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1 Didática para quê? Didática para quem? Reflexões a partir de seu objeto FRANCO, Maria Amélia Santoro Resumo O presente texto discute as contradições que se interpõem à Didática, decorrentes da polissemia que caracteriza seu objeto de estudo, qual seja o ensino. Propõe que este objeto seja compreendido na perspectiva das práticas pedagógicas que, como tais, carregam em sua especificidade a imprevisibilidade e a multidimensionalidade. A partir do conceito de Didática Multidimensional propõe subsídios para a compreensão desse objeto como práxis e analisa decorrências para a formação de professores. Palavras-chave: Didática. Ensino. Didática multidimensional. Formação de professores. Introdução A disciplina Didática, em suas origens, foi identificada, em diferentes países (Camilloni, 2013) a uma perspectiva normativa e prescritiva de métodos e técnicas de ensinar, concepção essa que ainda permanece arraigada no imaginário dos professores brasileiros. Quando indagados sobre o que esperam da Didática, respondem: queremos aprender as técnicas de ensinar! Suponho que os professores assim desejam, porque ainda imaginam que boas técnicas de controle de sala de aula são suficientes para produzir os almejados “bons ensinos”. Mas como os professores significam o ato de ensinar? Uma grande maioria de docentes ainda atribui ao ensino o papel de transmissão de informações, de repasse aos alunos de sínteses de conhecimento que os próprios docentes elaboraram. Deixam de pensar numa teoria pedagógica que embase e dê sentido aos procedimentos didáticos que utilizam. Tenho afirmado que não consigo visualizar a Didática desvinculada de uma teoria pedagógica (FRANCO, 2006) e realço que essa perspectiva da mutualidade entre pedagogia e didática já era vislumbrada por Comenius nos primórdios da Didática, no século XVII. Cambi (1999, p.287) considera-o primeiro estruturador de um discurso pedagógico que estava relacionado organicamente a uma concepção de mundo e aos aspectos técnicos da formação com uma abrangente reflexão sobre o homem. Apesar disso, epistemologicamente falando, há que se realçar que a concepção de mundo proposta por Comenius é bastante linear, pouco Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00620

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Didática para quê? Didática para quem? Reflexões a partir de seu objeto

FRANCO, Maria Amélia Santoro

Resumo

O presente texto discute as contradições que se interpõem à Didática, decorrentes da polissemia que

caracteriza seu objeto de estudo, qual seja o ensino. Propõe que este objeto seja compreendido na

perspectiva das práticas pedagógicas que, como tais, carregam em sua especificidade a

imprevisibilidade e a multidimensionalidade. A partir do conceito de Didática Multidimensional

propõe subsídios para a compreensão desse objeto como práxis e analisa decorrências para a formação

de professores.

Palavras-chave: Didática. Ensino. Didática multidimensional. Formação de professores.

Introdução

A disciplina Didática, em suas origens, foi identificada, em diferentes países (Camilloni,

2013) a uma perspectiva normativa e prescritiva de métodos e técnicas de ensinar, concepção

essa que ainda permanece arraigada no imaginário dos professores brasileiros. Quando

indagados sobre o que esperam da Didática, respondem: queremos aprender as técnicas de

ensinar! Suponho que os professores assim desejam, porque ainda imaginam que boas

técnicas de controle de sala de aula são suficientes para produzir os almejados “bons ensinos”.

Mas como os professores significam o ato de ensinar? Uma grande maioria de

docentes ainda atribui ao ensino o papel de transmissão de informações, de repasse aos alunos

de sínteses de conhecimento que os próprios docentes elaboraram. Deixam de pensar numa

teoria pedagógica que embase e dê sentido aos procedimentos didáticos que utilizam.

Tenho afirmado que não consigo visualizar a Didática desvinculada de uma teoria

pedagógica (FRANCO, 2006) e realço que essa perspectiva da mutualidade entre pedagogia e

didática já era vislumbrada por Comenius nos primórdios da Didática, no século XVII.

Cambi (1999, p.287) considera-o primeiro estruturador de um discurso pedagógico que estava

relacionado organicamente a uma concepção de mundo e aos aspectos técnicos da formação

com uma abrangente reflexão sobre o homem. Apesar disso, epistemologicamente falando, há

que se realçar que a concepção de mundo proposta por Comenius é bastante linear, pouco

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conflitiva e quase ingênua e que, nessa perspectiva, é o caráter normativo que é realçado e a

Didática estrutura-se na dimensão de organização de condições para a realização de um

ensino eficaz. (Davini, 2013, p.45). No entanto, há que se considerar que, na esteira de ideais

da pedagogia humanista Comenius sublinha o papel formativo do ambiente escolar e assim

enfatiza que o ensino ocorre numa perspectiva de formação do sujeito.

Quero com isso realçar que desde os primórdios o ensino não era considerado apenas

um repasse de informações, mas um processo de formação e de concepção de mundo. Quase

que se pode afirmar que o ensino decorre de processos de formação. Assim a Didática,

quando se afasta das teorias pedagógicas que devem sustentá-la , ela se torna quase que

inócua para a produção de processos de aprendizagem. Talvez isso explique a atual tendência

que temos visto da exclusão da disciplina de didática nos cursos de formação. (Franco e

Guarnieri 2008 e Franco, Fusari, Pimenta, Almeida, 2011)

A Didática prescritiva, fortemente vinculada às didáticas específicas, com foco na

organização da aula e dos conteúdos é por mim considerada, neste texto, como didática

clássica e é, contrapondo essa concepção, ainda bastante arraigada, que venho propor os

princípios de uma nova perspectiva da prática didática, o que temos denominado de Didática

Multidimensional (Franco e Pimenta, 2014).

Antes de chegar a esta proposta quero evidenciar que o ensino, visto como prática social

de formação é bem diferente do ensino como transmissão de informação.

A Didática como prática pedagógica

A pedagogia e suas práticas são da ordem da práxis; assim ocorrem em meio a

processos que estruturam a vida e a existência. A pedagogia caminha por entre culturas,

subjetividades; sujeitos e práticas. Caminha pela escola, mas a antecede, acompanha-a e

caminha além. A didática clássica possui uma abrangência menor, mais focada nos processos

escolares dentro das salas de aula. A pedagogia coloca intencionalidades, projetos alargados;

a didática compromete-se a dar conta daquilo que se instituiu chamar de saberes escolares. A

lógica da didática é a lógica da produção da aprendizagem (nos alunos), a partir de processos

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de ensino previamente planejados. A prática da didática é, portanto, uma prática pedagógica.

A prática pedagógica inclui a didática e a transcende.

A questão logo se coloca: posso planejar o ensinoaprendizagem ou apenas será possível,

planejar atividades que talvez conduzam à aprendizagem?

Trabalha a didática na perspectiva do talvez? Será esse talvez o componente que carrega

a Didática de certa imponderabilidade?

Posso controlar a aprendizagem que decorre do ensino? Ou as aprendizagens são

caminhos construídos pelos sujeitos a partir de suas interpretações e vivências nas diferentes

esferas de vida?

O professor concretiza sua ação pedagógica ao dar aula ou a concretiza quando

consegue ensinar alguma coisa a alguém?

O aluno precisa aprender. Aprender o que o professor deseja ou aprender o que o

momento lhe permite aprender?

Posso/devo como professor controlar o que o aluno aprende?

Planeja-se o ensino na intencionalidade da aprendizagem futura do aluno. No entanto, o

grande desafio da didática tem sido a impossibilidade de controle ou previsão da qualidade e

da especificidade das aprendizagens que decorrem de determinadas situações de ensino. Já

dizia Sócrates: o ensino é sempre mais que o ensino!

O planejamento do ensino, por mais eficiente que seja, não poderá controlar a

imensidão de possibilidades das aprendizagens possíveis que cercam um aluno. Como saber o

que o aluno aprendeu? Como planejar o próximo passo de sua aprendizagem? Precisamos de

planejamento de ensino ou de acompanhamento crítico e dialógico dos processos formativos

dos alunos?

A contradição sempre está posta nos processos educativos: o ensino só se concretiza nas

aprendizagens que produz! E as aprendizagens, em seu sentido alargado e bem estudadas

pelos pedagogos cognitivistas, decorrem de sínteses interpretativas realizadas nas relações

dialéticas do sujeito com seu meio. Não são imediatas, não são previsíveis, ocorrem por

interpretação do sujeito, dos sentidos criados, das circunstâncias atuais e antigas, enfim: não

há correlação direta entre ensino e aprendizagem. Quase que se pode dizer que as

aprendizagens ocorrem sempre para além, ou para aquém do planejado; ocorrem nos

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caminhos tortuosos, lentos, dinâmicos das trajetórias dos sujeitos. Radicalizando essa posição,

Deleuze afirma, que jamais será possível saber e controlar como alguém aprende (2006, p.

