francisco mendes - a criação da rede paroquial na península de setúbal - 1147-1385

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UNIVERSIDADEDELISBOA FACULDADEDELETRAS DEPARTAMENTODEHISTRIA

ACRIAODAREDEPAROQUIAL NAPENNSULADESETBAL (11471385)

FranciscoJosdosSantosMendes

MESTRADO EM HISTRIA MEDIEVAL

2010

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UNIVERSIDADEDELISBOA FACULDADEDELETRAS DEPARTAMENTODEHISTRIA

ACRIAODAREDEPAROQUIAL NAPENNSULADESETBAL (11471385)

FranciscoJosdosSantosMendes

MESTRADO EM HISTRIA MEDIEVAL

Dissertao orientada pela Professora Doutora Manuela Rosa Coelho Mendona de Matos Fernandes

2010

2 Resumo A presente dissertao tem como objectivo principal aclarar as formas de estabelecimento da rede paroquial na Pennsula de Setbal no tempo que vai da conquista de Lisboa, em 1147, subida ao trono de D. Joo I, em 1385. Visa-se o estabelecimento de uma cronologia fivel da implantao paroquial, o reconhecimento no terreno dos seus limites originais e o modo como a interaco das jurisdies eclesisticas com a jurisdio das outras instituies (nomeadamente os municpios e a Ordem de Santiago da Espada) teve influncia sobre o estabelecer do sistema paroquial no espao e no tempo em estudo, e vice-versa. De modo a reconhecer eventuais continuidades, feito um enquadramento prvio, administrativo e eclesistico, da Pennsula de Setbal, desde o Imprio Romano at 1147, sem esquecer os dados conhecidos das pocas visigtica e de Al Andaluz. Para detectar os primeiros sinais da presena eclesial aps 1147, acompanham-se as vicissitudes militares da Margem Sul at sua pacificao definitiva, em 1217, com a conquista de Alccer. Por fim, apontam-se ainda as linhas de fora da evoluo subsequente da rede paroquial no espao considerado.

Palavras-chave Parquia; rede paroquial; Pennsula de Setbal; Margem Sul do Tejo; Reconquista; Ordem de Santiago; Diocese de Lisboa; municpios; termo municipal; limite paroquial.

SommaireCette dissertation tient comme objectif principal connaitre les formes dtablissement du rseau paroissial dans la presquile de Setbal, durant la priode allant de la conqute de Lisbonne (1147) au dbut du rgne de Jean I (1385). On envisage ltablir dune chronologie fiable de limplantation paroissiale, reconnaitre dans lespace ses limites originales et bien aussi les formes comment linteraction des juridictions clsiastiques avec la juridiction des autres institutions (surtout les municipalities et lOrdre de Saint Jacques de lpe) avait influence sur ltablissement du systme paroissial dans lespace et dans la priode considr. Pour reconnaitre des eventuelles continuits, on fait lencadrement, administratif et eclsiastique, de la presquile de Setbal, ds lEmpire Romain jusqu 1147, en considrant aussi les donns connus de lpoque wisigothique et dAl Andaluz. Pour dtecter les prmiers signes de la prsence de lglise, on verrons les campagnes militaires

3dans la Rive Sud du Tage jusqu la pacification definitive em 1217, avec la conqute dAlccer. Au fin, on prendrons compte des lignes dvolution posterieure du rseau paroissial dans lspace consider.

Mots-clefs

Paroisse; rseau paroissial; presquile de Setbal; Rive Sud du Tage; Reconquista; Ordre de Saint Jacques de lpe; Diocse de Lisbonne; municipalits; termo municipal; limite paroissial.

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LISTADEABREVIATURASESIGLASAA - Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis. c./cc. Coluna, Colunas. CDA - Chancelaria de D. Afonso III. CDD - Chancelaria de D. Dinis. CDDT - Chancelaria de D. Duarte. CDP - Chancelaria de D. Pedro I. Cf. Conferir. Coord. Coordenao. CSM-DM - Documentum Martyriale, Corpus Scriptorum Mozarabicorum. CSM-MS - Memoriale Sanctorum, Corpus Scriptorum Mozarabicorum. cx. Caixa. DDS - Documentos de D. Sancho I. DHCL - Documentos para a Histria da Cidade de Lisboa. dir. direco. doc./docs. Documento, documentos. ed. Editor/edio. EN - Extractos do Numeramento de 1527-1532. et al. et alii/e outros. EU - De Expugnatione Ulixbonensi. fl./ff. Flio, flios. Gv - Gavetas da Torre do Tombo. IANTT - Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. Intr. Introduo. LC - Livro dos Copos. LN - Leitura Nova. LVAAG - Livro da Vereao de Alcochete e Aldeia Galega. m. Mao. MP Memrias Paroquiais. MSN - Mosteiro de Santos-o-Novo. n/nn Nmero, nmeros. OS/CP - Ordem de Santiago, Convento de Palmela.

5 p./pp Pgina, pginas. PL Patrologia Latina de Migne. PMH-LC - Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines. prep. Preparao, preparado por. S. Santo, Santa, So. ss. Seguintes. SEA - Igreja de Santo Estvo de Alfama. SMO - Igreja de Santa Marinha do Outeiro. SVF - Mosteiro de S. Vicente de Fora. t. Tomo. transcr. Transcrio. TVA - Livro de Tombo Velho de Azeito. TVS - Livro de Tombo Velho da Vila de Sesimbra. v. Verso. vol. Volume.

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INTRODUOA Pennsula de Setbal, como espao administrativo, hoje a parte Norte do Distrito com o mesmo nome, estando o seu territrio, nos nossos dias, divido em 58 freguesias civis, repartidas de forma desigual por nove concelhos: Almada, Seixal, Barreiro, Moita, Montijo, Alcochete, Sesimbra, Palmela e Setbal. Os seis primeiros so os concelhos ribeirinhos do Tejo, os trs ltimos os que partilham a regio da Arrbida. A sua populao de cerca de 780 mil pessoas. Tem dois portos Setbal e Sesimbra - e partilha ainda o esturio do Tejo com Lisboa. Eclesiasticamente, e com a excepo de uma pequena parcela para l do Sado, na Comporta (por esta razo no considerada neste trabalho) estes limites so tambm os limites da Diocese de Setbal, criada em 1976. Cinquenta e uma parquias e sete quasiparquias, arrumadas em sete Vigararias Forneas e distribudas por onze Concelhos, dois Santurios, quatro capelanias hospitalares, trs Reitorias e Capelanias autnomas, onze Misericrdias, trs Confrarias, vinte e nove Centros Sociais paroquiais, nove Congregaes Religiosas masculinas, doze Congregaes Religiosas femininas, duas Ordens Terceiras, um Mosteiro, dois Seminrios. Eis a actual estrutura eclesistica, cujos alvores pretendemos acompanhar neste trabalho. Sendo ns um dos presbteros desta Igreja de Setbal, maior razo teremos para conhecer e dar a conhecer estes alvores, que explicam a organizao de hoje e lhe do sentido, pois s conhecemos o que somos quando sabemos de onde vimos. Este trabalho nasce do desejo de desvelar para o povo que servimos os primeiros raios de uma realidade chamada Igreja, divina e humana, num espao que nos muito significativo. Este espao, como local concreto onde o povo dos cristos vive, ele prprio sinal de uma Presena que, em ltima anlise, s a F pode fazer compreender na sua razo ltima, mas que na sua organizao quotidiana, na tenso entre um j e um ainda no, local onde este povo, que se sabe peregrino, deixa marcas, marcas congruentes com cada poca, mas que explicam o presente e ajudaro a compreender o futuro. Como no podemos ter a pretenso de fazer tudo, desejamos centrar-nos no aclarar uma poca que, no espao definido, e salvo melhor opinio, est pouco estudada: o tempo do ps-reconquista, com bitolas temporais no ano da reentrada crist na Margem Sul, 1147, e na ascenso de uma nova dinastia rgia portuguesa, em 1385.

7 Sendo verdade que se encontram alguns dados avulsos, contudo no lhes tem sido dada uma perspectiva de conjunto e de continuidade, o que os torna por vezes incompreensveis, irrelacionveis e at em certos casos, primeira vista, contraditrios. Talvez isto acontea porque a Pennsula de Setbal seja um espao para o qual, nesta poca, no h muita documentao disponvel, e cujo conhecimento se tem feito a partir dos contributos, mais ou menos desgarrados, dispersos por monografias ou estudos particularizados sobre determinados pormenores, que os estudiosos tm conseguido trazer a lume com o seu labor. O que queremos fazer com este trabalho ajudar a construir esta perspectiva de sntese. Para isso no basta a boa inteno, mas antes se torna necessrio definir o que se quer aclarar, e utilizar os meios mais convenientes para a chegar. Como incontornvel ter de escolher uma perspectiva de trabalho, a partir da qual se relacionem todas as outras perspectivas, julgmos conveniente tomar como objecto de estudo um tema que raramente tem sido aflorado para a zona considerada: o estabelecimento da rede paroquial. Ser desejvel, no entanto, tornar visveis as continuidades, para que a anlise no surja a modo de corte estratigrfico, sem relao com um antes, com um depois e sem contexto espcio-temporal. Por isso, seria impossvel e desonesto no nos debruarmos tambm sobre os principais factos administrativos cvicos (perdoe-se a expresso algo anacrnica) tanto os que esto dentro deste perodo como os que se verificaram previamente, j que tero deixado a sua marca no tempo e espao que estudaremos. impraticvel no olhar tambm para as primeiras comunidades eclesiais hispnicas, desde os tempos ps-apostlicos, para percebermos at que ponto a estruturao medieval herdeira da eclesialidade antiga. Seria trabalho insano, fastidioso e enciclopdico (no mau sentido) pretendermos ser panpticos sobre todos os factores de enquadramento e evoluo deste espao, pelo que escolhemos para comear a anlise apenas os mais relevantes: as alteraes fsicas, a populao e as vias de comunicao. Sero apresentados de forma breve, somente para permitir o enquadramento geogrfico, e uma ideia genrica da sua evoluo ao longo dos sculos. Reconhecendo a priori que, nesta poca, falar de limites eclesisticos falar dos correlativos limites seculares, incontornvel ser a referncia, pari passu, aos aspectos administrativos, na sua relao com os aspectos de organizao eclesial, ao longo dos vrios perodos de anlise. ainda impossvel no nos referirmos tambm aos diversos

8 actores, tanto eclesisticos como senhoriais, pois a sua presena tambm possivelmente ter levado a um certo estilo organizativo. Quanto aos aspectos puramente eclesisticos, esses tambm tero a sua anlise em captulos prprios, dada a sua centralidade neste trabalho.

