lhe seria possível entrar à força em Jerusalém e subjugar a guarnição romana e o povo, utilizando despoticamente as forças que o haviam acompanhado.

2. Mas Félix antecipou-se a seu ataque saindo logo com os soldados romanos, e todo o povo contribuiu com a defesa, de modo que, iniciado o combate, o Egípcio empreendeu a fuga com uns poucos, enquanto a maior parte dos que estavam com ele pereceram ou foram feitos prisioneiros."

3. Isto escreve Josefo no livro II de suas Histórias. Contudo, será bom relacionar o que ele diz sobre o Egípcio com o que é dito nos Atos dos Apóstolos (144), na passagem onde o tribuno militar de Jerusalém pergunta a Paulo nos tempos de Félix, quando o populacho judeu se voltara contra ele: Então não és tu o Egípcio que há alguns dias levantou uma sedição e levou ao deserto os quatro mil sicários? Isto sucedeu nos tempos de Félix.

XXII - [De como Paulo, enviado preso da Judéia a Roma, fez sua defesa e foi absolvido de toda acusação]

[ 135 ]

Page 136: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Como sucessor deste, Nero enviou a Festo. Foi em seu tempo que Paulo sustentou seus direitos e foi enviado preso a Roma (145. Com ele estava Aristarco, a quem em algum lugar de suas cartas chama com toda naturalidade de companheiro de cativeiro (146). E Lucas, o que pôs por escrito os Atos dos Apóstolos, termina sua narrativa com estes acontecimentos, indicando que Paulo passou em Roma dois anos inteiros em liberdade provisória e que pregou a palavra de Deus sem nenhum obstáculo (147).

A obra valiosa de Eusébio é que ele procurou comparar os registros do Novo Testamento com os registros históricos da época de maneira a comprovar que o pano de fundo cultural do Novo Testamento é verdadeiro, a história de Cristo e do surgimento do cristianismo não é baseado em lendas e mitologias.

2. É pois tradição (148) que o Apóstolo, depois de haver pronunciado sua defesa, partiu novamente para exercer o ministério da pregação e que, tendo voltado pela segunda vez à mesma cidade, terminou sua vida com o martírio, nos tempos do mesmo imperador. Estando preso, compôs a segunda carta a Timóteo, e se refere de uma só vez a sua primeira defesa e a seu fim iminente.

[ 136 ]

Page 137: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. Mas ouçamos melhor seu próprio testemunho: Em minha primeira defesa -diz - ninguém me ajudou, antes, todos me abandonaram (que isto não lhes seja posto em conta). Mas o Senhor me ajudou e me infundiu forças para que por mim a pregação fosse plenamente cumprida e todas as nações a ouvissem, e fui libertado da boca do leão (149).

4. Por estas palavras deixa claramente expresso que na primeira ocasião, para que se cumprisse sua pregação, fora livrado da boca do leão, referindo-se com esta expressão, ao que parece, a Nero, por causa de sua crueldade. Por outro lado, em continuação não acrescenta nada como: me livrará da boca do leão, porque em seu espírito já via que sua morte seria iminente.

5. Por isso, às palavras: e fui libertado da boca do leão, acrescenta: O Senhor me livrará de toda obra má e me preservará para seu reino celestial (150), indicando assim seu martírio iminente. Isto ele expressa ainda mais claramente um pouco antes, na mesma carta, quando diz: porque estou já sendo oferecido em libação e o tempo de minha partida está próximo (151).

144 At 21:38. 145 At 25:8-12; 27:1-2. 146 Cl 4:10. 147 At 28:30-31. 148 Tradição escrita, pela expressão utilizada. 149 2 Tm 4:16-17. 150 2 Tm 4:18.

6. Pois bem, na segunda carta das que enviou a Timóteo afirma que, no momento em que a escrevia,

[ 137 ]

Page 138: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

somente Lucas o acompanha (152), enquanto que, quando fez sua primeira defesa, nem sequer este (153). De onde se deduz que Lucas provavelmente concluiu os Atos dos Apóstolos neste tempo, havendo narrado o que sucedeu enquanto esteve com Paulo.

6. Dissemos isto para mostrar que o martírio de Paulo não ocorreu durante sua primeira estada em Roma, descrita por Lucas (154).

Esta explicação sobre as ultimas narrativas de Atos dos Apóstolos é por demais esclarecedora. Eu sempre soube que Paulo não morreu por ocasião daquela prisão descrita em Atos capítulo 28, sabia que Paulo foi posto em liberdade e somente posteriormente ele foi preso novamente e ai sim, decapitado. Todavia, eu não sabia qual era a fonte histórica, agora lendo Eusébio eu posso saber de onde procedeu tal informação.

7. É provável que Nero, ao menos no começo (155), estivesse mais propício e que aceitasse mais facilmente a defesa de Paulo em favor de sua doutrina, mas depois que avançou em sua audácia criminosa, atacou os apóstolos tanto quanto aos demais.

Este crápula foi uma das criaturas mais detestável que passou na face da Terra, muito usado pelo Diabo para atormentar e perseguir os cristãos, como poucas vezes ocorreu na história.

[ 138 ]

Page 139: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XXIII - [De como Tiago, chamado irmão do Senhor, sofreu o martírio]

1. Ao apelar Paulo ao César e ser enviado por Festo à cidade de Roma (156), os judeus, frustrada a esperança que os induziu a conspirar contra ele (157), voltaram-se contra Tiago, o irmão do Senhor, a quem os apóstolos tinham confiado o trono episcopal de Jerusalém. O que segue é o que ousaram fazer também contra ele.

Jesus nunca deixou trono episcopal para sua igreja, Eusébio já retrata o pensamento da sua época, onde já se consolidava ideia de papado.

2. Trouxeram-no, e diante de todo o povo pediram-lhe que renegasse a fé de Cristo. Mas quando ele, contra a vontade de todos, com voz livre e falando mais abertamente do que esperavam, diante de toda a multidão pôs-se a confessar que nosso Salvador e Senhor Jesus era filho de Deus, já não foram capazes de suportar mais o testemunho deste homem, justamente porque era considerado o mais justo de todos pelo grau de sabedoria e piedade a que havia chegado em sua vida, e mataram-no, aproveitando oportunamente a falta de governo, pois

[ 139 ]

Page 140: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tendo Festo morrido na Judéia neste tempo, a administração do país ficou sem chefe e sem controle (158).

3. O modo como ocorreu a morte de Tiago já foi esclarecido pelas palavras citadas de Clemente (159), que conta como o lançaram do pináculo do templo e espancaram-no até matá-lo. Mas quem conta com maior exatidão o que a ele se refere é Hegesipo, que pertence à primeira geração sucessora dos apóstolos (160) e que no livro V de suas Memórias diz assim:

4. "Sucessor (161) na direção da Igreja é, junto com os apóstolos, Tiago, o irmão do Senhor. Todos dão-lhe o sobrenome de "Justo", desde os tempos do Senhor até os nossos, pois eram muitos os que se chamavam Tiago.

5. Mas somente este foi santo desde o ventre de sua mãe. Não bebeu vinho nem bebida fermentada, não comeu carne; sobre sua cabeça não passou tesoura nem navalha e tampouco ungiu-se com azeite nem usou do banho. 6. Somente a ele era permitido entrar no santuário, pois não vestia lã, mas linho. E somente ele penetrava no templo, e ali se encontrava ajoelhado e pedindo perdão por seu povo, tanto que seus joelhos ficaram calejados como os de um camelo, por estar sempre de joelhos adorando a Deus e pedindo perdão para o povo.

[ 140 ]

Page 141: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Os homens santificados são chamados no Antigo Testamento de Nazireu, cujo voto de separação para Deus incluía vários rituais como não ingerir bebida alcoolica e não cortar o cabelo, como foi o caso de Sansão.

7. Por sua eminente retidão era chamado "o Justo" e "Oblías", que em grego quer dizer proteção do povo e justiça, como declaram os profetas acerca dele.

151 2 Tm 4:6. 152 2Tm4:11. 153 2 Tm 4:16. 154 Em princípios do século IV, quando Eusébio escrevia esta obra, alguns negavam que Paulo tivesse feito duas viagens a Roma. 155 Entre os anos 54 e 59, tempos de calma e bem-estar, Nero ouvia mais os conselhos moderados de Burro e Sêneca do que os de sua mãe Agripina. 156 At 25:11-12; 27:1. 157 At 23:13-15; 25:3. 158 Verão ou outono de 62, entre a morte de Festo e a chegada de seu sucessor Luceius Albinus. 159 Vide I:V 160 Hegesipo nasceu no ano 110, pode ter conhecido alguns membros da comunidade primitiva, ainda que muito velhos, mas não pode ser de forma alguma "da primeira geração" pós-apostólica. 161 Não fica claro de quem Tiago seria sucessor.

8. Assim pois, alguns das sete seitas que há no povo e que eu descrevi anteriormente (nas Memórias) tentavam informar-se com ele quem era porta de Jesus, e ele respondia que este era o Salvador. 9. Alguns creram

[ 141 ]

Page 142: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

que Jesus era o Cristo. Mas as seitas mencionadas anteriormente não creram nem na ressurreição nem em que venha a dar a cada um segundo suas obras (162). Mas os que creram, creram por Tiago.

10. Sendo pois, muitos os que creram, inclusive entre as autoridades (163), os judeus, escribas e fariseus se alvoroçaram dizendo: todo o povo corre perigo ao esperar o Cristo em Jesus. Reuniram-se pois ante Tiago e disseram: Nós te pedimos: retém ao povo, que está em erro a respeito de Jesus, como se ele fosse o Cristo. Pedimo-te que convenças a respeito de Jesus todos os que vierem para o dia da Páscoa, porque a ti todos obedecem. Efetivamente, nós e todo o povo damos testemunho de ti, de que és justo e não te deixas levar pelas pessoas.

11. Tu pois, convence a toda a multidão para que não se engane a respeito do Cristo. Todo o povo e nós mesmos te obedecemos. Ergue-te pois sobre o pináculo do templo para que do alto sejas visível e todo o povo ouça tuas palavras, pois por causa da Páscoa reúnem-se todas as tribos, inclusive com os gentios.

12. E assim os mencionados escribas e fariseus puseram Tiago em pé sobre o pináculo do templo e disseram-lhe aos gritos: "O tu, o justo!, a quem todos devemos obedecer, posto que o povo anda extraviado

[ 142 ]

Page 143: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

atrás de Jesus o crucificado, diga-nos quem é a porta de Jesus."

13. E ele respondeu com grande voz: "Por que me perguntam sobre o Filho do homem? Ele também está sentado no céu à direita do grande poder e há de vir sobre as nuvens do céu (164.)"

14. E sendo muitos os que se convenceram completamente e ante o testemunho de Tiago, irromperam em louvores dizendo: "Hosana ao filho de Davi!". Então os mesmos escribas e fariseus novamente disseram uns aos outros: "Fizemos mal em proporcionar tal testemunho a Jesus, mas subamos e lancemo-lo para baixo, para que tenham medo e não creiam nele."

15. E puseram-se a gritar dizendo: "Oh! Oh! Também o Justo extraviou-se!" E assim cumpriram a Escritura que se encontra em Isaías: Tiremos de nosso meio o justo, que nos é incômodo. Então comerão o fruto de suas obras.

16. Subiram pois, e lançaram abaixo o Justo. E diziam uns aos outros: "Apedrejemos a Tiago o Justo!" E começaram a apedrejá-lo, porque ao cair não chegou a morrer. Mas ele, virando-se, ajoelhou-se e disse: "Eu te peço Senhor, Deus Pai: Perdoa-os, porque não sabem o que fazem.

[ 143 ]

Page 144: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

17. E quando estavam assim apedrejando-o, um sacerdote, um dos filhos de Recab, filho dos Recabim, dos quais o profeta Jeremias havia dado testemunho (165), gritava dizendo: Parai, que estais fazendo? O Justo roga por vós!

18. E um deles, tecelão, agarrou o bastão com que batia os panos e deu com este na cabeça do Justo, e assim foi que sofreu o martírio. Enterraram-no naquele lugar, junto ao templo, e ainda se conserva sua coluna naquele lugar ao lado do templo. Tiago era já um testemunho veraz para judeus e para gregos de que Jesus é o Cristo. E em seguida Vespasiano os sitiou (166)."

19. Isto é o que Hegesipo relata minuciosamente, concordando ao menos com Clemente. Tiago era um homem tão admirável e tanto havia-se espalhado entre todos a fama de sua retidão, que até os judeus sensatos pensavam que esta era a causa do assédio de Jerusalém, iniciado imediatamente depois de seu martírio, e que por nenhum outro motivo estavam eles sofrendo-o senão pelo crime sacrílego cometido contra ele.

162 Rm 2:6; Sl 62:13 (62:12); Pv 24:12; Mt 16:27; Ap 22:12. 163 Jo 12:42. 164 Mt 26:64; Mc 14:62; At 7:56. 165 Jr 35:2-19. 166 Vespasiano começou a guerra contra os judeus em 67, mas Jerusalém foi sitiada por seu filho Tito em 70.

[ 144 ]

Page 145: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

20. Na verdade, pelo menos Josefo não vacilou em atestar também isto por escrito com estas palavras: "Isto sucedeu aos judeus como vingança por Tiago o Justo, irmão de Jesus, o chamado Cristo, porque exatamente os judeus o mataram, ainda que fosse um homem justíssimo (167)."

As referências de Josefo a Jesus e a Tiago acaba levantando suspeita, ou Josefo era simpatizante da causa cristã, ou em tempos posteriores algum cristão teria adulterado certas partes do texto original de Josefo. A enciclopédia digital Wikipédia tem uma citação sobre estes textos de Josefo: “Testimonium Flavianum foi um texto muito respeitado até meados do século XVII, depois disso houve muita discussão se ele seria ou não uma interpolação. Entretanto, a descoberta de novos manuscritos no século XX tem reforçado a credibilidade do texto.” O argumento mais sustentável de que estas declarações são genuínas da pena de Josefo é que não existem outros manuscritos do livro ANTIGUIDADES que contenham texto diferente deste que testifica a existência de Jesus e Tiago. Seria uma fraude perfeita destruir todas as copias que omitissem os testemunhos de Jesus.

21. O mesmo autor descreve também a morte de Tiago no livro XX de suas Antiguidades com estas palavras: "Sabendo César da morte de Festo, enviou a Albino como governador da Judéia. Mas Ananos o Jovem, sobre quem já dissemos que havia recebido o sumo

[ 145 ]

Page 146: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

sacerdócio, tinha um caráter especialmente resoluto e atrevido e formava parte da seita dos Saduceus, que nos juízos eram justamente os mais cruéis entre os judeus, como já demonstramos.

22. Ananos sendo pois assim, considerando oportuna a ocasião por haver morrido Festo e achar-se Albinus ainda a caminho, convocou a assembleia de juízes, e fazendo conduzir perante ela o irmão de Jesus, chamado Cristo - chamava-se Tiago - e alguns mais para acusá-los de violar a lei, entregou-os para que fossem apedrejados.

23. Mas todos os cidadãos considerados os mais sensatos e mais fiéis observadores da lei levaram a mal esta sentença e enviaram uma delegação secreta ao rei (168) para pedir-lhe que escrevesse a Ananos para que não levasse a cabo tal coisa, porque já desde o começo não agia com retidão. Alguns deles inclusive saíram ao encontro de Albinus, que viajava desde Alexandria, para informá-lo de que sem seu parecer não era permitido a Ananos convocar a assembléia.

24. Persuadido Albinus com o que lhe disseram, escreveu irritado a Ananos, ameaçando-o de pedir-lhe contas. E o rei Agripa destituiu-o por este motivo do sumo sacerdócio, que exercia há três meses, e instituiu a Jesus, o filho de Dameo." Esta é a história de Tiago, do qual se diz que é a primeira carta das chamadas católicas.

[ 146 ]

Page 147: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

25. Mas deve-se saber que não é considerada autêntica. Dos antigos não são muitos os que a mencionam, assim como a chamada de Judas, que é também uma das sete chamadas católicas. Ainda assim, sabemos que também estas, junto com as restantes, são utilizadas publicamente na maioria das igrejas.

Eusébio não considerava autêntica a epístola de Tiago, porque ainda não havia consenso sobre ela em todas as igrejas.

XXIV - [De como Aniano foi nomeado primeiro bispo da Igreja de Alexandria depois de Marcos]

1. Transcorrendo o oitavo ano do império de Nero, o primeiro que recebeu em sucessão o governo da igreja de Alexandria depois de Marcos foi Aniano.

XXV - [Da perseguição nos tempos de Nero, na qual Paulo e Pedro foram adornados com o martírio pela religião em Roma]

[ 147 ]

Page 148: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Firmado Nero no poder, deu-se a práticas ímpias e tomou as armas contra a própria religião do Deus do universo. Descrever de que maldades foi capaz este homem não é tarefa para a presente obra.

2. Já que, sendo muitos os que transmitiram em relatos precisos suas maldades, quem queira poderá aprender destes sobre a grosseira demência deste homem estranho que, levado por ela e sem a menor reflexão, produziu a morte de inúmeras pessoas e a tal ponto levou seu afã homicida que não se deteve nem mesmo ante os mais chegados e queridos, mas que até a sua mãe, seus irmãos, sua esposa e com eles muitos familiares, fez perecer com variadas formas de morte, como se fossem adversários e inimigos.

Nero foi uma das criaturas mais estúpidas que governou o mundo, eu fico pensando o quanto a humanidade está a mercê dos demônios que muitas vezes põe a presidir sobre os outros criaturas cruéis como Nero. O pior é em muitos casos o próprio povo elege estes dementes, como a ascensão de Hitler.

3. Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da piedade para com Deus.

4. Disto faz menção também o latino Tertuliano quando diz: "Leiam vossas memórias. Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta doutrina,

[ 148 ]

Page 149: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

principalmente quando, depois de submeter todo o Oriente, em Roma era cruel para com todos. Nós nos ufanamos de ter um assim como autor de nosso castigo, porque quem o conhecer compreenderá que Nero não podia condenar nada que não fosse um grande bem."

167 Desconhece-se este trecho nos manuscritos de Flavio Josefo, como Eusébio, contrário a seu costume, não cita obra nem livro, pode tê-la recolhido de outro autor, como Orígenes. 168 Agripa II (50-100).

5. Assim pois, este, proclamado primeiro inimigo de Deus entre todos os que o foram, levou sua exaltação ao ponto de fazer degolar os apóstolos. De fato, diz-se que sob seu império Paulo foi decapitado na própria Roma, e que Pedro foi crucificado. E disto da fé o título de Pedro e Paulo que predominou para os cemitérios daquele lugar até o presente.

6. Também o confirma um varão eclesiástico chamado Caio, que viveu quando Zeferino era bispo de Roma. Disputando por escrito com Proclo, líder da seita catafriga, diz sobre os lugares onde estão depositados os sagrados despojos dos mencionados apóstolos o seguinte:

Não se pode negar que o governo eclesiástico das igrejas primitivas era presbiteriano, na qual se sobressaia um principal que se chamava bispo, isto é, supervisor.

[ 149 ]

Page 150: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. "Eu, por outro lado, posso mostrar-te os troféus dos apóstolos, porque se queres ir ao Vaticano ou ao caminho de Ostia, encontrarás os troféus dos que fundaram esta igreja (169)."

O vaticano é uma colina que fica nos domínios do que hoje se chama o Estado do Vaticano. Foi neste monte onde Pedro foi morto e posteriormente construída a basílica de São Pedro, sede da igreja Católica. Esta colina já tinha este nome antes da era cristã.

8. Que ambos sofreram martírio na mesma ocasião é afirmado por Dionísio, bispo de Corinto, em sua correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos: "Nisto também vós, por meio de semelhante admoestação, fundistes as searas de Pedro e de Paulo, a dos romanos e a dos Coríntios, porque depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos instruíram, e depois de ensinarem também na Itália no mesmo lugar, os dois sofreram martírio na mesma ocasião." Sirva também isto para maior confirmação dos fatos narrados.

XXVI - [Dos inumeráveis males que envolveram os judeus e da última guerra que eles moveram contra os romanos]

[ 150 ]

Page 151: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Ao descrever Josefo com todo pormenor as desgraças que se abateram sobre toda a nação judia, além de muitas outras coisas, explica textualmente que muitíssimos judeus dos mais importantes, depois de serem ultrajados com a pena de açoites, foram crucificados por Floro na própria Jerusalém, e que este era procurador da Judéia quando novamente começou a acender-se a guerra, no décimo segundo ano do império de Nero.

2. Depois diz que, após a revolta dos judeus, toda a Síria foi tomada por uma confusão espantosa; por toda parte os próprios habitantes das cidades maltratavam sem piedade os dessa raça, como se fossem inimigos, de forma que se podia ver as cidades repletas de cadáveres insepultos: corpos de anciãos jogados junto aos de crianças, e cadáveres de mulheres sem nada que cobrisse suas nudezes. Toda a província transbordava de calamidades indescritíveis. Mas a violência do que os ameaçava era maior do que os crimes de cada dia. Isto é o que literalmente diz Josefo. Esta era a situação dos judeus.

169 Refere-se aos sepulcros ou túmulos de Pedro e Paulo.

[ 151 ]

Page 152: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

LIVRO III

I - [Em que partes da terra os apóstolos pregaram sobre Cristo]

1. Esta era a situação dos judeus, enquanto os santos apóstolos e discípulos de nosso Salvador haviam se espalhado por toda a terra: a Tomás, como quer uma tradição, coube a Partia; a André a Cítia, a João a Ásia, entre os quais (170) se estabeleceu, morrendo em Éfeso.

2. Pedro, segundo parece, pregou no Ponto, na Galácia e na Bitínia, na Capadócia e na Ásia (171), aos judeus da diáspora; por fim chegou a Roma e foi crucificado com a cabeça para baixo, como ele mesmo pediu para sofrer.

[ 152 ]

Page 153: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. E o que dizer de Paulo, que desde Jerusalém até o Ilírico cumpriu com a pregação do Evangelho de Cristo (172) e finalmente sofreu martírio em Roma sob Nero? Isto é dito por Orígenes literalmente no tomo III de seus Comentários ao Gênesis (173).

II - [Quem foi o primeiro que presidiu a Igreja de Roma]

1. Depois do martírio de Paulo e de Pedro, o primeiro a ser eleito para o episcopado da Igreja de Roma foi Lino. Ele é mencionado por Paulo quando escreve de Roma a Timóteo, na despedida ao final da carta (174).

III [Sobre as cartas dos apóstolos] 1. De Pedro reconhecemos uma única carta, a

chamada I de Pedro. Os próprios presbíteros antigos utilizaram-na como algo indiscutível em seus próprios escritos. Por outro lado, sobre a chamada II carta, a tradição nos diz que não é testamentária (175); ainda assim, por parecer proveitosa a muitos, é tomada em consideração junto com as outras Escrituras.

Ainda nos dias de Eusébio algumas partes das Escrituras eram contestadas, como aqui vemos Eusébio negando a autoria e inspiração da segunda carta de Pedro.

[ 153 ]

Page 154: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. Quanto aos Atos que levam seu nome e o Evangelho dito como seu, assim como a Pregação que se diz ser sua e o chamado Apocalipse, sabemos que de modo algum foram transmitidos entre os escritos católicos, pois nenhum autor eclesiástico, nem antigo nem moderno, utilizou testemunho tirado deles.

Eusébio revela que a igreja sempre rejeitou os livros atribuídos a Pedro como os Atos de Pedro, Evangelho de Pedro e Apocalipse de Pedro. Muita gente ao longo da história quer se perpetuar nem que seja pregando uma mentira, inventando um boato, e na igreja também há pessoa assim.

3. À medida em que avance esta História farei propositadamente que, junto às sucessões, sejam indicados os escritores eclesiásticos, segundo as épocas, que utilizaram os livros discutidos e quais deles, e também o que dizem dos escritos testamentários e admitidos, e dos que não o são.

4. Pois bem, os escritos que levam o nome de Pedro, dos quais somente uma única carta conhecemos como autêntica e admitida pelos presbíteros antigos, são os já referidos.

5. Por outro lado, é evidente e claro que as catorze cartas são de Paulo. Contudo, não é justo ignorar que alguns rechaçaram a carta aos Hebreus, dizendo que a Igreja de Roma não a admite por crer que não é de

[ 154 ]

Page 155: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Paulo. O que foi dito sobre ela por aqueles que me precederam será exposto a seu devido tempo. Naturalmente, também não aceitei entre os escritos indiscutidos os Atos que se dizem ser dele.

Os Atos de Paulo é um livro não canônico, não são os “Atos dos Apóstolos”. A carta aos Hebreus também sofria contestação até os dias de Eusébio.

6. Mas, como ocorre que o mesmo apóstolo, nas despedidas finais da carta aos Romanos, menciona, junto com outros, a Hermas - de quem se diz que é o livro do Pastor-, deve-se saber que alguns também rechaçam este livro e que por causa deles não se pode contá-lo entre os admitidos; por outro lado, outros julgam-no muito necessário, especialmente para os que precisam de uma introdução elementar. Por esta razão sabemos que foi lido publicamente nas igrejas e comprovamos que alguns escritores dos mais antigos fizeram uso dele.

A Carta do Pastor de Hermas chegou a ser cogitada como escritura divinamente inspirada. Mas não foi admitida no cânon dos livros sagrados do Novo Testamento. Muito importante este livro HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO, porque nos traz muita informação sobre a formação do cânon bíblico.

7. Baste o dito como exposição de quais são as divinas Escrituras não discutidas e quais são as que nem todos admitem.

[ 155 ]

Page 156: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

170 O autor provavelmente estava pensando nos habitantes, escrevendo "entre os quais" e não "onde". 171 1 Pe 1:1. 172 Rm 15:19. 173 Esta obra de Orígenes está perdida. 174 2 Tm 4:21. 175 Isto é, canônica.

IV - [Sobre a primeira sucessão dos apóstolos]

1. Que Paulo pregou aos gentios e que, desde Jerusalém até o Ilírico, deitou os alicerces das igrejas, está bem claro em suas próprias palavras (176) e no que Lucas narra nos Atos.

2. Pelas palavras de Pedro em sua Carta, da qual já dissemos que é aceita, e que escreve aos hebreus da diáspora, moradores do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia, percebe-se claramente em que províncias ele pregou a Cristo e transmitiu a doutrina do Novo Testamento aos que procediam da circuncisão (177).

3. Não é porém fácil dizer quantos e quais destes, convertidos em homens de zelo genuíno, foram considerados capazes de apascentar as igrejas fundadas por estes apóstolos, a não ser os que podem ser vistos nos escritos de Paulo.

[ 156 ]

Page 157: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

4. Este realmente teve inúmeros colaboradores e - como ele mesmo os chama - companheiros de luta (178). A maior parte ele considera digna de memória imorredoura e em suas próprias cartas dá contínuo testemunho deles. E não somente isto, mas também Lucas nos Atos dá uma lista dos discípulos de Paulo e os menciona pelo nome.

5. Pelo menos sobre Timóteo refere-se que foi o primeiro a ser designado para o episcopado da igreja de Éfeso (179), assim como Tito, das igrejas de Creta (180).

6. Lucas, por outro lado, oriundo de Antioquia por sua linhagem e médico de profissão (181), foi durante a maior parte do tempo companheiro de Paulo. Mas seu trato com os outros apóstolos também não foi superficial: deles adquiriu a terapêutica das almas, da qual nos deixou exemplos em dois livros divinamente inspirados: o Evangelho, que ele confessa ter composto segundo o que lhe transmitiram os que foram testemunhas oculares e se fizeram servidores da doutrina, dos quais ele diz que seguiu já desde o começo (182), e os Atos dos Apóstolos que compôs, já não com o que tinha ouvido, mas com o que viu com os próprios olhos.

7. Diz-se também que Paulo costumava mencionar o Evangelho de Lucas sempre que, escrevendo, dizia como se se tratasse de um evangelho seu: segundo meu Evangelho (183).

[ 157 ]

Page 158: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

8. Dos restantes seguidores de Paulo, está provado que Crescente foi enviado por ele à Gália (184); e Lino, que é mencionado na II carta a Timóteo indicando que se encontra com ele em Roma (185), já foi demonstrado anteriormente que foi designado para o episcopado da igreja de Roma, o primeiro depois de Pedro.

9. Paulo também atesta que Clemente - instituído terceiro bispo da Igreja de Roma - foi seu colaborador e companheiro de luta (186).

10. Além destes há também o areopagita chamado Dionísio, sobre o qual Lucas escreve nos Atos (187) que foi o primeiro que creu depois do discurso de Paulo aos atenienses no Areópago, e de quem outro antigo Dionísio, pastor da igreja de Corinto, conta que foi o primeiro bispo de Atenas.

11. Mas, à medida que avançarmos no caminho, diremos oportunamente, segundo as épocas, o referente à sucessão dos apóstolos. Agora sigamos o fio da narrativa.

176 Rm 15:19. 177 Gl 2:7-10. 178 Fp 2:25. 179 1 Tm 1:3. 180 Tt 1:5. 181 Cl 4:14. 182 Lc 1:2-3. 183 Rm 2:l6;2 Tm 2:8. 184 2 Tm 4:10. 185 2 Tm 4:21. 186 Fp 4:3. 187 At 17:34.

[ 158 ]

Page 159: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

V - [Sobre o último assédio dos judeus depois de Cristo]

1. Depois de Nero ter exercido o poder durante treze anos, e tendo os reinados de Galba e Oto durado um ano e seis meses, Vespasiano, que havia se distinguido nas operações bélicas contra os judeus, foi nomeado imperador na própria Judéia, após ser proclamado senhor absoluto pelo exército ali acampado. Encaminhando-se então a Roma, pôs em mãos de seu filho Tito a guerra contra os judeus.

2. Depois da ascensão de nosso Salvador, os judeus acrescentaram ao crime cometido contra ele a invenção de inúmeras ameaças contra seus apóstolos: Estevão foi o primeiro que eliminaram, apedrejando-o (188); depois dele, Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, a quem decapitaram (189); e depois de todos, Tiago, o que depois da ascensão de nosso Salvador foi o primeiro designado para o trono episcopal de Jerusalém e morreu da forma que já descrevemos. E os demais apóstolos sofreram milhares de ameaças de morte e foram expulsos da terra da Judéia. Porém, com o poder de Cristo, que havia-lhes dito: Ide e fazei discípulos de todas as nações em meu nome (190), dirigiram seus passos para todas as nações para ensinar a mensagem.

[ 159 ]

Page 160: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. E não apenas eles. Também o povo da igreja de Jerusalém, por seguir um oráculo enviado por revelação aos notáveis do lugar, receberam a ordem de mudar de cidade antes da guerra e habitar certa cidade da Peréia chamada Pella. Tendo os que creram em Cristo emigrado até lá desde Jerusalém, a partir deste momento, como se todos os homens santos tivessem abandonado por completo a própria metrópole real dos judeus e toda a região da Judéia, a justiça divina alcançou os judeus pelas iniquidades que cometeram contra Cristo e seus apóstolos, e apagou dentre os homens toda aquela geração de ímpios.

Interessante esta informação dada por Eusébio de que Deus revelou que iria destruir Jerusalém pela mão dos romanos e que os cristãos deveriam se mudar de Jerusalém e partirem para esta cidade chamada Pella.

4. Quem pois quiser saber com exatidão os males que então caíram sobre a nação em todo lugar, e como especialmente os habitantes da Judéia viram-se empurrados ao fundo das calamidades, quantos milhares de jovens, de mulheres e de crianças morreram pela espada, pela fome, e inúmeras outras formas de morte, e quantas e quais cidades da Judéia foram sitiadas, e também quantos horrores e pior do que horrores atingiram os que se refugiaram na mesma Jerusalém, por ser um metrópole muito fortificada, assim como a índole de toda a guerra, os acontecimentos que nela se sucederam e

[ 160 ]

Page 161: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

como, finalmente, a abominação da desolação anunciada pelos profetas se instalou no próprio templo de Deus, tão célebre antigamente, que sofreu todo tipo de destruição e, por último, foi aniquilado pelo fogo: tudo isso encontrará na narrativa escrita por Josefo.

5. Mas é necessário assinalar que este mesmo autor refere que o número dos que se concentraram nos dias da festa da Páscoa, vindos de toda a Judéia para Jerusalém, como num cárcere, para usar suas palavras, era de uns três milhões.

6. Era necessário pois, que nos dias em que causaram a paixão do Salvador e benfeitor de todos e Cristo de Deus, nestes mesmos, encerrados como num cárcere, recebessem a ruína que os alcançava da justiça de Deus.

7. Mas passando por alto o que lhes sobreveio e o que lhes foi feito pela espada e de outras maneiras, acho necessário apresentar apenas as calamidades causadas pela fome, para que os que leiam este escrito possam saber em parte como não tardou muito para que os alcançasse o castigo divino por seu crime contra o Cristo de Deus.

[ 161 ]

Page 162: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

VI - [Sobre a fome que oprimiu os judeus]

1. Assim pois, se tomas outra vez em tuas mãos o livro V das Histórias de Josefo, leia a tragédia que lhes aconteceu então: "Para os ricos - diz - ficar era o mesmo que perder-se, pois, sob pretexto de que deserdavam, assassinavam qualquer um pelos seus bens. Com a fome crescia o desespero dos rebeldes, e dia a dia uma e outro se acendiam terrivelmente.

188 At 7:58-60. 189 At 12:2. 190 Mt 28:19.

2. O trigo estava invisível, mas eles invadiam as casas e as revistavam. Então, se o encontravam, maltratavam-nos por ter negado; se não o encontravam, torturavam-nos por tê-lo escondido tão cuidadosamente. A prova de ter ou não ter eram os corpos dos desgraçados: os que ainda se aguentavam em pé pareciam ter alimentos em abundância; os que já estavam consumidos eram deixados em paz: parecia fora de propósito matar alguém que logo morreria de inanição.

3. Muitos davam secretamente seus bens em troca de uma medida de trigo se eram ricos; de cevada os mais pobres. Trancavam-se no mais oculto de suas casas e, impelidos pela necessidade, uns comiam o trigo cru;

[ 162 ]

Page 163: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

outros o coziam à medida que a necessidade e o medo ditavam.

4. Não se punha a mesa, antes, tiravam do fogo a comida ainda crua e a devoravam. O alimento era miserável e o espetáculo deplorável: os mais fortes tomando tudo e os fracos lamentando-se.

5. A fome excede todos os sofrimentos, mas nada ela destrói mais do que o senso de dignidade, pois o que em outro tempo seria tido como digno de respeito é depreciado em tempo de fome. Assim, as mulheres tiravam os alimentos da própria boca dos maridos, os filhos da de seus pais e, o que é demasiado lamentável, as mães das bocas de seus filhos, e enquanto os seres mais queridos se consumiam entre suas mãos, nada os refreava de tirar-lhes as últimas gotas que os permitiam viver.

Meu Deus! Esta descrição do efeito da fome que destrói a dignidade humana é forte mesmo.

6. Mas, mesmo sendo esta sua comida, não permanecia oculta. Por toda parte caíam-lhes em cima os rebeldes em busca dessa presa. Quando viam uma casa fechada, era sinal de que os ocupantes tinham conseguido comida, e imediatamente arrombavam as portas e se precipitavam para dentro, e só lhes faltava apertar as gargantas e arrancar-lhes o bocado.

[ 163 ]

Page 164: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Golpeavam os anciãos que não soltavam seus alimentos e arrancavam o cabelo das mulheres que escondiam o que tinham nas mãos. Não havia compaixão nem pelos velhos nem pelas crianças, mas levantavam as crianças que seguravam seu bocado e as deixavam cair contra o solo. Com aqueles que, adiantando-se a seu ataque, engoliam antes o que tentariam tirar-lhes, eram ainda mais cruéis, como se tivessem sofrido uma injustiça.

8. Usavam espantosos métodos de tortura para descobrir comida: obstruíam a uretra dos desgraçados com grãos de legumes e trespassavam-lhes o reto com varas pontiagudas. Padeciam-se tormentos que espantam apenas por ouvi-los, até confessar a posse de um único pedaço de pão e descobrir um só punhado de farinha escondida.

9. Mas os torturadores não passavam fome alguma - sua crueldade seria menor se atendesse a uma necessidade -, mas exercitavam seu louco orgulho e iam ajuntando provisões para os dias vindouros.

10. Seguiam os que à noite se arrastavam até os postos romanos para recolher legumes silvestres e ervas. Quando estes pensavam que já haviam escapado dos inimigos, aqueles tiravam-lhes o que levavam, e muitas vezes, se os infelizes suplicavam invocando pelo terrível nome de Deus que lhes deixassem uma parte do que com

[ 164 ]

Page 165: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tanto perigo tinham trazido, não lhes deixavam nem isto, e ainda podiam dar-se por satisfeitos se, além de serem despojados, não eram assassinados."

11. A isto, depois de outras coisas, acrescenta: "Com o êxodo cortou-se para os judeus também toda esperança de salvação, e a fome, abatendo-se sobre cada casa e cada família, ia devorando o povo. Os terrenos enchiam-se de mulheres e de crianças de peito mortos, e as vielas de cadáveres de anciãos.

12. Rapazes e jovens, inchados, vagavam pelas praças como espectros e caíam mortos onde a dor os colhesse. Os doentes não tinham forças para enterrar seus parentes, e os que teriam podido negavam-se, por serem tantos os mortos e pela incerteza de seu próprio destino. De fato, muitos caíam mortos junto aos que tinham acabado de enterrar, e muitos iam a sua tumba antes que a necessidade o impusesse.

13. Não havia lamentos nem choro por estas calamidades: a fome afogava os sentimentos, e os que lentamente morriam contemplavam com olhos secos os que morriam antes deles. Um silêncio profundo e uma noite carregada de morte envolviam a cidade. E pior do que tudo isto eram os ladrões.

14. Penetravam nas casas como ladrões de tumbas, despojavam os cadáveres e, depois de arrancar os panos que cobriam os corpos, iam embora entre

[ 165 ]

Page 166: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

risadas. Testavam o fio de suas espadas nos cadáveres e, provando o ferro, atravessavam alguns, que já caídos, ainda viviam. Mas se alguém lhes pedia que utilizassem nele sua força e sua espada, desdenhavam-no e abandonavam-no à fome. E todo o que expirava olhava fixamente para o templo, porque deixava vivos atrás de si os rebeldes.

15. Estes, no começo, por não suportar o fedor, mandavam enterrar os mortos às custas do tesouro público, mas logo, quando não davam mais conta, atiravam-nos sobre as muralhas aos barrancos. Quando Tito fez a ronda por aqueles barrancos e viu que estavam repletos de cadáveres e o espesso líquido escuro que manava por debaixo dos cadáveres em putrefação, pôs-se a gemer e levantando as mãos tomava a Deus por testemunha de que aquilo não era obra sua."

16. Depois de acrescentar mais algumas coisas, continua dizendo: "Eu não poderia deixar de expressar o que o sentimento me ordena: creio que, se os romanos tivessem demorado em sua ação contra os culpados, o abismo teria engolido a cidade, ou as águas a teriam submergido, ou teria sido alcançada pelos raios de Sodoma, pois a geração que continha era muito mais ímpia do que as que sofreram estes castigos. E pela demência criminosa destas pessoas, o povo inteiro pereceu com elas."

[ 166 ]

Page 167: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

O cerco no ano 70 sobre a cidade de Jerusalém foi um dos episódios mais cruéis da história da humanidade. Mas em outros momentos da história, exércitos inimigos matavam seus adversários apenas cercando-o, impedindo que entrasse comida, e as pessoas morriam de fome por causa do cerco. Os armênios sofreram isso com os turcos no início do século XX no capítulo da história chamado genocídio armênio.

