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Francisco de Assis e a Reforma da Igreja por meio da Santidade Qua, 11 de Dezembro de 2013 08:30 O propósito desta meditação do Advento é preparar-nos para o Natal na companhia de Francisco de Assis. Dele, gostaria de destacar a natureza do seu retorno ao Evangelho. O teólogo Yves Congar, em seu estudo sobre “Verdadeira e falsa reforma na Igreja” vê em Francisco o exemplo mais claro de reforma da Igreja pelo caminho da santidade[1]. Gostaria de procurar compreender em que consistiu a sua reforma pelo caminho da santidade e o que o seu exemplo implica para cada época da Igreja, inclusive a nossa. 1. A conversão de Francisco Para entender um pouco da aventura de Francisco é preciso partir da sua conversão. Desse evento existem, nas fontes, diferentes descrições com notáveis diferenças entre si. Felizmente temos uma fonte absolutamente confiável que nos dispensa de escolher entre as várias versões. Temos o mesmo testemunho de Francisco no seu Testamento, a sua ipsissima vox, c omo se diz das palavras certamente ditas por Cristo no Evangelho. Diz: «O Senhor concedeu a mim, irmão Francisco, que começasse a fazer penitência assim: quando eu estava nos pecados parecia-me muito amargo ver os leprosos: e o próprio Senhor conduziu-me entre eles e fui misericordioso para com eles. E ao afastar-me deles, o que me parecia amargo foi-me trocado por doçura de alma e corpo. E, depois, demorei só um pouco e saí do mundo” » (FF 110). É sobre esse texto que justamente se baseiam os historiadores, mas com um limite intransponível para eles. Os historiadores, mesmo os mais bem intencionados e mais respeitosos com as peculiaridades da vida de Francisco, como era, entre os italianos Raoul Manselli, não conseguem entender o porquê último da sua mudança radical. Detêm-se – e com razão, por causa do seu método – na porta, falando de um “segredo de Francisco”, destinado a permanecer assim para sempre. 1 / 12

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Page 1: Francisco de Assis e a Reforma da Igreja por meio da Santidade...Francisco de Assis e a Reforma da Igreja por meio da Santidade Qua, 11 de Dezembro de 2013 08:30 O propósito desta

Francisco de Assis e a Reforma da Igreja por meio da SantidadeQua, 11 de Dezembro de 2013 08:30

O propósito desta meditação do Advento é preparar-nos para o Natal na companhia deFrancisco de Assis. Dele, gostaria de destacar a natureza do seu retorno ao Evangelho. Oteólogo Yves Congar, em seu estudo sobre “Verdadeira e falsa reforma na Igreja” vê emFrancisco o exemplo mais claro de reforma da Igreja pelo caminho da santidade[1]. Gostaria deprocurar compreender em que consistiu a sua reforma pelo caminho da santidade e o que oseu exemplo implica para cada época da Igreja, inclusive a nossa.

1. A conversão de Francisco

Para entender um pouco da aventura de Francisco é preciso partir da sua conversão. Desseevento existem, nas fontes, diferentes descrições com notáveis diferenças entre si. Felizmentetemos uma fonte absolutamente confiável que nos dispensa de escolher entre as váriasversões. Temos o mesmo testemunho de Francisco no seu Testamento, a sua ipsissima vox, como se diz das palavras certamente ditas por Cristo no Evangelho. Diz:

«O Senhor concedeu a mim, irmão Francisco, que começasse a fazer penitência assim:quando eu estava nos pecados parecia-me muito amargo ver os leprosos: e o próprio Senhorconduziu-me entre eles e fui misericordioso para com eles. E ao afastar-me deles, o que meparecia amargo foi-me trocado por doçura de alma e corpo. E, depois, demorei só um pouco esaí do mundo” » (FF 110).