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AOEspaodaPennsuladeSetbal:geografia,populao, comunicaes1) Geografia. Em termos geogrficos, o espao em anlise facilmente delimitvel: todas as terras entre os esturios dos rios Tejo e Sado, e entre o Oceano Atlntico e os limites do Alto Alentejo, e subindo desde o nvel do mar at aos 500 metros do Monte do Formosinho, na cordilheira da Arrbida: grosso modo, chamar-lhe-emos Pennsula de Setbal. Quando chegaram os Romanos, a zona era provavelmente conhecida como Akra Barbarion (Promontrio dos Brbaros) ou, pelo menos, assim o seria o grande esporo Arrbida-Espichel 1 . Do que podemos supor, a regio apresentava, no relativo ao que agora conhecemos, algumas diferenas apreciveis, tanto na linha de costa ocenica como nas margens dos esteiros: nestes, que rasgam ainda hoje a margem esquerda do Tejo 2 e a margem direita do Sado 3 , as guas iriam at bem dentro da pennsula, e o troo navegvel era decerto bem maior 4 . Do mesmo modo, aquela que hoje chamamos Lagoa de Albufeira, e que mais no que um vale que o oceano preencheu no fim da ltima glaciao, estaria permanentemente aberta ao mar, proporcionando uma reentrncia profunda na linha de costa, que hoje se apresenta numa linha contnua. Tambm a zona da actual Tria, frente Arrbida, seria uma ilha, fazendo do esturio do Sado um delta 5 . Ao longo dos sculos seguintes est comprovada a tendncia de assoreamento das calas dos dois rios e dos seus esteiros adjacentes, uma tendncia que prossegue at aos dias de hoje. Foi esse processo que afastou Palmela do Sado, j em poca crist 6 , e que ter sido tambm responsvel pelo rpido abandono do local de Coina-a-Velha, em favor de uma outra povoao, quase de certeza j existente, junto ao novo limite de navegabilidade do esteiro, conforme veremos adiante. H inclusive notcias de que, emCf. SERRO, Eduardo Cunha, Carta Arqueolgica de Sesimbra, Cmara Municipal de Sesimbra, Sesimbra 1994, citando Estrabo, o Grego, p.35. 2 De Poente para Nascente, os Esteiros de Corroios, Seixal, Coina, Alhos Vedros, Moita, Sarilhos, Montijo, Samouco, Rio das Enguias. 3 De Poente para Nascente, os Esteiros de Praias do Sado, Santo Ovdio, Manteigadas, Marateca. 4 Cf. BLOT, Maria Lusa, os Portos na Origem dos Centros Urbanos. Contributos para a arqueologia das cidades martimas e fluvio-martimas em Portugal, in Trabalhos de Arqueologia 28, Instituto Portugus de Arqueologia, Lisboa 2002, p.58, mapa. 5 Cf. FERREIRA, Fernando Bandeira, A propsito do nome Achale ou Acale da Ora Martima de Avieno, in Revista de Guimares, 69, Guimares 1959, pp.437-444. 6 Cf. FERNANDES, Isabel Cristina, O Castelo de Palmela. Do islmico ao cristo, Colibri/Cmara Municipal de Palmela, Lisboa 2004, p.275.1

10 tempos da Reconquista, ainda existia uma ligao entre os dois esturios, desde a zona da Marateca (limite oriental de Palmela) at Ribeira das Enguias (junto a Alcochete) 7 . Do mesmo modo, a Lagoa de Albufeira, na Costa Ocidental, passou a estar quase sempre fechada, tendo de ser aberta de modo artificial, logo a partir do sculo XIV 8 , de forma peridica, situao que acontece ainda hoje. 2) Populao. No temos dados suficientes, nem escritos nem arqueolgicos, para falar com certezas da carga populacional da Pennsula de Setbal, pelo menos at ao Numeramento de 1527-1532. As referncias existentes so bastante esparsas e quase sempre inconclusivas. No entanto, cremos ser possvel demonstrar, embora obviamente de forma no quantitativa, que a populao da Pennsula foi, at pelo menos aos meados do sculo XV, uma populao de crescimento lento, se que os indicadores da criao das divises paroquiais, da criao de comendas espatrias e das cartas de foral atribudas so fidedignos para poder fazer essa demonstrao, como cremos que o so at certo ponto. Para tudo o que est atrs, faltam quase todos os elementos que permitiriam essa anlise, nomeadamente nos perodos romano, visigtico e de AlAndaluz. Podemos, no entanto, recordar que, para a poca romana, apenas so conhecidas referncias documentais a trs povoados - Equabona, Cetobriga e Malececa 9 dos quais s o segundo parece ter localizao comprovada em Setbal 10 ; para a era dos visigodos, nenhuma referncia parece ter sobrevivido, embora se presuma a continuidade, e as fontes de Al Andaluz s apontam dois husun: Balmalah e Al Madan 11 . Os dados toponmicos tambm podem revelar algo, embora tenham uma importncia muito relativa, j que mostram a presena de povoamento no local, mas nada mais profundo que isso. Arqueologicamente, h bastantes elementos, mas que no permitem fazer quantificaes, nem ir muito alm da simples constatao da ocupao. 3) Comunicaes. O chamado Itinerrio de Antonino, que descreve o percurso das chamadas Vias Imperiais romanas, mostra trs estradas que, depois de sarem de Olisipo/Lisboa, tomam o caminho de Emrita, a capital da Lusitnia romana. UmaCf. TORRES, Cludio, Os castelos do Sado, in Terras da Moura Encantada, Civilizao, Lisboa 1999, p.172. 8 Cf. FREITAS, Maria da Conceio & FERREIRA, Tnia, Geologia, in Lagoa de Albufeira. Geologia, comunidade de aves, avaliao ecolgica e socioeconmica e factores que influenciam a gesto, Centro de Zonas Hmidas, Instituto de Conservao da Natureza, Lisboa 2004. 9 Cf. CARNEIRO, Andr, Itinerrios Romanos do Alentejo. Uma releitura de As grandes vias da Lusitnia o itinerrio de Antonino Pio de Mrio de Saa, cinquenta anos depois, Colibri, Lisboa 2009, p.49. 10 Cf. ALARCO, Jorge de, Notas de Arqueologia, Epigrafia e Toponmia, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 7, 1, Lisboa 2004, p.320. 11 Cf. FERNANDES, 2004, p.63.7

11 delas, a Via XII, seguia pelo territrio da Pennsula de Setbal, tornando-se o seu eixo estruturante de circulao 12 , e da qual partiriam vrios acessos menores a outros pontos da regio 13 . A grande Via sairia da zona de Almada 14 , passando 16 milhas depois junto a Equabona 15 , de onde alcanaria ento Cetbriga, e a seguir a esta Malececa. Esta via, bem como os outros ramais menores que possam ento ter existido no terreno, teriam sido mantidos, com algumas alteraes muito pontuais, como as vias de circulao nas pocas subsequentes 16 , tanto por visigodos, como pelos muulmanos e pelos portugueses, e seriam a base de algumas estradas at aos dias de hoje 17 . Concretamente, podemos apontar ainda vrias referncias (e de forma no exaustiva) em documentos de Almada, estrada para Sesimbra 18 , em documentos de Coina, s estradas para Setbal, Sesimbra, Almada, Palmela e Ramagem 19 , em Palmela s

Cf. CARNEIRO, 2009, p.50. Cf. FERNANDES, 2004, p.43. 14 Cf. ALARCO, Jorge de, O Domnio Romano em Portugal, Europa-Amrica, Mem Martins, 1998, pp.98-101. 15 Que cremos ficar no em Coina-a-Velha (que para ns seria apenas um hisn de refgio da poca muulmana, eventualmente sobre base anterior) mas sim em Coina-a-Nova, ou nas suas proximidades, j que pensamos que as duas povoaes tero existido em concomitncia (o que esperamos demonstrar mais frente, quando nos dedicarmos especialmente queles locais). Apenas adiantamos, para este efeito, que nas primeiras delimitaes do territrio de Coina (neste caso, a chamada Nova) surge a referncia a um chamado caminho velho que soya dhyr dalmadaa pera o porto dos cavaleiros (este um local prximo de Coina, dita a Nova, junto actual Quinta do Conde) local onde se subentende que tal estrada passasse o Rio de Coina na direco de Azeito, e no na direco de Coina-a-Velha, o que seria absolutamente irracional para quem desejasse ir directamente a Setbal, e onde a entrada antiga, nos contrafortes da Serra de So Lus, foi reconhecida h muito como um troo de calada romana bem preservado. Cf. Mosteiro de Santos-o-Novo, 1295. Tambm ALARCO, 2004, p.320. 16 Cf. FERNANDES, 2004, p.43. Tambm MARQUES, Jos, Viajar em Portugal nos sculos XV e XVI, in Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, srie Histria, 14, Porto 1997, p.92. 17 Se tivermos razo quanto localizao de Equabona, e consequentemente, quanto identificao do traado da Via XII, ento isto quereria dizer que a actual Estrada Nacional 10, no seu percurso entre Coina e Setbal, corre muito prxima, seno por cima, do traado romano. 18 Cf. Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (IANTT) Leitura Nova (LN) II e VII Odiana, respectivamente, ff. 288 e 51: no paul dapostia, termo de Sesymbra, o qual comea no caminho que vay dAlmadaa pera o dicto logar de Sesymbra e e uma quinta da maia, que parte ao poente com estrada que vay dAlmadaa pera Sesymbra. 19 Cf. IANTT, LN, VII Odiana, f.12: Barra Chea, termo de Palmela: doaam dhum terreno que parte do norte com caminho que vay da Mouta pera Azeitam, do sul com estrada de carretas que vem da Pedreira pera Couna; tambm Crnica do Condestabre, FARIA, Antnio (Introd.) Academia Portuguesa de Histria, Lisboa 1972, pp.69 e 70.13

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12 estradas para Landeira, Coina e Setbal 20 , em Sesimbra, s de Almada e Azia 21 , e em Setbal s que se dirigiam a Alccer, Palmela e Coina 22 .

Cf. IANTT, LN, VI Odiana, f.147: esta vila tem privilgios antigos confirmados pelos reis que ate agora foram que nenhum homem que de riba de odiana viesse pela Landeira, seguindo para Couna e Almadaa pera Lisboa, que no veesse seno pela estrada dicta que vem dicta vila sob pena de perder as bestas e mercadoria que trouxesse. 21 Cf. IANTT, LN, III Odiana, f.224: desde o caminho que vay pera Almadaa ate ao vale da Maria Garcia. Tambm Convento de S. Maria da Piedade de Azeito, 101, e Chancelaria de D. Pedro I (CDP) doc. 1102, in MARQUES, Oliveira (prep.) Instituto Nacional de Investigao Cientfica, Lisboa 1984. 22 Cf. Livro dos Copos (LC) ff.373-375, doc.302, in Militarium Ordinum Analecta, Fontes para o estudo das Ordens Religioso-Militares, 7, Fundao Engenheiro Antnio de Almeida, Porto 2006, pp.599-303.

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BAsorganizaesadministrativaeeclesialantigasna PennsuladeSetbalSe bem que as coisas de Csar sejam de Csar, e as de Deus sejam de Deus 23 , o facto que, j em tempos do Imprio, e mesmo ainda sob perseguio, a Igreja Crist tendeu sempre a adoptar como critrio principal para os limites das suas jurisdies eclesisticas os limites territoriais das Provncias romanas e das suas outras subdivises 24 . Essa prtica foi depois tornada oficial, e em todos os lugares cristianizados ou a cristianizar, pelo Conclio de Calcednia, em 451 25 . A razo desta prtica tem a ver com vrios factores: por um lado, o cristianismo no prope, em termos concretos, nenhum sistema poltico especfico, e vive em todos os tempos com a organizao prpria de cada tempo e lugar 26 ; por outro lado, os cristos no deixavam de ser cidados do Imprio, ou, pelo menos, de se sentirem parte da Romanitas, pelo que a diviso administrativa imperial era, obviamente, a mais racional e adequada; por fim, o prprio processo de evangelizao era muito mais dirigido aos habitantes dos grandes centros urbanos do que aos moradores do pagus, quase sempre mais refractrios a novas ideias e mais adeptos de religiosidades simples e ritualistas, fazendo com que o cristianismo nascesse logo com a marca da urbanidade, assumindo-a de forma clara como modelo de implantao e de vida 27 . No se pode excluir tambm a hiptese de que questes de natureza mais disciplinar, como a dos lapsi 28 , levassem necessidade de obrigar os bispos a assumirem tambm esses limites, por uma questo deCf. Mateus 22, 21. Cf. JORGE, Ana Maria, Lpiscopat de Lusitanie pendant lantiquit tardive (III-VII sicles) in Trabalhos de Arqueologia 21, Instituto Portugus de Arqueologia, Lisboa 1999, p.99. 25 Cf. JORGE, 1999, p.99. 26 Carta a Diogneto, V, 1-6, in FUNK, Franz Xavier, Patres Apostolici, I, Tubingen 1901. Ao que se sabe, mesmo na ndia ou na Prsia, pela mesma poca, o seu critrio de arrumao no terreno era tambm o de adoptar os limites jurisdicionais e administrativos existentes 27 Cf. SOTTOMAYOR, Manuel, Las relaciones Iglesia Urbana/Iglesia Rural en los Conclios Hispanoromanos y Visigodos, in Sacralidad y Arquelogia. Antiguedades Cristianas, 21, Mrcia 2004, p.526. Tambm MATEOS CRUZ, Pedro, El urbanismo emeritense en la poca paleo-cristiana (siglos V-VI), in La tradicin en la antigedad tardia. Antiguidades Cristianas, 14, Lisboa 1997, pp. 601-602. 28 Um lapsus, pl. lapsi, que quer dizer cado, era um cristo que, diante da perseguio e da ameaa de priso ou morte, abjurava da f, por qualquer forma, de modo a escapar s consequncias previstas pela autoridade que impunha essa abjurao. Esta conduta foi altamente reprovada pelos bispos e pelos cristos em geral, que valorizavam a constncia na f, mesmo diante da ameaa de perder a prpria vida. Aos lapsi aplicava-se a penitncia de nunca mais entrarem dentro do local onde a Igreja se reunia, e de nunca mais receberem a Eucaristia, a no ser no momento da morte, e apenas se, at l, tivessem feito uma durssima penitncia, que s a terminaria efectivamente. Houve mesmo uma questo grave entre o Papa S. Cornlio e S. Cipriano de Cartago sobre esta matria, e que versava a necessidade ou no de os lapsi receberem de novo o Baptismo, com o ltimo a assumir uma posio de grande radicalidade, diante da forma mais benvola de acolhimento advogada pelo Pontfice.24 23

