francisco das aves - daniel m givaudam

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  • 7/24/2019 Francisco Das Aves - Daniel m Givaudam

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    FRANCISCO DAS AVESCLARA E O SOL - OSEGREDO DE ASSIS

    ..CAPTULO 1 - FOI NUMTEMPO NO MUITO

    DISTANTE

    ..CAPTULO 2 - OSCHAMADOS

    ..CAPTULO 3 - UMAJANELA NA ALMA

    ..CAPTULO 4 - PELAPORTA DOS MORTOS

    ..CAPTULO 5 - AREVELAO DAS AVES

    ..CAPTULO 6 - A

    REVELAO DE DAMIETA..CAPTULO - AS

    DESILUS!ES

    ..CAPTULO " - OSPERGAMINHOS DE SO

    DAMIO

    ..CAPTULO # - O SANGUEE O $LEO

    ..CAPTULO 1% - A FLOR

    DO CARDO

    ..CAPTULO 11 - O &LTIMOC'NTICO

    ..CAPTULO 12 - O NOMEDO AMOR

    A histria de um convite

    Estranho foi o percurso da redao deste livro... Na realidade, as pedras que lheprepararam o caminho foram assentadas uns cinco anos antes do incio das suasprimeiras linhas. Eram bem discretas, na verdade, e, se sua repetio frequente no tivesseacabado por chamar-me a ateno, sem dvida eu loo as teria esquecido.

    Essas pedras, qual um fio condutor, apresentaram-se sob a forma de alumas refle!"eslanadas ao #acaso# em conversas com amios e conhecidos...

    Aqui e ali, di$iam-me ter sonhado comio, e o assunto era um livro que eu devia escreversobre %rancisco de Assis. &s sonhos nunca eram id'nticos, mas sempre terminavam com

    a mesma mensaem.

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    Estes e outros coment(rios estenderam-se por mais ou menos seis meses) depois maisnada... *il'ncio sobre o assunto. +ouve ento o surimento de outros livros, sobre outrostemas, que quase me fi$eram esquecer o que eu vaamente havia chamado proeto%rancesco#.

    /uase, mas no completamente... 0ealmente, que tema de escrita manfico o itiner(rio aomesmo tempo mstico e revolucion(rio desse 1overetto que iluminou toda a 2dade 34dia

    pela bele$a da sua alma5

    * que, para lanar-me num proeto assim, faltava-me, como aconteceu com todas asminhas outras obras, o que chamo #um verdadeiro sinal do 64u#.

    1ara di$er a verdade, falar de %rancisco de Assis pela mera bele$a do assunto no tinhaqualquer sentido. Em oito s4culos, sua vida e obra ( suscitaram milhares de livros. 1orque lhes acrescentaria mais um7

    *im, por qu'7 A menos que tivesse acesso a novas informa"es... /uanto a mim, tal comome encontrava, nada de especial tinha a di$er, nenhum dado in4dito. 8a vida do pobre$inho

    de Assis, conhecia poucas coisas, como ali(s acontece com a maioria de ns) devemosreconhecer.

    9udo isso levou-me a uma certa primavera em que, tarde da noite, uma vo$ bem audvelveio colocar-se bem no centro do meu cr:nio. Era to presente que no pude dei!ar delevantar-me e ir apanhar uma caneta para anotar de imediato o que ela me di$ia. ;rave casode esqui$ofrenia seundo as normas da nossa sociedade, concordo... mas fen

    6hiara... 6lara de Assis.

    %oi assim, nessas condi"es inesperadas, que nasceram as primeiras p(inas do relatoque o leitor tem entre as mos. *omente as primeiras p(inas, porque, sem a menordvida, escrever um livro dessa forma teria sido #muito f(cil#.

    8epois desse acontecimento decisivo - o verdadeiro sinal que eu auardava -, ficava

    evidente que cheara minha hora de air. A presena #em consci'ncia# de 6laraconvidava-me e!plicitamente a penetrar-lhe na memria, atrav4s do labirinto das suaslembranas, para restituir um retrato diferente de %rancisco.

    Ento, quase cotidianamente, durante lonos meses, foi-me dada a chave para poderinvestiar ? vontade no filme da 3emria do 9empo liado ? alma de 6lara de Assis e, ?sve$es, ? de %rancisco. @ importante, pois, que aqui se compreenda bem que, embora estelivro tenha para uns a apar'ncia de um romance, ele relata to somente a realidade de umae!ist'ncia.

    2ntil precisar que esse merulho da minha prpria consci'ncia no corao das peadas

    dei!adas no espao-tempo por %rancesco e 6hiara, depois por Anes, irm dela, teve parao homem que sou alo de desconcertante e emocionante> 3ais desconcertante ainda

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    quando me vi tra$endo de volta informa"es capa$es de modificar o olhar com que a+istria, e principalmente uma certa reliio, os v'em.

    A nature$a dessas informa"es - a que se deve o subttulo desta obra, & seredo de Assis,a meu ver ustifica plenamente o trabalho que me foi pedido. 6ada um o ular( por si...

    E um trabalho que foi reali$ado dia aps dia, #?s ceas#, isto 4, sem um plano

    preestabelecido, em total liao com as #presenas# contatadas e com a viv'ncia daminha alma no fio do tempo.

