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2009 Frederico Barbosa Elaine Cuencas Santos

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2009Frederico BarbosaElaine Cuencas SantosFrederico Barbosa

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

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© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

B238 Barbosa, Frederico; Santos, Elaine Cuencas / Modernismo na Literatura Brasileira. / Frederico Barbosa; Elaine Cuencas

Santos — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2009.280 p.

ISBN: 978-85-387-0741-7

1. Modernismo – Brasil. 2. Literatura Brasileira. 3. História e crítica. 4. Poesia brasileira. I. Título. II. Santos, Elaine Cuencas.

CDD 709.04

Capa: IESDE Brasil S.A.

Crédito da imagem: IESDE Brasil S.A.

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É graduado em Letras Português pela Universidade de São Paulo (USP). Diretor do Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (Casa das Rosas), em São Paulo. Poeta, é autor de Nada Feito Nada (1993), Cantar de Amor entre os Escom-bros (2002) e A Consciência do Zero (2004).

Frederico Barbosa

Mestra em Estudos Comparados de Literatura em Língua Portuguesa pela USP, graduada em Letras Português e Italiano pela USP.

Elaine Cuencas Santos

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Sumário

Vanguardas modernistas e a Semana de 22 ................... 11

O que buscavam as vanguardas modernistas? .............................................................. 11

Poesia de vanguarda ................................................................................................................ 14

Narrativa de vanguarda .......................................................................................................... 18

A fase heroica do Modernismo brasileiro ......................................................................... 22

Oswald de Andrade ................................................................. 37

Biografia ........................................................................................................................................ 37

Oswald romancista ................................................................................................................... 38

Oswald poeta .............................................................................................................................. 39

Mário de Andrade .................................................................... 51

Macunaíma e a renovação da linguagem literária ........................................................ 53

Manuel Bandeira ....................................................................... 71

Vida que podia ter sido ........................................................................................................... 71

Libertinagem ................................................................................................................................ 74

A poesia da Geração de 1930 no Brasil ............................ 87

Por que a Geração de 1930 foi tão fértil? .......................................................................... 87

A poesia da Geração de 1930 ................................................................................................ 87

Murilo Mendes ........................................................................................................................... 88

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Cecília Meireles ........................................................................................................................... 90

Vinicius de Moraes .................................................................................................................... 92

Outros poetas de importância do período ...................................................................... 93

Carlos Drummond de Andrade .........................................107

Quase um século de poesia .................................................................................................107

A estreia em livro .....................................................................................................................113

O romance da Geração de 1930 ........................................127

O precursor: José Américo de Almeida ...........................................................................127

Graciliano Ramos .....................................................................................................................128

José Lins do Rego ....................................................................................................................128

Erico Verissimo .........................................................................................................................134

Rachel de Queiroz ...................................................................................................................138

Jorge Amado ............................................................................................................................139

O romance urbano ..................................................................................................................142

Graciliano Ramos ....................................................................155

Prefeito, educador e escritor ...............................................................................................155

Com as mesmas vinte palavras ..........................................................................................157

Caetés ...........................................................................................................................................158

São Bernardo .............................................................................................................................158

Vidas Secas .................................................................................................................................160

Memórias do Cárcere ...............................................................................................................162

João Guimarães Rosa ............................................................175

A Geração de 1945 ..................................................................................................................175

Mineiro e universal .................................................................................................................175

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O estilo insólito ........................................................................................................................176

A obra ..........................................................................................................................................176

Clarice Lispector .....................................................................193

A ação interior ..........................................................................................................................194

A Hora da Estrela .......................................................................................................................198

João Cabral de Melo Neto ...................................................211

O poeta do rigor ......................................................................................................................211

O rigor das coisas ....................................................................................................................216

As duas águas ...........................................................................................................................218

Morte e Vida Severina ..............................................................................................................220

Poesia concreta .......................................................................237

O grupo Noigandres ...............................................................................................................237

A poesia concreta: rock’n’roll da poesia? ........................................................................238

O contexto .................................................................................................................................240

As propostas ..............................................................................................................................241

Re-visões e traduções ............................................................................................................251

Gabarito .....................................................................................259

Referências ................................................................................271

Anotações .................................................................................279

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Apresentação

Pelas próximas 12 aulas, estudaremos o Modernismo brasileiro, come-çando pelas vanguardas europeias que influenciaram os jovens artistas brasilei-ros, culminando na Semana de Arte Moderna de 1922. Durante a segunda, ter-ceira e quarta aulas, iremos nos aprofundar nos três grandes nomes da primeira geração modernista: Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Na quinta aula, conheceremos a poesia da Geração de 1930 e mais espe-cificamente, durante a sexta aula, Carlos Drummond de Andrade. Em seguida, ve-remos o romance da chamada Geração de 30 e Graciliano Ramos, respectivamen-te na sétima e oitava aulas. Na reta final do livro, abordaremos em cada aula um escritor específico: João Guimarães Rosa (nona aula), Clarice Lispector (décima aula) e João Cabral de Melo Neto (décima primeira aula). Finalizamos, na décima segunda aula, com a poesia concreta, talvez o único movimento literário a surgir, se não antes, pelo menos ao mesmo tempo no Brasil e no resto do mundo.

Frederico Barbosa

Elaine Cuencas Santos

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A ficção dos anos 1930 deu continuidade ao projeto modernista de apro-fundamento nos problemas brasileiros por meio de uma literatura regiona-lista, de caráter neorrealista, preocupada em apresentar os problemas e as desigualdades sociais do Brasil. Houve também uma boa produção voltada para os problemas urbanos. Prevaleceu uma linguagem direta, sem as ousa-dias formais dos romances de Oswald de Andrade (1890-1954), mas enfati-zando o uso da linguagem coloquial, popular, na obra de arte literária.

O precursor: José Américo de Almeida Acima de tudo um político, José Américo de Almeida (1887-1980) deve

sua importância para a literatura brasileira à publicação, em 1928, do pri-meiro romance neorrealista do movimento que viria, depois, a ser chama-do de Regionalismo de 1930: A Bagaceira. Segundo João Guimarães Rosa (1908-1967), José Américo de Almeida abriu o caminho do moderno ro-mance brasileiro. Sem dúvida, muito do que Graciliano Ramos (1892-1953) ou José Lins do Rego (1901-1957) mais tarde tematizaram de maneira mais contundente, já estava presente em A Bagaceira: a miséria do sertão; a brutalização do ser humano nordestino; as relações entre os fazendeiros, os senhores de engenho e os seus empregados; o conflito de gerações; o ser humano e os animais apresentados como “sócios da fome”.

A Bagaceira é narrado em terceira pessoa, por um narrador-observador onisciente, e apresenta um trabalho de linguagem muito rico. O narra-dor utiliza-se de uma linguagem erudita, de acordo com a norma culta da língua portuguesa. Já as falas das personagens procuram reproduzir o falar sertanejo, alcançando, por vezes, efeitos de poeticidade próximos daqueles alcançados, décadas depois, por João Guimarães Rosa. Um dos aspectos mais salientes e importantes do romance é a tensão linguística criada pela dicotomia entre a linguagem refinada do narrador e a brutali-dade da linguagem das personagens.