14 clareza sobre qual dos prelados tinha auctoritas et potestas para exercer o poder sacramental penitencial 29 . As sedes de Diocese eram, por esta razo, colocadas nos centros urbanos; naqueles que estavam cabea de uma provncia, e que ganhavam por isso um estatuto de capitalidade entre todos os outros, tambm o seu bispo ganhava esse estatuto de preponderncia 30 (ao menos em termos de precedncia eclesistica) sobre os outros bispos, o que lhe dava auctoritas et potestas para dirimir certos conflitos e at para se impor em algumas situaes 31 : estes eram os bispos das Metrpoles, chamados Metropolitas (e depois Arcebispos) que passaram a dispor, num processo relativamente rpido, de jurisdio sobre os outros bispos da sua Provncia 32 , que tambm era quase sempre coincidente com os limites da Provncia imperial correspondente 33 . E se, por acaso, a cidade at era tambm sede do poder mximo, mais tarde sede rgia, ento estamos na presena de um episcopus cujo primado, auctoritas et potestas, relevam da sua condio de Pastor da Igreja do centro urbano mais importante 34 . Depois da queda do Imprio Ocidental (e embora com algumas nuances no caso dos Bispos-monges e dos chamados Corepiscopos, existentes em alguns locais muito especficos das terras outrora romanas, mesmo na Pennsula Ibrica35 ) este critrio de adequao foi o que predominou sempre e largamente, mesmo j debaixo de outros senhores, potncias e imprios, e at aos dias de hoje. Portugal no , de forma alguma, uma excepo: podemos mesmo dizer, sem correr o risco de exagerar muito, que na delimitao de novas jurisdies, este critrio de adequao tem sido uma constante ao longo dos sculos no territrio portugus, o que se comprova at pelo facto de as excepes que em determinadas pocas existiram, terem sido vistas como algo profundamente estranho e at irracional, quase contra-natura, tendo-se dispendido bastante esforo para as resolver 36 .29

Cf. JORGE, Ana Maria, Organizao Eclesistica do espao, in Histria Religiosa de Portugal, I, Crculo de Leitores, Lisboa 2000, p.138. 30 Cf. JORGE, 1999, p.93. 31 Ao menos no Ocidente, j que o Oriente sempre apresentou mais caractersticas de sinodalidade. Cf. JORGE, 1999, p.99. 32 O cnone IV do I Conclio Ecumnico de Niceia (325) sancionou este costume: um novo bispo devia ser ordenado por trs outros da sua provncia, e depois confirmado pelo metropolita. 33 Cf. JORGE, 1999, p.87. 34 Cf. GARCIA MORENO, Lus, La Iglesia y el Cristianismo en la Galecia de poca Sueva, in Espacio y tiempo en la percepcin de la Antigedad tardia. Antiguedades Cristianas, 23, Mrcia 2006, pp.40-41. 35 MATTOSO, Jos, o Monaquismo Ibrico e Cluny, in Do Tempo e da Histria, Instituto de Alta Cultura, Lisboa 1968, pp.81 e ss. 36 Quase seria suprfluo lembrar a este propsito, por exemplo, o esforo de D. Afonso Henriques para subtrair Lisboa jurisdio metropoltica de Santiago de Compostela, herdeira dos direitos de Mrida.

15 Ainda hoje este critrio de adequao, pelo menos em Portugal, seguido com alguma frequncia, tanto pelo foro civil como pelo eclesistico, quando h necessidade de criar alguma nova circunscrio ex novo, havendo o cuidado (no explicitado na legislao vigente mas constante nas boas prticas administrativas, sobretudo municipais) de fazer acompanhar o processo de delimitao com consultas mtuas, mais ou menos aprofundadas. Mas olhemos agora com mais pormenor para o espao da Pennsula de Setbal, nos tempos que medeiam desde a chegada do Cristianismo at Conquista de Lisboa, em Outubro de 1147.

INostemposdoImprioRomano1)DivisoAdministrativaesuaevoluo.No caso da Pennsula de Setbal, o cristianismo veio encontr-la integrada na provncia da Lusitnia, criada por Augusto em 27 aC 37 , e com a capital em Emrita Augusta, tambm fundada por ele dois anos antes, no seu movimento de delimitao administrativa e criao de civitates 38 . Por seu turno, os limites das civitates, na Pennsula Ibrica, quase sempre foram o assumir de antigas fronteiras tribais preexistentes, ou o resultado de uma fixao, mais ou menos artificial de certos povos, em determinado territrio, por motivos de convenincia poltica romana. J no I sculo, provavelmente sob Vespasiano, o territrio da Lusitnia foi dividido em trs conventi, ao que parece por razes de ordem judicial: Scallabitanus (capital Scallabis, hoje Santarm) Pacensis (capital Pax Jlia, hoje Beja) e Emeritensis (capital Emrita Augusta, hoje Mrida) 39 . No h absoluta certeza quanto aos limites exactos de cada um dos conventi, pois no nos chegou nenhuma descrio desse tipo, mas supe-se que, como cada um integrava um certo nmero de civitates, essas sim conhecidas, os seus limites seriam os limites dessas mesmas civitates, tornados assim limites jurisdicionais quando estas serviam de fronteira. Ora isto causa um problema, problema que, no caso da Pennsula de Setbal, no sabermos verdadeiramente, com exactido, a qual conventus - Scallabitanus ou

37 38

Cf. JORGE, 1999, p.81. Cf. JORGE, 1999, p.82. 39 Cf. JORGE, 1999, p.82.

16 Pacensis pertenceria o espao. E aqui os historiadores dividem-se: se verdade que alguns, em vrias obras e respectivos mapas, indicam o Tejo como limite sul do Scallabitanus, colocando-se assim a Pennsula na jurisdio do Pacensis, no podemos considerar esse limite seno como uma suposio, j que no h nenhuma descrio exacta desse traado, enquanto outros estudiosos, em outras obras, se servem das montanhas da Arrbida para marcar essa linha 40 , tambm esta no explicitamente documentada, mas bastante mais provvel, como se ver. Nem o facto de sabermos quais as civitates mais prximas existentes em cada um deles ajuda, pois tambm se colocam muitas dvidas quanto ao traado das suas reais confrontaes: ser que Olisipo/Lisboa, a civitas mais prxima, finava o seu territrio nas guas do Tejo, ou pelo contrrio, abrangeria a Pennsula de Setbal? Ser que Ebora/vora estenderia as suas jurisdies at s guas do Esturio ou, pelo contrrio, ficar-se-ia pelas zonas orientais da regio? Ou no seria antes Salacia/Alccer a dominar com a sua jurisdio todo o espao entre Tejo e Sado, no ficando com a sua jurisdio confinada apenas ao espao para l do esteiro que bordejava Malececa/Marateca? No podemos portanto, fechar a questo, por honestidade histrica, e aceitar como verdadeira uma linha de jurisdio que no passa de uma mera hiptese de traado entre vrias possveis. Consideramos at, pelo contrrio, que h mais sentido em fazer passar a fronteira das civitates, e por conseguinte a dos conventi, pelas montanhas da Arrbida do que recuar com essa raia at ao Tejo, j que, em sculos posteriores, os visigodos parecem fazer passar os limites de Olisipo/Lisboa pela Arrbida, e durante a poca muulmana, esse limite parece ter sido conservado mais ou menos inalterado como o limite entre a jurisdio de Ushbuna/Lisboa e a de Al Qasr/Alccer. Sabendo ns que os limites de jurisdio so a maior parte das vezes tocados de forma muito conservadora, ou nem sequer mexidos, ento esta hiptese de um limite pela Arrbida ganha mais consistncia. Com Diocleciano, entre os anos 284 e 288, a Hispnia vai sofrer a sua ltima grande remodelao administrativa e de limites dentro da era imperial: toda ela passa a ser aCf. ALARCO, Jorge de, Propositions pour un nouveau trac des limites anciennes de la Lusitanie romaine (e tambm o mapa) in Les villes de Lusitanie romaine. Hirarchies et territoires, Paris, Centre Nacional.de Recherche Scientifique, Paris 1990, p.328. Cf. Tambm RIBEIRO, Orlando, Formao de Portugal, Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, Ministrio da Educao, Lisboa 1987, p.29. verdade que, em Roma, os rios funcionavam muitas vezes como limites, mas h excepes suficientes para colocarmos ao menos uma dvida de honestidade quanto a esta hiptese: muitas vezes, e at na prpria Hispnia, so as cadeias montanhosas que funcionam como marcos divisrios entre jurisdies, no os rios.40

17 Dioecesis Hispaniarum, com capital em Emrita 41 , e subdividida em cinco provinciae, uma delas a Lusitnia, embora desapaream os conventi. Os limites de civitas, no entanto, parecem no ter sido alterados 42 , pelo que, a ser assim, no houve alterao de jurisdies na Pennsula de Setbal.

2)Divisoeclesisticaesuaevoluo.O cristianismo parece ter chegado Pennsula Ibrica muito cedo 43 , eventualmente ainda no I Sculo ou princpios do seguinte, embora as primeiras notcias documentais sejam j s das vsperas do sculo III, patentes em referncias gerais nas obras de S. Ireneu de Lyon e de Tertuliano de Cartago 44 , que falam j de comunidades crists florescentes. Se bem que a vinda Hispnia dos Apstolos Paulo e Tiago Maior, e ainda a dos Sete vares Apostlicos, seja hoje tida como pouco mais que lendria (embora no caso da viagem paulina hajam mais elementos de verosimilhana 45 ) o fundo real que se parece exprimir de forma muito clara atravs destas lendas que as Igrejas da Hispnia se tinham como de fundao apostlica, e se reclamaram como tal, numa poca em que isso significava toda a diferena face s outras Igrejas locais, no que diz respeito sua dignidade e precedncia, conforme veremos 46 . Tenham comeado ou no por iniciativa dos citados Apstolos, o que parece certo o facto de as comunidades crists terem nascido em primeiro lugar nos centros urbanos: as primeiras notcias comprovadas da presena de bispos na Hispnia surgem em cidades de mdia ou grande dimenso, e algumas delas logo nos principais centros administrativos imperiais 47 . A pouco e pouco, a jurisdio eclesistica foi sendo

Nos sculos V e VI, e a acompanhar a capitalidade civil, o seu Metropolita chamado Vicarius Apostolicus, o que demonstra bem da sua preponderncia sobre os outros bispos da regio. Cf. JORGE, 1999, p. 122. 42 Cf. JORGE, 1999, pp.82-83. 43 Cf. JORGE, 1999, p.87. 44 Ano 182, no caso de S. Ireneu Adversus Haereses, I, 10 e cerca do ano 200, no caso de Tertuliano Adversus Judaeos, VII, 4. PL II. 45 Cf. JORGE, 1999, p.88. 46 Algo que ainda foi mais acentuado pelo facto de, durante as perseguies, alguns cristos ali terem sofrido o seu martrio, o que s aumentou a preeminncia honorifica daquelas urbes entre todas as outras. Cf. JORGE, 1999, pp.87-88. 47 Nas listas de Bispos, mais ou menos lendrios, para o sculo II e para a rea da Lusitnia, apontam-se bispos em Braga, Lisboa, Idanha e vora, isto em territrio actualmente portugus, o que demonstra a necessidade de fazer valer a apostolicidade de algumas dioceses. Cf. JORGE, 1999, p.88.