17. E no livro VII escreve o seguinte: "Foi infinito o número dos que pereceram na cidade por fome, e os padecimentos eram indizíveis. Em cada casa havia guerra como se aparecesse em um canto uma sombra de comida, e os que mais se queriam entre si pegavam-se aos tapas para tirar o miserável sustento da vida. Nem sequer nos moribundos confiava a necessidade.

18. Os ladrões revistavam inclusive os que estavam expirando, para que alguém não escondesse alimentos sob a roupa e fingisse estar morto. Outros, com a boca aberta por efeito da desnutrição, andavam cambaleando e desancados como cães raivosos e empurravam as portas como fazem os bêbados e, em sua impotência, entravam nas mesmas casas duas ou três vezes em uma só hora.

19. A necessidade fazia com que levassem tudo à boca, e quando recolhiam alimentos até indignos dos animais irracionais mais repugnantes, levavam-no para

[ 167 ]

Page 168: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

comer escondido, a assim acabaram por não abster-se nem dos cintos e dos calçados, tiravam as peles de seus escudos e as mastigavam. Para alguns até fiapos de ervas velhas eram alimento, outros recolhiam fibras de plantas e vendiam uma porção mínima por quatro dracmas áticos.

20. E o que haveria para dizer sobre a impudência das pessoas presas do desânimo? Porque vou mostrar uma obra sua que não está narrada nem entre os gregos nem entre os bárbaros, espantosa de dizer, incrível de escutar. Eu pelo menos, para não dar a impressão de que estou inventando para a posteridade, de bom grado omitiria esta calamidade se não tivesse uma infinidade de testemunhos contemporâneos meus. Além disso prestaria pouco serviço a minha pátria se renunciasse a relatar os males que de fato padeceram.

21. Uma mulher das que habitavam na outra margem do Jordão, chamada Maria, filha de Eleazar, da aldeia de Batezor - nome que significa "casa de hissôpo" - notável por suas riquezas e sua linhagem, fugiu para Jerusalém com o resto da multidão e com esta compartilhava o assédio.

22. Os tiranos tiraram-lhe todos os bens que havia reunido e levado consigo à cidade desde Peréia. O resto de seu enxoval e o pouco alimento que encontraram foi sendo roubado por pessoas armadas que entravam a

[ 168 ]

Page 169: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

cada dia. Foi grande a indignação daquela pobre mulher, que muitas vezes injuriava e maldizia os ladrões para excitá-los contra si mesma.

23. Mas como ninguém a matava, movidos pela ira ou pela compaixão, e cansada de buscar alimentos para outros, que já eram impossíveis de encontrar em parte alguma, com as entranhas e a medula trespassadas pela fome, tomou como conselheiras a cólera e a necessidade e se lançou contra a natureza, agarrou o filho que tinha - criança ainda de peito - e disse:

24. Criatura desgraçada! Em meio à guerra, à fome e à revolta, para quem vou guardar-te? Entre os romanos, se por acaso cairmos vivos em suas mãos, a escravidão; mas a fome se antecipa à própria escravidão e os rebeldes são ainda piores do que ambas as coisas. Eia! Seja alimento para mim, maldição para os rebeldes e fábula para o mundo: a única coisa que faltava às calamidades dos judeus!

25. E enquanto dizia estas coisas, deu morte a seu filho. Depois assou-o e comeu a metade; o resto guardou escondido. Em seguida apareceram os rebeldes, e farejando a ímpia exalação, ameaçaram a mulher de degolá-la imediatamente se não lhes mostrasse o que tinha preparado. Ela então lhes disse que para eles guardara uma boa porção e revelou o que restava de seu filho.

[ 169 ]

Page 170: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

26. O horror e o pasmo surpreendeu-os na hora e ficaram cravados no lugar diante daquele espetáculo. Mas ela disse: é meu próprio filho e eu o fiz. Comei, pois também eu comi. Não sejais mais brandos do que uma mulher nem mais compassivos do que uma mãe. Mas se por escrúpulos piedosos recusais meu sacrifício, eu já comi por vós, fique o resto também para mim.

27. Depois disto, aqueles foram-se tremendo: foi a única vez em que se acovardaram e que, de malgrado, cederam à mãe tal comida. Em seguida a cidade inteira encheu-se de horror, e todo o mundo estremeceu ao ser-lhe apresentado frente aos olhos aquele crime como sendo seu próprio.

28. E entre os esfomeados havia pressa para morrer e uma certa inveja pelos que haviam se adiantado morrendo antes de ouvir e contemplar semelhantes horrores." Esta foi a recompensa dos judeus por sua iniquidade e impiedade para com o Cristo de Deus.

Acredito sim que os judeus muito sofreram pelos seus pecados, mas não podemos jamais ser instrumentos para fazer mal a judeu ou qualquer outro povo ou pessoa. Inumeráveis vezes a fome já levou pessoas a comerem seus amigos e parentes. Estamos falando de fome extrema, que leva as pessoas a agirem irracionalmente.

[ 170 ]

Page 171: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

VII [Sobre as profecias de Cristo] 1. É justo acrescentar a pregação infalível de

nosso Salvador pela qual mostrava estas mesmas coisas quando profetizava assim: AÍ das que estiverem grávidas e das que amamentarem naqueles dias! Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado; porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido, nem haverá jamais (191).

2. Somando o número total de mortos, o escritor diz que pela fome e pela espada pereceram um milhão e cem mil pessoas; que os rebeldes e bandidos que ainda sobraram foram se denunciando uns aos outros depois da tomada da cidade e foram executados; que os jovens mais esbeltos e que sobressaíam por sua beleza física foram reservados para a cerimônia do "triunfo", e do resto da população, os que passavam de dezessete anos, uns eram enviados acorrentados aos trabalhos forçados no Egito, e outros, mais numerosos, foram distribuídos pelas províncias para fazê-los perecer nos teatros pela espada ou pelas feras; e os que ainda não tinham chegado aos dezessete anos eram conduzidos cativos para serem vendidos. Somente destes o número dava um total de uns noventa mil (192).

Mais de um milhão de mortos realmente é um número espantoso. Teria sido uma calamidade de

[ 171 ]

Page 172: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

proporções gigantescas. A Segunda Guerra Mundial levou a morte 50 milhões de pessoas, mas em um período de tempo maior e em uma guerra que envolveu todo o planeta Terra.

3. Estes acontecimentos ocorreram deste modo no segundo ano do império de Vespasiano (193), segundo as predições de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que, por seu divino poder, havia visto de antemão estas mesmas coisas como se já estivessem presentes e havia chorado e soluçado, segundo a Escritura dos sagrados evangelistas, que inclusive acrescentam suas próprias palavras: umas, as que disse dirigindo-se à mesma Jerusalém:

4. Se tu conheceras ao menos neste dia o que diz respeito a tua paz! Mas agora está oculto aos teus olhos. Porque virão dias sobre ti, e teus inimigos te rodearão de paliçadas, te cercarão e por todos os lados te apertarão. E te assolarão a ti e a teus filhos (194).

5. E outras como referindo-se ao povo: Porque haverá grande necessidade sobre a terra e ira contra este povo. E cairão ao fio da espada e serão levados cativos a todas as nações. E Jerusalém será pisoteada pelos gentios, até que sejam cumpridos os tempos destes povos (195). E outra vez: E quando virdes Jerusalém cercada por exércitos, sabei então que terá chegado sua desolação (196).

[ 172 ]

Page 173: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

191 Mt 24:19-21. 192 Os números dados por Josefo e citados por Eusébio devem ser exagerados levando em conta a população da Palestina na época. Para Tacitus os assediados em Jerusalém eram uns 600.000. Josefo cita como total de prisioneiros para toda duração da guerra o número de 97.000, de todas as idades. 193 Exatamente em setembro do ano 70. 194 Lc 19:42-44. 195 Lc 21:23-24. 196 Lc 21:20.

6. Se alguém comparar as palavras de nosso Salvador com os demais relatos do escritor acerca da guerra inteira, como não ficar admirado e confessar como verdadeiramente divinas e sobrenaturalmente prodigiosas a presciência e a predição de nosso Salvador?

7. Portanto, sobre o acontecido à nação inteira depois da paixão do Salvador e dos gritos com os quais a plebe judia pediu para livrar da morte o ladrão e assassino e suplicou que tirassem de seu meio o autor da vida, não haverá necessidade de acrescentar nada à narrativa.

8. Contudo, seria justo acrescentar o que poderia ser significativo sobre o amor da divina providência aos homens, pois retardou a destruição dos culpados durante quarenta anos completos depois de seu crime contra Cristo. Durante estes anos, numerosos apóstolos e discípulos, e o próprio Tiago, primeiro bispo dali e chamado irmão do Senhor, que ainda viviam e moravam

[ 173 ]

Page 174: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

na mesma cidade de Jerusalém, mantinham-se fiéis ao lugar como fortíssima muralha.

9. A providência divina até aquele momento mostrava sua grande paciência, para o caso de que se arrependessem de seu feito e alcançassem assim o perdão e a salvação; e como se tal longanimidade fosse pouco, deixava ver sinais divinos extraordinários do que lhes sucederia se não se arrependessem. Também estes sinais foram considerados notáveis pelo autor citado. Nada melhor do que oferecê-los aos que leem esta obra.

VIII - [Dos sinais que precederam a guerra]

1. Toma pois, e lê o que apresenta no livro VI de suas Histórias com estas palavras: "Naquele tempo os impostores e os que levantavam tais calúnias contra Deus pervertiam o povo miserável, de forma que nem percebiam nem davam crédito a tais prodígios bem claros que anunciavam de antemão a iminente desolação; antes, como se aturdidos por um raio e como se não tivessem olhos nem alma, faziam ouvidos surdos às mensagens de Deus.

2. Estas foram: um astro que se deteve sobre a cidade, semelhante a uma espada de dois gumes, e um

[ 174 ]

Page 175: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

cometa que durou todo um ano. Outra vez foi quando, antes da insurreição e dos distúrbios que levaram à guerra, estando o povo reunido para celebrar a festa dos ázimos, no oitavo dia do mês de Jantico, à nona hora da noite, brilhou sobre o altar e o templo uma luz tão grande que poder-se-ia pensar que era dia, e isto durou uma meia hora. Aos ignorantes poderia parecer um bom sinal, mas os escribas interpretaram-no corretamente antes que os fatos ocorressem.

3. E na mesma festa, uma vaca que o sumo sacerdote conduzia ao sacrifício pariu um cordeiro no meio do templo.

Obviamente jamais uma vaca poderia parir um cordeiro. Ou foi um boato mitológico ou um caso de teleportação.

4. E a porta oriental do interior, que era de bronze e muito pesada, e que havia sido fechada ao anoitecer com dificuldade por vinte homens que a trancaram solidamente com ferrolhos presos com ferro, além de ter gonzos profundos, abriu-se sozinha à sexta hora da noite.

5. E passada a festa, não muito depois, no vigésimo primeiro dia de Artemisio, apareceu um fantasma demoníaco de tamanho incrível. E o que se passará a dizer poderia parecer mentira se não tivesse sido contado pelos mesmos que o viram e se os sofrimentos que se seguiram não fossem dignos destes

[ 175 ]

Page 176: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

sinais. De fato, antes do pôr-do-sol, apareceram pelo ar em redor de toda a região carros e falanges armadas que se lançavam através das nuvens e rodeavam as cidades.

Se fosse nos nossos dias diriam que eram óvnis.

6. E na festa chamada Pentecostes, à noite, entrando os sacerdotes no templo, como de costume, para exercer suas funções, dizem que primeiramente perceberam movimento e ruído de golpes, e logo um grito em uníssono: Saiamos daqui!

7. E o que é mais terrível: um homem chamado Jesus, filho de Ananías, homem simples, camponês, quatro anos antes da guerra, quando a cidade desfrutava da maior paz e do máximo esplendor, veio à festa, pois era costume que todos erigissem tendas em honra a Deus (197), e de repente começou a gritar pelo templo: Voz do oriente! Voz do ocidente! Voz dos quatro ventos! Voz sobre Jerusalém e sobre o templo! Voz dos recém-casados e casadas! Voz sobre todo o povo! Dia e noite gritava isto por todas as vielas.

8. Mas alguns cidadãos notáveis, irritados pelo mau agouro, prenderam o homem e maltrataram-no, enchendo-o de feridas. Mas ele, que não falava em proveito próprio nem por conta própria, (197) Era portanto a festa dos Tabernáculos (Setembro-Outubro). Continuava gritando aos presentes o mesmo que antes.

[ 176 ]

Page 177: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

9. Pensando então os chefes que a agitação daquele homem era algo demoníaco, conduziram-no ante o procurador romano (198). Ali, dilacerado com açoites até os ossos, não suplicou nem derramou uma lágrima, mas, tornando sua voz tão chorosa quanto possível, a cada ferida respondia: Ai, ai de Jerusalém!"

10. Comenta o mesmo Josefo outro fato mais extraordinário. Diz que nas escrituras sagradas encontrou-se um oráculo com este conteúdo: que naquele tempo alguém saído de seu país regeria o mundo. O próprio Josefo concluiu que o oráculo tinha sido cumprido em Vespasiano (199).

11. Mas este não governou a todo o mundo, mas somente à parte submetida aos romanos. Seria pois mais justo referi-lo a Cristo, a quem o Pai havia dito: Pede-me e te darei nações como herança e os confins da terra como tua possessão (200). Pois bem, por este mesmo tempo chegara a toda a terra a voz dos santos apóstolos e aos confins do mundo suas palavras (201).

IX - [De Josefo e os escritos que deixou]

1. Depois de todas estas coisas, seria bom não ignorar o próprio Josefo – que tanto material forneceu

[ 177 ]

Page 178: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

para a obra que tens entre as mãos - de que país e de que família procedia. Também será ele mesmo quem nos declarará isto. Diz assim: "Josefo, filho de Matias, sacerdote originário de Jerusalém, que primeiro fez guerra pessoalmente contra os romanos e logo, por necessidade, ficou à mercê dos acontecimentos posteriores (202)."

2. Foi o mais famoso de todos os judeus de sua época, e não somente entre seus compatriotas, mas também entre os romanos, ao ponto de ser honrado com uma estátua (203) em Roma, e seus livros serem considerados dignos de uma biblioteca.

3. Josefo expôs toda a Antiguidade judaica em vinte livros completos, e a História da guerra romana de seu tempo em sete. Ele mesmo atesta que não a entregou apenas em língua grega, mas também em sua língua materna (204). Por tudo o mais é digno de crédito.

4. Há também dele outros livros dignos de estudo, intitulados Sobre a antiguidade dos judeus. Neles refuta o gramático Apion, que tinha então composto um tratado contra os judeus. Também refuta a outros que haviam tentado igualmente caluniar as instituições pátrias do povo judeu.

5. No primeiro destes livros estabelece o número de escritos do chamado Antigo Testamento, mostrando quais são os não discutidos entre os hebreus, como provenientes de uma antiga tradição. Diz textualmente:

[ 178 ]

Page 179: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

X [De que maneira cita os livros divinos]

1. "Não há pois entre nós milhares de livros em desacordo e em mútua contradição, mas há sim, apenas vinte e dois livros que contêm a relação de todo o tempo e que com justiça são considerados divinos.

2. Destes, cinco são de Moisés, e compreendem as leis e a tradição da criação do homem até a morte de Moisés. Este período abarca quase três mil anos.

3. Desde a morte de Moisés até a de Artaxerxes, rei dos persas depois de Xerxes, os profetas posteriores a Moisés escreveram os fatos de suas épocas em treze livros. Os outros quatro contêm hinos em honra a Deus e regras de vida para os homens.

198 Luceius Albinus, procurador entre 62 e 64. 199 Não se sabe em que passagem da escritura poderia encontrar-se este oráculo. 200 Sl 2:8. 201 Rm 10:18. 202 Nasceu no primeiro ano de Calígula (37-38 d.C), entrou em contato com os romanos em 64. Em 66 comanda parte das forças revolucionárias da Galiléia e cai prisioneiro dos romanos em 67. Desde sua libertação em 69 toma parte dos acontecimentos ao lado dos romanos e vive em Roma o resto de seus dias. 203 Esta é a única

[ 179 ]

Page 180: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

referência que existe sobre esta estátua. 204 Conserva-se apenas a versão grega, perdeu-se a aramaica.

4. Desde Artaxerxes até nossos dias tudo foi escrito, mas nem tudo merece a mesma confiança que o anterior, por não apresentar sucessão exata dos profetas.

5. Mas os fatos manifestam como nós nos sentimos próximos a nossas escrituras. Assim é que, transcorrido já tanto tempo, ninguém se atreveu a acrescentar, nem tirar, nem mudar nada nelas, antes, é natural a todos os judeus, já desde seu nascimento, crer que estes escritos são decretos de Deus, e aferrar-se a eles e prazerosamente morrer por eles caso seja necessário."

6. Estas palavras do autor aqui apresentadas não deixarão de ser úteis. Há também outra obra escrita por ele, não sem nobreza, Sobre a supremacia da razão, que alguns intitularam Macabeus, porque contém as lutas dos hebreus valentemente sustentadas em defesa da piedade para com Deus e referidas nos escritos assim chamados Dos Macabeus (205).

7. E quase no final do livro XX de suas, Antiguidades, o mesmo autor acrescenta a declaração de que tem o propósito de escrever em quatro livros, seguindo as crenças pátrias dos judeus, acerca de Deus e

[ 180 ]

Page 181: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de sua essência, e sobre as leis; porque, segundo elas, algumas coisas podem ser feitas e outras são proibidas. O mesmo autor, em seus próprios tratados, menciona outras obras por ele produzidas.

8. Além disso, será bom mencionar também as palavras que estão no final de suas Antiguidades, para confirmação dos testemunhos que dele tomei. Quando acusa Justo de Tiberíades - que tentara fazer, assim como ele mesmo, uma história dos fatos daquele tempo - de não haver escrito a verdade, depois de incluir outras muitas emendas, acrescenta textualmente o que segue:

9. "Na verdade eu não tenho os mesmos temores que tu tens no que se refere a meus escritos, pois entreguei meus livros aos próprios imperadores estando os fatos ainda quase ante os olhos, porque tinha consciência de ter conservado a tradição da verdade, e não me enganei ao esperar obter seu testemunho.

10. Também enviei minha narrativa a muitos outros, alguns dos quais tinham estado na guerra, como o rei Agripa e alguns parentes seus.

11. E ocorre que o imperador Tito quis que o público fosse informado dos fatos somente através destes livros, tanto é assim que ele assinou a ordem de publicá-los de próprio punho. E o rei Agripa escreveu sessenta e duas cartas atestando que os livros transmitem a

[ 181 ]

Page 182: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

verdade." Destas cartas Josefo inclusive cita duas. Mas baste o que já dissemos sobre ele, e prossigamos.

XI - [De como Simeão dirige a Igreja de Jerusalém depois de Tiago]

1. Depois do martírio de Tiago e da tomada de Jerusalém, que se seguiu imediatamente, é tradição que os apóstolos e discípulos do Senhor que ainda viviam reuniram-se de todas as partes num mesmo lugar, junto com os que eram da família do Senhor segundo a carne (pois muitos deles ainda viviam), e todos celebraram um conselho sobre quem seria considerado digno de suceder a Tiago, e todos, por unanimidade, decidiram que Simeão, o filho de Clopas - mencionado também pelo texto do Evangelho (206) -, era digno do trono daquela igreja, por ser primo do Salvador, ao menos segundo se diz, pois Hegesipo refere que Clopas era irmão de José.

XII [De como Vespasiano ordena que se busquem os descendentes de Davi]

1. Depois disso Vespasiano, após a tomada de Jerusalém, deu a ordem de buscar todos os descendentes de Davi, para que entre os judeus não sobrasse ninguém da estirpe real. Por esta causa justificou-se mais uma grande perseguição aos judeus

[ 182 ]

Page 183: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

(207). 205 Esta obra não foi escrita por Josefo, mas por um autor contemporâneo ou pouco posterior.

206 Lc 24:18; Jo 19:25. Escrito Cléopas em português. 207 Não há outro registro sobre esta ordem e a perseguição consequente; é difícil avaliar o valor histórico desta citação.

XIII - [De como o segundo bispo de Roma é Anacleto]

1. Depois de imperar Vespasiano durante dez anos, sucede-o como imperador seu filho Tito. No segundo ano de seu reinado, Lino, bispo da igreja de Roma, depois de exercer o cargo durante doze anos, transmite-o a Anacleto. Tito, que imperou dois anos e uns poucos meses, foi sucedido por seu irmão Domiciano.

XIV - [De como o segundo a dirigir os alexandrinos é Abílio]

1. No quarto ano de Domiciano morre Aniano, primeiro bispo da igreja de Alexandria, após haver completado vinte e dois anos, sucede-o Abílio como segundo bispo.

XV - [De como o terceiro bispo de Roma, depois de Anacleto, é Clemente]

[ 183 ]

Page 184: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. No duodécimo ano do mesmo reinado (208), Clemente sucede a Anacleto, que havia sido bispo da igreja de Roma durante doze anos. O apóstolo, em sua carta aos Filipenses, faz saber a estes que Clemente era colaborador seu, dizendo: Com Clemente também e os demais colaboradores meus, cujos nomes estão no livro da vida (209).

XVI - [Da carta de Clemente] 1. Deste existe uma Carta universalmente

admitida, longa e admirável, que escreveu em nome da igreja de Roma à dos Coríntios, tendo como motivo uma sedição ocorrida em Corinto. Sabemos que esta carta foi lida publicamente na assembleia na maior parte das igrejas, não apenas antigamente, mas também em nossos dias. E Hegesipo é testemunha suficiente de que no tempo indicado houve a sedição de Corinto.

Publiquei este ao de 2016 a carta de Clemente de Roma aos Coríntios com os meus comentários.

XVII [Da perseguição sob Domiciano]

1. Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos, dando morte sem julgamento razoável a não pequeno número de patrícios e de homens ilustres, e castigando com o desterro fora das fronteiras e

[ 184 ]

Page 185: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

confisco de bens a outras inúmeras personalidades sem causa alguma. Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero na animosidade e guerra contra Deus. Efetivamente ele foi o segundo a promover a perseguição contra nós, apesar de que seu pai Vespasiano nada de mal planejou contra nós.

XVIII [Sobre o apóstolo João e o "Apocalipse"]

1. É tradição (210) que, neste tempo, o apóstolo e evangelista João, que ainda vivia, foi condenado a habitar a ilha de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deus.

2. Pelo menos Irineu, quando escreve acerca do número do nome aplicado ao anticristo no chamado Apocalipse de João (211), diz no livro V Contra as heresias, textualmente sobre João o que segue:

3. Mas se fosse necessário atualmente proclamar abertamente seu nome (212), seria feito por meio daquele que também viu o Apocalipse, já que não faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa geração, ao final do império de Domiciano."

4. Mas deve-se saber que de tal maneira brilhou por aqueles dias o ensinamento de nossa fé, que até os escritores alheios a nossa doutrina não vacilaram em

[ 185 ]

Page 186: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

transmitir em suas narrativas a perseguição e os martírios que então ocorreram. Indicaram inclusive com total exatidão a data ao referir que no décimo quinto ano de Domiciano, Flávia Domitila, filha de uma irmã de Flávio Clemente, um dos cônsules daquele ano em Roma, junto com muitos outros, foi castigada com o desterro à ilha de Pontia, por causa de seu testemunho sobre Cristo.

208 O duodécimo ano do reinado de Domiciano corresponde a 93 d.C. 209 Fp 4:3, 210 Tradição escrita, consta das Memórias de Hegesipo. 211 Ap 13:17-18. 212 O do anticristo.

XIX [De como Domiciano ordena a morte aos descendentes de Davi]

1. O próprio Domiciano deu ordem de executar os membros da família de Davi, e uma antiga tradição diz que alguns hereges acusaram os descendentes de Judas - que era irmão do Salvador segundo a carne —, com o pretexto de que eram da família de Davi e parentes do próprio Cristo (213). Isto é o que declara Hegesipo quando diz textualmente:

XX [Dos parentes de nosso Salvador]

[ 186 ]

Page 187: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. "Da família do Senhor viviam ainda os netos (214) de Judas, seu irmão segundo a carne (215), aos quais delataram por serem da família de Davi. O evocatus (216) conduziu-os à presença do césar Domiciano, porque este, assim como Herodes, temia a vinda de Cristo.

2. Perguntou-lhes se descendiam de Davi; eles o admitiram. Perguntou-lhes então quantas propriedades tinham ou de quanto dinheiro dispunham, e eles disseram que ambos não possuíam mais do que nove mil denários, metade de cada um, e ainda assim afirmaram que não o possuíam em metal, mas que era a avaliação de apenas trinta e nove pletros de terra, cujos impostos pagavam e que eles mesmos cultivavam para viver."

3. Então mostraram suas mãos e juntaram como testemunho de seu trabalho pessoal a dureza de seus corpos e os calos que haviam se formado em suas próprias mãos pelo trabalho contínuo.

4. Perguntados acerca de Cristo e de seu reino: que reino era este e onde e quando se manifestaria, deram como explicação que não era deste mundo nem terreno, mas celeste e angélico e que se dará no final dos tempos; então Ele virá com toda sua glória e julgará os vivos e os mortos e dará a cada um segundo suas obras (217).

[ 187 ]

Page 188: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. Ante estas respostas, Domiciano não os condenou a nada, mas inclusive desprezou-os como gente vulgar. Deixou-os livres e por decreto fez cessar a perseguição contra a Igreja (218).

6. Os que haviam sido postos em liberdade estiveram à frente das igrejas tanto por terem dado testemunho como por serem da família do Senhor, e retornada a paz, viveram até Trajano.

7. Isto diz Hegesipo. Mas não só ele. Também Tertuliano faz uma menção semelhante sobre Domiciano: "Também Domiciano tentou por algum tempo fazer o mesmo que aquele, ainda que não sendo mais que uma parte da crueldade de Nero. Mas como, segundo creio, tinha algum senso, fez que cessasse rapidamente e chamou novamente os que havia desterrado."

8. Depois de Domiciano imperar quinze anos e de sucedê-lo Nerva no governo, o senado romano decidiu por votação que se anulassem as honras de Domiciano e que regressassem a suas casas os que haviam sido expulsos injustamente, e que ao mesmo tempo recuperassem seus bens. Isto é referido pelos que transmitiram por escrito os acontecimentos daquele tempo.

9. Foi então que o apóstolo João, voltando de seu desterro na ilha, retirou-se para viver em Éfeso, segundo relata a tradição de nossos antigos.

[ 188 ]

Page 189: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XXI [De como o terceiro a dirigir a Igreja de Alexandria é Cerdon]

1. Depois de Nerva imperar pouco mais de um ano, foi sucedido por Trajano. Corria o primeiro ano deste quando Cerdon sucedeu a Abílio, que havia regido a igreja de Alexandria durante treze anos. Cerdon era o terceiro dos que ali exerceram a presidência depois do primeiro, Aniano.

213 Não se sabe quem eram estes hereges. 214 No sentido de descendentes. 215 Mt 13:55; Mc 6:3. 216 Soldado veterano mobilizado para serviço dos magistrados em funções administrativas. 217 Mt 16:27; Jo 18:36; At 10:42; Rm 2:6; 2 Tm 4:1. 218 Pode tratar-se da perseguição à Igreja de Jerusalém, de onde vinham os acusados, mas nada se sabe sobre este decreto.

Neste tempo os romanos eram ainda regidos por Clemente, que também ocupava o terceiro lugar dos que ali foram bispos depois de Paulo e Pedro. O primeiro foi Lino, e depois dele, Anacleto.

XXII [De como o segundo a dirigir a igreja de Antioquia é Inácio]

1. Mas dos de Antioquia, depois de Evodio, primeiro que foi instituído, no tempo de que falamos era muito conhecido o segundo: Inácio. Igualmente nestes

[ 189 ]

Page 190: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

mesmos anos, o ministério da igreja de Jerusalém era exercido por Simeão, segundo depois do irmão de nosso Salvador.

XXIII [Relato sobre o apóstolo João]

1. Por este tempo vivia ainda na Ásia o mesmo a quem Jesus amou, o apóstolo e evangelista João, e ali continuava regendo as igrejas depois de regressar do desterro na ilha, depois da morte de Domiciano.

2. Que João permanecia em vida por este tempo é suficientemente confirmado por duas testemunhas. Estas, representantes da ortodoxia da Igreja, são bem dignas de fé, tratando-se de homens como Irineu e Clemente de Alexandria.

3. O primeiro deles, Irineu, escreve textualmente em alguma parte do livro II de sua obra Contra as heresias como segue: "E todos os presbíteros que na Ásia estão relacionados com João, o discípulo do Senhor, dão testemunho de que João o transmitiu, porque ainda viveu com eles até os tempos de Trajano."

4. E no livro III da mesma obra manifesta o mesmo com estas palavras: "Mas também a igreja de Éfeso, por ter sido fundada por Paulo e porque nela viveu João até os tempos de Trajano, é um testemunho veraz da tradição dos apóstolos."

[ 190 ]

Page 191: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. Por sua parte, Clemente assinala o mesmo tempo, e em sua obra que intitulou Quem é o rico que se salvai Acrescenta uma narrativa valiosíssima para os que gostam de escutar coisas belas e proveitosas. Toma pois, e lê o que ali escreveu:

6. "Escuta uma historieta, que não é uma historieta, mas uma tradição existente sobre o apóstolo João, transmitida e guardada na memória. Efetivamente, depois que morreu o tirano, João mudou-se da ilha de Patmos a Éfeso. Daqui costumava partir, quando o chamavam, até as regiões pagãs vizinhas, com o fim de, em alguns lugares, estabelecer bispos; em outros, erguer igrejas inteiras, e em outros ainda, ordenar a algum dos que haviam sido designados pelo Espírito.

7. Veio pois a uma cidade não muito distante e cujo nome alguns inclusive mencionam. Depois de consolar os irmãos em tudo o mais, tendo visto um jovem de grande estatura, de aspecto elegante e de alma vivaz, fixou seu olhar no rosto do bispo instituído sobre a comunidade e disse: 'Eu te confio este com toda a atenção, na presença da igreja e com Cristo como testemunha.' O bispo aceitou o jovem, prometendo-lhe tudo, mas João insistia no mesmo e apelando para as mesmas testemunhas.

8. Logo regressou a Éfeso, e o presbítero (219) levou para casa o jovem que lhe havia sido confiado e ali

[ 191 ]

Page 192: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

o manteve, rodeou-o de afeto e por fim batizou-o. Depois disto afrouxou um pouco sua grande solicitude e vigilância, pensando que havia imposto a salvaguarda perfeita: o selo do Senhor.

9. Mas certos rapazes de sua idade, malandros, dissolutos e tendentes ao mal, perverteram-no. Sua liberdade era prematura. Primeiramente atraíram-no por meio de suntuosos banquetes; depois levaram-no consigo, inclusive de noite, quando saíam para o roubo, e por fim exigiram-lhe participar com eles de maldades maiores.

10. O jovem foi se acostumando a isto sem perceber, e desviando-se do caminho reto, como cavalo de boca dura, brioso e que rejeita o freio, por seu vigor natural foi-se precipitando com mais força ao abismo.

219 O mesmo referido acima como bispo.

11. Acabou perdendo a esperança na salvação divina. Desde então não planejava coisas pequenas, mas, tendo já cometido grandes crimes, já que estava perdido de uma vez por todas, considerava justo correr o mesmo risco dos demais. Assim foi que, juntando-se aos mesmos e formando um bando de salteadores, era ele seu líder resoluto, o mais violento, o mais homicida, o mais temível de todos.

[ 192 ]

Page 193: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

12. Depois de algum tempo surgiu certa necessidade e voltaram a chamar João. Este, depois de ter resolvido os assuntos pelos quais tinha vindo, disse: 'Bem, bispo, devolve-me o depósito que eu e Cristo te confiamos na presença da igreja que presides e que é testemunha.'

13. O bispo a princípio ficou estupefato, acreditando ser vítima de calúnia sobre algum dinheiro que ele não havia recebido: não podia crer no que não tinha nem podia deixar de crer em João. Quando este lhe disse: 'O jovem é o que te peço, e a alma do irmão', o ancião prorrompeu em profundos soluços e, marejado de lágrimas, disse: 'este está morto'. Como? Morto de quê? 'Está morto para Deus - disse -, pois afastou-se transformado num perverso, um perdido, e para o cúmulo, um salteador, e agora ocupa o monte que está frente à igreja, com uma quadrilha de sua mesma índole.'

14. Rasgou o apóstolo sua roupa e, golpeando a cabeça, com grande lamento exclamou: 'Bom guardião deixei para a alma do irmão! Mas tragam já um cavalo e alguém que me guie no caminho.' E dali, tal como estava, saiu da igreja e foi-se.

15. Chegou ao lugar. Os sentinelas dos bandidos deitaram-lhe as mãos, mas ele não fugia nem suplicava, mas aos gritos dizia: 'Para isso vim, levem-me ao vosso chefe.'

[ 193 ]

Page 194: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

16. Este, entretanto, aguardava armado como estava, mas ao reconhecer João naquele que se aproximava, fugiu cheio de vergonha. João o perseguia com todas suas forças, esquecido de sua idade e gritando:

17. 'Por que foges de mim, filho, de mim, teu pai, desarmado e velho? Tem piedade de mim, filho, não tema. Ainda tens esperança de vida. Darei conta por ti a Cristo, e se for necessário, com gosto sofrerei por ti a morte, como o Senhor a sofreu por nós. Por tua vida eu darei em troca a minha própria. Pára! Tenha fé! Foi Cristo que me enviou!'"

18. O jovem, ao ouvi-lo, primeiramente deteve-se, com os olhos baixos; em seguida largou as armas, e tremendo, abraçou-se a ele. Seus lamentos eram já um discurso de defesa, e suas lágrimas serviam-lhe de segundo batismo. Apenas ocultava a mão direita.

19. Mas João foi-lhe fiador, jurando que havia alcançado o perdão para ele por parte do Salvador, caiu de joelhos, suplicante, e beijou a mesma mão direita considerando-a já purificada pelo arrependimento. Reconduziu-o à igreja, orou com súplicas abundantes, acompanhou-o em sua luta com jejuns prolongados e foi cativando seu espírito com os variados atrativos de sua palavra, e segundo dizem, não saiu dali até tê-lo consolidado na igreja, depois de ter dado grande exemplo

[ 194 ]

Page 195: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de verdadeiro arrependimento e grandes sinais de regeneração, como troféu de uma ressurreição visível.

Tinha lido esta história anteriormente, mas havia me esquecido que a fonte era Eusébio.

XXIV [Da ordem dos evangelhos] 1. Que este testemunho de Clemente sirva ao

mesmo tempo de narrativa e de ensinamento para os que chegarem a lê-lo. Indiquemos porém os escritos incontroversos deste apóstolo.

2. Em primeiro lugar fique reconhecido como autêntico seu Evangelho, que é lido por inteiro em todas as igrejas sob o céu. Ainda assim, o fato de os antigos terem-no catalogado com boas razões em quarto lugar, depois dos outros três, talvez possa ser explicado da seguinte maneira.

3. Aqueles homens inspirados e verdadeiramente dignos de Deus - os apóstolos de Cristo, digo -, tendo suas vidas purificadas até o cerne e suas almas adornadas com todas as virtudes, falavam, ainda assim, a língua dos simples. Ainda que o poder divino e operador de milagres dado pelo Salvador tornasse-os audazes, não sabiam nem tentavam sequer ser embaixadores da doutrina do Salvador com a persuasão e com a arte dos

[ 195 ]

Page 196: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

discursos, mas, usando apenas a demonstração do Espírito divino que trabalhava com eles e do poder de Cristo que se exercia através deles, anunciaram o conhecimento do reino dos céus por toda a terra habitada, sem preocupar-se muito em pô-los por escrito.

4. E operaram assim, como servidores de um ministério maior e que está acima do homem. E assim Paulo, o mais capaz de todos na preparação de discursos e o de mais vigoroso pensamento, não deixou mais do que suas curtíssimas cartas, e isso podendo dizer coisas infinitas e inefáveis por ter alcançado a contemplação até do terceiro céu, já que havia sido arrebatado até o próprio paraíso e fez-se digno de escutar as palavras inefáveis de lá (220).

5. Tampouco faltava experiência destas coisas aos demais acompanhantes de nosso Salvador, os doze apóstolos por um lado e os setenta discípulos por outro, além de inúmeros outros além destes. E mesmo assim, de todos apenas Mateus e João deixaram-nos memórias das conversações do Senhor, e ainda é tradição que as escreveram forçados a isso.

6. Com efeito Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que

[ 196 ]

Page 197: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava.

7. Marcos e Lucas já tinham publicado seus respectivos evangelhos, enquanto de João se diz que em todo este tempo continuava usando a pregação não escrita, mas que por fim chegou também a escrever, pelo seguinte motivo. Os três evangelhos anteriormente escritos já haviam sido distribuídos para todos, inclusive para o próprio João, e diz-se que este os aceitou e deu testemunho de sua veracidade, mas também que lhes faltava unicamente a narrativa do que Cristo havia feito nos primeiros tempos e no começo de sua pregação.

8. A razão é verdadeira. É possível ver realmente que os três evangelistas puseram por escrito apenas os fatos que se seguiram ao encarceramento de João Batista, durante um ano apenas, e que eles mesmos alertam sobre isto no início dos relatos.

9. Por exemplo, depois do jejum de quarenta dias e da tentação que se seguiu, Mateus declara a data por suas próprias palavras quando diz: E ouvindo que João havia sido entregue, retirou-se da Judéia para a Galiléia (221).

10. E o mesmo faz Marcos, que diz: Depois de João ser preso, Jesus foi para a Galiléia (222). E Lucas, antes de dar início aos feitos de Jesus, faz semelhante observação, dizendo que Herodes juntou às maldades

[ 197 ]

Page 198: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

que havia cometido esta outra: lançou João ao cárcere (223).

11. Em consequência diz-se que por isto decidiu-se o apóstolo João a transmitir em seu Evangelho o período silenciado pelos primeiros evangelistas e as obras realizadas neste tempo pelo Salvador, ou seja, as anteriores ao encarceramento do Batista, e que isto se mostra quando diz: Assim principiaram os milagres de Jesus (224), e também quando menciona o Batista em meio aos atos de Jesus dizendo que ainda seguia batizando em Enom, perto de Salim. Expressa-o claramente ao dizer: Porque João ainda não havia sido encarcerado (225).

12. João, portanto, transmite em seu Evangelho escrito o que Cristo fez antes de que o Batista fosse encarcerado, enquanto que os outros três relatam os feitos posteriores ao encarceramento do Batista.

13. Quem prestar atenção a tudo isto já não tem por que achar que os evangelhos diferem entre si, já que o de João contém as primeiras obras de Cristo, e os outros a história do final do período. E, consequentemente, também é provável que João passasse por alto a genealogia carnal de nosso Salvador porque Mateus e Lucas já a escreveram, e começasse falando de sua divindade, como se o Espírito divino o tivesse reservado a ele como o mais capaz.

[ 198 ]

Page 199: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

14. Seja-nos suficiente, pois, o que dissemos sobre a composição do Evangelho de João. A causa de ter-se escrito o Evangelho de Marcos já foi explicado acima (226).

220 2 Co 12:2-4. 221 Mt 4:12. 222 Mc 1:14. 223 Lc 3:19-20. 224 Jo 2:11. 225 Jo 3:23-24. 226 Vide II:XV. 227 Lc 1:1-4.

15. No que se refere a Lucas, também ele, ao começar seu escrito (227), expõe de antemão o motivo pelo qual o compôs. Como muitos outros já tinham se ocupado com demasiada precipitação a fazer uma narrativa dos fatos de que ele mesmo estava bem informado, sentiu-se obrigado a afastar-nos das suposições duvidosas dos outros, e transmitiu-nos por meio de seu Evangelho o relato correto de tudo aquilo cuja verdade ele conheceu bem aproveitando a convivência e o trato com Paulo, assim como a conversação com os demais apóstolos.