O romance da Geração de 1930

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Modernismo na Literatura Brasileira

O romance se abre com um prefácio/manifesto intitulado “Antes que me falem”, em que José Américo expõe alguns dos princípios básicos que haveriam de nortear não apenas a composição da sua obra como também de todo o Re-gionalismo de 1930. Observe dois trechos:

O Regionalismo é o pé-de-fogo da literatura... Mas a dor é universal, porque é uma expressão da humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.[...]Um romance brasileiro sem paisagem seria como Eva expulsa do Paraíso. O ponto é suprimir os lugares-comuns da natureza. (ALMEIDA, 1995, prefácio)

Graciliano Ramos Graciliano Ramos nasceu em Quebrangulo, Alagoas. Foi prefeito de Palmeira dos

Índios (AL) e então se dedicou à literatura. Publicou alguns romances considerados obras-primas, como São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938). Sua produção literária se caracteriza pelo rigoroso cuidado com a linguagem (sobrieda-de, exatidão na escolha das palavras etc.), densa construção psicológica das perso-nagens e a capacidade de descrever o ambiente, as relações sociais, políticas e a natureza do Nordeste em um estilo enxuto, preciso e extremamente contundente. É, sem dúvida, um dos maiores e melhores escritores da língua portuguesa.

José Lins do RegoJosé Lins do Rego nasceu no Engenho Corredor, município de Pilar (Paraíba),

em 3 de junho de 1901 e morreu no Rio de Janeiro em 1957. Era órfão de mãe e, com o pai ausente, foi criado no engenho do avô materno. Estudou inicialmente no interior da Paraíba, em Itabaiana, e depois na capital. Fez o curso superior na Faculdade de Direito de Recife, Pernambuco.

Começou a escrever contos e artigos de temática política ainda estudante. Nessa época, iniciou sua amizade com José Américo de Almeida e Olívio Montene-gro (1896-1962). Em 1923, conheceu Gilberto Freyre (1900-1987), recém-chegado da Europa. Junto com eles, integrou o chamado grupo modernista do Recife.

José Lins dizia que, após conhecer Gilberto Freyre – sociólogo e escritor, autor de Casa-grande & Senzala (1933) – sua vida nunca mais foi a mesma: “de lá pra cá foram outras as minhas preocupações, [...] os meus planos, as minhas leituras,

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O romance da Geração de 1930

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os meus entusiasmos”. E foi sob a influência de Gilberto Freyre que começou a escrever seus romances regionalistas.

Em 1924, casou-se com Philomena Massa (D. Naná). Do casamento, teve três filhas: Maria Elisabeth, Maria da Glória e Maria Cristina. Em 1925, foi promotor público em Minas Gerais. Em 1926, transferiu-se para Maceió (Alagoas), onde tra-balhou como fiscal de bancos por nove anos e conviveu com Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz (1910-2003), Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), Jorge de Lima (1893-1953) e outros. O contato com esses e outros artistas formou uma consciência regionalista em torno da vida nordestina que marcou a obra de todos eles, especialmente a de José Lins do Rego. Em Maceió, escreveu os três primeiros romances: Menino de Engenho, Doidinho e Banguê.

Seu livro de estreia, Menino de Engenho, foi publicado em 1932 e recebeu o prêmio da Fundação Graça Aranha. Muito bem recebido pela crítica, a edição de dois mil exemplares foi quase totalmente vendida no Rio de Janeiro.

Em 1935, nomeado fiscal do imposto de consumo, José Lins do Rego foi para o Rio de Janeiro, onde passaria o resto de sua vida. Esteve em países sul-ameri-canos, na Europa e no Oriente. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 15 de setembro de 1955. Morreu dois anos depois, em 12 de setembro de 1957, sendo enterrado no mausoléu da Academia, no cemitério São João Batista.

O ciclo da cana-de-açúcar A partir de 1932, José Lins do Rego publicou doze romances, um volume de

memórias, Meus Verdes Anos, um de literatura infantil, Histórias da Velha Totônia, além de livros de viagem, conferências e crônicas.

Na obra desse grande contador de histórias, destacam-se os romances co-nhecidos como o ciclo da cana-de-açúcar, tendo como matéria básica o enge-nho Santa Rosa, do velho José Paulino. Em Menino de Engenho (1932), primeiro romance do ciclo, o autor mostra, de maneira lírica e saudosista, o ambiente de engenho em que o garoto Carlinhos foi criado, após seu pai, desequilibrado mental, ter assassinado a mãe. Criado entre os “moleques de bagaceira”, o garoto cresceu sob o avassalador poder patriarcal do avô José Paulino. Aos 12 anos de idade, conheceu a sexualidade com a “rapariga” Zefa Cajá, de quem contrai uma “doença do mundo”. Por fim, foi mandado ao colégio interno, para “endireitar”, perder os hábitos da “bagaceira” e se tornar um legítimo “senhor de engenho”.

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Modernismo na Literatura Brasileira

Em Doidinho (1933), José Lins do Rego descreve a vida de Carlos de Melo no colégio interno e depois, em Banguê (1934), mostra o seu retorno ao Santa Rosa, aos 24 anos, já formado em Direito. Então, Carlinhos tenta readaptar-se ao engenho, sempre permeado por uma sensação de impotência frente ao espírito autoritário do seu avô. Após a morte do velho José Paulino, Carlos acaba por levar o Santa Rosa à ruína, vende o engenho ao tio Juca e abandona para sempre as suas terras.

José Lins do Rego considerava Usina (1936) como o último livro do ciclo:

Nota à 1.ª edição

Com Usina termina a série de romances que chamei um tanto enfaticamente de Ciclo da Cana- -de-açúcar.

A história desses livros é bem simples – comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de vida o que eu queria contar.

Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior.

Veio, após o Menino de engenho, Doidinho, em seguida Banguê. Carlos de Melo havia crescido, sofrido e fracassado. Mas o mundo do Santa Rosa não era só Carlos de Melo. Ao lado dos meninos de engenho havia os que nem o nome de menino podiam usar, os chamados “moleques de bagaceira”, os Ricardos. Ricardo foi viver por fora do Santa Rosa a sua história que é tão triste quanto a do seu companheiro Carlinhos. Foi ele do Recife a Fernando de Noronha. Muita gente achou-o parecido com Carlos de Melo. Pode ser que se pareçam. Viveram tão juntos um do outro, foram tão íntimos na infância, tão pegados (muitos Carlos beberam do mesmo leite materno dos Ricardos) que não seria de espantar que Ricardo e Carlinhos se assemelhassem. Pelo contrário.

Depois do Moleque Ricardo veio Usina, a história do Santa Rosa arrancado de suas bases, espatifado, com máquinas de fábrica, com ferramentas enormes, com moendas gigantes devorando a cana madura que as suas terras fizeram acamar pelas várzeas. Carlos de Melo, Ricardo e o Santa Rosa se acabam, têm o mesmo destino, estão tão intimamente ligados que a vida de um tem muito da vida do outro. Uma grande melancolia os envolve de sombras. Carlinhos foge, Ricardo morre pelos seus e o Santa Rosa perde até o nome, se escraviza.

Rio de Janeiro, 1936.J. L. R.

Usina apresenta o engenho transformado na usina Bom Jesus – que, dirigida pelo Dr. Juca, vai perdendo a sua força ao ser pressionada por interesses estran-geiros e pela usina Santa Fé, que domina toda a região. Além disso, ela acaba invadida por miseráveis em busca de alimentos e por fim é vendida pelo Dr. Juca, que a abandona melancolicamente.