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18 alargada, num movimento de sobreposio, aos prprios e exactos limites das jurisdies imperiais 48 , e isto bem antes do dito de Milo 49 . E a Pennsula de Setbal? Seguimos o raciocnio empregue atrs: se os limites jurisdicionais eclesisticos so quase sempre iguais aos civis, ento significa que h tambm aqui uma indefinio no nosso conhecimento quanto Diocese com poderes sobre a Pennsula. Estamos, contudo, mais inclinados para a hiptese de que esta fosse Olisipo, pelos motivos atrs aduzidos, hiptese que, de longe, nos parece a mais plausvel e adequada aos factos verificados, at porque, pela mesma lgica, aquando da Conquista definitiva da cidade de Lisboa, em 1147, e da queda ou abandono dos territrios da outra margem aos homens de D. Afonso Henriques, estas zonas no foram nunca reclamadas seno por Lisboa, e tidas sempre em posse pacfica, mesmo depois da restaurao de um bispo em vora, o nico que poderia ter legitimidade para o fazer. No o fez, provavelmente porque, no mbito da mentalidade de legitimao que era a reverso ao tempo pr-muulmano, reconhecia aquela terra como de Lisboa. Eventualmente, e como hiptese, as zonas mais a Oriente da Pennsula poderiam estar na esfera do Bispo de Ebora/vora ou at do de Pax Jlia/Beja, mas nada h que o indique com segurana 50 . Quanto existncia da realidade paroquial, no existem dados escritos nem arqueolgicos que o atestem de forma segura: se bem que o Conclio de Iliberis/Elvira se refira a comunidades organizadas afastadas das cidades episcopais, mesmo at nos pagi, e nas quais um presbtero ou um dicono regeriam a vida sacramental dos cristos 51 , nada nos referido para o territrio da Pennsula de Setbal. muito provvel a existncia deste tipo de comunidades, pelo menos em aglomerados maiores, mas no o podemos provar sem outros dados arqueolgicos ou documentais.

Na clebre questo que S. Cipriano de Cartago julgou a propsito da apostasia dos bispos de Emrita e de Legio-Asturica, aquando da perseguio do Imperador Dcio, ficamos a saber que os outros bispos os depuseram do seu posto e elegeram outros para o seu lugar, o que deu origem ao pedido de arbitragem do cartaginense, que tambm juntou 30 outros prelados do Norte de frica para julgar a questo; na resposta, Cipriano refere-se aos outros bispos das suas proviciae, em contexto religioso, o que parece mostrar sem grande margem para dvidas a Igreja j organizada com estruturas supra diocesanas; ali refere-se explicitamente s provncias eclesisticas da Galcia e da Lusitnia. Cf. JORGE, 1999, p.93. 49 A realizao do Conclio de Iliberi/Elvira mostra essa organizao provincial alguns anos antes da Paz de Constantino. Cf. JORGE, 1999, pp.99-100. 50 Se os limites dos conventi passassem mesmo pela Arrbida, como provvel, ento a prpria Cetobriga poderia, de facto, estar j na esfera ou de Ebora/vora ou de Pax Jlia/Beja, embora com maior probabilidade para esta ltima. 51 Cf. JORGE, 1999, p.102.

48

19 No entanto, os dados arqueolgicos falam-nos da presena crist em diversos locais, a comear pelo local da prpria cidade de Setbal, j para no falar do seu arrabalde, a hoje chamada Tria, onde os vestgios de uma baslica e de um baptistrio da poca do Baixo-Imprio parecem falar por si 52 . Tambm o achado de uma pia baptismal na zona perto de Marateca parece comprovar esta possibilidade 53 .

IINavignciadaMonarquiavisigtica1)DivisoAdministrativaesuaevoluo.No nos chegaram informaes sobre se o territrio da Pennsula de Setbal sofreu ou no grandes perturbaes com as invases dos chamados povos brbaros 54 ou com a queda final do Imprio Ocidental, em 476. Embora o apetite expansionista suevo face aos visigodos tenha levado a sua autoridade do Douro at ao Tejo, e eventualmente isto tenha perturbado de algum modo a vida quotidiana em alguns momentos, a limes entre os dois reinos no parece ter passado abaixo de uma linha entre Sellium/Tomar e Scallabis/Santarm 55 , o que ter deixado a antiga civitas de Olisipo/Lisboa mais ou menos intocada nos seus limites, exceptuando talvez o seu territrio mais setentrional 56 . Alis, os limites das antigas jurisdies em todas as Hispnias, debaixo do domnio visigodo, parecem ter sido mantidos inalterados em quase todos os locais, apenas com o factor de perturbao que constituram as presenas do Reino Suevo (anexado em 585 pelos Visigodos)57

e das possesses

bizantinas , e que obrigaram, de facto, criao, tanto de um lado como de outro, de

Cf. GARCIA Y BELLIDO, Antnio, El arte visigodo de Portugal, in Archivo Espaol de Arqueologia 109/110, Consejo Superior de Investigaciones Cientficas, Madrid 1964, p.163. 53 Cf. FERNANDES, Isabel Cristina, CARVALHO, Antnio Rafael, Arqueologia em Palmela 1988/92. Catlogo da exposio, Cmara Municipal de Palmela, Palmela 1993, pp.17-19. 54 Suevos, Alanos e Vndalos em 409, Visigodos cerca de 418. 55 Cf. JORGE, 1999, p.123. 56 A zona de Sellium/Tomar, que surge no Parochiale Suevorum na rbita de Conimbriga/Coimbra, e que constituiria a parquia mais meridional daquela Diocese durante o perodo suevo, depois de ter sido, provavelmente, a parquia mais setentrional de Olisipo/Lisboa, situao a que parecem querer aludir, alis, as polmicas, j depois de 1147, entre as jurisdies de Conimbriga/Coimbra e Olisipo/Lisboa, com esta a insistir num limite diocesano bem acima da linha do Tejo, e englobando, justamente, Sellium/Tomar e Leiria. Cf. CLEMENTE, D. Manuel, Lisboa, in Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, III, Crculo de Leitores, Lisboa 2001, p.95. 57 A chamada Provncia da Spania, constituda com as conquistas de Justiniano I e outras subsequentes, e que obrigaram a uma reorganizao administrativa, pela sua relativamente longa presena em solo ibrico, de 546 a 624, com capital em Carthago Nova/Cartagena.

52

20 novas circunscries, de novas capitalidades cvicas e, consequentemente, de novos bispados nos territrios em que a Ctedra tinha ficado do outro lado 58 .

2)Divisoeclesisticaesuaevoluo.At 587, data da converso do Rei Recaredo F Nicena, deixando o Arianismo, e depois de um perodo conturbado de lutas e perseguies, nas quais a capital da Lusitnia, Emrita, e o seu bispo, Masona, actuaram como baluartes catlicos 59 , seria interessante saber se o territrio da Pennsula de Setbal sofreu com esta conflitualidade entre o rei e os bispos arianos, de um lado, e os bispos catlicos, de outro, e at que ponto isso foi factor de instabilidade e diviso no terreno concreto da vida eclesial e pblica. No entanto, falham-nos todos os elementos para poder afirmar seja o que for quanto a este aspecto. Quanto vida paroquial nesta rea, e embora os dados, arqueolgicos ou outros, nos faltem quase em absoluto, ser lgico considerar que, mesmo que tenham existido conflitos entre os partidrios dos dois credos at converso do rei, a presena crist, fosse ela ariana ou catlica, passou a ser uma constante constitutiva da vida comum, pelo que os bispos certamente tero respondido s necessidades de assistncia sacramental dos fiis, criando por sua iniciativa algumas ecclesias ou nos lugares eventualmente mais necessitados dessa assistncia, os burgos maiores da regio 60 . Se compararmos o que, pouco antes da converso, j se passava no reino Suevo, em que o documento chamado Parochiale Suevorum nos mostra a distribuio paroquial das dioceses que esto debaixo da alada daquele reino e dos Arcebispos de Braga 61 , ento permitido supor que teramos nas dioceses visigticas tambm j a mesma situao: uma rede de igrejas densa, tanto nos lugares mais prximos das cidades episcopais como em aglomeraes mais longnquas, dotadas de clero prprio e com pia baptismal e cemitrio 62 , o que as aproxima da realidade prpria que se usa denominar, ainda hoje, debaixo da designao paroquial 63 .

Cf. JORGE, 1999, p.123; tambm GARCIA MORENO, 2006, p. 40. Cf. JORGE, 1999, p. 134 60 Cf. JORGE, 1999, p. 158; tambm LOPEZ QUIROGA, Jorge, Fluctuaciones del poblamiento y habitat fortificado de altura en el noroeste de la Peninsula Ibrica, in Mil Anos de Fortificaes na Pennsula Ibrica e no Magreb (500-1500): Actas do Simpsio Internacional sobre Castelos, Lisboa, Edies Colibri/Cmara Municipal de Palmela, 2001, p.83. 61 O documento parece datar de entre os anos 572-582. Cf. JORGE, 1999, p.124. 62 O Cnon 5 do I Conclio de Toledo, em 400, j nos apresenta, indirectamente, essa realidade. Cf. JORGE, 1999, p.155; tambm DAVID, Pierre, tudes historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au59

58

21 Se as jurisdies civis no mudaram, e sabendo-se claramente que o critrio de fazer coincidir os limites eclesisticos com os civis tambm se manteve, ento isso quer dizer que o territrio de Setbal continuou a ter a mesma jurisdio eclesistica 64 . Mais: provavelmente os limites diocesanos continuariam a respeitar os limites das civitates e dos conventi que, muito embora tivessem sido, no caso destes ltimos, obliterados pela reorganizao administrativa de Diocleciano, base da posterior organizao visigtica, continuariam a perdurar como memria, ainda para mais sendo que o nvel inferior de poder cvico, justamente o da civitas, se tinha mantido inalterado 65 . Num documento alegadamente do sculo VII chamado Divisio Wambae 66 , atribudo ao Rei Wamba (672-680) apresenta-se todo o espao da monarquia visigtica dividido em dioceses, que neste caso so obviamente circunscries eclesisticas e civis ao mesmo tempo. Aqui a Pennsula de Setbal parece apresentar-se como uma zona de fronteira entre dioceses, como que a confirmar a ideia de que seria a Arrbida, e no o Tejo, o limite entre civitas e conventi imperiais e depois entre as dioceses visigticas em questo. Os limites diocesanos so apresentados segundo os seus pontos extremos significativos, segundo a tradicional orientao cardo-decumanus, grosso modo segundo os Pontos Cardeais, ou segundo as diagonais maiores 67 . No que diz respeito ao Sul da Metrpole da Lusitnia, respectivamente em relao s Dioceses de Pace/Beja, Olisibona/Lisboa e Elbora/vora, diz-se na Divisio que Pace haec teneat de Balagar usque ad Crocam, ad Montem de Olla usque Marabal, que Olisibona haec teneat de darca usque Ambiam, de Olla usque Matam e que Elbora haec teneat de Sotobra usque Etram, deXIIe sicles, Lisboa 1947, Portuglia Editora, pp.1-6;36-38. Cf. tambm MATTOSO, Parquia, in Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, III, Crculo de leitores, Lisboa 2000, p.373. 63 E que existiam j intramuros em Roma e mesmo em Mrida h j bastante tempo. Cf. JORGE, 1999, p.134. 64 Ou jurisdies, no caso de os limites administrativos continuarem a passar pela Serra da Arrbida, como efectivamente parece ter acontecido. 65 Cf. JORGE, 2000, p.137. 66 Publicado em FLOREZ, Enrique, Espaa Sagrada, IV. Origen y progreso de los obispados, Editorial Revista Agustiniana, V, Madrid 2002, pp.223-293. um documento bastante contestado quanto sua antiguidade, pois foi usado para garantir pretensos direitos antigos de algumas dioceses face a outras, j nos sculos XI, XII e XIII, e de que no h cpias ou referncias antigas. No entanto, e segundo os ltimos estudos, mesmo que o escrito tenha sido interpolado e manipulado no relativo s Dioceses do Norte da Pennsula Ibrica, a opinio corrente a de que o material ali recolhido quanto s dioceses do Sul, ainda ocupadas pelos muulmanos na altura em que o Bispo Lucas de Tuy o fez sair no seu Chronicon Mundi, plenamente vlido, e tem sido confirmado por algumas indicaes ali presentes. Percebe-se a razo: ainda no podiam haver questes jurisdicionais em territrio ainda no submetido, pelo que as indicaes soam a compilao de material antigo, at pelo arcasmo de alguns dos topnimos apresentados. 67 Cf. FERNANDES, Antnio de Almeida, Parquias suevas e Dioceses visigticas, Viana do Castelo 1968, p. 129.

