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1 FRANCISCO DE OLIVEIRA A ECONOMIA BRASILEIRA: CRITICA A RAZÃO DUALISTA (*) Este ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta às indagações de caráter interdisciplinar que se formulam ao CEBRAP, acerca do processo de expansão sócio-econômica do capitalismo no Brasil. Bene- ficia-se, dessa maneira, do peculiar clima de discussão intelectual que é apanágio do CEBRAP, a cujo corpo de pesquisadores pertence o autor. O autor agradece as críticas e sugestões dos seus colegas, particularmente a José Arthur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Paul Singer, Francisco Weffort, Juarez Brandão Lopes, Boris Fausto, Fábio Munhoz e Regis Andrade, assim como à Calo Prado Jr. e Gabriel Bolaffi, que participaram de seminários sobre o texto. Evidentemente, a nenhum deles pode ser imputada qualquer filha or erro deste documento.

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Page 1: FRANCISCO DE OLIVEIRA · autor agradece as críticas e sugestões dos seus colegas, particularmente a José Arthur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Paul Singer,

1F R A N C I S C O D E O L I V E I R A

A ECONOMIA BRASILEIRA:CRITICA A RAZÃO DUALISTA

(*) Este ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta àsindagações de caráter interdisciplinar que se formulam ao CEBRAP, acercado processo de expansão sócio-econômica do capitalismo no Brasil. Bene-ficia-se, dessa maneira, do peculiar clima de discussão intelectual que éapanágio do CEBRAP, a cujo corpo de pesquisadores pertence o autor. Oautor agradece as críticas e sugestões dos seus colegas, particularmente aJosé Arthur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, PaulSinger, Francisco Weffort, Juarez Brandão Lopes, Boris Fausto, Fábio Munhoze Regis Andrade, assim como à Calo Prado J r . e Gabriel Bolaffi, queparticiparam de seminários sobre o texto. Evidentemente, a nenhum delespode ser imputada qualquer filha or erro deste documento.

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1. UMA BREVECOLOCAÇÃO

DO PROBLEMA

A perspectiva deste trabalho é a de contribuir para arevisão do modo de pensar a economia brasileira, na etapaem que a industrialização passa a ser o setor-chave para adinâmica do sistema, isto é, para efeitos práticos, após aRevolução de 1930. O exame que se tentará vai centrarsua atenção nas transformações estruturais, entendidas estasno sentido rigoroso da reposição e recriação das condições deexpansão do sistema enquanto modo capitalista de produção.Não se trata, portanto, nem de avaliar a "performance" dosistema numa perspectiva ético-finalista de satisfação dasnecessidades da população, nem de discutir magnitudes detaxas de crescimento: a perspectiva ético-finalista muito asso-ciada ao dualismo cepalino parece desconhecer que a pri-meira finalidade do sistema é a própria produção, enquantoa segunda, muito do gosto dos economistas conservadores doBrasil, enreda-se numa dialética vulgar como se a sorte das"partes" pudesse ser reduzida ao comportamento do "todo",a versão comum da "teoria do crescimento do bolo".

Deve ser acrescentado que a perspectiva deste trabalhoincorpora, como variáveis endógenas, o nível político ou ascondições políticas do sistema: conforme o andamento daanálise tratará de demonstrar, as "passagens" de um moduloa outro, de um ciclo a outro ciclo, não são inteligíveiseconomicamente "em si", em qualquer sistema que revistacaracterísticas de dominação social. O "economicismo" dasanálises que isolam as condições econômicas das políticas éum vício metodológico que anda de par com a recusa emreconhecer-se como ideologia.

Este trabalho se inscreve ao lado de outros (1) surgidosrecentemente, que buscam renovar a discussão sobre aeconomia brasileira; neste sentido, o trabalho de Maria daConceição Tavares e José Serra, Más allá del estancamiento:una discusión sobre el estilo del desarrollo reciente deBrasil retoma um estilo e um método de interpretação queestiveram ausentes da literatura econômica latinoamericana

(1) Ver, por exemplo, o t r aba lho de Rolando Cordera e Adolfo Orivesobre a Indus t r i a l i zação Mexicana, publ icado pelo Tase-Boletin del Taller deAnal is is Socioeconómico , vol . 1 , n . º 4 , México. Não é meramento casuala coincidência de re in te rpre tações , na mesma linha teórica, de economiascomo a mexicana e a b ras i l e i r a m a r c a d a s por configurações sócio-econômicasbas t an te similares no que se refere a Indicadores de e s t r u t u r a , às qua ischegaram por processos polí t icos b a s t a n t e d issemelhantes . A coincidência nãocasual resida no fa to de que a m b a s sociedades chegaram a si tuações e s t ru tu ra i ssemelhantes " l a t u sensu" med ian te processos cujo denominador comum foia ampla exploração de sua força de t r aba lho , fenômeno que es tá na base dacons t i tu ição de um seleto mercado pa ra as i n d ú s t r i a s d inâmicas ao mesmotempo que dá d is t r ibu ição des igua l i t a r i amen te crescente da renda .

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durante muito tempo, sepultados sob a avalanche cepalina,e inscreve-se como um marco e um roteiro para novasindagações. Convém assinalar que, por todos os lados, opensamento sócio-econômico latinoamericano dá mostras deinsatisfação e de ruptura com o estilo cepalino de análise,procurando recapturar o entendimento da problemáticalatinoamericana mediante a utilização de um arsenal teó-rico e metodológico que esteve encoberto por uma espéciede "respeito humano" que deu largas à utilização do arsenalmarginalista e keynesiano, estes conferindo honorabilidadee reconhecimento científico junto ao "establishment" técnicoe acadêmico. Assim boa parte da intelectualidade latino-americana nas últimas décadas dilacerou-se nas pontas dodilema: enquanto denunciavam as miseráveis condições devida da grande parte da população latinoamericana, seusesquemas teóricos e analíticos prendiam-nos às discussõesem torno da relação produto-capital, propensão para pou-par ou investir, eficiência marginal do capital, economiasde escala, tamanho do mercado, levando-os, sem se daremconta, a construir o estranho mundo da dualidade e adesembocarem, a contra-gosto, na ideologia do circulo vi-cioso da pobreza (2). A dualidade reconciliava o supostorigor científico das análises com a consciência moral, le-vando a proposições reformistas. A bem da verdade, deve-se reconhecer que o fenômeno assinalado foi muito maisfreqüente e mais intenso entre economistas que entre outroscientistas sociais: sociólogos, cientistas políticos e tambémfilósofos conseguiram escapar, ainda que parcialmente, àtentação dualista, mantendo, como eixos centrais da inter-pretação, categorias como "sistema econômico", "modo deprodução", "classes sociais", "exploração", "dominação". Masainda assim o prestígio dos economistas penetrou largamenteas outras ciências sociais, que se tornaram quase cauda-tárias: "sociedade moderna"-"sociedade tradicional", porexemplo, é um binômio que, deitando raízes no modelodualista, conduziu boa parte dos esforços na Sociologia e

(2) Um caso típico é o da denúncia da Prebisch sobre os mecanismosdo comércio internacional que levam à deterloração dos termos de inter-câmbio em desfavor dos países latinoamericanos. Aí estaria a base parauma reelaboração da teoria do Imperialismo; abortada sua profundizaçãoem direção a essa reelaboração, a proposição que sul é nitidamente refor-mista e nega-se a si mesma: Prebisch espera que os países Industrializados"reformem" seu comportamento, elevando seus pagamentos pelos produtosagropecuários que compram da América Latina o rebaixando o preço dosbens i n d u s t r i a i s qua vendem, que é em essencia, o espírito das conferências"UNCTAD". A proposição é altamente ética e igualmente ingênua.

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na Ciência Política a uma espécie de "beco sem saída"rostowiano.

O esforço reintepretativo que se tenta neste trabalhosuporta-se teórica e metodologicamente em terreno comple-tamente oposto ao do dual-estruturalismo; neste ponto,bom é que se esclareça onde se quer chegar: não se trata,em absoluto, de negar o imenso aporte de conhecimentosbebido diretamente ou inspirado no "modelo Cepal", masexatamente de reconhecer nele o único interlocutor válido,que ao longo dos últimos decênios contribuiu para o debatee a criação intelectual sobre a economia e a sociedadebrasileira e a latinoamericana. Mesmo porque a oposiçãoao "modelo Cepal", durante o período assinalado, não sefez nem se deu em nome de uma postura teórica maisadequada: os conhecidos opositores da Cepal no Brasil ena América Latina tinham, quase sempre, a mesma filia-ção teórica marginalista, neoclássica e keynesiana, des-vestidos apenas da paixão reformista e comprometidos como "status quo" econômico, político e social da miséria edo atraso seculares latinoamericanos. Como pobres papa-gaios, limitaram-se durante décadas a repetir os esquemasaprendidos nas universidades anglo-saxônicas sem nenhumaperspectiva crítica, sendo rigorosamente nulos seus aportesà teoria da sociedade latinoamericana (3). Assim, ao ten-tar-se uma "crítica à razão dualista", reconhece-se a im-possibilidade de uma crítica semelhante aos "sem-razão".

O anterior não deve ser lido como uma tentativa decontemporização: a ruptura com o que se poderia chamaro conceito do "modo de produção subdesenvolvido" ou écompleta ou apenas se lhe acrescentarão detalhes. Noplano teórico, o conceito do subdesenvolvimento como umaformação histórico-econômica singular, constituída polar-mente em torno da oposição formal de um setor "atrasado"e um setor "moderno", não se sustenta como singularida-de: esse tipo de dualidade é encontrável não apenas emquase todos os sistemas, como em quase todos os períodos.Por outro lado, a oposição na maioria dos casos é tãosomente formal: de fato, o processo real mostra uma sim-biose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em

(3) Nenhum dos economistas conservadores anti-Cepal, na América

L a t i n a e no B r a s i l , conseguiu produzir obra t e ó r i c a ; seus escritos são

apenas ocasionais, ora de um, ora de "outro lado da cêrca".

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que o chamado "moderno" cresce e se alimenta da exis-tência do "atrasado", se se quer manter a terminologia.

O "subdesenvolvimento" pareceria a forma própria deser das economias pré-industriais penetradas pelo capita-lismo, em "trânsito", portanto, para formas mais avança-das e sedimentadas deste; sem embargo, uma tal postula-ção esquece que o "subdesenvolvimento" é precisamenteuma "produção" da expansão do capitalismo. Em raríssi-mos casos — dos quais os mais conspícuos são México e Peru— trata-se da penetração de modos de produção anterio-res, de caráter "asiático", pelo capitalismo; na grandemaioria dos casos, as economias pré-industriais da AméricaLatina foram criadas pela expansão do capitalismo mun-dial, como uma reserva de acumulação primitiva do sis-tema global; em resumo, o "subdesenvolvimento" é umaformação capitalista e não simplesmente histórica. Ao en-fatizar o aspecto da dependência — a conhecida relaçãocentro-periferia — os teóricos do "modo de produção sub-desenvolvido" quase deixaram de tratar os aspectos inter-nos das estruturas de dominação que conformam as estru-turas de acumulação próprias de países como o Brasil: todaa questão do desenvolvimento foi vista sob o ângulo dasrelações externas, e o problema transformou-se assim emuma oposição entre nações, passando despercebido o fatode que, antes de oposição entre nações, o desenvolvimentoou o crescimento é um problema que diz respeito à oposiçãoentre classes sociais internas. O conjunto da teorizaçãosobre o "modo de produção subdesenvolvido" continua anão responder quem tem a predominância: se são as leisinternas de articulação que geram o "todo" ou se são asleis de ligação com o resto do sistema que comandam aestrutura de relações (4). Penetrado de ambigüidade, o "sub-

(4) Fe rnando Henr ique Cardoso e Enzo F a l e t t o e laboram umateoria da dependência cuja pos tu lação essencial res ide no reconhecimentode que a própr ia ambigüidade confere especif icidade ao subdesenvolvimento,sendo a "dependência" a forma em que os in te resses i n t e rnos se a r t i cu l amcum o res to do s is tema cap i t a l i s t a . Afas tam-se , ass im, do esquema cepal ino,que vê n a s relações ex t e rnas apenas oposição a supostos interesses nacionaisglobais, pa ra reconhecerem que, a n t e s de uma oposição global, a "dependência"a r t i c u l a os in teresses de determinadas c lasses e grupos sociais da Amér ical a t i n a com os in teresses de de te rminadas c lasses e grupos sociais fora daAmérica La t ina . A hegemonia aparece como o resu l t ado da l inha comumde in te resses determinada pela divisão in te rnac ional do t r aba lho , na esca ladu mundo cap i t a l i s t a . Es sa formulação é, a meu ver , mul to mais cor re taque a da t r ad ição cepal ina, embora a inda não dê o devido peso à possibi l idadeteórica e empír ica de que se expanda o cap i ta l i smo em pa íses como o B r a s i lainda quando seja desfavorável a divisão In te rnac ional do t r aba lho dosistema capitalista como um todo. A meu ver, a expansão do cap i ta l i smonu Bras i l depois de 30 i l u s t r a prec isamente esse caso. Ver , dos a u t o r e sc i tados , Dependência e Desenvolvimento na América Latina, Zahar Editores,1970, Rio de Jane i ro .

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2. O DESENVOL-VIMENTO

CAPITALISTAPÓS-ANOS 30 EO PROCESSO

DEACUMULAÇÃO

desenvolvimento" pareceria ser um sistema que se moveentre sua capacidade de produzir um excedente que é apro-priado parcialmente pelo exterior e sua incapacidade deabsorver internamente de modo produtivo a outra partedo excedente que gera.

No plano da prática a ruptura com a teoria do sub-desenvolvimento também não pode deixar de ser radical.Curiosa mas não paradoxalmente, foi sua preeminência nosúltimos decênios quem contribuiu para a não-formação deuma teoria sobre o capitalismo no Brasil, cumprindo umaimportante função ideológica para marginalizar perguntasdo tipo "a quem serve o desenvolvimento econômico capi-talista no Brasil?". Com seus estereótipos de "desenvol-vimento auto-sustentado", "internalização do centro de de-cisões", "integração nacional", "planejamento", "interessenacional", a teoria do subdesenvolvimento sentou as basesdo "desenvolvimentismo", que desviou a atenção teóricae a ação política do problema da luta de classes, justa-mente no período em que, com a transformação da econo-mia de base agrária para industrial-urbana, as condiçõesobjetivas daquela se agravavam. A teoria do subdesen-volvimento, foi, assim, a ideologia própria do chamadoperíodo populista; se ela hoje não cumpre esse papel éporque a hegemonia de uma classe se afirmou de tal modoque a face já não precisa de máscara.

A Revolução de 1930 marca o fim de um ciclo e oinício de outro na economia brasileira: o fim da hege-monia agrário-exportadora e o início da predominância daestrutura produtiva de base urbano-industrial. Ainda queessa predominância não se concretize em termos da par-ticipação da indústria na renda interna senão em 1956,quando pela primeira vez a renda do setor industrialsuperará a da agricultura, o processo mediante o qual aposição hegemônica se concretizaria é crucial: a nova cor-relação de forças sociais, a reformulação do aparelho e daação estatal, a regulamentação dos fatores, entre os quaiso trabalho ou o preço do trabalho, têm o significado, deum lado, de destruição das regras do jogo segundo asquais a economia se inclinava para as atividades agrário-exportadoras e, de outro, de criação das condições insti-tucionais para a expansão das atividades ligadas ao mercadointerno. Trata-se, em suma, de introduzir um novo modo

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de acumulação, qualitativa e quantitativamente distinto,que dependerá substantivamente de uma realização parcialinterna crescente. A destruição das regras do Jogo daeconomia agrário-exportadora significava penalizar o custoe a rentabilidade dos fatores que eram tradicionalmentealocados para a produção com destino externo, seja con-fiscando lucros parciais (o caso do café, por exemplo), sejaaumentando o custo relativo do dinheiro emprestado aagricultura (bastando simplesmente que o custo do dinheiroemprestado à indústria fosse mais baixo).

Nesse contexto, alguns aspectos passam a desempenharum papel de enorme significação. O primeiro deles fazparte da chamada [regulamentação dos fatores, isto é, daoferta e demanda dos fatores no conjunto da economia.A esse respeito, a regulamentação das leis de relação entreo trabalho e o capital é um dos mais importantes, se nãoo mais importante. A chamada legislação trabalhista temsido estudada apenas do ponto de vista de sua estruturaformal corporativista, da organização dos trabalhadores eda sua possível tutela pelo Estado, e tem sido arriscadaa hipótese de que a fixação do salário-mínimo, por exemplo,teria sido uma medida artificial, sem relação com as con-dições concretas da oferta e demanda de trabalho: os níveisdo salário mínimo, para Ignácio Rangel, por exemplo, se-riam níveis institucionais (5), acima daquilo que se obteriacom a pura barganha entre trabalhadores e capitalistas nomercado. Uma argumentação de tal tipo endossa e alimentaas interpretações dos cientistas políticos sobre o caráterredistributivista dos regimes políticos populistas entre 1930e 1964 (6) e, em sua versão econômica, ela faz parte dabase sobre a qual se pensa a inflação no Brasil e contribuipara a manutenção, no modelo dual-estruturalista cepalino,

(5) "... graças a isso (à legislação t r a b a l h i s t a ) o p a d r ã o sa l a r i a ltornou-se re la t ivamente independente das condições c r i adas pela presençade um enorme exérci to indus t r i a l de r e s e r v a . . . " RANGEL, Ignácio,A inf lação brasi le ira , Rio, Tempo Bras i le i ro , 1963 , p . 44-45.

(6) Não fugiu à percepção dos c ien t i s t as polí t icos que escreveramsobre o assunto , o aspecto de "dominação" para os fins da expansão capi-ta l i s ta que a legislação trabalhista reveste, quando os amplos setores dasmassas u r b a n a s passam a desempenhar um papel chave na e s t ru tu raçãopol í t ica que permi t iu a industr ia l ização. Sem embargo, f requentemente essapercepção corre ta leva no bojo a premissa de que a "doação" getulista dasleis do t r aba lho dava, em troca do apoio das massas populares , algumaparticipação crescente nos ganhos de produtividade do sistema, o que nãoencontra apoio nos fatos. O que se discute neste ponto é o caráter"redistributivista", do ponto de vis ta exa tamente dos referidos g a n h o s ; soboutros aspectos , pr incipalmente polít icos, pode-se f a l a r em " red i s t r ibu t iv i smo"dos regimes popul is tas , mas em termos econômicos t a l postulação éin te i ramente insus ten táve l .

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do distanciamento cumulativo entre os setores "moderno"e "atrasado" (7).

As interpretações assinaladas minimizam o papel dalegislação trabalhista no processo de acumulação que seinstaura ou se acelera a partir de 30. Em primeiro lugar,é estranha a abstração que se faz do papel do Estado naprópria criação do mercado: a que mercado se referem,quando dizem que os níveis do salário mínimo foram ousão fixados acima do que se poderia esperar num "mercadolivre"? Este "mercado livre", abstrato, em que o Estadonão interfere, tomado de empréstimo da ideologia do libe-ralismo econômico, certamente não é um mercado capita-lista, pois precisamente o papel do Estado é "instituciona-lizar" as regras do jogo; em segundo lugar, é uma hipótesenunca provada que tais níveis estivessem acima do custode reprodução da força de trabalho, que é o parâmetro dereferência mais correto, para avaliar-se a "artificialidade"ou a "realidade" dos níveis do salário mínimo. Importanão esquecer que a legislação interpretou o salário mínimorigorosamente como "salário de subsistência", isto é, dereprodução; os critérios de fixação do primeiro saláriomínimo levavam em conta as necessidades alimentares (emtermos de calorias, proteínas, etc.) para um padrão detrabalhador que devia enfrentar um certo tipo de produção,com um certo tipo de uso de força mecânica, comprometi-mento psíquico, etc. Está-se, pensando rigorosamente, emtermos de salário mínimo, como a quantidade de força detrabalho que o trabalhador poderia vender. Não há nenhumoutro parâmetro para o cálculo das necessidades do tra-balhador; não existe na legislação, nem nos critérios,nenhuma incorporação dos ganhos de produtividade do tra-balho.

(7) Segundo o ponto de vista cepalino, os níveis " a r t i f i c i a i s " defixação do salário-mínimo induziram uma precoce elevação do capital fixona composição orgânica do capital, estimulando inversões "capital-intensives",a qual tem por efeito — no referido modelo — diminuir o multiplicador deempregos das novas inversões, baixar a relação produto-capital, conduzindoao estreitamento progressivo do mercado e, a longo prazo, à queda dataxa do lucro e, conseqüentemente, da taxa de crescimento, reforçando omodelo de dualidade da economia. Empiricamente, não tem sido provadauma peculiar e s t r u t u r a de inversões "capital-intensives" na e s t r u t u r a globaldas i n v e r s õ e s ; teoricamente, uma das fontes do erro do modelo está naconsideração e s t r i t a das i n v e r s õ e s apenas no setor i n d u s t r i a l da economia,além da não-consideração do efeito das relações internacionais sobre afunção de produção, que potencializa, através da absorção de tecnologia(trabalho acumulado ou trabalho-morto do exterior) uma base de acumulaçãorazoavelmente pobre.

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Sem embargo, esses aspectos ainda não são os decisivos.O decisivo é que as leis trabalhistas fazem parte de umconjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modo deacumulação. Para tanto, a população em geral, e especial-mente a população que afluía às cidades, necessitava ser trans-formada em "exército de reserva". Essa conversão de enor-mes contingentes populacionais em "exército de reserva",adequado à reprodução do capital, era pertinente e necessáriado ponto de vista do modo de acumulação que se iniciavaou que se buscava reforçar, por duas razões principais: de umlado, propiciava o horizonte médio para o cálculo econômicoempresarial, liberto do pesadelo de um mercado de concorrên-cia perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores;de outro lado, a legislação trabalhista igualava reduzindo —antes que incrementando — o preço da força de trabalho.Essa operação de igualar pela base reconvertia inclusive tra-balhadores especializados à situação de não-qualificados, eimpedia — ao contrário do que pensam muitos — aformação precoce de um mercado dual de força de tra-balho (8). Em outras palavras, se o salário fosse determinadopor qualquer espécie de "mercado livre", na acepção dateoria da concorrência perfeita, é provável que ele subissepara algumas categorias operárias especializadas; a regula-mentação das leis do trabalho operou a reconversão a umdenominador comum de todas as categorias, com o que,antes de prejudicar a acumulação, beneficiou-a.

Uma objeção que pode ser levantada contra a teseanterior é empírica: não existem provas de que a legislaçãotrabalhista tenha tido tal efeito, rebaixando salários. Essetipo de objeção é de uma fragilidade incrível: para os efeitosda acumulação, não era necessário que houvesse rebaixa-mento de salários anteriormente pagos, mas apenas equa-lização dos salários dos contingentes obreiros incrementais;isto é, da média dos salários. Como, no caso da industria-lização brasileira pós-anos 30 os incrementos no contingente

(8) Uma indagação per t inen te sobre o tema da legis lação t r a b a -lh is ta é a de por que ela se inspira nas formas jur íd icas do d i re i to corpo-rativista i ta l iano. Esse problema tem sido abordado a p e n a s do ângulo doc a r á t e r do E s t a d o bras i le i ro na época : a u t o r i t á r i o m a s ao mesmo tempode t r ans ição en t re a hegemonia de uma classe — a dos p ropr ie t á r ios r u r a i s— e a de outra — a da burguesia indus t r i a l . Um aspec to não es tudado éo de sua adequação como uma ponte, uma junção en t re as formas pré-capi ta-l i s t a s de cer tos setores da economia — par t i cu la rmente a ag r i cu l tu ra —e o setor emergente da indús t r ia . Nes ta hipótese, o d i re i to corpora t iv i s ta éa forma adequada para promover a complementar idade en t re os dois setores ,desfazendo ao unificar a possível dual idade que se poderia fo rmar noencontro do "a rca ico" com o " n o v o " ; essa dual idade, no que respei ta àformação dos sa lár ios u rbanos , pa r t i cu la rmente na indús t r ia , poderia realmentepôr em risco a v iabi l idade da empresa nascente .