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O romance da Geração de 1930

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Fogo Morto Mas o engenho Santa Rosa e alguns de seus moradores voltariam a aparecer

na obra-prima de José Lins do Rego, o romance Fogo Morto (1943), que se cons-trói em torno de três personagens: o coronel Lula de Holanda, senhor de en-genho decadente e brutal; o mestre José Amaro, seleiro pobre e sábio, homem de destino trágico; e Vitorino Carneiro da Cunha, herói quixotesco, estabanado defensor dos oprimidos. Com este romance, José Lins finaliza o estudo da de-cadência da sociedade rural patriarcal dos senhores de engenho do Nordeste e, portanto, Fogo Morto pode ser considerado um integrante tardio do ciclo que José Lins julgou concluído anteriormente. Mais que integrar, Fogo Morto se tornou a maior obra do Ciclo da cana-de-açúcar pois, ao minimizar o cará-ter autobiográfico e nostálgico das obras precedentes, o romancista paraibano acrescentou à sua extraordinária facilidade de narrar – que mais lembra um con-tador de histórias marcado pela oralidade e pela naturalidade – a objetividade e a consciência compositiva que o caráter sentimental e espontâneo das obras anteriores encobria. Portanto, em Fogo Morto o romancista maduro e consciente se sobrepõe ao memorialista nostálgico para construir sua obra-prima: síntese, aprofundamento e condensação de todas as outras.

Espaço e tempo Fogo Morto se passa no município de Pilar, na Zona da Mata paraibana, às

margens do rio Paraíba, distante cerca de 50 quilômetros de João Pessoa e nas proximidades de Itabaiana. A maior parcela da ação se desenvolve nas terras do engenho Santa Fé, nos arredores do Pilar. Na cidade, passa-se boa parte da última seção da obra.

O desenrolar dos acontecimentos se dá durante os primeiros anos do século XX, com uma regressão a 1850, época da fundação do engenho Santa Fé. Embora seja traçada rapidamente a história do engenho até o momento narrado, as ações em si não duram mais do que alguns meses.

O título Os “engenhos” do Nordeste eram, originalmente, estabelecimentos agríco-

las destinados à cultura da cana e à fabricação do açúcar. Com a ascensão das

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Modernismo na Literatura Brasileira

usinas, que passaram a comprar dos engenhos sua produção bruta (a cana-de- -açúcar ainda não processada) para fabricar o açúcar, a maior parte desses enge-nhos foi, aos poucos, deixando de “botar”, de moer a cana para a fabricação do açúcar. Eles passaram apenas a vender a matéria-prima às usinas, tornando-se engenhos “de fogo morto” e assim perderam boa parte de seu poder, tornando- -se reféns dos preços pagos pelas usinas. É como se encontra, ao final de Fogo Morto, o decadente engenho Santa Fé.

Estrutura triangularFogo Morto é dividido em três partes. Cada uma delas traz, no título, o nome de

um dos três personagens principais do romance, mas as três partes se entrecruzam, os personagens aparecem ao longo de todo o livro. O coronel Lula de Holanda, o mestre José Amaro e Vitorino Carneiro da Cunha – misto de Dom Quixote e Sancho Pança que, em suas andanças e na sua ingênua busca de justiça, estabelece as rela-ções entre todas as personagens, servindo como ponto central da narrativa.

Primeira parte: o mestre José Amaro � – A primeira parte do romance centra- -se na casa do mestre José Amaro, à beira da estrada, no engenho Santa Fé. Mestre José Amaro é um seleiro orgulhoso e machista, que se recusa a ser dominado por qualquer um, só trabalha para quem escolhe e admira o can-gaceiro Antônio Silvino. Em grande medida, esta parte da obra se constrói por meio dos diálogos entre José Amaro e os passantes, incluindo o com-padre Vitorino Carneiro da Cunha, apelidado pelas crianças de Papa-rabo. Mestre José Amaro se irrita com o coronel Lula de Holanda, que é dono das terras em que o mestre mora e sempre cruza a estrada em seu cabriolé sem jamais parar para cumprimentá-lo. Vai adiando, portanto, atender ao chamado do coronel para que vá conversar com ele na casa-grande. Vemos o lento processo de enlouquecimento de Marta, sua filha, em quem José Amaro bate para tentar curar. O mestre recebe uma encomenda de com-pras de Antônio Silvino e sente-se muito orgulhoso em poder ajudá-lo. Seu caráter fechado e ranzinza lhe vale a fama de se transformar em lobisomem e as pessoas temem encontrar com ele à noite. Por fim, tem que mandar a filha para o hospício em Recife e acaba por atender ao chamado do coronel Lula, que lhe ordena que se retire de suas terras.

Segunda parte: o engenho de seu Lula – � No início da segunda parte do livro, temos uma regressão temporal, com o narrador retornando a 1850 para contar a fundação do engenho Santa Fé pelo capitão Tomás Cabral de Melo. Mudando-se para a região antes de 1848, ele compra as terras,

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O romance da Geração de 1930

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funda o engenho e o faz prosperar. Casa sua filha Amélia com Lula Chacon de Holanda, seu primo, que pouco interesse ou aptidão tem para dirigir o engenho. Adoentado, deixa D. Mariquinha, sua mulher, dirigindo os negó-cios. Quando o capitão morre, Lula entra em disputa com a sogra e acaba por tomar-lhe as terras e o poder. Castigando os escravos com requintes de crueldade, andando com seu cabriolé para cima e para baixo, seu Lula vai se afastando cada vez mais do povo de Pilar e seu engenho entra em total decadência quando vem a Abolição e seus escravos debandam. Au-toritário, impede os homens de se aproximarem da filha. Epilético, tem um ataque na igreja e passa a se dedicar à religião com fervor. Empobrecido, gasta até as últimas moedas de ouro que lhe deixou o sogro. Sente uma inveja enorme de seu vizinho José Paulino e de seu engenho Santa Rosa, e despreza o espírito quixotesco de Vitorino Carneiro da Cunha. Esta parte se encerra com uma frase melancólica: “Acabara-se o Santa Fé”.

Terceira parte: o capitão Vitorino – Na terceira e última parte do romance, �predomina a ação. O capitão Antônio Silvino invade a cidade do Pilar, sa-queia as casas e lojas. Invade o engenho Santa Fé, ameaça os moradores em busca do ouro escondido. Tentando defender o engenho, Vitorino é agredido e só a intervenção de José Paulino faz com que os cangaceiros desistam. Vitorino também apanha da polícia, José Amaro e seus compa-nheiros são presos e agredidos. No final, após serem libertados, Vitorino e o mestre José Amaro seguem rumos diferentes: o primeiro pensa em influir politicamente na região, ao passo que o segundo, abandonado pela mulher, com a filha louca e expulso de sua casa, acaba por cometer suicí-dio enquanto o cabriolé de Lula passa pela estrada e o Santa Fé torna-se engenho de fogo morto.

As filhas e as mulheres Há uma sinistra simetria entre Marta, a sofredora filha de José Amaro, uma

solteirona que enlouquece aos poucos, e as filhas dos senhores do engenho Santa Fé, seus antagonistas. Olívia, a filha mais nova do capitão Tomás Cabral de Melo, enlouquece e perturba o silêncio áspero da casa-grande com seus gritos. Neném, filha do coronel Lula de Holanda, é impedida pelo pai de se casar, sendo melancólica e soturna. Sem filhos homens, os ensimesmados, machistas e tei-mosos opositores acabam destruindo suas filhas.

As mulheres dos protagonistas também se assemelham muito. Sinhá Velha e Sinhá Adriana são mais práticas e racionais do que os maridos – José Amaro e

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Modernismo na Literatura Brasileira

Vitorino –, mas pouco podem contra o machismo e a teimosia dos homens. No engenho Santa Fé, as mulheres sempre se mostram mais decididas e práticas do que o impotente Lula Chacon. D. Mariquinha, sua sogra, comanda o engenho até a morte do marido, quando é passada para trás pelo genro, que se mostra muito sem competência para gerir o engenho, que acaba por ser dirigido – sutil-mente – por D. Amélia, sua mulher.