22 Rucella usque Aratam, todas Emeritae Metropoli subjaceant hae sedes 68 . Outras variantes do texto 69 dizem que Pace teneat de Belgar usque Artam, de Bolla usque Mataval, Olisibona teneat de Arta usque Usabiam, de Bolla usque Matar e Elbora teneat de Sotobra usque Peram de Ruttella usque Paratam. Existem ainda outras variantes menores, mas que no essencial, apresentam apenas diferenas ortogrficas 70 . Passando por cima dessas diferenas, e assumindo, com Almeida Fernandes, que o documento tem uma base vlida mais antiga, h aqui elementos que so para ns muito claros, e que nos ajudam de uma forma lgica a demonstrar que era a Arrbida a fronteira entre as duas dioceses visigticas de Olisibona/Lisboa e Elbora/vora, justamente por causa de um dos pontos-limite indicados para esta ltima, a saber: Sotobra. Esta uma grafia incontestada em todas as verses conhecidas do texto, e parece ser a degradao lingustica do antigo nome Cetobriga, e que viria dar o actual vocbulo Setbal. Ora se Sotobra era o limite Poente de Elbora/vora, significa que alm dele estaria outro territrio, o de Olisibona/Lisboa, e significa que o limite entre ambos - por uma questo bvia, e porque mais tarde, em poca muulmana, parece ter existido e sido respeitada uma linha similar - seria a Arrbida, provavelmente nos contrafortes de Palmela, e seguindo depois em direco a Nordeste, segundo as fronteiras indicadas pelos vrios estudos para os conventi e para as duas civitas 71 . Ento chegamos a esta proposta: o territrio da Pennsula de Setbal estaria dividido, tanto civil como eclesiasticamente, em duas zonas: a Norte das montanhas, talvez cortando-as para Sul a Ocidente de Setbal, na zona do futuro limite entre os termos medievais de Sesimbra e Palmela, estaria a jurisdio de Olisibona/Lisboa, englobando as terras hoje pertencentes aos concelhos de Almada, Sesimbra, Seixal, Barreiro, Moita, a parte ocidental do Montijo e Alcochete, e eventualmente alguma parte mais setentrional do grande concelho de Palmela; a Oriente dessa linha, e englobando as zonas hoje correspondentes aos concelhos de Palmela, Setbal, e parte oriental do Montijo (zona de Canha) teria jurisdio o Bispo de Elbora/vora.

68 69

Cf. FLOREZ, 2002, p.278. Cf. FERNANDES, A., 1968, pp.136-138. 70 Como, por exemplo, o estudo de SILVA, Lus Fraga, Dioceses visigticas do antigo Conventus Pacensis, publicado pelo Campo Arqueolgico de Tavira, 2005, consultado a 28 de Janeiro de 2010 em http://imprompto.blogspot.com/2006/07/dioceses-visigticas-do-antigo_20.html. 71 Cf. ALARCO, 1998, p.328; tambm SILVA, Lus, 2005; FERNANDES, A., 1968, p.145.

23 Seria nas povoaes maiores, a exemplo de toda a cristandade, e na continuidade dos tempos romanos, que se encontrariam as sedes paroquiais 72 , muito embora fosse possvel a existncia de parquias rurais 73 . No entender de alguns estudiosos 74 , contudo, estas parquias visigticas no teriam nenhuma jurisdio territorial, mesmo que dotadas de clero prprio. Esse poder de jurisdio continuaria a estar centrado exclusivamente na ctedra episcopal, e ainda no cindido em circunscries mais pequenas; traduzindo: as parquias no teriam limites alguns entre si, sendo apenas agregaes de pessoas que se juntariam num templo para ali receberem os Sacramentos, participarem no culto da comunidade e procurem sepultura para os seus e para os prprios 75 . Segundo esta concepo, os limites inter-paroquiais teriam sido uma necessidade verdadeiramente s sentida a partir da Reconquista, e por causa da questo da recolha da dzima e da entrada do chamado Direito romano na vida pblica e eclesial 76 . No cremos, no entanto, que se possa excluir em absoluto, partida, algum tipo de delimitao no terreno, sobretudo de forma to taxativa 77 : no numa sociedade e numa Igreja com grande parte das suas razes legais nos usos romanos, nos quais a delimitao territorial era no s importante mas fulcral para a boa administrao, e onde, para mais, esses limites inter-paroquiais eram j, de algum modo, existentes (embora ainda algo flutuantes, sem dvida, numa territorialidade difusa 78 ) dentro da Urbe e das outras cidades maiores do Orbe, ainda antes da queda do Imprio Ocidental 79 .

Cf. MATTOSO, 1999, p.373. Como j vimos, FERNANDES & CARVALHO, 1993, apontam a possibilidade da existncia de uma destas comunidades rurais na zona de Marateca. 74 Cf. MATTOSO, Jos, A histria das parquias em Portugal, in Portugal medieval: Novas interpretaes, Lisboa 1992, Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 37-56; tambm JORGE, 2000, p.141. 75 Eventualmente, at a presena destes cemitrios que revela a existncia de uma igreja paroquial, pois s junto dela se faziam enterramentos a partir de certa ocasio. Para a rea da Pennsula de Setbal, no conhecemos ainda, contudo, nenhum achado deste tipo. Cf. RIPOLL LOPEZ, Gisela, Caractersticas generales del poblamiento y la arqueologia funerria visigoda de Hispania, in Espacio, Tiempo y Forma, Prehistoria y Arqueologia, II, Madrid 1989, p.402. 76 Cf. MATTOSO, Jos, Identificao de um pas. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, Estampa, Lisboa 1997, p.411. 77 Como admite JORGE, 2000, p.141: Contudo, podemos constatar que no II Conclio de Braga (572) a ideia de territrio episcopal tinha j uma certa consistncia. Se no podemos falar ainda nesta poca de uma rede contgua de parquias, vemos j aqui presente a ideia de uma constelao de comunidades. 78 Na expresso empregue a este propsito por MARTIN VISO, Iaki, in Organizacin episcopal y poder entre la antigedad y el medievo, Iberia, 2, Madrid 1999, p.160. 79 Cf. BOUDINHON, Auguste, Parish, in The Catholic Encyclopedia, XI, New York 1910, Robert Appleton Company, consultada a 10/06/2009 em http://www.newadvent.org/cathen/11499b.htm. No Conclio Provincial de Mrida, de 666, estalou uma polmica entre os bispos de Salmantica/Salamanca e73

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24 Cremos, portanto, que necessrio matizar esta posio de negao no relativo existncia de jurisdio paroquial com caractersticas j plenamente territoriais: se se pode admitir que no estariam decerto traados limites claros em todos os lugares de capitalidade paroquial (pois no estamos diante de uma criao por decreto pontifcio ou conciliar) no menos verdade que a mentalidade comum o exigia, e as disposies das leis visigticas e as determinaes dos conclios quase o supem 80 , pelo menos como o paradigma desejvel. E h mesmo exemplos que o comprovam, como o j apontado conflito entre os bispos de Egitnia/Idanha e Salmantica/Salamanca, no Conclio provincial de Emrita/Mrida (666) sobre uma parquia fronteiria 81 : se no fossem conhecidos e conservados os limites das parquias (pelo menos de algumas delas) como poderamos estar diante de, justamente, uma querela sobre limites e jurisdio sobre uma delas? Mesmo a prpria fiscalidade deixa supor que a demarcao clara dos limites territoriais entre parquias teve de acontecer de uma forma muito rpida: era costume, embora algo reprovado, que os bispos, quando iam em visita a alguma igreja da sua diocese, levassem dela um tero dos seus proventos (e aqui est o primeiro exemplo de existncia da chamada Tera Episcopal); ora, para que se apurasse concretamente quanto era e o que era esse tero, havia que ter uma noo clara do alcance da jurisdio paroquial, do que lhe pertencia, e a quem era legtimo exigir a entrega dos frumenti et primiciae 82 .

Egitania/Idanha-a-Velha, justamente por causa dos limites de uma parquia, reclamada por um e por outro. 80 Como visvel no Livro X do Cdigo Visigtico, ttulos 1 a 5, em que a Lei garante inclusivamente a validade de todos os limites existentes at chegada dos visigodos Hispnia. 81 Cf. JORGE, 1999, p.152. A este propsito, o Pe. Miguel de Oliveira considera: Deduz-se deste incidente que as parquias tinham geralmente os seus limites territoriais bem definidos; confirmam-no vrias disposies conciliares em que se estatua que bispo no ordenasse nenhum presbtero seno para uma igreja determinada. O sacerdote ficava, deste modo, obrigado servir essa igreja e era, em princpio, inamovvel. Adoptara-se tambm como norma geral que os clrigos destinados a qualquer igreja fossem escolhidos entre os habitantes da respectiva localidade - o que ainda mais os prendia ao seu templo e ao seu povo. Em algumas parquias erguiam-se vrias baslicas e oratrios com clero prprio, subordinado ao proco, que tomava ento o ttulo de arcipreste (in As Parquias rurais portuguesas. Sua origem e formao, Unio Grfica, Lisboa 1950, p.55). 82 Cf. OLIVEIRA, 1950; a pp.59-60 esclarece-se: Alm da circunscrio territorial demarcada e do clero prprio, tinham j ento as parquias o seu patrimnio especial, e os procos eram obrigados a fazer perante cinco testemunhas o inventrio dos bens da sua igreja. At ao sculo V, eram as dioceses o nico sujeito da propriedade eclesistica e era o bispo o nico administrador do patrimnio. Durante a poca visigtica, adquiriram tambm as parquias o direito de possuir e certa independncia administrativa. Foram decerto as igrejas de fundao particular as primeiras que tiveram dote para sustentao do seu clero e culto, e talvez fosse das parquias a estabelecidas que adveio para todas o reconhecimento desse direito. Os bens paroquiais procediam de diversas fontes: dote inicial da fundao das Igrejas, como vimos preceituado noII Conclio de Braga; as doaes de mveis ou imveis que as leis civis protegiam e declaravam irrevogveis; enfim, as oblaes voluntrias dos fiis. Segundo a

25 Quais seriam ento os burgos maiores da Pennsula de Setbal nesta poca, aqueles onde com grande probabilidade poderamos encontrar uma parquia? uma pergunta que, no momento, s pode ser respondida com uma dose muito grande de suposies mistura, j que os dados ainda no podem ser devidamente confirmados; apontaramos, no entanto, para a hiptese de serem as povoaes situadas no lugar das futuras Almada e Setbal, s quais se poderiam acrescentar, talvez, as futuras Palmela, Sesimbra, e talvez Coina. Em Palmela, em escavaes, apareceram dois capitis visigticos, tpicos dos existentes em edifcios de culto, embora tambm exista a hiptese de feitura morabe. Se esta ltima hiptese fosse certa, no teramos uma prova directa de um templo para o perodo visigtico, mas teramos ganho outra mais valiosa ainda, a da presena de cristos em Palmela, debaixo do domnio muulmano 83 . Em Sesimbra, a prpria sobrevivncia de um topnimo com to claras razes prromanas no meio de uma rea com uma toponmia quase totalmente de raiz islmica sugere a manuteno de um povoado importante ao longo dos tempos, depois transferido para o morro do Castelo, a Sesimbra medieval. Em escavaes recentes, como que a comprovar esta possibilidade, surgiu um fragmento cermico de um tipo de oenochoe, atribuvel ao tempo visigtico 84 . O caso de Coina bastante problemtico, mesmo at para se colocar uma simples hiptese, mas admitimos que tambm pudesse ser um burgo dotado de parquia, se a povoao Equabona permaneceu (e no h razes para supor que no tivesse permanecido).

IIIOstemposdeAlAndaluz1)DivisoAdministrativaesuaevoluo.Com a invaso muulmana de 711, poderamos ser levados a pensar que, tendo cado as instituies hispano-godas, juntamente com elas teria sido obliterada a estrutura administrativa e territorial que vinha transitando desde o Imprio Romano. Se bem que, com o avanar dos sculos de presena do islo, vrias adaptaes e ajustes tenham sido feitos, logo a comear pela transferncia da capital da Urbs Regia de Toledo paradisciplina geral, os proventos eclesisticos dividiam-se em trs partes: uma para o bispo, outra para o clero, outra para a fbrica dos templos. 83 Cf. FERNANDES, 2004, pp.220-221 84 Informao prestada pelo Dr. Lus Ferreira, arquelogo da Cmara Municipal de Sesimbra.