16. Isto é o que temos sobre este tema. Em momento apropriado trataremos de explicar, por meio de citações dos antigos, o que outros disseram sobre este assunto.

17. Dos escritos de João, além do Evangelho, também é admitida sem discussão, por modernos e por antigos, a primeira de suas cartas. As outras duas, por outro lado, são discutidas.

[ 199 ]

Page 200: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

A segunda e terceira epístola de João ainda era contestada nos dias de Eusébio.

18. Quanto ao Apocalipse, ainda hoje a opinião de muitos divide-se em um ou outro sentido. Também ele receberá no devido tempo sua sanção, extraída do testemunho dos antigos.

O livro do Apocalipse foi um dos últimos a ser considerado canônico devido a sua natureza surrealista.

XXV [Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o são]

1. Chegando aqui, é hora de recapitular os escritos do Novo Testamento já mencionados. Em primeiro lugar temos que colocar a tétrade santa dos Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos Apóstolos. 2. Depois deste há que se colocar a lista das Cartas de Paulo. Depois deve-se dar por certa a chamada Primeira de João, assim como a de Pedro. Depois destas, se está bem, pode-se colocar o Apocalipse de João, sobre o qual exporemos oportunamente o que dele se pensa.

3. Estes são os ditos admitidos. Dos livros discutidos, por outro lado, mas que são conhecidos da grande maioria, temos a Carta dita de Tiago, a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem

[ 200 ]

Page 201: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

segunda e terceira de João, sejam do próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome.

4. Entre os espúrios sejam listados: o escrito dos Atos de Paulo, o chamado Pastor e o Apocalipse de Pedro, e além destes, a que se diz Carta de Barnabé e a obra chamada Ensinamento dos Apóstolos, e ainda, como já disse, talvez, o Apocalipse de João: alguns, como disse, rechaçam-no, enquanto outros o contam entre os livros admitidos.

5. Alguns ainda catalogam entre estes inclusive o Evangelho dos hebreus, no qual são muito contemplados os hebreus que aceitaram Cristo. Todos estes são livros discutidos.

6. Mas creio ser necessário que exista um catálogo destes também, distinguindo os escritos que, segundo a tradição da Igreja, são verdadeiros, genuínos e admitidos, daqueles que diferentes destes por não serem testamentários, mas discutidos, ainda assim são conhecidos pela grande maioria dos autores eclesiásticos, de modo que possamos conhecer estes livros e os que com o nome dos apóstolos foram divulgados pelos hereges, alegando que se tratem seja dos Evangelhos de Pedro, de Tomás, de Matias ou mesmo de algum outro, ou ainda dos Atos de André, de João e de outros apóstolos. Jamais um só dentre os escritores ortodoxos julgou digno mencionar estes livros em seus escritos.

[ 201 ]

Page 202: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Mas ocorre que a própria índole do fraseado difere enormemente do estilo dos apóstolos, o pensamento e a intenção do que neles está contido destoa ainda mais da verdadeira ortodoxia: claramente demonstram ser invenções de hereges. Por isso não devem ser incluídos nem mesmo entre os espúrios, mas devemos rechaçá-los como inteiramente absurdos e ímpios. Continuemos agora nosso relato.

XXVI [Sobre o mago Menandro] 1. O mago Simão foi sucedido por Menandro, o

qual, pela sua maneira de agir, mostrou ser uma segunda arma do poder diabólico não inferior à primeira. Também ele era samaritano, e em seu progresso até o ápice da feitiçaria não foi inferior a seu mestre, mas até abundou em milagres ainda maiores. Chamava-se a si mesmo, como se realmente o fosse, o salvador enviado de algum lugar do alto, desde éons insondáveis, para salvação dos homens.

2. E ensinava que ninguém poderia de forma alguma exceder inclusive aos próprios anjos que fizeram o mundo se primeiramente não fosse conduzido através da experiência mágica transmitida por ele e através do batismo por ele dispensado. Os que são considerados dignos deste participarão já nesta vida da imortalidade perdurável e não morrerão jamais. Mas permanecerão

[ 202 ]

Page 203: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

aqui para sempre, não envelhecerão e serão imortais. Este ponto é fácil de reconhecer pelos escritos de Irineu.

Com uma promessa dessa é fácil entender porque este grupo herege desapareceu...

3. Também Justino, ao mencionar Simão pela mesma razão, acrescenta uma relação sobre este outro, dizendo: "Sabemos também que um certo Menandro, também samaritano, oriundo da aldeia chamada Caparatea, depois de ser discípulo de Simão e estando também possuído por demônios, apareceu em Antioquia, e com sua arte mágica seduziu a muitos. E convenceu seus seguidores de que não morreriam. Hoje restam alguns de sua seita que continuam a professá-lo."

4. Era sem dúvida obra da influência diabólica lançar mão de tais feiticeiros revestidos do nome de cristãos para esforçar-se em caluniar o grande mistério de piedade, acusando de magia, e destruir por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da verdadeira esperança.

XXVII [Da heresia dos ebionitas] 1. De outros porém, o demônio malvado,

impotente para arrancá-los de sua disposição para como Cristo de Deus, tomou posse ao encontrar outros pontos

[ 203 ]

Page 204: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

por onde agarrá-los. Estes primeiros foram chamados ebionitas (228), como convinha, pois tinham sobre Cristo pensamentos pobres e de baixa estima.

2. Pois pensavam dele que era apenas um homem simples e comum, justificado à medida em que progredia em seu caráter, e nascido da união de um homem e de Maria. Acreditavam absolutamente necessária para eles a observância da lei, alegando que não se salvariam apenas pela fé e por viver conforme ela.

3. Mas, além destes, havia outros da mesma denominação que escapavam de sua estranha insensatez. Não negavam que o Senhor houvesse nascido de uma virgem e do Espírito Santo. Mas, assim como aqueles, tampouco confessavam que, por ser Deus, Verbo e Sabedoria, preexistia já. Desta maneira retornavam à impiedade dos primeiros, principalmente quando, assim como eles, esforçavam-se por honrar demasiadamente a observância da lei.

4. Acreditavam também que era necessário a todo custo rechaçar as Cartas do Apóstolo, a quem chamavam apóstata da lei, enquanto usavam exclusivamente o chamado Evangelho dos hebreus, sem importar-se em nada com os outros.

5. Da mesma forma que aqueles, observavam o sábado e tudo o mais da disciplina judaica. No entanto,

[ 204 ]

Page 205: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

aos domingos celebravam ritos semelhantes aos nossos em memória da ressurreição do Salvador.

Isso mostra que os cristãos tinham celebração especial aos domingos. Por isso defendo que a Santa Ceia deve ser celebrada todos os domingos como faziam os cristãos primitivos e não mensalmente como fazem os evangélicos em geral.

6. Daí, de tais práticas, veio-lhes a denominação que levam: o nome de ebionitas manifesta a pobreza de sua inteligência, pois com este nome se chama entre os hebreus aos pobres.

XXVIII [Do heresiarca Cerinto] 1. Sabemos que pelas datas mencionadas Cerinto

fez-se cabeça de outra heresia. Caio, a quem já citamos antes (229), escreve sobre ele o que segue, na disputa que lhe é atribuída:

2. "No entanto, também Cerinto, por meio de revelações que diz serem escritas por um grande apóstolo, apresenta milagres com a mentira de que lhe teriam sido mostradas por ministério dos anjos, e diz que depois da ressurreição o reino de Cristo será terrestre e que novamente a carne, que habitará em Jerusalém, será escrava de paixões e prazeres. Como inimigo das

[ 205 ]

Page 206: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Escrituras de Deus e querendo fazer errar, diz que haverá um número de mil anos de festa nupcial."

3. E também Dionísio, que em nosso tempo obteve o episcopado da igreja de Alexandria, ao dizer no livro II de suas Promessas algumas coisas sobre o Apocalipse de João como recebidas de uma antiga tradição, menciona o mesmo Cerinto com estas palavras:

4. "E Cerinto, o mesmo que instituiu a heresia que toma seu nome, a cerintiana, que quis creditar sua própria invenção com um nome digno de fé. Este é efetivamente o tema da doutrina que ensina: que o reino de Cristo será terreno.

O milênio é mesmo terrestre, e o Cerinto foi considerado herege por defender esta ideia. Hoje é uma doutrina escatológica amplamente aceita no meio evangélico.

228 Do hebraico ebionim, significando pobres. 229 Vide II:XXV:6.

5. E como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria do mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem

[ 206 ]

Page 207: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas sagradas."

6. Isto diz Dionísio. E Irineu, depois de expor, no livro I de sua obra Contra as heresias, alguns dos erros mais abomináveis do mesmo Cerinto, transmitiu-nos por escrito, no livro III, um relato que não se deve esquecer, procedente, segundo diz, da tradição de Policarpo. Afirma que o apóstolo João entrou certa vez nos banhos públicos para lavar-se, mas ao ficar sabendo que dentro encontrava-se Cerinto, afastou-se rapidamente do lugar e correu para a porta, por não suportar encontrar-se sob o mesmo teto que ele, e exortava os que o acompanhavam a fazerem o mesmo, dizendo: "Fujamos, não aconteça que os próprios banhos venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade."

Este banhos públicos era local de viajantes também pararem para fazerem necessidades fisiológicas: Além do hábito de ter banheiros em casa, e de tomar banho com frequência, o governo romano preocupado com a limpeza da cidade começou a criar banheiros públicos não para tomar banho, mas para poder urinar e defecar. Foi no período republicano (509-27 a.C) que surgiram os banheiros públicos ou latrinae. A latrina pública era um local onde se encontrava uma bancada de pedra com vários buracos, onde as pessoas usavam para urinar ou defecar. Sob essas bancadas corria água que levava os dejetos para o sistema de esgoto. Os banheiros

[ 207 ]

Page 208: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

já eram separados naquela época, havendo banheiros para os homens e banheiros para as mulheres. Contudo, não existia privacidade como se pode ver bem na imagem acima. Os homens e as mulheres faziam suas necessidades na frente de outras pessoas e até aproveitavam para ficar conversando. Nestes banheiros havia escravos ou escravas para cuidar da limpeza (embora fossem locais fedorentos e sujos), como também o escravo fornecia aos usuários uma esponja (era uma esponja marinha) em um cabo, a qual era usada para se limpar após ter defecado. O problema é que essa esponja não era descartável; após o seu uso, o escravo a limpava em uma bacia ou pia, e entregava para o próximo usuário. Quando a esponja estivesse desgastada ela era descartada. Mas foi apenas na época imperial que os banhos públicos começaram a ser construídos, antes disso, os romanos tomavam banho em casa, ou nos rios e lagos, em alguns casos, o banho era simples. Embora os banhos públicos tenham atraído um número grande de pessoas para seus recintos, isso não significa que as pessoas deixaram de tomar banho em casa, contudo, tornou o banho algo regular e até diário, pois entre alguns não havia o hábito de banhar-se diariamente.

XXIX [De Nicolau e dos que dele tomam o nome]

[ 208 ]

Page 209: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Nesta época surgiu também a heresia chamada dos nicolaítas, que durou pouquíssimo tempo e da qual também faz menção o Apocalipse de João (230). Estes se jactavam de que Nicolau era um dos diáconos companheiros de Estevão encarregados pelos apóstolos do serviço aos necessitado (231). Pelo menos Clemente de Alexandria, no livro III dos Stromateis, conta sobre ele, literalmente, o que segue:

2. "Este, dizem, tinha uma mulher muito formosa. Depois da ascensão do Salvador, tendo os apóstolos reprovado seu ciúme, trouxe sua mulher a público e permitiu que se entregasse a quem quisesse, pois diz-se que esta prática está de acordo com o dito: 'Deve-se abusar da carne' (232)." E na verdade, por seguir o que foi feito e dito por simplicidade e impensadamente, os que compartilham sua heresia se prostituem sem a menor reserva.

3. No entanto, eu sei que Nicolau não teve trato com nenhuma mulher que não aquela com quem estava casado, e que de seus filhos, as mulheres chegaram virgens à velhice e o rapaz permaneceu puro. Sendo isto assim, a exposição de sua mulher, da qual tinha ciúmes, no meio dos apóstolos, era um desprezo à paixão, e a abstenção dos prazeres que mais ansiosamente são procuradas ensinava a "abusar da carne", pois creio que, conforme o mandato do Salvador, ele não queria ser escravo de dois senhores (233), o prazer e o Senhor.

[ 209 ]

Page 210: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Heresia do Diabo, levando os homens a loucura em nome de Deus.

4. Dizem igualmente que Matias ensinava isto mesmo: para a carne: combatê-la e abusar dela, sem consentir-lhe nada para o prazer; e para a alma, fazê-la crescer mediante a fé e o conhecimento. Isto, pois, seja o bastante sobre aqueles que, se na época mencionada (234) empreenderam a tarefa de perverter a verdade, extinguiram-se contudo por completo em menos tempo do que leva para dizê-lo.

XXX [Dos apóstolos cujo matrimônio está comprovado]

1. Clemente, cujas palavras acabamos de ler, em seguida ao que foi dito anteriormente e por causa dos que rechaçam o matrimônio, dá-nos uma lista dos apóstolos que comprovadamente foram casados e diz: "Ou também vão desaprovar os apóstolos? Porque Pedro (235) e Felipe criaram filhos; e mais, Felipe diz apenas que Pedro era casado, nada fala sobre filhos. Deu maridos a suas filhas (236), e Paulo, ao menos em certa Carta, não vacila em dirigir-se a sua consorte (237), que não levava consigo para facilitar o ministério."

230 Ap 2:6-15. 231 At 6:5. 232 O dito é equívoco, significava originalmente que se deve colocar a carne sob as provações mais rigorosas. Os nicolaítas interpretaram-

[ 210 ]

Page 211: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

no em sentido licencioso. 233 Mt 6:24; Lc 16:13. 234 Sob o império de Trajano 235 Mc 1:30;

2. Já que lembramos destas coisas, nada impede que citemos também outro relato de Clemente digno de ser exposto. Escreveu-o no livro VII dos Stromateis e narra-os da seguinte forma: "Conta-se pois que o bem-aventurado Pedro, quando viu que sua própria mulher era conduzida ao suplício, alegrou-se por seu chamamento e seu retorno para casa, e gritou forte para animá-la e consolá-la, chamando-a por seu nome e dizendo: "Oh, tu, lembra-te do Senhor!" Assim era o matrimônio dos bem-aventurados e a perfeita disposição dos mais queridos." Este era o momento oportuno para isto, por relacionar-se com o tema de que tratamos.

XXXI [Da morte de João e de Felipe]

1. Já explicamos anteriormente o tempo e o modo da morte de Paulo e de Pedro, assim como também o lugar onde foram depositados seus corpos depois que partiram desta vida (238).

2. Sobre João, quanto ao tempo, também já foi dito; mas quanto ao lugar de seu corpo, indica-se na carta de Polícrates, bispo da igreja de Éfeso, que foi escrita para o bispo de Roma, Victor. Junto com João menciona o apóstolo Felipe e as filhas deste nos seguintes termos:

[ 211 ]

Page 212: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. "Porque também na Ásia repousam grandes luminares que ressuscitarão no último dia da vinda do Senhor, quando virá dos céus com glória em busca de todos os santos: Felipe, um dos doze apóstolos, que repousa em Hierápolis com duas filhas suas que chegaram virgens à velhice, e a outra filha, que depois de viver no Espírito Santo, descansa em Éfeso; e também há João, o que se recostou sobre o peito do Senhor (239) e que foi sacerdote portador do pétalon (240), mártir e mestre; este repousa em Éfeso."

4. Isto há sobre a morte destes luminares. Mas também no Diálogo de Caio -de quem já falamos pouco acima -, Proclo - contra quem é dirigida a disputa -, coincidindo com o exposto, diz sobre a morte de Felipe e de suas filhas o seguinte: "Depois deste houve em Hierápolis, a da Ásia, quatro profetisas, as filhas de Felipe. Ali estão seus sepulcros e o de seu pai."

5. Assim diz Proclo. E Lucas, nos Atos dos Apóstolos, menciona as filhas de Felipe, que então viviam em Cesaréia da Judeia junto com seu pai, e que haviam sido agraciadas com o dom da profecia; diz textualmente o que segue: Viemos a Cesaréia e entramos na casa de Felipe o evangelista - pois era um dos sete - e permanecemos em sua casa. Tinha ele quatro filhas virgens, que eram profetisas (241).

[ 212 ]

Page 213: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

6. Depois de haver descrito sobre o que chegou ao nosso conhecimento acerca dos apóstolos e dos tempos apostólicos, assim como dos escritos sagrados que nos deixaram, e inclusive dos que são controversos, mas que na maioria das igrejas muitos leem em público, e dos que são inteiramente espúrios e alheios à ortodoxia apostólica, continuemos avançando em nossa narrativa.

A curiosidade de Eusébio, mostra o espírito inquieto que possuia, investigou para saber que fim levou os homens citados no Novo Testamento. O Senhor sempre levanta alguns mestres na igreja para nos trazer conhecimento.

XXXII [De como sofreu o martírio Simeão, bispo de Jerusalém]

1. Depois de Nero e Domiciano, conta uma tradição que, sob o imperador cuja época estamos agora investigando (242), voltaram a ocorrer perseguições contra nós, parcialmente e por cidades, devido a levantes populares. Nesta época, sobre Simeão, o filho de Clopas, do qual já dissemos que foi o segundo bispo da igreja de Jerusalém, sabemos que terminou sua vida no martírio.

236 Esta declaração de Clemente não tem respaldo na Bíblia. 237 Segundo 1 Co 7:8 Paulo não estava casado. A afirmação de Clemente baseia-se numa

[ 213 ]

Page 214: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

leitura de Fp 4:3 diferente do texto aceito. 238 Vide II:XXV:5. 239 Jo 13:25; 21:20. 240 Ex 28:36-38. 241 At 21:8-9. 242 Ou seja, Trajano.

2.Testemunha disto é aquele mesmo Hegesipo, de quem já utilizamos diferentes passagens. Ao falar de alguns hereges, acrescenta claramente que por esse tempo, efetivamente, o mencionado Simeão teve que sofrer uma acusação e que durante muitos dias foi maltratado de muitas maneiras por ser cristão, e que depois de deixar admiradíssimos o juiz e os que o acompanhavam, alcançou um final semelhante à paixão do Senhor.

3. Mas nada melhor do que ouvir o próprio escritor, que relata isto mesmo textualmente como segue: "A partir disto, evidentemente alguns hereges acusam Simão (243), o filho de Clopas, por ser descendente de Davi e cristão, e assim sofre martírio na idade de cento e vinte anos, sob o imperador Trajano e o governador Ático."

4. O mesmo autor diz que inclusive os próprios carrascos foram presos quando se procuraram os descendentes da tribo real dos judeus, já que também eles o eram. Com um pouco de cálculo pode-se dizer que também Simeão viu e ouviu pessoalmente o Senhor, baseando-se na longa duração de sua vida e na menção

[ 214 ]

Page 215: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

que o texto dos evangelhos faz de Maria de Clopas (244), de quem já se demonstrou que Simeão era filho.

Havia carrascos no império romano que eram judeus, e interessante que no período desta perseguição contra os descendentes de Davi, eles também foram executados. Chama minha atenção que ao longo da história sempre houve pessoas que por razões diversas ou sem explicação alcançavam longevidade como foi o caso de Simeão, segundo bispo de Jerusalém.

5. O mesmo escritor diz que também outros descendentes de um dos chamados irmãos do Salvador, de nome Judas, sobreviveram até este mesmo reinado, depois de ter dado testemunho de sua fé em Cristo sob Domiciano, como já referimos anteriormente (245). Escreve o seguinte:

6. "Vêm pois, e põe-se à frente de toda a Igreja como mártires e como membros da família do Salvador. Quando em toda a Igreja se fez paz profunda, vivem ainda até o tempo do imperador Trajano, até que o filho do tio do Salvador, o anteriormente chamado Simão (246), filho de Clopas, foi denunciado e acusado igualmente pelas seitas, também pela mesma razão, sob o governador consular Ático. Durante muitos dias torturaram-no e deu testemunho, de maneira que todos, inclusive o governador, ficaram muito admirados de como

[ 215 ]

Page 216: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

continuava resistindo apesar de seus cento e vinte anos (247) E mandaram crucificá-lo."

7. Depois disto o mesmo autor, explicando o referente aos tempos indicados, acrescenta que efetivamente, até aquelas datas a Igreja permanecia virgem, pura e incorrupta, como se até esse momento os que se propunham corromper a sã regra da pregação do Salvador, se é que existiam, ocultavam-se em escuras trevas.

8. Mas quando o coro sagrado dos apóstolos alcançou de diferentes maneiras o final da vida e desapareceu aquela geração dos que foram dignos de escutar com seus próprios ouvidos a divina Sabedoria, então teve início a confabulação do erro ímpio por meio do engano de mestres de falsa doutrina, os quais, não restando nenhum apóstolo, daí em diante já a descoberto, tentaram opor à pregação da verdade a pregação da falsamente chamada gnosis (248).

XXXIII [De como Trajano impediu que se perseguisse os cristãos]

1. Tão grande foi realmente a perseguição que naquele tempo estendeu-se em muitos lugares contra nós, que Plínio Segundo (249), notável entre os governadores, inquieto pela multidão de mártires, relata ao imperador sobre o excessivo número dos que eram

[ 216 ]

Page 217: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

executados por sua fé, e no mesmo documento adverte que nunca foram surpreendidos cometendo nada ímpio ou contrário às leis, se não for pelo fato de levantarem-se à aurora para entoar hinos a Cristo como a um Deus, mas que adulterar e cometer homicídios e crimes do mesmo tipo também era proibido para eles, e que em tudo agem conforme as leis.

Esta descrição deixa claro que todos viam os cristãos como adorando a Cristo, entoando cânticos a ele. Não louvamos a outro senão ao Senhor.

2. A resposta de Trajano foi promulgar um decreto do seguinte teor: que não se perseguisse a tribo dos cristãos, mas que se castigasse quem caísse. Graças a isto extinguiu-se parcialmente a perseguição, que ameaçava apertar terrivelmente, mas nem por isso faltaram pretextos aos que queriam fazer-nos mal. Algumas vezes eram as populações, outras as próprias autoridades locais que preparavam os assédios contra nós, de forma que, ainda que sem perseguições manifestas, acenderam-se focos parciais, segundo as províncias, e grande número de crentes combateram em diversos gêneros de martírio.

243 Na verdade Simeão. 244 Jo 19:25. 245 Vide XX: 1. 246 (= Simeão). 247 Segundo estes dados, Simeão teria nascido no ano 13 a.C, sendo portanto mais velho que seu primo Jesus. 248 1 Tm 6:20; gnosis significa

[ 217 ]

Page 218: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

conhecimento. 249 Caio Plínio Cecilio Segundo, conhecido como Plínio o Jovem, sobrinho e filho adotivo de Plínio o Velho, autor da Historia naturalis.

3. O relato foi tomado da Apologia latina de Tertuliano, mencionada mais acima, traduzido, é como segue: "Mesmo assim, encontramos que foi proibido até que nos persigam. Efetivamente, Plínio Segundo, governador de uma província (250), depois de condenar alguns cristãos e depô-los de suas dignidades, assustado por seu número e já não sabendo o que lhe restava fazer, consultou o imperador Trajano, alegando que, exceto por não quererem adorar os ídolos, nada de ímpio havia encontrado neles. Informava-lhe também o seguinte: que os cristãos se levantavam à aurora e cantavam hinos a Cristo como a Deus e que, para manter seu conhecimento (251), era-lhes proibido matar, cometer adultério, cobiçar, roubar e coisas parecidas. A isto Trajano respondeu que não se perseguisse a tribo dos cristãos, mas que se castigasse quem caísse." Também isto ocorreu neste tempo.

XXXIV [De como o quarto a dirigir a Igreja de Roma é Evaristo]

1. Dos bispos de Roma, no terceiro ano do imperador anteriormente citado, Clemente terminou sua vida depois de transmitir seu cargo a Evaristo e de haver

[ 218 ]

Page 219: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

estado no total nove anos à frente do ensinamento da palavra divina (252).

XXXV [De como o terceiro a dirigir a de Jerusalém é Justo]

1. Mas, quando Simeão morreu do modo como relatamos, o trono do episcopado de Jerusalém foi recebido em sucessão por um judeu chamado Justo, que era um dos inúmeros que, procedendo da circuncisão, havia então crido em Cristo.

Percebemos que Eusébio teve a preocupação de relacionar os dirigentes das igrejas centrais do cristianismo primitivo que ficavam sediados em Roma, Jerusalém, Alexandria e Antioquia.

XXXVI [Sobre Inácio e suas cartas] 1. Brilhava por este tempo na Ásia Policarpo,

discípulo dos apóstolos, a quem as testemunhas oculares e os ministros do Senhor tinham confiado o episcopado da igreja de Esmirna.

2. Ao mesmo tempo adquiriram notoriedade Papias, bispo da igreja de Hierápolis, e Inácio, o homem mais célebre para muitos ainda hoje, segundo a obter a sucessão de Pedro no episcopado de Antioquia.

[ 219 ]

Page 220: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. Uma tradição refere que este foi trasladado da Síria à cidade de Roma para ser alimento das feras, em testemunho de Cristo.

4. Ao ser conduzido através da Ásia, sob a vigilância cuidadosa dos guardiães, dava ânimo com suas falas e exortações às igrejas de cada cidade onde faziam parada. Primeiramente exortava-os a que sobretudo se guardassem das heresias, que precisamente então começavam a pulular, e estimulava-os a segurar-se solidamente à tradição dos apóstolos, que, por estar ele já a ponto de sofrer o martírio, achava necessário pôr por escrito para fins de segurança.

5. E foi assim que, achando-se em Esmirna, onde estava Policarpo, escreveu uma carta à igreja de Éfeso, mencionando Onésimo, seu pastor; outra à de Magnesia, a que está sobre Meandro, mencionando igualmente o bispo Damas, e outra à de Trales, cujo chefe era então Políbio, segundo diz.

Onésimo é o personagem central da carta de Paulo a Filemon, era um escravo cristão, cujo seu dono era outro cristão, Filemon. Onésimo se tornou bispo (ancião ou presbítero) e um homem livre.

250 Plínio foi governador da Bitínia em 111-112. 251 Esta expressão fica obscura no texto grego. 252 O terceiro ano de Trajano foi 100-101, mas Clemente deve ter morrido antes, Evaristo provavelmente assumiu em 99.

[ 220 ]

Page 221: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

6. Além destas, escreveu também à igreja de Roma uma carta em que expõe sua súplica para que não intercedam por ele, para não privá-lo do martírio, sua sonhada esperança. Em apoio ao que dissemos, será bom citar algumas passagens das citadas cartas, ainda que brevíssimas: Escreve pois, textualmente:

7. "Desde a Síria até Roma venho lutando com feras por terra e por mar, de noite e de dia, atado a dez leopardos, isto é, um grupo de soldados que ficam piores com o bem que se lhes faz. Mas com seus maus-tratos torno-me mais e mais discípulo. Mesmo assim, nem por isso estou justificado (253).

8. "Oxalá pudesse eu usufruir das feras que me estão preparadas! Espero encontrá-las bem ligeiras para comigo. Chegarei até a adulá-las para que me devorem rapidamente e não me façam o que fizeram a alguns, que por temor não tocaram, e se fazem de preguiçosas e não querem, eu mesmo as forçarei.

9. Perdoai-me. Eu sei o que me convém. Agora estou começando a ser discípulo. Que nenhuma coisa visível ou invisível tenha ciúme de que eu alcance a Jesus Cristo. Fogo, cruz e manadas de feras, dispersão de ossos, destroçamento de membros, trituração do corpo todo e tormentos do diabo venham sobre mim, contanto somente que eu alcance a Jesus Cristo."

[ 221 ]

Page 222: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Este Inácio estava desejoso mesmo de morrer por Cristo, não era que ele não tinha medo da morte, ele desejava enfrentar a morte por Cristo!!!

10. Isto escrevia da cidade mencionada às igrejas que enumeramos. Mas achando-se já longe de Esmirna, desde Troasse põe-se a conversar, por escrito mesmo, com os de Filadélfia e com a igreja de Esmirna, e em particular com Policarpo, que a presidia. Reconhecendo este como homem verdadeiramente apostólico e porque ele mesmo era pastor legítimo e bom, confia-lhe seu próprio rebanho de Antioquia e pede-lhe que se ocupe dele com solicitude.

11. Ele mesmo, escrevendo aos de Esmirna e citando passagens não sei de onde, discorre sobre Cristo com estas palavras: "Quanto a mim, sei e creio que mesmo depois da ressurreição permanece em sua carne, e quando se aproximou dos que rodeavam Pedro disse-lhes: 'Tomai e apalpai-me, e vede que não sou um espírito incorpóreo.' Na mesma hora eles o tocaram e creram (254)."

12. Também Irineu conhece seu martírio e faz menção de suas cartas quando diz assim: "Como disse um dos nossos, condenado às feras por seu testemunho em favor de Deus, 'sou trigo de Deus e pelos dentes das feras sou moído para ser encontrado como pão puro.'

[ 222 ]

Page 223: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

13. E Policarpo também faz menção disto na carta que se diz ser dele, dirigida aos Filipenses, quando diz textualmente: "Exorto-vos pois todos a obedecer e exercitar toda a paciência, a que vistes com vossos olhos não somente nos bem-aventurados Inácio, Rufo e Zózimo, mas também em outros dos vossos, e no próprio Paulo e nos demais apóstolos, persuadidos de que não correram em vão (255), mas na fé e na justiça, e de que já estão no lugar que lhes é devido, junto ao Senhor, com o qual padeceram. Porque não amaram este século, mas aquele que morreu por nós e por nós também ressuscitou, por obra de Deus." E acrescenta logo:

14. "Vós e Inácio escrevestes-me para que, se alguém fosse à Síria, levasse também vossas cartas. Isto farei quando encontrar ocasião favorável, eu mesmo ou alguém que eu envie e que será também embaixador de vossa parte.

15. As cartas de Inácio que ele enviou e todas as outras que tínhamos conosco, vo-las envio, como haveis pedido; seguem anexas à presente carta. Delas podereis tirar grande proveito, já que estão cheias de fé, de paciência e de toda edificação concernente a nosso Senhor." Isto é o que se refere a Inácio. Depois dele Heros recebeu a sucessão do episcopado de Antioquia.

[ 223 ]

Page 224: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

253 1 Co 4:4. 254 A passagem, que pode ter sido tirada do Evangelho dos Hebreus, corresponde a Lc 24:38-40. 255 Fp 2:16.

XXXVII [Dos evangelistas que ainda então se distinguiam]

1. Entre os que eram famosos neste tempo, achava-se também Codratos, sobre o qual uma tradição refere que sobressaía em carisma profético, juntamente com as filhas de Felipe. Também eram célebres então, além destes, muitos outros que tiveram o primeiro lugar na sucessão dos apóstolos. Estes magníficos discípulos de tão grandes homens edificavam sobre os fundamentos das igrejas deixados anteriormente em cada lugar pelos apóstolos (256). Aumentavam mais e mais a pregação e semeavam por toda a extensão da terra habitada a semente salvadora do reino dos céus.

2. Efetivamente, muitos dos discípulos de então, tocados na alma pela palavra divina com um amor muito forte à filosofia (257), primeiramente cumpriam o mandamento salvador repartindo seus bens entre os indigentes (258), e depois empreendiam viagem e realizavam trabalho de evangelistas (259), empenhando sua honra em pregar aos que ainda não haviam ouvido a palavra da fé e em transmitir por escrito os divinos evangelhos (260).

[ 224 ]

Page 225: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Repartir o que tinha com os indigentes e pobres era uma doutrina fundamental do cristianismo, hoje os pastores ladrões querem que os membros se enriqueçam para poderem fazer generosas contribuições a organização e por tabela, eles enricam. Muitas igrejas são hoje estruturas empresariais e familiares para enriquecer seus fundadores. Abram os olhos, posto que tem mais lobos do que ovelhas!!!!

3. Estes homens nada mais faziam que deitar os fundamentos da fé em alguns lugares estrangeiros e estabelecer outros como pastores, encarregando-os do cultivo dos recém-admitidos, e em seguida mudavam-se para outras regiões e outros povos com a graça e a cooperação de Deus, já que por meio deles continuavam realizando-se ainda então muitos e maravilhosos poderes do Espírito divino, de forma que, desde a primeira vez que os ouviam, multidões inteiras de pessoas recebiam em massa com ardor em suas almas a religião do Criador do universo.

4. Sendo-nos impossível enumerar pelo nome todos os que na primeira geração de apóstolos foram pastores e inclusive evangelistas nas igrejas de todo o mundo, é natural que mencionemos por seus nomes e por escrito apenas aqueles dos quais se conserva a tradição até hoje graças a suas memórias da doutrina apostólica.

[ 225 ]

Page 226: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XXXVIII [Da carta de Clemente e os escritos que falsamente lhe atribuem]

1. Não cabe dúvida, portanto, de que tais são Inácio, em suas cartas cuja lista fornecemos, e Clemente na carta por todos admitida, que escreveu em nome da igreja de Roma à de Corinto. Nela Clemente expõe muitos pensamentos da Carta aos Hebreus, e inclusive utiliza textualmente algumas passagens da mesma, mostrando assim com toda claridade que este escrito não é recente.

2. Por isso pareceu natural catalogá-lo entre os demais escritos do apóstolo. Porque Paulo praticou por escrito com os hebreus valendo-se de sua língua pátria, e alguns dizem que a carta foi traduzida pelo evangelista Lucas, mas outros afirmam que foi o próprio Clemente,

3. o que talvez seja mais verdadeiro pelo fato de ambas, a Carta de Clemente e a Carta aos Hebreus, conservarem um caráter estilístico semelhante, além de não se diferenciar muito o pensamento de um e outro escrito.

4. Deve-se saber ainda que há uma segunda carta que se diz de Clemente, mas não sabemos que seja conhecida como a primeira, já que nem os antigos a utilizaram, tanto quanto sabemos.

5. E muito recentemente alguns trouxeram à luz, dizendo que são dele, outros escritos, verbosos e longos,

[ 226 ]

Page 227: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

que contêm os diálogos de Pedro e Apion. Destes escritos não se encontra a menor menção entre os antigos, nem mesmo conservam puro o caráter da ortodoxia apostólica. Consequentemente fica claro qual é o escrito aceito de Clemente. Também se falou dos de Inácio e de Policarpo.

256 1 Co 3:10; Ef 2:20. 257 Significa a doutrina cristã vivida. 258 Mt 19:21; Mc 10:21; Lc 18:22. 259 2 Tm 4:5. 260 Rm 15:20-21.

XXXIX [Dos escritos de Papias] 1. Diz-se que são cinco os escritos de Papias, sob

o título de Explicações das palavras do Senhor. Irineu os menciona como os únicos escritos de Papias; assim diz: "Isto também atesta por escrito Papias, que foi ouvinte de João, companheiro de Policarpo e varão dos antigos, no quarto livro dos que escreveu, porque efetivamente tem cinco livros escritos."

2. Isto é o que diz Irineu. O próprio Papias no entanto, segundo o prólogo de seus tratados, não se apresenta de modo algum como ouvinte e testemunha ocular dos sagrados apóstolos, mas ensina-nos que recebeu o referente à fé da boca de outros que os conheceram, estas são suas palavras:

[ 227 ]

Page 228: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. "Não vacilarei em apresentar-te ordenadamente com as interpretações tudo o que um dia aprendi muito bem dos presbíteros e que recordo bem, seguro que estou de sua verdade. Porque eu não me comprazia como outros com os que falam muito, mas com os que ensinam a verdade; nem tampouco com os que recordam mandamentos alheios, mas com os que trazem na memória os (mandamentos) que receberam pela fé da parte do Senhor e nascem da própria verdade.

Não devemos esquecer que os termos presbíteros, bispos e anciões eram usados alternadamente para se referir ao mesmo ofício.

4. E se por acaso chegava alguém que também havia seguido os presbíteros, eu procurava discernir as palavras dos presbíteros: o que disse André, ou Pedro, ou Felipe, ou Tomás, ou Tiago, ou João, ou Mateus ou qualquer outro dos discípulos do Senhor, porque eu pensava que não aproveitaria tanto o que tirasse dos livros como o que provêm de uma voz viva e durável."

5. Aqui seria bom fazer notar também que ele enumera duas vezes o nome de João. O primeiro coloca na lista com Pedro, Tiago, Mateus e os demais apóstolos, sendo evidente que se refere ao evangelista; já ao outro João, depois de cortar o discurso, coloca-o com outros, fora do número dos apóstolos, antepondo Aristion e chamando-o claramente de presbítero.

[ 228 ]

Page 229: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

6. De forma que também isto demonstra que é verdade a história dos que dizem que na Ásia houve dois com este mesmo nome, e em Éfeso dois sepulcros, dos quais ainda hoje se afirma que são, um e outro, de João. É necessário prestar atenção a estes fatos, porque é provável que fosse o segundo - se não se prefere o primeiro - o que viu a Revelação (= Apocalipse) que corre sob o nome de João.

Russel Norman Champlin conceituado teólogo que escreveu o comentário da Bíblia versículo por versículo acredita nesta hipótese do Apocalipse ter sido escrita por outro João.

7. Agora bem, Papias, de quem estamos falando, confessa que recebeu as palavras dos apóstolos de discípulos destes, enquanto que de Aristion e de João o Presbítero ele diz ter sido ouvinte direto. Efetivamente menciona-os pelo nome várias vezes em seus escritos e compila suas tradições.

8. E não se diga que por nossa parte é inútil o dito. Mas é justo adicionar às palavras de Papias já citadas outros ditos seus com os quais se refere a algumas coisas estranhas e outros detalhes que, segundo ele, chegaram-lhe pela tradição.

9. Pois bem, já foi explicado mais acima que o apóstolo Felipe morou em Hierápolis com suas filhas, mas agora há que se assinalar como Papias, que viveu nesse

[ 229 ]

Page 230: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

mesmo tempo, faz menção de haver recebido um relato maravilhoso da boca das filhas de Felipe. Narra efetivamente a ressurreição de um morto ocorrida em seu tempo e, como se fosse pouco, outro fato portentoso referente a Justo, apelidado Barsabás, pois aconteceu que este bebeu uma poção mortal sem que, pela graça do Senhor, sofresse qualquer dano.

Vemos que os milagres continuaram ocorrendo mesmo depois do período apostólico. Essa história dos que não acreditam na atualidade dos dons do Espírito Santo é ridículo.

10. Depois da ascensão do Salvador, os sagrados apóstolos puseram este Justo junto com Matias e oraram sobre eles para que a sorte completasse seu número em lugar do traidor Judas; conta-o o livro dos Atos da seguinte maneira: E puseram dois: José, chamado Barsabás, que tinha por sobrenome Justo, e Matias. E orando sobre eles disseram (261).

11. O próprio Papias conta também outras coisas como tendo chegado a ele por tradição não escrita, algumas estranhas parábolas do Salvador e de sua doutrina, e algumas outras coisas ainda mais fabulosas.

12. Entre elas diz que, depois da ressurreição dentre os mortos, haverá um milênio, e que o reino de Cristo se estabelecerá fisicamente sobre esta terra. Eu creio que Papias supõe tudo isto por haver derivado das

[ 230 ]

Page 231: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

explicações dos apóstolos, não percebendo que estes haviam-no dito figuradamente e de modo simbólico.