Polícia ou bandido Polícia e bandido em muito se assemelham. Tanto o cangaceiro Antônio Sil-

vino quanto o tenente Maurício, comandante das tropas policiais, abusam da violência, ameaçam a todos, espancam o sonhador Vitorino e espalham o terror por onde passam. Mesmo que o povo (representado por José Amaro) respeite mais ao cangaceiro, as suas ações não deixam de comprovar (como constatado por Vitorino) que ele utiliza métodos abusivos e muito próximos do terror im-plantado por seu opositor.

Erico Verissimo Proveniente de uma rica família gaúcha que, repentinamente, entrou em de-

cadência, Erico Verissimo (1905-1975) trabalhou em empregos medíocres até se tornar jornalista e, logo depois, escritor de sucesso. O gaúcho Erico Verissimo foi um dos primeiros escritores brasileiros a viver da literatura.

A primeira fase de sua obra retrata a vida urbana, o cotidiano da cidade de Porto Alegre. Seu primeiro romance é Clarissa (1933) e nele o autor descreve, com muita sensibilidade, um ano na vida de uma adolescente que vai crescendo em Porto Alegre e, ingenuamente, observando o mundo. Depois vieram Música ao Longe (1935), em que Clarissa ressurge já adulta e angustiada, e Um Lugar ao Sol (1936), em que Erico Verissimo enfoca, em primeiro plano, Vasco Bruno, o marido de Clarissa, e atinge o ápice da investigação psicológica.

Na segunda fase de sua carreira, Erico Verissimo envereda pelo romance de linha histórica, em que conta a história do Rio Grande do Sul por meio das aven-turas da família Terra-Cambará. Três romances formam a série O Tempo e o Vento: O Continente (1949), em que aparecem os conhecidos episódios Ana Terra e Um certo capitão Rodrigo; O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961).

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O romance da Geração de 1930

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O Continente Primeiro volume da trilogia O Tempo e o Vento, narra, em tom ao mesmo

tempo épico e lírico, a história da cidade de Santa Fé, desde os primórdios de sua fundação, em 1745, até o final da Revolução Federalista, em 1895. São, portanto, 150 anos da história gaúcha, narrados em terceira pessoa, de maneira neutra e onisciente, como convém a uma obra de caráter épico e histórico. No entanto, a narrativa não é linear, apresentando descontinui-dades temporais e uma constante oscilação entre 1895 e diversas datas na história de Santa Fé. Por sinal, muitos leitores entraram em contato apenas com fragmentos deste romance, posteriormente publicados como histórias separadas. Muitos já leram Ana Terra ou Um certo Capitão Rodrigo como no-velas isoladas, sem ao menos saber que ambas fazem parte de O Continente. Vejamos a estrutura geral da obra, com a indicação da época em que cada fragmento se passa.

Fragmento Período descritoO sobrado I 24 de junho de 1895: noiteA fonte 1745 a 1756O sobrado II 25 de junho de 1895: madrugadaAna Terra 1777 a 1811O sobrado III 25 de junho de 1895: tardeUm certo capitão Rodrigo 1828 a 1836O sobrado IV 25 de junho de 1895: noiteA Teiniaguá 1850 a 1855 O sobrado V 26 de junho de 1895: manhãA guerra 1869O sobrado VI 26 de junho de 1895: noiteIsmália Caré 1884 O sobrado VII 27 de junho de 1895: manhã

Há, portanto, duas linhas claras na estrutura do romance: aquela com-posta pelos fragmentos “O sobrado” (I a VII), que narram o cerco sofrido pelo sobrado de Licurgo Cambará entre 24 e 27 de junho de 1895, os úl-timos dias da Revolução Federalista, iniciada em 1893; e a linha histórica, que conta a história de Santa Fé por meio das aventuras da família Terra- -Cambará, apresentada nos outros framgmentos.

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Modernismo na Literatura Brasileira

“O sobrado”Teimoso como seu avô Rodrigo, Licurgo Cambará está cercado em seu so-

brado pelas forças federalistas, comandadas pelos Amaral, eternos inimigos dos Cambará. Acompanhado pela avó Bibiana, a cunhada Maria Valéria, os filhos Toríbio e Rodrigo e pela mulher Alice (prestes a dar à luz novamente), Licurgo luta contra os inimigos, contra a fome e a sede e contra o destino trágico dos Cambará. Alice dá à luz uma menina que “nasce morta” e está, ela mesma, às portas da morte. Quando Licurgo está prestes a levantar uma bandeira branca, rendendo-se, vê encaminharem-se para o sobrado os seus aliados com a notícia de que os federalistas – os maragatos – haviam se rendido. Salvo o sobrado, Li-curgo reassume seu posto de intendente (prefeito) de Santa Fé e a família Cam-bará vence, como sempre à custa de muito sacrifício, uma importante batalha na eterna guerra contra os Amaral.

A históriaO primeiro fragmento dedicado à história do Rio Grande do Sul é “A fonte”, �em que se narra, a partir de 1745, a história do padre Alonzo, que nos Sete Povos catequiza os jovens índios, dentre os quais está Pedro, que no seu fu-ror místico imagina ver Nossa Senhora e conversar com os mortos. Quando os Sete Povos são esmagados pelos portugueses, em 1756, “Pedro montou num cavalo baio e, levando consigo somente a roupa do corpo, a chirimia e o punhal de prata, fugiu a todo galope na direção do grande rio...”

“Ana Terra” é o fragmento seguinte. Maneco Terra e sua família moram em �uma estância próxima a Rio Pardo. Ana acaba se apaixonando pelo índio Pe-dro Missioneiro, de quem engravida. Antônio e Horácio, irmãos de Ana, as-sassinam Pedro para limpar a honra da irmã. Forte e corajosa, Ana cria o filho, mesmo enfrentando o desdém do pai. Quando a estância é atacada por es-panhóis, só Ana, seu filho Pedro e sua cunhada Eulália sobrevivem. Juntam-se à caravana de Marciano Bezerra e vão para a estância Santa Fé, comandada pelo coronel Ricardo Amaral. Com Pedro, Ana Terra constrói em Santa Fé uma vida que só não é inteiramente tranquila porque as guerras frequentemente a afastam do filho, que segue as ordens do estancieiro Amaral.

“Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o capitão Rodrigo �Cambará entrara na vida de Santa Fé.” Assim se inicia o fragmento “Um cer-to capitão Rodrigo”, que narra como o guerreiro e andarilho Rodrigo Cam-bará, síntese do espírito gaúcho (corajoso, leal, tradicionalista e, acima de

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tudo, másculo), chega ao povoado, em 1828. Travando amizade com Ju-venal Terra, filho de Pedro e neto de Ana Terra (que nesse momento já era falecida), Rodrigo logo se apaixona por Bibiana, irmã de Juvenal. Lutando contra o poderio da família Amaral, Rodrigo termina casando-se com Bi-biana, com quem tem os filhos Bolívar e Leonor, e acaba por enfrentar o coronel Ricardo Amaral em confronto mortal. Os dois inimigos morrem na luta e no mesmo dia são sepultados. Está decretada a eterna guerra entre os Amaral e os Terra-Cambará.