É sobre esse texto que justamente se baseiam os historiadores, mas com um limiteintransponível para eles. Os historiadores, mesmo os mais bem intencionados e maisrespeitosos com as peculiaridades da vida de Francisco, como era, entre os italianos RaoulManselli, não conseguem entender o porquê último da sua mudança radical. Detêm-se – e comrazão, por causa do seu método – na porta, falando de um “segredo de Francisco”, destinado apermanecer assim para sempre.

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O que se consegue constatar historicamente é a decisão de Francisco de mudar o seu statussocial. De pertença à classe superior, que contava na cidade por nobreza e riqueza, eleescolheu colocar-se no extremo oposto, compartilhando a vida dos últimos, daqueles que nãoeram nada, os assim chamados “menores”, atingidos por todos os tipos de pobreza.

Os historiadores justamente insistem no fato de que Francisco não escolheu a pobreza emuito menos o pauperismo; escolheu os pobres! A mudança é motivada mais pelomandamento; “Ama o teu próximo como a ti mesmo”, que pelo conselho: “Se queres serperfeito, vai’, vende tudo o que tens e dá aos pobres, depois vem e segue-me”. Era acompaixão pela pobre gente, mais do que a busca da própria perfeição que o movia, acaridade mais do que a pobreza.

Tudo isso é verdade, mas ainda assim não toca o fundo do problema. É o efeito da mudança,não a sua causa. A escolha verdadeira é muito mais radical: não se tratou de escolher entreriqueza e pobreza, nem entre ricos e pobres, entre a pertença a uma classe mais do que aoutra, mas de escolher entre si mesmo e Deus, entre salvar a própria vida ou perdê-la peloEvangelho.

Houve alguns (por exemplo, em tempos mais recentes, Simone Weil), que chegaram a Cristopor meio do amor aos pobres e houve outros que chegaram aos pobres partindo do amor porCristo. Francisco pertence a este segundo grupo. A razão profunda da sua conversão não é denatureza social, mas evangélica. Jesus tinha formulado a lei uma vez por todas com uma dasfrases mais solenes e mais certamente autênticas do Evangelho:

“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quemquiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa a encontrará ”(Mt 16 , 24-25) .

Francisco, beijando o leproso, negou-se a si mesmo naquilo que era mais “amargo” erepugnante à sua natureza. Fez violência a si mesmo. O detalhe não escapou ao seu primeirobiógrafo que descreve assim o episódio:

“Um dia um leproso parou diante dele: fez violência a si mesmo, aproximou-se dele e obeijou. A partir daquele momento

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decidiu desprezar-se sempre mais, até que pela misericórdia do Redentor obteve plena vitória” [2].

Francisco não foi voluntariamente aos leprosos, motivado por humana e religiosa compaixão.“O Senhor, escreve, levou-me no meio deles”. É nesse pequeno detalhe que os historiadoresnão sabem – nem poderiam – dar um juízo, e de fato é a origem de tudo. Jesus tinhapreparado o seu coração para que a sua liberdade, no momento certo, respondesse à graça. Osonho de Spoleto tinha servido para isso e a pergunta de se preferia servir o servo ou o patrão,a doença, a prisão em Perugia e aquele mal-estar estranho que não lhe permitia maisencontrar alegria nas diversões e lhe fazia procurar lugares solitários.

Embora sem pensar que se tratasse de Jesus em pessoa sob as aparências de um leproso(como mais tarde tentou-se fazer, pensando no caso análogo da vida de São Martinho deTours[3]), naquele momento o leproso para Francisco representava em todos os aspectosJesus. Não tinha ele dito: “O fizestes comigo”? Naquele momento escolheu entre si mesmo eJesus. A conversão de Francisco é da mesma natureza daquela de Paulo. Para Paulo, emcerto momento, aquilo que antes tinha sido “lucro” mudou e tornou-se “perda”, “por amor deCristo” (Fil 3, 5ss); para Francisco aquilo que tinha sido amargo converteu-se em doçura,também aqui “por Cristo”. Depois deste momento, ambos podem dizer: “Já não sou eu quevivo, mas Cristo vive em mim”.