261 At 1:23-24. Papias estava certo, Eusébio é que desconhecia a escatologia bíblica claramente.

13. E aparece como homem de muito escassa inteligência, segundo se pode supor por seus livros. Mesmo assim, ele foi o culpado de que tantos escritores eclesiásticos depois dele tenham abraçado a mesma opinião que ele, apoiando-se na antiguidade de tal varão, como realmente faz Irineu e qualquer outro que manifeste professar ideias parecidas.

14. Em sua própria obra Papias transmite ainda outras interpretações das palavras do Senhor recebidas de Aristion, mencionado acima, assim como também outras tradições de João o Presbítero. A elas remetemos a quantos queiram instruir-se. Agora nos vemos obrigados a acrescentar às suas palavras anteriormente citadas uma tradição acerca de Marcos, o que escreveu o Evangelho, que vem exposta nos termos seguintes:

15. "E o presbítero dizia isto: Marcos, que foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem, o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o Senhor nem o havia seguido, mas, como disse, a Pedro mais tarde, o qual transmitia seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição das palavras do

[ 231 ]

Page 232: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Senhor, mas de tal forma que Marcos em nada se enganou ao escrever algumas coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enganar-se nisto o mínimo."

16. Isto é o que conta Papias sobre Marcos. Referente a Mateus, diz o seguinte: "Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia."

17. O mesmo escritor utiliza testemunhos tomados da primeira carta de João, e igualmente da de Pedro, e expõe também outro relato de uma mulher acusada de muitos pecados ante o Senhor, que está contido no Evangelho dos hebreus (262). Que conste também isto, além do que já havia exposto.

262 Eusébio apenas assinala que o relato se encontra em Papias e no Evangelho dos hebreus. É muito possível que se trate do mesmo que consta em Jo 7:53-8:11.

[ 232 ]

Page 233: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

LIVRO IV

I [Quais foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Trajano]

1. Corria o duodécimo ano do reinado de Trajano (263), morre o bispo da Igreja de Alexandria, a quem aludimos pouco acima (264), e é eleito para o cargo nela Primo, quarto bispo a partir dos apóstolos. Neste tempo também, tendo Evaristo cumprido seu oitavo ano (265), o

[ 233 ]

Page 234: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

episcopado de Roma passa para Alexandre, quinto na sucessão a partir de Pedro e Paulo.

II [O que padeceram os judeus nos tempos de Trajano]

1. Enquanto o ensinamento de nosso Salvador e sua Igreja floresciam a cada dia e progrediam mais e mais, a ruína dos judeus chegava ao máximo com sucessivas calamidades. Corria já o ano dezoito do imperador (266) quando estourou novamente uma rebelião dos judeus que levou à ruína uma enorme multidão dentre eles.

2. Efetivamente, em Alexandria, assim como no resto do Egito e ainda em Cirene, como que instigados por um espírito terrível e faccioso, amotinaram-se contra seus vizinhos, os gregos. A rebelião cresceu enormemente, e no ano seguinte, sendo então Lupo o governador de todo o Egito, provocaram uma guerra nada pequena.

3. Ocorreu que no primeiro choque eles venceram aos gregos, os quais, refugiando-se em Alexandria, prenderam os judeus da cidade e mataram-nos. Mas os judeus de Cirene, não recebendo a ajuda que esperavam destes, dedicaram-se a saquear o país do Egito e a devastar seu nomos, sob o comando de Lucúa (267).

[ 234 ]

Page 235: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Contra eles o imperador enviou Márcio Turbon com forças de infantaria e de marinha e inclusive de cavalaria.

4. Este, depois de manter dura luta contra eles em muitas batalhas e durante bastante tempo, deu morte a muitos milhares de judeus não apenas em Cirene, mas também aos que vinham do Egito, que haviam se sublevado com Lucúa, seu rei.

5. Mas o imperador, suspeitando que também os judeus da Mesopotâmia atacariam os habitantes dali, ordenou a Lusio Quieto que limpasse deles a província. Este organizou também uma batida contra eles e assassinou uma grande multidão, façanha pela qual o imperador nomeou-o governador da Judéia. Estes fatos são relatados também com termos idênticos pelos gregos que puseram por escrito dos acontecimentos de seu tempo.

O que falar do sofrimento dos judeus na história? Expulsos da sua terra, ou dominado por potências estrangeiras quando estão assentados lá... Sofreram na mão de vários gentios como assírios, babilônios, gregos, romanos, árabes, otomanos, alemães, espanhóis e por outros tantos povos.

III [Os que saíram em defesa da fé nos tempos de Adriano]

[ 235 ]

Page 236: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Depois de Trajano reger o império durante dezenove anos e seis meses, foi sucedido no comando por Elio Adriano. A este Codratos entregou um tratado que lhe havia redigido: uma Apologia composta em defesa de nossa religião, já que, efetivamente, alguns homens malvados tratavam de importunar os nossos. Ainda hoje conserva-se nas mãos de muitos de nossos irmãos; nós também possuímos a obra. Nela podemos ver claras provas da inteligência e retidão apostólica deste homem.

2. Ele mesmo deixa entrever sua antiguidade nisto que nos conta, em suas próprias palavras: "Mas as obras de nosso Salvador estavam sempre presentes, porque eram verdadeiras: os que haviam sido curados, os ressuscitados dentre os mortos, os quais não foram vistos apenas no instante de serem curados e ressuscitados, mas também estiveram sempre presentes, e não apenas enquanto vivia o Salvador, mas também depois de Ele morrer, todos viveram tempo suficiente, de forma que alguns deles chegaram mesmo aos nossos tempos."

263 Ano 109-110. 264 O bispo Cerdon. 265 Segundo os dados de Eusébio (vide III:34), Evaristo termina em 108-109. 266 O ano 18 de Trajano, antes de setembro de 115. 267 O historiador Dion Casio chama este líder de André.

[ 236 ]

Page 237: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. Assim era Codratos. Mas também Aristides, homem de fé entregue a nossa religião deixou, assim como Codratos, uma Apologia em favor da fé, que havia dirigido a Adriano. Também a obra deste escritor conservou-se até nossos dias em muitos lugares.

IV [Os bispos de Roma e de Alexandria nos tempos deste]

1. No terceiro ano do mesmo reinado, morre Alexandre, bispo de Roma, depois de cumpridos dez anos de governo. Sucedeu-o Sixto. E na igreja de Alexandria, tendo morrido Primo por este mesmo tempo, no duodécimo ano de sua presidência, foi sucedido por Justo.

V [Os bispos de Jerusalém, desde o Salvador até os tempos de Adriano]

1. No que tange às datas dos bispos de Jerusalém, nada encontrei conservado por escrito, porque, na verdade, uma tradição (268) afirma que tiveram vida muito breve.

2. Do que foi deixado por escrito, consegui tirar a limpo isto: que até o assédio dos judeus, nos tempos de Adriano, houve uma sucessão de bispos em número de quinze, e dizem que desde a origem todos eram hebreus que haviam aceitado sinceramente o conhecimento de Cristo, tanto que aqueles que estavam capacitados a

[ 237 ]

Page 238: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

julgá-los consideraram-nos até dignos do cargo de bispos. Naquele tempo, efetivamente, a igreja era toda composta por fiéis hebreus, desde os apóstolos até o assédio dos que então restavam, quando os judeus, novamente separados dos romanos, foram vítimas de grandes guerras.

3. Portanto, como quer que tenham terminado os bispos procedentes da circuncisão naquele momento, talvez seja necessário agora dar sua lista desde o primeiro. O primeiro pois, foi Tiago, o chamado irmão do Senhor; depois dele o segundo foi Simeão; o terceiro, Justo; o quarto, Zaqueu; o quinto, Tobias; o sexto, Benjamim; o sétimo, João; o oitavo, Matias; o nono, Felipe; o décimo, Sêneca; o décimo primeiro, Justo; o décimo segundo, Levi; o décimo terceiro, Efrem; José o décimo quarto e, depois de todos, o décimo quinto, Judas.

4. Estes foram os bispos da cidade de Jerusalém, desde os apóstolos até o tempo de que estamos falando, e todos oriundos da circuncisão.

5. Achava-se o reinado em seu décimo segundo ano (269) quando Sixto, que havia cumprido seu décimo ano no episcopado de Roma, foi sucedido por Telesforo, sétimo a partir dos apóstolos. Passando ainda um ano e alguns meses, Eumenes recebe em sucessão a presidência da igreja de Alexandria; segundo a ordem, foi

[ 238 ]

Page 239: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

o sexto. Seu predecessor havia permanecido no cargo onze anos.

VI [O último assédio de Jerusalém, nos tempos de Adriano]

1. A rebelião dos judeus tomava novamente maior força e maior extensão. Rufo, governador da Judéia, com o reforço militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade, marchou contra eles. Aniquilou em massa milhares de homens, de crianças e de mulheres, e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territórios à escravidão.

A história da humanidade se resume em um contínuo derramamento de sangue. A tensão entre grupos ou indivíduos se acentua até que acabam se matando.

2. Mandava então sobre os judeus um chamado Barkokebas, que significa "estrela" (270), um homem homicida e bandido, mas que, por seu nome, como se tratasse com escravos, dizia que era luz descida dos céus para eles, e com mágicas enganosas fazia ver aos maltratados que brilhava.

3. Mas a guerra chegou a seu ponto mais grave no décimo oitavo ano do reinado, em Betera, cidadela fortíssima, a pouca distância de Jerusalém. Como demorava longo tempo o assédio que vinha do exterior, os revolucionários viram-se empurrados à extrema ruína

[ 239 ]

Page 240: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

pela fome e pela sede, e o causador de sua insensatez pagou a pena merecida. Por decisão e por mandato de uma lei de Adriano proibiu-se a todo o povo judeu dali em diante pôr os pés sequer na região que rodeia Jerusalém, de forma que nem de longe podiam contemplar o solo pátrio. Isto foi contado por Ariston de Pela.

268 Provavelmente vinda das Memórias de Hegesipo. 269 O décimo segundo ano de Adriano foi 128-129. 270 Mais propriamente "Filho de estrela".

4. Assim foi que a cidade chegou a ficar vazia da raça judia, e foi total a ruína de seus antigos moradores. Pessoas de outra raça vieram a habitá-la, e a cidade romana então constituída logo trocou de nome e se chamou Elia, em honra ao imperador Adriano. Mas também a igreja dali veio a ser composta de gentios, e o primeiro que se encarregou de seu ministério, depois dos bispos que procediam da circuncisão, foi Marcos.

Isto é que foi erradicar a força os judeus de Jerusalém, a resistência judaica contra os dominadores o levaram a sucessivos aniquilamentos, somente tomando fôlego para nascer mais judeus para serem novamente mortos. Isso é o que podemos dizer do dragão perseguindo a semente do povo de Deus. O império romano ora sacrificava os judeus, ora sacrificava os cristãos. Mas não adiantou nada Satanás!!!

[ 240 ]

Page 241: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

VII [Quem foram neste tempo os líderes da gnosis de enganoso nome]

1. As igrejas de todo o mundo já resplandeciam como astros brilhantíssimos, e a fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo chegava a seu pleno vigor em todo o gênero humano, quando o demônio, avesso ao bem assim como inimigo da verdade e sempre hostil, demasiadamente, à salvação dos homens, voltou contra a Igreja todas as suas artimanhas. Se em outro tempo suas armas eram as perseguições contra ela, que vinham de fora,

2. agora, em troca, sendo-lhe vedados estes meios e lançando mão de homens malvados e feiticeiros como de funestos instrumentos e ministros da perdição das almas, levam a cabo sua campanha por outros caminhos. Imaginam todos os recursos, como o de que feiticeiros e embusteiros se deslizem sob o próprio nome de nossa doutrina, para assim conduzir ao abismo da perdição os fiéis que conseguem capturar, e aos que não conhecem a fé, com os meios que põe em prática, afastar do caminho que leva à doutrina salvadora.

3. Assim pois, de Menandro, de quem já dissemos que foi sucessor de Simão (271), saiu como uma serpente bicéfala e com duas bocas uma força que estabeleceu como autores de duas diferentes heresias Saturnino, antioquenho de origem, e o alexandrino Basílides. Um na

[ 241 ]

Page 242: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Síria e o outro no Egito constituíram caminhos de ensino de heresias inimigas de Deus.

4. Irineu demonstra que as falsidades ensinadas por Saturnino eram em sua maior partes as mesmas de Menandro, e que Basílides, sob a aparência de coisas mais secretas, estendia suas fantasias até o infinito, forjando as fábulas monstruosas de sua ímpia heresia.

5. Naquele tempo saíram a lutar pela verdade grande número de varões eclesiásticos, e defenderam com bastante eloquência a doutrina apostólica e eclesiástica. Alguns, com seus escritos, inclusive proporcionaram aos que vieram depois os recursos profiláticos contra as referidas heresias.

6. Destes chegou até nós uma eficaz Refutação contra Basílides, de Agripa Castor, famosíssimo entre os escritores de então (272).

7. Agripa põe a descoberto a habilidade da impostura daquele homem, pois ao desvelar seus mistérios diz que Basílides havia composto vinte e quatro livros sobre o Evangelho, e que chamava Barcabas e Barcof de profetas seus, e instituía para si alguns de sua própria invenção, aos quais dava nomes bárbaros para deixar pasmos aos que se assombram com tais coisas, e também ensinava que comer alimentos oferecidos aos ídolos e renegar despreocupadamente a fé com juramento em tempos de perseguição eram atos sem

[ 242 ]

Page 243: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

importância. A exemplo de Pitágoras, impunha cinco anos de silêncio aos que vinham a ele.

8. O mesmo escritor enumera ainda outras coisas parecidas a estas sobre Basílides e desmascara valentemente o erro da citada heresia.

9. Mas também Irineu escreve que Carpocrates, pai de outra heresia, a denominada dos gnósticos, foi coetâneo daqueles. Estes gnósticos consideravam certo transmitir as magias de Simão, não ocultamente como ele, mas abertamente, quase gabando-se como se fossem grandes coisas, dos filtros amorosos que elaboravam com grande cuidado, de certos espíritos familiares que enviam sonhos e de alguns outros métodos semelhantes. De acordo com isto, ensinavam que os que queriam chegar à perfeição de seus mistérios, melhor dizendo, de suas abominações, tinham que concretizar tudo o que houvesse de mais obsceno, porque, segundo eles, não poderiam escapar aos que chamam de príncipes do mundo senão satisfazendo-os a todos com uma conduta infame.

271 Vide III:XXVI. 272 Apesar desta fama, perderam-se todos seus escritos, conhecidos apenas por fragmentos conservados por Clemente de Alexandria.

10. O que realmente ocorreu foi que o demônio, cujo prazer é o mal dos outros, usando de tais ministros, por um lado conduziu à escravidão, para sua perdição,

[ 243 ]

Page 244: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

aos que estes conseguiram miseravelmente enganar, e por outro proporcionou aos povos infiéis abundante material de descrédito para a doutrina de Deus, pois a fama daqueles resultava em calúnia para todo o povo cristão.

11. Foi assim que, na maior parte, aconteceu que se divulgasse entre os infiéis de então a ímpia e absurdíssima suspeita de que nós praticássemos inconfessáveis uniões com nossas mães e com nossas irmãs e que usássemos alimentos sacrílegos.

12. Mas o certo é que tudo isso não lhe trouxe proveito por muito tempo, já que a verdade manifestou-se por si mesma e brilhou com uma luz muito intensa com o passar do tempo.

13. De fato, rebatidas pela própria ação da verdade, logo se estenderam as invenções do adversário. As heresias eram inventadas umas depois das outras, as primeiras iam caindo sem interrupção e, cada qual a sua maneira e a seu tempo, se corrompiam e ficavam reduzidas a ideias variadas e multiformes. Em troca, o esplendor da única verdadeira Igreja católica, sempre idêntica a si mesma, crescia e aumentava irradiando a toda a raça dos gregos e dos bárbaros a majestade, a simplicidade, a liberdade, a sobriedade e a pureza da conduta e da filosofia divinas.

[ 244 ]

Page 245: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Católica é uma palavra grega que significa universal. Eusébio não fazia referência a Igreja Católica Apostólica Romana. A verdadeira igreja é a que segue a doutrina de Cristo, hoje é uma igreja espiritual, posto que nenhuma organização humana pode se jactar de ser a igreja verdadeira.

14. Em consequência, com o passar do tempo, extinguiram-se também as calúnias contra toda a doutrina, enquanto que somente nosso ensinamento se mantinha vencedor entre todos e com o reconhecimento de ser a que mais sobressai por sua venerabilidade, sua moderação e suas doutrinas sábias e divinas, de forma que ninguém dos de agora se atreve a proferir contra nossa fé uma injúria vergonhosa nem calúnia semelhantes às que anteriormente gostavam de utilizar os que se conjuravam contra nós.

15. E mesmo assim, nos tempos de que falamos, a verdade tomou numerosos defensores seus, que não somente lutaram contra as ímpias heresias com argumentos não escritos, mas também com demonstrações escritas.

VIII [Quem foram os escritores eclesiásticos nos tempos de Adriano]

1. Entre estes destacava-se Hegesipo. Dele já utilizamos anteriormente numerosas citações, com o fim

[ 245 ]

Page 246: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de estabelecer, tomando de sua tradição, alguns fatos dos tempos dos apóstolos.

2. Efetivamente, em cinco livros comentou a tradição limpa de erro da pregação apostólica, com um estilo muito simples. O tempo em que se deu a conhecer é indicado por ele mesmo ao escrever assim dos que desde o princípio instalaram os ídolos: "Erigiam-lhes cenotáfios e templos, como até hoje. Deles é também Antino, escravo do imperador Adriano. Ainda que contemporâneo nosso, em sua honra celebram-se os jogos Antinoeus. Adriano inclusive fundou uma cidade com o nome de Antino e criou profetas."

Os esportes eram uma forma de adorar os deuses na Grécia e também no império Romana.

3. Também por este tempo, Justino, sincero amante da verdadeira filosofia, continuava ainda ocupado em exercitar-se nas doutrinas dos gregos. Ele mesmo indica este tempo ao escrever sua Apologia dirigida a Antonino: "Não creio que esteja fora de lugar mencionar aqui também Antino, que viveu em nossos dias e a quem todos se sentiam constrangidos a prestar culto como a um deus, por medo, apesar de saber quem era e de onde procedia."

4. E o mesmo Justino acrescenta o seguinte, ao mencionar a guerra de então contra os judeus: "E, de fato, na guerra judia de agora, Barkokebas, o líder da rebelião

[ 246 ]

Page 247: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

dos judeus, mandava que somente os cristãos fossem conduzidos a terríveis suplícios se não renegassem e blasfemassem contra Jesus o Cristo."

5. Na mesma obra demonstra que sua conversão da filosofia grega à religião não se fez sem razão, mas com juízo; escreve o seguinte: "porque também eu mesmo, que me comprazia nos ensinamentos de Platão, ao ouvir as calúnias contra os cristãos e vê-los irem intrépidos para a morte e para tudo que é terrível, comecei a pensar que não era possível que aqueles homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres. Pois, que homem amante do prazer ou incontinente ou que pensa que comer carne humana é bom poderia abraçar com alegria a morte se com ela se vê privado do objeto de seus desejos? Não tentaria por todos os meios seguir vivendo sempre sua vida daqui e ocultar-se dos governantes, em vez de delatar-se a si mesmo para ser morto?"

6. O mesmo escritor conta ainda que Adriano recebeu de Serenio Graniano, lúcido governador, uma carta em favor dos cristãos, dizendo que não era justo, sem ter havido acusação nenhuma, condená-los à morte sem julgamento, apenas para dar o gosto aos gritos do povo, e que havia respondido a Minucio Fundano, procônsul da Ásia, ordenando-lhe que ninguém julgasse sem denúncia e sem acusação razoável.

[ 247 ]

Page 248: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Desta carta Justino oferece uma cópia, conservando a língua latina, tal como estava, e antepondo o seguinte: "Poderíamos também, pelo conteúdo de uma carta do máximo e ilustríssimo imperador Adriano, vosso pai, exigir que mandeis celebrar os julgamentos segundo nossa demanda. Mas isto não pedimos por ter sido ordenado por Adriano, mas por estarmos convencidos de que nossa reclamação é justa. No entanto, também colocamos atrás a cópia da carta de Adriano, para que saibas que também nisto dizemos a verdade. E a que segue."

8. E em continuação ao dito, o mencionado autor põe a própria cópia latina, que nós, no entanto, traduzimos ao grego, como pudemos, e diz assim:

IX [Uma carta de Adriano dizendo que não se deveria perseguir-nos sem julgamento]

1. "A Minucio Fundano: Recebi uma carta que me foi escrita por Serenio Graniano, varão claríssimo, a quem tu sucedeste. Pois bem, não me parece que devamos deixar sem examinar o assunto, para evitar que se perturbe os homens e que os delatores encontrem apoio para suas maldades.

2. Por conseguinte, se os habitantes de uma província podem sustentar com firmeza e às claras esta demanda contra os cristãos, de tal modo que lhes seja

[ 248 ]

Page 249: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

possível responder ante um tribunal, devem ater-se a este procedimento somente, e não a meras petições e gritos. Efetivamente, é muito melhor que, se alguém quiser fazer uma acusação, tu mesmo examines o assunto.

3. Portanto, se alguém os acusa e prova que cometeram algum delito contra as leis, julga tu segundo a gravidade da falta. Se porém - por Hércules - alguém apresenta o assunto para caluniar, decide sobre esta atrocidade e cuida de castigá-la adequadamente." Este é o transcrito de Adriano.

X [Quem foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Antonino]

1. Depois de pagar este sua dívida, depois de vinte e um anos, o Império romano é recebido em sucessão por Antonino, o chamado Pio. Em seu primeiro ano morre Telesforo, que cumpria o décimo primeiro de seu ministério, e Higinio assume o episcopado de Roma. Conta Irineu que Telesforo abrilhantou sua morte com o martírio, e no mesmo lugar declara que, nos tempos do mencionado bispo de Roma Higinio, eram notórios em Roma estes dois: Valentim, introdutor de sua própria heresia, e Cerdon, causador do erro de Márcion. Escreve assim:

XI [Dos heresiarcas daqueles tempos]

[ 249 ]

Page 250: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. "Valentim veio a Roma, realmente, nos tempos de Higinio, mas floresceu sob Pio e permaneceu até Aniceto. E Cerdon, o antecessor de Márcion - também no tempo de Higinio, que foi o nono bispo -, assim que chegou à Igreja, depois de fazer confissão pública, passava sua vida assim: algumas vezes ensinava às escuras e outras vezes via refutadas suas doutrinas, e ia se afastando da companhia dos irmãos."

2. Isto diz em seu livro terceiro dos escritos Contra as heresias. Mesmo assim, também no primeiro explica o que segue sobre Cerdon: "Um tal Cerdon, que vinha do círculo de Simão e residia em Roma no tempo de Higinio - o nono na sucessão do episcopado a partir dos apóstolos -, andava ensinando que o Deus proclamado pela Lei e os Profetas não era Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, já que um é conhecido e o outro desconhecido; um é justo e o outro é bom. Tendo-lhe sucedido Márcion o Pôntico, este deu muita força à escola, blasfemando sem pudor."

3. O mesmo Irineu explica vigorosamente o abismo infinito da matéria, carregada de erros, de Valentim, e põe a nu sua maldade oculta e insidiosa, como de serpente que se esconde na touceira.

4. Depois destes diz que houve na mesma época outro, um tal chamado Marcos, habilíssimo na arte da magia. Descreve também suas intermináveis iniciações e

[ 250 ]

Page 251: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

suas infames mistagogias, revelando-as nos seguintes termos:

5. "Alguns deles, efetivamente, preparam um leito e celebram uma iniciação ao mistério com algumas invocações mágicas sobre os iniciados, e dizem ser um matrimônio espiritual o que eles fazem, à semelhança das uniões do alto. Outros, ainda, levam-nos às águas e, ao batizá-los, dizem sobre eles: 'Em nome do desconhecido pai de todas as coisas; pela verdade, mãe de tudo; por aquele que desceu sobre Jesus.' E outros dizem sobre eles nomes hebreus, com o fim de impressionar mais os iniciados."

6. Agora bem, tendo morrido Higinio depois do quarto ano de episcopado, encarrega-se do ministério em Roma Pio. Em Alexandria foi proclamado pastor Marcos, depois que Eumenes cumpriu no total treze anos. Morto Marcos depois de dez anos de ministério, Celadion recebe o ministério da igreja de Alexandria.

7. Na cidade de Roma, falecido Pio no décimo quinto ano de seu episcopado, assume a presidência dali Aniceto. Hegesipo conta sobre si mesmo que no tempo deste veio a estabelecer-se em Roma e que ali viveu até o episcopado de Eleutério.

8. Mas sobretudo foi nesta época que floresceu Justino. Com estofo de filósofo, era embaixador da palavra de Deus e lutava pela fé com seus escritos.

[ 251 ]

Page 252: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Escreveu efetivamente um tratado Contra Márcion, no qual recorda que, ao tempo em que o compunha, este ainda estava vivo. Diz assim:

9. "Há um tal Márcion, natural do Ponto, que ainda hoje está ensinando seus seguidores a crerem em outro deus maior do que o criador: e com a ajuda dos demônios, fez com que por todas as raças de homens muitos proferissem blasfêmias e negassem que o criador de todo o universo seja o Pai de Cristo, e em troca confessem que algum outro o tivesse criado, por ser em comparação maior do que ele. E como dissemos, todos os que procederam destes são chamados cristãos, do mesmo modo que, apesar de não serem as doutrinas comuns a todos os filósofos, o sobrenome de filosofia é comum a todos eles." Ao que acrescenta:

10. "Também temos um tratado Contra todas as heresias passadas (273), que vos daremos se quereis lê-lo."

11. E este mesmo Justino, depois de escrever muito acertadamente contra os gregos, dirigiu também outras obras que continham uma defesa em favor de nossa fé ao imperador Antonino, o chamado Pio, e ao senado romano, pois estava residindo em Roma. Sobre si mesmo declara em sua Apologia quem era e de onde procedia, nos seguintes termos:

[ 252 ]

Page 253: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XII [Da Apologia de Justino dirigida a Antonino]

1. "Ao imperador Tito Elio Adriano Antonino Pio César Augusto, e a Veríssimo (274), seu filho, filósofo, e a Lúcio, filho por natureza do césar, filósofo, e de Pio por adoção, amante do saber, e ao sagrado senado e a todo o povo romano, em favor dos homens de toda raça injustamente odiados e caluniados: Eu, Justino, filho de Prisco, que o era por sua vez de Bacquio, oriundo de Flavia Neápolis, da Síria, Palestina, e um deles, compus este discurso e esta súplica." O próprio imperador foi solicitado também por outros irmãos da Ásia, importunados com toda sorte de insolência pela população local, e julgou bom enviar ao concilio da Ásia o seguinte transcrito:

273 Nada sabemos desta obra, exceto por citações de outros autores. 274 O futuro imperador Marco Aurélio.

XIII [Uma carta de Antonino ao concilio da Ásia sobre a nossa doutrina]

1. "O imperador César Marco Aurélio Antonino Augusto Armênio, pontífice máximo, tribuno da plebe pela décima quinta vez, cônsul por três vezes, ao concilio da Ásia, saudações (275);

[ 253 ]

Page 254: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. Eu sei que também os deuses se ocupam de que estes não permaneçam ocultos. Efetivamente, eles castigariam muito mais do que vós aos que não queiram adorá-los.

3. "A estes estais empurrando para a agitação, uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateus. Para eles seria preferível, assim acusados, parecer que morreram por seu próprio Deus a seguir vivendo. Por isso inclusive estão vencendo, porque entregam suas próprias vidas em vez de obedecer ao que vós pretendeis que façam.

4. Quanto aos terremotos passados e atuais, não será demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam, e comparais nossa situação à sua.

5. Eles, efetivamente, têm muito maior confiança em Deus, enquanto que vós, em todo o tempo pareceis estar em completa ignorância, descuidais dos outros deuses e do culto ao imortal. Os cristãos o adoram, e vós os maltratais e perseguis até a morte.

6. Em favor destes já escreveram a nosso diviníssimo pai (276) muitos governadores das províncias, aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados, a não ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder público de Roma. Também a mim muitos me falaram sobre eles, e também respondi seguindo o parecer de meu pai.

[ 254 ]

Page 255: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Mas se alguém persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles, fique o acusado livre de encargos, ainda que seja evidente que é cristão; por outro lado, o acusador ficará sujeito a castigo. "Publicado em Éfeso, no concilio da Ásia."

Este decreto do imperador Marco Aurélio veio trazer um refresco na vida dos cristãos que estavam sendo perseguidos e mortos há um século.

8. Que assim sucederam as coisas é atestado pelo bispo da igreja de Sardes, Meliton, célebre naquela época, pelo que se percebe na Apologia que dirigiu ao imperador Vero em favor de nossa doutrina.

XIV [O que se recorda sobre Policarpo, discípulo dos apóstolos]

1. Nos tempos aludidos e estando Aniceto à cabeça da igreja de Roma, conta Irineu que Policarpo ainda vivia e que veio a Roma para conversar com Aniceto por causa de certa questão acerca do dia da Páscoa.

2. O mesmo escritor nos transmite outro relato acerca de Policarpo, que é necessário acrescentar ao que dele se disse. É o que segue: TOMADO DO LIVRO III DOS DE IRINEU CONTRA AS HERESIAS.

[ 255 ]

Page 256: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. "E também Policarpo. Não somente foi instruído pelos apóstolos e conviveu com muitos que haviam visto o Senhor, mas também foi instituído bispo da Ásia pelos apóstolos, na igreja de Esmirna. Nós inclusive o vimos em nossa idade juvenil.

4. Já que viveu muitos anos e morreu muito velho, depois de dar glorioso e esplêndido testemunho. Sempre ensinou o que havia aprendido dos apóstolos, que é também o que a Igreja transmite e o único que é verdade.

5. Disto dão testemunho todas as igrejas da Ásia e os que até hoje sucederam a Policarpo, que é um testemunho da verdade muito mais digno de fé e muito mais seguro que Valentim, que Márcion e que o resto, de juízo corrompido. E estando de passagem por Roma nos tempos de Aniceto, reconduziu muitos dos hereges acima mencionados à igreja de Deus, pregando-lhes que única e exclusivamente havia recebido dos apóstolos esta verdade: o que transmite a Igreja.

275 Eusébio não chega a se entender com os nomes nem com os títulos dos imperadores, pois anuncia uma carta de Antonino mas o cabeçalho é de Marco Aurélio, e ainda assim com falhas. 276 Se a carta é de Marco Aurélio, como indica o cabeçalho, refere-se a Antonino, mas se o autor é Antonino, alude a Adriano.

6. E há quem o tenham ouvido dizer que João, o discípulo do Senhor, indo banhar-se em Éfeso e tendo

[ 256 ]

Page 257: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

visto Cerinto nos banhos, saltou para fora das termas sem ter-se banhado e disse: "Fujamos, não ocorra que também as termas venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade (277)."

7. E o mesmo Policarpo, quando uma vez Márcion fez-se encontrar e lhe disse: "Reconhece-nos", respondeu-lhe: "Reconheço-te. Reconheço o primogênito de Satanás." Era tal a cautela que tinham os apóstolos e seus discípulos para não comunicar-se sequer por palavra com nenhum falsificador da verdade, que o próprio Paulo disse: Ao herege, depois de primeira e segunda advertência, rechaça-o, pois sabes que este está perdido e peca, condenando a si mesmo (278)."

8. "Há também uma carta de Policarpo, escrita aos filipenses, importantíssima, pela qual podem conhecer a índole de sua fé e sua mensagem da verdade aqueles que o queiram e que se preocupam com sua própria salvação."

9. Isto disse Irineu. Quanto a Policarpo, na mencionada carta sua aos filipenses, conservada até o presente, faz uso de alguns testemunhos tomados da primeira carta de Pedro.

10. A Antonino, o chamado Pio, depois de cumpridos seus vinte e dois anos de governo, sucedeu seu filho Marco Aurélio Vero, também chamado Antonino, junto com seu irmão Lúcio.

[ 257 ]

Page 258: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XV [De como, nos tempos de Vero, Policarpo sofreu o martírio junto com outros da cidade de Esmirna]

1. Neste tempo (279) morreu mártir Policarpo, quando enormes perseguições estavam perturbando a Ásia. Creio ser muito necessário incluir na narrativa da presente história o relato de seu fim, ainda conservado por escrito.

2. A carta está escrita em nome da Igreja que ele governava, para as igrejas de (todo) (280) lugar e declara o que se refere a ele nos seguintes termos:

3. "A igreja de Deus que peregrina (281) em Esmirna à igreja de Deus que reside como forasteira em Filomelio e a todas as comunidades da santa Igreja católica, forasteiras em todo lugar: a misericórdia, a paz e o amor de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo se multipliquem. Nós vos escrevemos, irmãos, o que se refere aos que sofreram martírio e ao bem-aventurado Policarpo, que com seu martírio, como se houvesse posto seu selo, fez cessar a perseguição."

4. Em continuação, e antes de referir-se a Policarpo, narram o referente aos mártires e descrevem a constância que mostraram ante os tormentos, pois contam que foram motivo de assombro para os que formavam círculo em torno deles e os contemplavam, ora dilacerados por açoites até o mais profundo de suas veias

[ 258 ]

Page 259: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

e artérias, de forma que podiam observar os órgãos de seus corpos, suas entranhas e seus membros, ora a outros, estendidos sobre conchas marinhas e pontas afiadas, e entregues por fim como pasto às feras, depois de ter passado por castigos e tormentos de toda espécie.

Esta pena de morte foi executada com todos os requintes de perversidade. É impressionante como a humanidade comete absurdos, vivemos em uma época em que os bandidos latrocidas são tratados com tanta benevolência e por outro lado lemos declarações como esta na qual uma pessoa é levada a morte com tanta crueldade, cujo crime foi adorar ao Deus vivo.

5. E contam que distinguiu-se especialmente o nobilíssimo Germânico, que com a ajuda da graça divina sobrepôs-se à covardia natural ante a morte do corpo. O Procônsul queria persuadi-lo e alegava como pretexto sua idade, e suplicava-lhe que, já que estava na flor da juventude, tivesse compaixão de si mesmo; mas ele não vacilou, mas valentemente atraiu para si as feras, quase forçando-as e atiçando-as, para poder afastar-se mais rapidamente da vida injusta e criminosa daqueles.

6. Ante a gloriosa morte deste homem, a multidão toda pasmou-se vendo a valentia do mártir divino e a virtude de toda a linhagem dos cristãos, e todos a uma voz começaram a gritar: "Morram os ateus! Que se busque Policarpo!"

[ 259 ]

Page 260: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

277 Vide III:XXVIII:6. 278 Tt 3:10-11. 279 Tempos de Marco Aurélio. 280 O original não tem a palavra "todo", mas esta aparece no endereçamento da carta abaixo. 281 Usa-se o termo "peregrino" ou "forasteiro" para expressar a condição do cristão como estando de passagem por este mundo.

7. Tendo-se criado com a gritaria uma grande confusão, certo homem da Frigia, chamado Quinto, recentemente chegado da Frigia, ao ver as feras e tudo o mais que o ameaçava, sentiu enfraquecer-se a alma presa do medo e terminou por abandonar sua salvação.

8. Mas o relato do escrito acima demonstra que este homem lançou-se ante o tribunal de forma demasiado precipitada e sem a devida cautela. Assim pois, uma vez preso, proporcionou a todos um exemplo manifesto de que não é lícito arriscar-se em tais empresas temerária e incautamente. Assim terminava o que se referia a estes homens.

9. Quanto ao admirável Policarpo, quando ouviu estas coisas não se perturbou; seguiu observando firme e imutável seus costumes e queria permanecer ali, na cidade. Mas persuadido pelas súplicas dos que o rodeavam e pelos que o exortavam a afastar-se secretamente, retirou-se a uma propriedade não muito distante da cidade, e ali passava seu tempo em companhia de uns poucos, não fazendo outra coisa, noite

[ 260 ]

Page 261: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

e dia, que perseverar na oração ao Senhor. Nela pedia e suplicava pela paz, pedindo-a para as igrejas de todo o universo, o que aliás sempre fora costume seu.

10. E foi enquanto orava, numa visão que teve à noite três dias antes de sua prisão, quando viu que o travesseiro de sua cabeceira se consumia completamente abrasado pelo fogo. Despertado pelo fato, logo interpretou para os presentes o ocorrido, quase adivinhando o futuro, e anunciou claramente aos circunstantes que ele haveria de morrer por Cristo no fogo.

É bom ficarmos sempre atentos, Deus sempre nos orienta por meio de sonhos.

11. Assim pois, quando os que o procuravam com toda presteza já se achavam próximos, diz-se que ele se mudou para outro sítio, forçado novamente pela disposição e o amor dos irmãos, e ali apareceram pouco depois os perseguidores, que detiveram dois criados. Submeteram um deles a torturas e assim chegaram ao paradeiro de Policarpo.

12. Como chegaram a uma hora tardia, encontraram-no deitado num cômodo do piso superior, de onde era possível passar para outra casa; mas ele não quis fazê-lo e disse: "Cumpra-se a vontade de Deus."

13. Efetivamente, quando soube que estavam ali - como diz o relato —, desceu e pôs-se a conversar com

[ 261 ]

Page 262: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

eles, com o rosto radiante e cheio de suavidade, de forma que aqueles que antes não o conheciam acreditavam estar vendo um prodígio, ao considerar sua avançada idade e seu porte venerável e firme, e se admiravam de tanto esforço para prender um ancião.

14. Mas ele, sem tardar, manda que lhes ponham a mesa; logo convida-os a participar de abundante jantar e pede-lhes apenas uma hora para orar tranquilo. Como eles o permitiram, levantou-se e pôs-se a orar, cheio da graça de Deus. Os presentes estavam assombrados ouvindo-o orar, e muitos deles arrependeram-se já de que tivesse que ser executado um ancião tão venerável e digno de Deus.

15. Depois do que foi dito, o escrito que trata dele continua a narrativa literalmente como segue: "Quando terminou sua oração, depois de fazer memória de todos com quem havia tratado em sua vida, pequenos e grandes, ilustres e plebeus, e de toda a Igreja católica espalhada por toda a terra habitada, quando chegou a hora de partir, sentaram-no no lombo de um asno e conduziram-no à cidade. Era dia de grande sábado. Foram ao encontro do irenarca (282) Herodes e seu pai, Nicetas, fizeram-no subir em seu carro, sentaram-no a seu lado e trataram de persuadi-lo dizendo: "Mas que há de mal em dizer: César é o Senhor! E em sacrificar, e com isto salvar a vida?"

[ 262 ]

Page 263: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

16. "Policarpo a princípio não respondia, mas como insistissem, disse: "Não tenho intenção de fazer o que me aconselhais.' Como não conseguiram seu intento, começaram a dizer-lhe palavras terríveis e fizeram-no descer a toda pressa, tanto que ao descer do carro arranhou a perna. Mas ele, sem virar-se, como se nada tivesse lhe acontecido, pôs-se animadamente a caminhar com pressa, conduzido ao estádio.

17. Era tal o ruído no estádio, que muitos não podiam ouvir. Entrando Policarpo no estádio, sobreveio uma voz do céu: 'Sê forte, Policarpo, e porta-te como homem.' Ninguém viu quem falou, mas muitos dos nossos ouviram a voz.

18. Quando o 'conduziam armou-se grande tumulto por parte dos que perceberam que haviam prendido Policarpo. Logo, quando se aproximou, perguntou-lhe o procônsul se ele era Policarpo. Tendo ele confessado, aquele tentou persuadi-lo a que renegasse, dizendo: 'Tenha consideração a tua idade', e outras coisas parecidas a estas, como tem costume de dizer: 'Jura pelo gênio do César. Muda de pensar.' Diga: 'Morram os ateus!' (282) Espécie de comissário de polícia nomeado pelo procônsul para guardar a ordem pública nas cidades.

