francisco jose silva gomes - a cristandade medieval entre o mito e a utopia

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  • 7/30/2019 Francisco Jose Silva Gomes - A Cristandade Medieval Entre o Mito e a Utopia

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    A Cristandade medieval entre

    o mito e a utopia

    Francisco Jos Silva Gomes

    Neste ensaio apresentaremos trs temas para reflexo: em primeiro lugardiscutiremos a hiptese sobre o carter eminentemente religioso daideologia na Cristandade medieval; em seguida, ressaltaremos o papel dareforma gregoriana nos sculos XI e XII para a reestruturao desta Cris-tandade; e, por ltimo, analisaremos mais detidamente a relao particu-lar que os reformadores gregorianos articularam com atemporalidadeen-quanto categoria antropolgica.

    Entendemos por Cristandade um sistema de relaes da Igreja e doEstado (ou qualquer outra forma de poder poltico) numa determinadasociedade e cultura. Na histria do cristianismo, o sistema iniciou-se por

    ocasio daPax Ecclesiaeem 313 e deu origem primeira modalidade deCristandade dita constantiniana a qual se apresenta como um sistemanico de poder e legitimao da Igreja e do Imprio tardoromano.1

    As caractersticas gerais desta modalidade constantiniana de Cris-tandade so, entre outras, o cristianismo apresentar-se como uma religiode Estado, obrigatria portanto para todos os sditos; a relao particularda Igreja e do Estado dar-se num regime de unio; a religio crist tendera manifestar-se como uma religio de unanimidade, multifuncional e po-livalente; o cdigo religioso cristo, considerado como o nico oficial, sertodavia diferentemente apropriado pelos vrios grupos sociais, pelos letra-dos e iletrados, pelo clero e leigos.2

    A Cristandade medieval ocidental , em certa medida, a continuadorada Cristandade antiga, a do Imprio Cristo dos sculos IV e V. No con-texto medieval, acentuou-se muito mais a situao de unanimidade e con-formismo, obtida por um consenso social homogeneizador e normatizador,consenso este favorecido pela constituio progressiva de uma vasta redeparoquial e clerical. As instituies todas tendiam, pois, a apresentar umcarter sacral e oficialmente cristo.3

    Topoi, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 221-231.

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    A religio na Cristandade medieval tendia a fornecer a explicao ejustificao das relaes sociais no plano das representaes e discursos, e aconstituir o sistema das prticas e comportamentos coletivos destinados areproduzir estas relaes sociais. A religio tambm podia servir a reduziros antagonismos nas relaes entre os homens e a natureza, superando-asno campo simblico. Tratava-se propriamente do papel ideolgico da reli-gio.4

    Ora, a ideologia era, na Cristandade medieval, eminentemente religio-sa, sacralizadora do poder, das autoridades, da ordem vigente (Ordo). Asrelaes senhoriais e servis, sobretudo a partir dos sculos X-XI, eram toarbitrrias que s podiam justificar-se apelando para uma sano meta-so-cial. As relaes sociais apareciam na conscincia dos agentes sociais comonaturais e necessrias, naturalizadas portanto. As prticas sociais delasdecorrentes eram percebidas no como uma imposio, mas como atosvoluntrios ou como deveres morais e religiosos.

    Como a ordem natural e a ordem social eram consideradas equiva-lentes e garantidas pela ordem divina (sobrenatural), as relaes sociais eram

    simultaneamente naturalizadas e sobrenaturalizadas. a religio na suafuno integradora, de coeso social pela qual os homens encontram com-pensao para a sua situao presente, na esperana de uma salvao futura.5

    No entanto, toda a quebra do equilbrio destas relaes sociais poralguma forma intolervel de arbtrio, toda a contradio, tornada insus-tentvel, entre a ideologia religiosa e a situao vivida, forjavam formas deprotesto social e geravam movimentos de contra-legitimao que se expres-savam igualmente em termos religiosos. a religio na sua funo de pro-testo social pela qual a esperana, que apresenta todavia um carter ambi-valente, constitui-se como fonte de utopias com conotaes religiosas,

    podendo ser fonte de resignao e conformismo.6

    ordem perturbada por um tal arbtrio foram propostas geralmente,na Cristandade medieval, trs solues, a saber, uma projeo no passadotentando restabelecer a antiga ordem; uma projeo no futuro criando as-sim quer uma utopia em termos puramente ps-histricos, quer uma uto-pia em termos simultaneamente infra e ps-histricos. Nos trs caos, aordem era sempre pensada em seus fundamentos religiosos.