Tudo isso nos obriga a corrigir certa imagem de Francisco popularizada pela literaturaposterior e aceita por Dante na Divina Comedia. A famosa metáfora das núpcias de Franciscocom a Senhora Pobreza que deixou marcas profundas na arte e na poesia franciscanas podeser enganosa. Não se apaixona por uma virtude, nem mesmo pela pobreza; apaixona-se poruma pessoa. As núpcias de Francisco foram, como aquelas de outros místicos, um casamentocom Cristo.

Aos companheiros que lhe perguntavam se ele pretendia ter uma mulher, vendo-o uma noiteestranhamente ausente e brilhante, o jovem Francisco respondeu: “Terei a esposa mais nobree bela que vocês jamais viram”. Esta resposta é muitas vezes mal interpretada. Do contextoaparece claro que a esposa não é a pobreza, mas o tesouro escondido e a pérola preciosa, ouseja, Cristo. “Esposa, comenta Celano que narra o episódio, é a verdadeira religião que eleabraçou; e o reino dos céus é o tesouro escondido que ele procurou” [4].

Francisco não se casou com a pobreza, nem sequer com os pobres; casou-se com Cristo e

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foi por amor a ele que se casou, por assim dizer “em segundas núpcias” com a Senhorapobreza. Assim será sempre na santidade cristã. Na base do amor pela pobreza e pelospobres, ou está o amor por Cristo, ou os pobres serão, de um modo ou de outro,instrumentalizados e a pobreza se tornará facilmente um fato polêmico contra a Igreja, ou umaostentação de maior perfeição com relação a outros na Igreja, como aconteceu, infelizmente,também em alguns dos seguidores do Poverello. Em ambos os casos, faz-se da pobreza a piorforma de riqueza, aquela da própria justiça.

2. Francisco e a reforma da Igreja

Como foi que aconteceu que a partir de um evento tão íntimo e pessoal, como foi aconversão do jovem Francisco, tenha começado um movimento que mudou ao mesmo tempo orosto da Igreja e teve tanta influência na história, até os nossos dias?

É preciso dar uma olhada na situação da época. Na época de Francisco a reforma da Igrejaera uma necessidade sentida mais ou menos conscientemente por todos. O corpo da Igrejavivia tensões e lacerações profundas. De um lado estava a Igreja institucional – papa, bispos,alto clero – desgastados pelos seus perenes conflitos e pelas suas alianças muito próximascom o império. Uma Igreja sentida muito distante, envolvida em assuntos muito acima dosinteresses do povo. Em seguida, estavam as grandes ordens religiosas, muitas vezesprósperas pela cultura e espiritualidade após as várias reformas do século XI, entre as quaisaquela Cisterciense, mas fatalmente identificadas com os grandes proprietários de terras,senhores feudais da época, vizinhos e ao mesmo tempo remotos também eles, por problemase padrões de vida, do povo comum.

No lado oposto havia uma sociedade que começava a emigrar dos campos para as cidadesem busca de maior liberdade das várias servidões. Esta parte da sociedade identificava aIgreja com as classes dominantes das quais se sentia a necessidade de libertar-se. Assim, sealinhavam de boa vontade com aqueles que a contradiziam e a combatiam: hereges, gruposradicais e pauperísticos, enquanto simpatizava com o baixo clero, muitas vezes não com aaltura espiritual dos prelados, porém mais perto das pessoas.

Havia, portanto, fortes tensões que cada um procurava explorar em proveito próprio. AHierarquia procurava responder a estas tensões melhorando a própria organização ereprimindo os abusos, tanto internamente (luta contra a simonia e concubinato dos padres)quanto externamente na sociedade. Os grupos hostis procuravam, pelo contrário, explodir as

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tensões, radicalizando o contraste com a Hierarquia dando origem a movimentos mais oumenos cismáticos. Todos brandiam contra a Igreja o ideal da pobreza e simplicidadeevangélica fazendo disso uma arma polêmica, mais do que um ideal espiritual a ser vivido comhumildade, chegando a questionar também o ministério da Igreja, o sacerdócio e o papado.