26 Crdova, nas primeiras dcadas quase nada se inovou, tendo os novos senhores assimilado e utilizado a diviso territorial prvia sua chegada 85 . Mais tarde, j em pleno perodo emiral, perante o incio de fortssimos ataques normandos ao Al Andaluz 86 , e com o aumentar da presso militar no Norte por parte dos soberanos cristos, o poder muulmano v-se na contingncia de efectuar algumas alteraes de vulto na estrutura administrativa, com a criao ou recuperao de vrios pontos-chave militares 87 , tanto terrestres como martimos, e ao longo de todo o seu territrio ibrico 88 . Criam-se tambm as primeiras taracenas em diversos pontos da costa, tanto mediterrnica como atlntica 89 . Assim, nesta reforma de jurisdies, alguns centros perdem poder relativo, enquanto outros se guindam a uma posio de maior destaque. Por exemplo, parece radicar aqui o incio do grande florescimento de Al Qasr Abu Danis/Alccer, transformado em Medina e, ao que parece, tido como um dos grandes portos da fachada atlntica do Al Andaluz (tendo chegado a ser o porto principal da taifa de Badajoz, no sculo XI) e o concomitante declinar de Yabura/vora e Al Bajah/Beja. Pela mesma altura, e com as necessidades de defesa a aumentar, cria-se um tipo de reduto fortificado, o Hisn (plural Husun) que permite abrigar temporariamente a populao residente sua volta, e que acabou por funcionar como plo agregador e identificador do territrio circundante, constitudo numa espcie de distrito castral 90 , alm de manter ainda a bvia funo de vigilncia 91 . Eram fortificaes por vezes construdas, e certamente mantidas pelas populaes rurais que estariam dispersas no territrio sob o seu domnio e controlo, nas qurat/aldeias (singular qarya) e que lhes

Cf. GUICHARD, Pierre, Al Andalus. 711-1492: une histoire de lEspagne musulmane, Hachette Literatures, Paris 2008, pp.32-33. Cf. tambm CATARINO Helena, Castelos e territrio omada na kura de Ocsonoba, in Mil Anos de Fortificaes na Pennsula Ibrica e no Magreb (500-1500): Actas do Simpsio Internacional sobre Castelos, Lisboa, Edies Colibri/Cmara Municipal de Palmela, 2001, p.31; e ainda cf. MACIAS, Santiago, Islamizao no territrio de Beja. Contribuies para um debate, in Anlise Social, XXXIX, Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa 2005, p. 809; cf. tambm MARQUES, Oliveira, O Portugal Islmico, in Nova Histria de Portugal, II, Presena, Lisboa 1993, p.184. 86 O primeiro grande ataque viking a Lisboa foi em 844, e a Ocsonoba/Faro em 859. Cf. CATARINO, 2001, p.31. 87 Cf. PICARD, Le Portugal Musulman (VIII XIII sicle). LOccident dAl Andalus sous domination islamique, Maisonneuve et Larosse, Paris 2000, pp.209-210. 88 Cf. CATARINO, 2001, p.31; cf. tambm PICARD, 2000, p.209. 89 Cf. ACIN ALMANSA, Manuel, La fortificacin en Al Andalus, in Archeologia Medievale, XXII, Edizione allInsegna dellGiglio, Florena 1985, p.4. 90 Cf. ACIN ALMANSA, 1985, p.3. 91 Cf. CATARINO, 2001, p.32.

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27 serviriam sobretudo de refgio 92 , embora por vezes pudessem ser local de assentamento de alguma guarnio, nem sempre permanente. No entanto, funcionavam, ao menos de forma simblica, como sede do poder naquela regio, e dispunham de limites jurisdicionais articulados entre si 93 . Surge tambm, nas zonas de fronteira com os cristos do Norte, junto s costas ocenicas, para responder aos ataques vikings, ou nas altas (e estratgicas) montanhas, um tipo de estrutura que quase podemos chamar mosteiro-de-guerra, o Ribat (plural Rabita) onde se congregam para a meditao e progresso mstico interior aqueles que desejavam encontrar Allah/Deus, mas que tambm para servir a jihad (guerra santa) de defesa e expanso do islo, o que implicava no s as habituais tarefas ascticas, mas tambm a vigilncia e a defesa contra os inimigos do Profeta, como guerreiros de Deus 94 . Estas estruturas podiam ser simplesmente grutas naturais ou escavadas, congregadas junto de alguma estrutura assumida como central, como parece ter acontecido ao Norte de vora, na Serra de Ossa, e na Arrbida 95 , onde escavaes recentes colocaram em evidncia vestgios de ocupao muulmana: em Julho de 2009, foi encontrada numa das grutas prximas ao Cabo Espichel uma tbua de madeira, escrita com caracteres rabes dos dois lados, e onde so reconhecveis algumas frmulas religiosas de incentivo jihad, ao jeito do que ainda hoje costume fazer nas madrasah islmicas, o que parece vir confirmar de uma forma evidente esta ocupao por homens que estudavam o Coro neste espao retirado. A tbua parece remontar, pelo estilo caligrfico, aos sculos XI-XII. Com o aumentar da presso no Norte, a administrao muulmana cria ainda as chamadas Tagr/Marcas (plural Tugur) zonas de conflito e de embate mais constante com os reinos cristos, e que so muitas vezes sujeitas a administraes militares especiais, destacadas do antigo contorno administrativo 96 . Eram zonas especiais, at

Cf. BAZZANA, Andr, Elments de castellologie mdivale dans al-Andalus: morphologie et fonctions du chateau, in Mil Anos de Fortificaes na Pennsula Ibrica e no Magreb (500-1500). Actas do Simpsio Internacional sobre Castelos, Lisboa, Edies Colibri/Cmara Municipal de Palmela, 2001, p.196; cf. tambm PICARD, 2000, p.163. 93 Cf. MARTI, Ramon, Fortificaciones y toponmia Omeya en el este de Al Andaluz, in Mil Anos de Fortificaes na Pennsula Ibrica e no Magreb (500-1500). Actas do Simpsio Internacional sobre Castelos, Lisboa, Edies Colibri/Cmara Municipal de Palmela, 2001, p.96. 94 Cf. PICARD, Christophe, Les Ribats au Portugal lpoque musulmane: sources et dfinitions, in Mil anos de Fortificaes na Pennsula Ibrica e no Magreb (500-1500). Actas do Simpsio Internacional sobre Castelos, Colibri/Cmara Municipal de Palmela, Palmela 2001, pp.203 a 212. 95 Cf. PICARD, 2001, p.206. 96 Cf. PICARD, 2001, p.206.

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28 certo ponto com condies de povoamento mais dificultadas pela instabilidade causada pela constante passagem de contingentes militares dos dois lados. Constituam-se tambm como reas de uma certa indefinio jurisdicional no terreno, at porque no existia ainda a concepo de fronteira fixa e linear entre estados, traada no espao, como hoje a concebemos 97 . Esta polarizao militar pode ter sido tambm bastante potenciada pela fitna (discrdia, diviso) que se seguiu ao perodo califal, na primeira metade do sculo XI, em que a fragmentao do Al Andaluz atingiu tais nveis que estas estruturas podem ter sido tambm criadas e utilizadas como redutos militares para as diferentes taifas que se digladiavam, nomeadamente as duas principais do Al Gharb Al Andaluz, a de Badajoz, comandada pelos aftssidas, e Sevilha, regida pelos abdidas 98 ; a estas grandes taifas juntaram-se outras mais pequenas, e at algumas cidades-estado 99 , o que acelera mais o enfraquecimento da capacidade muulmana para resistir ao avano dos cristos, que tendem a ocupar latitudes cada vez mais baixas no solo ibrico. A complicar ainda a situao no terreno, cada uma das novas entidades exerce contra as vizinhas uma guerra endmica, que lhes esgota recursos e as empobrece ainda mais 100 . No de supor que a rea da Pennsula de Setbal tenha sido muito perturbada pela chegada muulmana ou, pelo menos, no de modo dramtico, j que Ushbuna/Lisboa s caiu em 716, e por meio de um acordo de capitulao pacfica 101 , que provavelmente lhe garantiu a continuidade institucional, em troca de um regime tributrio e de uma presena militar bem visvel, que estaria localizada nos principais centros102 .97

Cf. BAZZANA, 2001, p.194. Cf. tambm CARRIEDO TEJEDO, Manuel, La frontera entre Lon y Cordoba a mediados del siglo X: desde Santarn a Huesca, Estudios Humansticos, I, Facultad de Filosofia y Letras de la Universidade de Len, Len 2002, p.64. 98 Cf. PICARD, 2000, pp.210 e 235. 99 Como Lisboa chegou a ser, de resto, se no de jure, pelo menos de facto. Cf. PICARD, 2000, p.177. 100 Cf. PICARD, 2000, p.177. 101 O tratado previa uma zona com grande autonomia entre Lisboa e Coimbra, sem incluir esta ltima, e ter sido feito por Abd Al Aziz Bin Musa, responsvel pela conquista hispnica, com um nobre visigodo, Aidulfo, ainda aparentado com o antigo rei Witiza, e ao qual tero sucedido filho e neto, Atanagildo e Teodus. Cf. PICARD, 2000, p.11; cf. tambm GUICHARD, 2008, p.33; e ainda MACIAS, 2005, p.812. 102 Esta tranquilidade inicial pode ter sido perturbada por conflitos internos com as foras berberes estantes no Gharb, que sabemos terem sido graves, logo no sculo VIII, e com a continuao de uma grande parcela crist da populao, que eventualmente pactuaria com as situaes de instabilidade, tal como a criada logo em 798 por Afonso II das Astrias, que chega a apoderar-se da cidade. O Emir de Crdova, Al Hakam I, termina ento com a autonomia, logo nos incios do sculo IX. E certamente que qualquer resto de especificidade que tenha ficado na zona englobada pelos termos do Tratado acabou com a administrao do primeiro Califa, Abd Al-Rahman III al-Nasir: sabemos que em 937 a cidade de Shantarin/Santarm se revoltou, pedindo o seu chefe, Ummaya Bin Ishaq al Qurasi, em 939, ajuda aos leoneses, o que trouxe a instabilidade regio, a juntar aos j destrutivos e constantes raides normandos. A revolta acabou por ser dominada, sendo ali instalado um governador califal, tal como em Ushbuna/Lisboa (937) e Yabura/vora (929). Assim terminou a situao de quase-autonomia na zona,