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    Nas duas primeiras solues, desejava-se a manuteno da ordem; naterceira soluo, podia-se chegar a pensar a sua subverso. A religio atua-va ora como entrave s transformaes sociais, ora como estmulo a umprojeto de uma nova ordem. Os movimentos medievais de protesto socialproduziram crticas Igreja estabelecida, correntes religiosas consideradasherticas, movimentos messinicos e milenaristas.7

    A propsito do messianismo, convm lembrar que a Cristandade

    medieval herdou o paradigma bblico de messianismo. O povo de Israelv-se como povo da promessa e da espera, vivendo numa contnua abertu-ra para o futuro. Esta abertura nasce da relao do povo eleito com o seuDeus, o qual pe o presente sempre em discusso. Do encontro tenso dopresente com a espera (futuro) nasce a esperana no Deus das promessas.

    O anseio pela realizao das sucessivas promessas de Deus na histriado povo de Israel deu origem a diferentes formas de espera messinica: ada sua realizao num futuro iminente e intra-histrico (o messianismoproftico); a sua relao com o poder (messianismo rgio) ou com o culto(messianismo sacerdotal); a sua formulao em termos de uma utopia ps-

    histrica (messianismo apocalptico). O cristianismo radicalizou todas es-tas formas de espera messinica afirmando querigma (anncio) que Jesus,Cristo e Senhor, realizou todas estas formas de messianismo.8

    Voltando Cristandade medieval, sabemos que nela predominou, emgeral, a tutela do clero. No todavia durante os sculos IX e X, quando atutela dos leigos sobre as instituies eclesiais a levou sua feudalizao, oque provocou a partir do sculo XI, o grito dos reformadores, sobretudoeclesisticos: libertas Ecclesiae. Ocorreu ento a reforma gregoriana queoperou a sntese de uma reformanae daIgreja, de uma reforma na cabeae nos membros.

    Tratava-se de lutar contra os pecados e misrias dos cristos por meiode umarenovatio e reformatio dos homens, num processo de conformaocom o Cristo, numaconversatio cristoforme. Era uma reformanaIgreja.Mas era opinio corrente entre os gregorianos que a reforma na Igreja sse viabilizaria com mudanas urgentes e necessrias nas instituies da Igrejae da Cristandade. Era uma reformadaIgreja. Com a reforma gregoriana, adimenso da reformadaIgreja passou a predominar, sendo at considera-

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    da como condio sine qua non para haver reformanaIgreja. Para tantotornava-se imperativa a emancipao da tutela dos leigos. A reforma gre-goriana tornou-se modelo paradigmtico de reforma na Igreja Catlica.9

    Os reformadores gregorianos tinham um projeto de reestruturao daCristandade. Por isso, distinguiam at a oposio dois poderes na Cristan-dade, sem colocar contudo o sistema em questo, j que mantinham a idiade um nico Orbis christianus. A unidade da Cristandade continuava

    intocada, mas a Igreja socializava com maior densidade o sistema religiosoe o poder espiritual aSancta Ecclesia, e dessacralizava parcialmente aesfera do poder temporal o Sacrum Imperium. Estavam, pois, reunidasas condies de possibilidade para a emergncia de um discurso autno-mo tanto sobre o Estado quanto sobre a Igreja (eclesiologia).10

    A escolstica e o direito cannico foram elaborando uma eclesiologiaem torno de algumas idias-fora: a autocompreenso da Igreja como

    potestas(o poder espiritual); a subordinao do poder temporal ao poderespiritual numa clara tentativa hierocrtica do poder clerical e do papado,subordinao que estava respaldada em dois processos concomitantes e im-

    bricados de clericalizao e romanizao. O primeiro constitua-se no re-foro do j tradicional monoplio clerical sobre o poder religioso e as ins-tituies eclesiais e eclesisticas, demarcando com maior nfase a fronteiraentre o clero e os leigos, usando para tanto a oposio entre o celibato e ocasamento. J o segundo processo preconizava o monoplio jurisdicionalda Igreja romana e do papado sobre as Igrejas locais.11

    Neste projeto da Igreja gregoriana tratava-se no somente de excluiros leigos da gesto das instituies eclesiais e eclesitiscas, de destitu-losdo poder religioso, mas tambm de os tutelar na direo da Cristandade.