Estamos acostumados a ver Francisco como o homem providencial que capta essasdemandas populares de renovação, as purifica de toda carga polêmica e as traz de volta ou asatua na Igreja em profunda comunhão e submissão a essa. Francisco, portanto, como umaespécie de mediador entre os hereges rebeldes e a Igreja institucional. Em um conhecidomanual de história da Igreja é apresentada dessa forma a sua missão:

“Já que a riqueza e o poder da Igreja apareciam muitas vezes como uma fonte de gravesmales e os hereges do tempo a utilizavam como argumento para as principais acusaçõescontra ela, em algumas almas piedosas surgiu o nobre desejo de restaurar a vida pobre deJesus e da Igreja primitiva, para poder assim mais eficazmente, influenciar no povo com apalavra e o exemplo” [5].

Entre estas almas coloca-se naturalmente em primeiro lugar, juntamente com São Domingos,Francisco de Assis. O historiador protestante Paul Sabatier, embora tão benemérito dosestudos franciscanos, tornou quase canônica entre os historiadores, e não só entre aquelesleigos e protestantes, a tese segundo a qual o cardeal Ugolino (o futuro Papa Gregório IX) teriatido a intenção de captar Francisco para a Cúria, domesticando a carga crítica e revolucionáriado seu movimento. Na prática é a tentativa de fazer de Francisco, um precursor de Lutero, ouseja, um reformador pela via de críticas, mais do que da santidade.

Não sei se esta intenção possa ser atribuída a algum dos grandes protetores e amigos deFrancisco. Parece difícil atribuí-la ao card. Ugolino e menos ainda a Inocêncio III, conhecidopela ação reformadora e o apoio dado às várias formas novas de vida espiritual surgidas emseu tempo, incluído os Frades Menores, os dominicanos, os Humilhados Milaneses. Umacoisa, porém, é absolutamente certa: aquela intenção nunca passou pela mente de Francisco.Ele nunca pensou ser chamado para reformar a Igreja.

É preciso ter cuidado para não tirar conclusões erradas das famosas palavras do Crucifixo deSão Damião “Vai’, Francisco e repara a minha Igreja que, como vês, está em ruínas”. As fontesmesmas nos asseguram que ele compreendeu aquelas palavras no sentido bastante modestode ter que reparar materialmente a igrejinha de São Damião. Foram os discípulos e os

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biógrafos que interpretaram – e, é preciso dizer, não sem razão – aquelas palavras como sereferindo à Igreja instituição e não só à Igreja edifício. Ele permaneceu sempre na suainterpretação literal e de fato continuou a reparar outras igrejinhas nos arredores de Assis queestavam em ruínas.

Também o sonho em que Inocêncio III teria visto o Poverello sustentar com as suas costas aIgreja de Latrão desmoronando não diz nada de mais. Supondo que o fato seja histórico (umfato análogo também é narrado sobre São Domingos), o sonho foi do papa, não de Francisco!Ele nunca foi visto como o vemos hoje no afresco de Giotto. Isto significa ser reformador pelocaminho da santidade: sê-lo, sem sabê-lo!

3. Francisco e o retorno ao Evangelho

Se não quis ser um reformador, o que foi que quis ser e fazer Francisco? Também aquitemos a sorte de ter o testemunho direto do Santo no seu Testamento:

“E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu deveria fazer; mas omesmo Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho. E eucom poucas palavras e simplesmente o fiz escrever, e o senhor Papa mo confirmou”.

Fala do momento no qual, durante uma Missa, escutou a passagem do evangelho ondeJesus envia os seus discípulos dizendo: “Enviou-os a pregar o reino de Deus e a curar osenfermos. E disse-lhes: «Nada leveis para o caminho, nem bastão, nem alforje, nem pão, nemdinheiro; tampouco tenhais duas túnicas” (Lc 9, 2-3)[6]. Foi uma revelação impressionantedaquelas que orientam toda uma vida. Daquele dia em diante foi clara a sua missão: umretorno simples e radical ao evangelho real, aquele vivido e pregado por Jesus. Restaurar nomundo a forma e o estilo de vida de Jesus e dos apóstolos descrito nos evangelhos.Escrevendo a Regra para os seus frades começará assim:

“A regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de nosso SenhorJesus Cristo”.