29 Embora no saibamos se este acordo abrangia alguma rea na margem esquerda do Tejo, podemos admitir que sim, por uma lgica de continuidade administrativa e de limites; se assim aconteceu, supomos que tambm a rea da Pennsula de Setbal tenha continuado a girar tranquilamente na rbita das duas ou trs grandes circunscries preexistentes e que j ab antiquo a enquadravam, agora no chamadas dioecesis, mas sim Kura (plural Kuwar): Ushbuna/Lisboa, Yabura/vora e Al Bajah/Beja, cujos limites correriam, pelo menos de incio, pelas mesmas paragens dos limites romanos e visigodos. Marco importante continuaria a ser o monte de Balmalah/Palmela, que representaria de novo o ponto extremo das kuwar de Ushbuna/Lisboa e Yabura/vora 103 . Ibn Hayan, o grande historiador de Crdova, na sua Crnica sobre o califa Abd AlRahman III al-Nasir, ao referir os governadores do Al Andaluz fiis ao Califa no ano de 929, refere-se aos de Al Qasr Abu Danis/Alccer e suas dependncias montanhosas, naquilo que parece ser uma referncia aos husun e rabita da hoje chamada Serra da Arrbida (que a nica zona verdadeiramente montanhosa nas proximidades) o que vem comprovar o que atrs fica dito a propsito da passagem do limite entre kuwar pela cordilheira, e com a mais que provvel incluso de Balmalah/Palmela na regio de Al Qasr/Alccer 104 , bem como a no comprovada, embora possvel, extenso da sua influncia at aos husun de Coina e Sesimbra. A dada altura, com os ataques normandos a Ushbuna/Lisboa e o paulatino aproximar dos reinos cristos, primeiro da Linha do Mondego, e depois da Linha do Tejo, e com o intensificar das suas incurses 105 , a Pennsula de Setbal parece ter entrado numa fase de grande polarizao militar, de modo a, por um lado, defender Ushbuna/Lisboa pelo Sul, e por outro, proteger a Norte Al Qasr Abu Danis/Alccer. Assim, relatam osque de um modo ou outro tinha vindo a acontecer desde o Tratado com Aidulfo, passando o controlo a ser assumido directamente pelo poder central em Crdova. Cf. CARRIEDO TEJEDO, 2002, pp.79 e 81. 103 Cf. MARQUES, 1993, p.185. 104 Cf. IBN HAYAN, Crnica del califa Abdarrahman II an Nasir entre los aos 912 y 942. Al Muqtabis V, in Textos Medievales, 64, Anubar Ediciones, Saragoa 1981, pp.192-193. Ibn Hayan no usa a expresso Kura para se referir a Al Qasr/Alccer, nem sequer a expresso Madina (cidade) aparecendo apenas designada pelo seu nome, e com os seus governantes confirmados no servio do Califa. No fala de Ushbuna/Lisboa, e designa Yabura/vora por madina. Kura palavra penas aplicada a Al Bajah/Beja. Estes elementos deixam supor que, por um lado, a kura que superintende at Arrbida a de Al Bajah/Beja, pois nem Al Qasr/Alccer, nem Yabura/vora so assim designadas; por outro lado, deixam supor a possibilidade de um estado de guerra ou, pelo menos, grande instabilidade a Norte daquela cadeia montanhosa, pois a no referncia a Ushbuna/Lisboa significa que no obedecia a Crdova, o que, de resto, se comprova, neste ano de 929, por outras fontes. 105 E com raides importantes: logo em 798, Afonso II das Astrias conduz um assalto cidade e suas redondezas; sabemos tambm que, mais tarde, j com Afonso VI de Leo, em 1094, Lisboa cai pela segunda vez em poder cristo, em virtude de um acordo com um senhor rebelde muulmano, assim permanecendo at 1111, data em que os Almorvidas a levam de novo ao islo.

30 gegrafos muulmanos que a zona se tinha tornado lugar de rabita 106 , ou seja, lugar de mosteiros-de-guerra, de jihad. No sculo X, o gegrafo Al Razi descreve a configurao genrica do espao circundante: a Sul h uma enorme kura com sede em Al Qasr/Alccer 107 , nas margens do Wadi Xetubar/Sado onde se acha o castelo chamado de Abu-Danis e onde tambm esto vora, Badajoz, Xerez, Mrida, Alcntara da Espada e Coria 108 ; Ushbuna/Lisboa surge na kura de Balata, juntamente com Shantarin/Santarm e Shintara/Sintra 109 . Podemos depreender que os limites na zona continuaram os mesmos que antes limites entre kuwar a passar pela Arrbida - at porque Al Madan/Almada apresentada logo a seguir a Ushbuna/Lisboa, e ao que parece em relao com ela, o que deixa supor a jurisdio da sua kura nas duas margens do Wadi Tajuh/Tejo 110 . Ignoramos se, neste momento, os husun de Coina, Sesimbra e Balmalah/Palmela e as rabita existentes estariam na jurisdio de uma ou de outra kura; at poderiam estar j constitudos como um territrio castral militarizado 111 , estruturado volta dos referidos husun e rabita 112 , com uma administrao autnoma, separada das suas antigas kuwar, situao de que parecem haver indcios para esta fase 113 . Estes territrios regidos a partir dos husun teriam entre si limites reconhecidos, e que mais tarde parecem ter sido adoptados pelos cristos, aquando da conquista e aps ela,

Cf. MACHADO, Jos Pedro, A Pennsula Ibrica segundo um gegrafo arbico do sculo XII, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1-3, Lisboa 1964, p.30. Esta uma realidade facilmente verificada, conservada at nos topnimos Arrbida (concretamente trs) existentes ainda em vrios pontos do seu territrio, no nome Azia perto do Cabo Espichel, e nas vrias Atalaias, Fachos, Torres e Vigias que pontilham o espao. 107 Elevada a esse estatuto, juntamente com Badajoz, por Abd Al Rahman III. Cf. PICARD, 2000, pp.59 e 195. 108 Cf. MACHADO, 1964, pp.23-24. 109 Cf. MACHADO, 1964, pp.23-24. 110 Cf. MACHADO, 1964, p.30; cf. tambm PICARD, 2000, p.139. 111 Poderia apenas ter sido constitudo como tal pelos Almorvidas, j no sculo XII, em ano que desconhecemos, mas mais provvel que o prprio poder califal j tenha, ao menos, ensaiado essa nova diviso militar e administrativa, por causa dos raides normandos. 112 Ushbuna/Lisboa ganhou ao Sul uma linha de cintura fortificada, e semeada de postos de vigilncia sobre a costa e sobre as plancies: Al Madan/Almada e Balmalah/Palmela, depois de 966, e Sesimbra, edificada j no sculo IX. Cf. PICARD, 2000, pp.209-210. Coina (a dita Velha) parece ter tambm surgido pela mesma altura. 113 Como, por exemplo, entendem PICARD, 2000, pp.61-62, 162-163 e 2001, pp.204-205, 207, bem como CHALMETA GENDRON, Pedro, Espaa musulmana: la sociedad andalusi. La economia y instituciones, in Historia general de Espaa, III, Madrid 1988, p. 261. Para eles, as prprias zonas de Sahil (distritos martimos, individualizados dentro de uma kura) e de promontrios (tarf, plural atraf) com especial interesse estratgico e de vigilncia seriam administrados independentemente das kuwar das reas confinantes; no caso dos atraf essa administrao seria de facto totalmente autnoma, respondendo apenas ao governo central, o que nos leva a pensar se, no caso do esporo Arrbida-Espichel, no estaramos diante deste fenmeno, o que nos parece uma hiptese autorizada pelos indcios e at provvel.

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31 para o traar dos novos termos municipais e, bem entendido, para o traar dos limites paroquiais, que devem ter precedido os prprios concelhos. isto que permite explicar a forma da nova diviso administrativa crist na Margem Sul, nunca centrada em aglomerados populacionais novos, mas sim nos mais antigos, bem como os traados estranhos dos seus termos: o facto de, durante a ltima fase ocupao muulmana, os limites jurisdicionais terem sofrido alteraes de vulto, centrados agora nos husun da rea e j no apenas numa civitas/madina mais ou menos longnqua. So estes os limites e traados que muito provavelmente sero a referncia, ao menos inicial, para a futura diviso administrativa, municipal e paroquial. Com o fim do tempo califal, e a diviso do Al Andaluz em vrios pequenos emirados, a Pennsula de Setbal viu-se integrada na taifa de Badajoz 114 . No se sabe se as lutas com outros potentados muulmanos trouxeram ao terreno ou aos mares - a instabilidade, mas podemos presumir que sim, j que Ushbuna/Lisboa ensaiou uma independncia pouco depois, mas acabou por ser absorvida pela fora da grande cidade do Guadiana 115 . Sabemos que os ataques normandos continuaram, e que tambm os monarcas de Leo chegaram a tomar conta da cidade e de Shintara/Sintra e Shantarin/Santarm (embora no paream ter entrado no territrio da Pennsula de Setbal) o que revela a fraqueza crescente do poder das taifas 116 . Provavelmente, a margem esquerda do Wadi Tajuh/Tejo sofreu tambm com ataques dos cristos, ou pelo menos, viu as trocas comerciais e a actividade quotidiana decerto perturbadas. Em 1107, Sigurd, rei viking da Noruega, saqueia Shintara/Sintra, Ushbuna/Lisboa, e Al Qasr/Alccer 117 , o que torna provvel raides paralelos a Al Madan/Almada e (se os seus costumes continuassem a ser praticados nesta poca) a toda e qualquer povoao at onde o Wadi Tajuh/Tejo permitisse a navegao118 e o saque fosse apetecvel, o que, em teoria, colocaria Coina provavelmente no o hisn, bastante recuado face ao canalCf. COELHO, Catarina, A ocupao islmica do Castelo dos Mouros (Sintra). Interpretao comparada, in Revista Portuguesa de Arquelogia, III, 1, Lisboa 2000, p.208. 115 Logo no fim do poder dos soberanos Omadas, foi feita uma primeira tentativa, prontamente sufocada por Badajoz. Os habitantes tentaram a sua sorte de novo em 1033, e depois ainda em 1044. H ainda sinais de uma desagregao do sistema defensivo nesta zona, com o abandono de povoamento em altura, o que pode indicar alguma instabilidade. Cf. GOINHAS FERNANDES, Hermenegildo, Quando o AlmTejo era fronteira. Coruche da Militarizao territorializao, in As Ordem Militares e as Ordens de Cavalaria na construo do mundo ocidental. Actas do IV Encontro sobre Ordens Militares, Colibri/Cmara Municipal de Palmela, Lisboa/Palmela, 2005, pp. 470-471 (em nota). 116 Sobretudo face aos cristos. Cf. PICARD, 2000, pp.210 e 239. 117 Cf. PICARD, 2000, p.215. 118 Cf. BARBOSA Pedro Gomes, Reconquista crist. Nas origens de Portugal, sculos IX a XII, squilo, Lisboa 2008, pp.131-132.114

32 principal do esteiro, mas a sucessora da antiga Equabona, a Coina depois dita nova no seu alcance, bem como Palmela/Balmalah, que ainda tinha ligao ao Wadi Xetubar/Sado nesta altura. Em estado de fraqueza crescente, e vendo o Al Andaluz em risco, o emir de Sevilha chama os Almorvidas, ento triunfantes em Marrocos, em seu auxlio, em 1085, aps a queda de Toledo nas mos de Afonso VI. So estes que unificam de novo, no sem luta e ao longo de anos, o espao peninsular, e que trazem at Hispnia uma verso mais rigorista (mais fundamentalista, diramos hoje) do islo 119 . Tambm a Pennsula de Setbal se torna parte deste novo potentado, que empurra os cristos para o Norte e os sustm bem acima da linha do Tejo 120 . O traado dos limites entre as kuwar de Ushbuna/Lisboa e Al Qasr/Alccer e o tarf da ArrbidaEspichel deve ter continuado nos locais e na forma anteriores, assumido sem grandes ajustes pelos novos senhores. Com o continuar da presso crist a Norte, por toda a Hispnia, e por causa de, entre outros factores, uma administrao inepta e intolerante face aos cristos e aos andaluzes que coexistiam com eles, de uma cultura pouco refinada e menos aberta, e ainda por uma quase exclusiva base tribal do seu poder, surgem volta de 1140 as rebelies que iriam acabar com o seu imprio, e que seriam apoiadas e aproveitadas por outra fora, tambm ela vinda do Norte de frica, os Almadas. Todas estas foras contriburam para dividir de novo a unidade andaluza, e em 1147, s portas da definitiva conquista crist, em plena crise da dominao almorvida, que em frica recebia o golpe de morte 121 , e com Sevilha cercada pelos Almadas, e estes a serem atacados no Oriente de Al Andaluz, em Almeria, por Afonso VII e seus aliados, Lisboa j praticamente uma cidade-estado, quase abandonada a si mesma, com uma srie de fortalezas-satlite sua volta mas sem condies de grande resistncia, sobretudo desde a queda do seu contraforte de Shantarin/Santarm 122 , e com as kuwar

Eventualmente, ter sido nesta ocasio que os templos cristos de todo o Al Gharb, de Lisboa e da Pennsula de Setbal foram arrasados na sua quase totalidade, j que foi nestes anos que se deu o grande exlio de morabes do Al Andaluz para os reinos do Norte cristo, por causa das perseguies. 120 Lisboa e Sintra em 1109, e Santarm em 1111 caram nas mos almorvidas, com a derrota de Afonso VI, que as dominava ento, em virtude do acordo de proteco celebrado entre este e o Emir de Badajoz para proteco do primeiro ao segundo, justamente contra os almorvidas. Quanto Pennsula de Setbal, provvel que tenha sido tambm no mesmo ano, e imediatamente antes, que aconteceu a conquista almorvida: mesmo que o Imperador no tenha passado nunca o seu domnio para l do Wadi Tajuh/Tejo, era o Emirado de Badajoz que ali teria o poder, poder esse obviamente derrubado na mesma ocasio. Cf. MATTOSO, Jos, Afonso Henriques, Temas & Debates, Lisboa 2007, p.41. 121 GUICHARD, 2000, p. 169. 122 Cf. BARBOSA, 2008, p.143.