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obreiro são muitas vezes maiores que o "stock" operárioanterior, a legislação alcançava seu objetivo — não declarado,é verdade, mas isto corresponde à verbalização ideológica dasclasses dominantes — de propiciar a formação de um enorme"exército de reserva" propício à acumulação. Além disso,pode-se aduzir, em favor da tese, um argumento que é dalógica do sistema: se fosse verdade que os níveis do saláriomínimo estivessem "por cima" de níveis de pura barganhanum "mercado livre", o que aumentaria demasiadamente aparte de remuneração do trabalho na distribuição funcionalda renda, o sistema entraria em crise por impossibilidade deacumular; o que se viu após a implantação da legislaçãotrabalhista foi exatamente o contrário: é a partir daí queum tremendo impulso é transmitido à acumulação, caracte-rizando toda uma nova etapa de crescimento da economiabrasileira. Uma segunda objeção retira seu argumento dofato de que comparado ao rendimento auferido no campo(sob qualquer forma, salário, renda da terra, produto das"roças" familiares, etc.) o salário mínimo das cidades erasem dúvida superior, o que, dada a extração rural dos novoscontingentes que afluíam às cidades, tornou-se um elementofavorável aos anseios de integração das novas populaçõesoperárias e trabalhadoras em geral, debilitando a formaçãode consciências de classe entre elas. Não se desconhece oefeito que esse fenômeno pode ter tido social e politica-mente — embora exista certo exagero nas conclusões — mas,do ponto de vista da acumulação, esse fenômeno não tevenem tem nenhuma importância, já que se as atividadesurbanas, particularmente a indústria, paga salários maisaltos que os rendimentos auferidos no campo, o parâmetroque esclarece a relação favorável à acumulação é a produ-tividade das atividades urbanas; em outras palavras, a re-lação significativa é a que se estabelece entre saláriosurbanos e produtividade das atividades urbanas (no caso,indústria), isto é, a taxa de exploração que explica o incre-mento da acumulação é determinada em função dos saláriose dos lucros ou ganhos de produtividade das atividadesurbanas.

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O segundo aspecto refere-se à intervenção do Estadona esfera econômica, operando na regulamentação dos de-mais fatores, além do trabalho: operando na fixação depreços, na distribuição dos ganhos e perdas entre os diversosestratos ou grupos das classes capitalistas, no gasto fiscal

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com fins direta ou indiretamente reprodutivos, na esferada produção com fins de subsidio a outras atividades pro-dutivas. Aqui o seu papel é o de criar as bases para quea acumulação capitalista industrial, ao nível das em-presas, possa se reproduzir. Essa intervenção tem umcaráter "planificador", ao modo do estado inglês que editavatanto a "poor law" como o "cereais act", isto é, no "trânsito",o Estado intervém para destruir o modo de acumulaçãopara o qual a economia se inclinava naturalmente, criandoe recriando as condições do novo modo de acumulação.Neste sentido, substituíam-se os preços do "velho mercado"por "preços sociais", cuja função é permitir a consolidaçãodo "novo mercado", isto é, até que o processo de acumulaçãose oriente, com certo grau de automaticidade, pelos novosparâmetros, que serão o novo leito do rio. Os "preçossociais" podem ter financiamento público ou podem sersimplesmente a imposição de uma distribuição de ganhosdiferente entre os grupos sociais, e a direção em que elesatuam é no sentido de fazer a empresa capitalista industriala unidade mais rentável do conjunto da economia. Assim,assiste-se à emergência e à ampliação das funções do Estado,num período que perdura até os anos Kubitschek. Regu-lando o preço do trabalho, já discutido anteriormente, inves-tindo em infra-estrutura, impondo o confisco cambial ao cafépara redistribuir os ganhos entre grupos das classes capi-talistas, rebaixando o custo de capital na forma do subsídiocambial para as importações de equipamentos para as em-presas industriais e na forma da expansão do crédito ataxas de juros negativas reais, investindo na produção(Volta Redonda e Petrobrás, para exemplificar), o Estadoopera continuamente transferindo recursos e ganhos para aempresa industrial, fazendo dela o centro do sistema. Aessa "destruição" e "criação" vão ser superpostas as versõesde um "socialismo dos tolos" tanto da esquerda como daultradireita, que viam na ação do Estado, "estatismo", semse fazer nunca, uns e outros, a velha pergunta dos advogados:a quem serve tudo isso?

O processo guarda alguma analogia formal com a pas-sagem de uma economia de base capitalista para uma econo-mia socialista. No período de "transição", não apenas nãofuncionam os automatismos econômicos da base anteriorcomo, mais que isso, não devem funcionar, sob pena de nãose implementar a nova base. Por isso, os mecanismos de

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mercado devem ser substituídos por controles administra-tivos cuja missão é fazer funcionar a economia de formanão-automática. Durante a transição, proliferam todos ostipos de controle, não somente na formação dos preços dosfatores como também no controle do gasto dos consumidores.A tese é perfeitamente ilustrada com o caso do café: deixadaentregue às leis automáticas do mercado, a produção decafé no Brasil, após a crise de 29, entraria num regimeanárquico, ora sendo estimulada, ora sendo violentamentecontraída. Os estímulos e contrações poderiam representarimportantes desperdícios sociais. Foi preciso o controlegovernamental para fazê-la crescer ou diminuir guardandocerta distância das flutuações do mercado, para o que teve-sede recorrer ao controle direto (IBC) e aos preços sociais emlugar dos preços de mercado (o confisco cambial era umpreço social). Ainda quando as perdas do café fossem"socializadas", transferidas para o contribuinte, conformeFurtado, essa "socialização" consistia numa operação de não-automaticidade: sob quaisquer circunstâncias, boas ou más,isolava-se o produtor de café da oferta e procura de fatores,de modo a reorientar a alocação de recursos em outrossetores da atividade econômica. É neste sentido que sefala de destruição da inclinação natural para certo tipo doacumulação (9).

O terceiro aspecto a ganhar relevo dentro do processoda nova articulação refere-se ao papel da agricultura. Estatem uma nova e importante função, não tão importantepor nova mas por ser qualitativamente distinta. De umlado, por seu sub-setor dos produtos de exportação, eladeve suprir as necessidades de bens de capital e interme-diários de produção externa, antes de simplesmente servirpara o pagamento dos bens de consumo; desse modo, anecessidade de mantê-la ativa é evidente por si mesma. Ocompromisso entre mantê-la ativa o não estimulá-la comosetor e unidade central do sistema, a fim de destruir o"velho mercado", será um dos pontos nevrálgicos de todo o

(9) O crescimento das funções do Estado implica necessariamenteno crescimento da máquina e s t a t a l , portanto, da burocracia e da tecnocracia.No período da " t r a n s i ç ã o " , o crescimento desses dois agentes do aparelhoe s t a t a l é uma função mais e s t r i t a da diferenciação da divisão social dot r a b a l h o ao nível da economia o da sociedade como um todo, ao passo queem períodos mais recentes — principalmente após os anos iniciais da décadade 60 — o crescimento da burocracia e da tecnocracia é função mais e s t r i t ada diferenciação da divisão social do trabalho ao nível do próprio Estado,já que na economia como um todo, completada a formação do "novo mer-cado", "novas l e i s " restauravam em p a r t e sua automaticidade.

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período: ao longo dos anos assiste-se aos "booms" e àsdepressões, os quais afetarão sensivelmente o ritmo daacumulação global, mas é possível dizer que o compromissoé logrado, ainda que instavelmente. De outro lado, porseu sub-setor de produtos destinados ao consumo interno, aagricultura deve suprir as necessidades das massas urbanas,de forma a não elevar o custo da alimentação principal-mente e secundariamente o custo das matérias-primas, e nãoobstaculizar, portanto, o processo de acumulação urbano-industrial. Em torno desse ponto girará a estabilidadesocial do sistema e de sua realização dependerá a viabi-lidade do processo de acumulação pela empresa capitalistaindustrial, fundada numa ampla expansão do "exércitoindustrial de reserva".

A solução do chamado "problema agrário" nos anosda "passagem" da economia de base agrário-exportadora paraurbano-industrial é um ponto fundamental para a repro-dução das condições da expansão capitalista. Ela é umcomplexo de soluções, cujas vertentes se apóiam no enormecontingente de mão-de-obra, na oferta elástica de terras ena viabilização do encontro desses dois fatores pela açãodo Estado construindo a infraestrutura, principalmente arede rodoviária. Ela é um complexo de soluções cujo deno-minador comum reside na permanente expansão horizontalda ocupação com baixíssimos coeficientes de capitalizaçãoe até sem nenhuma capitalização prévia; numa palavra,opera como uma sorte de "acumulação primitiva". O con-ceito, tomado de Marx, ao descrever o processo de expro-priação do campesinato como uma das condições préviaspara a acumulação capitalista, deve ser, paru nossos fins,redefinido: em primeiro lugar, trata-se de um processoem que não se expropria a propriedade — isso também sedeu em larga escala na passagem da agricultura chamadade subsistência para a agricultura comercial de exportação —mas se expropria o excedente que se forma pela posse transi-tória da terra. Em segundo lugar, a acumulação primi-tiva não se dá apenas na gênese do capitalismo: sob certascondições especificas, principalmente quando esse capitalismocresce por elaboração de periferias, a acumulação primitivaé estrutural e não apenas genética. Assim, tanto na aber-tura de fronteiras "externas" como "internas", o processo éidêntico: o trabalhador rural ou o morador ocupa a terra,desmata, destoca, e cultiva as lavouras temporárias chama-16

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das de "subsistência"; nesse processo, ele prepara a terrapara as lavouras permanentes ou para a formação de pasta-gens, que não são dele, mas do proprietário. Há, portanto,uma transferência de "trabalho morto", de acumulação,para o valor das culturas ou atividades do proprietário,ao passo que a subtração de valor que se opera para o pro-dutor direto reflete-se no preço dos produtos de sua lavoura,rebaixando-os. Esse mecanismo é o responsável tanto pelofato de que a maioria dos gêneros alimentícios vegetais(tais como arroz, feijão, milho) que abastecem os grandesmercados urbanos provenham de zonas de ocupação recente,como pelo fato de que a permanente baixa cotação delestenha contribuído para o processo da acumulação nas cida-des; os dois fenômenos são, no fundo, uma unidade. Nocaso das fronteiras "externas" o processo se dá medianteo avanço da fronteira agrícola que se expande com arodovia: Norte do Paraná, com o surto do café nas décadasde quarenta e cinquenta; Goiás e Mato Grosso, na décadade sessenta, com a penetração da pecuária; Maranhão, nadécada de cinquenta, com a penetração do arroz e dapecuária; Belém-Brasília, na década de sessenta; Oeste doParaná e Sul de Mato Grosso nos últimos quinze anos,com a produção de milho, feijão, suínos. No caso dasfronteiras "internas", a rotação de terras e não de culturas,dentro do latifúndio, tem o mesmo papel: o processo secularque se desenvolve no Nordeste, por exemplo, é típico destasimbiose. O morador, ao plantar sua "roça", planta tam-bém o algodão, e o custo de reprodução da força de tra-balho é a variável que torna comercializáveis ambas asmercadorias.

Chega a parecer paradoxal que a agricultura "primitiva"possa concorrer com uma agricultura que incorporasse autilização de novos insumos, como adubos, fungicidas, pesti-cidas, práticas distintas de cultivo, e, sobretudo, com meca-nização. Duvida-se teoricamente de que os custos daquelasejam competitivos e até mais baixos que os possíveiscustos desta. No entanto, no estado de São Paulo, em 1964,no município de Itapeva, a cultura do milho era economica-mente mais rentável para os agricultores que praticavamuma técnica composta de tração animal com uso de poucoadubo em relação aos que praticavam uma técnica agrícolade tração motorizada e uso de muito adubo. Enquanto aprimeira era utilizada nas lavouras de 1-4 e 5-8 alqueires,

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a segunda era praticada pelas lavouras de 40-80 alqueires:a renda líquida por alqueire era de Cr? 89.742 para aslavouras de técnica mais "atrasada", enquanto para as lavou-ras de técnica mais "adiantada" era de Cr$ 79.654, tudoem cruzeiros de 1964, ainda quando o rendimento poralqueire (economias de escala da grande plantação) datécnica "adiantada" fosse quase 60% mais elevado que oda técnica "atrasada" (10). O exemplo, ainda que possaparecer isolado, referente a um só município, é válido paraa maior parte da agricultura brasileira de milho, e é maiseloquente por localizar-se em São Paulo, onde presumivel-mente várias condições deveriam favorecer o uso de técnicas"adiantadas". Uma combinação, pois, de oferta elástica demão-de-obra e oferta elástica de terras, reproduz inces-santemente uma acumulação primitiva na agricultura, dandoorigem ao que Ruy Miller Paiva chamou de "mecanismode autocontrole no processo de expansão da melhoria técnicana agricultura" (11).

O modelo descrito anteriormente, ainda que simplifi-cado, tem importantes repercussões, tanto no âmbito dasrelações agricultura-indústria, como ao nível das atividadesagrícolas em si mesmas. Em primeiro lugar, ao impedirque crescessem os custos da produção agrícola em relaçãoà industrial, ele tem um importante papel no custo dereprodução da força de trabalho urbana; em segundo lugar,e pela mesma razão de rebaixamento do custo real daalimentação, ele possibilitou a formação de um proleta-riado rural que serve às culturas comerciais de mercadointerno e externo. No conjunto, o modelo permitiu que osistema deixasse intocadas as bases agrárias da produção,contornando os problemas de distribuição da propriedade —que pareciam críticos no fim dos anos cinquenta — aomesmo tempo que o proletariado rural que se formou nãoganhou estatuto de proletariado: tanto a legislação do tra-balho praticamente não existe no campo como a previdênciasocial não passa de uma utopia; isto é, do ponto de vistadas relações internas à agricultura, o modelo permite adiferenciação produtiva e de produtividade, viabilizadas pela

(10) Dados do estudo realizado por Ettori, O. T., "Aspectos Eco-nômicos da Produção do Milho em São Paulo", recalculados por Paiva,Ruy Miller, "O Mecanismo de Autocontrole no Processo de Expansão daMelhoria Técnica da Agricultura", Revista Brasileira de Economia, AnoXXII, n.º 3, Setembro, 1968.

(11) Paiva, Ruy Miller, op. cit.

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manutenção de baixíssimos padrões do custo de reproduçãoda força de trabalho e portanto do nível de vida da massatrabalhadora rural. Esta é a natureza da conciliação exis-tente entre o crescimento industrial e o crescimento agrí-cola : se é verdade que a criação do "novo mercado" urbano-industrial exigiu um tratamento discriminatório e até con-fiscatório sobre a agricultura, de outro lado é também ver-dade que isso foi compensado até certo ponto pelo fato deque esse crescimento industrial permitiu às atividades agro-pecuárias manterem seu padrão "primitivo", baseado numaalta taxa de exploração da força de trabalho. Ainda mais,é somente a partir da constituição de uma força de tra-balho urbana operária que passou a existir também umoperariado rural em maior escala, o que, do ponto de vistadas culturas comerciais de mercado interno e externo, signi-ficou, sem nenhuma dúvida, reforço à acumulação.

A manutenção, ampliação e combinação do padrão "pri-mitivo" com novas relações de produção no setor agro-pecuário tem, do ponto de vista das repercussões sobre ossetores urbanos, provavelmente maior importância. Elapermitiu um extraordinário crescimento industrial e dosserviços, para o qual contribuiu de duas formas: em pri-meiro lugar, fornecendo os maciços contingentes populacio-nais que iriam formar o "exército de reserva" das cidades,permitindo uma redefinição das relações capital-trabalho,que ampliou as possibilidades da acumulação industrial, naforma já descrita. Em segundo lugar, fornecendo os exce-dentes alimentícios cujo preço era determinado pelo custode reprodução da força de trabalho rural, combinou esseelemento com o próprio volume da oferta de força de tra-balho urbana, para rebaixar o preço desta. Em outraspalavras, o preço de oferta da força de trabalho urbanase compunha basicamente de dois elementos: custo daalimentação (12) — determinado este pelo custo de repro-dução da força de trabalho rural — e custo dos bens eserviços propriamente urbanos; nestes, ponderava fortemen-

(12) E n t r e 1944 e 1965, os pregos de atacado dos gêneros alimen-tícios em geral sobem do í n d i c e 22 ao índice 3.198, enquanto os pregoscorrespondentes dos produtos i n d u s t r i a i s sobem do índice 52 ao índice 5.163,do que se depreende o argumento utilizado acima, rejeitando-se o argumentocontrario, multo da tese cepalina, de que os custos da produção agrícolaobstaculizavam a formação do mercado industrial. Dados da ConjunturaEconômica, citados por Paiva, Ruy Miller, "Reflexões sobre as tendên-cias da produção, da produtividade e dos preços do setor agrícola doB r a s i l " , Revista Brasileira de Economia, Ano XX, ns. 2 e 3, Junho/Setembrode 1966.

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te uma estranha forma de "economia de subsistência" urbana,que se descreverá mais adiante, tudo forçando para baixoo prego de oferta da força de trabalho urbana e, conse-quentemente, os salários reais. Do outro lado, a produti-vidade industrial crescia enormemente, o que, contrapostoao quadro da força de trabalho e ajudado pelo tipo deintervenção estatal descrito, deu margem à enorme acumu-lação industrial das três últimas décadas. Nessa combi-nação é que está a raiz da tendência à concentração darenda na economia brasileira.

O quadro descrito nada tem a ver com a oposiçãoformal de quaisquer setores "atrasado" e "moderno", assimcomo está longe de existir a difundida tese da inelasti-cidade da oferta agrícola, modelo construído a partir darealidade chilena e generalizado para toda a América La-tina pela CEPAL, aplicado ao Brasil, repetida e especial-mente por Celso Furtado. A indústria, como tal, nuncaprecisou do mercado rural como consumidor, ou melhordizendo, nunca precisou de incrementos substantivos domercado rural para viabilizar-se. Não é sem razão que,instalada e promovida ao mesmo tempo que a produção deautomóveis, a produção de tratores engatinhou até agora,não chegando a uma vigésima parte daquela co-irmã; a pro-dução e o consumo de fertilizantes, que têm experimentadoincrementos importantes no último qüinqüênio, é o tipo deinsumo que não altera a relação homem/terra que é abase do modelo "primitivo" da agricultura ou, melhor ainda,intensifica o uso do trabalho. Assim, a orientação da indús-tria foi sempre e principalmente voltada para os mercadosurbanos não apenas por razões de consumo mas, primor-dialmente, porque o modelo de crescimento industrial se-guido é que possibilita adequar o estilo desse desenvolvi-mento com as necessidades da acumulação e da realizaçãoda mais-valia: um crescimento que se dá por concentração,possibilitando o surgimento dos chamados setores de "ponta".Assim, não é simplesmente o fato de que, em termos deprodutividade, os dois setores — agricultura e indústria —estejam distanciando-se, que autoriza a construção do mo-delo dual; por detrás dessa aparente dualidade, existe umaintegração dialética. A agricultura, nesse modelo, cumpreum papel vital para as virtualidades de expansão do sis-tema : seja fornecendo os contingentes de força de trabalho,seja fornecendo os alimentos no esquema já descrito, ela

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tem uma contribuição importante na compatibllização doprocesso de acumulação global da economia. De outraparte, ainda que pouco represente como mercado para aindústria, esta, no seu crescimento, redefine as condiçõesestruturais daquela, introduzindo novas relações de pro-dução no campo, que torna viável a agricultura comercialde consumo interno e externo pela formação de um pro-letariado rural. Longe de um crescente e cumulativo isola-mento, há relações estruturais entre os dois setores queestão na lógica do tipo de expansão capitalista dos últimostrinta anos no Brasil. A tensão entre agricultura e indús-tria no Brasil não se dá ao nível das relações das forçasprodutivas, mas se dá ou se transfere para o nível internodas relações de produção tanto na indústria como na agri-cultura.

A formação do setor industrial é outro dos pontoscríticos do processo. Trata-se, como já se salientou pará-grafos atrás, de tornar a empresa industrial a unidade-chavedo sistema e de criar ou consolidar novos parâmetros,novos preços de mercado, que canalizem e orientem o esforçode acumulação sobre a empresa industrial. Para tanto, oEstado deliberadamente intervirá, nos pontos e nas formassimplificadamente enunciadas anteriormente. A interpre-tação do arranque industrial que se dá pós-anos 30 temsido exageradamente reduzida à chamada "substituição deimportações": a crise cambial encarece os bens até entãoimportados e, no limite, a não-disponibilidade de divisas ea II Guerra Mundial impedem, até do ponto de vista físico,o acesso aos bens importados; isso dá lugar a uma demandacontida ou insatisfeita, que será o horizonte de mercadoestável e seguro para os empresários industriais que, semameaça de competição, podem produzir e vender pro-dutos de qualidade mais baixa que os importados e a preçosmais elevados. Posteriormente, a adoção de uma clarapolítica alfandegária protecionista ampliará as margens depreferência para os produtos de fabricação interna. Nãohá dúvida de que a descrição corresponde, sinteticamente,à forma do processo.

Segundo o modelo dualista cepalino, nessa forma estariaa raiz da formação dos dois polos, o "atrasado" e o "mo-

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derno", e a imposição de formas de consumo sofisticadas (13)

que debilitariam a propensão para poupar de um lado, ede outro, por serem demandas quantitativamente pouco volu-mosas, obrigariam a indústria a superdimensionar suasUnidades, adotar técnicas "capital-intensive" diminuindo omultiplicador do emprego, trabalhar com capacidade ociosae deprimir a relação produto/capital: a longo prazo issoredundaria numa deterioração da taxa de lucro e da taxade inversão e, consequentemente, da taxa de crescimento (14).Já Maria da Conceição Tavares e José Serra (15) demons-traram convincentemente que os supostos dessa construçãonão se sustentam tanto teórica como empiricamente, aindaquando se permaneça no marco conceitual do modelo cepa-lino. A verdade é que do modelo cepalino tanto estãoausentes conceitos como "mais-valia", que são suficientespara explicar como, ainda no caso de serem corretosos supostos cepalinos, sua conclusão unidirecional é equi-vocada, pois podem aumentar a mais-valia relativa eainda a mais-valia absoluta (decréscimo absoluto dos salá-rios reais e não apenas decréscimo relativo). Por outrolado, a rentabilidade ou a taxa de lucro podem aumentarainda quando fisicamente o capital não seja utilizado inte-gralmente: não somente a variável "mais-valia" joga umpapel fundamental nessa possibilidade, como as posiçõesmonopolísticas das empresas, elevando os preços dos pro-dutos.

O estilo de interpretação ao qual se acostumou associara industrialização, tanto na América Latina quanto noBrasil, e que fornece as bases para uma tímida teoria daintegração latinoamericana (16) privilegia de um lado asrelações externas das economias capitalistas da AméricaLatina e, nesse diapasão, transforma a teoria do subdesen-volvimento numa teoria da dependência (17). Parece, assim,que a industrialização substitutiva de importações funda-senuma necessidade do consumo e não numa necessidade da

(13) Este t i p o de argumentação é r a t i f i c a d o por Celso F u r t a d o em"Dependencia Externa e Teoria Econômica", El Trimestre Econômico, Vol.XXXVIII ( 2 ) , n.º 150, 1971, México.

(14) A forma mais completa deste modelo e sua conclusão maisr a d i c a l acham-se formuladas por Celso F u r t a d o em Subdesenvolvimento eestagnação na América Latina, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966.