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Francisco não teorizou esta sua descoberta, tornando-a o programa para a reforma da Igreja.Ele realizou em si a reforma e assim indicou tacitamente à Igreja o único caminho para sair dacrise: reaproximar-se do evangelho, reaproximar-se dos homens e especialmente dos humildese dos pobres.

Este retorno ao Evangelho reflete-se em primeiro lugar na pregação de Francisco. Ésurpreendente, mas todos notaram: o Poverello fala quase sempre de “fazer penitência”. Apartir de então, diz o Celano, com grande fervor e exultação, ele começou a pregar apenitência, edificando todos com a simplicidade de suas palavras e a generosidade de seucoração. Onde quer que fosse, Francisco dizia, recomendava, suplicava que fizessempenitência[7].

O que é que Francisco compreendia com esta palavra que ele trazia tanto no coração? Nestesentido caímos (pelo menos eu caí por muito tempo) em erro. Reduzimos a mensagem deFrancisco a uma simples exortação moral, a um bater-se no peito, angustiar-se e mortificar-separa expiar os pecados, enquanto que tem toda a vastidão e o ar do evangelho de Cristo.Francisco não exortava a fazer “penitências”, mas fazer “penitência” (no singular!) que,veremos, é totalmente outra coisa.

O Poverello, exceto nos poucos casos que conhecemos, escrevia em latim. E o queencontramos no texto latino, do Testamento, quando escreve: “O Senhor deu a mim, fradeFrancisco, começar a fazer penitência assim”? Encontramos a expressão “poenitentiam agere”.

Sabe-se que eleamava expressar-se com as mesmas palavras de Jesus. E esta palavra – fazer penitência – éa palavra com a qual Jesus começou a pregar e que repetia em cada cidade e aldeia onde ia:

“Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus:cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”(Mc 1, 15).

A palavra que hoje se traduz com “convertei-vos” ou “arrependei-vos”, no texto da Vulgatausado pelo Poverello, soava “poenitemini” e em Atos 2, 37 ainda mais literalmente “poenitentiam agite” ,fazei penitência. Francisco nada fez além de relançar o grande apelo à conversão com o qualse abre a pregação de Jesus no Evangelho e aquela dos apóstolos no dia de Pentecostes. Oque ele quis dizer com a palavra “conversão” não precisa explicá-lo: sua vida, ele mostrou.

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Francisco fez no seu tempo aquilo que no tempo do Concílio Vaticano II tentou-se fazer como lema: “quebrar as muralhas”: quebrar o isolamento da Igreja, trazê-la de novo para o contatocom o povo. Um dos fatores de escuridão do evangelho era a transformação da autoridadecompreendida como serviço, em autoridade compreendida como poder que tinha produzidoinfinitos conflitos dentro e fora da Igreja. Francisco, por sua vez, resolve o problema em sensoevangélico. Na sua Ordem, novidade absoluta, os superiores se chamarão ministros, ou seja,servos, e todos os outros frades, ou seja, irmãos.

Outro muro de separação entre a Igreja e o povo era a ciência e a cultura da qual o clero e osmonges tinham o monopólio na prática. Francisco sabe disso e, portanto, assume a posiçãodrástica que sabemos sobre este ponto. Ele não é contrário à ciência-conhecimento, mas àciência-poder; aquela que favorece aqueles que sabem ler sobre aqueles que não sabem ler elhes permite comandar com altivez ao irmão: “Traga-me o breviário”. Durante o famosoCapítulo das Esteiras a alguns dos seus irmãos que queriam empurrá-lo a adequar-se à atitudedas “ordens” cultas do tempo, respondeu com palavras de fogo que deixaram, lê-se, os fradestomados de temor:

“Irmãos, meus irmãos, Deus me chamou para trilhar o caminho da simplicidade e o mostroupara mim. Não quero, portanto que me citem outras Regras, nem aquela de Santo Agostinho,nem aquela de São Bernardo ou de São Bento. O Senhor revelou-me ser sua vontade que eufosse um idiota no mundo: esta é a ciência à qual Deus quer que nos dediquemos! Ele vosconfundirá por meio da vossa mesma ciência e sabedoria” [8].