O fragmento seguinte, “A Teiniaguá”, passa-se durante a primeira metade �da década de 1850. Bolívar Cambará casa-se com Luzia, neta de Aguinal-do Silva, dono do sobrado mais imponente de Santa Fé. Morando no so-brado, Bolívar e Luzia têm o filho Licurgo e a amizade do doutor Winter, médico alemão muito culto que se torna, com suas observações da vida gaúcha, uma das personagens mais importantes do romance. Mais culta e requintada que o marido, Luzia se opõe ao machismo gaúcho e aos pou-cos se revela um tanto desequilibrada, tendo verdadeira fascinação pela morte. Bolívar é assassinado a mando dos Amaral e Bibiana se encarrega de cuidar de seu neto Licurgo.

O próximo fragmento da história dos Terra-Cambará já se passa em �1869, quando os homens de Santa Fé são enviados à Guerra do Paraguai (1864-1870). Intitulado “A guerra”, esse fragmento gira em torno dos cui-dados de Bibiana Cambará com Licurgo, seu neto adolescente que tanto lembra seu marido Rodrigo. Decidida a criar o neto como herdeiro da coragem e do orgulho dos Cambará, ela entra em conflito com Luzia, a cada dia mais depressiva e sofrendo de um tumor maligno.

“Ismália Caré”, último fragmento de � O Continente, passa-se em 1884, quando, instigado pela avó, Licurgo se casará com sua prima Alice. Vivendo entre o sobrado e a estância de Angico, Licurgo mantém um caso com Ismália Caré, filha de um trabalhador rural da sua propriedade. A ação se passa durante os festejos pela elevação de Santa Fé a cidade. Duas festas se opõem: uma que é organizada pelos Amaral e a outra, evidentemente, organizada pelos Cambará. Licurgo descobre que Ismália espera um filho seu, mas decide que não o terá, pois deve casar-se com Alice para continuar a luta dos Cambará. O livro chega, assim, aos acontecimentos da Revolução Federalista, em que, cercado no sobrado, Licurgo defende a honra e a família.

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Modernismo na Literatura Brasileira

Realismo fantástico A terceira e última fase do romancista é marcada por um realismo fantástico

próximo ao dos escritores latino-americanos das décadas de 1960 e 1970. Em obras como Incidente em Antares (1971), Verissimo, por meio de episódios fantásticos, aparentemente distantes da realidade, critica a vida política e social do momento.

Rachel de Queiroz Rachel de Queiroz (1910-2003) cresceu no sertão do Ceará, em Fortaleza, no

Rio de Janeiro, em Belém e em Quixadá (CE). Em 1925, formou-se professora e passou a colaborar em jornais locais. Em 1930, com a publicação de O Quinze, alcançou sucesso nacional. Militou nos quadros políticos da esquerda, chegou a ser presa em 1937 e, a partir de então, fixou residência no Rio de Janeiro.

Autora de vasta obra, como romancista, cronista e tradutora, Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras, conquistou todos os prêmios literários importantes do Brasil e, pouco antes de morrer (morreu dormindo em sua rede, em 4 de novembro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro), ainda afirmava que era jornalista, pois escrevia para os jornais desde os 19 anos de idade. Porém – dizia – não gostava de escrever, só o fazia para se sustentar e con-siderava que havia escrito poucos livros (O Quinze, As três Marias, Dôra, Doralina, Gallo de Ouro e Memorial de Maria Moura). Para ela, os outros eram apenas compi-lações de crônicas que fez por encomenda, para a imprensa.

Profundamente ligada à sua terra natal, Rachel de Queiroz escrevia em uma linguagem dominada pelo humanismo e, nos seus romances, predominam a me-mória e a observação dos problemas sociais da região. Além de O Quinze, publicou os romances João Miguel (1932), Caminho das Pedras (1937), As Três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975), Gallo de Ouro (1986) e Memorial de Maria Moura (1992).

O Quinze O sucesso, que rapidamente alcançou em todo o país, desta obra de uma

jovem cearense de 20 anos de idade fez com que O Quinze, publicado pouco depois de A Bagaceira, fosse uma das obras fundamentais na divulgação do Re-

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gionalismo de 1930. Escrito em linguagem bem mais direta e simples do que o romance de José Américo de Almeida, a obra de estreia de Rachel de Queiroz usa a seca de 1915 no Ceará como pano de fundo para revelar o sofrimento e as angústias tanto dos miseráveis quanto dos proprietários rurais.

Narrado em terceira pessoa e utilizando a onisciência, o romance apresenta dois núcleos dramáticos que se cruzam:

a odisseia de Chico Bento, vaqueiro pobre e desempregado, e sua família, �fugindo da seca rumo a Fortaleza;

os desencontros amorosos entre a professora Conceição e o seu primo e �quase namorado, o pecuarista Vicente.

Conceição leva sua avó Inácia da fazenda onde mora, em Quixadá, para ficar em Fortaleza enquanto perdurar a seca. Na capital, a professora, que é solteirona (aos 22 anos!), ajuda os miseráveis reunidos no Campo de Concentração e pensa no seu primo Vicente, que permanece em Quixadá, cuidando bravamente da fazenda da família. Divididos tanto no espaço quanto por interesses diversos e intrigas várias, além de estarem incapazes de se comunicar, os primos vão – mesmo se amando – separando-se mais a cada dia. Enquanto isso, a distância entre Quixadá e Fortaleza vai sendo coberta, a pé, sob o sol escaldante, sem água e sem comida, por Chico Bento, Cordulina (sua mulher), Mocinha (a cunhada) e os cinco filhos. Mocinha fica pelo meio do caminho e acaba “caindo na vida” (torna-se prostituta); o filho mais velho morre envenenado; outro filho foge e se perde para sempre. A família, já bem reduzida, acaba por chegar ao Campo de Concentração, em Fortaleza, onde é aco-lhida por Conceição, que fica com o filho mais novo e consegue passagens para os restantes irem tentar uma sorte melhor em São Paulo. Com o fim da seca, Conceição vai visitar Quixadá, sentindo-se “estéril, inútil, só”. Encontra-se com Vicente, também solitário, mas a comunicação entre os dois já se tornara impossível, “E Conceição o viu sumir-se no nevoiro dourado da noite, passando a galope, como um fantasma, por entre o vulto sombrio dos serrotes” (QUEIROZ, 2004, p. 160).

Jorge Amado A estreia literária de Jorge Amado (1912-2001), baiano de Itabuna, ocorreu

em 1931, com o romance O País do Carnaval. Em 1933, ele publicou Cacau, ro-

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mance muito bem-recebido tanto pela crítica quanto pelo público leitor. Suor (1934), Jubiabá (1935) e Mar Morto (1936) seguiriam a trilha do romance regiona-lista preocupado em denunciar as desigualdades sociais nordestinas.

Quando Capitães da Areia (1937) foi publicado, o Brasil iniciava a ditadura do Estado Novo (1937-1945). O teor do romance, claramente apologético de uma revolução socialista, levou a ditadura a confiscar a primeira edição e a queimar 1694 exemplares de livros de Jorge Amado em praça pública, em Salvador. Ca-pitães da Areia haveria de se tornar, décadas depois, um dos livros de maior su-cesso entre o público adolescente por todo o país. Nesse romance, Jorge Amado denuncia a situação de marginalidade miserável das crianças abandonadas de Salvador, recorrendo muitas vezes a fictícias notícias de jornal para realçar o ca-ráter realista de reportagem investigativa. Mas, como lhe é peculiar, não se limita ao realismo: cria uma atmosfera nitidamente romântica ao descrever o heroísmo de Pedro Bala e seus companheiros. Em 1943, depois de seis anos de censura, o autor publicou Terras do Sem Fim, romance com que chegou ao ápice da literatu-ra engajada na proposta de uma revolução social.