237).

Os processos de concretização das tentativas de ensinaraprender ocorrem por meio das

práticas pedagógicas. Essas são vivas, existenciais, por natureza, interativas e impactantes. As

práticas pedagógicas são aquelas práticas que se organizam para concretizar determinadas

expectativas educacionais. São práticas carregadas de intencionalidade e isto ocorre porque o

próprio sentido de práxis configura–se através do estabelecimento de uma intencionalidade,

que dirige e dá sentido à ação, solicitando uma intervenção planejada e científica sobre o

objeto, com vistas à transformação da realidade social. Tais práticas por mais planejadas que

sejam são imprevisíveis porque nelas, “nem a teoria, nem a prática tem anterioridade, cada

uma modifica e revisa continuamente a outra”. (Carr, 1996, p. 101)

As aprendizagens ocorrem entre os múltiplos ensinos que estão presentes,

inevitavelmente, nas vidas das pessoas e que competem ou potencializam o ensino escolar. Há

sempre concomitâncias de ensino. Aí está o desafio da tarefa pedagógica hoje: tornar o ensino

escolar tão desejável e vigoroso quanto outros “ensinos”, que invadem a vida dos alunos.

Desta forma pode-se perceber o perigo que ronda os processos de ensino quando este se

torna excessivamente técnico, planejado e avaliado apenas em seus produtos finais. A

educação se faz em processo, em diálogos, nas múltiplas contradições que são inexoráveis

entre sujeitos e natureza que mutuamente se transformam. Medir apenas resultados e produtos

de aprendizagens, como forma de avaliar o ensino, pode se configurar como uma grande

falácia!

A ação educativa verdadeira só pode ser vista como práxis, que integra conforme Kosik,

dois aspectos: o laborativo e o existencial e se manifesta tanto na ação transformadora do

homem, como na formação da subjetividade humana. Quando se deixa de considerar o lado

existencial, a práxis se perde como significado e permite ser utilizada como manipulação.

(Franco, 2001)

Considero que as relações entre professor, aluno, currículo e escola são relações que

impõem uma convivência, tensional e contraditória, entre o sujeito que aprende e o professor

que se organiza e prepara as condições para ensinar. O professor pode encontrar meios para

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viver a dissonância das resistências e resignações postas pelo aluno, quer atuando como

desencadeador de processos de aprendizagem; quer como “acompanhador” das possibilidades

múltiplas de retorno de sua ação.

Enfim, como a vida, o que decorre da ação de um bom ensino serão sempre situações

imponderáveis! O importante é acompanhar, vigiar, recompor e readequar o planejado inicial.

Essa dinâmica, que vai do desencadear nos alunos de situações desafiadoras, intrigantes,

exigentes, aos retornos que os alunos produzem, misturando vida, experiência atual e

interpretações dos desafios postos, é a marca da identidade do processo ensino-aprendizagem,

visto em sua complexidade e amplitude.

Considero que as práticas pedagógicas devam se estruturar como instâncias críticas das

práticas educativas, na perspectiva de transformação coletiva dos sentidos e significados das

aprendizagens.

O professor, no exercício de sua prática docente, pode ou não exercitar-se

pedagogicamente. Ou seja, sua prática docente, para se transformar em prática pedagógica

requer, pelo menos, dois movimentos: o da reflexão crítica de sua prática e o da consciência

das intencionalidades que presidem suas práticas. A consciência ingênua de seu trabalho

(Freire, 1979) impede-o de caminhar nos meandros das contradições postas e, além disso,

impossibilita sua formação na direção de um profissional crítico.

Assim reafirmo dúvidas e pergunto: qual é o objeto da Didática? Se a resposta for a

proposta clássica de que é o ensino seu objeto, há que se aprofundar na questão: o que é

mesmo o ensino?

Coloco à reflexão o lindo pensamento de Freire na carta aos professores, onde ele

destaca o conceito ensinando-se, talvez para realçar o sentido de práxis, de prática pedagógica

que reveste o ato de ensinar:

Quero dizer que ensinar e aprender se vão dando de tal maneira que quem ensinaaprende,de um lado, porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, deoutro, porque, observado a maneira como a curiosidade do aluno aprendiz trabalhapara apreender o ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se ajuda adescobrir incertezas, acertos, equívocos.

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O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através daretificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinanteao ensinar se verifica à medida em que o ensinante, humilde, aberto, se achepermanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; emque procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos everedas, que ela os faz percorrer. (Freire, 2001, p.259)1

Talvez se possa afirmar, para evitar equívocos, que o objeto da didática só será o ensino,

se este for visto em sua multidimensionalidade, em sua multirreferencialidade, num processo

de formação, num processo experiencial, na perspectiva de vivências: transformação e

formação: na perspectiva do ensinando-se.

Práticas pedagógicas didáticas: por entre resistências e insistências

Tenho notado alguma dificuldade entre professores em perceber o sentido que costumo

atribuir à prática pedagógica ou mesmo aos saberes pedagógicos. Percebo que há uma certa

tendência, a considerar como pedagógico, apenas o roteiro didático de apresentação de aula.

Apenas o visível dos comportamentos utilizados pelo professor durante uma aula. Carr,

(1996) nos ajuda a compreender essa questão quando diferencia o conceito de poiesis do

conceito de práxis. Considera esse autor a poiesis como sendo uma forma de saber fazer não

reflexivo, ao contrário do conceito de práxis que é, eminentemente uma ação reflexiva e

assim, realça que a prática educativa não se fará inteligível, como forma de poiesis, cuja ação

será regida por fins pré-fixados e governada por regras pré-determinadas. Para o autor, (Carr,

1996, p. 102) a prática educativa só adquirirá inteligibilidade “à medida que for regida por

critérios éticos imanentes à mesma prática educativa”, critérios esses que segundo o autor,

servem para distinguir uma boa prática, de uma prática indiferente ou má. Eu utilizaria o

termo para especificar que esses critérios servirão para distinguir uma prática

pedagogicamente tecida, de outra, apenas tecnologicamente tecida.

1 FREIRE, Paulo. Carta de Paulo Freire aos professores. Revista Estudos Avançados.15(42). 259-268.

2001.

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Portanto uma aula só se torna uma prática pedagógica quando ela se organiza em torno

de intencionalidades, de práticas que dão sentido às intencionalidades; de reflexão contínua

para avaliar se a intencionalidade está atingindo todos; de acertos contínuos de rota e de meios

para se atingir os fins propostos pelas intencionalidades. Configura-se sempre como uma ação

consciente e participativa.

Considero interessante especificar os princípios que organizam uma prática pedagógica

de forma a se pensar nos princípios de uma didática que tenha por objeto o ensino como

práxis pedagógica:

a) As práticas pedagógicas organizam-se em torno de intencionalidades

previamente estabelecidas e, tais intencionalidades serão perseguidas ao longo

do processo didático, de formas e meios variados. Na práxis a intencionalidade

rege os processos. Para a filosofia marxista a práxis é entendida como a relação

dialética entre homem e natureza, na qual o homem ao transformar a natureza com

seu trabalho, transforma a si mesmo. Marx (1994) afirma, na oitava tese sobre

Feuerbach, “que toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que

dirigem a teoria para o misticismo encontram sua solução na práxis humana e na

compreensão dessa práxis”. A compreensão dessa práxis é tarefa pedagógica.