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33 de Al Qasr/Alccer e Yabura/vora, ao que parece, em acordo de trguas com D. Afonso Henriques. O crepsculo do Crescente vem ento do Norte: o monarca portugus olha j, com os prprios olhos, os muros da grande cidade, e as velas de uma grande esquadra de homens do Norte foram a barra e pontilham todo o Wadi Tajuh/Tejo; as portas da urbe fecham-se, e as foras crists colocam-se para a luta no terreno. O rei tentara j antes um primeiro ataque a Ushbuna/Lisboa, provavelmente em 1142, mas que falhou, embora tivesse conseguido colocar a cidade e tambm Shantarin/Santarm sob tributo 123 . Mas agora diferente: h cerco e grande volume de combatentes. Dramaticamente, Lisboa vive os seus ltimos dias como Ushbuna

2)Divisoeclesistica:aquestodapresenamorabeesua continuidade.Embora a queda da monarquia visigtica tenha abalado a prpria maneira de a Igreja se conceber a si prpria na Hispnia 124 , o que facto que, nas primeiras dcadas de conquista e ocupao islmica, salvo algumas excepes 125 , os cristos, mesmo hostilizados, parece no terem sido ostensivamente perseguidos. No entanto, houve bastantes atropelos e atrocidades, bem documentadas tanto pelas fontes rabes como pelas crists, sobretudo nas zonas onde houve maior resistncia ou onde a elite hispano-goda era mais forte 126 , e menos inofensiva, portanto.

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Cf. MATTOSO, 2007, p. 205. Convm no esquecer que a monarquia visigtica integrou na sua estrutura comum no s a legislao prvia queda da parte ocidental do Imprio Romano, mas o prprio Conclio dos bispos hispnicos, que passou a ser assumido e a assumir-se como um rgo legislativo do Estado, e cujas decises, aprovadas pelo rei, que a ele assistia, tinham vigor de lei. Foi uma situao de ligao orgnica ainda mais profunda que no prprio Imprio Bizantino, e talvez no tenha existido outra sociedade em que os corpos polticos e eclesisticos se recobrissem de forma to singular. A no existncia de monarca no podia deixar de ter consequncias na prpria forma de viver da Igreja como corpo social: faltando-lhe a cabea o rei ficava como que incapacitada para agir como entidade unificada, e era concebido como absurdo no ter um rei a sancionar o Conclio. Assim se compreende que, mais tarde, os emires, em Crdova, tenham, por vezes, a pedido e com a anuncia de alguns bispos morabes, convocado Conclios, na tentativa desesperada da parte eclesistica de voltar a ter sentido de corpo. Foi o escndalo entre os morabes mais exaltados e entre os bispos das zonas no ocupadas, e que viria a ser mais um factor para criar uma grande desconfiana nos cristos do Norte face aos das reas muulmanas, que se deixavam conduzir em Conclio por um infiel. 125 Por exemplo, a transformao das Catedrais visigticas de Sevilha, Crdova e Mrida em mesquitas, e a destruio de igrejas por parte de Abd Al-Rahman I. Cf. CALVO CAPILLA, Las primeras mezquitas de Al Andaluz atraves de las fontes rabes, in Al Qantara. Revista de Estudos rabes, XXVIII, 2007, p.162; cf. tambm MACIAS, 2005, p.117. 126 Cf. LAVAJO, Joaquim Choro, Islo e Cristianismo: entre a tolerncia e a guerra santa, in Histria Religiosa de Portugal, I, Crculo de Leitores, Lisboa 2000, p.95; cf. tambm MARQUES, 1993, pp.201203.

34 Apesar de passarem a estar sob um regime tributrio discriminatrio e relativamente pesado 127 , e de a sua visibilidade ter sido muitssimo condicionada 128 , pode afirmar-se que os morabes viveram decerto as primeiras dcadas de Al Andaluz com a natural nostalgia do tempo anterior, mas sem as perseguies que, por exemplo, os levariam mais tarde a uma vaga de emigrao em massa para o Norte129 . Nem sequer os seus bens fonte constante de impostos para os emires e depois para os califas - parecem ter sido demasiado tocados 130 . Contudo, nunca houve verdadeiramente, ao contrrio do que em certo tempo e em alguma historiografia se afirmou, paz e harmonia entre as duas culturas, j que existiam constrangimentos demasiado srios liberdade de culto, e mesmo em termos de convenes sociais, o cristo passou a estar num patamar de dignidade muito inferior face ao muulmano 131 . Santo Eulgio de Crdova, mrtir em 859 s mos de Muhamad I, lamenta-se da violncia crescente contra os cristos e da destruio das igrejas 132 , ordenada pelo Strapa das Trevas, o Emir. A dada altura, os emires tomaram as mesmas medidas que Diocleciano, alguns sculos antes, tinha tomado, aquando da ltima grande perseguio romana: atingir com todo o furor o clero, sobretudo osCf. MACIAS, 2005, p.812. Conforme explica LAVAJO, 2000, p.94: Os morabes eram vtimas de muitas outras vexaes discriminatrias. Assim, por exigncia dos pactos realizados com os muulmanos dominadores, eram obrigados a dar hospedagem gratuita nas suas igrejas e casas, durante trs dias e trs noites, aos viandantes muulmanos. Os cristos no podiam vestir nem calar como os muulmanos; tinham de rapar s a parte anterior da cabea; era-lhes vedado andar de cavalo; podiam deslocar-se apenas de mula ou de burro, desprovidos de selins e de estribos, e viajar com os dois ps pendentes para o mesmo lado do animal; no podiam andar munidos de espada, nem fabricar ou utilizar armas. S lhes era permitido viver em espaos delimitados das cidades, as moarabias; cf. tambm MILLET-GERARD, Dominique, Chrtiens Mozarabes et Culture Islamique dans lEspagne des VIII-IX sicles, tudes Augustiniennes, Paris 1984, p.28. 129 Como viria a acontecer aquando da tomada do poder pelos Almorvidas, no sculo XI. 130 As propriedades dos cristos, tanto as particulares como as da Igreja, s foram confiscadas no sculo XII, como efeito secundrio dos triunfos almorvidas e almadas. Cf. MACIAS, 2005, pp.811-812. 131 Cf. LAVAJO, 2000, pp.96-97: No era permitido aos cristos ostentar a cruz nas igrejas nem pregar, ensinar e realizar procisses ou outras manifestaes religiosas fora delas; no podiam tocar os sinos; nos funerais e outras cerimnias religiosas eram obrigados a rezar em voz baixa, sempre que estivesse presente algum muulmano; os defuntos cristos tinham de levar o rosto coberto e ser sepultados em cemitrios prprios; a linguagem dos cristos era controlada, pois no podiam utilizar nomes, palavras ou expresses muulmanas, nem proclamar verdades da sua f, como a divindade de Cristo e a Santssima Trindade, sempre que se opunham ao Alcoro; no lhes era permitido presidir a reunies em que participassem Muulmanos, nem sentar-se, quando estes estavam de p; no lhes era permitido ter criadas ou escravas muulmanas; os cristos podiam converter-se ao islamismo, mas se um muulmano optasse pelo cristianismo era automaticamente morto; as mulheres crists que casassem com muulmanos eram obrigadas a abraar a F islmica (). Aos cristos era assegurada a liberdade de culto, mas s dentro das igrejas j existentes na altura da invaso. Tal como as casas de habitao e os mosteiros cristos, ai igrejas situavam-se normalmente fora damadina. Os cristos no podiam construir novos templos dentro das cidades, nem reconstruir os que se arruinavam. Muitos deles foram convertidos em mesquitas. 132 Cf. Memoriale Sanctorum, III, 3, in GIL, Jos (ed.) Corpus Scriptorum Mozarabicorum (CSM-MS) I, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid 1973, p.221.128 127

35 bispos, para esmagar a comunidade, e profanar os livros e os vasos sagrados, como descreve tambm o cordovs 133 . Supe-se, no entanto, que num primeiro tempo, em todo o espao de Al Andaluz, embora com as limitaes j apontadas, a estrutura eclesistica foi quase sempre mantida sem grandes clivagens com o tempo anterior, tanto no que respeita manuteno dos bispos em quase todas as sedes tradicionais (pelo menos no sul da Al Andaluz/Hispnia) como na vida monstica e nos centros de peregrinao cristos, que foram, em geral, respeitados 134 . No tendo os novos senhores mexido com os limites administrativos anteriores (o que viria a acontecer, e mesmo assim de forma algo localizada, s j bem entrado o sculo IX) podemos afirmar com segurana que os limites eclesisticos diocesanos, e eventualmente at os paroquiais (onde estes tenham tido tempo para serem traados e assumidos) no mudaram, at porque o al usquf/bispo continuou, juntamente com o qumis/conde dos cristos, a ter um papel importante, na vida interna da comunidade morabe, papel esse exigido alis pelos novos soberanos135 . Subalterno, mas exigido. Quando chegou o tempo em que a dominao islmica se viu na contingncia de alterar circunscries - seja por criao, supresso, diviso, reduo ou ampliao - os cristos j no estavam em condies de grande vigor para acompanhar esse movimento: as autoridades proibiam actividades de evangelizao exteriores aos templos e mosteiros; a vida comum tinha-se arabizado e a lngua latina j tinha passado a ser apenas uma lngua cultual, fracamente entendida 136 ; os impostos eram muito pesados e a

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Cf. Documentum Martyriale, 11, GIL, CSM II, p.441: As profundezas das prises esto cheias de uma multido de padres; a Igreja est viva dos seus pastores e dos seus ministros, privada do seu santo servio. Os tabernculos divinos esto abandonados na solido, a aranha tece a teia dentro dos templos, o silncio reina. Os padres e os ministros do altar foram disseminados sem rumo, porque as pedras do santurio foram espalhadas pelas praas. Os hinos e cnticos celestes so substitudos no mais recndito das prises pela murmurao dos salmos sagrados; o cantor j no eleva a voz para cantar no meio do povo, a do salmista deixou de ressoar no corao, o leitor j no fala do alto da sua cadeira, o dicono j no reparte o Evangelho no meio da assembleia, e o padre j no leva o incenso at ao altar, porque o inimigo matou o pastor, e provocou a disperso entre o rebanho dos catlicos, e a Igreja est totalmente privada de todo o ministrio sagrado [traduo nossa]. 134 Cf. MARQUES, 1993, pp.201-203. 135 Como diz COCHERIL, Don Maur, tudes sur le Monachisme en Espagne et au Portugal, Belles Letres/Bertrand, Paris/Lisboa 1966, p.51, referindo-se organizao social morabe: O responsvel de todos levava o nome de defensor ou protector (saij al-madina) e frequentemente o de comites (qumis). O juiz era o censor (qadi n-nasara, isto , juiz dos cristos). Observavam sempre a antiga Lex Gothorum, tambm chamada Liber Judicum (sunna na-nasrani) conhecida mais tarde pelo nome de Fuero Juzgo. A hierarquia eclesistica permaneceu quase intacta, com os textos rabes a mencionarem frequentemente o Metropolita (matran) o bispo (al usquf) os monges (ar-rahib) e o padre (al qiss). A existncia legal dos mosteiros era reconhecida [traduo nossa do original francs]; cf. tambm LAVAJO, 2000, p.95. 136 Para os cristos morabes mais ortodoxos, a cultura muulmana era comparvel a um cancro que serpenteava nas mentes e podia corromper toda a massa. Cf. CSM-MS I, 18, 1973, p.43.

36 discricionariedade dos seus colectores tambm, o que fazia sobrar muito pouco dinheiro para partilhar com a estrutura eclesistica, com a consequente degradao de igrejas e mosteiros; os cargos pblicos e as possibilidades de subir na escala social estavam cada vez mais limitados a muulmanos, muito favorecidos, o que levou, por vezes, a uma sangria de cristos, convertidos por convenincia ao islo. Por fim, e no menos impor