Mas, logo sua obra tomaria outro rumo. O volume Os Velhos Marinheiros, de 1961, por exemplo, reúne duas novelas de caráter fantástico, com sabor de lenda alegórica, narradas em tom de rumor popular, sobre “velhos marinhei-ros” baianos.

A primeira novela do livro é “A morte e a morte de Quincas Berro D’água”, em que são narradas as duas mortes de Quincas Berro D’água – ou as três mortes do respeitável funcionário público Joaquim Soares da Cunha.

Joaquim Soares da Cunha e Quincas Berro D’água

A primeira morte se deu quando o respeitável funcionário público Jo- �aquim, viúvo exemplar, abandonou o lar e a família (a filha Vanda, o genro Leonardo, a tia Marocas e seu irmão mais moço, o comerciante Eduardo). Morto para a família, Joaquim foi viver como bêbado vaga-bundo entre a arraia-miúda de Salvador. Famoso beberrão, certo dia ele entrou na venda do espanhol Lopes e virou uma garrafa do que jul-gava ser cachaça. O seu berro de terror – “Águuuuuua!” – criou o ape-

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lido pelo qual se tornou conhecido por toda a malandragem: Quincas Berro Dágua.

Certa manhã, Quincas foi encontrado morto no seu quarto na Ladei- �ra do Tabuão. A família preparou o enterro e resolveu velá-lo às es-condidas no seu quarto. Durante o velório, Quincas misteriosamente xingou toda a família. E quando quatro amigos vagabundos ficaram a sós com o cadáver, serviram-lhe um gole de cachaça, fazendo com que ressuscitasse.

Alegre e bêbado, Quincas foi levado pelos amigos a um último passeio �pela vida noturna da cidade. Beberam, brigaram e acabaram navegan-do no veleiro de Mestre Manuel. Durante o passeio, Quincas caiu ao mar, onde morreu definitivamente.

A segunda novela é “A completa verdade sobre as discutidas aventuras

do comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão-de-longo-curso”. Vasco Moscoso de Aragão é uma personagem um tanto cômica que se apresenta na cidade de Periperi, onde vai morar, como um velho marinheiro, ostentando o título, totalmente falso, de capitão-de-longo-curso. Por um fantástico golpe de sorte, o impostor acaba se convertendo em herói da navegação.

Os Velhos Marinheiros se distancia muito de Capitães da Areia, em que, apesar de certo tom emotivo, ainda prevalecia a intenção de descrever cri-ticamente a sociedade. No livro de 1961, predomina o insólito, o pitoresco. Os pobres são descritos como seres alegres e romanticamente livres. O Jorge Amado anedótico, sonhador e lírico nitidamente se sobrepõe ao crítico das desigualdades sociais.

Na verdade, essa é uma tendência marcante na sua obra a partir de Gabrie-la, Cravo e Canela (1958). Não por acaso, é este Jorge Amado – o criador das folclóricas personagens de Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Teresa Batista Cansada de Guerra (1972) e Tieta do Agreste (1977) – e não o comunista das denúncias sociais das décadas de 1930 e 1940 que, adaptado para as telas, transformou-se em estrondoso sucesso de audiência da televisão e do cinema brasileiros.

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O romance urbanoCyro dos Anjos (1906-1994) era mineiro de Montes Claros e produziu uma obra

fortemente influenciada pela obra de Machado de Assis, pois apresenta, como a do mestre realista, uma constante oscilação entre a melancolia e o humor. O Ama-nuense Belmiro (1937) e Abdias (1945), seus principais romances, são em forma de diários escritos por narradores insignificantes, homens “menores”, como o Brás Cubas de Machado de Assis. Introspecção e memória fundem-se no observador discreto da vida urbana de personagens simples e humildes. Essa qualidade, aliada a uma linguagem clara e composta com muito rigor, faz de Cyro dos Anjos um dos narradores mais ágeis do nosso Modernismo.

Poucos romances, como O Amanuense Belmiro, correspondem tão perfeita-mente ao conceito – elaborado pelo crítico Lucien Goldmann (1913-1970) – de romance de tensão interiorizada: aquele em que o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafí-sica da realidade. A narrativa de O Amanuense Belmiro é em primeira pessoa, na forma de um diário. Belmiro Borba, o narrador, conta sobre seus sonhos frustra-dos, seu cotidiano de burocrata, seu círculo de amigos “literatos” e seus amores platônicos. O diário é escrito durante pouco mais de um ano, do Natal de 1934 a alguns dias após o Carnaval de 1936. De início, Belmiro aspirava a escrever suas memórias de Vila Caraíbas, onde fora criado. No entanto, termina, isto sim, por descrever o seu dia-a-dia de homem solteiro e solitário, que olha com melancolia para o presente e lamenta, como Manuel Bandeira (1886-1968), “toda a vida que podia ter sido e que não foi”. Ele tem quase 40 anos, mora na Rua Erê, em Belo Horizonte, com as irmãs Emília e Francisquinha (que são mais velhas que ele) e é amanuense – um escrevente, funcionário burocrático subalterno – na Seção do Fomento Animal. Belmiro projeta imaginação e memória sobre seu cotidia-no insosso, vivendo mais nos projetos irrealizáveis e nos sonhos intangíveis que na própria realidade. O romance termina como o poema “Cota zero”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), citado por Belmiro no início da narrativa: “Stop!/ A vida parou/ ou foi o automóvel?” Inesperada e abruptamente, Belmiro nos informa que a vida parou e nada há mais por escrever – mas foi escrevendo que Belmiro salvou-se da insignificância. Nas suas próprias palavras:

Quem quiser fale mal da Literatura. Quanto a mim, direi que devo a ela a minha salvação. Venho da rua deprimido, escrevo dez linhas, torno-me olímpico... Em verdade vos digo: quem escreve neste caderno não é o homem fraco que há pouco entrou no escritório. É um homem poderoso, que espia para dentro, sorri e diz: “Ora bolas”.

Como sintetiza Antonio Candido, em um prefácio para esse livro,

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O Amanuense Belmiro é o livro de um burocrata lírico. Um homem sentimental e tolhido, fortemente tolhido pelo excesso de vida interior, escreve seu diário e conta suas histórias. Para ele, escrever é, de fato, evadir-se da vida; é a única maneira de suportar a volta às suas decepções, pois escrevendo-as, pensando-as, analisando-as, o amanuense estabelece um movimento de báscule entre a realidade e o sonho.

Textos complementaresLeia, a seguir, as descrições de dois dos mais conhecidos personagens de

Erico Verissimo: Ana Terra e o capitão Rodrigo Cambará.

Ana Terra (VERISSIMO, 1967, p. 113-114)

Os anos chegavam e se iam. Mas o trabalho fazia Ana esquecer o tempo. No inverno tudo ficava pior: a água gelava nas gamelas que passavam a noite ao relento; pela manhã o chão frequentemente estava branco de geada e houve um agosto em que quando foi lavar roupa na sanga Ana teve primeiro de quebrar com uma pedra a superfície gelada da água.