    As relaes entre o Sacerdotium e o Imperium, entre os dois poderes que se

    consideravam de direito universais, eram explicadas pelos escolsticos se-gundo duas correntes: a corrente dualistatout court, que insistia na distin-o dos dois gldios numa simples relao de simetria, predominou nosculo XII; a corrente dualista e hierocrtica, que insitia na relaoassimtrica, foi dominante no sculo XIII.12

    tempo de analisar a reforma gregoriana na sua relao particular,no nvel das representaes e discursos, com atemporalidade. Neste ponto

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    em particular, a reforma elaborou o seu projeto de reestruturao da Cris-tandade num duplo plano, imbricado muito embora: o da projeo numpassado idealizado (no nvel do mito) e o da projeo num futuro idealiza-do (no nvel da utopia), segundo um modelo retropectivo e prospectivorespectivamente.

    No primeiro caso, o passado idealizado era o cristianismo apostlico(no ideal davita vere apostolicados sculos XII-XIII), e a Cristandade an-

    tiga (o ideal do Imprio cristo dos sculos IV e V) colocados ambos numpassado imemorial, como realizaes perfeitas do cristianismo a serem re-tomadas pela reforma. Era uma forma de idealizao do passado que con-

    jugava mito e utopia. No segundo caso, o futuro idealizado era o de umasociedade perfeita em termos puramente ps-histricos (o ideal da Jerusa-lm celeste, daCivitas Deiceleste). Era uma forma de idealizao do futuroque conjugava escatologia e utopia. O projeto da Igreja gregoriana enlaa-va-se, pois, com um passado mtico e se abria para um futuro escatolgico,ambos igualmente utpicos.13

    Entre o mito e a utopia, a Igreja estava inteiramente voltada para a

    tarefa de contribuir, na sua esfera prpria, para o grande desgnio de fazerprevalecer a ordem na sociedade/Cristandade nica com seus dois poderes o Papado e o Imprio.

    Esta tenso temporal da Igreja gregoriana encontra sua explicao emgrande parte na maneira como o cristianismo encara a temporalidade en-quanto categoria antropolgica. A Igreja se entende como peregrinante(viator) em marcha para a casa do Pai, a ptria celeste, na espera do Reinode Deus plenamente consumado. A Igreja vive assim o tempo presentecomo um tempo da deciso e da oportunidade (como um kairs), comoum tempo intermedirio entre o tempo do dom j confirmado no passado

    e o tempo do cumprimento no futuro de uma promessa que ainda noaconteceu plenamente. O tempo da Igreja assim o de uma tensoescatolgica entre o j do dom ofertado e o ainda-no da promessa noplenamente realizada, entre a origem e o destino, entre o provisrio e odefinitivo, entre o tempo que se chama hoje e a eternidade.14

    Para a Igreja, o Evangelho anuncia o escathon, a realidade ltima dahistria, como j realizado e revelado na vida, morte e ressurreio de Je-

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    sus. Os Evangelhos no apresentam contudo o presente e o futuro comoalternativos. A escatologia neles est relacionada com o Reino de Deus que

    jse realizou em Jesus posio da escatologia dita realizada ou inaugu-rada, mas que ainda-no se realizou plenamente mas to-somente de ma-neira incoativa posio da escatologia dita futura ou conseqente. A dia-ltica do j e do ainda-no da escatologia neotestamentria realiza asntese das duas posies.15

    A escatologia crist relaciona-se, por sua vez, com a categoria bblicade Histria da Salvao. Na tradio semtica e veterotestamentria, aexperincia de Deus feita por Israel no est tanto nos fenmenos csmi-cos, nem na natureza divina hierofnica, mas antes no comprometimentode Deus com o acontecer do Povo eleito.16 A proximidade do Deus quevem, a expectativa do seu advento alimenta a esperana de Israel. Assimsendo, a narrativa das mirabilia Deirealizadas na histria do seu povo (nopassado) alimenta-lhe a esperana de outras intervenes de Deus (no fu-turo). Duas categorias fundamentam este modo discurso histrico-salvficona Bblia, a saber: a memria e a promessa.

    Com a categoria de memria so confessados juntos na Bblia a his-tria dos atos fundantes do povo imbricada com o seu significado teolgi-co. Pode haver, neste nvel, uma interferncia do discurso mtico, dando-se assim quer uma historicizao do mito, quer uma mitizao da histria.