Sempre a mesma atitude coerente. Ele quer para si e para os seus irmãos a mais rígidapobreza, mas na Regra, exorta-os a “não desprezar e a não julgar os homens que vêmvestidos com hábitos finos e coloridos e usar comida e bebida delicadas, mas sim cada umjulgue e despreze a si mesmo”[9]. Escolhe ser um iletrado, mas não condena a ciência. Umavez assegurado que a ciência não extinga “o espírito da santa oração e devoção”, será elemesmo a permitir a frade Antonio de dedicar-se ao ensino da teologia e São Boaventura nãopensa que está traindo o espírito do fundador, abrindo a ordem aos estudos nas grandesuniversidades. Yves Congar vê nisso uma das condições essenciais da “verdadeira reforma” naIgreja, a reforma, ou seja, que permanece tal e não se transforma em cisma: isto é, acapacidade de não absolutizar a própria intuição, mas permanecer solidário com o todo que é aIgreja[10]. A convicção, diz o Papa Francisco, na sua recente Exortação apostólica Fideigaudium, que “o todo é superior à parte”.

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4. Como imitar Francisco

O que diz a nós hoje a experiência de Francisco? O que podemos imitar dele, todos erápido? Sejam aqueles que Deus chama a reformar a Igreja pelo caminho da santidade, sejamaqueles que se sentem chamados a renová-la pelo caminho da crítica, sejam aqueles que elemesmo chama a reformá-la pelo caminho do cargo que ocupam?  A mesma coisa com a qualse começou a aventura espiritual de Francisco: a sua conversão do eu a Deus, a sua negaçãode si. É assim que nascem os verdadeiros reformadores, aqueles que mudam realmente algona Igreja. Os mortos a si mesmos. Melhor, aqueles que decidem seriamente morrer a simesmos, porque se trata de uma empresa que dura toda a vida e também além, se, como diziabrincando santa Teresa de Ávila, o nosso amor próprio morre vinte minutos depois de nós.

Dizia um santo monge ortodoxo, Silvano do Monte Athos: “Para ser verdadeiramente livres, énecessário começar a ligar a si mesmo”. Homens como estes são livres com a liberdade doEspírito; nada os para e nada os espanta mais. Tornam-se reformadores pelo caminho dasantidade, e não somente pelo caminho do ofício.

Mas o que significa a proposta de Jesus de negar-se a si mesmo? É ainda possível propô-laa um mundo que fala somente de auto-realização, auto-afirmação? A negação nunca é fim emsi mesmo, nem um ideal em si. A coisa mais importante é aquela positiva: Se queresseguir-me; É oseguir Cristo, possuir Cristo. Dizer não a si mesmo é o meio; dizer sim a Cristo é o fim. Paulo aapresenta como uma espécie de lei do espírito: “Se com a ajuda do Espírito fazes morrer asobras da carne, vivereis” (Rm 8, 13). Isso, como se pode ver, é um morrer para viver; é ooposto da visão filosófica que diz que a vida humana é “um viver para morrer” (Heidegger).

Trata-se de saber qual fundamento queremos dar à nossa existência: se o nosso “eu” ou“Cristo”; na linguagem de Paulo, se queremos viver “para nós mesmos”, ou “para o Senhor” (cf.2 Coríntios 5, 15, Rm 14 , 7-8). Viver “para si mesmos” significa viver para a própriacomodidade, a própria glória, o próprio progresso; viver “para o Senhor” significa recolocarsempre em primeiro lugar, nas nossas intenções, a glória de Cristo, os interesses do Reino eda Igreja. Cada “não”, pequeno ou grande, falado a si mesmo por amor, é um sim dito a Cristo.