(15) Op. cit.(16) Ver ILPES, La brecha comercial y la integración latinoamericana,

Siglo XXI, México, 1967.(17) Celso Furtado, "Dependencia Externa y Teoria Económica",

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produção, verbi gratiae, da acumulação; além disso, as for-mas de consumo impostas de fora para dentro parecemnão ter nada que ver com a estrutura de classes, com aforma da distribuição da renda, e são impostas em abstrato:começa-se a produzir bens sofisticados de consumo, e essaprodução é que cria as novas classes, é que conforma opadrão de distribuição da renda, é que "perverte" a orien-tação do processo produtivo, levando no seu paroxismo àrecriação do "atrasado" e do "moderno". No entanto, aexperiência histórica muito próxima de nós encarrega-sede demonstrar exatamente o contrário do que afirma essaversão da teoria do subdesenvolvimento: a Argentina indus-trializou-se, no período 1870-1930, em plena fase de cres-cente integração com a economia capitalista internacional,em regime preponderantemente livre-cambista, em períodosnos quais dispunha de ampla capacidade de importação.A que se deve isto? Simplesmente à razão — que não édifícil reconhecer se não se quer complicar o que é sim-ples — de que a industrialização sempre se dá visando,em primeiro lugar, atender às necessidades da acumulação,e não às do consumo. Concretamente, se existe uma impor-tante massa urbana, força de trabalho industrial e dosserviços, e se é importante manter baixo o custo de repro-dução dessa força de trabalho a fim de não ameaçar ainversão, torna-se inevitável e necessário produzir bensinternos que fazem parte do custo de reprodução da forçade trabalho; o custo de oportunidade entre gastar divisaspara manter a força de trabalho e produzir internamentefavorece sempre a segunda alternativa e não a primeira.No Brasil também foi assim: começou-se a produzir inter-namente em primeiro lugar os bens de consumo não-duráveisdestinados, primordialmente, ao consumo das chamadasclasses populares (possibilidade respaldada, além de tudo,pelo elenco de recursos naturais do pais) e não o inverso,como comumente se pensa. O fato de que o processo tenhadesembocado num modelo concentracionista, que numa se-gunda etapa de expansão vai deslocar o eixo produtivo paraa fabricação de bens de consumo duráveis, não se deve anenhum fetiche ou natureza dos bens, a nenhum "efeito-demonstração", mas à redefinição das relações trabalho-capital, à enorme ampliação do "exército industrial de re-serva", ao aumento da taxa de exploração, às velocidadesdiferenciais de crescimento de salários e produtividade que

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reforçaram a acumulação. Assim, foram as necessidadesda acumulação e não as do consumo que orientaram o pro-cesso de industrialização: a "substituição de importações" éapenas a forma dada pela crise cambial, a condição neces-sária porém não suficiente.

Numa segunda etapa, o processo dirigiu-se à produçãodos bens de consumo duráveis, intermediários e de capital.É possível perceber-se, também, que a orientação decorreumais das necessidades da produção/acumulação que do con-sumo: este é privilegiado sempre ao nível da ideologia"desenvolvimentista" (análise do Grupo CEPAL-BNDE queforneceu as bases para o Plano de Metas do períodoKubitschek), mas é duvidoso que o melhor atendimento aoconsumo fosse mais racionalmente logrado com produtosde qualidade inferior e de preços mais altos. Ainda nonível do discurso dos planos de desenvolvimento é fácilperceber-se que realmente a variável privilegiada ê a dosefeitos interindustriais das novas produções, isto é, a pro-dução e a acumulação. Pouco importa, para a "rationale"da acumulação, que os preços nacionais sejam mais altosque os dos produtos importados: ou melhor, é preciso exata-mente que os preços nacionais sejam mais altos, pois aindaquando eles se transmitam interindustrialmente a outrasproduções e exatamente por isso elevem também a médiados preços dos demais ramos chamados "dinâmicos", doponto de vista da acumulação essa produção pode reali-zar-se porque a redefinição das relações trabalho-capitaldeu lugar à concentração de renda que torna consumíveisos produtos e por sua vez reforça a acumulação, dado quea alta produtividade dos novos ramos em comparação como crescimento dos salários dá um "salto de qualidade",reforçando a tendência à concentração da renda. O queé absolutamente necessário é que os altos preços não setransmitam aos bens que formam parte do custo de re-produção da força de trabalho, o que ameaçaria a acumu-lação. Já os preços dos produtos dos ramos chamados"dinâmicos" podem e até devem ser mais altos comparati-vamente aos importados, porque a realização da acumu-lação que depende deles se realiza interna e não externa-mente. Em outras palavras, somente tem sentido falarem preços competitivos quando se trata de produtos quevão ao mercado externo: para o processo capitalista noBrasil é importante que o custo de produção de café

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soja competitivo internacionalmente, mas nenhuma impor-tância tem o fato de que os automóveis nacionais sejamduas a três vezes mais caros que seus similares estran-geiros (18). Tendo como demanda as classes altas em umadistribuição de renda extremamente desigualitária, a pro-dução nacional de bons de consumo duráveis, dos quaiso automóvel é o arquétipo, encontra mercado e realizasua função na acumulação tornando as unidades e osramos fabris a ela dedicados as unidades-chave do sistema:essas não apenas estão entre as mais rentáveis e maispromissoras do setor industrial, como orientam o perfilda estrutura produtiva. Um raciocínio neoclássico-margi-nalista aconselharia à baixa do preço dos automóveis, porexemplo, baseado no suposto de uma alta elasticidade-rendadaquela demanda: porém, como para o sistema e as em-presas não é o consumo o objetivo, esta manobra apenassignificaria vender mais carros sem repercussão favorávelnos lucros, que poderiam até baixar (19),

O outro termo da equação urbano-industrial são oschamados "serviços", um conjunto heterogêneo de ativi-dades, cuja única homogeneidade consiste na caracterís-tica de não produzirem bens materiais. O papel e a funçãodos serviços numa economia não têm sido matéria muitoatraente para os economistas, a julgar pela literaturaexistente. A obra clássica de Colin Clark, The conditionsof economic progress, sentou as bases do modelo empíricode desagregação do conjunto das atividades econômicasnos três setores, Primário, Secundário e Terciário. Anali-

(18) Outra é a situação quando se t e n t a exportá-los: então énecessário que eles sejam competitivos; dai a razão pela qual o subsídioque o Governo dá, hoje, às exportações de manufaturados situa-se emtorno de 4 0 % do preço FOB. Mas essa exportação é marginal pura aacumulação e, na maioria dos cubos, representa, para a economia global,"queima" da excedente, embora possa ser ótimo negocio para as empresas.

(19) No Brasil, recentemente, assiste-se a uma evolução paradoxaldo ponto de v i s t a da teoria tradicional, na produção de automóveis. AVolkswagen é a única produtora nacional de veículos de passeio que,pelo volume do vendas de um único modelo — o conhecido "Fusca" —poderia beneficiar-se de economias do escala, reduzindo, portanto, o custode produção do seu modelo popular e, segundo a teoria convencional, am-pliando o mercado. A política da Volkswagen tem sido completamente opostaa esse modelo: nos últimos anos, a empresa diversificou sua linha deprodução, passando da produção de um carro popular para mais do «eismodelos diferentes, todos cm linha ascensional de preços, buscando, justa-mente, competir pelo mercado das classes de a l t a s rendas. O modelo maissofisticado da Volkswagen se iguala com os automóveis da linha Opala, daGeneral Motors, carros evidentemente destinados a uma faixa de mercadoque não pode ser chamada de popular. No limite, a Volkswagen terá —se quiser continuar competindo pelo mercado de a l t a s rendas — que mudartotalmente a concepção dos seus veículos, que encontra uma limitação muitoséria na pequena potência do motor, ao contrário dos seus concorrentes nomercado brasileiro, que tendera todos a motores de potência similar aos domercado americano.

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ticamente, o modelo de Clark tem servido de paradigmapara a observação das participações dos três setores noproduto interno bruto, tomando-se a elevação relativa doproduto Secundário (industrial) e do produto Terciário(dos serviços) como sinal de diversificação e desenvolvi-mento econômico. Sem embargo, também tem sido usadoo modelo de Clark num sentido equivocado, qual seja ode confundir as relações formais entre os três setorescom suas relações estruturais, isto é, com o papel quecada um desempenha no conjunto da economia e com opapel interdependente que jogam entre si. O modelo deClark é, repita-se, empírico-formal; ele assinala apenas asformas da divisão social do trabalho e sua aparição se-qüencial. Quando se o utiliza para descrever uma for-mação econômico-social concreta ou um modo de produção,necessário se faz indagar das relações estruturais entreos setores e do papel que cada um cumpre na estru-turação global do modo de produção concreto.

A utilização, em abstrato, do modelo de Clark temlevado, nos modelos analíticos da teoria do subdesenvolvi-mento, a uma interpretação equivocada que forma partedo que se chamou linhas atrás o "modo de produçãosubdesenvolvido": neste, o setor Terciário ou de serviçosestaria representado em termos de participação no pro-duto e no emprego, num "quantum" desproporcional. Emoutras palavras, segundo os teóricos do subdesenvolvimen-to, o setor Terciário tem participações nos agregados refe-ridos que ainda não deveria ter: é "inchado". Uma dascaracterísticas, assim, do "modo de produção subdesen-volvido" é ter um Terciário "inchado", que consome exce-dente e comparece como um peso morto na formação doproduto. Deve-se convir que um certo mecanicismo de inspi-ração marxista também contribuiu para essa formulação:os serviços, nessa vertente teórica, de um modo geral,são "improdutivos", nada agregando de valor ao produtosocial. Essa interpretação distingue os serviços de trans-porte" e comunicações, por exemplo, dos de intermediação:os primeiros ainda seriam produtivos, enquanto os segun-dos, não. Conviria perguntar se a produção de serviçosde intermediação ou de publicidade, por exemplo, nãorepresentam, também, trabalho socialmente necessário paraa reprodução das condições do sistema capitalista, entreas quais a dimensão da dominação se coloca como das

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mais importantes: dificilmente se poderia contestar quenão; ela faz parte, inclusive,, da reprodução da merca-doria que distingue o capitalismo de outros modos deprodução: da mercadoria trabalho.

A discussão anterior serve para introduzir a seguintequestão: como se explica a dimensão do Terciário numaeconomia como a brasileira? Entre 1939 e 1969, a par-ticipação do Terciário no produto interno líquido man-teve-se entre 5 5 % e 53%, enquanto a porcentagem dapopulação economicamente ativa, isto é, da força de tra-balho, saltava de 24% para 38%; o Terciário configura-se,assim, como o setor que mais absorveu os incrementos daforça de trabalho. Tal absorção pode, simplesmente, sercreditada à incapacidade de q setor Primário reter a po-pulação e, por oposição, à impossibilidade dos incrementosserem absorvidos pelo Secundário (indústria) ? (20) A hipó-tese que se assume aqui é radicalmente distinta: o cresci-mento do Terciário, na forma em que se dá, absorvendocrescentemente a força de trabalho, tanto em termosabsolutos como relativos, faz parte do modo de acumulaçãourbano adequado à expansão do sistema capitalista noBrasil; não se está em presença de nenhuma "inchação",nem de nenhum segmento "marginal" da economia. Expli-cita-se o que funda esta interpretação.

Nas condições concretas da expansão do capitalismono Brasil, o crescimento industrial teve que se produzirsobre uma base de acumulação capitalística razoavelmentepobre, já que a agricultura fundava-se, em sua maiorparte, sobre uma "acumulação primitiva". Isso quer dizerque o crescimento anterior à expansão industrial dos pós-anos 30 não somente não acumulava em termos adequa-dos à empresa industrial, como não sentou as bases dainfraestrutura urbana sobre a qual a expansão industrialrepousasse: antes da década de vinte, com exceção doRio de Janeiro, as demais cidades brasileiras, incluindo-senelas São Paulo, não passavam de acanhados burgos, sem

(20) Multa da teorização sobre o Terciário "inchado" é meramenteconjuntural. Foi a relativa desaceleração do incremento da ocupação nai n d ú s t r i a , no intervalo 1950-1960, que forneceu a base empírica da teorização.No entanto, os resultados preliminares do cento demográfico de 1970 i n d i c a mque, no i n t e r v a l o 1960-1970, a t a x a de crescimento da ocupação no setori n d u s t r i a l quase dobrou em relação à década imediatamente a n t e r i o r . Eisto num período em que, evidentemente, a destruição do a r t e s a n a t o peloestabelecimento f a b r i l característico já é i r r e l e v a n t e , tornando mais próximas,portanto, a criação bruta de empregos da criação liquida. Neste caso,como fica a teorização do "inchado"?

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nenhuma preparação para uma industrialização rápida eintensa. Ora, entre os anos 1939 e 1969, a participaçãodo produto do Secundário no produto líquido passa de19 para quase 30%, enquanto a força de trabalho no setorvai de 10 a 18%. Esses dados sintéticos ajudam a darconta da intensidade do crescimento industrial. No pro-cesso de sua expansão, sem contar com magnitudes préviasde acumulação capitalística, o crescimento industrial forço-samente teria que centrar sobre a empresa industrial todaa virtualidade da acumulação propriamente capitalista; semembargo, ela não poderia dar-se sem o apoio de serviçospropriamente urbanos, diferenciados e desligados da uni-dade fabril propriamente dita, as chamadas "economiasexternas". Era tal a carência desses serviços, que a pri-meira onda de industrialização assistiu à tentativa deautarquização das unidades fabris, processo que logo seriasubstituído por uma divisão do trabalho para além dosmuros da fábrica. Logo em seguida, com a continui-dade da expansão industrial, esta vai compatibilizar-se coma ausência de acumulação capitalística prévia, que finan-ciasse a implantação dos serviços, lançando mão dos re-cursos de mão-de-obra, reproduzindo nas cidades um tipode crescimento horizontal, extensivo, de baixíssimos coefi-cientes de capitalização, em que a função de produçãosustenta-se basicamente na abundância de mão-de-obra.Assiste-se, inclusive, a revivescência de formas de pro-dução artesanais, principalmente nos chamados serviços dereparação (oficinas, de todos os tipos). Entre 1940 e 1950,os Serviços de Produção passam de uma participação de9,2% para 10,4%, no emprego total, enquanto os Serviçosdo Consumo Individual mantêm-se praticamente em tornode 6,3%; já os Serviços de Consumo Coletivo tambémexperimentam elevação no emprego total: de 4,2% passama 5,1%. Entre 1950 e 1960, só se dispõe de dados desa-gregados para os Serviços de Produção, que continuam aelevar sua participação no emprego total, desta vez para11,5% e, embora não existam informações desagregadaspara os outros tipos de serviços, é possível pensar queêstes não aumentaram sua participação no emprego total,já que o total para o agregado Terciário mantém-se esta-cionário, quando não declinante (21). Isso quer dizer que,

(21) Ver Singer, Paul, Força de Trabalho e Emprego no Brasil,1920-1969, Caderno 3, Cadernos CEBRAP, São Paulo, 1971. Seráno período 1960-1969 que os Serviços de Consumo Individual superarão osServiços de Produção, na participação no emprego t o t a l : os primeiros

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provavelmente, é o crescimento dos Serviços de Produçãoo maior responsável, nas décadas sob análise, pelo cresci-mento do emprego nos serviços ou no Terciário em geral,crescimento diretamente ligado à expansão das atividadesindustriais.

Em poucas palavras, o fenômeno que existe não é ode uma "inchação" do Terciário. O tamanho deste, numaeconomia como a brasileira, do ponto de vista de suaparticipação no emprego total, é uma questão estreita-mente ligada à acumulação urbano-industrial. A acele-ração do crescimento, cujo epicentro passa a ser a indús-tria, exige, das cidades brasileiras — sedes por excelênciado novo ciclo de expansão — infraestrutura e requeri-mentos em serviços para os quais elas não estavam previa-mente dotadas. A intensidade do crescimento industrial,que em 30 anos passa de 19 para 30% de participação noProduto Bruto, não permitirá uma intensa e simultâneacapitalização nos serviços, sob pena de esses concorreremcom a indústria propriamente dita pelos escassos fundosdisponíveis para a acumulação propriamente capitalística.Tal contradição é resolvida mediante o crescimento não-capitalístico do setor Terciário. Este modelo nada temde parecido com o do Terciário "inchado", embora suadescrição possa coincidir: aqui, trata-se de um tipo' decrescimento para esse setor — o dos serviços em geral —que não é contraditório com a forma de acumulação, quenão é obstáculo à expansão global da economia, que não éconsumidor de excedente. A razão básica pela qual podeser negada a negatividade do crescimento dos serviços —sempre do ponto de vista da acumulação global — é quea aparência de "inchação" esconde um mecanismo funda-mental da acumulação: os serviços realizados à base depura força de trabalho, que é remunerada a níveis baixís-simos, transferem, permanentemente, para as atividadeseconômicas de corte capitalista, uma fração do seu valor,"mais-valia" em síntese (22). Não é estranha a simbioseentre a "moderna" agricultura de frutas, hortaliças e outros

atingirão 1 5 , 3 % enquanto os segundos estarão em 1 8 % (dados do PNAD,3.º t r i m e s t r e de 1969). Isto é, o extraordinário crescimento dos Serviçosde Consumo Individual, tradicionalmente considerados como "depósito" demão-de-obra, se dá exatamente quando o Secundário como um todo e parti-cularmente a indústria recuperam o dinamismo na criação de emprego.

(22) As ortodoxias de todos os tipos certamente experimentarãoengulhos com esta afirmação: a ortodoxia do "inchado", a ortodoxia do"lumpenproletariat", a ortodoxia neomaltusiana, a ortodoxia neoclássica-mar-g i n a l i s t a ; pois uma proposição desse tipo não 6e coaduna com preconceitos

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produtos de granja com o comércio ambulante? (23) Qualé o volume de comércio de certos produtos industrializardos — o grifo é proposital — tais como lâminas de barbear,pentes, produtos de limpeza, instrumentos de corte, e umsem número de pequenos objetos, que é realizado pelocomércio ambulante das ruas centrais de nossas cidades?Qual é a relação que existe entre o aumento da frotade veículos particulares em circulação e os serviços delavagem de automóveis realizados braçalmente? Existealguma incompatibilidade entre o volume crescente da pro-dução automobilística e a multiplicação de pequenas ofici-nas destinadas à re-produção dos veículos? Como explicarque todos os tipos de serviços de consumo pessoal cresçammais exatamente quando a indústria recupera seu dina-mismo na criação de empregos e quando todo um pro-cesso se cristaliza — conforme os resultados do censodemográfico de 70 — numa distribuição da renda maisdesigual? Esses tipos de serviços, longe de serem excres-cências e apenas depósito do "exército industrial de reserva"

são adequados para o processo da acumulação global eda expansão capitalista, e, por seu lado, reforçam a ten-dência à concentração da renda (24).

Ideológicos, nem tampouco com a pobre a r i t m é t i c a que propõe redução dapopulação para aumentar a r e n d a "per capita", nem ainda com a teoriadoa "desvios" na alocação ótima de f a t o r e s , que vê o " p r e t o " da situaçãoatual como um prenúncio das m a n h ã s douradas do amanhã, quando osistema poderá " d i s t r i b u i r " o que hoje tem necessidade de concentrar.

(28) Uma declaração do presidente do Sindicato R u r a l doa Agri-cultores de São Roque, Estado de São Paulo, ao "O Estado de São Paulo",edição de domingo, 19 de março de 1972, explica bem a relação e x i s t e n t e :falando a respeito da c r i s e s u r t i d a na f r u t i c u l t u r a , decorrente de umaexcelente s a f r a e de um fraco movimento de vendas, ele diz: "... foi umgolpe inesperado para o comércio de f r u t a s (a proibição do comércio ambulantepela P r e f e i t u r a de São Paulo) pois os ambulantes s ã o impresoindíveis p a r aa colocação das f r u t a s j u n t o aos consumidores. Sem eles — existem cercade 600 — houve um colapso no sistema de distribuição e os produtorestiveram que arcar com os prejuízos, enquanto o povo ficou sem condiçõesde comprar f r u t a s , apesar do preço "básico". Grifos nossos. Essa liçãoelementar nos diz q u e : os produtores arcaram com os prejuízos, que nãodecorreram dos preços "básicos", mas da ausência física do comércio ambu-lante. Ora, os ambulantes não poderiam aumentar os preços, o quesignifica dizer que os p r e j u í z o s — f r a ç ã o da renda dos produtores que não foirealizada, depende, para sua realização, do trabalho dos ambulantes. Por aíse vê o mecanismo de transferência posto em ação.

(24) Mesmo certos tipos de serviços e s t r i t a m e n t e pessoais, prestadosd i r e t a m e n t e ao consumidor e a t e dentro das familias, podem r e v e l a r umaforma disfarçada de exploração que reforça a acumulação. Serviços que,p a r a serem prestados fora das familias, exigiriam uma i n f r a e s t r u t u r a deq u e as cidades não dispõem e, evidentemente, uma base de acumulaçãocapitalística que não existe. A lavagem de roupas em casa somentepode ser substituída em termos de custos por lavagem i n d u s t r i a l quecompita com os baixos salários p a t o s às empregadas domésticas; o moto-rista p a r t i c u l a r que leva as crianças à escola somente pode s e r s u b s t i t u í d opor um eficiente sistema de t r a n s p o r t e s coletivos que não existe. Comparadocom um americano médio, um b r a s ileiro da classe média, com rendimentosmonetários equivalentes, desfruta de um padrão de vida r e a l mais alto,incluindo-se neste todo o tipo de serviços pessoais ao nível da família,basicamente sustentado na exploração da mão-de-obra, sobretudo feminina.

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Ás cidades são, por definição, a sede da economiaindustrial e de serviços. O crescimento urbano é, portanto,a contrapartida da desruralização do Produto, e, nestesentido, quanto menor a ponderação das atividades agrí-colas no Produto, tanto maior a taxa de urbanização.Portanto, em primeiro lugar, o incremento da urbanizaçãono Brasil obedece à lei do decréscimo da participação daagricultura no produto total. Sem embargo, apenas ocrescimento da participação da indústria ou do setorSecundário como um todo, não seria o responsável pelosaltíssimos incrementos da urbanização no Brasil. Esse fatolevou uma boa parcela dos sociólogos no Brasil e naAmérica Latina a falar de uma urbanização sem indus-trialização e do seu xipófago, uma urbanização com mar-ginalização. Ora, o processo de crescimento das cidadesbrasileiras — para falar apenas do nosso universo — nãopode ser entendido senão dentro de um marco teórico ondeas necessidades da acumulação impõem um crescimentodos serviços horizontalizado, cuja forma aparente é o caosdas cidades. Aqui, uma vez mais é preciso não confundir"anarquia" com caos; o "anárquico" do crescimento urbanonão é "caótico" em relação às necessidades da acumulação:mesmo uma certa fração da acumulação urbana, duranteo longo período de liquidação da economia pré-anos 30,revela formas do que se poderia chamar, audazmente, de"acumulação primitiva". Uma não-insignificante porcenta-gem das residências das classes trabalhadoras foi cons-truída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga,fins de semana e formas de cooperação como o "mutirão".Ora, a habitação, bem resultante dessa operação, se produzpor trabalho não-pago, isto é, supertrabalho. Emboraaparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setorprivado da produção, ele contribui para aumentar a taxade exploração da força de trabalho, pois o seu resultado —a casa — reflete-se numa baixa aparente do custo dereprodução da força de trabalho — de que os gastos comhabitação são um componente importante — e para depri-mir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, umaoperação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticasde "economia natural" dentro das cidades, casa-se admiravel-mente bem com um processo de expansão capitalista, quetem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa explo-ração da força de trabalho.

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O processo descrito, em seus vários níveis e formas,constitui o modo de acumulação global próprio da expansãodo capitalismo no Brasil no pós-anos 30. A evidente desi-gualdade de que se reveste que, para usar a expressãofamosa de Trotsky, é não somente desigual mas combi-nada, é produto antes de uma base capitalística de acumu-lação razoavelmente pobre para sustentar a expansãoindustrial e a conversão da economia pós-anos 30, que daexistência de setores "atrasado" e "moderno". Essa com-binação de desigualdades não é original; em qualquercâmbio de sistemas ou de ciclos, ela é antes uma presençaconstante. A originalidade consistiria talvez em dizer-seque — sem abusar do gosto pelo paradoxo — a expansãodo capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novasno arcaico é reproduzindo relações arcaicas no novo, ummodo de compatibilizar a acumulação global, em que a intro-dução das relações novas no arcaico libera força de trabalhoque suporta a acumulação industrial-urbana e em que a re-produção de relações arcaicas no novo preserva o potencial deacumulação liberado exclusivamente para os fins de expansãodo próprio novo. Essa forma parece absolutamente necessáriaao sistema em sua expressão concreta no Brasil, quando seopera uma transição tão radical de uma situação em que arealização da acumulação dependia quase que integralmentedo setor externo, para uma situação em que será a gravitaçãodo setor interno o ponto crítico da realização, da permanên-cia e da expansão dele mesmo. Nas condições concretasdescritas, o sistema caminhou inexoravelmente para umaconcentração da renda, da propriedade e do poder, em queas próprias medidas de intenção corretiva ou redistributi-vista — como querem alguns — transformaram-se no pesa-delo prometeico da recriação ampliada das tendências quese queria corrigir.