    Com a categoria de promessa surge o tempo das iniciativas de Deuse da profecia. Esta ltima fala de acontecimentos iminentes num futurointra-histrico e aplica-lhes uma perspectiva histrico-salvfica que anulaparcialmente a histria passada, a tradio. Pode haver, neste nvel, umainterferncia do discurso escatolgico. Enquanto a profecia anuncia acon-tecimentos iminentes, a escatologia anuncia uma nova ordem vinda de fora

    da histria e consumada no aps da histria. Por vezes, esta virada do fimda histria apresentada precedida de uma catstrofe csmica: trata-se daapocalptica.17

    A escatologia crist pode relacionar-se ainda no discurso mtico, en-tendido como uma narrativa das origens, como um discurso cuja funo instauradora. Nesta relao entre a escatologia e o mito no se insiste tantona antiguidade da criao primordial quanto no novum de qualquer cria-

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    o. Deste modo o mito pode tornar-se no apenas um mito de fundaodo passado, mas o mito de toda a fundao no futuro. Por sua exemplari-dade, o mito torna-se o modelo de toda a criao que h-de vir no futuro.Cada recriao recapitula a criao primordial e todos os comeos so, pois,recomeos, conjugando-se o mito do comeo com o do fim ltimo, aprotologia com a escatologia.

    Resumindo, a escatologia crist, na Bblia, relaciona-se com as cate-

    gorias de memria e promessa do discurso histrico-salvfico, com aprofecia e com discurso mtico.18

    No perodo do judasmo tardio e do cristianismo nascente (sculo IIa.C. II d.C.), o discurso escatolgico chegou a dominar todas as outrasformas de discurso bblico. Encontramos neste discurso ora o tempo cclico,ora o tempo irreversvel, ora ainda uma combinao de ambos.

    A escatologia apresenta-se ento segundo duas vertentes. Uma esca-tologia de corte apocalptico buscava os seus modelos nos mitos, acentua-va o tempo cclico e a idia de palingenesia, mas perdia muito a sua capa-cidade de falar sobre os fins ltimos. A escatologia de corte proftico

    referia-se no somente a esses fins ltimos (escatha), mas tambm ao lti-mo de todas as realidades (escathon), privilegiando o tempo irreversvel. Ocristianismo pregava o evento escatolgico por excelncia, plenitude epleroma da Histria: Jesus o Cristo (Escathos).19

    Com a situao de Cristandade a partir do sculo IV, acentuou-se umaperda da carga proftica e escatolgica do querigma cristo. O sentimentode estranheza do cristo com relao ao mundo e a fora crtica da espe-rana escatolgica foram atenuando-se. Houve, pois, uma certa instalaono saeculum, dando-se um processo de desescatologizao que no signifi-ca uma perda total da dimenso escatolgica na Igreja, mas uma diminui-

    o do clima de iminente expectativa do final dos tempos.Dava-se no discurso cristo um relativo rebaixamento do seu univer-salismo a um messianismo mais particularista. A Igreja tendia a fixar a suacatolicidade, identificando-a parcialmente com o Imprio Romano, comaromanitas. O universalismo cristo tendia, pois, a identificar-se com osistema, restringindo o seu horizonte ao Imprio romano. Esta quase-iden-tificao tendeu a esbater a fronteira e tenso Igreja e mundo.

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    Dava-se no entanto um outro processo concomitante de quase-iden-tificao: da Igreja, novo povo eleito de Deus, com o Reino de Deus. Aauto-compreenso da Igreja tomava um colorido monofisita, numa ana-logia com a questo cristolgica contempornea. Desta maneira, a Igrejaacabava hipostasiada em Deus, colocada na sua eternidade, e passava a atri-buir-se o monoplio da salvao, da graa, de Deus mesmo. H assim umarelao entre esta viso eclesiolgica e um messianismo particularista em

    termos soteriolgicos. , pois, uma eclesiologia que operava uma leiturareducionista do aforismo teolgico Extra Ecclesiam nulla salus, e que justi-ficava o establishmenteclesistico com a sua viso triunfalista.

    As relaes estreitas entre cristologia, eclesiologia e soteriologia forampossibilitadas pelo processo de desescatologizao, assinalado acima, napregao do Reino de Deus, sustentado por um processo concomitante dede-historicizao e helenizao do querigma.20

    No cristianismo antigo e medieval operou-se uma lenta bifurcao daescatologia, levando distino entre a escatologia individual e a escatolo-gia coletiva. A esperana escatolgica era o horizonte das comunidades

    apostlicas e dos mrtires dos trs primeiros sculos, permanecendo, nocontexto da Cristandade, o horizonte de certos grupos em seu entusiasmoapocalptico e no seu otimismo milenarista.21 J o pensamento oficial e ateologia erudita distanciaram-se da tendncia quilistica, marginalizando-a e elaborando outro tipo de discurso escatolgico no qual o millenium eradissolvido numa concepo mais pessimista e penitencial dos fins ltimos.