Em certas ocasiões surpreendia-se a esperar que alguma coisa aconteces-se e ficava meio aérea, quase feliz, para depois, num desalento, compreender subitamente que para ela a vida estava terminada, pois um dia era repetição do dia anterior – o dia de amanhã seria igual ao de hoje, assim por muitas semanas, meses e anos até a hora da morte. Seu único consolo era Pedrinho, que ela via crescer, dar os primeiro passos, balbuciar as primeiras palavras. Mas o próprio filho também lhe dava cuidados, incômodos. Quando ele ado-ecia e não sabia dizer ainda que parte do corpo lhe doía, ela ficava agoniada e, ajudada pela mãe, dava-lhe chás e ervas, e quando a criança gemia à noite ela a ninava, cantando baixinho para não acordar os que dormiam.

De quando em quando chegavam notícias do Rio Pardo pela boca dum passante. Contaram um dia a Maneco Terra que Rafael Pinto Bandeira tinha sido preso, acusado de ter desviado os quintos e direitos da Coroa de Portu-gal e de ter ficado com as presas apanhadas nos combates de São Martinho e Santa Tecla. Ia ser enviado para o Rio de Janeiro e submetido a conselho de guerra. E o informante acrescentou:

– Tudo são invejas do governador José Marcelino, que é um tirano.

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Maneco não disse palavra. Não era homem de conversas. Não se metia com os graúdos. O que ele queria era cuidar de sua casa, de sua terra, de sua vida.

De toda a história Ana só compreendeu uma coisa: Rafael Pinto Bandeira fora preso como ladrão. E imediatamente lembrou daquele remoto dia de vento em que o comandante, todo faceiro no seu fardamento e seu chapéu de penacho, lhe dissera de cima do cavalo: “Precisaremos de muitas moças bonitas e trabalhadeiras como vosmecê.”

Muitos anos mais tarde, Ana Terra costumava sentar-se na frente de sua casa para pensar no passado. E no seu pensamento como que ouvia o vento de outros tempos e sentia o tempo passar, escutava vozes, via caras e lembrava-se de coisas... o ano de 81 trouxera um acontecimento triste para o velho Maneco: Horácio deixara a fazenda, a contragosto do pai, e fora para o Rio Pardo, onde se casara com a filha de um tanoeiro e se estabelecera com uma pequena venda. Em compensação, nesse mesmo ano, Antônio casou-se com Eulália Moura, filha dum colono açoriano dos arredores do Rio Pardo, e trouxe a mulher para a estância, indo ambos viver no puxado que tinham feito no rancho.

Em 85 uma nuvem de gafanhotos desceu sobre a lavoura deitando a perder toda a colheita. Em 86, quando Pedrinho se aproximava dos oito anos, uma peste atacou o gado e um raio matou um dos escravos.

Foi em 86 mesmo ou no ano seguinte que nasceu Rosa, a primeira filha de Antônio e Eulália? Bom. A verdade era que a criança tinha nascido pouco mais de um ano após o casamento. Dona Henriqueta cortara-lhe o cordão umbilical com a mesma tesoura de podar que separara Pedrinho da mãe.

E era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e se sumia, a lua passava por todas as fases, as estações iam e vinham, deixando sua marca nas árvo-res, na terra, nas coisas e nas pessoas.

Capitão Rodrigo (VERISSIMO, 1967, p. 171-173)

Toda gente tinha achado estranha a maneira como o capitão Rodrigo Cambará entrara na Vila de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça

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de macho ativamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos 30, montava um alazão, vestia calças de riscado, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encar-nado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco de um cinamomo, entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido:

— Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!

Havia por ali uns dois ou três homens, que o miraram de soslaio sem dizer palavra. Mas dum canto da sala ergueu-se um moço moreno, que puxou a faca, olhou para Rodrigo e exclamou:

— Pois dê!

Os outros homens afastaram-se como para deixar a arena livre, e Nicolau, atrás do balcão, começou a gritar:

— Aqui dentro não! Lá fora! Lá fora!

Rodrigo, porém, sorria, imóvel, de pernas abertas, rebenque pendente do pulso, mãos na cintura, olhando para o outro com um ar que era ao mesmo tempo de desafio e simpatia.

— Incomodou-se, amigo? – perguntou jovial, examinando o rapaz de alto a baixo.

— Não sou de briga, mas não costumo aguentar desaforo.

— Oôi bicho bom!

Os olhos de Rodrigo tinham uma expressão cômica.

— Essa sai ou não sai? Perguntou alguém do lado de fora, vendo que Rodrigo não desembainhava a adaga. O recém-chegado voltou a cabeça e respondeu calmo:

— Não sai. Estou cansado de pelear. Não quero puxar arma pelo menos

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por um mês. – Voltou-se para o homem moreno e, num tom sério e concilia-dor, disse:

— Guarde a arma, amigo.

O outro, entretanto, continuou de cenho fechado e faca em punho. Era um tipo indiático, de grossas sobrancelhas negras e zigomas salientes.

— Vamos, companheiro – insistiu Rodrigo. – Um homem não briga debal-de. Eu não quis ofender ninguém. Foi uma maneira de falar.

Depois de alguma relutância o outro guardou a arma, meio desajeitado, e Rodrigo, estendeu-lhe a mão dizendo:

— Aperte os ossos.

O caboclo teve uma breve hesitação, mas por fim, sempre sério, apertou a mão que Rodrigo lhe oferecia.

— Agora vamos tomar um trago. – convidou este último.

— Mas eu pago – disse o outro.

Tinha lábios grossos, dum pardo avermelhado e ressequido.

— O convite é meu.

— Mas eu pago – repetiu o caboclo.

— Está bem. Não vamos brigar por isso.

Aproximaram-se do balcão.

— Duas caninhas! – pediu Rodrigo.

Nicolau olhava para os dois homens com um sorriso desdentado na cara de lua cheia, onde apontava uma barba grossa e falha.

— É da boa. – disse ele, abrindo uma garrafa de cachaça e enchendo dois copinhos.

Houve um silêncio durante o qual ambos beberam: o moço em pequenos goles, e Rodrigo dum sorvo só, fazendo muito barulho e por fim estralando os lábios.

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O romance da Geração de 1930

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Tornou a pôr o copo sobre o balcão, voltou-se para o homem moreno e disse:

— Meu nome é Rodrigo Cambará. Como é sua graça?

— Juvenal Terra.

— Mora aqui no povo?

— Moro.

— Criador?

O outro sacudiu a cabeça negativamente.

— Faço carreatas daqui pro Rio Pardo e de lá pra cá.

— Mais um trago?

— Não. Sou de pouca bebida.

Rodrigo tornou a encher o copo, dizendo:

— Pois comigo companheiro, a coisa é diferente. Não tenho meias medi-das. Ou é oito ou oitenta.

— Hai gente de todo o jeito. – limitou-se a dizer Juvenal.

Rodrigo olhou para o vendeiro.

— Como é a sua graça mesmo, amigo?

— Nicolau.

— Será que se arranja por aí alguma coisa de comer?

Nicolau coçou a cabeça.

— Posso mandar fritar uma linguiça!

O capitão tomou seu terceiro copo de cachaça. Juvenal, que o observava com olhos parados e inexpressivos, puxou dum pedaço de fumo em rama e duma pequena faca e ficou a fazer um cigarro.

— Pois te garanto que estou gostando deste lugar. – disse Rodrigo – Quando entrei em Santa Fé, pensei cá comigo: Capitão, pode ser que vosmecê só passe aqui uma noite, mas também pode ser que passe o resto da vida...

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Modernismo na Literatura Brasileira

— E o resto da vida pode ser trinta anos, três meses ou três dias... — filo-sofou Juvenal, olhando os pedacinhos de fumo que se acumulavam no côn-cavo da mão.