Ao longo das páginas anteriores, algumas questõespermaneceram obscuras. Ainda que se rejeite a demandade "especificidade global" que está implícita na tese do "modode produção subdesenvolvido", é evidente que a históriae o processo da economia brasileira nos pós-anos 30, contêmalguma "especificidade particular"; isto é, a história e oprocesso da economia brasileira podem ser entendidos, demodo geral, como a da expansão de uma economia capi-talista — que é a tese deste ensaio —, mas esta expansãonão repete nem reproduz "ipsis literis" o modelo clássico

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3. UM"INTERMEZZO"PARA

REFLEXÃOPOLÍTICA:REVOLUÇÃOBURGUESA

ACUMULAÇÃOINDUSTRIALNOBRASIL

A

E

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do capitalismo nos paises mais desenvolvidos, nem a estru-tura que é o seu resultado. Incorpora-se aqui, desde logo,a advertência contida em numerosos trabalhos, de nãotomar-se o "classicismo" do modelo ocidental como "regraestrutural".

A aceitação de que se trata da expansão de uma econo-mia capitalista decorre do reconhecimento de que o pós-anos 30 não mudou as relações básicas do sistema doponto de vista de proprietários e não-proprictários dosmeios de produção, isto é, do ponto de vista de compra-dores e vendedores de força de trabalho; o sistema continuatendo por base e norte a realização do lucro. Aqui per-fila-se um ponto essencial da tese: a de que, tomando comoum dado a inserção e a filiação da economia brasileira aosistema capitalista, sua transformação estrutural, nos mol-des do processo pós-anos 30, passa a ser, predominante-mente, uma possibilidade definida dentro dela mesma;isto é, as relações de produção vigentes continham em sia possibilidade de reestruturação global do sistema, apro-fundando a estruturação capitalista, ainda quando o esquemada divisão internacional do trabalho no próprio sistemacapitalista mundial fosse adverso. Nisso reside uma dife-renciação da tese básica da dependência, que somente vêessa possibilidade quando há sincronia entre os movimentosinterno e externo.

Do ponto de vista da articulação interna das forçassociais interessadas na reprodução do capital, há somente umaquestão a ser resolvida: a da substituição das classes pro-prietárias rurais na cúpula da pirâmide do poder pelasnovas classes burguesas empresárias industriais. As classes

trabalhadoras em geral não têm nenhuma possibilidadenesta encruzilhada: inclusive a tentativa de revolução, em1935, refletirá mais um momento da indecisão entre asvelhas e novas classes dominantes que uma possibilidadedeterminada pela força das classes trabalhadoras. Mas,do ponto de vista das relações externas com o resto dosistema capitalista, a situação era completamente oposta.A crise dos anos trinta, em todo o sistema capitalista, criao vazio, mas não a alternativa de rearticulação; em se-guida, a Segunda Guerra Mundial continuará obstaculi-zando essa rearticulação e, não paradoxalmente, reativaráo papel de fornecedor de matérias-primas de economias

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como a do Brasil. O mundo emerge da guerra com umproblema crucial, qual seja o de reconstruir as economiasdos países ex-inimigos, a fim de, entre outras coisas, evitaruma expansão do socialismo nos países já desenvolvidos(este sistema se expandirá exatamente na periferia). Eessa reconstrução não apenas desvia os recursos que, alter-nativamente, numa perspectiva prebischiana, poderiam seraplicados nos países não-industriais do sistema capitalista,como restaura algo da divisão internacional do trabalhodo pré-guerra: a reconstrução das economias devastadasterá a indústria como estratégia central e o comércio demanufaturas entre as nações industriais (25) do sistemaserá a condição de viabilidade da estratégia; aos paísesnão-industriais do sistema continuará cabendo, por muitotempo, dentro dessa divisão do trabalho, o papel de pro-dutor de matérias-primas e produtos agrícolas.

Nessas circunstâncias, a expansão do capitalismo noBrasil repousará, essencialmente, na dialética interna dasforças sociais em pugna; serão as possibilidades de mudançano modo de acumulação, na estrutura do poder e no estilode dominação, as determinantes do processo. No limite,a impossibilidade significará estagnação e reversão à eco-nomia primário-exportadora. Entre essas duas tensões,emerge a revolução burguesa no Brasil. O populismo serásua forma política, e essa é uma das "especificidades par-ticulares" da expansão do sistema.

Ao contrário da revolução burguesa "clássica", a mu-dança das classes proprietárias rurais pelas novas classesburguesas empresárias industriais não exigirá, no Brasil,uma ruptura total do sistema, não apenas por razõesgenéticas, mas por razões estruturais. Aqui, passa-se umacrise nas relações externas com o resto do sistema, enquantono modelo "clássico" a crise é na totalidade da economiae da sociedade. No modelo europeu, a hegemonia das

(25) O Japão tem sido utilizado, extensamente, na l i t e r a t u r a técnica,como um exemplo de país "subdesenvolvido" que ultrapassou essa b a r r e i r a ,no pós-guerra, a t r a v é s de uma industrialização dedicada às exportações.Neste sentido, ele se r r e como paradigma t a n t o p a r a demonstrar a possi-bilidade de Industrialização e desenvolvimento que o sistema capitalistaoferece para os que têm "competência", como para demonstrar um caso"sadio" de crescimento "para fora", expandindo capacidade para i m p o r t a r ,etc. A l i t e r a t u r a apologética do caso Japonês esquece que o J a p ã o pré-guerranão poderia, sob qualquer critério, ser considerado "subdesenvolvido", poisa t é Hiroshima e N a g a s a k i ele se enfrenta, no mesmo nível tecnológico,cora os Estados Unidos, numa guerra convencional (diferentemente da guerrado Vietnam). Além disso, a reconstrução japonesa e e agressiva políticade exportações foram permitidas como o preço que o capitalismo teri a quepagar para a t o perder um i m p o r t a n t e membro do sistema.

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classes proprietárias rurais é total e paralisa qualquerdesenvolvimento das forças produtivas, pelo fato mesmode que as economias "clássicas" não entravam em nenhumsistema que lhes fornecesse os bens de capital que neces-sitavam para sua expansão: ou elas produziriam tais bensde capital ou não haveria expansão do capitalismo, enquantosistema produtor de mercadorias. A ruptura tem que sedar, em todos os níveis e em todos os planos. Aqui, asclasses proprietárias rurais são parcialmente hegemônicas,no sentido de manter o controle das relações externas daeconomia, que lhes propiciava a manutenção do padrão dereprodução do capital adequado para o tipo de economiaprimário-exportadora. Com o colapso das relações exter-nas, essa hegemonia desemboca no vácuo; mas, nem porisso, "ipso facto" entram em ação mecanismos automáticosque produzissem a industrialização por "substituição deimportações". Estavam dadas as condições necessárias,mas não suficientes. A condição suficiente será encontrarum novo modo de acumulação que substitua o acessoexterno da economia primário-exportadora. E, para tanto,é preciso adequar antes as relações de produção. O popu-lismo é a larga operação dessa adequação, que começapor estabelecer a forma da junção do "arcaico" e do"novo", corporativista como se tem assinalado, cujo epicen-tro será a fundação de novas formas de relacionamentoentre o capital e o trabalho, a fim de criar as fontes inter-nas da acumulação. A legislação trabalhista criará ascondições para isso.

Ao mesmo tempo que cria as condições para a acumu-lação necessária para a industrialização, a legislação tra-balhista, no sentido dado por Weffort (26) é a cumieira deum pacto de classes, no qual a nascente burguesia indus-trial usará o apoio das classes trabalhadoras urbanas paraliquidar politicamente as antigas classes proprietáriasrurais; e essa aliança é não somente uma derivação dapressão das massas, mas uma necessidade para a burguesiaindustrial evitar que a economia, após os anos de guerrae com o "boom" dos preços do café e de outras matérias-primas de origem agre-pecuária e extrativa, reverta àsituação pré-anos 30. Assim, inaugura-se um longo pe-

(26) Ver Weffort, Francisco, "Estado e Massas no B r a s i l " , RevistaCivilização Brasileira, Ano I, n.º 7, Maio de 1966. Edit. CivilizaçãoBrasileira, Elo, 1966. Não se concorda, na i n t e r p r e t a ç ã o de Weffort, comnenhum "distributivismo" econômico imputado ao populismo.

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ríodo de convivência entre políticas aparentemente con-traditórias, que de um lado penalizam a produção paraexportação mas procuram manter a capacidade de impor-tação do sistema — dado que são as produções agro-pecuárias as únicas que geram divisas — e de outrodirigem-se inquestionavelmente no sentido de beneficiar aempresa industrial motora da nova expansão. Seu sentidopolítico mais profundo é o de mudar definitivamente aestrutura do poder, passando as novas classes burguesasempresárias industriais à posição de hegemonia. No entan-to, o processo se dá sob condições externas geralmenteadversas — mesmo quando os preços de exportação estãoem alta — e, portanto, um dos seus requisitos estrutu-rais é o de manter as condições de reprodução das ativi-dades agrícolas, não excluindo, portanto, totalmente, asclasses proprietárias rurais nem da estrutura do podernem dos ganhos da expansão do sistema. Como contra-partida, a legislação trabalhista não afetará as relaçõesde produção agrária, preservando um modo de "acumulaçãoprimitiva" extremamente adequado para a expansão global.

Esse "pacto estrutural" preservará modos de acumu-lação distintos entre os setores da economia, mas denenhum modo antagônicos, como pensa o modelo cepalino.Nesta base é que continuará a crescer a população ruralainda que tenha participação declinante no conjunto dapopulação total, e por essa "preservação" é que as formasnitidamente capitalistas de produção não penetram total-mente na área rural, mas, bem ao, contrário, contribuempara a reprodução tipicamente não-capitalista. Assim, dá-seuma primeira "especificidade particular" do modelo bra-sileiro, pois, ao contrário do "clássico", sua progressão nãorequer a destruição completa do antigo modo de acumu-lação. Uma segunda "especificidade particular" é a quese reflete na estruturação da economia industrial-urbana,particularmente nas proporções da participação do Secun-dário e do Terciário na estrutura do emprego, a questãojá discutida da incapacidade ou não do Secundário criarempregos para a absorção da nova força de trabalho ea consequente "inchação" ou adequação do tamanho doTerciário. Em primeiro lugar, conforme já se demonstrou,as variações do incremento do emprego no Secundário são,em boa medida, conjunturais; em segundo lugar, as maio-res taxas de incremento do emprego nos serviços de Con-

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sumo Pessoal — a "inchação" — se dá exatamente quandoo incremento do emprego no Secundário se acelera. Pre-tende-se haver demonstrado que os crescimentos dos doissetores, nas formas em que se deu no período pós-anos 30,revelam condicionamentos estruturais da expansão do capi-talismo no Brasil. Pretende-se aduzir algo em torno da"especificidade particular" em relação ao modelo "clássico".

Convém recuar um pouco na história brasileira paraapanhar um elemento estrutural do modo de produção: oescravismo. Sem pretender refazer toda a interpretação,é possível reconhecer que o escravismo constituía-se emóbice à industrialização na medida em que o custo dereprodução do escravo era um custo interno da produção;a industrialização significará, desde então, a tentativa de"expulsar" o custo de reprodução do escravo do custo deprodução. Em outras palavras, ao contrário do modelo"clássico", que necessitava absorver sua "periferia" de re-lações de produção, o esquema num país como o Brasilnecessitava criar sua "periferia"; neste ponto, o tipo deinserção da economia do país no conjunto da divisão inter-nacional do trabalho do mundo capitalista é decisivo e, por-tanto, faz-se justiça a todas as interpretações — parti-cularmente as de Celso Furtado — que destacaram esseponto. O longo período dessa "expulsão" e dessa "criação",desde a Abolição da Escravatura até os anos 30, decorredo fato de que essa inserção favorecia a manutenção dospadrões "escravocratas" de relações de produção; serásomente uma crise ao nível das forças produtivas queobrigará à mudança do padrão.

As instituições do período pós-anos 30, entre as quaisa legislação do trabalho destaca-se como peça-chave, des-tinam-se a "expulsar" o custo de reprodução da força detrabalho de dentro das empresas industriais (recorde-setodo o padrão da industrialização anterior, quando as em-presas tinham suas próprias vilas operárias: o caso de cida-des como Paulista, em Pernambuco, dependentes por inteiroda fábrica de tecidos) para fora: o salário-mínimo será aobrigação máxima da empresa, que dedicará toda suapotencialidade de acumulação às tarefas do crescimentoda produção propriamente dita. Por outro lado, a indus-trialização, em sendo tardia, se dá num momento em quea acumulação é potencializada pelo fato de se dispor, ao

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nível do sistema mundial como um todo, de uma imensareserva de "trabalho morto" que, sob a forma de tecno-logia, é transferida aos paises que recém se estão indus-trializando. Assim, na verdade o processo de reproduçãodo capital "queima" várias etapas, entre as quais a maisimportante é não precisar esperar que o preço da forçade trabalho se torne suficientemente alto para induzir astransformações tecnológicas que economizam trabalho.Este fator, somado às leis trabalhistas, multiplica a pro-dutividade das inversões; por essa forma, o problema nãoé que o crescimento industrial não crie empregos — questãoaté certo ponto conjuntural — mas que, ao acelerar-se, elepôs em movimento uma espiral que distanciou de modoirrecuperável os rendimentos do capital em relação aos dotrabalho. Seria necessário, para que o preço da força detrabalho crescesse de forma a diminuir a brecha entre osdois tipos de rendimento, uma demanda de força de trabalhovárias vezes superior ao crescimento da oferta. Por outrolado, se é verdade que a compra de equipamentos, v. g., detecnologia acumulada, "queima" etapas da acumulação, elatambém reduz o circuito de realização interna do capital,o que tem, entre outras, a consequência de tornar o efeitomultiplicador real da inversão mais baixo que o efeito po-tencial que seria gerado no caso de uma realização internatotal do capital. É óbvio que um dos multiplicadores afeta-dos neste caso é o do emprego direto e indireto. A razãohistórica da industrialização tardia converte-se numa razãoestrutural, dando ao setor Secundário e à indústria parti-cipações desequilibradas no Produto e na estrutura doemprego.

No que se refere às dimensões do Terciário, é pos-sível reconhecer também razões históricas e outras es-truturais, que explicariam uma "especificidade particular"da expansão capitalista no Brasil. Historicamente, uma in-dustrialização tardia tende a requerer, por oposição, umadivisão social do trabalho tanto mais diferenciada quantomaior for a contemporaneidade das indústrias, isto é, quan-to mais avançada for a tecnologia incorporada. Assim,todos os tipos de serviços contemporâneos da indústria —no nível em que ela se encontra nos países capitalistas ma-duros — passam a ser exigidos; essa exigência choca-secontra a exiguidade inicial — uma razão estrutural — dosfundos disponíveis para acumulação, que devem ser ra-

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teados entre indústria propriamente dita e os serviços. Asolução é encontrada fazendo os serviços crescerem horizon-talmente, sem quase nenhuma capitalização, à base deconcurso quase único da força de trabalho e do talentoorganizatório de milhares de pseudo pequenos proprietá-rios, que na verdade não estão mais que vendendo sua forçade trabalho às unidades principais do sistema, mediadaspor uma falsa propriedade que consiste numa operaçãode pôr fora dos custos internos de produção fabris a par-cela correspondente aos serviços. É possível encontrar, aonível da prática das instituições que modelaram o pro-cesso de acumulação no Brasil, transformadas em crité-rios de prioridades, as razões enunciadas: não existe, emtoda a legislação promocional do desenvolvimento, nemnos critérios de atuação dos diversos organismos governa-mentais, nenhuma disposição que contemple prioritaria-mente a concessão de créditos, a isenção para importaçãode equipamentos, a concessão de incentivos fiscais, as dis-posições de natureza tarifárias, destinadas a elevar a ca-pitalização dos serviços (com a única exceção da EMBRA-TUR, há pouco tempo criada); não apenas a política eco-nômica geral de um largo período, como as disposições con-cretas com que atuam os diversos organismos públicos,sempre consideraram que os serviços podem ser atendidosa níveis de capitalização bastante inferiores à indústria,para o que a oferta abundante de mão-de-obra constituíanão somente garantia mas motivação; isto é, os serviçosnão apenas podiam, como deviam ser implantados apoiando-se na oferta de força de trabalho barata.

Por sua vez, o complexo de relações que moldou aexpansão industrial, estabelecendo desde o início um fossoabismai na distribuição dos ganhos de produtividade entrelucros o salários, pôs em movimento um outro aceleradordo crescimento dos serviços, tanto de produção como osde consumo pessoal. Criou-se, para atender às demandasnascidas da própria expansão industrial, vista do lado daspopulações engajadas nele, isto é, urbanizadas, uma vastagama de serviços espalhados pelas cidades, destinados aoabastecimento das populações dispersas: pequenas mercea-rias, bazares, lojas, oficinas de reparos e "ateliers" deserviços pessoais. Estes são setores que funcionam comosatélites das populações nucleadas nos subúrbios e, por-tanto, atendem a populações de baixo poder aquisitivo:

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por esta forma, os baixos salários dessas populações de-terminam o nível de ganho desses pseudo pequenos pro-prietários (o que pareceria uma operação de criação de"bolsões de subsistência" ao nível das populações de baixopoder aquisitivo); na verdade, o baixo nível desses ganhosrepresentam custos de comercialização dos produtos in-dustrializados e de produtos agropecuários que são postosfora dos custos internos de produção e reforçam a acumu-lação nas unidades centrais do sistema.

Ê possível perceber que o elemento estratégico paradefinir o conjunto das relações na economia como um todopassou a ser o tipo de relação de produção estabelecidoentre o capital e o trabalho na indústria. Mas, longe domodelo "clássico", em que esse elemento estratégico tendea "exportar-se" para o restante da economia, no caso bra-sileiro —, e é possível reconhecê-lo em outros países — aimplantação das novas relações de produção no setor es-tratégico da economia tende, por razões em primeiro lugarhistóricas, que se transformam em razões estruturais, aperpetuar as relações não-capitalistas na agricultura e acriar um padrão não-capitalístico de reprodução e apro-priação do excedente num setor como o dos serviços. A"especificidade particular" de um tal modelo consistiria emreproduzir e criar uma larga "periferia" onde predominampadrões não-capitalísticos de relações de produção, comoforma e meio de sustentação e alimentação do crescimentodos setores estratégicos nitidamente capitalistas, que são alongo prazo a garantia das estruturas de deminação e re-produção do sistema.

Frente ao quadro descrito, o período Kubitschek forçaráa aceleração da acumulação capitalística, com o seu progra-ma de avançar "cinquenta anos em cinco". Do lado da de-finitiva conversão do setor industrial e das suas empresasem unidades-chave do sistema, a implantação dos ramos au-tomobilístico, da construção naval, mecânica pesada, cimen-to, papel e celulose, ao lado da triplicação da capacidade dasiderurgia, orientam a estratégia; por seu lado, o Estado.cumprindo o papel e atuando na forma já descrita, lançar-se-á num vasto programa de construção e melhoramento

(27) Pareceria uma questão até certo ponto secundária e bizantinaa de precisar, no tempo, a inflexão que tomou a economia b r a s i l e i r a , cujasc a r a c t e r í s t i c a s mais salientes se cristalizam a p a r t i r dos anos 67/68. Deum lado, poderia parecer que se quer a t r i b u i r as "bondades" do modeloaos pré-64, roubando aos a t u a i s detentores do poder a " g l ó r i a " de haver

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4. AACELERAÇÃODOPLANODEMETAS:ASPRÉ-CONDIÇÕESDACRISEDE1964 (27)

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da infraestrutura de rodovias, produção de energia elétrica,armazenagem e silos, portos, ao lado de viabilizar o avançoda fronteira agrícola "externa", com obras como Brasíliae a rodovia Belém-Brasília. O Estado opera através deuma estrutura fiscal primitiva e extremamente regressiva,com o que fatalmente incorrerá em deficits crescentes, numacuriosa forma de aumentar até o limite sua dívida internasem mutários credores. Por outro lado, a conjuntra in-ternacional é pouco propícia: numa etapa em que o capi-talismo se está redefinindo, num sentido policentrista, como auge do Mercado Comum Europeu, sua estratégia políticacontinuará metida na "camisa de força" das concepçõesmaniqueistas de Foster Dulles. Dessa forma, a acelera-ção que se tentará movimentar-se-á em assincronia com aestratégia política dos países centrais, do que resultaráquase nenhum financiamento de governo a governo. Nes-tas circunstâncias, recorre-se ao endividamento externoprivado, de prazos curtos, o que acarretará pressões sobrea balança de pagamentos, numa etapa em que a elastici-dade das exportações frente ao crescimento do produto érelativamente nula.

A aceleração do período Kubitschek não pode ser me-nos que exagerada, e suas repercussões pronto se materia-lizariam. O coeficiente de inversão — a relação entre a

alcançado tão notáveis "performances" na t a x a de crescimento global daeconomia; de outro lado, poderia também parecer que se quer a t r i b u i raos pós-64 — especialmente ao movimento m i l i t a r — os evidentes defeitosda e s t r u t u r a e da vida política da nação, assim como as tendências concen-tracionistas da renda e do poder econômico que seriam o lado negativodas excepcionais t a x a s de crescimento logradas. Uma t a l colocação a n t i t é t i c apecaria por demasiado maniqueísmo e cairia num diálogo de surdos, contes-tatório ou apologético, do qual não se saca nada.

For essas razões, a questão tem importância excepcional. Em primeirolugar, uma reflexão elementar obriga a reconhecer que um novo modelaeconômico não se gesta em t r ê s anos — 64/66 — ainda quando esses anostenham sido caracterizados por uma avalanche de modificações i n s t i t u c i o n a i s— leis, decretos, e t c . ; por outro lado, outra reflexão elementar obriga areconhecer que nenhuma modificação i n s t i t u c i o n a l fundamental ter-se-iasustentado se não tivesse b a r e s na e s t r u t u r a produtiva; no seio desta éque deveriam e s t a r atuando as contradições sobre as quais os contendoresde 64 se apoiariam, para desenvolvê-las do ponto de vista dos interesses declasse que cada um representava.

Assim, a explicação que os c i e n t i s t a s políticos t e n t a m dar acerca doc a r á t e r do movimento de 64 e de seus desdobramentos posteriores, sempreserá apenas dedutiva a p a r t i r dos resultado» e da situação a t u a l , masnunca poderá responder até que ponto ela estava predeterminada — dentrode limites mais ou menos amplos — se não se reportarem às modificaçõesna e s t r u t u r a da economia que se operavam desde anos pretéritos. Por isso,inclusive a correta colocação do papel dos m i l i t a r e s se vê sempre prejudicada:estes parecem a t u a r autonomamente, surgem como um "deus ex machina" eas prospeções sobre seu papel são apenas uma grande interrogação. Domesmo modo, M. C. Tavares e José Serra apresentam um quadro de modifi-cações profundas na economia, no qual a tendência à concentração da rendae o dinamismo dos anos recentes, parecem t e r surgido pós-64 por decretos,leis e modificações ins t i t u c i o n a i s de maior ou menor monta. O t r â n s i t o dauma situação a outra, que é talvez o mais importante, fica, assim, relegadoe destituído de qualquer significação.