    A bifurcao da escatologia crist consumou-se com a teologia agos-tiniana, mantendo o cristianismo numa permanente tenso entre institui-o e inspirao, entre poder e carisma. Agostinho refutou o milenarismoe a escatologia iminente, rejeitando a possibilidade da identificao de um

    reino visvel de Cristo na terra antes do Juzo Final e falando antes de umapresena invisvel do Reino de Deus na Igreja. Nesta escatologia que setornou oficial na Cristandade medieval, o futuro prometido era reconhe-cido como j presente no culto, na proclamao da Palavra de Deus, nossacramentos, na Igreja. Dava-se deste modo uma quase identificao doReino de Deus com a Igreja numa espcie de xtase da realizao no pre-sente do futuro prometido. Era como que um mito do presente.

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    Este processo de desescatologizao na teologia oficial entroncou comuma escatologia de corte grego que acentuava a problemtica da alma comosubstncia espiritual, imortal, eterna, problemtica esta reforada na suavertente neoplatnica. Foram, por isso, os Padres alexandrinos, antes de

    Agostinho, os que mais orientaram a escatologia oficial para a temtica daimortalidade da alma, provocando assim uma virada interiorizante,espiritualizante e individualizante da salvao crist. Orgenes j concedia

    aos justos a bem-aventurana desde separao da alma do corpo. Esta cor-rente escatolgica foi consagrada dogmaticamente pela constituioBenedictas Deusde Bento XII em 1336.

    No final da Idade Mdia consumava-se, na pastoral e na teologia, aruptura e oposio entre a escatologia individual e a coletiva, ficando estareduzida a um horizonte esfumado de futuro imprevisvel. Estava sendoelaborado o futuro tratado tridentino dos Novssimos.

    A escatologia oficial deste tratado teolgico estava mais voltada paraas relaes dos homens com o Alm. Nele as questes eram formuladas apartir da conscincia da fraqueza do homem alimentada pelo medo e a

    culpabilizao; revelavam a preocupao pelo destino eterno da alma, pelasalvao; configuravam a tentativa de assegurar j aqui na terra, com obrasmeritrias, a vida futura. Estas questes tornaram-se a base de todo o esfor-o de cristianizao na pastoral do final da Idade Mdia e na tridentina.22

    Esta escatologia oficial dispensava de certa maneira os cristos de sepreocuparem com utopias intra-histricas. ACivitas Dei, a ptria verda-deira era a celeste. Historicamente na Cristandade medieval, muitas uto-pias refletem muito mais um desejo de volta s origens, ao Paraso, do quea aspirao por uma nova sociedade. Era, pois, uma concepo de utopiaarcaica vinculada ao mito, concepo de uma sociedade tradicional preo-

    cupada em manter estruturas imutveis. Era uma utopia-fuga de um pre-sente sofrido para a tranqilidade uterina e protegida das origens. Foi a visode utopia de certos movimento milenaristas e de certos pensadores eruditos.

    Cremos ter mostrado que, entre o Mito e a Utopia, os reformadoresgregorianos tentaram criar, por vezes sem muito xito, uma fronteira entreuma escatologia oficial e uma escatologia apocalptica e/ou milenarista como desgnio precpuo de fazer prevalecer a ordem na sociedade/Cristandade.

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    Notas

    1 Gomes, Francisco Jos. O Sistema da Cristandade Colonial. Dissertao de Mestrado.Niteri: UFF, 1979, pp. 86-162; __________. Le projet de no-chrtient dans le diocsede Rio de Janeiro de 1869 1915. Tese de Doutorado. Toulouse: UTM, 1991, pp. 25-32.2Idem; __________. A Igreja e o poder: representaes e discursos. In Ribeiro, MariaEurydice.A vida na Idade Mdia. Braslia: EdUnB, 1997. pp. 33-37.3Idem. p. 44.4