E quando ergueu a cabeça para encarar o capitão, deu com aqueles olhos de ave de rapina.

— Ou três horas... – completou Rodrigo – Mas por que é que o amigo diz isso?

— Porque vosmecê tem um jeito atrevido.

Sem se zangar, mas com firmeza, Rodrigo retrucou:

— Tenho e sustento o jeito.

— Por aqui hai também muito homem macho.

Estudos literários1. Leia o capítulo abaixo, de O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, para res-

ponder às perguntas.

Os acontecimentos conduzem os homensE assim vai a vida... Os acontecimentos que até aqui se desenrolaram e em

que desempenhei ora o papel de ator principal, ora o de espectador, muda-ram, por completo, as intenções deste livro. Naquela noite de Natal, ao início destas notas, expus o plano de ir alinhando apontamentos que me permitis-sem publicar, mais tarde, um livro de memórias. Estava, então, concebendo qualquer coisa, e essa coisa se me agitava, no ventre, reclamando lugar ao sol. Jamais pensei, naquela ocasião, ou antes dela, que o presente pudesse vir dominar-me o espírito por forma tal, dele expelindo as imagens do passado que então o povoavam, abundantes e vivas.

Estive refletindo, esta tarde, em que, no romance, como na vida, os perso-nagens é que se nos impõem. A razão está com monsieur Gide: eles nascem e crescem por si, procuram o autor, insinuam-se-lhe no espírito.

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O romance da Geração de 1930

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Não se trata, aqui, de romance. É um registro nostálgico, um memorial desconchavado. Tal circunstância nada altera, porém, a situação. Na verda-de, dentro do nosso espírito as recordações se transformam em romance, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios que lhes atribuímos, passam a desenrolar-se num plano especial, sempre que os evocamos, tornando-se, enfim, romance, cada vez mais ro-mance. Romance trágico, bufo ou sem nenhum sentido, conforme cada um de nós, monstros imaginativos, é trágico, é cômico ou absurdo.

Vejo que a história do presente já expulsou, definitivamente, destes ca-dernos, a do passado. Carmélia (travestida de Arabela) e Jandira afastaram a sombra de Camila, que, bem o percebo agora, era outra encarnação do mito infantil. Silviano, Redelvim, Glicério, Florêncio e Giovanni e seus pequenos mundos baniram os fantasmas caraibanos, as evocações dos velhos Borbas, a vida sentimental da Vila e da fazenda.

Em vão, tento uma sondagem em Vila Caraíbas, naquele ano extraordiná-rio de 1910. Baldo esforço: como resistir a personagens e fatos que, a cada instante, incidem no plano de nossa consciência? Às vezes ainda me vem a necessidade angustiosa de rever antigas paisagens, evadir-me para uma região que realmente já não se acha no espaço, e sim no tempo. Mas, no comum dos dias, agora é o presente que me atrai.

a) Aponte o recurso utilizado por Cyro dos Anjos nesse fragmento, ao escre-ver sobre o próprio ato de escrever. Cite um autor realista brasileiro que muito se utilizou deste recurso.

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b) Por que, conforme ele mesmo, Belmiro não conseguiu seguir o plano a que se propunha ao começar o romance?

c) Esse capítulo comprova a tese de que O Amanuense Belmiro é um roman-ce de tensão interiorizada? Por quê?

d) Explique a frase “Carmélia (travestida de Arabela) e Jandira afastaram a sombra de Camila, que, bem o percebo agora, era outra encarnação do mito infantil”.

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e) A frase “Vejo que a história do presente já expulsou, definitivamente, destes cadernos, a do passado” é verdadeira? Por quê?

2. Leia abaixo um fragmento do romance Fogo Morto, de José Lins do Rego (Texto 1) e, em seguida, um trecho de São Bernardo, de Graciliano Ramos (Texto 2). Ao final, compare os dois trechos.

Texto 1E não falou mais. Foi para a sua rede, enjeitou a janta, e na escuridão do quarto

as coisas começaram a rodar na cabeça. Não haveria um direito para ele? A terra era do senhor de engenho, e ele que se danasse, que fosse com seus cacos para o inferno. Um ódio de morte tomou-o de repente. Não sentira aquilo no mo-mento em que o coronel lhe falara. Era um maluco, não tinha raiva dele.

Mas na escuridão, na rede que rangia nos armadores de corda, tinha raiva, tinha uma vontade de destruição, de matar, de acabar com o outro. As gar-galhadas de Marta enchiam a casa. Teria uma filha na Tamarineira. O infeliz daquele negro Floripes pagaria. E, sem querer, levantou-se da rede. Abriu a janela do quarto e o céu estrelado pinicava na escuridão da noite.

Andou para a porta e pensou em sair um pouco. Lobisomem. Os meni-nos correram de sua figura, ouviu gente batendo porta por sua causa. Foi até a pitombeira e sentou-se em cima da raiz. O que havia nele para espan-tar os meninos, para meter medo aos velhos? Todo o ódio ao negro Floripes sumiu-se. Uma onda de frio passou-lhe pelo corpo. O que tinha nele para fazer medo, para fazer correr gente? Lembrou-se da noite da morte da velha Lucinda. Ligou tudo. Correram dele. Lobisomem.

Em menino falavam dos que saíam de noite para beber sangue, matar inocentes, correr como bicho danado. E sem saber explicar, o mestre José Amaro examinou-se com pavor. O que havia no seu corpo, nos seus gestos, na sua vida? A filha endoidecera. Mas isto nada tinha que ver com a invenção

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Modernismo na Literatura Brasileira

do povo. Ele não saía de casa, nunca fizera mal a ninguém. E por que seria o monstro que alarmava o povo? A noite escura chiava nos insetos; ladrava um cachorro do seu Lucindo. Sinhá e a comadre conversavam. E a filha no falatório, na gargalhada, no sofrimento pior deste mundo. O mestre não en-contrava apoio para fugir da preocupação. Entrou outra vez para o quarto, e não tinha paz, não estava seguro de nada, não estava seguro de nada. As ameaças do coronel Lula, a raiva a Floripes, tudo se diluíra com aquele pavor quer lhe enchia o coração. Tinha medo e não sabia de que era. Ele fazia correr menino na estrada. Era o lobisomem do povo, o filho do diabo, encantando-se nas moitas escuras. Nunca um pensamento lhe doera tanto. Latia aquele cachorro como se estivesse acuando um bicho. Aquela hora as mulheres rezariam, estariam com a ideia no lobisomem que imaginavam com as unhas grandes, a cabeça comprida de lobo, a forma de monstro em desadoro. Corria um vento que lhe esfriava os pés. Por que seria ele para a crença do povo aquele pavor, aquele bicho? O que fizera para merecer isso? O coração batia-lhe muito forte. Não. No outro dia teria que fazer qualquer coisa para acabar com aquela história. Laurentino e Floripes pagariam. Eram eles os criadores daquela miséria. A filha no outro dia sairia para o Recife. A sua casa ficaria mais só, mais cheia de tristeza.

Mesmo assim amava a sua casa. E se fosse embora e procurasse outra terra para acabar com seus dias? O coronel lhe pedira a casa. Era um bom pretexto para fugir do povo que lhe queria mal, que o via como uma des-graça, uma criatura do diabo. Estaria tudo resolvido. O mestre José Amaro encontraria um engenho no Itambé, uma terra que o acolhesse, um povo que o amasse.

(REGO, 1997, p. 112-114)

Texto 2Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um

coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

(RAMOS, 1953, p. 194)

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