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formação de capital e o produto bruto — se eleva de umíndice 100 no qüinqüênio anterior para um índice 122 (28),isto é, em cinco anos, a média anual do coeficiente, comparadacom a média anual do qüinqüênio precedente cresce quase 1/4,o que é um esforço digno de nota para qualquer econo-mia. Nas condições descritas no parágrafo anterior, comocompatibilizar esse esforço, como financiá-lo, nos quadros li-mitados da acumulação de base capitalística nacional? (29).A solução correrá por duas vertentes: de um lado, a asso-ciação com o capital estrangeiro, não tanto por sua con-tribuição quantitativa, — a poupança externa nunca pas-sou de uns 5% da poupança total — mas sobretudo pelo for-necimento de tecnologia, isto é, pela acumulação prévia quepodia rapidamente ser incorporada. O Estado não entrouno mercado da tecnologia, comprando "know how" do ex-terior para repassá-lo às empresas nacionais; concreta-mente, no caso brasileiro, os "cinquenta anos em cinco" nãopoderiam ser logrados sem o recurso ao capital estran-geiro (30) — de novo aqui as comparações com o Japão nãolevam em conta a profunda diferença entre a classe em-presarial japonesa e a brasileira, nem as diferenças quan-titativas subjacentes entre os dois processos de industriali-zação, o do Japão com pelo menos setenta anos de acumula-ção nitidamente capitalista — simplesmente pelo fato deque para as indústrias-chave do processo o país não dis-punha da acumulação prévia necessária, isto é, não produziaos bens de capital (incluindo-se processos industriais) quetais indústrias requeriam. Pode-se perguntar também porque a aceleração tinha que ter por base o elenco de indús-trias escolhidas e não outras: se não se quiser cair numa"metafísica dos bens", deve-se reconhecer que há uma es-treita correlação entre a demanda (determinada pela estru-tura da distribuição da renda) e o tipo de bens fabricados,além de que as "necessidades" básicas de consumo das fai-

(28) V. Conjuntura Econômica, "Contas Nacionais do B r a s i l —Atualização", vol. 25, n.º 9, 1971. Quadros 1 e 5.

(29) Essa base capitalística limitada não é c o n t r a d i t ó r i a com atese, exposta em capítulo anterior, do potencial de acumulação que tema economia b r a s i l e i r a . Esse potencial de acumulação, conforme o modelo,pode fi n a n c i a r certas frações i m p o r t a n t e s da acumulação, mediante transfe-rência de excedente, mas não pode operar sua transformação direta emcapital em tecnologia.

(30) O empresariado nacional nunca contemplou e s t a possibilidade decomprar tecnologia ao Estado, como intermediário e n t r e ele e o ca p i t a lestrangeiro. E n t r e qualquer associação com o Estado e com o c a p i t a lestrangeiro, a segunda possibilidade era sempre a preferida. Ver Cardoso,Fernando Henrique, Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico,Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1964.

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xas mais privilegiadas da população (alimentação, vestuário,habitação) já estavam satisfeitas; além dai, qualquer pos-tulação de alternativas de consumo ou de aumento da pro-pensão para poupar não é mais que um puritanismo pura-mente adjetivo que nada tem a ver com a estrutura declasses e de apropriação do excedente típicos da situaçãobrasileira.

Neste ponto, uma reflexão deve ser feita sobre opapel do capital estrangeiro no Brasil e sobre as relaçõesentre um capitalismo que se desenvolve aqui com o capi-talismo internacional. Não há dúvida que a expansão docapitalismo no Brasil é impensável autonomamente, isto é,não haveria capitalismo aqui se não existisse um sistemacapitalista mundial. Não há dúvida, também, que em mui-tas etapas, principalmente na sua fase agrário-exportadora,que é a mais longa de nossa história econômica, a expansãocapitalista no Brasil foi um produto da expansão do capi-talismo em escala internacional, sendo o crescimento daeconomia brasileira mero reflexo daquela. Mas, o enfoqueque se privilegia aqui é o de que, nas transformações queocorrem desde os anos trinta, a expansão capitalista noBrasil foi muito mais o resultado concreto do tipo e do es-tilo da luta de classes interna que um mero reflexo dascondições imperantes no capitalismo mundial. Em outraspalavras, com a crise dos anos trinta, o vácuo produzidotanto poderia ser preenchido com estagnação — como ocorreuem muitos países da América Latina e de outros continentesde capitalismo periférico — como com crescimento; este, quese deu no Brasil, pôde se concretizar porque do ponto de vistadas relações fundamentais entre os atores básicos do pro-cesso, existiam condições estruturais, intrínsecas, que pode-riam alimentar tanto a acumulação como a formação domercado interno. É claro que estavam à disposição nomercado mundial as técnicas e bens de capital necessáriospara que se desse, internamente, o salto em direção à indus-trialização. Mas, o que se quer frisar é que os atores atua-ram deliberadamente em busca de ampliação e consolidaçãode estruturas de dominação capazes de propiciar crescimen-to. É impossível trabalhar com uma variante de "Deus ébrasileiro", "Mão da Providência" de corte smithiano, me-diante a qual se reconheceria que o processo de crescimentocapitalista no Brasil é o resultado inintencional de açõesdesconexas, uma racionalidade ex post do irracional. Um

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pouco de história econômica ajudará a reconhecer que aestrutura central, a espinha dorsal dos atos de políticaeconômica que levaram à industrialização foi pensada parater como resultado exatamente a industrialização que selogrou; pouco importa, para tanto, reconhecer que o Planode Metas do Governo Kubitschek estava muito longe dequalquer tipo de planejamento acabado: o importante é re-conhecer que os meios e os fins objetivados não apenaseram coerentes entre si, como foram logrados. Prioridadepara indústrias automobilísticas, de construção naval, side-rurgia, reforma da legislação tarifária, concessão de câmbiode custo para importações de equipamentos, não podem serentendidas como acaso, nem medidas tópicas para equili-brar o balanço de pagamentos, que deram como resultadoa aceleração da industrialização. Ao contrário, elas foramconcebidas exatamente para isso.

O importante para a tese que aqui se esposa é quetais medidas foram concebidas internamente pelas classesdirigentes como medidas destinadas a ampliar e expandira hegemonia destas na economia brasileira; para tanto, oprocesso de reprodução do capital que viabilizava aquelesdesideratos exigia uma aceleração da acumulação que con-cretamente tomava as formas do elenco de indústrias priori-tárias. Vale a pena enfatizar, ainda, que a conjuntura inter-nacional era inteiramente desfavorável às medidas internas.Tomando-se, por exemplo, os países ou as empresas interna-cionais que concorreram à execução do Plano de Metas,verifica-se que a participação inicial' de empresas do paíscapitalista hegemônico — os Estados Unidos — era irrisória:elas não estiveram presentes na indústria de construção na-val, que se montou com capitais japoneses, holandeses e bra-sileiros, na indústria siderúrgica, que se montou basicamentecom capitais nacionais estatais (BNDE) e japoneses (Usimi-mas), nem sequer tinham participação relevante na própriaindústria automobilística, que se montou com capitais ale-mães (Volkswagen), franceses (Simca), e nacionais (DKW,Mercedes-Benz); as empresas norte-americanas que já esta-vam aqui desde há muito, como a General Motors e a Ford,não se interessaram pela produção de automóveis de passeiosenão depois de 1964, e a empresa americana que veio paraaqui, a Willys-Overland, era não somente uma empresamarginal na produção automobilística dos Estados Unidos,como basicamente montou-se com capital nacional, público

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(do BNDE) e privado (através do lançamento de açõesao público e associação com grupos nacionais como o Mon-teiro Aranha). A posição do capitalismo internacional, prin-cipalmente a do capitalismo do pais hegemônico, era, muitoao contrário, amarrada à antiga divisão internacional dotrabalho, em que o Brasil comparecia como produtor debens primários de exportação. Assim, é difícil reconheceruma estratégia do capitalismo internacional em relação àaceleração da industrialização brasileira; foi nas brechas dopolicentrismo, com a reemergência dos países do MercadoComum Europeu e a do Japão, que a estratégia nacionalencontrou viabilidade.

O recorrer ao concurso do capital estrangeiro acres-centará novas forças ao processo de acumulação, ao mesmotempo que coloca, no longo prazo, novos problemas para acontinuidade da expansão. Em primeiro lugar, incorporando-se rapidamente uma tecnologia mais avançada, a produ-tividade dará enormes saltos, principalmente se essa incor-poração se dá em condições das relações de produçãoque potencialmente já eram, de per si, concentradoras:sobre um mercado de trabalho marcado pelo custoirrisório da força de trabalho, os ganhos de produtividadelogrados com a nova tecnologia vão acelerar ainda maiso processo de concentração da renda. A acumulação dá, aí,um salto de qualidade: a mera transferência de tecnologia,isto é, trabalho morto externo, potencializa enormemente areprodução do capital. Sem essa incorporação, não se podiapensar no crescimento da economia nos anos posteriores.Neste sentido, ela era absolutamente indispensável ao pro-cesso de reprodução do capital, pois a pobre base de acumu-lação nitidamente capitalística da economia brasileira nãopoderia realizar essa tarefa; pode-se pensar que, assimcomo o Estado atuou deliberadamente no sentido de pri-vilegiar o capital, poderia ter atuado transferindo tecnolo-gia para as empresas de capital nacional. Tal não ocorreu,mas uma explicação meramente ex post não é suficientepara esgotar o assunto. É preciso pensar que a figura deum Estado onipresente nunca foi pensada, nem era daperspectiva ideológica do empresariado industrial nacional.Não se encontra nos atos de política econômica de todo operíodo pós-anos 30 nenhuma disposição tendente a propi-ciar a transferência de tecnologia para empresas nacionaisque tivesse a intermediação do Estado. Inclusive a política

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científica e tecnológica de instituições como as universida-des eram completamente desligadas da problemática maisimediata da acumulação de capital.

Como se coloca, então, o problema do grau de nacio-lidade ou do controle da nova estrutura de produção? Éinegável que se o capital estrangeiro entrou sobretudo nosramos chamados "dinâmicos" e, se esses ramos são os mo-tores da expansão, o capital estrangeiro de certo modo"controla" o processo dessa expansão; por oposição, o ca-pital nacional "controla" menos a economia brasileira quehá vinte anos atrás. Assim, o grau de controle corresponde,em linhas gerais, à possibilidade que tanto um como outrocapital têm de inovar a reprodução; sem embargo, está-se muito longe do que se poderia caracterizar como "des-nacionalização do processo de tomada de decisões": no fundo,as decisões são tomadas tendo em vista, em primeiro lugar,o processo interno de reprodução do capital, e as políticasdas empresas tentam extrair dessa diretriz básica a com-patibilidade com seus respectivos processos de reproduçãodo capital ao nível dos seus conjuntos supranacionais. Atémesmo porque com o dinamismo logrado, qualquer políticade empresa que não se compatibilize com a diretriz maisgeral pode significar perda de mercado ou de participaçãonas decisões cruciais sobre o crescimento da economia.

A outra vertente pela qual correrá o esforço de acumu-lação é a do aumento da taxa de exploração da força detrabalho, que fornecerá os excedentes internos para aacumulação. A intensa mobilidade social do período obscure-ce a significação desse fato, pois comumente tem sido, iden-tificada com melhoria das condições de vida das massastrabalhadoras, que ao fazerem-se urbanas comparativamenteà sua extração rural, estariam melhorando. Não há dúvidaque o resultado desta comparação é correto, mas ela nãodiz nada no que respeita às relações salário real-custo dereprodução urbano da força de trabalho, que é a compara-ção pertinente para a compreensão do processo, nem tam-

pouco às relações salário real-produtividade, parâmetro esteque no período começa a crescer, em termos reais: o dife-rencial entre salário real-produtividade constitui parte dofinanciamento da acumulação.

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Encontra alguma sustentação empírica o crescente di-ferencial entre salário real e produtividade? O comporta-mento do salário-mínimo real na Guanabara e em SãoPaulo, os dois maiores centros industriais do país, experi-mentou uma evolução que se expressa no quadro seguinte:

QUADRO I

SALÁRIO-MÍNIMO REAL — GUANABARA E SÃO PAULO

ANO

1944194519461947194819491950195119521953195419551956195719581959196019611962196319641965196619671968

ÍNDICES(BASE — 1944 = 100)Guanabara

10084,274,160,758,055,450,953,6

122,3107,1144,6142,9150,9159,8140,2106,3140,2161,6137,5128,6124,9119,6107,1104,5103,6

São Paulo

10080,370,953,849,650,447,953,0

124,8101,7138,3139,3147,0153,8133,3101,7130,8146,2123,9114,5116,3112,897,495,794,0

VARIAÇÃO ANUAL

Guanabara

— 15,8— 12,0— 18,1— 4,4— 4,5— 8,1+ 5,3+ 128,2— 12,4+ 35,0— 1,2+ 5,6+ 5,9— 12,3— 14,2+ 13,2+ 15,3— 15,0— 6,5— 2,1— 5,0— 10,7— 2,4— 0,9

São Paulo

— 19,7— 11,7— 24,1— 17,8+ 1,6— 5,0+ 10,6+ 135,5— 18,5+ 36,0+ 0,7+ 5,5+ 4,6— 13,3— 23,7+ 28,6+ 11,8— 15,3— 7,6+ 1,6— 3,0— 13,7— 1,7— 1,8

Tomado de: Alberto Mello e Souza, "Efeitos Econômicos do Salário-Mínimo", In APEC — A Economia Brasileira e suas Perspectivas, EstudosAPEC, APEC Editora S. A., Rio, ju l h o de 1971.

FONTE dos Dados Originais: Anuário E s t a t í s t i c o do Brasil e ConjunturaEconômica.

É fácil a constatação, em primeiro lugar, de que 25 anosde intenso crescimento industrial não foram capazes deelevar a remuneração real dos trabalhadores urbanos (poisdos dados sob análise excluem-se os trabalhadores ru-rias, os funcionários públicos e os autônomos), sendo queno Estado mais industrializado, o nível do salário mínimo

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real em 1968 era ainda mais baixo que em 1964! Alémdisso, pode-se perceber claramente três fases no compor-tamento do salário-mínimo real: a primeira, entre os anos1944 e 1951, reduz pela metade o poder aquisitivo do sa-lário; a segunda, entre os anos 1952 e 1957, mostra re-cuperações e declínios alternando-se na medida do poderpolítico dos trabalhadores: é a fase do segundo GovernoVargas, que se prolonga até o primeiro ano do GovernoKubitschek; a terceira, iniciando-se no ano 1958, émarcada pela deterioração do salário-mínimo real, numatendência que se agrava pós-anos 64, com apenas um anode reação, em 1961, que coincide com o início do GovernoGoulart. Interessante no quadro é verificar que os índicesdo Estado de São Paulo estão sempre abaixo dos cor-respondentes à Guanabara. Difícil é não se tirar a con-clusão de que a característica geral do período é ade aumento da taxa de exploração do trabalho, a qual foicontrarrestada apenas quando o poder político dos traba-lhadores pesou decisivamente. Em outras palavras, seriaingênuo pensar, como o fazem os adeptos da "teoria dobolo", que os trabalhadores devem primeiro esperar queo "bolo" cresça para reinvidicar melhor fatia: nos vintee cinco anos decorridos o "bolo", isto é, o produto bruto,cresceu sempre, interrompido apenas pela recessão 62-66,enquanto a fatia dos trabalhadores decrescia.

Poder-se-ia argumentar que a parcela dos trabalhado-res incluídos no salário-mínimo é insignificante em re-lação à força de trabalho total, o que significaria dizerque a evolução demonstrada não é representativa da situa-ção da classe trabalhadora urbana. A mesma fonte (81) aju-dará a desfazer essa outra ilusão: até 1967, 36,3% do totalde empregados urbanos registrados no Brasil estavam in-cluídos na faixa de remuneração de 1 salário-mínimo, entretrabalhadores na indústria, no comércio e nos serviços;essa porcentagem variava de um mínimo de 28% para oRio Grande do Sul, passando por São Paulo com 30,6%,até Minas Gerais com o máximo de 50%. Mais grave, noentanto, para os que pensam que a indústria remuneramelhor sua força de trabalho é que, para o Brasil comoum todo, 67,5% dos que recebiam salário-mínimo eram tra-balhadores industriais, sendo que em São Paulo essa por-centagem se elevava para 7 1 % atingindo seu máximo no

(31) Alberto Mello e Souza, op. cit., Q u a d r o I e I I .

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Rio Grande do Sul, onde 82% dos trabalhadores indus-triais recebiam salário-mínimo, estando a Guanabara abai-xo da média nacional, com 53%. Avançando na aberturados olhos dos "otimistas", pode-se prosseguir demonstran-do que, se se considera as faixas que incluem trabalhado-res até 2 salários-mínimos, a situação seria a seguinte:em 1967, 75% dos trabalhadores urbanos registrados noBrasil recebiam remuneração dentro dessa faixa, sendoa porcentagem máxima em Pernambuco com 79% e a mí-nima na Guanabara com 70,5%; São Paulo tinha 7 1 % dostrabalhadores urbanos registrados percebendo até 2 salá-rios mínimos. Assim, o leque da remuneração dos traba-lhadores urbanos não é um leque, mas um pobre galhocom apenas dois ramos. Isto quer dizer, conforme já seenfatizou em item anterior deste trabalho, que o papelda institucionalização do salário-mínimo reveste um signi-ficado importantíssimo para a acumulação do setor ur-bano-industrial da economia: ela evita, precisamente aocontrário do que supõem alguns, o aparecimento no mer-cado de trabalho da escassez específica que tenderia aelevar o salário de algumas categorias, pela adoção deuma regra geral de excesso global. Em outras palavras,a fixação dos demais salários, acima do mínimo, se fazsempre tomando a este como o ponto de referência enunca tomando a produtividade de cada ramo industrialou de cada setor como o parâmetro que, contraposto àescassez específica, servisse para determinar o preço daforça de trabalho. A institucionalização do salário-mínimofaz concreta, ao nível de cada empresa, a mediação globalque o mesmo desempenha ao nível da economia como umtodo: nenhuma empresa necessita determinar o preço deoferta da força de trabalho específica do seu ramo, pois talpreço é determinado para o conjunto do sistema.

A implantação dos novos ramos industriais, os cha-mados ramos "dinâmicos", não altera em muito esse qua-dro. Uma pesquisa efetuada no Município de São Cae-tano do Sul (32), que faz parte da área metropolitana deSão Paulo, revelou, à base de dados do SENAI para 1968,que embora os ramos "dinâmicos" da classificação doSENAI sejam os que mais empregam mão-de-obra qua-lificada (artífices, mestres, técnicos e engenheiros) numa

(32) Ver GPI, Estudo Preliminar para o Planejamento Integrado doMunicípio de São Caetano do Sul, São Paulo, 1968, Quadro 20.

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proporção de 32% do número de empregados, a porcen-tagem dos não-qualificados (trabalhadores braçais) e ades-trados (semiqualificados) é de 50% sobre o mesmo total;tomando-se apenas o nível "braçal" (não-qualificados), osramos "dinâmicos" não diferem muito dos chamados "in-termediários" e "tradicionais": aqueles tinham 1 1 % de suaforça de trabalho como "braçais", enquanto os seguintestinham 15 e 13%, respectivamente. Isto significaria dizerque as indústrias "dinâmicas" não podendo, até certo pon-to, quebrar a "função técnica de produção", para tantonecessitando de pessoal qualificado, utilizam, imediatamen-te após satisfazer aquele requisito, abundantemente, mão-de-obra semi e não-qualificada, em proporções semelhan-tes às indústrias consideradas tradicionais, servindo-se, as-sim, do imenso "exército industrial de reserva" para osfins da acumulação. Compatibilizam, dessa forma, os re-quisitos da "função técnica de produção", relativamenterígida, com a oferta de fatores na economia e realizam,assim, uma "performance" do ponto de vista da acumula-ção mais satisfatória que as "tradicionais". O emprego demenores de idade constitui outra forma da "compatibiliza-ção" aludida: a mesma pesquisa em São Caetano revelouque as indústrias "dinâmicas" empregavam 5,5% de me-nores em seu total de empregados, enquanto as "interme-diárias" e as "tradicionais" o faziam em procentagens cor-respondentes a 10,8% e 7,8%, respectivamente. Uma pes-quisa do DIEESE, realizada em 1971, constatava que noramo químico do Estado de São Paulo, "moderno" e "di-nâmico" portanto, o grupo de trabalhadores menores de16 anos constituía 3,5% do total de trabalhadores quími-cos, porcentagem que se eleva a 15,9% se se somam aesses os trabalhadores entre 16 e 20 anos.

Sendo essa a situação do ponto de vista do crescimen-to dos salários reais da classe trabalhadora, é importantecontrapor a evolução da produtividade no setor industrialda economia, com o fim de verificar-se se a hipótese daconjugação da aceleração dos anos cinquenta com a in-tensificação da taxa de exploração do trabalho tem algoque ver com as pré-condições da crise de 1964. Os dadosdisponíveis, em primeiro lugar, para o pais como um todo,revelam que o índice do produto real da indústria, isto é,o índice que mostra o crescimento em termos reais, de-

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flacionados, com uma base de 1949 = 100, teve o seguintecomportamento:

Ano

194719481949195019511952195319541955

Índice

81,590,7

100,0111,3118,4124,3135,1146,8162,4

Variaçãos/ano

anterior

+ 11,3+ 10,0+ 11,3+ 6,4+ 5,0+ 8,7+ 8,7+ 10,6

Ano

195619571958195919601961196219631964

Índice

173,6183,5213,2238,5261,4289,2311,8312,4328,5

Variaçãos/ano

anterior+ 6,9+ 5,7+ 16,2+ 11,9+ 9,6+ 10,6+ 8,0+ 0,2+ 5,2

F o n t e : Conjuntura Econômica, Vol. 25, n.º 9, 1971. Quadro 11.

A não ser no ano 1963, quando a economia já entravaem crise, o crescimento do produto real do setor industrialsuperou sempre e largamente a taxa de absorção de mão-de-obra pela indústria, e, comparativamente à evolução dosalário-mínimo real em São Paulo e Guanabara, constata-se perfeitamente um crescente diferencial entre as duasvariáveis. Além disso, o crescimento do produto real seacelera precisamente no período Kubitschek, quando passade um crescimento médio de 8,1% no qüinqüênio 1963/57para um crescimento médio de 11,2%, isto é, elevando-secerca de 38% em relação ao período imediatamente ante-rior (33). Já se constatou que o coeficiente de inversão noperíodo também se elevou extraordinariamente, cerca de22% em relação ao qüinqüênio imediatamente anterior. Ocrescimento do produto real da indústria foi, assim, maisque proporcional ao crescimento da inversão, sendo explica-do o diferencial entre as duas variáveis exatamente pelamaior produtividade das novas inversões e pelo aumentoda taxa de exploração da força de trabalho. A assimetriados movimentos revela que o diferencial de produtividadesobre os salários constituiu-se em fator importante naacumulação e, ainda mais, que a aceleração do crescimento

(33) É Interessante verificar, de passagem, que o período Kubitschekvai r e e d i t a r as taxas de crescimento do produto r e a l da i n d ú s t r i a doperíodo 1947/51, Governo Dutra, marcado este também por um aumentoda taxa de exploração da força de trabalho — o salário mínimo real,relembre-se, em 1951 era praticamente a metade do do ano 1944, e entre1947 e 1951 havia se reduzido em cerca de 1 2 % — e movido tambémpor um salto de qualidade na produtividade da i n d ú s t r i a , que se reequipavana pós-guerra.

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industrial com a implantação dos chamados ramos "dinâ-micos" fundou-se exatamente na profundização daquela as-simetria. Em outras palavras, para enfatizar uma con-clusão pré-esboçada, a aceleração da inversão a partir doperíodo Kubitschek, fundada numa base capitalística in-terna pobre e nas condições internacionais descritas, re-queria, para sua viabilização, um aumento na taxa de ex-ploração da força de trabalho.

A aceleração mencionada afetará profundamente a re-lação salário real-custo de reprodução da força de trabalhourbana. No período de liquidação da economia pré-anos 30esse conflito ou a equivalência desta relação foi asseguradade um lado pela contribuição que a agricultura "primitiva"dava ao abastecimento das cidades e de outro pela repro-dução nos contextos urbanos de certas formas de "econo-mia de subsistência", das quais a construção da casa pró-pria constituía importante parcela daquele custo. Semembargo, a relação começa a desequilibrar-se no sentido deum salário real que não chegava a cobrir o custo de re-produção da FT, simplesmente pelo fato de que, não so-mente à medida que o tempo passa, mas à medida que aurbanização avança, à medida que as novas leis de mer-cado se impõem, o custo de reprodução da FT urbanapassa a ter componentes cada vez mais urbanos: isto é,o custo de reprodução da FT também se mercantiliza eindustrializa. Em termos concretos, o transporte, por exem-plo, não pode ser resolvido pelo trabalhador senão pelosmeios institucionalizados e mercantilizados que a sociedadeoferece, a energia elétrica que ele e sua família utilizamtambém não comporta soluções "primitivas", a educação, asaúde, enfim, todos os componentes do custo de reproduçãose institucionalizam, se industrializam, se transformam emmercadorias; o consumo de certos produtos também passa,necessariamente, pelo mercado, e ainda quando certa visãoromântica do trabalhador ou do operário queiram exigirdestes a resistência ao consumismo, esta é uma ideologia"blasé", que terminaria por produzir o monstro de umacultura ou subcultura operária: nas condições concretasdo sistema capitalista, para não falar em direitos, tanto asclasses médias como as classes trabalhadoras têm "neces-sidade" de consumir e de utilizar os novos meios técnicos,culturais, para sua reprodução; a este respeito, as diferen-ças existentes são diferenças de renda; se o consumismo é o

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novo fetiche e a nova forma de alienação, pedir à classeoperária que desmitifique o fetiche sem ela estar no poderé como pedir "peras ao olmo". Esta digressão serve paraenfatizar a mudança que ocorria e não se refletia nos sa-lários reais ou no preço da força de trabalho, a qual sesustentava nas duas vertentes já assinaladas. Na medidaem que o custo de reprodução da força de trabalho urbanase desruralizava e, por oposição, se industrializava, o dese-quilíbrio começou a agravar-se.