Kosik (1995, p. 222) realça que a práxis é a esfera do ser humano, portanto não é

uma atividade prática contraposta à teoria, mas práxis “é determinação da

existência como elaboração da realidade”. Uma intervenção pedagógica, como

instrumento de emancipação, considera a práxis como uma forma de ação reflexiva

que pode transformar a teoria que a determina, bem como transformar a prática

que a concretiza. Uma característica importante da práxis, analisada por Vásquez

(1968: 240) é o caráter finalista da práxis, antecipador dos resultados que se quer

atingir, e esse mesmo aspecto é enfatizado por Kosik (1995, p. 221) ao afirmar que

na práxis “a realidade humano-social se desvenda como o oposto ao ser dado, isto

é, como formadora e ao mesmo tempo forma específica do ser humano”. Talvez

por isto seja que o autor diz que a práxis tanto é objetivação do homem e domínio

da natureza, como realização da liberdade humana. Realce-se, portanto, que a

práxis permite ao homem conformar suas condições de existência, transcendê-las e

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reorganizá-las. “Só a dialética do próprio movimento transforma o futuro...” e essa

dialética carrega a essencialidade do ato educativo: intencionalidade coletivamente

organizada e em contínuo ajuste de caminhos e práticas. Talvez o termo mais

adequado seja o da insistência. O professor não pode desistir do aluno; há que

insistir, ouvir; refazer; fazer de outro jeito; acompanhar a lógica do aluno;

descobrir e compreender as relações que este aluno estabelece com o saber; mudar

o enfoque didático; as abordagens de interação; os caminhos do diálogo.

b) As práticas pedagógicas caminham por entre resistências e desistências;

caminham numa perspectiva dialética, pulsional, totalizante. Quando o

professor chega a um momento de produzir um ensino em sala de aula, muitas

circunstâncias estão presentes: desejos; formação; conhecimento do conteúdo;

conhecimento das técnicas didáticas; ambiente institucional; práticas de gestão;

clima e perspectiva da equipe pedagógica; organização espaço-temporal das

atividades; infraestrutura; equipamentos; quantidade de alunos; organização dos

alunos; interesse dos mesmos, conhecimentos prévios, vivências, experiências

anteriores, enfim, muitas variáveis estão ali presentes. Muitas delas induzindo a

uma boa interação e bom interesse e diálogo entre as variáveis do processo: aluno,

professor e conhecimento, vistas na perspectiva de Houssaye (1995) como o

triângulo pedagógico. Como atua o professor? Como aproveita os condicionantes

favoráveis e anula os que não ajudarão na hora? Tudo exige do professor reflexão

e ação. Tudo exige dele um comportamento compromissado e atuante. Tudo nele

precisa de empoderamento. As práticas impõem posicionamento, atitude, força e

decisão. Fundamentalmente é exigido do professor, trabalhar com as contradições.

Como está o professor preparado para tal? A ausência da reflexão, o tecnicismo

exagerado, as desconsiderações aos processos de contradição e de diálogo podem

resultar em espaços de engessamento das capacidades de discutir/propor/mediar

concepções didáticas. A ausência do espaço pedagógico pode significar o

crescimento de espaço de dificuldade ao diálogo. Sabe-se que o diálogo só ocorre

na práxis (Freire,1979), práxis essa que requer e promove a ultrapassagem e

superação da consciência ingênua em consciência crítica. Assim, concordando

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com Freire (1979, p.25), posso acreditar que a superação da contradição “é o parto

que traz ao mundo este homem novo, não mais opressor, não mais oprimido, mas o

homem libertando-se.” Talvez a prática pedagógica, absorvendo, compreendendo e

transformando as resistências e resignações, possa mediar a superação destas, em

processos de emancipação e aprendizagens. Tenho sempre me utilizado das

reflexões de Imbert (2003) quando ele realça a distinção entre prática e práxis,

reafirmando o que venho enaltecendo neste texto, e atentando para a questão da

autonomia e da perspectiva emancipatória, inerente ao sentido de práxis:

Distinguir práxis e prática permite uma demarcação das características doempreendimento pedagógico. Há, ou não, lugar na escola para uma práxis? Ou seráque, na maioria das vezes, são, sobretudo, simples práticas que nela se desenvolvem,ou seja, um fazer que ocupa o tempo e o espaço, visa a um efeito, produz um objeto(aprendizagem, saberes) e um sujeito-objeto (um escolar que recebe esse saber esofre essas aprendizagens), mas que em nenhum momento é portador de autonomia.(2003, p.15).

Portanto só a ação docente, realizada como prática social pode produzir saberes,

saberes disciplinares, saberes referentes a conteúdos e sua abrangência social, ou

mesmo saberes didáticos, referentes às diferentes formas de gestão de conteúdos,

de dinâmicas da aprendizagem, de valores e projetos de ensino. Tenho realçado o

sentido de saberes pedagógicos como sendo aqueles saberes que permitem ao

professor a leitura e a compreensão das práticas e que permitem ao sujeito colocar-

se em condição de dialogar com as circunstâncias dessa prática, dando-lhe

possibilidade de perceber e auscultar as contradições e assim, poder melhor

articular teoria e prática. É possível, portanto, se falar em saberes pedagógicos,

como sendo saberes que possibilitam aos sujeitos construir conhecimentos sobre a

condução, a criação e a transformação dessas mesmas práticas. O saber

pedagógico só pode se constituir a partir do próprio sujeito, que deverá ser

formado como alguém capaz de construção e de mobilização de saberes. A grande

dificuldade em relação à formação de professores é que, se quisermos ter bons

professores, teremos que formá-los como sujeitos capazes de produzir

conhecimentos, ações e saberes sobre a prática. Não basta fazer uma aula; é

preciso saber por que tal aula se desenvolveu daquele jeito e naquelas condições:

ou seja, é preciso a compreensão e leitura da práxis. Quando um professor é

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formado de modo não reflexivo, não dialógico, desconhecendo os mecanismos e

movimentos da práxis, ele não saberá potencializar as circunstâncias que estão

postas à prática. Ele desistirá e replicará fazeres. O sujeito professor precisa ser

dialogante, crítico e reflexivo. Ter consciência das intencionalidades que presidem

sua prática. Sintetizando com a afirmativa de Imbert: “o movimento em direção ao

saber e à consciência do formador não é outro senão o movimento de apropriação

de si mesmo.”(2003, p.27)

c) As práticas pedagógicas trabalham com e na historicidade; implicam em

tomadas de decisões; de posições; e se transformam pelas contradições. Por

que assim se fazem? Por que tais práticas não podem ser congeladas, reificadas e

realizarem-se linearmente? Não podem porque são práticas que se exercem na

interação de sujeitos, de práticas e de intencionalidades. À medida que o professor

desconsiderar as especificidades dos processos pedagógicos e tratar a educação

como produto e resultados, numa concepção ingênua da realidade, o pedagógico

teima em não se instalar, porque nesses processos em que se pasteurizam a vida e a

existência, não há espaço para o imprevisível, para o emergente, para as

interferências culturais; para o novo. As práticas pedagógicas estruturam-se em

mecanismos paralelos e divergentes de rupturas e conservação. À medida, em que

diretrizes de políticas públicas consideram a prática pedagógica como mero

exercício reprodutor de fazeres e ações externos aos sujeitos, essas se perdem e

muitos se perguntam: por que não conseguimos mudar a prática? A prática não

muda por decretos ou por imposições, a prática pode mudar quando houver o

envolvimento crítico e reflexivo dos sujeitos da prática (Franco, 2006). Sabe-se

que a educação é uma prática social humana; é um processo histórico, inconcluso,

que emerge da dialeticidade entre homem, mundo, história e circunstâncias. Sendo

um processo histórico, a educação não poderá ser vivenciada através de práticas

que desconsideram sua especificidade. Os sujeitos sempre possuem resistências

para lidar com imposições que não abrem espaço ao diálogo e à participação.

Como alerta-nos Freire:

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O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito face aomundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma buscaconstante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cadaum sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, aoreconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos aque está submetido seu ato (FREIRE, 1983, p. 27).

Sabe-se que a educação, como prática social histórica, transforma-se pela ação dos

homens e produz transformações nos que dela participam. Dessa forma é

fundamental que o professor esteja sensibilizado em reconhecer que, ao lado das

características observáveis do fenômeno, existe um processo de transformação

subjetiva, que não apenas modifica as representações dos envolvidos, mas produz

uma ressignificação na interpretação do fenômeno vivido, o que produzirá uma

reorientação nas ações futuras. É por isso importante que o professor possa

compreender as transformações dos alunos, das práticas, das circunstâncias e

transformar-se em processo.

Realço a necessidade da consideração do caráter dialético das práticas

pedagógicas, no sentido de considerar que a subjetividade constrói a realidade e

esta modifica-se através da interpretação coletiva. A educação permite sempre uma

polissemia em sua função semiótica, ou seja, nunca existe uma relação direta entre

o significante observável e o significado. Assim, as práticas pedagógicas serão, a

cada momento, expressão do momento e das circunstâncias atuais. Serão sínteses

provisórias que se organizam no processo de ensino. As situações de educação

estão sempre sujeitas às circunstâncias imprevistas, não planejadas e desta forma

os imprevistos acabam redirecionando o processo e muitas vezes permitindo uma

reconfiguração da situação educativa. Portanto, o trabalho pedagógico requer

espaço de ação e de análise ao não planejado, ao imprevisto, à desordem aparente,

e isto deve pressupor a ação coletiva, dialógica e emancipatória entre alunos e

professores. Toda ação educativa carrega em seu fazer uma carga de

intencionalidade que integra e organiza sua práxis, confluindo, de maneira

dinâmica e histórica tanto as características do contexto sociocultural, como as

necessidades e possibilidades do momento; as concepções teóricas e a consciência

das ações cotidianas; num amalgamar provisório que não permite que uma parte

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seja analisada sem referência ao todo, nem este sem ser visto como síntese

provisória das circunstâncias parciais do momento.