    Houtart, Franois. Religio e modos de produo pr-capitalista. So Paulo: Paulinas, 1982.5Idem. pp. 243-249.6Idem, pp. 23-29; Furter, Pierre.A dialtica da esperana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.pp. 77-124.7 Le Goff, Jacques. (Org.) Hresies et socit dans lEurope pr-industrielle (11e-18e sicles).Paris: La Haye: Mouton, 1968. pp. 121-138 e 209-218.8 Forte, Bruno.Jesus de Nazar. Histria de Deus, Deus da Histria. Ensaio de uma cristologiacomo histria. So Paulo: Paulinas, 1985. pp. 65-86; Grelot, Pierre.A esperana judaica notempo de Jesus. So Paulo: Loyola, 1996.9 Gomes, Francisco Jos. Op.cit. pp. 48-50.10 Congar, Yves. LEglise. De Saint Augustin lpoque moderne. Paris: Cerf, 1970. pp. 89-

    122; Cf. Vauchez, Andr. (Org.), Apoge de la Papaut et expansion de la Chrtient (1054-1274) in Mayeur, Jean-Marie et al. (Org.) Histoire du Chritianisme. Paris: Descle, 1993.tome V.11 Congar, Yves. Op. cit. pp. 145-155; __________. Igreja e Papado. Perspectivas histri-cas. So Paulo: Loyola, 1997. pp. 11-32 e 103-126; Gomes, Francisco Jos. Op.cit. pp.51-52.12 Congar, YvesLEglise. De Saint Augustin lpoque moderne. Paris: Cerf, 1970. pp. 142-145 e 176-198; __________. Igreja e Papado. Perspectivas histricas. So Paulo: Loyola,1997. pp. 127-206; GOMES, Francisco Jos. Op.cit. p. 52.13 Para o conceito de utopia ver. Mannheim, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro. Zahar,1968; Freitas, Manuel da Costa. Utopia. InLogos. Enciclopdia luso-brasileira de Filosofia.Lisboa: Verbo, 1992. Vol. 5, pp. 365-371; Miller, David et al. (Org.) Dictionnaire de la

    pense politique. Hommes et Ides. Paris: Hatier, 1989. pp. 813-824.14 Libanio, Joo Batista, Bingemer, Maria Clara. Escatologia crist. Petrpolis: Vozes, 1985.pp. 74-145.15 Cullmann, Oscar. Le salut dans lhistoire. Neuchtel: Delachaux, 1966. pp. 30-40.16 Lpple, Alfred.As origens da Bblia. Petrpolis: Vozes, 1973. pp. 70-80.17 Cf. Russell, D. S. Desvelamento divino. Uma introduo apocalptica judaica. So Pau-lo: Paulinas, 1997.18 Ricoeur, Paul. Mito. A interpretao filosfica. In Ricoeur, Paul et al. (Org.) Grcia emito. Lisboa: Gradiva, 1988. pp. 9-40.

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    19 Libanio, Joo Batista, Gingemer, Maria Clara. Op. cit. pp. 19-30 e 74.20 Forte, Bruno. Op.cit. pp. 136-162; Gomes, Francisco Jos. Op.cit. pp. 40-41.21 Carozzi, Claude, Taviani-Carozzi, Huguette (Orgs.). La fin des temps. Terreurs et prophetiesau Moyen Age. Paris: Stock, 1982. pp. 171-233; Cohn, Norman. Na senda do milnio.

    Milenaristas, revolucionrios, anarquistas e msticos da IdadeMdia. Lisboa: Presena, 1981.22 Libanio, Joo Batista. e Bingemer, Maria Clara. Op. cit. pp. 57-73.

    Resumo

    Apresentaremos neste ensaio trs temas para a reflexo: em primeiro lugar, discutire-mos a hiptese sobre o carter eminentemente religioso da ideologia na cristandademedieval. Em seguida, ressaltaremos o papel da reforma gregoriana no sculo XI paraa reestruturao desta nova cristandade; por ltimo analisaremos a reao particularque os reformadores gregorianos criaram com a temporalidade enquanto categoriaantropolgica. Cremos que entre o mito e a utopia, os reformadores gregorianos ten-taram criar, por vezes sem muito xito, uma fronteira entre uma escatologia oficial euma escatologia apocalptica e/ou milenarista, com o designio sobretudo de fazer pre-valecer a ordem na sociedade/cristandade.

    Abstract

    We will present in this essay three themes for reflection: first, the eminently religiouscharacter of ideology in medieval Christendom; second. the role of the GregorianReformation of the 11th century in the restructuring of this new Christendom; andlast, the particular reaction created by the Gregorian reformers with temporality(meant as anthropological category). We believe that between myth and utopia, theGregorian reformers tried to create, sometimes without being successful, a borderbetween official and apocalyptic or millenarian eschatology, intending to promote order

    in society/Christendom.

    Topoi5.p65 17/08/04, 00:47231