Uma medida indireta do desequilíbrio assinalado é dada,por exemplo, pelas relações de preços entre os produtosagrícolas e os produtos industriais, com uma evolução des-favorável à agricultura (34). Ora, o custo de reproduçãoda força de trabalho urbano tinha no custo dos produtosagrícolas um importante componente; elevando-se maisrapidamente que esses, os preços dos produtos industriaistransmitiam-lhes inflação, o que provocava erosão no salá-rio real e elevação do custo de reprodução da força detrabalho. Por outro lado, a própria elevação dos preçosdos produtos industriais elevava o custo dos componentesindustrializados que já faziam parte da "cesta" básica deconsumo das classes trabalhadoras urbanas. Esse duplomovimento aumentava o custo de reprodução da força detrabalho urbano e ao mesmo tempo erodia os salários reais.Tem-se aí um aumento da taxa de exploração do trabalho,sem necessidade de que esse aumento fosse ostensivamentedirigido no sentido de rebaixamento dos salários nominais,objetivo que não se podia impor a coligação de forçaspolíticas do período Kubitschek e dos períodos Jânio Qua-dros e João Goulart, que repousava exatamente na cha-mada aliança populista. Tomando-se os dados do quadro 1,é possível verificar-se que no período 1957/62, a soma dasvariações anuais positivas no salário mínimo real da Gua-nabara e Estado de São Paulo é sempre menor que a somadas variações anuais negativas, o que quer dizer que noperíodo, longe de ter havido melhoria, houve de fato dete-rioração do salário real.

Um argumento que se poderia opor ao anterior é ocomumente usado pelos monetaristas e pelos autores daspolíticas econômicas pós-64, e esgrime o fato de queo Estado subsidiava os preços dos transportes, da energia,

(34) O seguinte quadro Ilustra o fenômeno d e s c r i t o :

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do combustível, do trigo, uma das características, segundoessa linha de argumentação, que comprovam o caráterpaternalista e redistributivista dos regimes populistas. Afraqueza do argumento reside em que o subsídio não eradado diretamente ao consumidor, mas mediado pelo aparatoprodutivo, isto é, pelas empresas; tais subsídios não pode-riam representar, pois, nenhuma carga para as empresas,nem ameaçavam a acumulação destas. Do lado das famí-lias, o subsídio era erosionado pela própria inflação quearrancava, por meio de uma estrutura tributária altamenteregressiva, os recursos que o próprio Estado utilizava parasubsidiar: difícil é, nestas condições, reconhecer um painos regimes populistas ou fácil será reconhecer um paifreudiano. De um lado, rendas fixas, de outro, rendasvariáveis: qualquer economista sabe, nestas condições, aquem beneficia a inflação.

ESTADO DE SÃO PAULO

RELAÇÕES ENTRE PREÇOS DOS PRODUTOS INDUSTRIAISE PREÇOS DE ALGUNS PRODUTOS AGRÍCOLAS

1959 E 1969

ProdutosAgrícolas

ProdutosIndustriais

Superfosfato de cálciosimples

Cloreto de potássioSulfato de amônioTratorArado de 3 discosAdubadeiraGrade de 28 discosPulverisadorArado de 1 aiveca

Arroz

1959

0,33

0,670,5930,453,110,233,310,310,23

1968

0,43

0,560,5642,983,990,323,470,440,22

Feijão

1959

0,15

0,300,26

13,541,380,101,690,140,10

1968

0,36

0,470,4736,393,380,272,940,370,18

Milho

1959

0,66

1,321,1660,006,130,457,500,610,45

1968

1,08

1,421,42

100,4810,180,828,851,110,55

F o n t e s : a) 1968: Centro de Estudos Agrícolas, IBRE/FGV.b) 1059: Agricultura em São Paulo — janeiro de 1960 e janeiro/fevereiro

de 1966; Copercotla, Lista de Preços n.º 22-30/IV/1959; e, Anuário E s t a t í s -tico do Brasil, IBGE, 1960.

Tomado de: Conjuntura Econômica, "Balanço de uma década", vol. 24,n.º 1, 1970. F.G.V., Rio, pág. 12, Quadro X I I .

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A crise que se gesta, pois, a partir do períodoKubitschek, que se acelera nos anos 1961/63 e que culminaem 1964, não é totalmente uma crise clássica de reali-zação; ela tem mais de uma conotação. Para alguns ramosindustriais dependentes da demanda das classes do rendamais baixas, há uma crise de realização, motivada mesmopela deterioração dos salários reais das classes trabalha-doras urbanas, já assinalada é o caso dos ramos têxteis,vestuário, calçados, alimentação, que desde então acusamfracos crescimentos, atribuído na maioria das análises con-vencionais ao caráter pouco dinâmico, "tradicional", detais ramos, cujos produtos teriam baixas elasticidades-rendade demanda. De passagem, deve ser dito que esse tipode análise confunde a "nuvem com Juno", pois na verdadeo fraco crescimento de tais ramos deriva do caráter con-centracionista do processo da expansão capitalista no Brasile não do "caráter" dos ramos referidos. Já o consumo dosbens produzidos principalmente pelos novos ramos industriais,bens duráveis de consumo (automóveis, eletrodomésticos emgeral) era assegurado pelo mesmo caráter concentracionista,que se gesta a partir da redefinição das relações trabalho-capital e pela criação, como requerimentos da matriz técnica-institucional da produção, das novas ocupações, típicas daclasse média, que vão ser necessárias para a nova estruturaprodutiva. Essas novas ocupações não são artificiais, nemconstituem a "inchação" de "White collars" que correspon-deria à "inchação" dos "marginais": ambas fazem parte deum "continuum" estrutural, que tem numa das pontas oTerciário de baixa produtividade e noutra o Terciário de altaprodutividade. Além do mais, existe toda a gama de técnicos,engenheiros, analistas, executivos, empregados diretamentenas tarefas produtivas, que compõem o quadro das classesmédias. Estas têm uma participação na renda total queem parte deriva da escassez específica desse tipo de mão-de-obra, o que lhes eleva os salários e, em parte, da suaprópria posição na escala social global. O incremento maisrápido das rendas dessas novas classes médias é um fatoanterior a 1964 (35) e não decorre, simplesmente, de uma

(35) A pesquisa já referida sobre o Município de São Caetanodo Sul mostrou que enquanto o salário real médio por operário empregadona i n d ú s t r i a do Município, entre 1950 e 1962, cresceu 2 3 , 5 % , a mesmamédia pura os funcionários administrativos e não-operários havia crescido7 5 % . GPI, op. cit. São Caetano é mais que representativo do crescimentoi n d u s t r i a l dos novos ramos i n d u s t r i a i s .

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estratégia pós-64, embora seja evidente que tenha seaprofundado desde então (36).

A crise que se gesta, repita-se, vai se dar ao nível dasrelações de produção da base urbano-industrial, tendo comocausa a assimetria da distribuição dos ganhos da produtivi-dade e da expansão do sistema. Ela decorre da elevação àcondição de contradição política principal da assimetria assi-nalada: serão as massas trabalhadoras urbanas que denun-ciarão o pacto populista, já que sob ele, não somente nãoparticipavam dos ganhos, como viam deteriorar-se o próprionível de participação na renda nacional que já haviamalcançado. A Pesquisa de Padrão de Vida da Classe Tra-balhadora da Cidade de São Paulo, empreendida pelo Depar-tamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Eco-nômicos — DIEESE — em 1969, chegou à conclusão de queentre 1958 e 1969, houve uma redução no salário real dochefe de família trabalhadora-tipo de 39,3%, enquanto arenda real total da família havia caído 10% no mesmoperíodo; para lograr o precário equilíbrio de uma rendareal 10% abaixo do nível de 1958, a família trabalhadora-tipohavia duplicado a força de trabalho empregada: de 1 mem-bro ocupado em 1958 passou para 2 membros em 1969. (37)

A mesma pesquisa constatou que o tempo de trabalho neces-sário para comprar a maior parte dos alimentos básicoshavia sofrido os seguintes acréscimos entre 1965 e 1969:

Quilos dealimentos

PãoArrozFeijãoMacarrãoBatataCarneSalAçúcarLeite (litro)

Minutos de trabalho

1965

78759516976264747634

1969

14710719918494

354376246

(36) Como parece ser o pensamento de M. C. Tavares e J. Serra,op. cit., "La política del nuevo gobierno m i l i t a r viao a crear las condicionespara uma reordenación del esquema d i s t r i b u t i v o " c o n v e n i e n t e " para elsistema, empezando por r e d i s t r i b u i r el ingreso en favor de sectores de lascapas medidas urbanas y en contra de las clases populares a s a l a r i a d a s " .El Trimestre Económico, n.º 152, p. 945.

(37) Ver DIEESE em Resumo, Ano IV, março de 1970, n.º 3.Informativo do departamento Intersindical de E s t a t í s t i c a s e Estudos Sócio-Econômicos. São Paulo.

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É interessante notar-se que pesquisa semelhante, reali-zada em 1958, com a qual se compara a de 1969, haviaencontrado para aquele ano um salário médio de Cr$ 8,54para o trabalhador paulista. Entretanto, o gasto médio deuma família trabalhadora — os universos são os mesmos napesquisa — estava em Cr$ 10,15, isto é, o salário era insu-ficiente para cobrir o custo de reprodução da força de tra-balho. A família realizava o equilíbrio através de expe-dientes e do aumento das horas trabalhadas. Frente a essesdados, que são mais eloquentes porque dizem respeito àcapital do Estado de São Paulo, é muito difícil não seaceitar a ocorrência de um aumento da taxa de explora-ção do trabalho. No que se refere aos gastos com alimen-tação, embora os dados sejam de 1969, posteriores, por-tanto, à crise de 1964, não constitui um artifício pensarque os mesmos fazem parte de uma tendência que vemdesde os anos anteriores: os dados sobre a relação custode vida/salário-mínimo real apontam nessa direção.

Do ponto de vista político, parece mais importante per-guntar se o nível de vida, ou o padrão de bem-estar dasclasses trabalhadoras se deteriorou em alguma medida ouna mesma medida que o salário real. Esta pergunta tempor base um certo suposto da teoria política de que odecisivo para a formação de uma consciência de classe éo nível de vida e não o salário, e um nível de vida que secompara favoravelmente ao das massas rurais. Algumas pes-quisas, inclusive a já citada do mesmo DIEESE, que cons-tataram a existência em inúmeros lares de trabalhadoresde eletrodomésticos, tais como a geladeira, a televisão, amáquina de costura, o ferro de engomar, etc, tem ajudadoa questionar se houve, de fato, em termos de padrão debem-estar, deterioração da situação do trabalhador urbano.Uma vez mais, repita-se, é provável que tanto a comparaçãodos padrões de vida urbanos com os padrões de vida rurais,como a existência de tais bens no ativo domiciliar dasclasses ' trabalhadoras, influam na consciência de classe(advirta-se, no entanto, que o paradigma dessa comparaçãoé a consciência de classe típica do operariado europeu);sem embargo, é dificil não reconhecer que a diminuição doconsumo de certos gêneros alimentícios ou o seu encareci-mento — que é a mesma coisa — deteriorem o padrão devida. Dá-se situações em que o trabalhador renuncia aoconsumo de certos gêneros alimentícios, em face de um

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salário que não cresce, para consumir os tipos de bensassinalados. Para isso, ele é forçado inclusive pelo fato deque assume compromissos de relativamente longo prazo nacompra dos bons duráveis, — com o crediário — dos quais nãopode se furtar, sob pena de ver-se desclassificado para osistema de crédito e, no limite, ver ameaçado seu emprego.De outro lado, é preciso reconhecer que a família tambéme um agente que acumula; se não acumula bens de capital,com o sentido da reprodução, acumula ativos, e ao longo dotempo, essa acumulação somente tende a crescer, mesmo empresença de salários reais constantes ou até decrescentes.Apenas na ocorrência de catástrofes, tais como enchentes,incêndios, etc, é que ocorre destruição dos ativos. Nestecaso, não há como surpreender-se com o crescimento dosativos em mãos das familias trabalhadoras. Portanto, umcerto tipo de consciência de classe, ainda que não certamenteigual ao do paradigma europeu, pode formar-se, aglutinandoo que antes estava fraturado, ainda quando o padrão devida não esteja se deteriorando. Concretamente, no períodoassinalado, tem-se a compulsão de mercantilização do custode reprodução da forca de trabalho — e nessa compulsãoa substituição de certos bens por outros indicava o sentidogeral da mercantilização, da industrialização do custo dereprodução — com um estancamento e deterioração dossalários reais.

O ponto a que se quer chegar é que o fato de oconflito assinalado ter se elevado & condição de contradiçãopolítica principal precipita a crise de 1964. Discorda-se,assim, radicalmente da interpretação de M. C. Tavares eJ. Serra, em seu ensaio já citado, de que a crise é motivadapela redução das expectativas de inversão e, mais ainda, de queesta não tinha condições de concretizar-se, ameaçada pelafalta de financiamento e pelo incremento dos salários (38).Nenhum dado aponta nessa direção, e permanecer dentrodela é cair num lamentável economicismo que confunde arealidade formal das variáveis da análise econômica com osubstrato que elas descrevem. Tomar a redução do nívelda inversão em 1963 comparado a 1962, tal como se vênas contas nacionais, como indicação de que esta se haviaesgotado, é apenas tomar um dado ex-post: é evidente que,

(38) No que os autores coincidem com o sr. Roberto Campos: "Adisciplina salarial do Brasil parecia socialmente cruel, mas era o preço apagar para restaurar a capacidade de investimentos tanto do setor públicocomo do empresarial ". "A Geografia Louca", in O ESTADO DE SÃO PAULO,edição de 1.º/12/71. Ano 92, n.º 29.650.

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5. A EXPANSÃOPÓS-64:"NOVA

REVOLUÇÃOECONÔMICABURGUESA"

OUPROGRESSÃODAS CONTRA-

DIÇÕES?

nas condições descritas, quando as classes trabalhadorastomam a iniciativa política, tem início um período de agitaçãosocial. A luta reivindicatória unifica as classes trabalha-doras, ampliando-as: aos operários e outros empregados,somam-se os funcionários públicos e os trabalhadores ruraisde áreas agrícolas críticas. Tal situação alinha em polosopostos, pela primeira vez desde muito tempo, os conten-dores até então mesclados num pacto de classes. A lutaque se desencadeia e que passa ao primeiro plano políticose dá no coração das relações de produção. Pensar que,nestas condições, poder-se-iam manter os horizontes docálculo econômico, as projeções de investimentos e a capa-cidade do Estado de atuar mediando o conflito e mantendoo clima institucional estável, é voltar ao economicismo: ainversão cai não porque não pudesse realizar-se economica-mente mas sim porque não poderia realizar-se institucional-mente (39).

O regime político instaurado pelo movimento militarde março de 1964 tem como programa econômico, expressono PAEG, a restauração do equilíbrio monetário, isto é, acontenção da inflação, como recriação do clima necessárioà retomada dos investimentos públicos e privados. Nestesentido, há uma enorme semelhança formal do PAEG como Plano Trienal do Governo Goulart, formalismo aliás queabrange quase todos os planos de combate à inflação, emtodas as latitudes. Qual é o primeiro resultado da execu-ção do PAEG? Uma forte recessão, que se prolongará atéo ano de 1967, e que é, em tudo e por tudo, bastantesemelhante à breve recessão surgida logo após a tentativade execução do Plano Trienal sob a batuta conjunta San-tiago Dantas-Celso Furtado. A identidade do erro derivada identidade das supostas causas: a de que se estava empresença de uma inflação de demanda; o remédio era, numcomo noutro caso, a contenção dos meios de pagamento, ocorte nos gastos governamentais, e o resultado foi, numacomo noutra experiência, a recessão, breve a primeira e

(39) M. C. Tavares e J. Serra caem na tentação de contestar omodelo de Celso Furtado, que explica a crise de 1964 como uma crisede realização do consumo devido ao não-crescimento dos salários reais. Omodelo de F u r t a d o é, basicamente, o de Arthur Lewis ("Desarrollo Económicocon Oferta I l i m i t a d a de Mano de Obra", El Trimestre Económico, n.º 108).Fáci l seria perceber que ainda quando os salários reais das classes traba-lhadoras não tenham crescido, pressuposto correto de Furtado, não haviaa crise de realização porque o próprio modelo concentracionista havia criadoseu mercado, adequado, em termos da distribuição da renda, à realização daprodução dos ramos i n d u s t r i a i s m a i s novos.

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prolongada a segunda. Alguns preconceitos ideológicos,comuns entre os economistas, como a quase lei da escassezde capital nas chamadas economias subdesenvolvidas (40),constituíam o pano de fundo das abstrações que lastreavamo instrumental de combate à inflação.

Foi somente quando começou a praticar-se uma políticaseletiva de combate à inflação, que se retomou a expansãodo sistema: o termo seletiva não deve ser confundido comoutra quase lei de seletividade derivada de prioridades sociais.A política seletiva implantada distingue, antes, seletividadede classes sociais e privilegia as necessidades da produção.Assim, abandonou-se a perspectiva de contenção de crédito,a de contenção dos gastos governamentais, e a perspectivaglobal de contenção da demanda; a política implantada,seletiva neste sentido, passou a ser contrária à anterior:aumento dos créditos, aumento dos gastos governamentais,estímulo à demanda. Foi preciso a recessão para que asituação de classe abrisse os olhos dos detentores do podere forçasse o abandono da ideologia economicista do sr.Roberto Campos e seus continuadores. Os instrumentosdessa política foram uma reforma fiscal aparentementeprogressiva mas de fundo realmente regressiva, em que osimpostos indiretos crescem mais que os diretos, um con-trole salarial mais estrito, e uma estruturação do mercadode capitais que permitisse o "descolamento"" — na felizexpressão de M. C. Tavares (41) — do capital financeiro eque desse fluidez à circulação do excedente econômico con-tido ao nível das famílias e das empresas e representativoda distribuição da renda que se gestara no período anterior.Em poucas palavras, a política de combate à inflação pro-cura transferir às classes de rendas baixas o ônus dessecombate, buscando que as alterações no custo de reproduçãoda FT não se transmitam à produção, ao mesmo tempoque deixa galopar livremente a inflação que é adequada àrealização da acumulação, sancionando, através do institutoda correção monetária, a prática, já iniciada em períodosanteriores (42), de fuga aos limites estreitos da lei da usura.A circulação desse excedente compatibiliza os altos preçosdos produtos industrializados com a realização da acumu-

(40) Da qual somente conseguiu escapar, entre os economistas l a t i -noamericanos, Ignácio Rangel. V. A Inflação Brasileira, op. cit.

(41) Ver seu "Natureza e Contradições do Desenvolvimento Finan-ceiro no B r a s i l " (mimeo), 1971.

(42) A ativação das letras de câmbio e a criação d a s primeirasi n s t i t u i ç õ e s financeiras não-bancárias remonta aos meados da década decinqüenta.

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lação, propiciada por um mercado de altas rendas, concen-trado nos estratos da burguesia e das classes-médias altas.

Sobre que estrutura de distribuição da renda pôdeapoiar-se a política descrita? Dispõem-se de estudos sobrea distribuição da renda apenas para 1960 e, mais recente-mente, para 1970, ambos sobre os dados dos Censos Demo-gráficos respectivos. Em 1960, segundo João CarlosDuarte (43), a distribuição da renda em porcentagens dapopulação de 10 anos e mais que recebiam renda e respecti-vas porcentagens da renda total recebida, era a seguinte:

POPULAÇÃO

%População

3010101010101010

5% superio-res

1% idem

%Acumulada

30405060708090

100

RENDA

%Apropriada

6,374,836,497,499,0311,3115,6138,87

27,3511,72

%Acumulada

6,3711,2017,6925,1834,2145,5261,13100,00

Os dados demonstram a extrema concentração nacúpula, numa forma em que a proporção da renda apro-priada pelo 1% superior da escala populacional — 11,72%da renda — é superior, ainda que por pequena margem, àproporção de renda apropriada por 40% da população;prosseguindo um pouco, encontrar-se-á que os 5% superio-res da escala populacional apropriavam uma parcela darenda ainda maior que a parcela apropriada por 60% dapopulação: 27,35% contra 25,18%. Em termos monetários,a renda média dos 5% superiores da população correspon-dia a mais de 15 vezes a renda média de 50% da população:Cr$ 56,02 contra Cr$ 3,62, em cruzeiros constantes de1949 (44). Sobre esta base, que já continha em si, parcial-mente, os resultados do processo de industrialização, as-

_________(43) Aspectos da Distribuição da Renda no Brasil em 1970, dissertação

apresentada à Escola Superior de Agricultura "Luiz do Queiroz" da Univer-s i d a d e de São Paulo. Mimeografado, Piracicaba, 1971. Ver Quadro 10.

(44) João Carlos Duarte, op. c i t . , Quadro 9.

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sentou-se a política econômica do pós-64. Conforme ahipótese formulada anteriormente, o mercado para os pro-dutos industriais dos novos ramos assentava-se exatamentenuma distribuição extremamente desigualitária da renda,a qual estava muito longe de constituir-se em obstáculo aocrescimento, como supõem Furtado e todos os seguidoresdo dual-estruturalismo cepalino. Os altos preços dos pro-dutos nacionais que substituíam os importados, antes defreiarem a demanda, produzirem capacidade ociosa, baixa-rem a relação produto/capital, eram adequados à distri-buição da renda e cumpriam o papel de reforçar a acumu-lação, mediante o incremento dos diferenciais salários/pro-dutividade. Uma crise de realização do tipo clássico exis-tiria se, mantendo-se altos os preços doa produtos nacionais,a distribuição da renda fosse mais igualitária, e não ocontrário.

Apoiando-se numa tal estrutura, a política econômicapós-64 avançou na progressão em direção a uma con-centração ainda mais extremada. O mesmo autor (45)

encontrou, para 1970, a seguinte distribuição da renda noBrasil:

POPULAÇÃO

%População

40101010101010

5% superio-res

1% idem

%Acumulada

405060708090

100

RENDA

%Apropriada

9,054,696,257,209,C3

14,8348,35

36,2517,77

%Acumulada

9,0513,7419,9927,1936,8251,65100,00

A primeira observação mostra que o grau de concen-tração na cúpula aumentou: enquanto o 1% superior em1960 se apropriava de 11,72% da renda total, em 1970essa porcentagem aumenta para 17,77%; os 5% superioresem 1960 detinham 27,35% enquanto em 1970 passam areter 36,25%. Em contrapartida, "et pour cause", os 40%________

(45) J o ã o Carlos Duarte, op. cit., Quadro 8.

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inferiores da população participavam em 11,20% da rendatotal, enquanto em 1970 sua participação decai para 9,05%.Resumindo a confrontação entre os extremos, em 1960 apopulação remunerada correspondente a 60% do total par-ticipava com 25,18% da renda total, enquanto em 1970 essaparticipação decai para 19,99%. Em termos monetários,os 5% superiores da população tinham uma renda média,em cruzeiros constantes de 1949, mais de 26 vezes superiorà renda média recebida por 50% da população: Cr$ 96,16contra Cr$ 3,64.