É por isso que reafirmo que práticas pedagógicas requerem do professor adentrar

na dinâmica e significado da práxis, de forma a poder compreender as teorias

implícitas que permeiam as ações do coletivo de alunos. A prática precisa ser

tecida e construída a cada momento e a cada circunstância; pois, como Certeau

(1994) acredito que a vida sempre nos escapa e se inventa de mil maneiras não

autorizadas, com movimentos táticos e estratégicos....

As práticas pedagógicas incluem desde planejar e sistematizar a dinâmica dos processos

de aprendizagem até caminhar no meio de processos que ocorrem para além dela, de forma a

garantir o ensino de conteúdos e de atividades que são considerados fundamentais para aquele

estágio de formação do aluno, e, através desse processo, criar nos alunos mecanismos de

mobilização de seus saberes anteriores construídos em outros espaços educativos. O professor

em sua prática pedagogicamente estruturada deverá saber recolher, como ingredientes do

ensino, essas aprendizagens de outras fontes, de outros mundos, de outras lógicas, para

incorporar na qualidade de seu processo de ensino e na ampliação daquilo que se considera

necessário para o momento pedagógico do aluno.

Didática e seu objeto: ensinar/formar2

O que a Didática pode oferecer, em seus fundamentos teóricos e metodológicos, aos

professores em formação? Como articular uma Didática que tenha no sujeito aprendente o seu

olhar e seu foco?

Como a Didática, em seu estatuto epistemológico, pode dar conta de configurar-se a

partir de seu objeto: o ensino como práxis pedagógica?

2 Esse subitem: Didática e seu objeto: ensinar/formar foi, em parte, escrito conjuntamente com Selma

Garrido Pimenta no texto Franco e Pimenta (2014).

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400631

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Como pode a Didática oferecer subsídios para a formação de professores aptos para o

ensinando-se, para ensinar na práxis de formar e transformar, a si e aos alunos?

Pudemos (Franco e Pimenta, 2014) perceber em nossas investigações que as didáticas

específicas muitas vezes, ao se preocuparem apenas com a transposição didática, minimizam

a configuração complexa da prática do ensino. Assim, propomos discutir as articulações

possíveis entre os princípios pedagógicos da epistemologia de uma Didática Fundamental

com as Didáticas Específicas, propondo o estatuto de uma Didática Multidimensional, que

fundamente a prática do ensino como um fenômeno complexo e multirreferencial, uma vez

que temos observado que o foco excessivo na dimensão disciplinar retira da tarefa do ensino

sua necessária multidimensionalidade.

Pode-se afirmar que a lógica da Didática é a lógica do ensino, no entanto e

contraditoriamente, essa vocação da Didática realiza-se apenas e tão somente através da

aprendizagem dos sujeitos envolvidos no processo. Portanto a questão da Didática amplia-se e

se complexifica ao tomar como objeto de estudo e pesquisa não apenas os atos de ensinar,

mas o processo e as circunstâncias que produzem as aprendizagens e que, em sua totalidade,

podem ser denominados de processos de ensino. Portanto o foco da Didática, nos processos

de ensino, passa a ser a mobilização dos sujeitos para elaborarem a construção/reconstrução

de conhecimentos e saberes.

Assim, mais complexo que elaborar o ensino, numa perspectiva antiga de organização

de transmissão de conteúdos, será agora a perspectiva de desencadear nos alunos atividade

intelectual que lhes permita criar sentido às aprendizagens e só assim, reelabora-las e

transformá-las em saberes.

Paulo Freire (2011) insiste nessa perspectiva desde os primórdios da Pedagogia do

Oprimido nos finais da década de setenta do século passado. E retoma suas idéias, quando

retorna ao Brasil no início do século XXI, reafirmando que ensinar não é transferir

conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção (p.24),

realçando que essa perspectiva transforma o papel do professor e da Didática, uma vez que

quem forma se forma e reforma ao formar, e quem é formado forma-se e forma ao ser

formado (p.25). Reiterava assim que o educador deve ajudar os alunos a questionar sua

realidade, problematizá-la e tornar visível o que antes estava oculto, desenvolvendo novos

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400632

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conhecimentos sobre ela. Paulo Freire (2011) considera que quanto mais se exerce

criticamente a capacidade de aprender, mais se constrói e se desenvolve o que denomina

curiosidade epistemológica, conceito aproximado do que estamos aqui denominamos

atividade intelectual do aluno, articulado aos conceitos de sentido e prazer em Charlot (2000).

Aí está o papel contemporâneo da Didática que estamos denominando de Didática

Multidimensional: uma Didática que tenha como foco, a produção de atividade intelectual, no

aluno e pelo aluno, articulada a contextos nos quais os processos de ensinar e aprender

ocorrem. Uma Didática que se paute numa pedagogia do sujeito, do diálogo, onde a

aprendizagem seja mediação entre educadores e educandos.

Os princípios epistemológicos da Didática Multidimensional emergem de nossas

pesquisas realizadas nos últimos 20 anos, que evidenciam a insuficiência das Didáticas

Específicas excessivamente voltadas à estruturação de conteúdos e métodos, o que acaba

apequenando e impedindo a consideração do ensino em sua perspectiva multirreferencial e

multidimensional. Os conceitos de curiosidade epistemológica (Freire, 2011), de

multirreferencialidade (Ardoino) e da relação com o saber (Charlot, 2000) estão implicados

na construção do conceito que propomos de Didática Multidimensional.3

Considerando que o ensino na sociedade se desenvolve intencionalmente nas

instituições escolares, faz-se necessário explicitar os princípios de uma Didática geral que

articule e fundamente os processos de mediação entre a teoria pedagógica e a ação de ensinar.

A concretização do ensino em sala de aula extrapola e transcende a perspectiva das

didáticas específicas cujo foco é a estrutura metodológica e conceitual dos conteúdos. A

tessitura dos conteúdos e sua necessária transposição didática requer a contínua articulação

entre os princípios educativos, a intencionalidade pedagógica e a especificidade das condições

dadas. Essa triangulação solicita base sólida de princípios e valores, de forma a não se tornar

uma mera aplicação de modos de fazer. A didática específica, por sua vez, requer uma base de

fundamentos para bem se articular com o todo, base essa já assinalada na perspectiva de

Chevallard (1991) em: La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseñado. Mas o

3 Vide Franco e Pimenta (2014)

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EdUECE - Livro 400633

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que é o saber sábio senão um saber antecedente que fundamenta e dirige o saber ensinado?

Cremos que há, ou pode haver, um processo contínuo de simplificação dos conteúdos para se

adaptarem às limitações do saber ensinado. Aliás, à própria percepção de que algo pode ser

ensinado de fora para dentro. Essa perspectiva de ensinar pode apequenar a dimensão do saber

sábio. Além de minimizar e mesmo subtrair os sujeitos aprendentes e ensinantes, ao afirmar

que toda disciplina (da matemática, no caso de Chevallard e todo o IREM, na França) possui

uma lógica imanente da qual decorre a lógica de ensiná-la, pois são somente os especialistas

das disciplinas aqueles que têm competência para saber e dizer como ensiná-la. Nessa ótica,

os professores, em que pese sua colaboração nesse processo, seriam quase os técnicos que

executariam o que foi definido pelos especialistas.

Vários autores têm estudado os perigos dessa simplificação. Por exemplo, Luccas

(2004:123) afirma que:

A ausência da segunda transposição didática e a presença da simplificação sofridapelo saber, ao nosso ver, apresenta-se como um dos fatores responsáveis pelofracasso no atual ensino, como muitas pesquisas vêm apontando. Acreditamos que aexistência da simplificação deve-se, principalmente, à falta de formação apropriadados responsáveis para trabalharem com a transposição didática.

E Davini, quando se refere ao problema das didáticas das disciplinas (em especial à

Transposição Didática) de estarem

[...] elaborando uma “teoria diafragmática” [que] ao colocar seu foco em uma ouduas dimensões, reduzem o processo de ensino a uma tarefa formativa nasdisciplinas separadas entre si constituindo teorias autonomizadas e fragmentárias.(Davini, 2013:54).