[ 263 ]

Page 264: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

19. Mas Policarpo olhou com rosto severo a toda a turba que se encontrava no estádio, agitou para eles sua mão e, entre soluços e levantando a vista ao céu, disse: 'Morram os ateus!'

20. Mas quando o governador lhe pediu e disse: 'Jura e te soltarei; maldiz a Cristo', Policarpo disse: 'Oitenta e sei anos venho servindo-o e nenhum mal me fez. Como posso blasfemar contra meu rei, que me salvou?'

21. Como o procônsul insistisse novamente e dissesse: 'Jura pela sorte do César', Policarpo respondeu: "Se abrigas a vã pretensão de que eu jure pelo gênio do César, como dizes, fingindo que ignoras quem sou eu, com franqueza, escuta: sou cristão. Mas se é que queres aprender a doutrina do cristianismo, dá-me um dia e escuta".

22. Disse o procônsul: "Convence ao povo". Policarpo replicou: "A ti considero digno do meu discurso, pois nos é ensinado render as honras devidas às autoridades e potestades estabelecidas por Deus (283), enquanto não seja em detrimento nosso; mas a estes não os considero dignos de que me defenda perante eles.'

23. E o procônsul disse: 'Tenho feras. A elas te lançarei se não mudas tua posição.' Mas ele respondeu: 'Chama-as, porque para nós não é possível mudar de

[ 264 ]

Page 265: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

posição se é do melhor para o pior. O bom é mudar do mau para o justo.'

24. Insistiu o procônsul: 'Como não te arrependes, farei com que o fogo te dome se desprezas as feras'. Policarpo disse: "Ameaças com um fogo que arde algum tempo, mas depois de um pouco se apaga. E ignoras o fogo do juízo futuro e do castigo eterno, reservado aos ímpios. Mas, por que tardas? Traga o que quiseres.' 25. Enquanto dizia isto e muitas outras coisas mais, enchia-se de valor e de alegria, e seu rosto transbordava de graça, ao ponto de que não somente não caiu em confusão pelas coisas que lhe diziam, mas pelo contrário, foi o procônsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do estádio apregoasse três vezes: 'Policarpo confessou que é cristão.'

26. Quando o arauto disse isso, toda a turba de gentios e de judeus que habitavam Esmirna se pôs a gritar com ânimo exaltado e grande vozerio: 'Este é o mestre da Ásia, o pai dos cristãos, o destruidor de nossos deuses, o que ensinou a muitos a não sacrificar e a não adorar.'

27. Enquanto diziam isto, gritavam mais e mais, e pediam ao asiarca (284) Felipe que lançasse um leão contra Policarpo. Disse ele que não podia, por estar terminado o combate de feras. Então acharam por bem gritar juntos que Policarpo fosse queimado vivo.

[ 265 ]

Page 266: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

28. E devia cumprir-se a visão que teve de seu travesseiro quando, enquanto orava, viu que se consumia abrasado, e voltando-se para os fiéis que estavam com ele, disse-lhes em tom profético: 'Devo ser queimado vivo.'

29. Isto se fez mais depressa do que foi dito. A turba arrancou das oficinas e dos banhos a madeira e lenha miúda. Os mais entusiásticos em colaborar com a tarefa foram, como de costume, os judeus.

30. Quando a fogueira estava pronta, Policarpo despojou-se de todas suas roupas e, descingindo-se, tratou de soltar também seu calçado, coisa que antes não fazia pois cada fiel sempre se esforçava para ser o primeiro a tocar sua pele; porque a todo momento, antes mesmo de ter os cabelos brancos, havia sido honrado por causa de sua santa vida.

31. Em seguida foram colocando a sua volta os instrumentos preparados para a fogueira, mas quando já iam pregá-lo, disse-lhes: "Deixai-me assim, pois quem me dá esperar com pés firmes o fogo, me dará também, sem que seja necessária a segurança de vossos pregos, o manter-me firme na fogueira.' E não o pregaram, mas amarraram-no.

32. Com as mãos às costas e amarrado como um carneiro escolhido que é tirado de um grande rebanho como holocausto aceitável a Deus Todo-poderoso, disse:

[ 266 ]

Page 267: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

33. 'Pai de teu amado e bendito Filho Jesus Cristo, por quem recebemos o conhecimento acerca de ti, Deus dos anjos, das potestades, de toda a criação e de toda a raça dos justos que vivem em tua presença: Bendigo-te porque me julgaste digno deste dia e desta hora, para ter parte, entre o número dos mártires, no cálice de teu Cristo para ressurreição na vida eterna, tanto da alma como do corpo, na integridade do Espírito Santo.

283 Rm 13:1; I Pe 2:13. 284 Presidente do concilio da província da Ásia, e como tal, sumo sacerdote e diretor dos jogos públicos.

34. Oxalá seja eu recebido em tua presença hoje, com eles, em sacrifício pio e aceitável! segundo preparaste de antemão, como de antemão o manifestaste e o cumpriste, ó Deus sem mentira e verdadeiro!

35. Por esta razão, e por todas as coisas, te louvo, te bendigo, te glorifico, por meio do eterno e sumo sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja a glória a ti, com Ele no Espírito Santo, agora e nos séculos vindouros. Amém.'

36. Quando pronunciou o Amém e terminou sua oração, os encarregados do fogo acenderam-no, mas, fazendo-se uma grande chama, vimos um prodígio, aqueles aos quais foi dado vê-lo e que fomos conservados para anunciar aos demais o ocorrido.

[ 267 ]

Page 268: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

37. Ocorreu que o fogo, formando uma espécie de abóbada, como a vela de um navio enchida pelo vento, protegeu o corpo do mártir como uma muralha em torno. E ele estava no meio, não como carne queimada, mas como ouro e prata candentes no forno. E nós, em verdade, sentíamos uma fragrância tal, como exalada pelo incenso ou por qualquer outro aroma precioso.

38. Ao fim, vendo aqueles ímpios que o corpo não podia ser consumido pelo fogo, ordenaram ao confector (285) que se aproximasse e cravasse nele sua espada;

39. feito isto, brotou um caudal de sangue tão grande que apagou o fogo e deixou assombrada a multidão que via a grande diferença entre os infiéis e os eleitos. Um destes foi este homem, admirável em demasia, mestre apostólico e profético de nossos dias, bispo que foi da igreja católica de Esmirna. Efetivamente, toda palavra que saiu de sua boca se cumpriu e se cumprirá.

40. Mas o rival e invejoso maligno, adversário da raça dos justos, ao ver a grandeza de seu martírio e a vida irrepreensível que havia levado desde o princípio e que já estava coroado com a coroa da integridade e já tinha alcançado um prêmio indiscutível, dispôs as coisas de tal maneira que nós não recolhemos seu corpo, mesmo sendo muitos os que desejavam fazê-lo e ter parte em seus santos despojos.

[ 268 ]

Page 269: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

41. Alguns pois, sugeriram a Nicetas, pai de Herodes e irmão de Alce, solicitar do governador que não entregasse o corpo do mártir, 'não ocorra que -disse - deixando o crucificado, comecem a render culto a este'. E diziam isto por sugestão e por pressão dos judeus, que também vigiavam quando nós íamos recolhê-lo da fogueira. Pois ignoram que nós jamais poderemos abandonar a Cristo, que padeceu pela salvação de todos os que no mundo inteiro se salvam, nem render culto a nenhum outro.

42. Porque a este adoramos por ser Filho de Deus; aos mártires, por outro lado, amamos justamente porque são discípulos e imitadores do Senhor, por causa de sua insuperável benevolência para com seu próprio rei e mestre. Oxalá também nós fôssemos partícipes de sua sorte e seus condiscípulos!

43. Vendo pois o Centurião a insistência dos judeus, pôs o corpo no meio, como de costume, e queimou-o. E assim nós logo retiramos seus ossos, mais estimáveis que as pedras preciosas e mais dourados do que o ouro, e os guardamos em lugar conveniente.

44. Ali, reunidos enquanto nos seja possível, jubilosos e alegres, o Senhor nos concederá celebrar o aniversário de seu martírio, para memória dos que lutaram e para exercício e preparação dos que terão que lutar.

[ 269 ]

Page 270: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Celebrar aniversário do martírio serviu de pretexto para posteriormente celebrar-se culto aos santos.

45. Este foi o final do bem-aventurado Policarpo. Ainda que sejam doze o número dos martirizados em Esmirna, junto com os de Filadélfia, ele é o único de quem todos mais se recordam, ao ponto de que inclusive os pagãos estão falando dele em todas as partes."

O mártir de Policarpo foi um fato forte na história do cristianismo. Seu nome é citado no livro do Apocalipse, na qual Cristo fala dele com termos elogiosos: Minha fiel testemunha!

46. Deste final fez-se digno o admirável e apostólico Policarpo, cujo relato foi exposto pelos irmãos da igreja de Esmirna na carta deles que citamos. Neste mesmo escrito que trata dele estão juntos outros martírios que tiveram lugar na mesma Esmirna na mesma época que o martírio de Policarpo. Com eles pereceu também, entregue às chamas, Metrodoro, que se acredita que fosse presbítero da seita de Márcion.

285 O confector era quem dava o golpe de misericórdia aos homens e às feras ao fim dos combates.

47. Mas o mártir mais famoso dos de então foi Pionio. Suas sucessivas confissões, sua liberdade de expressão, suas apologias da fé em presença do povo e das autoridades, seus discursos didáticos ao povo e ainda

[ 270 ]

Page 271: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

sua amável acolhida aos que haviam sucumbido na prova da perseguição, assim como as exortações que, estando no cárcere, dirigia aos irmãos que a ele acudiam, e também os tormentos que depois sofreu, os suplícios que se juntaram, seu encravamento, sua integridade na fogueira e, depois de todas estas maravilhas, sua morte: tudo isto está contido de maneira muito completa no escrito que dele trata (286). A ele remetemos quem se interessar: acha-se incluído entre os martírios dos antigos, por nós recompilados.

48. Conservam-se também as atas de outros mártires que foram martirizados em Pérgamo, cidade da Ásia: Carpo, Papilo e uma mulher, Agatonice, que acabaram gloriosamente depois de muitas e ilustres confissões.

XVI [De como Justino o Filósofo, sendo de avançada idade, sofreu martírio pela doutrina de Cristo na cidade de Roma]

1. Por este mesmo tempo (287), Justino, mencionado há pouco, depois de dedicar aos supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas, foi adornado com o sagrado martírio. O responsável pela conspiração foi o filósofo Crescente - homem que se esforçava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas ao cognome de cínico (288) -,

[ 271 ]

Page 272: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presença de seus ouvintes. Justino, com seu martírio acabou cingindo o prêmio da vitória da verdade da qual era embaixador.

2. Também isto foi previsto por ele mesmo, consumado filósofo que era, na mencionada Apologia, e tão claramente como de fato haveria de suceder-lhe. Estes são seus termos:

3. "E eu mesmo espero ser vítima da conspiração de algum dos nomeados e ser agrilhoado ao cepo. Talvez por obra de Crescente, o amigo, não da sabedoria, mas da ruidosa jactância, já que não é justo chamar de filósofo um homem que em público atesta o que ignora, como quando diz que os cristãos são ateus e ímpios, fazendo assim para graça e gosto do vulgo extraviado no erro.

Um dos principais motivos que levaram os cristãos da antiguidade a julgamento, condenação e morte foi por serem considerados ateus, uma vez que não acreditavam nos deuses dos pagãos.

4. Porque, se é que nos ataca sem ter lido os ensinamentos de Cristo, é dos mais malvados e muito pior do que os ignorantes, os quais muitas vezes evitam conversar e atestar falsamente sobre o que ignoram. E se é que os leu sem entender a grandeza que há neles, ou se os entendeu, mas faz assim para não ser suspeito de

[ 272 ]

Page 273: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

ser cristão, então é muito mais ignóbil e malvado, escravo de uma opinião, ignorante e irracional, e do medo.

5. Porque quero que saibais que, havendo-lhe já proposto e feito perguntas deste gênero, dei-me conta e o convenci de que verdadeiramente não sabe nada. E como prova de que digo a verdade, se é que não vos remeteram os informes da discussão, estou disposto a fazer novamente as perguntas inclusive em vossa presença, tarefa que também seria digna de um imperador.

6. Mas se já vos são conhecidas minhas perguntas e as respostas daquele, tereis visto bem claramente que nada sabe de nossas coisas. Ou se o sabe, mas não se atreve a dizê-lo por causa dos ouvintes, como disse antes, não mostra ser um homem amante do saber, mas amante da opinião e depreciador da sentença de Sócrates (289), digníssima de todo apreço".

7. Isto diz Justino. Segundo sua previsão, morreu vítima das maquinações de Crescente. Taciano, varão que em seus primeiros tempos professou as ciências helênicas, nas quais alcançou não pequena fama, e deixou em seus escritos muitos monumentos de seu engenho, narra em seu Discurso aos gregos como segue: "E o admirável Justino exclamou com toda justiça que os supracitados pareciam bandidos."

[ 273 ]

Page 274: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

8. Depois de acrescentar algumas coisas sobre os filósofos, continua dizendo o que segue: "Crescente, pois, o que se aninhou na grande cidade, a todos suplantava como pederasta e estava inteiramente entregue ao amor do dinheiro.

286 As Atas de Pionio. 287 Dos imperadores Marco Aurélio e Lúcio Vero. 288 De "kíon" = cachorro. 289 "A verdade deve ser honrada mais do que o homem, ainda que este homem seja Homero."

9. Quem aconselhava a desprezar a morte, ele mesmo temia a morte de tal maneira que arranjou para precipitar Justino na morte, como num grande mal, porque este, pregando a verdade, havia provado que os filósofos eram uns glutões e embusteiros." Esta foi a causa do martírio de Justino.

XVII [Dos mártires mencionados por Justino em sua própria obra]

1. O mesmo autor, antes de seu próprio combate, menciona em sua primeira Apologia a outros mártires anteriores a ele. Também este relato é útil para nosso intento.

2. Escreve assim: "Uma mulher vivia com seu dissoluto marido, e ela mesma havia-se dado anteriormente à vida dissoluta. Mas, depois que conheceu os ensinamentos de Cristo, aprendeu a conter-se e

[ 274 ]

Page 275: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tratava de persuadir seu marido a tornar-se casto também, apresentando os ensinamentos e anunciando-lhe o castigo que no fogo eterno terão os que não vivem castamente e conforme a reta razão.

3. Mas ele perseverava na mesma devassidão e com suas obras seguia afastando-se de sua esposa, pois a mulher, considerando ímpio seguir compartilhando o leito com um homem que buscava recursos de prazer por todos os meios, contra a lei da natureza e contra a justiça, quis divorciar-se.

4. E como os seus lhe suplicaram e a aconselharam que aguardasse ainda, com a esperança de que o homem pudesse um dia mudar, fazendo uma violência contra si mesma, esperou.

5. Mas depois que seu marido foi para Alexandria e ela teve notícia de que ali fazia coisas piores, para evitar compartilhar com ele as injustiças e impiedades permanecendo no matrimônio e compartilhando a mesa e o leito, deu-lhe o que entre vós se chama repudium e se separou.

6. Mas o bom de seu marido, que deveria alegrar-se de que sua mulher, antes entregue à vida fácil com criados e diaristas, desfrutando de bebedeiras e todo tipo de maldades, não somente havia cessado com todas estas práticas, mas que também queria que ele deixasse

[ 275 ]

Page 276: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

de fazer o mesmo, porque havia se separado sem que ele o quisesse, vai e a acusa de ser cristã.

7. E ela apresentou a ti, imperador, um libelo em que pedia, em primeiro lugar, que lhe fosse permitido dispor de seus bens, e depois, quando seus assuntos estivessem arranjados, apresentar sua defesa frente à acusação. E tu o permitiste.

8. Mas seu ex-marido, não podendo então dizer nada contra ela, voltou-se contra um tal Ptolomeu - a quem Urbicio havia imposto um castigo - porque havia sido mestre daquela nas doutrinas cristãs. Procedeu da seguinte maneira:

9. Ao Centurião que havia aprisionado Ptolomeu, e que era seu amigo, persuadiu a que se apoderasse de Ptolomeu e lhe dirigisse esta única pergunta: se era cristão. E Ptolomeu, que amava a verdade e não tinha o caráter embusteiro nem mentiroso, confessou que era cristão. O Centurião fez com que o acorrentassem, e durante muito tempo submeteu-o a castigo no cárcere.

10. E quando por último Ptolomeu foi conduzido à presença de Urbicio, também lhe perguntaram unicamente isto: se era cristão. E novamente, consciente do bem que havia recebido por meio da doutrina de Cristo, confessou a escola da divina virtude;

[ 276 ]

Page 277: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

11. porque quem nega algo, o que quer que seja, ou nega porque o condena, ou rejeita a confissão porque considera a si mesmo indigno e alheio a isto. Nenhum destes casos enquadra o verdadeiro cristão.

12. E quando Urbicio mandou que o levassem à execução, um tal Lúcio, que também era cristão, vendo que a sentença era dada tão contra a razão, disse dirigindo-se a Urbicio: 'Qual é a causa de que tenhas condenado este homem sem haver provado que seja um adúltero, um fornicador, um homicida, um ladrão e sem que, em uma palavra, tenha cometido injustiça, mas somente porque confessou levar o nome de cristão? Tu, Urbicio, não julgas como corresponde ao imperador Pio nem ao filósofo que é o filho do César, nem tampouco ao senado sagrado.'

13. E Urbicio, sem nada responder, disse dirigindo-se também a Lúcio: 'Parece-me que também tu és cristão.' E como Lúcio respondeu: "Assim é!", mandou que também a este levassem à execução. Lúcio declarou que estava agradecido, pois - acrescentava - afastava-se de uns amos tão malvados e ia para Deus, seu bom Pai e Rei. E a um terceiro que se apresentou foi infligida a mesma pena." A isto Justino acrescentou, com razão e logicamente, as palavras que já citamos mais acima: "E eu mesmo espero ser vítima da conspiração de algum dos nomeados, etc."

[ 277 ]

Page 278: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XVIII [Que tratados de Justino chegaram a nós]

1. Justino deixou-nos um grande número de obras, extremamente úteis, testemunho de uma inteligência cultivada e empenhada nas coisas divinas. A elas remetemos os estudiosos, depois de assinalar propriamente as que chegaram a nosso conhecimento (290).

2. Dele há primeiramente um tratado dirigido a Antonino, o chamado Pio, e a seus filhos, assim como ao senado romano, em favor de nossas doutrinas; e outro que contém uma segunda Apologia em defesa de nossa fé, que dirigiu ao sucessor e homônimo do citado imperador Antonino Vero (291), cuja época estamos registrando até o presente.

3. Há também esta obra, o Discurso aos gregos, na qual, depois de estender-se largamente sobre os problemas apresentados a nós e aos filósofos gregos, discorre sobre a natureza dos demônios. Mas não é urgente citá-lo aqui.

4. Também chegou a nós outra obra sua contra os gregos, que intitulou Refutação; e além destas, outra Sobre a monarquia de Deus, que compôs com elementos recolhidos não somente de nossas Escrituras, mas também dos livros dos gregos.

[ 278 ]

Page 279: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. Escreveu ainda o intitulado Psaltes e outro, de uso escolar, Sobre a alma, no qual propõe diversas questões sobre o problema que discute, e lista as opiniões dos filósofos gregos, prometendo contradizê-las e expor a sua própria em outro escrito.

6. Compôs também um Diálogo contra os judeus, diálogo que sustentou na cidade de Éfeso com Trífon, o mais ilustre dos hebreus de então. Nele explica de que modo a graça divina o levou à doutrina da fé, com que empenho inicialmente se inclinava para as ciências filosóficas e que entusiasmo havia depositado na busca da verdade.

7. Na mesma obra diz dos judeus que eles foram os que prepararam uma conspiração contra a doutrina de Cristo e expõe este pensamento dirigindo-se a Trífon: "Não somente não vos haveis arrependido do mal que fizestes, mas até, tendo escolhido então alguns homens especialmente aptos, os enviastes desde Jerusalém a toda a terra dizendo que havia aparecido um seita atéia de cristãos e enumerando as mesmas calúnias que todos os que nos desconhecem repetem contra nós, de modo que não somente sois culpados de vossa própria injustiça, mas também, simplesmente, da de todos os demais homens."

8. Escreve também que inclusive até seu tempo seguiam brilhando os carismas proféticos na Igreja, e

[ 279 ]

Page 280: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

menciona o Apocalipse de João dizendo claramente que é do apóstolo. E cita igualmente alguns ditos de profetas, provando a Trífon que os judeus os eliminaram da Escritura. Conhecem-se ainda outros numerosos trabalhos seus, conservados entre muitos irmãos.

9. E assim é que inclusive aos antigos pareceram do maior interesse os tratados de Justino, tanto que Irineu cita suas palavras. Efetivamente, no livro IV Contra as heresias diz textualmente: "E muito bem disse Justino, em sua obra Contra Márcion, que não poderia crer nem no próprio Senhor se este lhe anunciasse outro Deus diferente do demiurgo." E no livro V da mesma obra com estas palavras: "E muito bem disse Justino que, antes da vinda do Senhor, nunca Satanás se atreveu a blasfemar contra Deus; como se ainda não soubesse de sua condenação."

10. Isto era obrigação dizer para animar os estudiosos a um trato aplicado e solícito para com as obras deste autor. Tais eram as notícias que a ele se referem.

290 De todas, só chegaram a nós as chamadas Apologias I e II e o Diálogo com Trifon, ainda que com algumas lacunas. 291 Marco Aurélio.

XIX [Quem esteve frente à frente das igrejas de Roma e de Alexandria sob o reinado de Vero]

[ 280 ]

Page 281: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Havia avançado já até seu oitavo ano o reinado mencionado (292) quando Sotero sucedeu Aniceto no episcopado da igreja de Roma, tendo este passado nele onze anos completos. O da igreja de Alexandria, depois de presidida por Celadion durante catorze anos, passou a seu sucessor, Agripino.

XX [Quem esteve à frente da igreja de Antioquia]

1. Na igreja de Antioquia conhecia-se como sexto sucessor dos apóstolos a Teófilo. O quarto havia sido Cornélio, instituído sobre ela depois de Heron (293). E depois de Cornélio, em quinto lugar Eros havia recebido em sucessão o episcopado.

XXI [Dos escritores eclesiásticos que brilharam naquele tempo]

1. Por estes tempos (294) florescia na igreja Hegesipo, a quem já conhecemos pelo que foi dito anteriormente; também Dionísio, bispo de Corinto, e Pinito, bispo por sua vez dos fiéis de Creta. E além destes, Felipe, Apolinário, Meliton Musano, Modesto e, sobre todos, Irineu. Deles chegou até nós por escrito a ortodoxia da santa fé da tradição apostólica.

XXII [De Hegesipo e dos que ele menciona]

[ 281 ]

Page 282: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Assim é, pois, que Hegesipo deixou-nos um monumento completíssimo de seu próprio pensamento nos cinco livros de Memórias que chegaram a nós. Neles mostra como, realizando uma viagem a Roma, esteve em contato com muitos bispos e como de todos eles recebeu uma mesma doutrina. Será bom escutá-lo, depois que disse algumas coisas sobre a Carta de Clemente aos Coríntios, acrescentar o seguinte:

2. "E a igreja dos Coríntios permaneceu na reta doutrina até que Primo foi bispo de Corinto. Quando eu navegava para Roma, convivi com os Coríntios e com eles passei muitos dias, durante os quais me reconfortei com sua reta doutrina.

3. E chegado a Roma, fiz-me uma sucessão até Aniceto, cujo diácono era Eleutério. A Aniceto sucedeu Sotero, e a este, Eleutério. Em cada sucessão e em cada cidade as coisas estão tal como pregam a lei, os profetas e o Senhor."

4. O mesmo escritor nos explica o início das heresias de seu tempo nestes termos: "E depois que Tiago o Justo sofreu o martírio, o mesmo que o Senhor e pela mesma razão, seu primo Simeão, o filho de Clopas, foi constituído bispo. Todos o haviam proposto, por ser o outro primo do Senhor. Por esta causa (295) chamavam virgem à Igreja, pois ainda não havia se corrompido com vãs tradições.

[ 282 ]

Page 283: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. "Mas foi Tebutis, por não ter sido nomeado bispo, que começou a corrompê-la, partindo das sete seitas que havia no povo, das quais também ele formava parte. Delas saíram Simão - daí os simonianos -, Cleobio - donde saíram os cleobinos -, Dositeo - donde os dositanos -, Gorteo - de onde os goratenos - e os masboteus. Destes procederam os menandristas, os marcianistas, os carpocratianos, os valentinianos, os basilidianos e os saturnilianos. Cada um destes introduziu sua própria opinião por caminhos próprios e diferentes.

6. Deles saíram pseudocristos, pseudoprofetas e pseudoapóstolos, que despedaçaram a unidade da Igreja com suas doutrinas corruptoras contra Deus e contra seu Cristo."

292 Isto é, o ano 168-169. 293 Sucessor de Inácio (vide III:36:14). 294 São os tempos de Marco Aurélio. 295 A causa não se refere à frase anterior, mas à argumentação sobre a origem das heresias.

7. O mesmo autor descreve ainda inclusive as seitas que houve em outro tempo entre os judeus, dizendo: "Existiam diferentes opiniões na circuncisão, entre os filhos dos israelitas, contra a tribo de Judá e contra o Cristo, a saber: essênios, galileus, hemerobatistas, masboteus, Samaritanos, Saduceus e fariseus." 8. Escreveu também muitas outras coisas, das quais fizemos menção anteriormente, em parte, ao dispor

[ 283 ]

Page 284: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

as narrativas conforme as circunstâncias. Põe algumas coisas tomadas do Evangelho dos hebreus e do Siríaco, e em particular tomadas da língua hebraica, mostrando assim que se fez crente sendo hebreu. E não apenas isto mas também menciona outras coisas procedentes de uma tradição judia não escrita.

9. Mas não somente ele, pois também Irineu e todo o coro dos antigos chamavam os Provérbios de Salomão "Sabedoria toda virtuosa". E ao decidir sobre os livros chamados apócrifos conta que alguns deles foram fabricados em seu tempo por alguns hereges (296). Mas já é hora de passar a outro.

XXIII [De Dionísio, bispo de Corinto, e das cartas que escreveu]

1. Sobre Dionísio, o primeiro que temos a dizer é que foi-lhe confiado o trono do episcopado da igreja de Corinto, e também que suas atividades divinas influenciaram abundantemente não apenas os que estavam sujeitos a ele, mas também os de outros países, sendo utilíssimo a todos com suas cartas católicas que compunha para as igrejas.

2. Uma delas, Aos Lacedemonios, é uma catequese de ortodoxia e exorta à paz e à união; outra, Aos Atenienses, é uma chamada à fé e a uma conduta conforme o Evangelho; aos que descuidam desta,

[ 284 ]

Page 285: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

repreende-os por estarem a ponto de apostatar da doutrina, precisamente desde que seu presidente, Publio, sofreu martírio nas perseguições de então. 3. Menciona que Codrato foi nomeado seu bispo depois do martírio de Publio, e atesta ainda que, graças a seu zelo, voltaram eles a se unir e reavivaram sua fé. Em continuação mostra que Dionísio o Areopagita, depois de convertido à fé por Paulo, segundo o exposto nos Atos, foi o primeiro a quem se confiou o episcopado da igreja de Atenas.

4. Existe outra carta sua aos fiéis de Nicomedia, na qual combate a heresia de Márcion e compara-a com a regra da verdade.

5. E quando escreve à igreja que peregrina em Gortina, em vez de às outras igrejas de Creta, felicita seu bispo Felipe porque a igreja que tem a seu cargo deu testemunho com suas numerosíssimas virtudes e adverte-os de que se guardem da perversão dos hereges.

6. E escrevendo à igreja que peregrina em Amastris, em vez das do Ponto, recorda que Baquílides e Elpisto haviam-no animado a escrever, apresenta algumas interpretações das divinas Escrituras e dá a seu bispo o nome de Palmas. Sobre o matrimônio e a continência dirige-lhes não poucas exortações e ordena-lhes acolher aos que se convertem de qualquer queda, seja devida à negligência, seja a erro herético (297).

[ 285 ]

Page 286: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Entre estas cartas acha-se catalogada outra, aos de Knosos, na qual exorta Pinito, bispo daquela igreja, a não impor aos irmãos obrigatoriamente o pesado fardo da continência, mas antes a ter consideração com a fraqueza dos demais (298).

8. Respondendo a esta carta, Pinito rende admiração e aprova Dionísio; mesmo assim, exorta-o por sua vez a que reparta um alimento mais sólido e sustente o povo a ele confiado com escritos mais perfeitos, para que ao final, depois de haver passado todo o tempo em palavras semelhantes ao leite, não venham a envelhecer, sem dar-se conta, em uma conduta pueril (299). Por esta carta fica manifesta, como numa imagem acabada, a ortodoxia de Pinito quanto à fé, sua preocupação pelo proveito dos ouvintes, sua eloquência e sua compreensão das coisas de Deus.

9. Existe ainda outra carta de Dionísio, Aos Romanos, dirigida ao bispo de então, Sotero. Nada melhor do que citar dela as frases em que o autor aprova o costume romano, observado até a perseguição de nossos dias, quando escreve:

296 Não se sabe a quais apócrifos e a quais hereges se refere. 297 Márcion era natural do Ponto, daí o cuidado especial para com as heresias. 298 At 15:28. 299 1 Co 3:1-2; Hb 5:12-14.

[ 286 ]

Page 287: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

10. "Porque desde o princípio tendes este costume, o de fazer o bem de muitas maneiras a todos os irmãos e enviar provisões por cada cidade a muitas igrejas; remediais assim a pobreza dos necessitados e, com as provisões que desde o princípio estais enviando, atendeis aos irmãos que se encontram nas minas, conservando assim, como romanos que sois, um costume romano transmitido de pais a filhos, costume que vosso bem-aventurado bispo Sotero não somente manteve, mas até melhorou, ministrando por um lado socorros abundantes para enviar aos santos, e por outro, como pai que ama ternamente os seus, consolando com afortunadas palavras os irmãos que chegam a ele."

11. Na mesma carta menciona também a de Clemente Aos Coríntios, mostrando que se vinha fazendo a leitura da mesma na igreja desde tempos atrás por antigo costume; diz assim: "Hoje pois, celebramos o dia santo do Senhor e lemos vossa carta. Continuaremos lendo-a de vez em quando para admoestação nossa, tanto quanto a primeira que nos foi escrita por meio de Clemente."

O dia do Senhor é do latim “dominis”, isto é, domingo. Os cristãos não guardavam o sábado, pois este era uma aliança de Deus com os judeus.

12. E o mesmo, falando ainda de suas próprias cartas, que haviam sido falsificadas, diz o seguinte: "Eu

[ 287 ]

Page 288: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

escrevi efetivamente algumas cartas depois que alguns irmãos pediram que as escrevesse. Mas estes apóstolos do diabo encheram-nas de joio (300), suprimindo umas coisas e acrescentando outras. Sobre eles pesa o 'Ai de vós!' (301). Na verdade não se deve estranhar que alguns também tenham se lançado sobre as Escrituras do Senhor, para falsificá-las, quando conspiraram até contra as que não são tão importantes."

13. E além destas, há ainda outra carta de Dionísio que escreve A Crisófora (302), irmã cheia de fé. A esta escreve o que lhe corresponde e fornece o alimento espiritual adequado. Isto é o que tange a Dionísio.

XXIV [De Teófilo, bispo de Antioquia]

1. De Teófilo, que já mencionamos como bispo da igreja de Antioquia, possuímos os três livros elementares dirigidos A Autólico, e outro que tem por título Contra a heresia de Hermógenes, no qual utiliza testemunhos tirados do Apocalipse de João. Dele possuímos também alguns outros livros de catequese. Nesta época os hereges seguiam com o mesmo empenho corrompendo, como o joio, a limpa semente do ensinamento apostólico, e os pastores das igrejas de todo lugar os afugentavam do meio das ovelhas de Cristo como a bestas selvagens e rechaçavam-nos, ora por meio de advertências e exortações dirigidas aos irmãos, ora pondo-os em

[ 288 ]

Page 289: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

evidência com perguntas e refutações orais, cara a cara, e também corrigindo suas opiniões com argumentos bem precisos por meio de tratados escritos. Teófilo, assim como outros, lutou contra eles, segundo declara certo tratado seu nada vulgar Contra Márcion, tratado que, junto com outros de que falamos, conserva-se até hoje (303). Teófilo foi sucedido por Maximino, sétimo da igreja de Antioquia a partir dos apóstolos.

XXV [De Felipe e de Modesto]

1. Felipe, que pelas palavras de Dionísio conhecemos como bispo da igreja de Gortina, compôs também um importantíssimo tratado Contra Márcion. E o mesmo fizeram Irineu e Modesto (304); este, inclusive melhor do que os outros, colocou à vista de todos o erro deste homem, assim como o de muitos, cujas obras se conservam ainda entre numerosos irmãos até hoje.

300 Mt 13:25. 301 Ap 22:18-19. 302 Desconhecida. 303 Exceto pelos três livros A Autólico, todos seus livros se perderam. 304 Nada se sabe sobre os tratados de Felipe e de Modesto Contra Márcion. Perderam-se assim como os de Justino.

XXVI [De Meliton e dos que ele menciona]

[ 289 ]

Page 290: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Neste tempo floresciam também, muito destacados, Meliton, bispo da igreja de Sardes, e Apolinário, da de Hierápolis. Ambos, cada um em particular, dirigiram ao imperador romano já mencionado daquele tempo vários tratados apologéticos em favor da fé.

2. Deles chegaram até nós as seguintes obras. De Meliton, os dois livros Sobre a Páscoa e o livro Sobre a conduta e sobre os profetas; os tratados Sobre a Igreja e Sobre o domingo; ainda, Sobre a fé do homem (305), Sobre a criação e Sobre a obediência dos sentidos à fé; além destes, os tratados Sobre a alma e o corpo...(.. .) (306), Sobre o batismo e sobre a verdade e sobre a fé e o nascimento de Cristo; um livro Sobre sua profecia; e Sobre a alma e o corpo (307), Sobre a hospitalidade, A chave e os escritos Sobre o diabo e o Apocalipse de João e o livro Sobre Deus encarnado; e além de todos estes, um livrinho A Antonino.

A igreja primitiva produzia muitos livros, tratados e textos, mostrando que dentro do cristianismo haviam sábios, doutores e intelectuais. Grupos cristãos espiritualizados como alguns que hoje em dia são contra estudos da Bíblia e a arte da argumentação, tudo atribuindo a obra do Espírito Santo para convencer os homens são grupos irracionais. Deus nos privilegiou com o intelecto para dele fazer uso em favor do reino.

[ 290 ]

Page 291: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. Começando pois, o livro Sobre a Páscoa, indica o tempo em que o compôs, nestes termos: "Sob o procônsul da Ásia Servilio Paulo, tempo em que Sagaris sofreu martírio, houve em Laodicéia muitas disputas sobre a Páscoa, que caía precisamente naqueles dias, e escreveu-se isto."

4. Este tratado é mencionado por Clemente de Alexandria em seu Sobre a Páscoa, que ele mesmo diz ter composto por causa do escrito de Meliton. E no livrinho dirigido ao imperador conta Meliton que, sob este, deram-se contra nós coisas como estas:

5. "Pois isto nunca havia ocorrido; agora persegue-se a linhagem dos adoradores de Deus (308), afetados na Ásia por novos editos (309). Efetivamente, os desavergonhados sicofantas e amantes do alheio, tomando pé nas prescrições, andam roubando abertamente, e expoliam de noite e de dia os que nada fizeram de mal."

6. E depois de outras coisas diz: "E se isto é feito porque tu o mandas, está bem-feito, porque nunca um imperador justo poderia querer algo injustamente, e nós suportamos com gosto a honra desta morte. Um só pedido, no entanto, te dirigimos: que tu mesmo examines primeiro os causadores de tal rivalidade e julgues com justiça se são dignos de morte e de castigo, ou de ficar salvos e tranquilos. Mas se não procedem de ti esta

[ 291 ]

Page 292: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

determinação e este novo edito - que nem sequer contra inimigos bárbaros seria conveniente -, com maior razão te pedimos que não nos abandones, indiferente a semelhante latrocínio público."

7. Ao dito acrescenta ainda isto: "Efetivamente, nossa filosofia alcançou sua plena maturidade entre bárbaros, mas havendo-se estendido também a teus povos sob o grande império de teu antepassado Augusto, converteu-se sobretudo para teu reinado em um bom augúrio, pois desde então a força dos romanos cresceu em grandeza e esplendor. Dela és tu o desejado herdeiro e seguirás sendo-o com teu filho, se proteges a filosofia que se criou com o império e começou quando Augusto e teus antepassados inclusive a honraram ao par com as outras religiões.

8. A prova maior de que nossa doutrina floresceu para bem junto com o Império felizmente iniciado é que, desde o reinado de Augusto nada de mau aconteceu, antes pelo contrário, tudo foi brilhante e glorioso, segundo as preces de todos.

9. Entre todos, somente Nero e Domiciano, persuadidos por alguns homens malévolos, quiseram caluniar nossa doutrina, e acontece que deles derivou, por costume irracional, a mentira caluniosa contra tais pessoas.

[ 292 ]

Page 293: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

305 Um dos manuscritos dá o título Sobre a natureza do homem. 306 Neste ponto do manuscrito aparecem sete letras que não fazem sentido e são interpretadas de diferentes formas por diversos estudiosos. 307 Pode tratar-se de uma repetição do título citado acima ou de uma obra distinta. 308 Procedimento contrário às ordem de Trajano. 309 Não se tem notícia de tais editos contra os cristãos, pode ser uma referência às decisões de Marco Aurélio contra os que propagavam novas crenças, não especificamente contra os cristãos.

10. Mas teus pios pais corrigiram a ignorância daqueles repreendendo por escrito muitas vezes todos que se atreveram a criar novidades sobre os cristãos. Entre eles destaca-se teu avô Adriano, que escreveu a muitas e diferentes pessoas, inclusive ao procônsul Fundano, governador da Ásia. E também teu pai escreveu às cidades sobre não inventar nada acerca de nós, inclusive nos tempos em que tudo administravas junto com ele. Entre esses escritos acham-se os dirigidos aos habitantes de Larisa, aos tessalonicenses, aos atenienses e a todos os gregos.

11. E quanto a ti, que sobretudo nestes assuntos tens o mesmo parecer e até muito mais humano e filosófico, estamos persuadidos de que porás em efeito o que te pedimos."

[ 293 ]

Page 294: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

12. Isto é o que se diz no tratado mencionado. E nos Extratos por ele escritos, o mesmo Meliton, ao começar, faz no prólogo um catálogo dos escritos admitidos do Antigo Testamento, catálogo que é necessário enumerar aqui. Escreve assim:

13. "Meliton a seu irmão Onésimo: Saúde. Visto que muitas vezes, valendo-te de teu zelo pela doutrina, tens pedido para ti extratos da lei e dos profetas, sobre o Salvador e toda a nossa fé; mais ainda, já que quiseste saber dos livros antigos com toda exatidão quantos são em número e qual é sua ordem, pus minha diligência em fazê-lo, sabendo de teu ardor pela fé e teu afã de saber sobre a doutrina, já que em tua luta pela salvação eterna e em tua ânsia por Deus, preferes isto mais do que tudo.