Em termos de incremento da renda média real, osprimeiros 50% da população tiveram, no decênio, tão-so-mente 1%, tendo o 6.º decil 8%, o 7.º decil 3%, o 8.º decil10%, o 9.º decil 23%, o 10.º decil 6 1 % e os 5% supe-riores 72% de incremento; isto quer dizer, vendo poroutro lado a dinâmica da distribuição, que o crescimentoda renda real na economia brasileira durante o decênio —aproximadamente 70% — foi predominantemente apropriadopelos 5% mais ricos da população. É evidente que a massatotal de renda em cada estrato aumentou, pelo simplesfato de que o número de habitantes em cada estratotambém aumentou; o aumento da massa total de rendaé que sustentou a demanda dos bens de consumo não-duráveis, nos estratos de rendas baixas, enquanto não so-mente o aumento de população nos estratos de rendas altas,mas principalmente os ganhos de renda real por cada mem-bro dos estratos ricos é que constituem a base de mercadopara os bens de consumo duráveis — automóveis, eletro-domésticos — cuja demanda aumentou sensivelmente apartir de 1968; por sua vez, a demanda para bens de ca-pital também pôde sustentar-se, já que o ritmo de cres-cimento e os preços relativos dos bens de consumo du-ráveis satisfizeram a condição de crescimento do depar-tamento de bens de capital. Tal fenômeno está na basedo 2.º e do 3.º carro, já o padrão comum na maioriadas familias de altas rendas do pais.

Os dados provam, abundantemente, que não houvequalquer redistribuição para baixo, nem em termos de be-neficiamento dos estratos médios, nem muito menos, comoé óbvio, dos estratos baixos. Ante tais resultados, sus-tenta-se alguma hipótese do tipo da formulada por M. C.Tavares e J. Serra, de que a compressão salarial era ne-cessária para financiar a inversão e para redistribuir essesuperexcedente para as classes médias? Se com uma es-

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trutura de distribuição da renda do tipo da quo foi cons-tatada em 1960, os salários reais não ameaçavam a in-versão, por que a dinâmica da distribuição "necessitaria"deste "capricho"? Tanto a distribuição proporcional darenda por cada estrato como os incrementos da renda mé-dia real, no decênio, não confirmam nenhuma hipótese deredistribuição intermediária, teoricamente duvidosa aliás,já que não existem relações de produção entre classestrabalhadoras e classes médias e já que, necessariamente,qualquer redistribuição do tipo acima passa pela media-ção do aparelho produtivo, isto é, passa pela propriedadedos meios de produção; a hipótese ressuma a um "estadodo bem-estar" para as classes médias, construído pelo "des-preendimento" das classes proprietárias. A renda das clas-ses médias deriva dos novos requerimentos técnico-insti-tucionais da matriz da nova estrutura industrial e, por-tanto, das ocupações médias que esta matriz cria: é uma"necessidade" da estrutura produtiva, em seu sentido glo-bal, e não um "estado do bem-estar" das classes médias.Do ponto de vista da demanda, que asseguraria, mediantea redistribuição intermediária, a realização da produção eda acumulação, o argumento dos autores citados tampoucose sustenta, a não ser que se acredite que a acumulaçãotem preconceitos de classe: o consumo poderia ser reali-zado por operários e trabalhadores em geral, pois dispo-riam de renda para tanto, mas o sistema tem preconceitode classe; somente classes médias e ricas — brancos, emsuma — podem consumir: trabalhadores — pretos e mula-tos — não podem consumir, e então transfere-se a rendapara as classes médias. O argumento é extremamente es-pecioso, e sua falha reside não nos preconceitos, mas nosimples fato de que a compressão salarial, impedindo ocrescimento dos salários, transfere os ganhos da elevaçãoda mais-valia absoluta e relativa para o polo da acumula-ção e não para o do consumo. Isto não quer dizer que asclasses médias ou os estratos intermediários não tenhamse beneficiado com a expansão dos últimos anos; querdizer apenas que não houve redistribuição intermediária: apossibilidade de que esta seja factível acabaria com todosos problemas do capitalismo.

O argumento da "redistribuição intermediária" funda-se, na verdade, na suposição de que acréscimos infinitesi-mais na renda das classes mais baixas não as habilitamainda a comprar os bens de consumo duráveis, cujos pre-ços são relativamente altos (o nível desses preços é ade-quado à realização, conforme se demonstrou); assim, atransferência de excedente, produzida pela compressão sa-

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larial, das classes de renda baixas para as classes médias,significaria que aqueles acréscimos, infinitesimais para asclasses baixas, são expressivos para as classes médias, nãoapenas porque se somariam a um montante médio de rendabastante mais elevado, como porque o número de pessoasnas classes médias é bem menor; o resultado seria, com a"redistribuição intermediária", um volume de poder decompra mais concentrado e um nível de renda médio dasclasses médias mais elevado, o que as tornaria capazes decomprar os bens de consumo durável. A mecânica do ra-ciocínio é correta, mas falta-lhe consistência pela razão deque não há relações de produção entre classes trabalha-doras e classes médias e, na ausência dessas relações, con-fere ao aparato do Estado uma racionalidade que ele nãotem, para operar a "redistribuição intermediária". Maisfácil e mais verdadeiro é supor que o nível de renda maiselevado das classes médias decorre das novas ocupaçõescriadas pela expansão industrial e da posição que estasnovas ocupações guardam em relação à estrutura produ-tiva, em termos da escala social global. Além disso, se asrendas das classes médias fazem parte da mais-valia, elevá-los significaria debilitar a inversão e não o contrário.

Sem embargo, a repressão salarial é um fato. Ondevai parar, pois, o superexcedente arrancado aos trabalha-dores e a que fins ele serve dentro do sistema? Aqui sepré-esboça sinteticamente a resposta: o superexcedente,resultado da elevação do nível da mais-valia absoluta erelativa, desempenhará, no sistema, a função de sustentaruma superacumulação, necessária esta última para que aacumulação real possa realizar-se. Levado inicialmentepelas exigências da aceleração dos anos 57/62 a aumentara taxa de exploração do trabalho, a fim de financiar in-ternamente a inversão, o sistema caminhou para um con-flito entre relações de produção e forças produtivas, cujodesenlace conhecido foi aprofundar, como condição políticade sua sobrevivência, aquela exploração; assim, em pri-meiro lugar o superexcedente tem uma função políticade contenção, para o que, necessariamente, reveste-se decaracterísticas repressivas. Isto é, torna-se indissociávela política da economia, porque a contenção da classe tra-balhadora se faz, principalmente, pela contenção dos sa-lários. No entanto, isto seria apenas uma "morbidez" dosistema, se não fosse um requisito estrutural. Este requi-sito estrutural já aparece no movimento do período 57/62:faz-se necessário aumentar a taxa de lucros, para ativar

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a economia, para promover a expansão. Examine-se maisdetidamente esse aspecto.

Tendo sido um requisito para a aceleração dos anos57/62, em condições adversas do balanço de pagamento —fato que não ocorria no período 1947/52, quando se obser-vou igual aceleração e repressão salarial — a elevação dataxa de lucros transforma-se numa necessidade permanen-te para a expansão da economia. Importa aqui considerarque a aceleração do período 1957/62 introduz uma mu-dança qualitativa sumamente importante que encobre umamudança quantitativa: a implantação, nos ramos "dinâmi-cos", das empresas que requerem uma homogenidade mo-nopolística da economia como condição sine qua non desua expansão. Essa necessidade de homogenização mono-polística é que será a determinante principal para os es-forços tendentes a manter altas e elevar, quando possível,a taxa de lucro dos setores mais capitalistas da economia,verbi gratiae, da indústria. Essa necessidade afetará todasas variáveis da reprodução do capital: por ela, mantém-se,por exemplo, uma estrutura de proteção tarifária extre-mamente alta; por ela, fundam-se todas as formas de in-centivo à capitalização e de subsidio ao capital, aparente-temente paradoxais, quando a economia mostra taxas deexpansão também surpreendentemente altas. A homogeni-zação monopolística é não somente uma necessidade deproteção de mercados, mas, principalmente uma necessi-dade da expansão das empresas monopolísticas em árease setores da economia ainda não sujeitas às práticas damonopolização. Assim, mantendo-se alta a taxa de lucroe, pelo subsidio ao capital, elevando-se a taxa de lucropotencial nas áreas e setores ainda não monopolizados, for-ma-se um superexcedente nas superempresas que alas-tram sua influência e seu controle às outras áreas da eco-nomia. O conglomerado, que é a unidade típica dessa es-truturação monopolística, não é, ao contrário do que sepensa, uma estruturação para fazer circular o excedenteintramuros do próprio conglomerado, mas uma estrutura-ção de expansão. A manutenção de taxas de lucros eleva-das é a condição para essa expansão.

No entanto, esse processo não se dá nem se completaem alguns anos, apesar de toda a avassaladora instru-mentação institucional posta em marcha para tanto: in-centivos à obsolescência precoce do capital, reavaliação de

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ativos, subsídios ao capital nas áreas da SUDENE, SUDAM,EMBRATUR, IBDF, SUPEDE, etc. E não se dá, nem secompleta, inclusive pelo fato de que encontra resistênciasno conjunto das empresas não-monopolísticas que, na mar-gem, reforçam sua capacidade de resistência pelo própriofato de que o conjunto de incentivos também eleva suataxa de lucros e, portanto, sua capitalização. Para realizar"a frio" a operação, os incentivos foram intermediadospelo sistema financeiro, pelo chamado mercado de capi-tais. Assim, o superexcedente, que se contabilizava ao níveldas famílias e das empresas, como poupança e lucros não-distribuídos, dirigiu-se ao mercado financeiro, para a apli-cação em papéis que, para uns, significava aumento darenda e para outros possibilidade de viabilizar a expansão,o controle sobre outras áreas e setores da economia. Umcomplicado sistema foi montado, com a progressiva assun-ção ao primeiro plano, dos bancos de investimento, quesão a estruturação da expansão das empresas monopolís-ticas. Sem embargo, o mercado financeiro transformou-seele mesmo em ativo competidor dos fundos para a acumu-lação: a aplicação meramente financeira começou a pro-duzir taxas de lucro muito mais altas que a aplicação pro-dutiva e, de certo modo, a competir com esta na alocaçãodos recursos. Assiste-se, então, ao dilema em que hojeestá a economia: para fazer com que as aplicações nomercado de capitais não sejam um concorrente às apli-cações na órbita produtiva, é necessário que as taxas delucro do mercado financeiro se aproximem das taxas delucro reais, mas essa operação pode ter como resultadomatar a "galinha dos ovos de ouro": as baixas nas cota-ções das bolsas afugentam as pessoas físicas do mercadode capitais e diminuem a liquidez das empresas, pela enor-me retenção de papéis de rentabilidade em declínio. OGovêrno tenta, então, manter altas as cotações da bolsa,a fim de evitar a fuga de capitais e melhorar a liquidez,mas com essa operação não permite a aproximação dastaxas de lucro entre a órbita financeira e a real, e comisso impede que o mercado de capitais exerça o papel deintercambiador de recursos ociosos de umas unidades paraoutras e aumente a taxa de poupança do sistema comoum todo. Tem-se, então, que apesar do incentivo desespe-rado à capitalização, todo o movimento dos últimos anosnão se reflete positivamente ao nível das contas nacionais

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na conta de formação de capital, o que tem sido interpre-tado por muitos como sinal de poupança insuficiente dosistema. Em poucas palavras, um mecanismo circular quepropiciou o "descolamento" das órbitas financeiras e realimpede que a primeira sirva de fonte de acumulação paraa segunda. O elemento de "confiabilidade" dos papéis pas-sa a ser estratégico nessa conjuntura, quando sua funçãoseria meramente acessória.

Em condições de poupança crescente, ampliação do"exército industrial de reserva" e salários reais urbanosdeprimidos, o sistema encontra seus limites se não trans-forma essa poupança em acumulação real. Para tanto, énecessário que a velocidade de crescimento das relaçõesinterindustriais entre os departamentos 1 e 2 da economiaseja mais alta que a velocidade de crescimento da pou-pança; caso contrário, o sistema tende a "afogar-se" emexcedente. Aqui, entra em cena um dos fatores limitan-tes do incremento das relações inteirindustriais, que se con-figura como uma "dessubstituição de importações" de bensde produção. Explicitemos a questão. A retomada do cres-cimento, ocupada a capacidade ociosa gerada pela reces-são dos anos 62/67, exige, imediatamente, um aumento daprodução de bens de capital, a fim de aumentar a capaci-dade produtiva instalada. Esses novos requerimentos debens de produção são os que vão alimentar o crescimentodo Departamento I da economia ou mais precisamente daindústria; entretanto, seja pela recessão anterior, seja pelaorientação da política econômica, a capacidade de produ-ção do referido departamento não foi incrementada noperíodo anterior, e esses requerimentos ou são satisfeitosmediante o recurso às importações ou o crescimento ébloqueado. O recurso às importações foi a condição neces-sária para evitar o bloqueio do crescimento: entre 1966 e1970, as importações de bens de capital destinados à in-versão interna passaram de US$ 405,6 milhões para US$1.073,9 milhões, isto é, cresceram 1,6 vezes, velocidade mui-to maior que a do crescimento do PNB e que o crescimentodo próprio produto do setor industrial como um todo (46).Em outras palavras, o coeficiente de importações do pro-duto da indústria cresceu, invertendo a tendência anterior;por essa forma, boa parte do impulso gerado pelo cresci-

(46) Ver Boletim do Banco Central do Brasil, novembro de 1971, quadroVI-104.

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mento do Departamento II (bens de consumo) não setransmitiu ao Departamento I (bens de produção), com oque não se internalizou totalmente a potencialidade decrescimento. A longo prazo, o resultado é o de que apossibilidade de manter alta a taxa do crescimento depen-derá mais e não menos do crescimento das exportações,que é a forma escolhida de abastecimento dos bens decapital requeridos pelo crescimento das demandas do De-partamento II.

As condições anteriormente descritas contribuem paradeterminar, em boa medida, uma gama variada de polí-ticas, cujo objetivo central é o de não deixar cair a taxade lucro. O subsídio às exportações é uma delas. Em pri-meiro lugar, as exportações mais fortemente subsidiadassão as de manufaturas, para as quais o país é um exporta-dor marginal no comércio internacional; mas as manufa-turas exportadas não concorrem, absolutamente, com asmanufaturas exportadas pelos países mais desenvolvidos:antes, são exatamente as manufaturas de ramos industriaisque, sem o recurso às exportações, entrariam em crisepelo fraco crescimento ou não-crescimento da demandainterna, resultado da compressão salarial das classes derenda mais baixas: calçados, têxteis, sucos, carne boxi-na (não se subsidiam exportações do tipo de minériode ferro, nem café, por suposto). Esse subsidio, numasituação em que os preços internos crescem mais queos preços externos, é, de certa forma, uma esterilizaçãode capital, viabilizada pela chamada política de câmbioflexível. Essa esterilização de capital aparece na contabi-lidade das empresas como lucro, mas na contabilidade na-cional ela é uma transferência da conta do governo paraa conta de capital das empresas, já que é a renúncia aum imposto (no fundo ela é uma transferência da contadas familias, intermediada pelo Governo). O incentivo àobsolescência do capital, que implica produzir novosbens ou novos modelos de bens é, também, uma forma dis-farçada de esterilizar o capital, aumentando de um ladoa demanda de novos bens de produção e, de outro, de"enxugando" o excesso de poder de compra nas mãos dosconsumidores das classes de rendas altas: a renovação demodelos dos principais bens duráveis de consumo atendea esse propósito de compatibilizar a produção e a reali-

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zação da acumulação e, para tanto, a evolução do prosaicoVolkswagen para os Galaxies e Dodges, e a introdução datelevisão a cores, por exemplo, cumprem esse papel.

A tentativa de manter elevadas as taxas de remunera-ção do capital que, parcialmente, desembocaram na polí-tica econômica externa já relatada cria, a curto prazo,uma capacidade insuspeitada de crescimento mas, a longoprazo, reduz a margem de manobra global. Com o subsí-dio, aumentam-se as exportações, buscando melhorar asreservas internacionais do pais, a fim de melhorar a ca-pacidade de barganha internacional; mas somente os in-gênuos podem continuar acreditando que o comércio in-ternacional é realmente multilateral: o que é multilateralé o sistema de pagamento deste comércio, mas, no fim dascontas, os paises que se abrem para nossas exportações es-peram tratamento idêntico de nossa parte para as suas.Como resultado, nossas importações de bens de capital estãocrescendo muito mais que o ritmo de crescimento da indús-tria e da economia como um todo, e, a longo prazo, afetandoa expansão do próprio setor de produção de bens de ca-pital da economia brasileira. A fim de incentivar e man-ter alta a taxa de lucro, o Governo abre mão de parte desuas receitas, e, para financiar suas inversões, recorre, a ní-veis cada vez mais altos, ao crédito externo; por outro lado,renuncia também a parte dos impostos, para ativar o sis-tema financeiro, o que comprime ainda mais a capacidadede gasto do Poder Público, se não se recorrer ao créditoexterno. De tal forma um elemento da política alimentao comportamento do outro, que o sistema é hoje muito maissolidário e, por oposição, também muito mais rígido.

Em que sentido caminhou o sistema, na sua re-posi-ção? Longe de haver cortado os "nós górdios" da acumula-ção primitiva, ele parece continuar explorando-os: a Tran-samazônica não passa de uma gigantesca operação "pri-mitiva", reproduzindo a experiência da Belém-Brasília, noque para alguns românticos "à la Malraux", é uma saga;o Brasil seria, assim, o único lugar do mundo — depoisda desmoralização de Hollywood — onde a vida aindase desenrola em termos epopéicos, muito próprios para astomadas em "eastmancolor" de Jean Manzon. A resoluçãodas contradições entre relações de produção e nível dedesenvolvimento das forças produtivas é "resolvida" pelo

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6. CONCENTRA-ÇÃO DA RENDAE REALIZAÇÃODA ACUMULA-ÇÃO: AS PERS-

PECTIVASCRÍTICAS

aprofundamento da exploração do trabalho. A estrutura-ção da expansão monopolística requer taxas de lucro ele-vadíssimas e a forma em que ela se dá (via mercado decapitais) instaura uma competição pelos fundos de acumu-lação (pela poupança) entre a órbita financeira e a estru-tura produtiva que esteriliza parcialmente os incrementosda própria poupança; um crescente distanciamento entrea órbita financeira e a órbita da produção é o preço aser pago por essa precoce hegemonia do capital financeiro.O sistema evidentemente se move, mas na sua re-criaçãoele não se desata dos esquemas de acumulação arcaicos,que paradoxalmente são parte de sua razão de crescimen-to; ele aparenta ser, sob muitos aspectos, no pós-64, bas-tante diferenciado de etapas anteriores, mas sua diferençafundamental talvez resida na combinação de um maiortamanho com a persistência dos antigos problemas. Sobesse aspecto, o pós-64 dificilmente se compatibiliza com aimagem de uma revolução econômica burguesa, mas émais semelhante com o seu oposto, o de uma contra-re-volução. Esta talvez seja sua semelhança mais pronuncia-da com o fascismo, que no fundo é uma combinação deexpansão econômica e repressão.

Convém discutir, agora, a questão de se o estágio aque chegou a economia capitalista no Brasil, com um graude concentração da renda como o detectado pelo Censo De-mográfico de 1970, constitui um problema crítico parasua ulterior expansão. Até que ponto, encarando-se o pro-blema estritamente do ângulo das possibilidades estrutu-rais e desprezando-se qualquer ótica reformista, uma rendaextremamente concentrada é benéfica ou é um risco paraa expansão capitalista? Aqui se faz a ligação com a ques-tão da realização da mais-valia e da acumulação: quesignificado tem, em termos de mercado, uma renda tãoconcentrada; gera um mercado suficiente para realizar aacumulação, compatível com o nível de desenvolvimentodas forças produtivas?

A controvérsia sobre os efeitos da concentração darenda no desenvolvimento econômico não tem produzidoresultados muito positivos, principalmente pelo fato deque a discussão tem sido muito mais ideológica que cientí-fica. A influência neoclássica de não reconhecer a distribui-ção como um tema da economia vingou durante muito

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tempo, prejudicando sensivelmente a abordagem do as-sunto e afastando dele os melhores esforços teóricos. Poroutro lado, na discussão não tem predominado um critériode homogeneidade tanto de universo conceitual como desistemas de referência: frequentemente, são propostos es-quemas de distribuição próprios de um sistema socialistapara avaliar o padrão de distribuição vigentes em econo-mias capitalistas; mas, na verdade, esse tipo de discussãocoloca falsos dilemas sobre a correlação entre distribuiçãoda renda e expansão em economias capitalistas.

Uma maneira de abordar o tema seria tentar verifi-car até que ponto a expansão do capitalismo no Brasil re-produz a história da construção do capitalismo nos paísescentrais. Kuznets, um dos poucos estudiosos sistemáticosdo assunto, assinala (48) que os primeiros estágios de indus-trialização e urbanização são marcados, nos países cen-trais, por um incremento da desigualdade. Tal incrementose funda, em primeiro lugar, pela perda de importânciarelativa do produto rural — onde a desigualdade era menornos países com forte estrato camponês — no produto totale, por oposição, pela maior contribuição absoluta e relativado produto não-agrícola (indústria + serviços) onde a de-sigualdade é maior. A razão de que a desigualdade au-menta na passagem da economia de rural para urbano-in-dustrial, que Kuznets não comenta, é evidentemente dadapela ampliação do "exército industrial de reserva" e conse-qüente aumento da taxa de exploração do trabalho. Osestudos seculares de Kuznets revelam, no entanto, que adesigualdade declina com a continuidade do desenvolvimen-to nos países capitalistas, e a razão empírica que ele en-contra — embora não a elabore teoricamente — é que, apartir de certo momento, a renda real per capita dos es-tratos mais baixos cresce mais velozmente que a dos de-mais estratos. Teoricamente, diz Kuznets, essa declinaçãoiria contra a acumulação, pois que uma renda concen-trada em poucos possuidores, tendo esses possuidores umaalta propensão a poupar, favoreceria a acumulação; noentanto, sem que seja encontrada uma razão teórica forte,a tendência à diminuição da desigualdade, longe de causardanos à acumulação, terminou por conferir dinamicidadeao sistema como um todo. Como se operou a reversão da_________

(48) Ver Simon Kuznets, Crecimiento económico y estructura económica,caps. IV e IX, E d i t o r i a l Gustavo Gill, Barcelona, 1970.

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tendência? Segundo Kuznets, não há qualquer automatici-

dade no sistema que leve a ela; isto é, a tendência intrín-seca seria para continuar aumentando a concentração darenda. A reversão, segundo o mesmo autor, operou-se ten-do como fator principal a organização doa trabalhadores,e a legislação social de coibição dos excessos de explora-ção. A razão teórica não abordada por Kuznets, mediantea qual o capitalismo aproveitou uma reversão de sua ten-dência concentracionista, reside no fato de que a simpleselevação dos salários acabaria por elevar desproporcio-nalmente ao capital o custo de reprodução da força detrabalho, e, portanto, ameaçaria a própria acumulação. Aresposta do sistema foi a capitalização, mediante a qualoutra vez se reduzia o custo relativo de reprodução da forçade trabalho, elevando-se a mais-valia relativa e mantendo aproporcionalidade entre essas variáveis. Este é o raciocíniodos clássicos em geral, mais elaborado pelo próprio Marx.Dessa forma, a elevação dos salários reais, que é consegui-da mediante o crescente poder de barganha dos trabalha-dores, amplia a capacidade de consumo dessas classes, epassa a ser um componente estrutural da expansão dosistema capitalista; daí que constitua pedra de toque daspolíticas econômicas dos países capitalistas manter o plenoemprego ou algo muito próximo a ele, não por qualquerrazão humanitária, mas simplesmente porque esta é amelhor forma de desempenho de uma economia capitalis-ta. Convém acrescentar que a formação das colônias, noperíodo de vigorosa expansão capitalista, é um componenteestrutural, mediante a qual os espaços assim conquistadostransformam-se na reserva de "acumulação primitiva" dosistema, que vai contribuir seja diretamente para a acumu-lação, mediante a apropriação do excedente produzido nascolônias, seja pela oferta de produtos primários, que vaicontribuir para baixar o custo relativo de reprodução daforça de trabalho (49).