Há que se pensar na imponderabilidade dessa transposição: quem a faz? Como a faz? O

professor é o responsável por essa transposição? Como não desprezar o saber sábio que

antecede o saber científico? Para Chevallard (1991) a Transposição Didática é feita por uma

Instituição ‘invisível’, uma ‘esfera pensante’ que ele nomeou de Noosfera: professores,

instituições, livros didáticos, universidades, redes de ensino, etc.. Cabe indagar: como

articular interesses/valores/perspectivas de tantas ordens? Como permitir que essas didáticas

de cada disciplina caminhem de maneira tão avulsa e não coordenadas? Será que Lucca,

(citado) tem razão quando afirma que a transposição é um dos fatores que explicariam o

fracasso das salas de aula? E que um dos fatores que contribuem para isso é o tratamento

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EdUECE - Livro 400634

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fragmentado do saber escolar, fragmentado (e mesmo enclausurado) em cada disciplina,

conforme Davini?

Chevallard (1991) aponta a necessidade de um trabalho interno no processo de

transposição, onde o professor é o responsável por esse novo momento na transformação do

conteúdo. Mas nós nos perguntamos: quem é esse professor? Onde está o coletivo de

professores? De que forma foi realizada a formação desse professor? Pode ele produzir

adequadamente o que dele se espera? Há fragilidades que precisam ser superadas,

especialmente na articulação dessas duas esferas da transposição. Há a necessidade de um

rigor e uma vigilância epistemológica, do contrário os saberes se perderão num labirinto de

pequenas interpretações.

Compreendemos que há um trabalho político pedagógico necessário para que os

conteúdos escolares sejam negociados, filtrados, escolhidos, propostos. Essa ideia existe

desde Comenius. Concordamos com Gimeno – Sacristán (1996:42) quando realça que uma

das razões de ser do saber-fazer pedagógico tem sido propiciar a elaboração da cultura

transmissível para que seja assimilável por determinados receptores.

Essa possível simplificação que a transposição pode gerar, foi também comentada por

Lopes (1999) quando propôs o conceito de mediação didática em substituição ao conceito de

transposição didática, sugerindo uma perspectiva dialética que substituísse a idéia de

reprodução, ou mesmo de um “movimento de transportar de um lugar a outro, sem

alterações” (p.208).

Também Forquin (1993), relembra a importância do resgate da dimensão

epistemológica na discussão do conhecimento escolar. O autor preconiza o retorno à lógica

pedagógica em oposição à razão sociológica, que por muito tempo impregnou os estudos de

construção dos saberes curriculares.

Lopes vai mais adiante e reafirma o que talvez estejamos buscando com a Didática

Multidimensional:

Além da crítica de Forquin, defendo que o papel da epistemologia não se resume àdiscussão da validade epistemológica dos saberes, mas na possibilidade deintroduzir uma nova forma de compreender e questionar o conhecimento,internamente, na sua própria forma de se constituir.”(grifos nossos) (1999:167).

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Na seleção de conteúdos didáticos, para além das questões específicas postas pelas

didáticas das disciplinas, há toda uma teoria pedagógica presente na formulação de projetos

de organização da escola.

Os conteúdos a serem ensinados passam necessariamente pela análise das diferentes

culturas presentes nas instituições, bem como pela análise das tensões e dos valores

necessários à explicitação das finalidades do ensino; pela análise das diversas e divergentes

concepções de educação e ideologias presentes nos sistemas de ensino; pela incorporação de

diferentes contribuições das áreas de conhecimentos específicos no desenvolvimento humano

que produzem processos de subjetividade e socialização dos sujeitos aprendentes e ensinantes.

Ao delinear conteúdos de ensino há que se ocupar com as (novas) formas de

comunicação entre as gerações; com o estudo e o desenvolvimento de modelos metodológicos

e didáticos; com a formulação e crítica de critérios para a seleção de conteúdos e organização

de atividades de aprendizagem, coerentes ao projeto educativo institucional; com a

ressignificação dos sistemas de avaliação para que sejam estratégias de inclusão, participação

e indiquem caminhos de superação dos problemas e das dificuldades dos estudantes e das

escolas.

Ainda temos a considerar que todo processo didático está imbricado com as políticas de

formação dos docentes em diferentes cenários nacionais e internacionais, na busca de práticas

que possibilitem o desenvolvimento de capacidades de reflexão crítica nos futuros docentes.

Ou seja, há múltiplas dimensões pedagógicas dos processos e atividades formativas dos

sujeitos que ensinam e que aprendem. Daí, entendemos que a essa Didática, que tem seu

suporte na teoria pedagógica que parte da práxis educativa e a ela retorna, seria próprio

denominar de Multidimensional.

A Didática Multidimensional explicita assim seu campo próprio e dialoga com as

didáticas específicas porque há princípios formativos e pedagógicos que devem estar

presentes em todo processo de ensino-aprendizagem, sem os quais essa não se realiza.

Afirmamos assim que, a ausência desses fundamentos pedagógicos, torna o ensino de

qualquer disciplina em simples treinamento do fazer ou do pensar. Ou, conforme FRANCO

(2010), ao considerar [...] a Pedagogia [como] o espaço dialético para a compreensão e a

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 400636

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operacionalização das articulações entre a teoria e a prática educativa, e nessa direção ela

se organiza como espaço comunicativo à Didática, conclui que:

Não basta à Pedagogia refletir ou teorizar sobre o ato pedagógico; não basta àPedagogia também, orientar ou, muito menos, prescrever ações práticas para aconcretização das práticas educativas. É preciso que a Pedagogia produzaconhecimentos na direção da superação da fragmentação dos saberes pedagógicos,docentes e científicos que foram historicamente dissociados. (2010, p. 32).

Quando falamos em multidimensionalidade, falamos de convergência, de fundamentos

pedagógicos que subsidiam a proposta multirreferencial. Entendemos que há uma relação

dialética entre multirreferencialidade e multidimensionalidade. A multirreferencialidade

permite a compreensão das totalidades no todo e a multidimensionalidade, do todo às

totalidades. O multirreferencial nos ajuda a compreender a educação em sua complexidade e

totalidade; já a multidimensionalidade foca o ensino na perspectiva da totalidade. Pois,

conforme aponta Ardoino, 1995:7-8:

[...] o problema que a análise multirreferencial se coloca é utilizar várias linguagenspara a compreensão dos fenômenos sem misturá-las, sem reduzi-las umas às outras;o conhecimento produzido por essa postura seria, portanto, um conhecimento‘bricolado’, ‘tecido’.

A Didática Multidimensional afirma a perspectiva da totalidade, articulando as partes no

todo como forma de síntese, superando a bricolagem, através do filtro pedagógico.

Didática Multidimensional e formação de professores

Em contínuos trabalhos e pesquisas junto à formação inicial e continuada de docentes,

quer nos cursos de Pedagogia, quer nas diferentes licenciaturas, ou ainda em programas e

projetos de formação continuada de professores, pude constatar, entre outras coisas, que a

prática docente pode ser tanto uma circunstância para transformar a própria prática e os

sujeitos que dela participam, como, paradoxalmente, a prática pode ser, também, a

circunstância para reificar a própria prática e assim, blindar o sujeito, impedindo-o de receber

da prática seus ingredientes fertilizantes e formadores.

Percebi, trilhando os complexos caminhos de formadora de docentes, que há uma

prática que forma, informa e transforma, simultaneamente, o sujeito e suas circunstâncias e

há uma prática que oprime, distorce e congela, especialmente o sujeito que nela se exercita e,

nesse caso, o sujeito perde o acesso às suas circunstâncias. Percebi nesse processo que a

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EdUECE - Livro 400637

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prática é sempre mais do que aquilo que se supõe à primeira vista, e sempre menos inteligível

do que seria necessário considerar.

Percebi ainda, que os sentidos que as concepções tecnicistas foram atribuindo à prática,

foram sempre bem recepcionados e bem vindos na estrutura de uma sociedade capitalista,

pragmatista, muito distantes dos sentidos de prática expressos por Marx; e assim, a prática de

formação, a prática que chamo de pedagógica, foi se estruturando também de forma

tecnicista, no pressuposto de que não há um sujeito que possa/deva criar e transformar suas

circunstâncias, mas no pressuposto de que esse sujeito, independentemente do que pensa e

sinta, precisa realizar certas tarefas de um determinado jeito, considerado o ideal por algumas

esferas de decisão anteriores.