14. Assim pois, tendo subido ao Oriente e chegado até o lugar em que se proclamou e se realizou, informei-me com exatidão dos livros do Antigo Testamento. Ordenei-os e envio-os a ti. Seus nomes são: cinco de Moisés: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Jesus de Navé, Juízes, Rute; quatro dos Reis, dois dos Paralipômenos; Salmos de Davi; Provérbios de Salomão, ou também Sabedoria, Eclesiastes, Cantar dos Cantares, Jó; dos profetas, Isaías, Jeremias, os doze em um só livro, Daniel, Ezequiel; Esdras. Destes livros tirei os Extratos, que dividi em seis livros." E é isto que há de Meliton.

[ 294 ]

Page 295: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XXVII [De Apolinário] 1. Sobre Apolinário, por outro lado, ainda que

sejam muitas as obras que se conservaram entre muitas pessoas (310), até nós chegaram as seguintes: O Discurso dirigido ao mencionado imperador, cinco livros Contra os gregos, dois Sobre a verdade, dois Contra os judeus, e também os que, depois destes, escreveu Contra a heresia dos frígios, que não muito depois iniciaria suas inovações, mas que já então começava a despontar, pois Montano, junto com suas falsas profetisas, já andava assentando os princípios do descaminho.

XVIII [De Musano] 1. E também de Musano, citado em passagens

precedentes, conserva-se certo tratado, muito persuasivo, que ele escreveu para alguns irmãos seus que se inclinavam à heresia dos chamados encratitas, que então acabava de nascer e começava a introduzir na vida seu estranho e pernicioso erro.

XXIX [Da heresia de Taciano] 1. Uma tradição sustenta que o autor do

descaminho foi Taciano, cujas palavras sobre o admirável Justino citamos há pouco, ao fazer constar que foi discípulo do mártir. E isto é demonstrado por Irineu no

[ 295 ]

Page 296: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

primeiro livro de sua obra Contra as heresias, onde escreve sobre ele e sua heresia como segue:

310 Exceto pelo que é dito nesta obra, nada sabemos sobre Cláudio Apolinário, bispo de Hierápolis. Todas as suas obras foram perdidas. 311 Gn 1:27.

2. "Os chamados encratitas, que procediam de Saturnino e de Márcion, proclamavam a abstenção do matrimônio, rechaçando assim a primitiva criação de Deus e condenado indiretamente aquele que fez o varão e a fêmea (311) para procriar homens. E em sua ingratidão para com o Deus que tudo criou, introduziram também a abstenção do que eles chamam "animado" e negam a salvação do primeiro homem.

O celibato voluntário é um dom divino, Jesus mesmo era celibatário, mas aqueles que de tempo em tempo tentam introduzir este costume nas igrejas como mandamento divino estão se prestando a trabalhar para o Diabo.

3. Isto mesmo encontramos também agora entre eles, sendo um tal Taciano o primeiro a ter introduzido esta blasfêmia. Foi discípulo de Justino; enquanto conviveu com ele, nada manifestou de tal espécie, mas depois do martírio de Justino, afastou-se da Igreja. Envaidecido pela crença de ser um mestre e inflado por sentir-se diferente dos demais, constituiu um tipo próprio de escola, inventou alguns éons invisíveis - como faziam

[ 296 ]

Page 297: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

os seguidores de Valentim -, proclamou o matrimônio como corrupção e fornicação - como fizeram Márcion e Saturnino — e de sua própria invenção negou a salvação de Adão."

4. Isto é o que Irineu escreveu na ocasião. Mas um pouco mais tarde, um homem chamado Severo deu força à mencionada heresia e foi causa de que os membros da seita recebessem por ele o nome de severianos.

5. Estes utilizam, é verdade, a lei, os profetas e os Evangelhos, interpretando de maneira peculiar o pensamento das Sagradas Escrituras; mas, blasfemando sobre o apóstolo Paulo, rechaçam suas Cartas e nem sequer aceitam os Atos dos Apóstolos.

6. Mesmo assim, Taciano, seu primeiro líder, compôs certa combinação e agrupamento - não sei como - dos Evangelhos, ao que deu o nome de Diatessáron e que ainda hoje se conserva entre alguns. E diz-se que teve a ousadia de mudar algumas expressões do apóstolo, alegando completar a correção de seu estilo.

7. Deixou grande número de escritos, entre os quais muitos citam como o mais famoso o discurso Contra os gregos, no qual menciona os tempos primitivos e manifesta que Moisés e os profetas hebreus são mais antigos que todos os homens famosos dentre os gregos.

[ 297 ]

Page 298: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

De fato, parece ser este o mais belo e mais útil de seus escritos. E isto é o que havia sobre estes.

XXX [De Bardesanes o Sírio e das obras que se diz serem suas]

1. Sob o mesmo reinado, multiplicaram-se as heresias na Mesopotâmia, e Bardesanes, homem muito capaz e habilíssimo dialético na língua Siríaca, compôs diálogos contra os marcionitas e contra outros líderes de diferentes crenças e os transmitiu em sua própria língua e escrita junto com muitos outros escritos seus. Seus discípulos - e tinha muitos, subjugados por seu poderoso verbo - traduziram-nos do siríaco para o grego.

2. Entre eles encontra-se também aquele seu vigorosíssimo Diálogo sobre o destino, dirigido a Antonino, e tudo o mais que, segundo dizem, escreveu devido à perseguição de então.

3. Inicialmente foi membro da escola de Valentim, mas depois de condená-la e de refutar a maior parte de suas fábulas, pareceu-lhe estar de alguma forma convertido a uma crença mais ortodoxa, ainda que de fato não tenha chegado a limpar-se completamente da antiga heresia. Também neste tempo morreu Sotero, o bispo da igreja de Roma.

[ 298 ]

Page 299: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

LIVRO V

[Prólogo]

1. Assim pois, Sotero, o bispo da igreja de Roma, morreu depois de governar até seu oitavo ano, e foi sucedido por Eleutério, décimo segundo a partir dos apóstolos. Corria o décimo sétimo ano do imperador Antonino Vero. Neste tempo reavivou-se com maior violência em algumas partes da terra a perseguição contra nós e, pelos ataques dos habitantes das cidades,

[ 299 ]

Page 300: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

pode-se conjeturar que foram milhares os mártires que se distinguiram se levamos em conta o ocorrido em uma só nação, que por ser realmente digno de lembrança imorredoura, foi transmitido por escrito à posteridade.

2. O escrito inteiro do completíssimo relato sobre estes fatos consta de nossa Recompilação de Martírios, que compreende uma explicação não apenas narrativa, mas também instrutiva. Na presente obra tomarei e citarei ao menos o que aquela contenha sobre o tema que nos ocupa.

3. Outros, ao fazerem as narrativas históricas, não transmitem por escrito mais do que vitórias em guerras, troféus de inimigos, façanhas de generais e valentias de soldados manchados de sangue e de mortes inumeráveis por causa dos filhos, da pátria e demais bens.

4. Nossa obra, por outro lado, que descreve o modo de vida segundo Deus, gravará em lápides eternas as mais pacíficas lutas pela própria paz da alma e o nome dos que nelas se comportaram varonilmente, mais pela verdade do que pela terra pátria, e mais pela religião do que pelos seres queridos, e se proclamará publicamente, para eterna memória, a resistência dos atletas da fé, sua bravura, curtida em mil sofrimentos, os troféus conquistados contra os demônios, as vitórias sobre os adversários invisíveis e, depois de tudo, suas coroas.

[ 300 ]

Page 301: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

I [Quantos foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela religião na Gália]

1. Foi pois a Gália o país em que se preparou o estádio, lugar dos fatos mencionados. Duas metrópoles eram célebres por sua distinção e por sua importância entre as outras: Lion e Viena. Ambas são atravessadas pelo Ródano, que flui ao longo de todo o país com grande caudal.

2. As ilustríssimas igrejas daquela região transmitiram às igrejas da Ásia e Frígia (312) a carta sobre os mártires, e narram o ocorrido da seguinte maneira. Citarei suas próprias palavras.

3. "Os servos de Cristo que peregrinam em Viena e em Lion da Gália, aos irmãos que na Ásia e na Frígia compartilham conosco a mesma fé e a mesma esperança da redenção: paz, graça e glória por parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor."

4. Depois, em continuação, seguem dizendo outras coisas como prólogo e dão início a seu relato nos seguintes termos: "Descrever pois, com justiça a magnitude desta tribulação daqui, o grau de irritação dos pagãos contra os santos e o número de sofrimentos que os bem-aventurados mártires suportaram, nem está em nossa capacidade nem sequer é possível encerrar em um escrito.

[ 301 ]

Page 302: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. E ocorreu que o adversário (313) atacou com todas as suas forças, como prelúdio já do descaramento de sua vinda iminente. Meteu-se por todos os lados, acostumando os seus e exercitando-os de antemão contra os servos de Deus, de forma que não só nos expulsam das casas, dos banhos e das praças, mas que inclusive proíbem que algum de nós deixe-se ver de qualquer forma em qualquer lugar que seja.

6. Mas a graça de Deus opunha-se a sua estratégia: retinha os fracos e apresentava à frente uma formação de sólidas colunas, capazes de atrair sobre si, com sua paciência, todo o ímpeto do malvado. Estes marcharam a seu encontro, suportando toda sorte de injúrias e castigos (314). Considerando pouco o que era muito, apressavam seu passo para Cristo e mostravam realmente que os sofrimentos do tempo presente não são comparáveis com a glória que está para ser revelada em nós (315).

312 A explicação tradicional sobre a relação de pontos tão distantes é que as igrejas destas cidades seriam formadas principalmente por cristãos emigrados da Ásia Menor, mas existe a possibilidade de que Eusébio tenha confundido a Galácia do Ponto com a Gália do ocidente. 313 Depois de destacar a irritação popular contra os cristãos, declara-se o causador: o "adversário", Satanás. 314 Hb 10:33.

[ 302 ]

Page 303: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

7. Em primeiro lugar suportaram generosamente os assaltos massivos de toda a plebe: insultos, golpes, sacudidas, rapinas, apedrejamentos, passagem por apertos e tudo quanto fosse do gosto de uma plebe enfurecida contra pessoas que considera odiosas e inimigas.

8. E depois de serem conduzidos a praça pública e de serem julgados pelo tribuno e pelos magistrados da cidade em presença de toda a multidão, foram encerrados no cárcere até a chegada do governador.

9. Mais tarde conduziram-nos ante o governador. Como estes usou de toda sua crueldade contra nós, um dos irmãos, Vetio Epágato, que possuía em plenitude o amor a Deus e ao próximo e cuja conduta tinha sido tão estrita que, sendo ainda jovem, fez-se merecedor do testemunho do ancião Zacarias, já que havia caminhado irrepreensivelmente em todos os mandamentos e preceitos do Senhor, diligente em todo serviço ao próximo, com muito zelo com Deus e fervor de espírito, por ser de tal índole, não suportou que se procedesse contra nós com um juízo tão irracional. Fortemente indignado, pediu para ser também ele ouvido e defendeu, em favor dos irmãos, que entre nós nada há de ateu nem de ímpio.

10. Os que rodeavam o tribunal passaram a gritar contra ele - pois era homem importante -, e o juiz, não

[ 303 ]

Page 304: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tolerando a petição assim proposta por ele, queria unicamente saber se também era cristão. Como Vetio o confessasse com voz claríssima, também ele foi recebido nas fileiras dos mártires. Foi chamado consolador (316) dos cristãos, pois dentro de si tinha o consolador, o Espírito de Zacarias, o que havia mostrado com a plenitude de seu amor achar bom sair em defesa dos irmãos e expor sua própria vida, porque era e continua sendo genuíno discípulo de Cristo, que vai atrás do Cordeiro onde quer que este vá.

11. A partir daqui, os demais se dividem: aparecem claramente os preparados para dar testemunho, os que com todo seu ardor completavam a confissão do martírio; mas também se manifestaram os que não estavam dispostos, destreinados e até fracos, incapazes de aguentar a tensão de um grande combate. Destes uns dez abortaram. Grande foi a aflição e imensa a dor que nos causaram e grave o dano causado ao entusiasmo dos outros que não haviam sido presos com eles e que, apesar de estar sofrendo toda classe de horrores, contudo, assistiam os mártires e não os abandonaram.

12. Mas então todos ficamos muito aterrados ante a incerteza da confissão, não por temor aos castigos, mas porque víamos como distante o fim e temíamos que alguém sucumbisse.

[ 304 ]

Page 305: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

13. Mesmo assim, a cada dia detinham os que eram dignos de completar o número daqueles, tanto que juntaram todas as pessoas importantes das duas igrejas, graças às quais, sobretudo, tem importância os assuntos daqui.

14. Foram presos também alguns pagãos, criados dos nossos, quando o governador mandou que se buscassem todos os nossos. Estes, pelas insídias de Satanás, temendo os tormentos que viam padecer os santos e forçados a isto pelos soldados, acusaram-nos falsamente de ceias canibais, de promiscuidades edípicas e de tantas outras coisas que para nós não é lícito nem dizer nem pensar, nem mesmo crer que tais coisas tenham ocorrido entre os homens.

15. Quando este rumor se espalhou, todos se revoltaram como feras contra nós, tanto que, se a princípio alguns se comportaram com moderação por amizade, começaram então a mostrar-se muito hostis e raivosos contra nós. Estava se cumprindo o que dissera nosso Senhor: Virá um tempo em que todo aquele que vos matar pensará estar prestando culto a Deus (317).

16. Desde então os santos mártires suportaram castigos que excedem a toda descrição, enquanto Satanás se esforçava para arrancar-lhes também alguma palavra blasfema.

[ 305 ]

Page 306: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

315 Rm 8:18. 316 Pode ser traduzido também como "advogado". 317 Jo 16:2.

17. Toda a fúria da multidão, do governador e dos soldados abateu-se transbordante sobre o diácono Santos, de Viena, sobre Maturo, recém-batizado, mas nobre lutador, sobre Atalo, oriundo de Pérgamo e que sempre havia sido coluna e fundamento dos cristãos daqui, e sobre Blandina, por meio da qual Cristo demonstrou que o que entre os homens parece vulgar, disforme e facilmente desprezável, por parte de Deus é considerado digno de grande glória devido ao amor a Ele, amor que se mostra na força e que não se vangloria da aparência.

18. Efetivamente, enquanto todos nós estávamos temerosos e sua própria senhora segundo a carne - também ela uma de nossos mártires combatentes - temíamos que por fraqueza de seu corpo não tivesse forças para proclamar livremente sua confissão, Blandina viu-se cheia de uma força tão grande que extenuava e esgotava aqueles que, em turnos e de todas as maneiras, torturavam-na desde o amanhecer até o ocaso; eles mesmos confessavam que estavam vencidos, sem nada poder fazer com ela, e se admiravam de como podia manter-se com alento estando todo seu corpo dilacerado e aberto, e atestavam que um só tipo de suplício bastaria para tirar a vida, sem necessidade de tantos e tão terríveis.

[ 306 ]

Page 307: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

19. Mas a bem-aventurada mulher, como nobre atleta, rejuvenescia na confissão, e para ela era recuperação de forças, descanso e ausência de dor em meio aos acontecimentos o dizer: "Sou cristã, e nada de mal é feito entre nós!"

20. Também Santos suportou nobremente, além de toda medida humana, todos os maus-tratos que provêm dos homens. Os iníquos esperavam que pela persistência e magnitude dos tormentos ouviriam dele algo indevido, mas resistiu-lhes com tal firmeza, que não revelou nem seu próprio nome, nem de sua família, nem da cidade de onde vinha nem se era escravo ou se era livre, mas a tudo que lhe perguntavam respondia em latim: "Sou cristão!" Em lugar de seu nome, de sua cidade, de sua família e de tudo, isto é o que confessava sucessivamente, e nenhuma outra palavra ouviram dele os pagãos.

Lá pelos anos de 1995 eu fazia um programa chamado “Esperança aos povos” na radio Universal, na cidade de Santos e tinha um quadro em que contava histórias, lembro-me que esta história de Santos, Blandina e Maduro foi uma das mais impactantes, visto que muitos cristãos desconheciam.

21. Por esta razão, tanto o governador quanto os torturadores ensandeceram-se de tal maneira contra ele que, quando já não sabiam o que fazer-lhe, por último

[ 307 ]

Page 308: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

aplicaram-lhe placas de cobre em brasa aos membros mais delicados de seu corpo.

22. Estes certamente se queimaram, mas ele se manteve inflexível e firme, constante na confissão, borrifado e fortalecido pela fonte santa da água viva que brota das entranhas de Cristo (318).

23. Seu corpo atestava o ocorrido: todo ele era uma chaga, todo confusão, moído e tendo perdido toda forma humana; mas Cristo padecia nele e realizava grandes glórias anulando o adversário e mostrando, para exemplo dos demais, que nada há de temível onde está o amor do Pai, nem doloroso onde está a glória de Cristo.

24. Efetivamente, depois de alguns dias, aqueles malvados começaram novamente a torturar o mártir, pensando que poderiam vencê-lo se, estando suas carnes inchadas e inflamadas, lhe aplicassem os mesmos suplícios agora que nem sequer suportava o toque das mãos, ou então que, morrendo em meio aos tormentos, infundiria temor aos outros. Mas não somente nada disso aconteceu com ele, mas, contra o que todos pensavam, recuperou-se, e seu corpo se endireitou entre os tormentos que seguiram e recobrou sua forma original e o uso dos membros, de maneira que a segunda tortura foi para ele não um suplício, mas cura pela graça de Cristo.

25. E Biblida também, uma das que haviam renegado. O diabo já pensava que a havia devorado

[ 308 ]

Page 309: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

(319), mas querendo também condená-la por blasfêmia, conduziu-a à tortura e a forçava a declarar sobre nós aquelas ímpias calúnias, já seguro de sua fragilidade e covardia.

26. Mas ela, no tormenta, voltou a si e, por assim dizer, despertou de um sono profundo. Recordando então, graças àqueles castigos temporários, o castigo eterno no inferno (320), pôs-se pelo contrário, a replicar aos detratores e dizia: "Como poderiam estas pessoas comer uma criança se nem sequer lhes é permitido comer sangue de animais irracionais?" (321) E desde esse instante passou a confessar que também ela mesma era cristã, e foi incorporada à fila dos mártires.

318 Jo 7:38; 19:34; Ap 21:6. 319 1Pe 5:8. 320 Mt 25:46. 321 Alusão à norma apostólica de At 15:29, não implica que ainda estivesse vigente em Lion.

A questão de proibir comer sangue foi decisão temporal, uma vez que era algo altamente repugnante para os judeus, tratando-se de mandamento ritualístico da antiga aliança. Hoje não vejo a necessidade de nos guardar de comer sangue.

27. Anulados por Cristo os tormentos dos tiranos por meio da constância dos santos, o diabo pôs-se a imaginar outros recursos, o encerramento no pior e mais escuro lugar do cárcere, a distensão dos pés no cepo, separados até o quinto furo, e os demais suplícios que os

[ 309 ]

Page 310: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

funcionários irritados e endiabrados costumavam infligir aos presos, tanto que no cárcere a maior parte morreu asfixiada, ao menos quando o Senhor quis que assim morressem, mostrando sua própria glória.

28. Efetivamente, alguns que haviam sido cruelmente torturados até o ponto de parecer que não poderiam viver ainda que se lhes desse todo tipo de cuidados, permaneciam no cárcere, desprovidos, naturalmente, de toda assistência humana; mas fortalecidos pelo Senhor em seus corpos e em suas almas, animavam e consolavam os demais. Outros, em compensação, jovens e recém-detidos, cujos corpos não haviam sido torturados antes, não suportavam o peso do encerramento e morriam lá dentro.

29. O bem-aventurado Potino, a quem fora confiado o ministério do episcopado de Lion, passava já da idade de noventa anos e seu corpo estava fraco. Por causa desta sua debilidade corporal apenas conseguia respirar, mas por seu grande desejo do martírio (322), o ardor de seu espírito devolvia-lhe as forças. Também ele foi arrastado ao tribunal com o corpo desfazendo-se pela velhice e pela enfermidade, mas com sua alma conservada para que por ela Cristo triunfasse.

30. Levado pelos soldados ante o tribunal com acompanhamento das autoridades da cidade e de toda a

[ 310 ]

Page 311: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

plebe gritando-lhe toda classe de injúrias, como se ele mesmo fosse o Cristo, deu formoso testemunho.

31. Quando o governador perguntou-lhe quem era o Deus dos cristãos, disse: "Se fores digno, o conhecerás." Então arrastaram-no sem cuidados e sofreu diversas feridas; os que estavam perto faziam-lhe todo tipo de afronta com pés e mãos, sem o menor respeito por sua idade, e os que estavam distantes atiravam cada um o que tivesse à mão, e todos criam errar gravemente e ser uns ímpios se omitissem alguma insolência contra ele, pois pensavam que assim vingavam seus deuses. Ele, apenas respirando, foi jogado no cárcere, e ao fim de alguns dias entregou sua alma.

32. Foi então que teve lugar uma grande dispensação de Deus e se manifestou a imensa misericórdia de Jesus, como raramente havia ocorrido na comunidade dos irmãos, mas muito de acordo com o modo de Cristo.

33. Efetivamente, os que haviam renegado nas primeiras detenções foram também encarcerados e compartilhavam dos mesmos horrores, já que nesta ocasião de nada lhes serviu sua apostasia. Os que confessavam o que na verdade eram, eram encerrados como cristãos, sem nenhuma outra acusação; em compensação, os outros eram presos como homicidas e

[ 311 ]

Page 312: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

impuros e castigavam-nos em dobro do que aos demais (323).

34. E assim os primeiros eram aliviados pela alegria do martírio, pela esperança do prometido, pelo amor de Cristo e o Espírito do Pai, enquanto que para estes outros, a consciência os atormentava grandemente, ao ponto de que, ao morrerem, podia-se reconhecer seu aspecto entre todos.

35. De fato, enquanto uns avançavam prazerosamente, com um misto de glória e graça abundantes em seus rostos, de modo que até suas correntes os cingiam como esplêndido adorno, como uma noiva ataviada com multicoloridos fios de ouro, e ao mesmo tempo espalhavam o suave odor de Cristo a ponto de fazer os outros pensarem que tinham-se ungido com perfumes mundanos, os outros, pelo contrário, faziam-no sombrios, cabisbaixos, disformes e cheios de rancor, e como se fosse pouco, até os pagãos tachavam-nos de ignóbeis e covardes: levavam a acusação de homicidas além de terem perdido seu nome venerabilíssimo, glorioso e vivificador. Quando os demais viram isto, reafirmaram-se, e os que iam sendo detidos confessavam já sem vacilação e sem ter um único pensamento de cálculo diabólico."

36. Depois de juntar a isto algumas coisas intermediárias continuam: "Além disto, os gêneros de

[ 312 ]

Page 313: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

morte dos mártires eram muito variados, pois com flores de toda espécie trançavam uma só coroa para oferecê-la ao Pai, e assim era necessário que aqueles generosos atletas, depois de ter sustentado uma luta variada e ter vencido em toda a linha, recebessem a grande coroa da imortalidade (324).

37. Assim pois, Maturo e Santos, assim como Blandina e Atalo, foram conduzidos às feras, ao local público e para espetáculo comum da inumanidade dos pagãos, pois o dia de luta de feras deu-se precisamente por causa dos nossos.

322 Martírio significa originalmente "testemunho". 323 Eram considerados criminosos comuns. 324 1 Co 9:25.

38. No anfiteatro, Maturo e Santos passaram novamente por todo tipo de tormentos como se antes não tivessem padecido absolutamente nada, ou melhor, como atletas que já venceram os adversários em muitos combates e que seguem lutando pela mesma coroa. De novo sofreram as passadas dos chicotes que ali eram de costume, os puxões das feras e tudo o que o povo enlouquecido, cada qual de seu lugar, gritava e ordenava. E como arremate de tudo, a cadeira de ferro, de onde os corpos, ao serem assados, lançavam ao público um odor de carne queimada.

[ 313 ]

Page 314: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

39. Mas estes, nem com tudo isto recuavam, mas até aumentava-se-lhes o frenesi querendo vencer a constância daqueles. Mas nem assim conseguiram ouvir de Santos outra coisa além da frase de confissão que desde o começo costumava repetir.

40. Assim pois, os mártires, que depois de atravessar o grande combate seguiam com muita vida foram por fim sacrificados (325), convertidos naquele dia em espetáculo para o mundo em substituição à variada série de combates de gladiadores.

41. Blandina, por outro lado, foi pendurada num madeiro e ficou exposta às feras, que se lançavam sobre ela. Apenas por vê-la pendendo em forma de cruz e com sua oração contínua, infundia-se muito ânimo aos outros combatentes, que neste combate viam com seus olhos corpóreos, através de sua irmã, aquele que por eles próprios havia sido crucificado. E assim ela persuadia aos que crêem n'Ele de que todo aquele que padece pela glória de Cristo entra em comunhão perpétua com o Deus vivo.

42. Por não ter sido tocada então por nenhuma fera, desceram-na do madeiro e de novo levaram-na ao cárcere, guardando-a para outro combate; assim, depois de vencer em mais lutas, por um lado tornaria implacável a condenação da serpente tortuosa (326), e por outro animaria seus irmãos; ela. Pequena, frágil e desprezada,

[ 314 ]

Page 315: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

mas revestida do grande e invencível atleta, Cristo, bateria o adversário em sucessivos combates, e pelo combate seria cingida com a coroa da incorruptibilidade.

43. Atalo, por sua vez, também foi reclamado com grande empenho pela plebe (pois tinha grande renome). Entrou já como lutador treinado, graças a sua boa consciência, pois havia-se exercitado sinceramente na disciplina cristã e sempre havia sido entre nós uma testemunha da verdade.

44. Conduziram-no dando a volta ao anfiteatro, precedido de um cartaz no qual estava escrito em latim "Este é Atalo, o cristão" (327), enquanto o público se inflamava terrivelmente contra ele. Ao saber o governador que ele era romano, mandou que o levassem com os demais que estavam no cárcere, acerca dos quais escreveu uma carta ao imperador e ficou esperando sua resposta.

45. O tempo que passou não foi ocioso nem estéril para eles, mas por sua paciência manifestou-se a imensa misericórdia de Cristo: por viverem eles, reviviam os mortos, e por serem mártires, outorgavam a graça aos que não o eram; assim, grande foi a alegria da Virgem Mãe ao recuperar vivos os que haviam abortado mortos (328).

46. Efetivamente, por meio deles, a maioria dos que haviam renegado voltavam sobre seus passos e de

[ 315 ]

Page 316: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

novo eram concebidos, reanimavam-se e aprendiam a confessar, e já com vida e fortalecidos, aproximavam-se do tribunal para serem novamente interrogados pelo governador, enquanto Deus, que não quer a morte do pecador (329), preferindo o arrependimento, suavizava-lhes o caminho.

47. De fato, o imperador dispunha em seu edito que uns fossem degolados e os outros, contanto que renegassem, absolvidos (330). Ao iniciar-se a grande festa local (comparece a ela grande multidão de pessoas de todas as raças), o governador fez levar novamente ao tribunal os bem-aventurados, como forma de teatro e de espetáculo para as multidões. Por isso interrogou-os novamente, e aos que pareciam ter título de cidadãos romanos, fazia decapitar (331), enquanto os demais eram mandados às feras.

325 Provavelmente pelo confector. 326 Is 27:1. 327 Cartaz obrigatório para condenados que eram cidadãos romanos, mas a mente do redator pode estar mais próxima ao cartaz sobre a cruz de Jesus (Mt 27:37; Mc 15:26; Lc 23:38; Jo 19:19). 328 A "Virgem Mãe" é a Igreja. Eusébio usa esta analogia com respeito a Igreja, pois ainda não havia se desenvolvido a heresia católica romana de adoração a mãe de Jesus. 329 Ez 18:23; 33:11; 2 Pe 3:9. 330 Marco Aurélio na verdade atém-se em sua resposta à regra de Trajano em sua carta a Plínio. 331 Atalo seria uma exceção.

[ 316 ]

Page 317: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

48. Mas Cristo foi grandemente glorificado naqueles que primeiramente haviam renegado e que agora, contra o que poderiam esperar os pagãos, confessavam sua fé. Estes, na verdade, eram interrogados privadamente, como para serem em seguida postos em liberdade, mas ao confessar sua fé foram sendo juntados à fila dos mártires. Ficaram fora, porém, os que nunca tiveram nem um vestígio de fé, nem o sentido da vestimenta nupcial (332) nem ideia do temor a Deus, mas que com sua maneira de viver infamavam o caminho (333), ou seja, os filhos da perdição.

49. Por outro lado, todos os demais foram incorporados à Igreja. Quando estavam sendo interrogados, um tal Alexandre, frígio de nascimento e médico por profissão, que tinha vivido muitos anos nas Gálias e era conhecido de quase todos por seu amor a Deus e pela franqueza de seu falar (pois também participava do carisma apostólico), achava-se de pé junto ao tribunal e com gestos animava-os à confissão, parecendo aos que rodeavam a tribuna como se tivesse dores de parto.

50. A plebe, enfurecendo-se porque novamente confessavam aqueles que primeiro tinham renegado, pôs-se a gritar contra Alexandre, considerando-o causador de tudo, e o governador, notando-o, perguntou-lhe quem era, e como respondesse: "Um cristão", encolerizou-se e condenou-o às feras. No dia seguinte entrou na arena

[ 317 ]

Page 318: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

junto com Atalo, já que o governador, para agradar a plebe, entregou novamente Atalo às feras.

A democracia é um sistema perigoso, porque você deixa uma nação ser guiado pela vontade da maioria, sendo que a maioria, a plebe e a multidão quase sempre são arrebatadas por impulsos e desejos malignos. Vejam aqui o governador condenando a morte inocentes somente para agradar a turba. É comum em muitos lugares do mundo, uma pessoas prestes a cometer suicídio sobe em um prédio ou torre ameaçando se jogar e logo se juntam estes infames e começam a gritar: pula, pula! A voz do povo é a voz do Diabo.

51. Os que passaram por todos os instrumentos inventados para torturar no anfiteatro e sustentaram um grande combate, também eles foram ao final sacrificados. Alexandre nem soluçou nem murmurou um mínimo sequer, mas em seu coração conversava com Deus.

52. Atalo, por outro lado, quando foi posto sobre a cadeira de ferro e começou a queimar-se e de seu corpo desprendia-se o cheiro de carne queimada, disse dirigindo-se em latim à multidão: "Estais vendo! Isto é comer homens, o que estais fazendo. Nós, por outro lado, nem comemos homens nem fazemos nada de mau." E como lhe perguntassem que nome tem Deus, respondeu: "Deus não tem nome como um homem."

[ 318 ]

Page 319: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Confissão carente de teologia, pois Deus tem nome, nome que aparece quase sete mil vezes no Antigo Testamento: Javé. Mas o que faltava de conhecimento dos manuscritos antigos, sobra de fé. Até hoje, os tradutores da Bíblia por razões diabólicas escondem o nome de Deus tão exaustivamente citado no Antigo Testamento.

53. Depois de tudo isto, no último dia de lutas de gladiadores, levaram novamente Blandina junto com Pôntico, rapaz de uns quinze anos. Cada dia tinham sido apresentados para que vissem as torturas dos outros. Começaram obrigando-os a jurar pelos ídolos dos pagãos; mas como eles permaneciam firmes e até os menosprezaram, a multidão ficou enfurecida contra eles ao ponto de não ter pena da idade do rapaz nem respeito pelo sexo feminino.

54. Entregaram-nos a todos os horrores e fizeram-nos percorrer todo o ciclo de torturas, uma após a outra, tentando forçá-los a jurar, sem que o conseguissem. Efetivamente, Pôntico, animado por sua irmã tanto que até os pagãos podiam ver que era ela que o exortava e confortava, depois de sofrer generosamente todo tipo de tormentos, entregou o espírito.

55. E a bem-aventurada Blandina, a última de todos, como nobre mãe que infundiu ânimo a seus filhos e os enviou adiante vitoriosos para seu rei, depois de

[ 319 ]

Page 320: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

percorrer também ela todos os combates de seus filhos, voava para eles alegre e prazerosa da partida, como se fosse convidada a um banquete de bodas e não lançada às feras.

56. Depois dos açoites, depois da feras e depois das chamas, por último atiraram-na a um touro. Lançada ao alto longo tempo pelo animal, insensível já ao que lhe acontecia por sua esperança mantida em tudo o que havia crido e por sua conversação com Cristo, também ela foi sacrificada, enquanto os próprios pagãos confessavam que jamais entre eles uma mulher havia padecido tantos e tais suplícios.

É horrível saber que em todos os tempos os maus tiveram prazer em assistir a morte dos justos. Como policial uma vez interroguei um ladrão assassino de 15 anos que matou um taxista de 60 anos para roubar-lhe, e depois de atirar, o menor confessou para mim que não foi embora, mas ficou assistindo a morte, pois queria ver como um homem morre, o maldito filho do demônio disse que ficou vendo o brilho dos olhos do senhor sumindo, só depois foi embora da cena do crime.

332 Mt 22:11-13. 333 At 19:9; 2 Pe 2:2.

57. Mas nem assim fartou-se sua loucura e crueldade para com os santos, porque, incitada por uma fera selvagem, aquela tribo selvagem e bárbara não podia

[ 320 ]

Page 321: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

calar-se facilmente. Sua cruel insolência tomou outro rumo particular: fartar-se nos cadáveres.

58. De fato, não lhes causava a menor vergonha terem sido vencidos, já que não raciocinavam como homens, mas inflamava-se ainda mais sua cólera, como a de uma fera, e assim, tanto o governador como a plebe demonstravam ter o mesmo ódio injusto contra nós, para que se cumprisse a Escritura: que o injusto continue em sua injustiça, e que o justo continue sendo justificado (334).

59. Efetivamente, os que haviam perecido asfixiados no cárcere eram lançados aos cães, sendo vigiados noite e dia para evitar que algum dos nossos lhes fizesse as honras fúnebres. Também então expuseram os restos deixados pelas feras e pelo fogo, em parte despedaçados e em parte carbonizados, e durante alguns dias seguidos custodiaram com guarda militar as cabeças dos outros, junto com seus troncos, assim mesmo insepultos.

60. E sobre estes restos alguns resmungavam e rangiam os dentes, buscando tomar deles alguma vingança suplementar; outros riam-se e zombavam, ao mesmo tempo que engrandeciam seus ídolos, a quem atribuíam o castigos daqueles, e os mais moderados e que pareciam compadecer-se um pouco repetiam insultos

[ 321 ]

Page 322: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

dizendo: "Onde está seu Deus e de que lhes valeu sua religião, a qual preferiram inclusive a sua própria vida?"

61. Assim variada era a atitude daqueles; nós, por outro lado, afundávamos em grande dor porque não podíamos enterrar os corpos, já que nem a noite nos ajudava nisto, nem o dinheiro conseguia persuadir nem as súplicas abrandar, mas por todos os meios os custodiavam, como se no fato de que os corpos não receberem sepultura eles tivessem grande vantagem."

É difícil entender a mente insana de pessoas que têm prazer em matar judeus e cristãos simplesmente porque estes creem em um único Deus. É verdade que temos conceitos diferentes sobre Deus, mesmo entre nós, os cristãos, há divergências doutrinarias sobre o caráter e a pessoa de Deus, mas chegar ao ponto de matar e torturar aqueles que não concordamos em ideias é demais.

62. Em continuação a isto, depois de algumas outras coisas, dizem: "Assim pois, os corpos dos mártires, depois de serem expostos ao escárnio de todos os modos possíveis e de ficarem às intempéries durante seis dias, foram logo queimados e reduzidos a cinzas, que aqueles ímpios lançaram ao rio Ródano, que passa perto dali, para que nem sequer suas relíquias ficassem ainda visíveis sobre a terra.

[ 322 ]

Page 323: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

63. E faziam isto pensando que poderiam vencer Deus e arrebatar daqueles seu novo nascimento, com a finalidade de que, como eles diziam, "nem sequer esperança tenham de ressurreição; persuadidos dela, estão introduzindo uma religião estranha e nova, desprezam os tormentos e vêm dispostos e alegres à morte: vejamos agora se vão ressuscitar e se seu Deus pode socorrê-los e arrancá-los de nossas mãos".

Não resta dúvida que Deus permite que seus santos servos sejam atrocidados pelos ímpios, mas essa leve e momentânea derrota não reflete a nossa condição eterna. Alias estes sofrimentos terrenos não é nada em comparação com a lória eterna ao lado de Deus.

II [De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que haviam falhado na perseguição]

1. Isto foi o que, sob o mencionado imperador, aconteceu às igrejas de Cristo, e partindo disto pode-se também conjeturar num cálculo razoável o que ocorreu nas demais províncias; será conveniente juntar ao que foi dito mais algumas passagens do mesmo documento, nas quais se descreve a suavidade e humanidade dos citados mártires com estas mesmas palavras:

2. "Os quais, no zelo e imitação de Cristo, que subsistindo em forma de Deus não considerou usurpação

[ 323 ]

Page 324: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

o ser igual a Deus (335), chegaram a tão alto grau que, apesar de sua glória e de terem dado testemunho, não uma vez ou duas, mas muitas vezes mais, e de terem sido retirados das feras e de estarem cobertos por toda parte de queimaduras, equimoses e feridas, nem eles próprios se proclamaram mártires nem a nós mesmos permitiram que os chamássemos por este nome; mas antes, se algum de nós por carta ou por palavra se dirigia a eles como a mártires, repreendiam-no severamente.

3. E compraziam-se em ceder o título do martírio a Cristo, o fiel e verdadeiro mártir, primogênito dos mortos e autor da vida de Deus, e recordando os mártires que já haviam partido, inclusive diziam: 'Aqueles sim é que são mártires, posto que Cristo teve por bem levá-los consigo em sua confissão e selou seus martírios com suas mortes; nós porém somos uns confessores medianos e sem expressão'; e com lágrimas exortavam os irmãos pedindo-lhes que se fizessem assíduas orações para lograr sua consumação.

4. E com seu trabalho demonstravam a força de seu martírio, dirigindo a palavra com inteira liberdade aos pagãos, e manifestavam sua nobreza mediante sua paciência, sua integridade e sua impavidez; mas o título de mártires dado pelos irmãos eles rechaçavam, repletos do temor de Deus."

334 Ap 22:11. 335 Fp 2:6.

[ 324 ]

Page 325: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. E logo, pouco mais adiante, dizem: "Humilhavam-se sob a mão poderosa que agora os tem grandemente exaltados. E então defendiam a todos e não condenavam a ninguém, desatavam a todos e não atavam ninguém, e como Estevão, o mártir perfeito, rogavam pelos que lhes infligiam os tormentos: Senhor, não lhes imputes este pecado. E se rogava pelos que o apedrejavam, quanto mais não faria pelos irmãos?"

6. E novamente, depois de outros detalhes, dizem: "Porque este foi para eles seu maior combate contra ele (336), pela verdade de seu amor, para que a besta se engasgasse e vomitasse vivos os que primeiro pensava ter engolido. Efetivamente, não se mostraram arrogantes frente aos caídos, mas sim, com entranhas maternas, acudiam em socorro dos necessitados com sua própria abundância e, derramando muitas lágrimas por eles ao Pai, pediam vida e para eles a davam.

7. Também a repartiam aos demais quando, vencedores em tudo, marchavam para Deus. Sempre amaram a paz, e em paz emigraram para Deus recomendando-nos a paz, não deixando para trás trabalhos para a mãe (337) nem revolta e guerra para os irmãos, mas alegria, paz, concórdia e amor."

8. O dito sobre o amor daqueles bem-aventurados para com os irmãos caídos poderá ser útil, por causa da

[ 325 ]

Page 326: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

atitude desumana e inclemente daqueles que, depois disto, tornaram-se implacáveis nos membros de Cristo.