Estaria a economia capitalista no Brasil em estágiosemelhante ao estudado por Kuznets para as economias ca-pitalistas hoje maduras (Kuznets trabalhou com dadospara os Estados Unidos da América, 1929 e 1944/1950;___________

(49) De passagem, convém notar que essa " t r a n s f e r ê n c i a " do conflitobásico e n t r e relações da produção e forças produtivas nos países capitalistasl i d e r e i irá desembocar, da um lado, no modelo i m p e r i a l i s t a do acumulaçãoe, de outro, no reformismo dos partidos sociais democratas europeus.

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Reino Unido, 1929 e 1947; Prússia Média e Saxônia Média,1907 e 1911; Itália, 1948). Poder-se-á pensar, então, quea economia brasileira esteve, nos últimos trinta anos, in-crementando a desigualdade para estar, agora, no limiardo movimento inverso? A resposta a esta interrogante com-porta o exame dos vários setores de produção/distribuiçãoda economia brasileira. Em primeiro lugar, pode-se afir-mar, com relativa segurança, que não vige, na economiarural brasileira, um padrão de distribuição menos desiguali-tário, tal como o encontrou Kuznets para as economiascentrais. Isto é, a distribuição da renda agrária no Brasil,pelas características da formação histórico-econômica daeconomia rural brasileira, com o predomínio das "Planta-tions", com a concentração fundiária que a caracterizadesde sua implantação e pela ausência do seu contrário,que seria um forte estrato camponês, é uma distribuiçãotão ou mais desigualitária que a urbana-industrial, carac-terísticas confirmadas por recentes estudos de RodolfoHoffmann (50). Assim sendo, uma distribuição desiguali-tária no campo somada à distribuição desigualitária na ci-dade conformariam um padrão global de distribuição darenda cuja desigualdade seria mais acentuada que no casodos países capitalistas maduros. Por outro lado, não háqualquer sinal de atenuação ou de inicio de uma curva des-cendente da desigualdade; todos os estudos realizados, doisdos quais citados neste trabalho — os de Hoffmann e deDuarte — concluem que a desigualdade cresceu entre 1960 e

_____________(50) Ver Contribuição à Análise da Distribuição da Renda e da

Posse da Terra no Brasil, tese apresentada à Escola Superior de Agricultura"Luiz da Queiroz", da Universidade de São Paulo, p a r a obtenção do T í t u l ode Livre-Docente. Mimeografada. Piracicaba, São Paulo, 1971. Hoffmanna f i r m a : "O Índice de Lorenz da concentração da posse da t e r r a no B r a s i ltem-se mantido, de 1920 a 1967, ao redor de 0,84. Não há, portanto,tendência, p a r a diminuir ou a u m e n t a r a concentração da posse da terra,no país. Este resultado mostra que não podemos e s p e r a r que a estrutura a g r á r i abrasileira se torne mais i g u a l i t á r i a sem uma reforma agrária", pp. 115.Mais a d i a n t a : "A primeira vista, poderíamos concluir que a concentraçãoda renda é maior no setor urbano que no s e t o r primário. Utilizandoo índice de Theil mostramos, e n t r e t a n t o , que quando se consideram as pessoasativas sem renda, o í n d i c e de concentracão p a r a o setor primário aoB r a s i l e nas Regiões L e i t e a Sul pode tornar-se maior que o referenteao s e t o r urbano. É possível, portanto, que o grau de concentração dadistribuição da renda nesses dois setores seja b a s t a n t e similar", pp. 118.Os índices de concentração da renda, um í n d i c e de Gini modificado porHoffman, sobre dados do Censo Demográfico de 1960, foram os seguintes:

Setor

TotalPrimárioUrbano

Brasil

0,5040,4860,476

Nordeste

0,5790,4340,633

Leste

0,5370,4390,507

Sul

0,4140,8640,399

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1970 e que a base do crescimento da desigualdade é dada peloquase nulo crescimento das rendas dos estratos mais baixosem contraposição ao extraordinário crescimento das rendasdos estratos mais altos, exatamente o oposto do indicadopor Kuznets (51).

Os estudos empíricos demonstram não haver qualquerautomaticidade no sistema que o leve a redistribuir, umahipótese aliás que sempre esteve teoricamente formulada.Dois fatores, apenas, podem se opor à tendencia concentra-cionista quase inerente ao sistema capitalista: o primeiroé a escassez de trabalho, que conduziria à elevação dos sa-lários reais, gerando, por sua vez, todo o ciclo capitalistaclássico que leva às inovações poupadoras de trabalho, àacumulação, ao progresso técnico e outra vez à elevaçãodos salários reais; mas as evidências empíricas reduzemo poder de explicação dessa dialética econômica quandoela está desligada da organização da classe trabalhadora,da sua demanda por melhores condições de vida e detrabalho e da possibilidade de que, politicamente, possamfazer-se ouvir e respeitar. Melhor dizendo, não se podepensar um sistema capitalista em expansão sem essa con-tradição fundamental, que é, assim, estrutural ao mesmo.A pressão das classes trabalhadoras gerando a legislaçãosocial de coibição dos excessos da exploração do trabalhoexplica mais que a pura dialética econômica da acumula-ção-escassez de trabalho, no fenômeno da elevação dos sa-lários reais.

Ora, no Brasil, nenhuma dessas condições está pre-sente, no momento. Em primeiro lugar, a reserva de forçade trabalho é de tal porte que o sistema se dá o luxo decrescer horizontalmente, com baixíssimos coeficientes de

(51) Com algumas ressalvas quanto à comparabilidade dos dados, adistribuição da renda no Brasil, em 1970, apresentava em relação aos paísesestudados por Kuznets as seguintes diferenças:

Estratos

60% da população20% seguintesÚltimos 20%5 % superiores

Brasil197019,9916,8863,1886,25

USA192927,010,055,081,0

ReinoUnido192927,015,054,088,0

PrússiaMédia

1907/191183,017,050,080,0

MédiaSaxônia1907/191126,017,057,085,0

Fonte: B r a s i l , João Carlos Duarte, op. cit.Outros p a í s e s : Simon Kuznets, op. cit., Tabla 5B, p. 185.

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capitalização, lastreando, por essa forma, sua expansãoglobal e a possibilidade de que alguns setores se vertica-lizem, sem concorrência pelos fundos de acumulação. Aoferta de forca de trabalho inclusive se ampliou com aindustrialização: desde o censo de 1920, a taxa de cresci-cimento da população brasileira incrementou-se em cadadecênio, até atingir 1970, quando se notou a primeira ten-dência declinante neste século. Assim, do ponto de vistaestritamente da relação acumulacão-escassez de forca detrabalho, o sistema não encontrou ainda seu limite. Foroutro lado, e aqui é que entra a especificidade particularda forma concreta de capitalismo no Brasil, esse limite ésempre como a linha do horizonte, uma vez que a economiaabsorve, pelas suas relações com o capitalismo mais ma-duro, formas concretas de inversão que poupam previa-mente trabalho, o que potencializa enormemente uma uni-dade de inversão (isto é, elevam a relação produto-capi-tal). Já do ponto de vista da organização das classes traba-lhadoras, desde 1964 somente se tem assistido ao retro-cesso. Este retrocesso significa não que a legislação socialpré-64 fosse mais favorável aos trabalhadores que ade hoje, mas que a organização dos trabalhadores parareivindicar e transformar suas reinvidicações em expres-sões políticas concretas seja hoje impedida, em oposição comos últimos anos da década de 1950 e os primeiros da décadade 60. Privados de qualquer poder de barganha como re-presentantes da oferta de trabalho, os sindicatos têm quese submeter ao padrão de salários e de reajustes que oGoverno impõe, de acordo com os ditames de sua políticaeconômica; a legislação do trabalho, do qual a substituiçãoda instituição da estabilidade no trabalho pelo Fundo deGarantia de Tempo de Serviço é o protótipo, somente tembeneficiado a acumulação, acelerando o "turn-over" dosempregados, acelerando a expulsão da forca de trabalhodos maiores de 40 anos, contribuindo para o aumento dataxa de exploração (52). Qual é a relação entre o grau de

(52) Pesquisas realizadas pelo DIEESE para o Sindicato e a Fede-r a ç ã o dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e F a r m a c ê u t i c a s de SãoPaulo, em 1971, e n t r e os trabalhadores do ramo, sindicalizados e não-sin-dicalizados, revelou que 15,9% dos trabalhadores químicos estão na faixae t á r i a de menos de 16 anos a 20, 3 8 , 6 % estão na f a i x a e n t r e 21 e 30anos, e 2 5 , 9 % estão na faixa e n t r e 31 a 40 a n o s ; acima dos 40 anos,a porcentagem cai i m e d i a t a m e n t e p a r a 1 3 , 0 % e nos 50 anos e mais existiamtão-somente 6,6% de trabalhadores. F o r outro lado, 2 5 , 4 % dos t r a b a l h a d o r e sda categoria tinham e n t r a 1 a 8 anos de serviço na a t u a l empresa, enquanto1 7 % t i n h a m menos de 1 ano. For faixa e t á r i a , a s maiores contribuiçõesa tempos de serviço tão baixos localizavam-se exatamente nas f a i x a s de16 a 20 anos e de 21 a 30 anos. Existe uma correlação entre pouco

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concentração da renda no Brasil e as possibilidades decrescimento do mercado, ou, em outras palavras, um siste-ma econômico que concentre a renda nessa escala temcondições de realizar sempre a compatibilização entre pro-dução de mais-valia e realização da acumulação? Tentou-se demonstrar, em partes anteriores deste trabalho, queo "fechamento" do mercado da versão cepalina, longe deter representado obstáculo ao crescimento em etapas an-teriores foi, de certo modo, um fator de incentivo, dentroda "rationale" global do sistema, centrada sobretudo naprodução dos chamados setores "sofisticados". No entanto,há alguns problemas quanto à manutenção a longo prazode um padrão de crescimento do tipo do que hoje rege aexpansão da economia brasileira. O primeiro problemaaparece no que se refere à expansão dos setores de produ-ção que dependem mais estreitamente da demanda das clas-ses trabalhadoras em geral ou dos estratos de rendas baixas.A expansão desses setores, os chamados "tradicionais", estácondicionada sobretudo à expansão da renda dos estratosmais baixos; como esta não tem crescido no último decê-nio, aqueles setores são os que têm experimentado cresci-mento mais lento: daí serem "não-dinâmicos", e apresen-tarem baixos coeficientes de elasticidade-renda da deman-da. Esses setores têm, portanto, tendência constante aapresentarem problemas de realização, e não é por meroacaso que sobre eles tem-se concentrado a atenção doGoverno, subsidiando a exportação de calçados, tecidos,vestuário, conseguindo aumentos das cotas de exportaçãopara o mercado norte-americano etc. Nas condições demercado interno prevalecentes, a expansão dos setores re-feridos dependerá, em primeiro lugar, da ampliação do

tempo de serviço, i d a d e do trabalhador e sindicalização: a maior porcentagemda mão-sindicalizadas encontra-se exatamente nos trabalhadores jovens enos com pouco tempo de serviço, o que demonstre a função política e nãoapenas econômica do i n s t i t u t o do FGTS, destinada a minar a capacidadede representação dos sindicatos e sua força como órgão de classe. Osdados indicam também que a porcentagem de dispensas de trabalhadorescom mais de um (1) ano de serviço, no ramo Químico, aumentou entre1988 o 1971, em 2 5 6 , 1 % . E n t r e julho e dezembro de 1968, na indústriaquímica como um todo, as demissões corresponderam a 92% das admissões,crescendo essa relação para 0 4 % em 1969, isto é, os empregos líquidoscriados não foram mais de 8 e 8% em cada ano. Por outro lado, paraaumentar o s a l á r i o , 1 0 , 8 % dos trabalhadores faziam entre 1 a 10 horasde t r a b a l h o e x t r a por mes, 29% faziam entre 11 a 20 horas de trabalhoe x t r a , 1 6 , 1 % faziam e n t r e 21 a 30 horas, 1 1 , 8 % f a r i a m entre 81 a 40horas, 9,7% faziam e n t r e 4 1 a 50 horas, e 2 2 , 6 % faziam 51 e maishoras e x t r a s mensais, tendo i n t e r e s s a n t e observar que dos 2 2 , 8 % quefaziam mais de 51 horas m e n s a i s de t r a b a l h o extra, 8 1 % eram casados.Ver Caracterização, Situação e Férias do Trabalhador nas Indústrias Quí-micas e Farmacêuticas de São Paulo e Fundo de Garantia e Estabilidadeda Mão-de-obra, DIEESE, São Paulo, 1971 (mimeo).

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mercado externo, a qual tem sido conseguida, até agora, àcusta de fortes subsídios, que é uma forma disfarçada deesterilização do excedente, já referida em páginas ante-riores.

Os setores de produção que dependem da demanda dosestratos de rendas altas não apresentam tendência a crisesde realização, pelas razões já enunciadas, que se podemresumir brevemente repetindo que a produção se apoia exa-tamente num mercado estreito em termos de tamanho dapopulação nele contida, mas grande em termos da rendadisponível e, portanto, em termos do excedente intercam-biável. O argumento tradicionalmente esgrimido dos cus-tos altos e dos preços altos não tem nenhuma relevânciacomo razão para deprimir demanda e, pelas reações quedesencadeia, deprimir as taxas de utilização da capacidadeinstalada e, no fim, deprimir a taxa de lucro e a do cres-cimento. Não serão essas as razões ou as causas pelasquais uma crise possa desatar-se, embora o sistema recorracom periodicidade cada vez mais curta a renovações demodelos, introdução de novos produtos, com o fim de es-timular a oferta e não a demanda. Um dos pontos críti-cos da economia brasileira, neste estágio, coloca-se alémda esfera da produção. O fato é que, para as necessidadesde sua expansão dentro do modelo em que se desenvolve,concentracionista e excludente, a capacidade de poupançada economia capitalista brasileira excede as necessidades daacumulação real; não se confunda essa afirmação com ofato, sobejamente demonstrado, de que não são atendidasas necessidades da população em geral e particularmenteas das classes sociais detentoras de magras porcentagensda renda nacional. O sistema, em sua expansão, temusado de expedientes diversos, táticos e tópicos — caracte-rística aliás que se objetiva na falta de uma tentativa depolítica econômica global e no manejo "hábil" de políticasespecificas, o que para alguns é um sinal de "capacidadetécnica" do Governo, mas que na verdade é um sintomade sua incapacidade — com a pura finalidade de evitar umcolapso que procede do seu próprio dinamismo. Tais tá-ticas tópicas revelam-se no subsidio à exportação, comoexpediente para resolver a crise dos chamados setores "tra-dicionais", na manutenção da correção monetária, que éuma forma disfarçada de inflação necessária para mantera reprodução ampliada; a contradição dos remédios tó-78

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picos revela-se quando se verifica que a liquidez interna-cional das Autoridades Monetárias passou de 244,3 milhõesde dólares em 1964 para 1.581,5 milhões de dólares em1971, ao mesmo tempo que a dívida externa continua cres-cendo: entre 1969 e 1971, esta saltou de 4.403,3 milhõesde dólares para 5.772,8 milhões de dólares, um crescimentode 31%; a decomposição do crescimento da dívida externamostra que esta não se incrementa para atender às necessi-dades da capitalização ou da formação de capital, pois aparte da dívida externa que é destinada ao financiamentodas importações cresceu tão-somente 37% no período,contra um crescimento de 6 5 % dos empréstimos emmoeda (53). Os empréstimos em moeda, que incluem tran-sações financeiras com empresas privadas, governos estaduaise organismos estatais, parecem constituir realmente um expe-diente de reinjetar no sistema o excedente gerado mas nãoabsorvido produtivamente; isto parece estar dentro da lógicade funcionamento do sistema, que não consegue operar aalocação dos recursos entre setores e entidades deficitáriase superavitárias, sem passar por uma instância que au-mente a taxa de lucro. Nas condições descritas, de poupan-ça crescente sem atos correspondentes de inversão real,simultaneamente crescentes o sistema chega a um ponto deameaça da "realização da mais-valia" (54). Desloca-se oponto crítico da esfera da produção ou da órbita do realpara a órbita do financeiro: a poupança crescente dá lugarà especulação bursátil, para a continuidade da qual oelemento estratégico passa a ser a "confiabilidade" dospapéis; entretanto, por mais que se "descole" a esfera fi-nanceira da esfera produtiva, a manutenção da "confiabi-lidade", a longo prazo, dependerá do desempenho da segun-da, isto é, da taxa de lucros de cada uma das empresase do conjunto delas. Qualquer declínio, ainda que con-juntural, do desempenho das empresas, redunda em detri-mento da "confiabilidade" e, em espiral descendente, nummecanismo tipo "feed-back", termina por atingir todo osistema. O elemento "confiabilidade" tem apenas uma apa-rência subjetiva ou psicológica: na verdade, na medida emque o mercado de capitais sai de sua infância, ele refletirá

(53) Ver Boletim do Banco Central do Brasil — Novembro 1971,Quadros VI-107 e VI-108.

(04) Uma excelente discussão desse tipo de crise numa economiacap i t a l i s t a encontra-se em Maurice Dobb, Economia Política y Capitalismo.México, Fondo de Cultura Economica, 1961, principalmente no capítulo IV,"Las crises económicas".

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mais de perto o desempenho da órbita produtiva. A apli-cação tópica de políticas, tal como vem sendo a práticados últimos anos, não pode contrarrestar indefinidamenteuma situação que se cria ao nível do real, ao nível dasforças produtivas e das relações de produção, situação mar-cada pela assimetria entre a virtualidade das forças pro-dutivas e os obstáculos que as relações de produção ante-põem para a materialização daquele potencial. Assim, osistema tende a encontrar seus limites de crescimento de-terminados pelo próprio capital, isto é, pelas possibilida-des que ele oferece para manter alta a taxa de lucros. Aeste fim servem, por exemplo, as políticas de incentivo àinversão, hoje prática estendida a todos os setores da eco-nomia, e que foi inicialmente imaginada como um meca-nismo de transferência do excedente do Centro-Sul parao Nordeste, dentro da estratégia geral de "homogeinizaçãomonopolística" do espaço econômico nacional. Num momen-to em que, objetivamente, a capacidade de poupança podeatender os requisitos da inversão real, a política de in-centivos passa a ser uma forma desesperada de manteralta a taxa de acumulação, mediante o expediente de "so-cializar" a esterilização do excedente, pois que o Governodoa praticamente a metade do capital, reduzindo, com isso,o custo do capital para os investidores, para os quais ataxa de lucros que os novos investimentos possam propiciarpoderão continuar sendo altas em relação ao próprio ca-pital investido. A forma pela qual a economia conseguefugir ao espectro da depressão é a da busca pela elevaçãoda taxa de lucro, penetrando os espaços e setores aindanão-monopolísticos; esse movimento, necessariamente, temcomo resultado uma maior concentração da renda e, con-sequentemente, um maior potencial de poupança a serutilizado.

Assim, a própria expansão da economia capitalista noBrasil, no último decênio, conduziu-a a uma situação emque os riscos de crise são mais latentes e mais fortes quenunca: a combinação de crescimento parcialmente voltadopara "fora" que alimenta a demanda dos setores chamados"tradicionais", a concentração da renda nos estratos maisricos da população que alimenta um processo produtivode caráter intrinsecamente inflacionário, o aparecimento pre-coce da especulação bursátil como forma de sustentação

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da acumulação real, são, hoje, elementos muito mais es-tratégicos e, por sua vez, muito mais vulneráveis, do queo foram no passado o estrangulamento do setor exter-no e a delibilidade da poupança; enquanto no passado oselementos de crise tinham um caráter muito mais de con-tenção por insuficiência de recursos, os elementos hojeconfiguram qualquer crise como uma depressão do tipoclássico. O sistema, na sua progressão, cortou os elemen-tos que constituem, intrinsecamente, os estabilizadoresusuais das crises, variáveis que podem ser manejadas pelapolítica econômica, tais como a política de salários, a po-lítica fiscal, etc; resta-lhe, apenas, como área de manobra,o controle do capital, mesmo assim, numa variante de con-trole que é o oposto do que é tentado nas épocas de crise:se já se assiste ao recurso contínuo e crescente de incentivoà inversão quando aritmeticamente a poupança real podesustentá-la e quando os canais financeiros já estão cria-dos, qual é o manejo do capital que pode se opor a umacrise decorrente de seu próprio excesso? Longe de seruma proposição reformista, o acesso das grandes massasda população aos ganhos da produtividade foi sempre umacondição "sine qua" da expansão capitalista, mas a expan-são capitalista da economia brasileira aprofundou no pós-anos 64 a exclusão que já era uma característica que vinhase firmando sobre as outras e, mais que isso, tornou aexclusão um elemento vital de seu dinamismo.

A superação dessas contradições não é um processoque possa ocorrer espontaneamente, nem os deserdados dosistema podem sequer pensar que uma reconversão da eco-nomia brasileira a um padrão menos desigualitário é umaoperação de pura política econômica (55). No estágio atual,

(55) Recentemente, tem se a s s i s t i d o a uma estranha polêmica noB r a s i l , em torno da distribuição da renda. Às objeções de quea concentração é um obstáculo ao desenvolvimento econômico e sintomade injustiça, social, tem-se respondido numa versão cabloca de humor negro— sem a categoria l i t e r á r i a deste — que a concentração da renda é umadecorrência da melhoria da educação; o humor consiste na "blague" deque a distribuição da renda é melhor e n t r e analfabetos. Para além docinismo que esse tipo de humor revela, há, evidentemente, a t e n t a t i v a Jácostumeira e n t r e tecnocratas de confundir a opinião pública, pela qual setem absoluto desprezo, mostrando que as " a r t e s " da economia estilo multoalém do que a opinião pública consegue apreender. Esse desprezo já é,em si mesmo, uma demonstração flagrante de que não houve t a n t a melhoriada educação como t e propala. Em segundo l u t a r , é um sofisma b a s t a n t efraco o de a n a l i s a r a distribuição da renda pela educação, ao i n v é s deanalisar-se a educação pela distribuição da renda, pois qualquer pai defamília sabe quanto custa a educação (ainda mais quando se pretende quea educação u n i v e r s i t á r i a seja paga). Quanto à melhor distribuição darenda e n t r e analfabetos, b a s t a r i a mostrar, como o faz abundantementeHoffmann em seu t r a b a l h o citado neste ensaio, que a distribuição na

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nenhuma das duas partes pode abrir mão de suas própriasperspectivas: nem à burguesia se pode pedir que abramão da perspectiva da acumulação, que é própria dela,nem às classes trabalhadoras se pode pedir que incorporea perspectiva da acumulação, que lhe é estranha. Essasituação conduz, inevitavelmente, as contradições da infra-estrutura a uma posição de comando da vida política dopais: a luta pelo acesso aos ganhos da produtividade porparte das classes menos privilegiadas transforma-se ne-cessariamente em contestação ao regime, e a luta pelamanutenção da perspectiva da acumulação transforma-senecessariamente em repressão. Essa dialética penetra hojeos mais recônditos lugares da vida nacional, em todas assuas dimensões, em todos os seus níveis: qualquer lugar,qualquer atividade, é hoje um campo de batalha, da músicaao cinema, das atividades educacionais aos sindicatos, daoposição consentida ao partido situacionista, do pregão dabolsa à pregação do padre; desapareceram as questões es-pecificas de cada uma das atividades "per se", para colo-car-se como problemática indisputada a questão da ma-nutenção do "statu quo" ou o seu oposto. Melancolica-mente, até mesmo a frágil oposição armada que tentouerguer-se contra o regime foi esmagada como o último apeloromântico ao sistema para que se reformasse em nomeda justiça social. Nenhum determinismo ideológico podeaventurar-se a prever o futuro, mas parece muito evidenteque este está marcado pelos signos opostos do "apartheid"ou da revolução social.

a g r i c u l t u r a b r a s i l e i r a , onde existe uma i m e n s a massa de analfabetos, é tãoou mais desigualitária que a do setor urbano. Restaria dizer que adistribuição da renda não é uma variável que possa ser corretamenteestudada tornando-as como amostra universos fechados, de trabalhadores daconstrução civil em oposição a trabalhadores da i n d ú s t r i a automobilística;os verdadeiros parâmetros de comparação não são e n t r e duas categorias detrabalhadores, mas e n t r e e s t a s e seus patrões. A esse humor cínico nãof a l t a apenas g r a ç a ; f a l t a também perspectiva científica e histórica, alémda compaixão, que é um dos elementos que distingue o homem das o u t r a sespécies animais.

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