O sentido de formação prática que, historicamente permeou os percursos formativos no

Brasil, não tiveram como pressuposto empoderar o sujeito para que este se aproprie de suas

circunstâncias e perceba as possibilidades de criar seu fazer em sintonia com os sentidos de

sua existência histórica. Esse sentido impregnou os procedimentos utilizados no processo

formativo e a prática, sob forma de estágio supervisionado, foi sendo historicamente utilizada

para que o sujeito, reificado em sua condição de não diálogo com suas circunstâncias,

permaneça não estabelecendo relações de sentido entre ser e fazer, mas mesmo assim,

aprenda a reproduzir um fazer considerado necessário. O pressuposto é que este sujeito é

incapaz de criar sentido à sua atividade produtiva, no caso o fazer docente.

Essa situação, decorrente da concepção de prática como treinamento do fazer, é um dos

componentes que podem ajudar a compreender o desconforto de formandos, futuros

professores, nos primeiros confrontos com as atividades da prática docente: são situações

sempre angustiantes, pois as receitas de fazer que receberam no processo formativo não lhes

permite colocar em prática as expectativas que haviam construído a respeito de um ensino

melhor. Essa realidade é permeada por dissonâncias, o que pode demonstrar que o sujeito não

está totalmente “engessado” por suas condições formativas, pois ainda é capaz de estranhar:

Esse estranhamento, essa perplexidade é um espaço da possibilidade pedagógica: o

estranhamento, a angústia, as dissonâncias, demonstram que há ainda um espaço para a

construção de um fazer significativo. Há um espaço para que as práticas comecem a falar, a

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informar, a formar. Há um espaço para transformação das práticas em instrumentos

pedagógicos de formação.

Compreender as lógicas das práticas para transformá-las em possibilidades formativas,

que na sua relação, constituem-se em saberes orientadores do fazer que não se deixa render

exclusivamente à cultura escolar de orientação tecnicista e dá ao professor a possibilidade de

munir-se de um conjunto de elementos, que podem responder, criativamente, aos problemas

enfrentados no cotidiano escolar.

A história brasileira com formação de docentes utilizou-se sempre dos estágios para

complementar o currículo de formação de professores, mas tais estágios foram sempre vistos

na dimensão experimental: pressupunha-se que primeiro se aprende a teoria e depois se aplica

na prática. Essa fórmula já está teoricamente desgastada, no entanto, na prática, ainda

continua a fundamentar a formação de nossos docentes.

O que se sugere é que o próprio nome de estágio seja substituído por práticas de

formação, onde haja uma permanente parceria e colaboração entre escolas e instituições de

formação, na perspectiva da pesquisa-ação pedagógica ( Franco, 2012).

A construção e o diálogo de novos espaços-tempos de formação, com diferentes

dispositivos de formação, de forma a se projetar um processo de multiformação, que possa

impregnar a cultura local, realçando a pertinência da pesquisa e a presença contínua da

reflexão coletiva, nos menores movimentos de decisão, de elaboração e de leitura do

cotidiano. Abdalla e Franco (2003, p. 87).

Será preciso, enfim, que os processos formativos de docente absorvam a dimensão

experiencial, não mais separando teoria e prática, mas mergulhando desde o início, o aluno e

o formador em situação de mediação dos confrontos da prática, buscando a significação das

teorias. Só assim será possível fazer o exercício fundamental da pedagogia: criar articulações

cada vez mais profundas entre a teoria e a realidade. Ou seja, fazer dialogar a lógica das

práticas com a lógica da formação. Essa é a grande tarefa que os cursos de formação devem

enfrentar.

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EdUECE - Livro 400639

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É POSSÍVEL FORMAR PROFESSORES SEM A DIDÁTICA?

Terezinha Azerêdo RiosGEPEFE – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Educadores – FE/USP

Resumo

Situando-se no contexto de um Simpósio que tem como tema O significado ontológicoda Didática e da Prática de Ensino nos Cursos de Licenciatura, este trabalho tem opropósito de provocar uma reflexão sobre a razão de ser da Didática, perguntando porseu papel na formação de professores e por sua presença no contexto dos cursosdestinados a formar esses profissionais. A ontologia é o espaço da filosofia em que seinvestiga a essência dos seres, os que os constitui enquanto tais. Se identificarmos aDidática como a reflexão sobre o ensino, como olhar crítico sobre o processo ensino-aprendizagem, como instrumento de articulação teoria-prática, seremos levados aafirmá-la como elemento fundamental na constituição do ser do professor,imprescindível, portanto, na sua formação, articulada aos demais saberes pedagógicosque se entrecruzam nesse processo.

Palavras-chave: Ontologia – Didática – Formação de professores – Cursos deLicenciatura

Ontologia: a pergunta pelo ser ou a busca da essência

No “Prefácio” de um livro de Rubens Rodrigues Torres Filho, intitulado Ensaios

de filosofia ilustrada (1987), Marilena Chauí afirma:

Provocaria riso alguém que perguntasse por que há matemáticos ouengenheiros. Posto que há teoremas e viadutos, impossível seria não haver seusconstrutores. A serena evidência que os cerca irradia-se da existênciairrecusável de seus objetos, ainda que o teorema seja indecidível e o viadutointransitável. Pergunta-se, porém, com seriedade “por que filósofo?” (CHAUÍ,1987:7).

Podemos pensar que, de certa maneira, acontece com a Didática aquilo que é

mencionado por Chauí em relação à Filosofia. Ela está sempre tendo necessidade de

justificar sua presença no contexto educativo e é sempre questionada em relação ao seu

papel na formação de professores. “Por que Didática nos cursos de licenciatura?” seria

aqui a questão.

Torres Filho, ao dispor-se a responder à indagação apontada por Chauí, asssinala

que

O sentido da palavra ‘filósofo’ não é únivoco. Tomá-lo como se fosse, como seestivesse em questão uma mesma essência quando se trata do fisiólogo pré-socrático, do teólogo da Idade Médio ou do iluminista do século XVIII, porexemplo, é perder de vista, nessa abstração, toda a dimensão histórica de que as

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diferentes espessuras da sociedade e do discurso investiram sucessivamente afigura do pensador (TORRES FILHO, 1987:11).

Considerando a observação do autor, é possível levar adiante a comparação.

Também com relação à didática é necessário levar em conta o contexto histórico-social

em que ela se encontra, as influências que sofre a partir da definição de políticas

educacionais, os cursos de formação em que ela é desenvolvida.

Não é sem razão que os trabalhos que se dedicam a explorar o tema enfocam-no

de múltiplos ângulos. Há uma preocupação, por exemplo, com o estatuto

epistemológico da Didática, com seu caráter de cientificidade, com as transformações

pelas quais passa esse processo nos diversos contextos históricos sociais.

Numa perspectiva ontológica, a pergunta que se faz à Didática se volta para seus

elementos essenciais, aqueles que a definem; em última instância, os que se referem ao

seu ser. Melhor dizendo, à sua razão de ser. A ontologia é um ramo central da

metafísica, o estudo da questão mais geral desse espaço da filosofia, a do “ser enquanto

ser”, isto é, “do ser considerado independentemente de suas determinações particulares

e naquilo que constitui sua inteligibilidade própria” (JAPIASSU E MARCONDES,

1990: ). A ontologia investiga as categorias básicas do ser e como elas se relacionam

umas com as outras. Aristóteles chama de substância, natureza ou essência aquilo que

permanece nos seres para além das mudanças, do que é acidental. Trata-se do que é

específico em sua constituição, do que os identifica enquanto tais, o que os define e os

diferencia de outros seres. Perguntar pelo ser da Didática, do ponto de vista da

ontologia, é buscar a sua essência.

Retomando a comparação que vem sendo proposta, devemos pensar que há, sem

dúvida, uma grande diferença entre as teorias dos filósofos que viveram e

desenvolveram sua reflexão na Antiguidade, na Idade Média ou no período iluminista.

Entretanto, há algo nessa reflexão que, apesar das circunstâncias diferentes, os identifica

como filósofos. Trata-se da essência do gesto filosófico. Da mesma maneira, embora se

manifeste de modo diferente em contextos diversos, há algo na Didática que constitui a

sua essência. E é isso que buscamos quando falamos de significado ontológico.

É importante considerar, entretanto, que quando se pergunta pelo significado

ontológico da Didática nos cursos de licenciatura, está-se perguntando, em primeiro

lugar, pela natureza, pela razão de ser desses cursos. Refletir sobre a essência dos cursos

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de Licenciatura nos ajuda a pensar sobre o significado da presença da Didática e da

Prática de Ensino nesses cursos.