Somente deve-se evitar a ilusão. Não se trata de saber tudo sobre a negação cristã, suabeleza e necessidade; trata-se de passar ao ato, de praticá-la. Um grande mestre de espíritoda antiguidade dizia: “É possível despedaçar dez vezes a própria vontade em um brevíssimo

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tempo; e vos digo como. A pessoa está passeando e vê algo; o seu pensamento lhe diz: “Olhalá”, mas ele responde ao seu pensamento: “Não, não olho”, e despedaça assim a própriavontade. Depois encontra outros que estão falando (leia falando mal de alguém) e o seupensamento lhe diz: “Fale’ também você aquilo que sabe”, e despedaça a sua vontadecalando”[11].

Este antigo Padre traz, como se vê, exemplos tirados todos da vida monástica. Mas elespodem ser atualizados e adaptados facilmente para a vida de cada um, clérigos e leigos.Encontros, se não com um leproso como Francisco, com um pobre que você sabe que vai lhepedir algo; o seu homem velho te empurra a passar do lado oposto do caminho, e você pelocontrário, se faz violência e lhe vai ao encontro, talvez presenteando-lhe somente com umasaudação e um sorriso, se não pode fazer outra coisa. Oferecem a você a ocasião para umlucro ilícito: e você diz não e negou a si mesmo. Foi contestado em uma ideia; toca o pontosensível, gostaria de responder com força, cala e espera: despedaçou o seu eu. Acredita tersido passado pra trás, um tratamento, ou um destino não adequado aos seus merecimentos:gostaria de contar para todos, fechando-se em um silêncio cheio de tácita reprovação. Diz não,quebra o silêncio, sorri e reabre o diálogo. Negou a si mesmo e salvou a caridade. E assim pordiante. Um sinal que prova uma boa luta contra o próprio eu, é a capacidade ou ao menos oesforço de alegrar-se pelo bem feito ou a promoção recebida de outro, como se acontecesseconsigo mesmo:

“Bem aventurado aquele servo – escreve Francisco em uma das suas Admoestações – quenão se orgulha pelo bem que o Senhor diz e obra por meio dele, mas sim pelo bem que diz eobra por meio de outro”.

Uma meta difícil (eu não falo certamente como quem já a alcançou!), mas a história deFrancisco, nos mostra o que pode nascer de uma negação de si feita em resposta à graça. Ameta final é poder dizer com Paulo e com Ele: “Não mais eu que vivo, Cristo vive em mim”. Ehaverá alegria e paz plenas, já sobre esta terra. Francisco, em sua “perfeita alegria”, é umexemplo vivo da “alegria que vem do Evangelho,” do Evangelii gaudium!

 

Padre Raniero Cantalamessa, OFM Cap.

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Pregador da Casa Pontifícia

 

Referências

[1] Y.Congar, Vera e falsa riforma nella Chiesa,Milano Jaka Book, 1972, p. 194.

[2] Celano, Vita Prima, VII, 17 (FF 348).

[3] Cf. Celano, Vita Seconda, V, 9 (FF 592)

[4] Cf. Celano, Vita prima, III, 7 (FF, 331).

[5] Bihhmeyer – Tuckle, II, p. 239.

[6] Legenda dei tre compagni VIII (FF 1431 s.).

[7] FF, 358; 1436 s.; 1508.

[8] Legenda perugina 114 (FF 1673).

[9] Regola Bollata, cap. II.

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[10] Sobre as condições da verdadeira reforma veja Congar, ob. cit. pp. 177 ss.

[11] Doroteo di Gaza, Opere spirituali, I,20 (SCH 92,p.177).

 

Fonte: Site Oficial Padre Raniero Cantalamessa  - Traduzido do original italiano porThácio Siqueira

 

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