III [Que aparição teve em sonhos o mártir Atalo]

1. O mesmo escrito sobre os citados mártires contém ainda outro relato digno de menção e não haverá inconveniente em que eu o proponha ao conhecimento dos leitores. É assim:

2. Alcibíades, um deles, levava uma vida austera até a miséria. A princípio não recebia nada em absoluto, nada ingerindo além de pão e água. Inclusive no cárcere tratava de seguir o mesmo regime. Mas a Atalo, depois de seu primeiro combate travado no anfiteatro, foi revelado que Alcibíades não fazia bem não usando das criaturas de Deus e deixando para os outros um exemplo de escândalo (338).

3. Alcibíades, persuadido, começou a tomar de tudo sem reservas e dava graças a Deus (339). A graça de Deus não se descuidava deles, mas antes, o Espírito Santo era seu conselheiro. E baste assim destes casos.

4. Como foi justamente então que os partidários de Montano, Alcibíades (340) e Teodoto, começaram a dar a conhecer entre muitos na Frígia sua opinião sobre a

[ 326 ]

Page 327: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

profecia (pois os muitos outros milagres do carisma de Deus, que até então ainda vinham se realizando pelas diversas igrejas, produziam em muitos a crença de que também aqueles eram profetas), havendo surgido discrepâncias por sua causa, novamente os irmãos da Gália formularam seu próprio juízo, precavido e inteiramente ortodoxo, sobre eles, expondo também diferentes cartas dos mártires consumados entre eles, cartas que, estando ainda no cárcere, haviam escrito aos irmãos da Frígia, e não somente a eles, mas também a Eleutério, então bispo de Roma, como embaixadores em favor da paz das igrejas.

IV [De como os mártires recomendavam Irineu em sua carta]

1. Os mesmos mártires recomendavam Irineu, que já então era presbítero da igreja de Lion (341), ao mencionado bispo de Roma, dando sobre ele numerosos testemunhos, como demonstram as palavras seguintes:

336 Devido ao corte da citação, não aparece a quem se refere, mas trata-se sem dúvida do demônio. 337 A Igreja. 338 O estilo de vida de Alcibíades não indica que fosse necessariamente um montanista. 339 1 Tm 4:3-4. 340 Não o mesmo Alcibíades mencionado acima, mas um companheiro de Montano. 341 Entre 174 e 178.

[ 327 ]

Page 328: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. "De novo e sempre rogamos que gozes de saúde em Deus, pai Eleutério. Estimulamos nosso irmão e companheiro Irineu para que te leve esta carta, e te rogamos que o tenhas por recomendado, zelador como é do testamento de Cristo, porque, sabendo que um cargo confere justiça a alguém, desde o primeiro momento o recomendaríamos como presbítero da Igreja, o que precisamente é."

3. Que necessidade há de transcrever a lista dos mártires, assim dos que morreram por decapitação como dos que foram lançados como pasto para as feras, como também dos que morreram no cárcere e o número dos confessores sobreviventes até aquele momento? Para quem goste, será fácil repassar detalhadamente estas listas se tomar em mãos o escrito que, como já disse, encontra-se recolhido em nossa Recompilação de martírios. Mas isto foi o ocorrido sob Antonino (342).

V [De como Deus atendeu as orações dos nossos e fez chover do céu para o imperador Marco Aurélio]

1. E tradição que o irmão deste, Marco Aurélio César, estando em ordem de batalha frente aos germânicos e aos sármatas, passava grande dificuldade por causa da sede que castigava seu exército. Mas os soldados que serviam sob a assim chamada legião de Melitene (343) - que por sua fé subsiste desde então até

[ 328 ]

Page 329: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

hoje -, formados frente ao inimigo, puseram seus joelhos no chão, segundo nosso familiar costume de orar, e dirigiram suas súplicas a Deus.

2. Tal espetáculo pareceu, na verdade, muito estranho aos inimigos, mas outro documento conta que no mesmo instante foram surpreendidos por outro espetáculo ainda mais estranho: um furacão punha em fuga e aniquilava os inimigos, enquanto que a chuva caía sobre o exército dos que haviam invocado o socorro divino e o reanimava quando já estava todo ele a ponto de perecer pela sede.

Haviam cristãos no exército, isto corrobora o ensino de João Batista quando alguns soldados vieram para batizar-se. O cristão pode fazer parte da força policial e militar da nação a que pertence.

3. O relato conserva-se inclusive entre os escritores alheios a nossa doutrina que se preocuparam em escrever sobre aqueles tempos. Também os nossos o dão a conhecer. No entanto, os historiadores de fora, alheios a nossa fé, expõe o prodígio mas não confessam que este se realizou pelas orações dos nossos; já os nossos, como amantes da verdade, transmitem o ocorrido com simplicidade e sem malícia.

4. Destes poderia ser também Apolinário, que afirma que a legião autora do prodígio por sua oração recebeu do imperador, a partir de então, um nome

[ 329 ]

Page 330: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

adequado ao sucedido, que em língua latina se diz Fulmínea.

5. Testemunha destes fatos, digno de crédito, poderia também ser Tertuliano, que dirigiu ao senado a Apologia latina em favor da fé, da qual fizemos menção mais acima (344), e confirma o relato com uma demonstração mais ampla e mais clara.

6. Escreve pois também ele e diz que até agora conservam-se cartas de Marco, o imperador mais sábio, nas quais ele mesmo atesta que, estando seu exército a ponto de perecer na Germania e por falta de água, salvou-se pelas orações dos cristãos. E segue dizendo Tertuliano que o imperador ameaçou inclusive com a pena de morte aos que tentassem acusar-nos.

7. A tudo isso o mesmo autor junta o seguinte: "Que tipo de leis são estas então, ímpias, injustas e cruéis, seguidas somente contra nós? Vespasiano não as observou, apesar de ter vencido os judeus; Trajano teve-as em parte como nada, ao impedir que se perseguissem os cristãos, e Adriano, apesar de ocupar-se com muita curiosidade com muitas coisas, não as sancionou, como tampouco o que é chamado Pio." Mas isto, que cada um o deixe onde quiser.

8. Nós, por nossa parte, voltemos ao fio do que se segue. Quando Potino, com seus noventa anos cumpridos, morreu em companhia dos mártires da Gália,

[ 330 ]

Page 331: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Irineu recebeu em sucessão o episcopado da igreja de Lion, que Potino havia regido. Sabemos que ele, em sua juventude, foi ouvinte de Policarpo.

342 Marco Aurélio. 343 Importante cidade da Capadócia, sede da XII legião. Não é estranho que tivesse em suas fileiras bom número de cristãos, ainda que não fossem a maioria. 344 Vide II:2:4; 25:4; III:33:3. O Apologeticum. não foi dirigido ao senado, mas aos governadores.

9. No livro terceiro de sua obra Contra as heresias expõe a sucessão dos bispos de Roma até Eleutério, de cuja época também investigamos os acontecimentos, e estabelece a lista como se, de fato, sua obra fosse composta nos tempos deste; escreve como segue:

VI [Lista dos bispos de Roma] 1. "Os bem-aventurados apóstolos, depois de

haverem fundado e edificado a Igreja, puseram o ministério do episcopado em mãos de Lino. Este Lino é mencionado por Paulo em sua carta a Timóteo (345).

2. Sucede-o Anacleto, e depois deste, em terceiro lugar a partir dos apóstolos, obtém o episcopado Clemente, que também havia visto os bem-aventurados apóstolos e tratado com eles, e tinha ainda ressoando-lhe nos ouvidos a pregação dos apóstolos e diante dos olhos sua tradição. E não apenas ele, porque então ainda

[ 331 ]

Page 332: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

sobreviviam muitos que haviam sido instruídos pelos apóstolos.

3. Quando nos tempos deste Clemente surgiu entre os irmãos de Corinto uma não pequena dissensão, a igreja de Roma escreveu aos Coríntios uma carta importantíssima tentando reconciliá-los na paz e renovar sua fé e a tradição que tinham recebido dos apóstolos." E depois de breve espaço diz:

4. "A este Clemente sucede Evaristo, e a Evaristo, Alexandre; depois é instituído Sixto, o sexto portanto a partir dos apóstolos; e depois deste, Telésforo, que também sofreu gloriosamente o martírio; logo Higinio; depois Pio, e depois deste, Aniceto; havendo Sotero sucedido a Aniceto, agora é Eleutério que ocupa o cargo do episcopado, em décimo segundo lugar a partir dos apóstolos.

5. Pela mesma ordem e com a mesma sucessão chegaram até nós a tradição e a pregação da verdade que procederam dos apóstolos na Igreja.

VII [De como inclusive até aqueles tempos realizavam-se por meio dos fiéis grandiosos milagres]

1. Irineu, coincidindo com as narrações que discutimos anteriormente nos livros que, em número de

[ 332 ]

Page 333: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

cinco, intitulou Refutação e destruição da falsamente chamada gnosis, esboça também estas coisas. No livro segundo da mesma obra assinala que, em algumas igrejas, persistiram inclusive até ele manifestações do maravilhoso poder divino. Ele o diz com estas palavras:

2. "Muito lhes falta para ressuscitar um morto (346), como fizeram o Senhor e os apóstolos mediante a oração e como se deu na comunidade de irmãos muitas vezes: por causa da necessidade, a igreja toda do lugar estava rogando com jejuns e repetidas súplicas, e o espírito do morto voltou, e o homem recebeu o favor pela graça das orações dos santos." E de novo, depois de outras coisas, diz:

3. "Mas se chegam a dizer que o Senhor fez tais prodígios apenas em aparência, então os faremos recorrer aos escritos proféticos e por estes lhes demonstraremos que assim está previsto sobre Ele, e que assim sucedeu com segurança e que somente Ele é o Filho de Deus. Por isso, também em seu nome os que são verdadeiramente seus discípulos recebem d'Ele a graça e a utilizaram em benefício dos demais homens, segundo o dom que cada um recebeu d'Ele (347).

4. Uns, efetivamente, expulsam firme e verdadeiramente os demônios, de modo que muitas vezes aqueles mesmos que foram purificados dos maus espíritos creem e estão na Igreja; outros têm

[ 333 ]

Page 334: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

conhecimento antecipado do porvir, assim como visões e declarações proféticas; outros ainda, curam os enfermos mediante a imposição das mãos e os restituem sãos; mais ainda, como dissemos, inclusive mortos foram ressuscitados e permaneceram conosco muitos anos. E para que mais?

5. Não é possível dizer o número de graças que por todo o mundo a Igreja recebeu de Deus em nome de Jesus Cristo crucificado sob Pôncio Pilatos e que cada dia utiliza em benefício dos pagãos, sem nunca enganar ninguém nem despojá-lo de seu dinheiro, porque gratuitamente o recebeu de Deus e gratuitamente o serve." 6. E em outro lugar escreve o mesmo: "Assim como também ouvimos que há muitos irmãos na Igreja que têm carismas proféticos e que por meio do Espírito falam em todo tipo de línguas, que põe a descoberto os segredos dos homens quando é proveitoso e que explicam os mistérios de Deus." Isto é o que há sobre a permanência dos diferentes carismas até os tempos mencionados entre os que deles eram dignos.

345 2 Tm 4:21. 346 Aos seguidores de Simão e Carpócrates. 347 Ef 4:7.

VIII [De como Irineu menciona as diversas Escrituras]

[ 334 ]

Page 335: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Posto que ao dar início a esta obra (348) prometemos citar oportunamente as palavras dos antigos presbíteros e escritores eclesiásticos, nas quais nos transmitiram por escrito as tradições chegadas até eles sobre as Escrituras canônicas, e como Irineu era um destes, citemos também suas palavras;

2. e em primeiro lugar as que se referem aos sagrados evangelhos; são as seguintes: "Mateus publicou entre os hebreus, em sua própria língua, um Evangelho também escrito (349), enquanto Pedro e Paulo estavam em Roma evangelizando e lançando os fundamentos da Igreja.

3. "Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito, também ele, o que Pedro havia pregado. E Lucas, por sua parte, o seguidor de Paulo, colocou em livro o Evangelho que este havia pregado.

4. Finalmente João, o discípulo do Senhor, o que havia se reclinado sobre seu peito, também ele publicou o Evangelho, enquanto morava em Éfeso da Ásia."

5. Isto é o que diz o livro terceiro antes mencionado da dita obra, mas no quinto expressa-se acerca do Apocalipse de João e do número do nome do anticristo (350) como segue: "Sendo isto assim e encontrando-se este número em todas as boas e antigas cópias, e atestando-o aqueles mesmos que viram João

[ 335 ]

Page 336: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

face a face, e visto que a razão nos ensina que o número do nome da besta aparece manifesto segundo o cálculo dos gregos por meio das letras que nele há..."

6. E um pouco mais abaixo segue dizendo sobre o mesmo: "Nós pois, não nos arrisquemos a manifestarmo-nos de maneira segura sobre o nome do anticristo, porque, se houvesse sido necessário na presente ocasião proclamar abertamente seu nome, ter-se-ia feito por meio daquele que também tinha visto o Apocalipse, já que não faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa geração, ao final do império de Domiciano."

7. Isto é o que o citado autor refere acerca do Apocalipse, mas menciona também a primeira carta de João ao apresentar numerosos testemunhos tirados dela, assim como da primeira de Pedro; e não apenas conhece, mas também aceita (351) o escrito do Pastor quando diz: "Porque bem diz a Escritura: O primeiro de tudo, crê que há um só Deus, o que criou e ordenou tudo, etc."

8. E até utiliza algumas sentenças tiradas da Sabedoria de Salomão, dizendo mais ou menos: "Visão de Deus que produz incorrupção; e a incorrupção faz estar perto de Deus", e menciona as Memórias de certo presbítero apostólico, sobre cujo nome silenciou, e cita suas Explicações das divinas Escrituras.

[ 336 ]

Page 337: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

9. Faz menção ainda ao mártir Justino e a Inácio, utilizando uma vez mais testemunhos tirados das obras escritas por eles, e promete refutar ele mesmo, com trabalho próprio, a Márcion, partindo de seus escritos.

348 Vide I:I:1;III:III: 1-3. 349 Supõe-se as duas formas: oral e escrita. 350 Ap 13:18. 351 i.e. aceita-o entre as Escrituras canônicas.

10. E quanto à tradução das Escrituras inspiradas realizada pelos Setenta, ouve o que escreve textualmente: "Deus pois fez-se homem, e o Senhor mesmo nos salvou, depois de dar-nos o sinal da Virgem, mas não como dizem alguns de agora que se atrevem a traduzir a Escritura: Eis aqui que a jovem conceberá em seu ventre e dará à luz um filho (352), como traduziram Teodósio, o de Éfeso, e Áquila, o do Ponto, ambos judeus prosélitos, aos que seguem os ebionitas quando dizem que Ele nasceu de José."

11. Depois de um breve espaço, acrescenta ao dito: "Efetivamente, antes que os romanos fizessem prevalecer seu governo e quando os macedônios ainda dominavam a Ásia, Ptolomeu, filho de Lagos, ambicionando adornar a biblioteca por ele organizada em Alexandria com as obras de todos os homens, ao menos as boas, pediu aos de Jerusalém para ter traduzidas em língua grega suas Escrituras.

[ 337 ]

Page 338: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

12. Eles, que então ainda estavam submetidos aos macedônios, enviaram a Ptolomeu setenta anciãos, os mais versados dentre eles nas escrituras e em ambas as línguas. Deus fazia precisamente o que queria.

13. Ptolomeu, querendo testá-los separadamente e evitando que se pusessem de acordo para ocultar por meio da tradução o que há de verdade nas Escrituras, separou-os uns dos outros e ordenou que escrevessem a mesma tradução, e assim fez com todos os livros.

14. Mas logo que se reuniram junto a Ptolomeu e cada um comparou sua própria tradução, Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas como verdadeiramente divinas: todos haviam proclamado as mesmas coisas com as mesmas expressões e os mesmos nomes, desde o começo até o fim, de forma que até os pagãos ali presentes reconheceram que as Escrituras foram traduzidas sob a inspiração de Deus.

15. E não há que estranhar que Deus fizesse isto, porque foi Ele que, havendo sido destruídas as Escrituras no cativeiro do povo sob Nabucodonosor e tendo os judeus regressado a seu país depois de setenta anos, logo, nos tempo de Artaxerxes, rei dos persas, inspirou o sacerdote Esdras, da tribo de Levi, a refazer todas as palavras dos profetas que o haviam precedido e restituir ao povo a legislação dada por meio de Moisés." Tudo isto diz Irineu.

[ 338 ]

Page 339: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

IX [Os que foram bispos sob Cômodo]

1. Tendo-se mantido Antonino no império por dezenove anos, Cômodo recebe o principado. No primeiro ano deste e depois de Agripino ter cumprido o ministério pelo espaço de doze anos, é Juliano que assume o cargo do episcopado das igrejas de Alexandria.

X [De Panteno, o filósofo] 1. Naquele tempo a escola dos fiéis dali era

dirigida por um varão celebérrimo por sua instrução, cujo nome era Panteno. Existia entre eles, por costume antigo, uma escola das sagradas letras. Esta escola continua prolongando-se até nós e, pelo que ficamos sabendo, é formada por homens eloquentes e estudiosos das coisas divinas. Mas uma tradição afirma que entre os daquela época brilhava sobremaneira o mencionado Panteno. E procedia da escola filosófica dos chamados estóicos!

2. Conta-se pois, que demonstrou um zelo tão grande pela doutrina divina com sua ardente disposição de ânimo, que inclusive foi proclamado arauto do Evangelho de Cristo para os pagãos do Oriente e enviado até as terras Índias (353). Porque havia, sim, havia até aquele tempo ainda numerosos evangelistas da doutrina, cuja preocupação era colocar à disposição seu inspirado

[ 339 ]

Page 340: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

zelo de imitação dos apóstolos para crescimento e edificação da doutrina divina.

352 Os Setenta traduzem "partenas" (virgem), enquanto os outros traduzem "neanis" (jovem). 353 Não se sabe exatamente de que terras se trata, se da própria Índia ou do sudeste da Arábia.

3. Destes foi também Panteno, e diz-se que foi à Índia, onde é tradição que descobriu que o Evangelho de Mateus havia-se adiantado à sua chegada entre alguns habitantes do país que conheciam Cristo: Bartolomeu, um dos apóstolos, teria pregado para eles e havia-lhes deixado o escrito de Mateus nos próprios caracteres hebreus, escritos que conservavam até o tempo mencionado.

4. Certo é, ao menos, que Panteno, por seus muitos merecimentos, terminou dirigindo a escola de Alexandria, comentando de viva voz e por escrito os tesouros dos dogmas divinos.

XI [De Clemente de Alexandria] 1. Por este tempo (354) exercitava-se nas

Escrituras divinas e era célebre em Alexandria Clemente, homônimo do discípulo dos apóstolos que antigamente regeu a igreja de Roma.

[ 340 ]

Page 341: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. Nas Hypotyposeis que compôs menciona Panteno pelo nome, no livro primeiro de seus Stromateis quando, ao assinalar os mais célebres da sucessão apostólica por ele recebida, diz o seguinte:

3. "Em verdade esta obra não é um escrito composto com arte para ostentação, mas apontamentos guardados para minha velhice, remédio contra o esquecimento, imagem sem arte e desenho em sombras daquelas palavras brilhantes e cheias de vida que eu tive a honra de ouvir, e daqueles varões bem-aventurados e realmente eminentes.

4. Um deles, o jônico, na Grécia; outro na Magna Grécia; outro era de Celesiria, outro do Egito; outros ainda estavam pelo Oriente, um deles da Assíria e outro, hebreu de origem, na Palestina. Mas quando deparei com o último -mas que era o primeiro em poder - e procurei por ele no Egito, onde se ocultava, descansei (355).

5. Mas estes homens, que conservavam a verdadeira tradição do ensinamento bendito proveniente em linha reta dos santos apóstolos, de Pedro e de Tiago, de João e de Paulo, recebendo-a o filho do pai (mas poucos foram os filhos parecidos com os pais), com a ajuda de Deus chegaram inclusive até nós para depositar aquelas sementes ancestrais e apostólicas."

[ 341 ]

Page 342: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XII [Dos bispos de Jerusalém] 1. Nestes tempos era célebre e famoso - ainda

hoje continua sendo entre muitos - Narciso, bispo da igreja de Jerusalém, décimo quinto na sucessão desde o assédio dos judeus sob Adriano. Já mostramos que foi desde então que pela primeira vez ali a Igreja foi composta por gentios, depois dos oriundos da circuncisão, e que o primeiro dos bispos gentios que os dirigiu foi Marcos (356).

2. E as sucessões do lugar assinalam que depois dele foi bispo Cassiano, e depois deste, Públio, depois Máximo; depois deles, Juliano; depois, Caio, e depois deste, Símaco e um segundo Caio; de novo outro Juliano; depois destes, Capiton, Valente e Doliquiano, e depois de todos, Narciso, trigésimo desde os apóstolos, segundo a sucessão da série.

XIII [De Ródon e as dissensões que menciona dos marcionitas]

1. Também por este tempo, Ródon (357), oriundo da Ásia e discípulo em Roma, como ele mesmo conta, de Taciano, a quem já conhecemos por relato anterior (358), compôs diversos livros e alinhou-se também com os outros contra a heresia de Márcion. Conta que em seu tempo esta encontrava-se dividida em diversas correntes,

[ 342 ]

Page 343: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

descreve os causadores da ruptura e refuta com rigor as falsas doutrinas imaginadas por cada um deles.

354 Tempos de Cômodo, ainda que se possa entender que sejam os de Panteno. 355 Não se conseguiu identificar estes mestres, exceto o último, que pode ser Panteno. 356 Vide IV:V1:4. 357 Sobre este só se sabe o que aqui diz Eusébio. 358 Vide IV:XVI:7; IV:XXIX.

2. Ouve pois, o que escreve: "Por isso discordam também entre si, porque reivindicam doutrinas inconsistentes. Efetivamente, de seu rebanho é Apeles, venerado por sua conduta e por sua idade, que confessa sim um único princípio, mas diz que os profetas procedem do espírito contrário, e obedece aos preceitos de uma virgem possuída pelo demônio chamada Filomena.

3. Outros ainda, assim como o próprio piloto (Márcion), introduziram dois princípios. De suas fileiras vêm Potito e Basílico.

4. Também estes seguiram o lobo do Ponto, e não encontrando, como ele também não encontrou, a divisão das coisas, deram meia volta para o lado fácil e proclamaram dois princípios, arbitrariamente e sem demonstração. E outros, partindo por sua vez destes, chegaram ao pior e já supõe não apenas duas, mas três naturezas; seu chefe e patrão é Sineros, segundo dizem os que estão a cargo de sua escola."

[ 343 ]

Page 344: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

5. Escreve também o mesmo autor que inclusive chegou a ocupar-se de Apeles; diz assim: "Porque o velho Apeles, quando tratou conosco convenceu-se de que estava dizendo muitas coisas equivocadamente, e a partir de então costumava repetir que não convinha examinar absolutamente as razões, mas que cada um ficasse com sua própria crença; declarava mesmo que se salvavam os que tinham posta sua esperança no Crucificado, contanto que apresentem boas obras. Mas, como já dissemos, declarava que para ele, de todos, o assunto mais obscuro era o que se refere a Deus. E dizia, assim como nossa doutrina, que há somente um princípio."

6. Logo, depois de expor toda a opinião deste, segue dizendo: "Como eu lhe perguntasse: De onde tiras esta prova ou como podes tu dizer que há um princípio? Explica-nos. Respondeu que as profecias se refutavam a si mesmas porque nada disseram de inteiramente verdadeiro, já que discrepam, são enganosas e contradizem umas às outras. Quanto a como há um só princípio, dizia que o ignorava, que assim, apenas isto, sentia-se movido.

7. Então eu o conjurei a que dissesse a verdade, e ele jurou que estava dizendo a verdade: que não sabia como existe um só Deus incriado, mas que ele o cria. Eu então pus-me a rir e acusei-o de dizer que é mestre e ainda assim não dominar o que ensina."

[ 344 ]

Page 345: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

8. O mesmo autor, dirigindo-se a Calistion na mesma obra, confessa que ele mesmo foi discípulo de Taciano em Roma e diz também que Taciano preparou um livro de Problemas; como Taciano prometera mostrar através deles o obscuro e oculto das divinas Escrituras, o próprio Ródon anuncia por sua vez que vai expor num livro especial as soluções dos problemas daquele. Conserva-se também dele um Comentário sobre o Hexameron.

9. Apeles, no entanto, proferiu impiamente inúmeros ultrajes contra a lei de Moisés, blasfemando contra as divinas palavras com seus numerosos escritos e pondo grande empenho, pelo menos em aparência, em refutá-las e destruí-las. Isto é, pois, o que há sobre eles.

XIV [Dos falsos profetas catafrigas]

1. Como o inimigo da Igreja de Deus é em último grau avesso ao bem e amante do mal e de forma alguma deixa de lado qualquer maneira de conspirar contra os homens, fez com que de novo brotassem estranhas heresias contra a Igreja. Destes hereges alguns, como serpentes venenosas, rastejavam pela Ásia e Frígia, vangloriando-se de ter como modelo Montano e nas mulheres de sua companhia, Priscila e Maximila, as supostas profetisas de Montano.

[ 345 ]

Page 346: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

XV [Do cisma de Blasto em Roma] 1. Os outros floresciam em Roma, eram dirigidos

por Florino, um excluído do presbitério da Igreja, e com ele Blasto, que tivera uma queda (359) similar. Estes arrastaram muitos da Igreja e os submeteram a sua vontade, tentando um e outro introduzir novidades sobre a verdade, cada um por seu lado. (359) Esta queda pode significar a heresia como também a perda do cargo presbiteral.

XVI [O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua companhia]

1. Contra a heresia chamada catafriga, o poder defensor da verdade levantou em Hierápolis uma arma potente e invencível: Apolinário, a quem esta obra já mencionou mais acima (360), e com ele muitos outros homens doutos daquele tempo, dos quais foi-nos deixado abundante material para historiar.

2. Ao começar pois, um dos mencionados seu escrito contra aqueles, assinala primeiramente que também lutou contra eles com argumentos orais. Escreve no prólogo desta maneira:

3. Faz muito e bem longo tempo, querido Avircio Marcelo, que tu me ordenaste escrever algum tratado contra a heresia dos chamados "de Milcíades", mas até

[ 346 ]

Page 347: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

agora de certa maneira sentia-me indeciso, não por dificuldade em poder refutar a mentira e dar testemunho da verdade, mas por temor de que, apesar de minhas precauções, parecesse a alguns que de certo modo acrescento ou junto (361) algo novo à doutrina do Novo Testamento, ao qual não pode juntar nem tirar nada quem tenha decidido viver conforme este mesmo Evangelho.

4. Encontrando-me recentemente em Ankira da Galácia e compreendendo que a igreja local estava aturdida por esta, não como dizem, nova profecia, mas mais propriamente, como se demonstrará, pseudoprofecia, enquanto nos foi possível e com a ajuda do Senhor, durante vários dias, discutimos intensamente sobre estes mesmos homens e sobre os pontos propostos por eles, tanto que a igreja encheu-se de alegria e ficou robustecida na verdade, enquanto que os contrários eram rechaçados na hora e os inimigos abatidos.

5. Em consequência, os presbíteros do lugar pediram que lhes deixássemos alguma nota do que havia sido dito contra os que se opõe à doutrina da verdade, achando-se também presente nosso co-presbítero (362) Zotico, o de Otreno, mas nós não o fizemos; em troca, prometemos escrevê-lo aqui, com a ajuda de Deus, e enviá-lo com toda a presteza."

Presbítero, bispo e ancião são cargos da igreja cristã equivalentes. São os homens que lideram a igreja,

[ 347 ]

Page 348: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

pastoreando-as. Pastor é uma função e não um cargo, como hoje erroneamente as igrejas evangélicas se organizam.

6. Depois de expor no começo isto e em seguida alguma outra coisa, segue adiante e narra a causa da mencionada heresia desta maneira: "Agora bem, sua conduta e sua recente ruptura herética a respeito da Igreja tiveram como causa o que segue.

7. "Diz-se que em Misia da Frígia existe uma aldeia chamada Ardaban. Ali foi, dizem, que um recém-convertido à fé chamado Montano, pela primeira vez, em tempos de Grato, procônsul da Ásia, saindo contra o inimigo com a paixão desmedida de sua alma ambiciosa de proeminência, ficou a mercê do espírito e de repente entrou em arrebatamento convulsivo como se possesso e em falso êxtase, e começou a falar e a proferir palavras estranhas, profetizando desde aquele momento contra o costume recebido pela tradição e por sucessão desde a Igreja primitiva.

8. Dentre os que naquela ocasião escutaram estas expressões bastardas, uns, ofendidos com ele como energúmeno, endemoninhado, embebido no espírito do erro e perturbador das multidões, repreendiam-no e tentavam impedi-lo de falar, lembrando-se da explicação e advertência do Senhor sobre estar em guarda e alerta com a aparição de falsos profetas (363); os outros em

[ 348 ]

Page 349: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

troca, como que excitados por um espírito santo e um carisma profético, e não menos inchados de orgulho e esquecidos da explicação do Senhor, fascinados e extraviados pelo espírito insano, sedutor e desencaminhador do povo, provocavam-no para que não permanecesse mais em silêncio.

9. Com certa habilidade, ou melhor, com tais métodos fraudulentos, o diabo maquinou a perdição dos desobedientes e, honrado por eles contra todo merecimento, excitou e inflamou ainda suas mentes adormecidas, já distantes da fé verdadeira, e assim suscitou outras duas mulheres quaisquer (364) e encheu-as com seu espírito bastardo, de maneira que também elas começaram a falar delirando, inoportunamente e de modo estranho, como o mencionado antes proclamava bem-aventurados aos que se alegravam e vangloriavam nele e os enchia com a grandeza de suas promessas; às vezes, no entanto, por motivos aceitáveis e verossímeis, condenava-os publicamente a fim de parecer também ele capaz de argumentar; mas contudo, poucos eram os frígios enganados. O orgulhoso espírito ensinava também a blasfemar contra a Igreja católica inteira que se estende sob o céu, porque o espírito pseudoprofético não tinha conseguido louvor nem entrada nela.

O espírito 360 Vide IV:XXI; IV:XXVI: 1; IV:XXVII. 361 Gl 3:15. 362 É como os bispos se dirigiam aos presbíteros e às vezes a seus colegas de episcopado.

[ 349 ]

Page 350: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

363 Mt 7:15. 364 Quer dizer, outras vítimas (do diabo), não outras duas mulheres.

10. Efetivamente, os fiéis da Ásia haviam-se reunido para isto muitas vezes e em muitos lugares da Ásia, e depois de examinar as recentes doutrinas, declararam-nas profanas e as rechaçaram como heresia; desta maneira aqueles foram expulsos da Igreja e separados da comunhão."

11. É a isto que se refere no início; logo continua através de todo o livro a refutação do erro montanista, e no segundo livro diz sobre o fim das pessoas citadas o que segue:

12. "Pois bem, posto que nos chamam mata-profetas (365) porque não aceitamos seus profetas charlatães (dizem efetivamente que estes são os que o Senhor havia prometido enviar a seu povo [366]), que ante Deus nos respondam: dos que começam a falar (367) a partir de Montano e das Mulheres, há algum, amigos, a quem os judeus tenham perseguido ou alguém que os criminosos tenham assassinado? Nenhum. Nem sequer algum deles foi preso e crucificado por causa do nome? Também não, desde logo. Nem sequer alguma das mulheres foi açoitada nas sinagogas dos judeus e apedrejada?

13. Nem em parte alguma, em absoluto. Por outro lado, diz-se que Montano e Maximila findaram com outro

[ 350 ]

Page 351: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

gênero de morte. Efetivamente, é corrente que estes, por influência do espírito perturbador da mente, que movia tanto um quanto a outra, enforcaram-se, ainda que não ao mesmo tempo, e que ao tempo da morte de ambos correu forte boato de que haviam terminado e morrido da mesma maneira que Judas o traidor.

Desculpe Eusébio, mas creio que o montanismo era um movimento do Espírito Santo, as pessoas ficavam cheias do Espírito Santo falavam em línguas e profetizavam, procuravam viver uma vida santa e sentiam uma ânsia muito grande pela vinda de Cristo. Pode ter cometidos erros doutrinários sim, mas era um mover do Espírito contra o frio que tomava conta da grande massa de cristãos que já desenvolvia uma teologia católica romana, em vez de apostólica.

14. Como também é rumor insistente que aquele inefável Teodoto, o primeiro intendente (368), por assim dizer, de sua pretendida profecia, achando-se um dia como que elevado e alçado aos céus, entrou em êxtase e entregou-se por completo ao espírito do engano, e então, lançado com força, acabou desastrosamente. Ao menos dizem que foi assim.

15. No entanto, querido, não o tendo visto nós mesmos, pensamos que nada sabemos a respeito; porque talvez tenha ocorrido assim, mas talvez não

[ 351 ]

Page 352: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

tenham morrido assim nem Montano nem Teodoto nem a citada mulher."

16. Volta a dizer no mesmo livro que os sagrados bispos daquele tempo tentaram refutar o espírito que havia em Maximila, mas que outros o impediram, colaboradores, evidentemente, daquele espírito.

O grande teólogo Tertuliano acabou aderindo ao movimento montanista, o que já disse parece-me puro, autêntico, já se separando do grupo maior, tradicional, onde o homem manda mais que o Espírito Santo.

17. Escreve como segue: "E que aquele espírito que opera por meio de Maximila não diga no mesmo livro de Asterio Urbano: 'Perseguem-me como a um lobo longe das ovelhas; eu não sou lobo, sou palavra e espírito e poder', antes é bom que demonstre claramente o poder que há no espírito, que o prove e que por meio do espírito obrigue a confessar aos que naquela ocasião achavam-se presentes para examinar e para dialogar com o espírito que falava, varões probos e bispos: Zotico, da aldeia de Cumana, e Juliano, de Apamea, cujas bocas foram amordaçadas pelos partidários de Temiso, impedindo assim que refutassem o espírito enganador e desencaminhador de povos."

O montanistas tinham prazer em serem perseguidos pelo nome de Cristo, em vez de fugir, eles

[ 352 ]

Page 353: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

iam se apresentar as autoridades para morrerem por Cristo.

18. Novamente no mesmo livro, quando dizem algumas outras coisas refutando as falsas profecias de Maximila, indica o tempo em que escreveu isto e menciona os vaticínios dela, nos quais predizia que haveria guerras e revoluções; a falsidade de tudo isto ele revela quando escreve:

19. "E como não se evidenciou também esta mentira? Porque já são transcorridos mais de treze anos até hoje desde que aquela mulher morreu e no mundo não tem havido guerra, nem parcial nem geral, mas que até para os cristãos a paz tem sido mais permanente, por misericórdia divina."

365 Mt 23:31. 366 Jo 14:26. 367 Isto é: começaram a "profetizar" como Montano. 368 Como veremos mais tarde, Montano tinha suas finanças bem organizadas, por isso podemos entender literalmente o cargo atribuído a Teodoto.

20. Isto tomamos do livro segundo. Mas também do terceiro citaremos algumas frases breves, pelas quais diz contra os que se jactavam de que entre eles houve mais mártires: "Agora bem, quando os refutamos com todo o dito e veem-se apurados, tentam refugiar-se nos mártires, dizendo que têm muitos mártires e que isto é uma garantia fidedigna do poder do espírito que eles

[ 353 ]

Page 354: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

chamam profético, mas isto, ao que parece, é de tudo o menos verdadeiro.

21. Efetivamente, das outras heresias algumas têm numerosos mártires, e nem por isso vamos aprová-las nem confessar que possuem a verdade. Os primeiros ao menos, os que se chamam Marcionitas por seguir a heresia de Márcion, também eles dizem que têm inúmeros mártires, mas ao próprio Cristo não confessam conforme a verdade." E depois de breve espaço, acrescenta ao dito:

22. "Por isso, sempre que os fiéis da Igreja chamados a dar testemunho da fé conforme a verdade encontram-se com algum dos chamados mártires procedentes da heresia catafriga, afastam-se deles e morrem sem terem se comunicado com eles, porque não querem dar assentimento ao espírito que se vale de Montano e de suas mulheres. Que isto é verdadeiro e que, até em nossos tempos, tem ocorrido em Apamea, às margens do Meandro, evidencia-se nos martírios de Caio e Alexandre de Eumenia e de seus companheiros."

XVII [De Milcíades e os tratados que compôs]

1. Na mesma obra (369) menciona-se também Milcíades, um escritor que, parece, também escreveu um tratado contra a dita heresia. Depois de citar algumas

[ 354 ]

Page 355: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

passagens destes (370) continua dizendo: "Isto encontrei em uma obra das que atacam o escrito de Milcíades, nosso irmão, escrito que demonstra não ser necessário que um profeta fale em êxtase, e fiz um resumo."

2. Um pouco mais abaixo na mesma obra estabelece uma lista dos que profetizaram no Novo Testamento; entre eles enumera um tal Amias e a Codrato; diz assim: ".. .mas o falso profeta, no êxtase - ao qual seguem o descaramento e a ousadia -, começa em voluntária ignorância e termina em demência involuntária da alma, como se disse anteriormente.

3. Mas não poderão mostrar um só profeta, nem do Antigo nem do Novo (Testamento) que tenha sido arrebatado pelo espírito desta maneira, nem poderão gloriar-se de Agabo, nem de Judas, nem de Silas, nem das filhas de Felipe, nem de Amias de Filadélfia, nem de Codrato nem de nenhum outro, se há, porque nada tem a ver com eles."

Lembremos no caso dos setenta anciões que foram tomados pelo Espírito e profetizaram nos dias de Moisés, e já tinha gente querendo proibi-los (Números 11). O que se percebe é que nos dias anteriores a Eusébio, os dons do Espírito Santo já não se manifestam na igreja tradicional, porque o poder político dos dirigentes estavam extinguindo a manifestação pentecostal.

[ 355 ]

Page 356: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

4. E logo, depois de curto espaço, diz o seguinte: "Porque, se é como dizem, que depois de Codrato e de Amias de Filadélfia, o carisma profético passou por sucessão às mulheres do séquito de Montano, que demonstrem quem dentre eles sucedeu aos discípulos de Montano e a suas mulheres, já que o Apóstolo sustenta que é necessário que o carisma profético subsista em toda a Igreja até a parousia final (371). Mas não poderão mostrar ninguém, apesar de já ser este o décimo quarto da morte de Maximila."

5. Isto diz ele. No que tange a Milcíades, por ele mesmo mencionado, também deixou-nos outras lembranças de sua aplicação diligente às divinas Escrituras nos tratados que compôs Contra os gregos e Contra os judeus, temas com os quais se debateu separadamente nos dois livros. E mais, fez também uma Apologia dirigida aos príncipes (372) do mundo em favor da filosofia por ele professada (373).

369 O anônimo antimontanista, cf. 16:2. 370 Dos hereges. 371 Ef 4:11-13; 1 Co 1:4-8; 13:8-10. 372 Provavelmente refere-se a Marco Aurélio e a seu co-augusto Lúcio Vero. 373 Todas suas obras se perderam.

XVIII [Em que termos Apolônio refutou aos catafrigas e quem ele menciona]

[ 356 ]

Page 357: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

1. Como a heresia chamada catafriga ainda estivesse florescendo por aqueles tempos na Frígia, também Apolônio, escritor eclesiástico, empreendeu o trabalho de uma refutação. Compôs contra eles um escrito próprio, no qual corrige, palavra por palavra, as falsas profecias alegadas por eles e descreve como foi a vida dos líderes da heresia. Mas escuta isto que diz sobre Montano, literalmente:

2. "Mas suas obras e seus ensinamentos mostram quem é este novo mestre. Este é o que ensinou o rompimento de matrimônios (374), o que impôs leis de jejuns, o que deu o nome de Jerusalém a Pepuza e a Timio (cidades insignificantes da Frígia), porque queria reunir ali gente de todas as partes, o que estabeleceu arrecadadores de dinheiro, o que inventava a aceitação de donativos sob o nome de oferendas, o que assalariava os arautos de sua doutrina (375), com a finalidade de que o ensinamento de sua doutrina se afirmasse por meio da glutonaria."