Neste trabalho, o propósito é voltar o olhar sobre a presença da Didática,

levando em consideração sua articulação com as demais disciplinas, sem, entretanto,

especificar sua relação com a Prática de Ensino. Será inevitável fazer isso ao abordar a

questão da relação entre teoria e prática nas propostas de organização curricular dos

cursos, mas não é essa a minha intenção primordial. Pretendo retomar, mais uma vez,

aspectos de uma reflexão que venho fazendo sobre a Didática e que já tive ocasião de

partilhar em vários trabalhos. Num deles, especificamente (RIOS, 2001), procuro

refletir sobre a articulação entre a Didática e a Filosofia da Educação. É ao próprio

âmbito da Filosofia que retorno quando recorro à ontologia para discutir o papel da

docência, dos cursos de licenciatura e da presença da didática na sua proposta

curricular.

O que é uma Licenciatura? É um curso destinado a formar professores. De certa

forma, nos vemos de novo numa perspectiva ontológica, uma vez que temos que

perguntar pela natureza do trabalho docente. Uma nova pergunta, então, se apresenta: O

que constitui a razão de ser do professor, o que é essencial para que ele seja assim

definido?

O ser do professor

O que é essencial no professor, quais são as características que o identificam

como tal? Aqui a ideia de essência articula-se com a de identidade. Quando falamos em

identidade, estamos nos referindo a características que especificam algo ou alguém,

diferenciando-o de outros. Que exemplo melhor do que a “carteira de identidade”,

exigida para que o indivíduo prove que existe ou que é quem afirma ser? Na minha

carteira, que tenho há muitos anos, estão apontadas características exclusivas da minha

pessoa. Tudo bem, até que se olhe para a fotografia! Corro o risco de ouvir com

frequência: “Esta não é você!”. E tenho que admitir que se o rosto na foto é componente

da identidade, minha identidade mudou!

Na verdade, a identidade não é algo estático, pronto. Ela é algo em permanente

construção, que se dá em situação, num contexto social, a partir da interação dos

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indivíduos e dos grupos. Mas há algo que permanece sob as mudanças. É a isso que

chamamos essência e é disso que falamos quando perguntamos pelo ser.

Usei a analogia da carteira de identidade porque penso que é isso que acontece

com ao professor. Ele será mesmo professor e afirmará continuamente sua identidade se

estiver cumprindo sua função essencial. E que função é essa? A de ensinar. O ensino é a

essência do ser professor. A “fisionomia” do professor, como a da carteira de

identidade, vai, sem dúvida, vai mudando. A um professor no mundo contemporâneo se

solicita que ensine de maneira diversa do que se solicitava em outros tempos, a um

professor numa determinada comunidade se exige que ensine de uma forma diferente do

que se exige em outro contexto. O que se ensina, a maneira como se ensina, o contexto

em que se ensina, as pessoas a quem se ensina podem ser – e são, efetivamente – muito

diferentes. O professor de Matemática é diferente do professor de Artes. O professor

que propõe trabalhos em grupo é diferente do professor que faz aulas expositivas. O

professor que trabalha com crianças pequenas é diferente do professor que trabalha com

adultos. São ações que apresentam diferenças em diversos aspectos, mas que são iguais

em sua natureza, em sua essência. É por isso que vale repetir que ser professor significa

ser ensinante. Ele é, em qualquer tempo e lugar, solicitado a ensinar: socializar o saber,

contribuir para haja uma aprendizagem, uma apropriação de conhecimentos e valores,

necessários para participar da sociedade, exercer direitos, desenvolver uma vida plena.

A ideia de ensinar tem sido objeto de problematização, uma vez que ela é empobrecida

em sua significação quando nos referimos a ela apenas como transmissão de

conhecimentos, como mera informação (é por isso que se diz que os recursos

tecnológicos dispensam o professor, uma vez que “ensinam” com mais eficiência aquilo

que é necessário...) ou como forma de submissão do pensamento e da ação.

Se concebermos o ensino como gesto humano de preservação e modificação da

cultura e dos indivíduos, não é preciso ter medo de afirmar que o que faz o professor é

ensinar, algo que não ocorre se não leva à aprendizagem. Por isso, de uma forma feliz,

Léa Anastasiou (1998) recorreu ao termo ensinagem para designar a estreita e

fundamental relação entre esses elementos, num único processo. E como não se

desvinculam os atos de ensinar e aprender, o professor é também, sempre aprendente.

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A conclusão a que chegamos, nesse caminho que vimos fazendo é de que não é

possível ser professor sem ensinar. Dela decorre uma questão, que nos leva à reflexão

sobre os cursos de licenciatura: será possível ser professor sem saber ensinar?

A essência dos cursos de licenciatura

O papel de professor traz para o indivíduo a necessidade de uma formação, um

preparo para o desempenho adequado. Ao domínio de conhecimentos sobre

determinada área da realidade, que se converterá no conteúdo do ensino, junta-se a

exigência de domínio de recursos teóricos e metodológicos para a partilha, a

socialização – dos conteúdos. Mais ainda – é preciso ter uma visão crítica dos princípios

que fundamentam sua prática, dos fins por ela visados, dos compromissos por ela

requeridos. Perrenoud (1996:12) fala de um saber a ensinar e de saberes para ensinar.

Não significa que o professor tem que dominar todos os saberes, mas que aqueles que

escolhem esse ofício necessitam, além do saber sobre a sua “matéria”, buscar os

recursos que lhe oferecem os saberes sobre a constituição e a dinâmica das sociedades,

sobre os processos cognoscitivos, sobre as relações entre os seres humanos, sobre as

crenças e os valores que norteiam essas relações etc. Os cursos de formação de

professores, se pretendem ir ao encontro das necessidades sociais, terão que levar em

conta essas exigências (RIOS, 2002:118).

[...] O docente, enquanto trabalhador intelectual da educação e profissional dadocência, deve voltar sua indagação, em primeiro lugar, sobre sua própriadocência, refletir sobre ela, problematizá-la, se em verdade pretendecompreendê-la e assim incidir em sua transformação. Por isso,independentemente de investigar formalmente ou não a disciplina que leciona,tem a obrigação de fazê-lo sobre aspectos pedagógicos, processos grupais,estratégias didáticas, conteúdos de ensino, teorias de aprendizagem, planos eprogramas de estudo e processos de avaliação, entre outros temas relevantes(MORÁN OVIEDO, 2003:19).

Os cursos de licenciatura são o espaço específico para a formação desse

trabalhador intelectual e profissional da docência. Nesses cursos, a própria organização

curricular aponta elementos de uma formação peculiar. Não se podem levantar questões

sobre a problemática educacional sem articular a educação com o contexto histórico-

social no qual ela acontece, do qual sofre e sobre o qual exerce influência, na medida

em que a educação é um dos aspectos de uma prática social mais ampla e tem com essa

prática uma relação dialética. Uma prática social tem condicionantes históricos, é

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resultante de uma conjugação de vontades e possibilidades que são fruto de um

processo. Assim, quando se tem o propósito de colocar em discussão algumas

características dos cursos de licenciatura, é necessário compreender os elementos que o

constituem.

Saviani se refere à necessidade de

[...] os cursos de formação de educadores estarem constantemente empenhadosem compreender em profundidade as condições de desenvolvimento daeducação em geral e da educação brasileira em especial. Isto implica tomar aproblemática educacional como referência constante e estudar seriamente seusfundamentos filosóficos, históricos, sociais, econômicos, políticos, psicológicosetc (SAVIANI, 1982:14).

Desse modo, somos levados a concluir que a essência dos cursos de licenciatura,

sendo o preparo para ensinar, é a formação pedagógica. Isso implica o entrecruzamento

de uma gama variada de saberes que nascem de fontes muito diversas, mas que ganham,

no espaço da formação, a configuração de saberes pedagógicos. É por essa razão que

tenho procurado defender a ideia de que não devemos fazer a distinção, muito

costumeira, entre saberes específicos e saberes pedagógicos, principalmente quando nos

referimos às disciplinas que fazem parte do currículo dos cursos de formação de

professores. Se esses saberes estão no âmbito de uma formação pedagógica, eles todos

podem ser, ali, qualificados como saberes especificamente pedagógicos.

Fala-se muito que o que se deve desenvolver nos alunos, hoje, é a capacidade de

aprender a aprender. Ora, nos cursos de formação de professores, a tarefa dos docentes

é ensinar a ensinar. E isto quer dizer responder a um desafio colocado continuamente,

no sentido de garantir organicidade e coerência ao processo de ensinagem. A Didática

aparece, então, como um saber essencial na formação docente.