3. Isto sobre Montano. Mas um pouco mais abaixo escreve também sobre suas profetisas como segue: "Demonstramos portanto que estas primeiras profetisas em pessoa são as que, desde o momento em que ficaram cheias do espírito, abandonaram seus maridos. Como então tratavam de enganar-nos chamando de virgem Priscila?"

[ 357 ]

Page 358: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

4. Ainda segue dizendo: "Não te parece que toda a Escritura proíbe que um profeta receba donativos e dinheiro? Portanto, quando vejo que a profetisa recebeu ouro e prata e vestidos suntuosos, como posso não rechaçá-la?"

5. E um pouco mais abaixo, outra vez diz sobre alguns de seus confessores o que segue: "Mais ainda: também Temiso, que envolveu sua avidez com mantos de aceitabilidade e que não suportou as insígnias da confissão (376), mas que depôs as correntes em troca de muito dinheiro, quando por tudo isto devia humilhar-se, fez-se de mártir e, compondo uma Carta católica, em imitação ao Apóstolo, atreveu-se a catequizar aos que eram melhores crentes do que ele, a combater com palavras vazias de sentido e a blasfemar contra o Senhor, os apóstolos e a santa Igreja."

6. E sobre outro, também dos que eles estimam como mártires, escreve assim: "E para não falar demais, que nos diga a profetisa o que há de Alexandre, o que a si mesmo chama de mártir, com o qual ela banqueteia e que muitos inclusive adoram. Não é preciso que citemos os latrocínios e demais crimes seus pelos quais foi castigado: estão conservados no opistodomo (377).

A questão nesse ponto é problemática, pois precisamos, para aceitar as objeções de Apolônio, de um documento que assegure todos esses pontos destacados

[ 358 ]

Page 359: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

e não somente sua visão. Sabemos que houve uma produção escrita de declaração de fé e de conduta montanista, mas foi perdida. Não se sabe por qual razão (se foi expurgada pelos acusadores ou simplesmente esquecida pelo tempo ou, ainda, ocultada). Salientamos que Apolônio escreveu um fato sem subsistência, ou seja, selou os boatos sobre o suicídio de Montano com a chancela da verdade, colocando em dúvida sua ética para com a História. Além disso, acrescentamos nossa desconfiança ao tratado de Apolônio uma vez Tertuliano, após ter aderido ao Montanismo, nada ter tratado sobre os assuntos, antes escreveu sobre a indissolubilidade do casamento e de sua manutenção em Ad monogania e em Ad Uxorem (Acerca do Único Casamento e Para Minha Esposa); em De Ieiunio Adversus Psychicos (Acerca do Jejum contra os Psíquicos ou católicos/gerais/universais) criticou a negligência das práticas de santificação e da prática de jejuns dos cristãos negligentes da igreja de Eusébio que ridicularizavam o ensinamento, bem como a disciplina na alimentação, evitando a gula.

7. "Quem pois perdoa a quem de seus pecados? Qual dos dois: o profeta ao mártir por seus latrocínios, ou o mártir ao profeta por sua avareza? Porque, tendo dito o Senhor: não possuireis nem ouro nem prata nem duas túnicas (378), estes pecaram fazendo tudo ao contrário no que tange à posse destas coisas proibidas. Efetivamente, vamos demonstrar que os chamados entre eles de

[ 359 ]

Page 360: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

profetas e mártires não somente caem sobre as posses dos ricos, mas também sobre as dos pobres, dos órfãos e das viúvas.

8. E se estão seguros, que se apresentem aqui e se expliquem sobre estes pontos para que, no caso de serem convencidos, deixem de continuar prevaricando. Efetivamente, há que se examinar os frutos dos profetas,

9. "já que por seu fruto se conhece a árvore (379). E para que todos que o desejem conheçam a história de Alexandre, foi julgado por Emílio Frontino, procônsul de Éfeso (380), não por causa do nome (381), mas pelos roubos que ousou cometer, porque já era um delinquente. Logo, juntando mentira a mentira em nome do Senhor, enganou os fiéis do lugar e foi posto em liberdade, e sua própria comunidade (374) Montano convocava a uma entrega total a obra do Espírito, ainda que às custas de romper com o cônjuge. De origem não o recebeu, por ser ladrão; os que queiram saber sua história têm o arquivo público da Ásia.

375 1 Co 9:14. 376 Ou seja, do martírio. 377 No templo grego era a câmara mais interna, tem aqui o sentido de arquivo. 378 Mt 10:9-10. 379 Mt 7:16; 12:33. 380 Desconhecido. 381 O nome de Cristo.

10. O profeta não o conhece, apesar de conviver com ele muitos anos. Nós, desmascarando-o, por ele colocamos em evidência a natureza do profeta. Coisas

[ 360 ]

Page 361: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

semelhantes podemos demonstrar de muitos; e se se atrevem, que suportem a prova".

11. E novamente, em outro lugar da obra, acrescenta o que segue, sobre os profetas de que se jactam: "Se porventura negam que seus profetas receberam presentes, que admitam isto: se for provado que os receberam, não são profetas, e nós apresentaremos provas disto aos milhares. É preciso comprovar todos os frutos do profeta. Um profeta, diga-me, tinge os cabelos? Um profeta pinta de negro as sobrancelhas e pestanas? Um profeta é amigo de enfeites? Um profeta joga com tabuleiros e dados? Um profeta empresta dinheiro a juros? Que confessem se é permitido ou não, e eu demonstrarei que entre eles ocorreu."

Vejam como se portavam os cristãos mesmos do grupo tradicional como o de Eusébio: não pintam os cabelos, nem as sobrancelhas, não é amigo dos enfeites. Hoje este tipo de cristão quase não existe mais, são todos amigos do mundo, apostataram da vida simples em Cristo Jesus para viverem segundo a vaidade do mundo.

12. Este mesmo Apolônio refere na mesma obra que, quando escrevia seu livro, haviam transcorrido já quarenta anos desde que Montano empreendeu sua fingida profecia.

[ 361 ]

Page 362: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

13. E diz ainda que, estando Maximila em Pepuza fingindo que profetizava, Zotico - que também foi mencionado pelo escritor anterior - enfrentou-a tentando refutar o espírito que operava nela, mas que foi impedido pelos que pensavam o mesmo que aquela mulher. Menciona também um certo Traseas, um dos mártires de então.

14. Diz ainda, como proveniente de uma tradição, que o Salvador ordenou a seus discípulos que não se afastassem de Jerusalém em doze anos; utiliza também testemunhos tirados do Apocalipse de João e refere que o mesmo João ressuscitou um morto com o poder divino em Éfeso; e ainda diz outras coisas mediante as quais corrigiu acertada e completamente o erro da citada heresia. Isto disse Apolônio.

XIX [De Serapion sobre a heresia dos frígios]

1. As obras de Apolinário contra a referida heresia são mencionadas por Serapion, que, segundo quer uma tradição, foi bispo da igreja de Antioquia nos tempos a que nos referimos, depois de Maximino. Menciona-o numa carta particular dirigida a Carico e Pôncio, na qual, refutando também ele a mesma heresia, acrescenta o que segue:

[ 362 ]

Page 363: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

2. "Mas, para que também saibais que a influência desta enganosa tropa - a chamada nova profecia- é abominada por todos os irmãos do mundo, enviei-vos também uns escritos de Cláudio Apolinário, bispo beatíssimo que foi de Hierápolis da Ásia."

3. Na mesma carta de Serapion conservam-se também as assinaturas de diversos bispos, um dos quais assina assim: "Aurélio Cirinio, mártir: rogo que estejais bem"; e outro desta maneira: "Elio Publio Júlio, bispo de Develto, colônia da Tracia: vive o Deus dos céus, que o bem-aventurado Sotas de Anquialo quis expulsar o demônio de Priscila, e os hipócritas não o deixaram."

Diante do exposto, cabe uma simplória pergunta: quais eram de fato as intenções de Eusébio de Cesareia? Nosso questionamento se faz pertinente, pois ao verificarmos o contexto histórico, a expansão do movimento e os seguidores renomados que fizeram parte da história montanista somos logo impelidos a acreditar que existia um diferencial nesse segmento da Igreja. Justo L. Gonzalez (2004, p. 138) declarou sobre o teor das profecias e do código de ética montanista o seguinte:

O que era novidade era o conteúdo das profecias de Montano e suas companheiras: declaram que outra

[ 363 ]

Page 364: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

dispensação se iniciava com a chegada da nova revelação concedida a eles pelo Espírito. Essa nova revelação não contradizia o que foi dado no Novo Testamento, mas o ultrapassava no rigor de sua ética e em alguns detalhes escatológicos.

Gonzalez destaca o conteúdo das profecias, ou seja, os montanistas acreditavam que Cristo estava trazendo um novo pentecoste sobre a Igreja através deles. Essa conclusão incomodava a liderança da igreja que vivia uma letargia espiritual, bastante centrada em formas herméticas de rituais e mecanizadas por uma prática repetitiva que impedia qualquer operação interior por parte do Espírito Santo. O mérito do grupo para a ação sobrenatural de Deus foi concebido por algumas razões práticas e devocionais: 1º. Os montanistas demonstraram uma sensibilidade espiritual que favorecia o movimento do Espírito; 2º. A prática de abstinência consagrava a Deus vidas que se esvaziavam de si mesmas para figurarem como canais da bênção para o povo redimido; e, 3º. O apego as Escrituras e o sentimento de retorno ao padrão primitivo chancela a ortodoxia do movimento. Na conclusão do historiador, não havia uma contraposição às doutrinas do Novo Testamento, portanto, havia uma prática bem alicerçada e fundamenta das obras montanistas, razão que nos provoca dúvidas sobre os propósitos dos registros de Eusébio. Ao acrescentar em sua análise um “ultrapassar”

[ 364 ]

Page 365: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

no rigor, Gonzalez parece concordar com o exagero. Contudo, seria interessante uma reflexão sobre as circunstâncias e pessoas envolvidas. Como mencionamos, os líderes da igreja estavam apáticos espiritualmente, afrouxando na conduta do regenerado (neste momento a Igreja aceitava prostitutas, gladiadores e outros de conduta reprovável; além de recepcionarem pacificamente os que negavam a Cristo como Senhor devido às perseguições romanas sem qualquer objeção ou disciplina) e muito preocupados com a questão da sucessão apostólica. A sucessão, na verdade, era a busca pelo reconhecimento entre os bispos para a concentração de poder e domínio sobre a Igreja. Essa má conduta administrada e favorecida pelos bispos da sucessão denegriram a imagem do Cristianismo de modo que a espiritualidade equilibrada não mais era tão almejada pelos cristãos nominais: era a consumação da apostasia. As virtudes tão apreciadas e defendidas pelo Mestre nos Evangelhos estavam em decadência, sendo poucos os cristãos que se dedicavam efetivamente aos jejuns, às vigílias, à santidade de vida, entre outras. Nesse contexto, surgem os montanistas retornando a uma prática diferenciada, promovendo a disciplina cristã que se vincula à ascese. O retorno às práticas do Cristianismo Primitivo incomodou porque não mais eram apreciadas. Desta maneira, os líderes da igreja consideraram a práxis montanista excessiva.

[ 365 ]

Page 366: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

4. Também se conservam na carta aludida as assinaturas autografas de muitos outros bispos que estão de acordo com estes. Isto é o que há sobre eles.

XX [O que Irineu discute por escrito com os cismáticos de Roma]

1. Contrariamente aos que em Roma falsificavam o são estatuto da Igreja, Irineu compôs várias cartas: uma que intitulou A Blasto, sobre o cisma; outra, A Florino, sobre a monarquia ou que Deus não é o autor dos males, já que, ao que parece, Florino defendia esta opinião, e como também estivesse seduzido pelo erro de Valentim, Irineu compôs outro trabalho, Sobre a Ogdoada, na qual dá a entender que ele mesmo recebeu a primeira sucessão dos apóstolos.

2. Perto do final da obra encontramos uma grata indicação sua que necessariamente temos que registrar no presente escrito, e que diz desta maneira: "Conjuro-te que copies este livro, por nosso Senhor Jesus Cristo e por sua vinda gloriosa, quando vier julgar os vivos e os mortos, que compares o que transcreves e o corrijas cuidadosamente conforme este exemplar de onde o copiaste. E copiarás igualmente este conjuro e o porás na cópia."

3. Advertência útil para quem a fez e para nós, que a referimos, para que tenhamos aqueles antigos e

[ 366 ]

Page 367: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

realmente sagrados varões como o melhor exemplo de solicitude diligentíssima.

4. Na Carta a Florino de que falamos acima, Irineu novamente menciona sua convivência familiar com Policarpo, dizendo: "Estas opiniões, Florino, falando com moderação, não são próprias de um pensamento são. Estas opiniões destoam das da Igreja e lançam na maior impiedade aos que as obedecem; estas opiniões nem sequer os hereges que estão fora da Igreja atreveram-se alguma vez a proclamar; estas opiniões não te foram transmitidas pelos presbíteros que nos precederam, os que juntos frequentaram a companhia dos apóstolos.

5. Porque sendo eu ainda criança, te vi na casa de Policarpo na Ásia inferior (382), quando tinhas uma brilhante atuação no palácio imperial (383) e te esforçavas para ter crédito perante ele. E recordo-me mais dos fatos de então do que dos recentes.

6. (o que se aprende em criança vai crescendo com a alma e vai se tornando um com ela), tanto que posso inclusive dizer o local em que o bem-aventurado Policarpo dialogava sentado, assim como suas saídas e entradas, seu modo de vida e o aspecto de seu corpo, os discursos que fazia ao povo, como descrevia suas relações com João e com os demais que haviam visto o Senhor e como recordava as palavras de uns e de outros; e o que tinha ouvido deles sobre o Senhor, seus milagres

[ 367 ]

Page 368: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

e seu ensinamento; e como Policarpo, depois de tê-lo recebido destas testemunhas oculares da vida do Verbo, relata tudo em consonância com as Escrituras.

7. E estas coisas, pela misericórdia que Deus teve para comigo, também eu escutava então diligentemente e as anotava, mas não em papel, mas em meu coração, e pela graça de Deus, sempre as estou ruminando fielmente e posso testemunhar diante de Deus que, se aquele bem-aventurado e apostólico presbítero tivesse escutado algo semelhante, teria lançado um grito, teria tampado os ouvidos e, dizendo como era seu costume: "Deus bondoso! Até que tempos me conservaste, para ter que suportar estas coisas!", teria até fugido do local em que estava sentado ou de pé quando escutou tais palavras.

8. Isto pode-se também comprovar claramente pelas cartas que escreveu, seja às igrejas vizinhas, confortando-as, seja a alguns irmãos admoestando-os e exortando-os" isto diz Irineu.

XXI [De como Apolônio morreu mártir em Roma]

1. Por este tempo do reinado de Cômodo, nossa situação mudou para uma maior suavidade. A paz, com ajuda da graça divina, abarcava todas as igrejas de toda a terra habitada. Foi também quando a doutrina salvadora ia pouco a pouco ganhando todas as almas de toda

[ 368 ]

Page 369: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

classe de homens para o culto piedoso do Deus de todas as coisas, tanto que inclusive muitos dos que em Roma sobressaíam por sua riqueza e linhagem marchavam ao encontro de sua salvação com toda sua casa e toda sua família.

2. Mas o demônio não podia suportar isto, inimigo do bem e invejoso como é por natureza, e em consequência preparava-se novamente para o combate enquanto maquinava variados atentados contra nós. Na cidade de Roma conduziu Apolônio ante os tribunais, varão famoso entre os fiéis de então por sua educação e filosofia, e para acusá-lo levantou um ministro seu qualquer, gente apropriada para estas tarefas.

3. Mas em má hora o desgraçado introduziu a causa, porque segundo um decreto imperial (384), não se permitia que vivessem os acusadores de tais homens, e na hora foram-lhe quebradas as pernas, pois tal sentença foi formulada contra ele pelo juiz Perennio (385).

382 Inferior ou baixa, significando costeira, não é denominação administrativa. 383 Não consta que por essa época (ca. 150-155) o imperador habitasse na Ásia. 384 Eusébio deve basear-se em algum presumido decreto imperial que tomou por autêntico. 385 Tigidius Perennis, prefeito do pretório entre 183 e 185.

4. O mártir, por sua parte, amado de Deus, apesar de o juiz rogar-lhe com muita insistência e pedir-lhe que

[ 369 ]

Page 370: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

desse razão ante o senado, apresentou diante de todos uma eloquente apologia da fé pela qual dava testemunho, e morreu decapitado, como por decreto do senado, já que uma antiga lei ordenava entre eles que não se deixasse ir os que comparecessem uma vez ante o tribunal e não mudassem em absoluto de propósito.

5. Assim pois, quem deseje ler as palavras de Apolônio ante o juiz e as respostas que deu ao interrogatório de Perennio, assim como sua apologia dirigida ao senado, inteira, poderá vê-lo na relação escrita dos antigos martírios que compilamos.

XXII [Que bispos eram célebres naquele tempo]

1. No décimo ano do reinado de Cômodo, Victor sucede a Eleutério, que havia exercido o episcopado durante treze anos. E pelo mesmo tempo, havendo Juliano cumprido seu décimo ano, Demétrio assume o cargo do ministério das comunidades de Alexandria. E também por estas datas era ainda conhecido como bispo da igreja de Antioquia, oitavo a partir dos apóstolos, Serapion, do qual já fizemos menção anteriormente. Cesaréia da Palestina era governada por Teófilo. E também Narciso, que esta obra já mencionou acima, ainda então exercia o ministério da igreja de Jerusalém. Já em Corinto, na Grécia, nestas mesmas datas, Baquilo era bispo; e na comunidade de Éfeso, Polícrates. E além

[ 370 ]

Page 371: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

destes - pelo menos assim supomos -, nesta época brilharam também muitos outros. Mas, como é natural, enumeramos em lista por seus nomes somente aqueles cuja ortodoxia na fé chegou por escrito até nós.

XXIII [Da questão então movida sobre a Páscoa]

1. Por este tempo levantou-se uma questão bastante grave, por certo, porque as igrejas de toda a Ásia, apoiando-se em uma tradição muito antiga, pensavam que era preciso guardar o décimo quarto dia da lua para a festa da Páscoa do Salvador, dia em que os judeus deviam sacrificar o cordeiro e no qual era necessário a todo custo, caindo no dia que fosse na semana, pôr fim aos jejuns, sendo que as igrejas de todo o resto do mundo não tinham por costume realizá-lo deste modo, mas por tradição apostólica, guardavam o costume que prevaleceu até hoje: que não é correto terminar os jejuns em outro dia que não o da ressurreição de nosso Salvador.

2. Para tratar deste ponto houve sínodos e reuniões de bispos, e todos unânimes, por meio de cartas, formularam para os fiéis de todas as partes um decreto eclesiástico: que nunca se celebre o mistério da ressurreição do Senhor de entre os mortos em outro dia que não no domingo, e que somente nesse dia guardemos o fim dos jejuns pascais.

[ 371 ]

Page 372: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

O Novo Testamento ensina a praticar o ritual do partir do pão no primeiro dia da semana. Não devemos inventar novos rituais ou trazer rituais do judaísmo para o cristianismo.

3. Ainda se conserva até hoje um escrito dos que se reuniram naquela ocasião na Palestina; presidiram-nos Teófilo, bispo da igreja de Cesaréia, e Narciso, da de Jerusalém. Também sobre o mesmo assunto conserva-se outro escrito dos reunidos em Roma, que mostra Victor como bispo; e também outro dos bispos do Ponto presididos por Palmas, que era o mais antigo, e outro das igrejas da Gália, das quais era bispo Irineu.

4. Assim como também das de Osroene e demais cidades da região, e em particular de Baquilo, bispo da igreja de Corinto, e de muitos outros, todos os quais, emitindo um único e idêntico juízo, estabelecem a mesma decisão. Estes pois, tinham como regra única de conduta a já exposta.

XXIV [Sobre a dissensão na Ásia] 1. Os bispos da Ásia, por outro lado, com

Polícrates à frente, seguiam insistindo com força que era necessário guardar o costume primitivo que lhes fora transmitido desde antigamente. Polícrates mesmo, numa

[ 372 ]

Page 373: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

carta que dirige a Victor e à igreja de Roma, expõe a tradição chegada até ele com estas palavras:

2. "Nós pois, celebramos intacto este dia, sem nada juntar nem tirar. Porque também na Ásia repousam grandes luminárias, que ressuscitarão no dia da vinda do Senhor, quando vier dos céus com glória e em busca de todos os santos: Felipe, um dos doze apóstolos, que repousa em Hierápolis com duas filhas suas, que chegaram virgens à velhice, e outra filha que, depois de viver no Espírito Santo, descansa em Éfeso.

3. E também João, o que se recostou sobre o peito do Senhor e que foi sacerdote portador do pétalon, mártir e mestre; este repousa em Éfeso.

4. E em Esmirna, Policarpo, bispo e mártir. E Traseas, também ele bispo e mártir, que procede de Eumenia e repousa em Esmirna.

5. E que falta faz falar de Sagaris, bispo e mártir, que descansa em Laodicéia, assim como o bem-aventurado Papirio e de Meliton, o eunuco (386), que em tudo viveu no Espírito Santo e repousa em Sardes esperando a visita que vem dos céus no dia em que ressuscitará de entre os mortos?

6. Todos estes celebraram como dia da Páscoa o da décima quarta lua, conforme o Evangelho, e não transgrediram, mas seguiam a regra da fé. E eu mesmo,

[ 373 ]

Page 374: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Polícrates, o menor de todos vós, (faço) [387] conforme a tradição de meus parentes, alguns dos quais segui de perto. Sete parentes meus foram bispos, e eu sou o oitavo, e sempre meus parentes celebraram o dia quando o povo tirava o fermento.

7. Portanto, irmãos, eu com mais de sessenta e cinco anos no Senhor, que conversei com irmãos procedentes de todo o mundo e que recorri toda a Sagrada Escritura, não me assusto com os que tratam de impressionar-me, pois os que são maiores do que eu disseram: Importa mais obedecer a Deus do que aos homens."

8. Logo acrescenta isto que diz sobre os bispos que estavam com ele quando escrevia e eram da mesma opinião: "Poderia mencionar os bispos que estão comigo, que vós pedistes que convidasse e que eu convidei. Se escrevesse seus nomes seria demasiado grande seu número. Eles, mesmo conhecendo minha pequenez, deram seu assentimento a minha carta, sabedores de que não é em vão que levo meus cabelos brancos, mas que sempre vivi em Cristo Jesus."

Achamos desnecessários para nós cristãos comemorarmos a páscoa, é uma festa judaica e ponto. Nós comemoramos a Ceia do Senhor.

9. Ante isto, Victor, que presidia a igreja de Roma, tentou separar em massa da união comum todas as

[ 374 ]

Page 375: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

comunidades da Ásia e as igrejas limítrofes, alegando que eram heterodoxas, e publicou uma condenação por meio de cartas proclamando que todos os irmãos daquela região, sem exceção, estavam excomungados.

10. Mas esta medida não agradou a todos os bispos, que por sua parte exortavam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que repreendem Victor com bastante energia.

Em outras palavras este Victor agiu com uma imprudência desmedida. Como sempre os líderes cristãos das metrópoles sempre querem se assenhorear sobre o rebanho. Daí surgiu o bestialismo do papado.

11. Entre eles está Irineu, na carta escrita em nome dos irmãos da Gália, dos quais era o chefe. Irineu concorda que é necessário celebrar unicamente no domingo o mistério da ressurreição do Senhor; no entanto, com muito bom senso, exorta Victor a não amputar igrejas de Deus inteiras que haviam observado a tradição de um antigo costume, e a muitas outras coisas (388). E acrescenta textualmente o que segue:

12. "Efetivamente, a controvérsia não é somente sobre o dia, mas também sobre a própria forma do jejum, porque uns pensam que devem jejuar durante um dia, outros que dois e outros que mais; e outros dão a seu dia uma medida de quarenta horas do dia e da noite.

[ 375 ]

Page 376: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

13. E uma tal diversidade de observantes não se produziu agora, em nossos tempos, mas já muito antes, sob nossos predecessores, cujo forte, segundo parece, não era a exatidão, e que forjaram para a posteridade o costume em sua simplicidade e particularidade. E todos eles nem por isso viveram menos em paz uns com os outros, tanto quanto nós; o desacordo quanto ao jejum confirma o acordo quanto à fé."

Isso ai Irineu, mostrou sabedoria, precisamos parar de padronizar os mínimos detalhes da vida cristã ou da vida em sociedade. Os seres humanos tem individualidade própria, personalidades diferentes. É arrogância de quem quer dominar estipular regra para tudo. 386 Eunuco não no sentido estrito, mas de "contido". 387 Falta o verbo no original, talvez por um corte descuidado. 388 Esta carta de Irineu a Victor teve como efeito a suspensão da excomunhão.

14. A isto acrescenta também um relato que será conveniente citar e que diz assim: "Entre ele, também os presbíteros antecessores de Sotero, que presidiram a igreja que tu reges agora, quero dizer Aniceto, Pio e Higinio, assim como Telesforo e Sixto: nem eles mesmos observaram o dia nem permitiam aos que estavam com eles escolher, e nem por isso eles mesmos, que não observavam o dia, viviam menos em paz com os que procediam das igrejas em que se observava o dia, e ainda

[ 376 ]

Page 377: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

assim, observar o dia resultava mais em oposição para os que não o observavam.

15. E nunca se rechaçou ninguém por causa desta forma, antes, os próprios presbíteros, teus antecessores, que não observavam o dia, enviavam a eucaristia (389) aos de outras igrejas que o observavam.

16. E encontrando-se em Roma o bem-aventurado Policarpo nos tempos de Aniceto, surgiram entre os dois pequenas divergências, mas em seguida estavam em paz, sem que sobre este capítulo se querelassem mutuamente, porque nem Aniceto podia convencer Policarpo a não observar o dia -como sempre o havia observado, com João, discípulo de nosso Senhor, e com os demais apóstolos com quem conviveu -, nem tampouco Policarpo convenceu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que devia manter o costume dos presbíteros seus antecessores.

17. E apesar de estarem assim as coisas, mutuamente comunicavam entre si, e na igreja Aniceto cedeu a Policarpo a celebração da eucaristia, evidentemente por deferência, e em paz se separaram um do outro; e toda a Igreja tinha paz, tanto os que observavam o dia como os que não o observavam."

18. E Irineu, fazendo honra a seu nome (390), pacificador pelo nome e por seu próprio caráter, fazia estas e semelhantes exortações e servia de embaixador

[ 377 ]

Page 378: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

em favor da paz das igrejas, pois tratava por correspondência epistolar ao mesmo tempo, não somente com Victor, mas também com muitos outros chefes de diferentes igrejas, sobre o problema debatido.

XXV [De como houve acordo unânime entre todos sobre a Páscoa]391

1. Os bispos da Palestina antes mencionados, Narciso e Teófilo, e com eles Cassio, bispo da igreja de Tiro, e Claro da de Ptolemaida (392), assim como os que haviam se reunido com estes, deram detalhadas e abundantes explicações acerca da tradição sobre a Páscoa, vinda até eles por sucessão dos apóstolos, e ao final da carta acrescentam textualmente: "Procurai que se envie cópia de nossa carta a cada igreja, para que não sejamos responsáveis pelos que, com grande facilidade, desencaminham suas próprias almas. Manifestamos a vós que em Alexandria celebram precisamente o mesmo dia que nós, pois entre eles e nós vêm-se trocando correspondência epistolar, de modo que nos é possível celebrar o dia santo em consonância e simultaneamente."

XXVI [Quanto chegou a nós de Irineu]

1. Acontece que além dos escritos e cartas de Irineu já mencionados, conservam-se dele um tratado contra os gregos, curtíssimo e bastante peremptório, intitulado Sobre a ciência, e outro que dedicou a seu

[ 378 ]

Page 379: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

irmão, chamado Marciano, Em demonstração da pregação apostólica, assim como um livro de Dissertações variadas, no qual faz menção à Carta aos Hebreus e à chamada Sabedoria de Salomão, citando deles algumas sentenças. E isto é o que chegou a nosso conhecimento dos escritos de Irineu (393). E tendo Cômodo terminado seu império ao fim de treze anos e depois de Pertinax manter-se depois de Cômodo uns seis meses incompletos, prevalece como imperador Severo.

389 Enviava-se a eucaristia em sinal de comunhão. 390 Eirenaios = pacífico. 391 Apesar do título, trata-se apenas de um acordo existente na prática das igrejas da Palestina e a de Alexandria. 392 Na Síria. 393 Todas as obras mencionadas foram perdidas, exceto a Demonstração da pregação apostólica, encontrada em 1904 numa versão armênia.

XXVII [Quanto chegou dos outros que floresceram naquela época]

1. Muitos, pois, conservam ainda até hoje em grande número documentos do zelo virtuoso dos antigos eclesiásticos de então. Alguns nós mesmos chegamos a ler, como são os escritos de Heráclito Sobre o Apóstolo, e os de Máximo Sobre o problema da origem do mal, e De como a matéria é criada, problema famosíssimo entre os hereges; e também os de Cândido Sobre o Hexameron e os de Apion, sobre o mesmo tema, assim como os de

[ 379 ]

Page 380: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Sexto Sobre a ressurreição; outro tratado de Arabiano e muitos outros, dos quais, por não ter um ponto de referência, não é possível transmitir por escrito a data nem insinuar alguma memória de sua história. Mas chegaram também até nós tratados de muitos outros, dos quais não é possível catalogar os nomes, autores ortodoxos e eclesiásticos, como certamente demonstram as corretas interpretações da Escritura divina. Mesmo assim, são para nós desconhecidos porque não se dá o nome de seus autores.

XXVIII [Dos que acolheram a heresia de Artemon desde o princípio, qual foi seu comportamento e de que modo ousaram corromper as Escrituras]

1. Numa obra de algum destes, fruto do trabalho contra a heresia de Artemon - a mesma que em nossos tempos Paulo de Samosata tentou renovar -conserva-se um relato que vem ao caso da história que estamos examinando.

2. Deixando entendido que a mencionada heresia afirma que o Salvador não é mais do que um puro homem, e que ela era de invenção recente, ainda que seus introdutores quisessem fazê-la valer como se fosse antiga, o tratado, depois de citar muitos outros argumentos para refutar a mentira blasfema destes, refere textualmente o que segue:

[ 380 ]

Page 381: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

3. "Dizem mesmo que todos os primeiros, inclusive os próprios apóstolos, receberam e ensinaram isto que agora eles estão dizendo, e que se conservou a verdade da pregação até os tempos de Victor, que era o décimo terceiro bispo de Roma desde Pedro, mas que, a partir de seu sucessor, Zeferino, falsificou-se a verdade.

4. O dito poderia ser convincente se em primeiro lugar as divinas Escrituras não o contradissessem. E também há obras de alguns irmãos anteriores aos tempos de Victor, obras que eles escreveram contra os pagãos e contra as heresias de então em defesa da verdade. Refiro-me às de Justino, Milcíades, Taciano, Clemente e muitos outros, todas obras que atribuem a divindade a Cristo.

5. Porque, quem desconhece os livros de Irineu, de Meliton e dos restantes, livros que proclamam a Cristo Deus e homem? E os muitos salmos e cânticos escritos desde o princípio por irmãos crentes que cantam hinos ao Verbo de Deus, ao Cristo, atribuindo-lhe a divindade?

6. Como pois, estando declarado o pensamento da Igreja desde há tantos anos pode-se admitir que os anteriores a Victor o tenham proclamado no sentido que dizem estes? E como não se envergonham de acusar Victor falsamente de tais coisas, sendo que com toda exatidão sabem que Victor excluiu da comunhão Teodoto o curtidor, líder e pai desta apostasia negadora de Deus,

[ 381 ]

Page 382: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

e primeiro a dizer que Cristo foi um simples homem? Porque se Victor tivesse pensado da mesma maneira que ensina a blasfêmia destes, como poderia expulsar Teodoto, inventor desta heresia?"

7. Estes são os fatos dos tempos de Victor. Tendo estado ele à frente do ministério por dez anos, é instituído seu sucessor Zeferino, era o nono ano do império de Severo. O mesmo que compôs o supracitado livro sobre o iniciador da mencionada heresia acrescenta também outro assunto ocorrido em tempos de Zeferino e escreve nos seguintes termos:

8. "Vou pois, recordar ao menos para muitos de nossos irmãos, o fato ocorrido em nosso tempo, que, por ter acontecido em Sodoma, creio que seguramente teria sido um aviso para aquela gente. Era Natalio um confessor, não dos tempos antigos, mas de nosso próprio tempo.

9. Um dia este foi enganado por Asclepiodoto e por outro Teodoto, cambista. Estes dois eram discípulos de Teodoto o curtidor, primeiro que por este pensamento, ou melhor, por esta loucura, foi separado da comunhão por Victor, então bispo, como já disse.

10. Ambos persuadiram Natalio para que por um salário se chamasse bispo desta heresia, de maneira que podia receber deles cento e cinquenta denários.

[ 382 ]

Page 383: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

11. Estando já com eles, o Senhor o avisou muitas vezes por meio de sonhos, já que nosso Deus misericordioso e Senhor Jesus Cristo não queria que uma testemunha de seus próprios padecimentos saísse da Igreja e perecesse.

12. Mas como não prestasse grande atenção às visões, enganado por aquele primeiro posto entre eles e pela torpe ganância que a tantos perde, finalmente foi açoitado por anjos santos durante toda a noite, pelo que ficou bastante maltratado, tanto que se levantou com a aurora, vestiu-se com um saco, cobriu-se de cinza e com muita diligência e lágrimas correu até o bispo Zeferino, e se atirava aos pés, não apenas do clero, mas também dos laicos. Com suas lágrimas comoveu a Igreja compassiva de Cristo misericordioso e, depois de pedi-lo com reiteradas súplicas e de haver mostrado as contusões que os golpes lhe fizeram, a duras penas foi admitido à comunhão."

13. A isto juntaremos também outras expressões do mesmo escritor sobre os mesmos assuntos, que soam assim: "Adulteraram sem escrúpulo as divinas Escrituras e violaram a regra da fé primitiva; e desconheceram a Cristo por não investigar o que dizem as divinas Escrituras, em vez de andar trabalhosamente exercitando-se em encontrar uma figura de silogismo para legitimar seu ateísmo. Porque, se alguém lhes apresenta uma

[ 383 ]

Page 384: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

sentença da Escritura divina, começam a discorrer que figura de silogismo se pode fazer, se conexo ou disjuntivo.

14. Deixaram as Santas Escrituras de Deus e se ocupam de geometria, como quem é da terra; falam por influência da terra e desconhecem o que vem de cima (394). Pelo menos entre alguns deles estuda-se com afã a geometria de Euclides e se admira Aristóteles e Teofrasto, porque Galeno talvez seja até adorado por alguns.

15. Mas os que se aproveitaram das artes dos infiéis para o desígnio de sua própria heresia e com as artes dos ímpios falsificaram a fé simples das divinas Escrituras, que necessidade há de dizer que já não estão perto da fé? Por esta causa puseram suas mãos sem escrúpulo sobre as divinas Escrituras, dizendo que as haviam corrigido (395).

16. E quem quiser pode saber que digo isto sem caluniá-los, já que, se alguém quiser reunir as cópias de cada um deles e compará-las entre si, notará que divergem muito. Pelo menos as de Asclepíades (396) destoarão das de Teodoto.

17. E podem-se adquirir muitas cópias, porque os discípulos transcreveram com grande zelo as que foram, como dizem eles, corrigidas, isto é, corrompidas por cada um daqueles. Tampouco as de Hermófilo concordam com estas; quanto às de Apoloníades (397), nem sequer concordam entre si mesmas, pois é possível discernir as

[ 384 ]

Page 385: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

que eles prepararam primeiro e as que logo depois foram alteradas, e se vê que discordam muito.

18. Do atrevimento deste pecado, não é provável que eles o ignorem, porque, ou não creem que as divinas Escrituras foram ditadas pelo Espírito Santo, e nesse caso são incrédulos, ou então acham que são mais sábios do que o Espírito Santo: e que outra coisa é isto se não estar possuído pelo demônio? Porque não podem negar que o atrevimento é deles mesmos, já que as cópias estão escritas por suas mãos e não receberam as Escrituras nesse estado daqueles que os instruíram, nem poderão mostrar um exemplar de onde tenham copiado as suas.

19. Alguns deles nem sequer trataram de falsificá-las, mas depois de simplesmente negar a lei e os profetas, com o pretexto de um ensinamento iníquo e ímpio, caíram da graça na extrema ruína da perdição." E já basta deste tipo de relatos.

394 Ironia que joga com a palavra geometria e a passagem de Jo 3:31. 395 Tratava-se da crítica textual dos Setenta. 396 Possivelmente trata-se do mesmo acima chamado de Asclepiadoto. 397 Nem de Hermófilo nem de Apoloníades sabe-se mais do que o dito aqui e que foram discípulos de Teodoto o curtidor.

[ 385 ]

Page 386: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

CONCLUSÃOLógico que Eusébio de Cesareia escreveu a história da Igreja de acordo com o seu ponto de vista, portanto não existe isenção total, nem devemos esperar isto de ninguém. Mas o valor da sua obra é inestimável, porque através destes dez livros de Eusébio que eu aglutinei em dois volumes nos enriquece com informações que estariam perdidas para sempre se não fosse o espírito empreendedor de Eusébio. Dentro do possível ele procurou ser fiel aos textos que ele tinha em mãos, coletando histórias e dados indispensáveis para entendermos o desenvolvimento do cristianismo nos primeiros séculos.

LIVROS PUBLICADOS PELO AUTOR:CIÊNCIAS

Biologia, O mito da Evolução

Baleias, maravilhas de Deus

Formigas, maravilhas de Deus

Sexologia cristã

[ 386 ]

Page 387: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

Botânica Bíblica

TEOLOGIA

Juízo Final

Parapsicologia Bíblica

O Fim do Mundo

Compêndio teológico sobre o véu

Guia de Estudo Bíblico

Dogmatologia

Apocalipse comentado

Entenda a CCB – Volume I

Entenda a CCB – Volume II

Javé, o Deus da Bíblia

Como fundar uma Igreja

O Diabo está ao seu lado

Os quatro livros biográficos de Jesus

HISTÓRIA

Introdução a Arqueologia

[ 387 ]

Page 388: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

História do Universo comentada

O que é Igreja Católica Romana?

O anjo de quatro patas

HAGIOGRAFIA

Vida de Antão com comentários

Clemente de Roma

POLÍTICA

Memorial criminoso do PT – Volume I

Memorial criminoso do PT – Volume II

PT X Cristianismo

Todos os telefones do presidente Lula

Os amigos de Lula

DIREITO

Escrivão de Polícia é cargo técnico científico

Código Hamurabi e a Lei de Moisés

O instituto divino da Pena de Morte

[ 388 ]

Page 389: HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO - VOLUME I

História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

ÉTICA

Bebida alcoólica não é pecado

Como se vestem os santos

EM OUTROS IDIOMAS

Archéologie Biblique (Francês)

Juicio Final (Espanhol)

Biology, the myth of Evolution (Inglês)

The Four-legged Angel (Inglês)

Last Judgment (inglês)

Indossare il velo (Italiano)

生物学 – 進化の神話 (Japonês)

[ 389 ]