O significado ontológico da Didática

Como afirmei antes, retomo aqui considerações apresentadas em trabalho

anterior (RIOS, 2001). Ali, eu tinha o propósito de fazer uma articulação entre a

Didática e a Filosofia da Educação. Para isso, procurei caracterizar os dois saberes. E,

para falar sobre a Didática, recorri, de início, à etimologia. Fazendo isto, encontramos o

grego didaktika, derivado do verbo didasko, e que significa “relativo ao ensino”. É aí

que Comenio (1985:45) vai buscar sua definição, chamando a didática de “arte de

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ensinar”. Assim, como afirma Benedito Antolí (1987:8), o termo ‘ensino’ indica o

elemento chave que identifica o conteúdo da didática.

Segundo Contreras Domingo (1990), um dos problemas com os quais se

enfrenta a definição de Didática é “a dificuldade para esclarecer e especificar seu

âmbito de referência, o objeto de estudo.” (CONTRERAS DOMINGO, 1990:14). Esse

autor, entretanto, julga que “há razões de peso para defender que a Didática seja uma

coisa e não outra, para que se entenda seu âmbito de trabalho de uma maneira e não de

outra, para que se acredite que seu trabalho deve ser de um tipo e não de outro.” (Idem:

15) E vai direto a uma primeira definição: “A Didática é a ciência do ensino”. Mas

admite que seria pouca e confusa a informação obtida com essa definição, em virtude de

muitas ambiguidades dos próprios conceitos que a compõem – ciência e ensino.

Na verdade, a definição de Didática engloba duas perspectivas: vamos encontrá-

la como um saber, um ramo do conhecimento – uma ciência que tem um objeto próprio

– e uma disciplina que compõe a grade curricular dos cursos de formação de

professores. Tanto enquanto ciência como enquanto disciplina constituinte da formação

do professor, a Didática deve fornecer a ele subsídios para uma ação competente,

requerida por seu ofício.

Competência didática não significa domínio de técnicas objetivas, autônomasna sua eficácia. Significa dominar os sentidos da prática educativa numasociedade historicamente determinada, significa capacidade de utilização derecursos aptos a tornarem fecundos os conteúdos formadores, propiciandocondições para que os elementos mediadores da aprendizagem convirjam paraos objetivos essenciais da educação, aglutinando-se em torno de suaintencionalidade básica. (SEVERINO, 1996:69).

LIBÂNEO (1998:117) refere-se à Didática como “disciplina integradora”, que

opera a interligação entre teoria e prática. Ele afirma que

ela engloba um conjunto de conhecimentos que entrelaçam contribuiçõesde diferentes esferas científicas (teoria da educação, teoria doconhecimento, psicologia, sociologia, etc.), junto com requisitos deoperacionalização. Isto justifica um campo de estudo com identidadeprópria e diretrizes normativas de ação docente, que nenhuma outradisciplina do currículo de formação de professores cobre ou substitui.

Assim caracterizada, a Didática aparece como elemento fundamental para o

desenvolvimento do trabalho docente. Quantas vezes já se afirmou, no terreno do senso

comum, que o bom professor é reconhecido por sua “didática”? Claro que, utilizado

dessa maneira, esse conceito é identificado com um saber fazer que é exigido do

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professor, além do conhecimento dos conteúdos específicos de sua área. Mas, mesmo se

nos reportarmos a uma compreensão mais técnica do conceito, podemos manter a

afirmação – a didática faz parte essencial da formação e da prática docente.

A Didática, quer enquanto campo de conhecimento, quer enquanto disciplina nocurrículo dos cursos de formação do educador, deve ser entendida em seucaráter prático de contribuição ao desenvolvimento do trabalho de ensino,realizado no dia-a-dia da escola, e demandado pela sociedade concreta à áreapedagógica. Dentro disso, o saber didático deve ser reconstruído num espaçoque leve em conta, de um lado, sua amplitude, para além do processo ensino-aprendizagem de uma dada matéria curricular, e de outro, seus limites, nosentido de não-identificação com um método geral de ensino. Esse saberdidático, enquanto saber de mediação, trata de princípios, essencialmentemetodológicos, do processo pedagógico escolar – ensino – entendidos à luz doestreito relacionamento entre conteúdo e forma, no contexto das condiçõesconcretas do trabalho didático, o qual possui sua expressão nuclear na sala deaula. A partir desse posicionamento inicial o processo de reconstrução dadidática , no âmbito da teoria pedagógica e no âmbito da práxis do ensino e dapesquisa na área, deverá tratar o fenômeno do ensino enquanto uma totalidadeconcreta, (...) em suas diferentes dimensões, e que não podem ser consideradasde forma reificada. (OLIVEIRA, 1993:133/134)

Não se pensa o ensino desconectado de um contexto. A consideração do ensino

como uma prática educacional, historicamente situada, impõe à Didática a necessidade

de compreender seu funcionamento e suas implicações estruturais, buscando ao mesmo

tempo olhar para si mesma.

Na verdade a Didática é teoria e prática do ensino. Ela agrupa organicamente os

conteúdos das demais disciplinas, funcionando como uma matéria de integração

(LIBÂNEO, 1991:11).

A didática é a disciplina que ordena e estrutura teorias e práticas em função doensino, isto é, está a serviço do trabalho profissional do professor e, por isso,(...) é a disciplina-chave da profissionalidade do professor(LIBÂNEO,1998:52).

Tratar o fenômeno do ensino como uma totalidade concreta, buscar suas

determinações, pensá-lo em conexão com outras práticas sociais, é o que se procura

fazer, do ponto de vista de uma concepção crítica do trabalho da Didática. Pimenta

(1997) refere-se a uma “perspectiva compreensiva da Didática”. Isso significa que a

Didática procura fazer um esforço de compreensão de seu objeto e, ao mesmo tempo,

que ela se beneficia de um olhar compreensivo que se volta sobre ela.

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Formar professores sem Didática?

Contreras Domingo (1990:47) afirma que o professor é “[...] figura fundamental

no desenvolvimento da estratégia do ensino. É ele que tem que compreender o

funcionamento do real e articular sua visão crítica dessa realidade com suas pretensões

educativas, que por sua vez, se definem e reformulam em função dos contextos

específicos e das experiências acumuladas”. É nessa medida que é imprescindível a

presença da Didática na sua formação. Ela, no dizer do autor, “em vez de ser a

disciplina que diz aos professores o que devem fazer com os alunos, trabalha com os

professores para que sejam eles os que decidam o que devem fazer com os alunos e com

seu trabalho em geral como profissionais do ensino” (Idem:243).

“[...] a didática, ao significar uma forma de vivenciar a ação da escola para aformação do aluno, segundo uma finalidade social determinada, possui umsentido e um significado que vão além da específica operacionalização doensino. Pois, na medida em que seu objeto de estudo é uma forma de ensino quebusca adequar e preparar o aluno para a vida social, essa forma, além do aspectotécnico-operacional, possui um conteúdo que é determinado pelas condições enecessidades predominantes na prática social mais ampla” (DAMIS, 1999:22).

Este trabalho se apresenta no interior de um simpósio realizado no XVII Endipe.

Nos 16 encontros anteriores, sempre esteve em discussão a questão do significado da

Didática e da Prática de Ensino. Temos participado de movimentos no sentido de uma

ressignificação da Didática, de uma revisão da Didática, superando um caráter

instrumental, na direção de uma Didática crítica. Candau (1988:14) afirma que “é

pensando a prática pedagógica concreta, articulada com a perspectiva de transformação

social, que emergirá uma nova configuração para a Didática”. A nova configuração

deveria ser, na verdade, uma afirmação de sua essência, de sua especificidade, revelada

na ação concreta dos professores.

Levando isso em consideração, podemos afirmar que a Didática faz parte do ser

professor, tanto na sua formação inicial, quanto no desenvolvimento de seu trabalho,

num processo de formação continuada. Sem refletir sobre o significado de seu fazer, de

seu pensar, sem buscar um significado para o processo que se desenrola na sua relação

com os alunos, com os colegas, com a sociedade, sem dispor-se a ampliar seu

conhecimento do mundo para transformá-lo, o professor deixa de ser professor.

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Propõe-se, então, que a reflexão sobre a formação e a prática dos educadores não

esteja predominantemente nos encontros, congressos, ou nos programas de pós-

graduação, mas seja cosntantemente retomada e estimulada no espaço dos cursos que

estão a formá-los. Não quero, em absoluto, dizer que a reflexão crítica está ausente das

propostas (ela está em todas, pelo menos no discurso) e de algumas práticas dos

educadores de nossas escolas, nos cursos de formação de educadores. O que se constata

é que ela ainda não se encontra aí da maneira que seria desejada. Falar sobre o ser do

professor implica articulá-lo com o dever ser. É preciso que essa reflexão didática

auxilie o professor a trilhar seu caminho na construção da educação, da escola, da

sociedade de que temos necessidade e que desejamos para todos.

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