    2nfalivelmente, a confiana e o amor foram-lhe os reentes, porque, para di$er a verdade,foi s no decorrer da redao que lhe compreendi a ur'ncia e a pertin'ncia. 6om certe$a,a revelao a que %rancisco de Assis teve acesso no meio do seu caminho de vida poderiater mudado a face do 6ristianismo, se tivesse sido divulada. Ela nos teria audado a sairde um dram(tico realismo ao unir-nos ?s fontes puras da mensaem crstica, lone decensuras e manipula"es.

    Nesse sentido, no hesito em di$er com aleria que o testemunho que constitui este

    livro 4 perfeitamente her4tico... com relao ao doma oficial da 2rea. /ue no sea visto,por4m, como uma manifestao de hostilidade para com ela, porque 4 uma tentativapacfica de tra$er ? tona alumas verdades simples, to simples que amedrontarams4culos de hierarquia eclesi(stica. %aa-se o que se fi$er, toda lu$ sempre acaba por sairdo alqueire.

    As p(inas que se seuem no pretendem, por certo, traar ponto por ponto uma biorafiae!ata de %rancisco de Assis. 1elo contr(rio, esperam fa$er com que de novo e!ale operfume dalma que o habitou, pondo-lhe em evid'ncia o ardente seredo, o seredo de6lara tamb4m, assim como o profundo amor que os uniu em torno das peadas oriinaisdei!adas pelo 6risto realmente encarnado na 9erra.

    6ertamente sero desmentidas se comparadas com rande numero ae te!tos ditosaut'nticos, histricos, doutos o que receberam o imprimatur. No entanto, meu obetivo,repito, no 4 entrar em qualquer pol'mica, por mnima que sea. 2sso no teria nenhuminteresse. 6ontrariamente ao que frequentemente se afirma, no creio que se prepare a pa$fa$endo a uerra.

    Embora possa perturbar, este livro 4 antes de tudo um livro de amor. *e tira a mentira doseu esconderio, 4 sem arro:ncia, com ternura e compai!o.

    Espero que ele sea fiel ? memria do sublime par solar formado incontestavelmente por%rancisco e 6lara de Assis. No meu corao de escritor-testemunha, ele 4 um randeconvite ? unificao e ? felicidade...

    DANIEL M. GIVAUDAN

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    1 - FOI NUMTEMPO NO MUITO

    DISTANTE

    %oi num tempo no muito distante

    %oi num tempo no muito distante, parece-me. No entanto, dio-lhes, nosso mundo era umoutro mundo...

    Ano BCCD5 =m tempo de horrores e de inor:ncia, seundo aluns... 9alve$5 3as, aranto-lhes, era antes um tempo de fervor, um s4culo em que, ao nascer de cada dia, achava-sebelo e nobre louvar ao *enhor pela lu$ do sol que se levantava.

    & *enhor7 Acredit(vamos Nele como crianas5 2nenuamente sem dvida... certamentemesmo. Nossa f4 pueril, no entanto, fa$ia com que soub4ssemos sorrir. &h, sim5 Apesar dafome e das uerras, apesar da morte tamb4m, que nunca andava muito lone.

    E verdade, sabamos sorrir... e acho que era isso que nos fa$ia criar asas e nos davaforas para reali$ar randes coisas.

    14s nus, eralmente ... e sempre olhando mais alto, para o 64u, para aquela eternidade deque sabamos ser feitos e cua lembrana habitava nossa carne.

    Naquele tempo, minha alma tinha escolhido o nome 6hiara, que sinifica 6lara, e lembro-me tamb4m de que ela tinha deseado nascer numa famlia de Assis, nos arredoresperfumados daquele pas que ainda no se chamava 2t(lia. 9inha realmente deseado comtoda obstinao. ira que era l(, e no al4m, que tinha um encontro. 9inha contemplado todistintamente o caminho em que era esperada, que devia ach(-lo sem hesitar...

    F %rancesco5 3eu pequeno, meu rande, meu doce %rancisco5 Eu sabia que esse caminhoteria teu nome, um nome que sem dvida no tinhas escolhido, mas que devia aradar ao*enhor. 9alve$ tenha sido ele, esse nome, que te tornou to combativo e forte quando ovento soprava dentro de ti, de ns...

    %rancisco... Gembro-me de que me disseste um dia ter murmurado o nome Hoo ao ouvidodaquela que te p

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    #francos#.

    1or isso teve que acabar to cedo7 %oi por isso7 Nela vias o 64u, no entanto... e o 64u teamava5

    1rimeiras lembranas

    Naquela manh, acordei sobressaltada. 1ela clarabia da minha cela, mal emeriam osprimeiros clar"es da aurora.

    2mediatamente sentei-me sobre a minha en!era, pu!ando para mim o velho manto que meservia de coberta. 3inha cabea estava tomada por uma esp4cie de febre fria e noconseuia livrar-se de um sonho muito estranho...

    *eria um sonho, ali(s7 No, no podia ser... Era ele, %rancisco, que queria di$er-me alumacoisa. 9inha acabado de v'-lo, ali, a dois passos de mim. Estava de p4 sobre a erva, e tinhaeruido lieiramente a barra da sua veste o suficiente para que eu visse seus p4s...Estavam em decomposio... Era terrvel, e no entanto eu no senti medo.

    #em, 6hiara, vem5#, ouvi ento. Eram as palavras que tinham me acordado, fa$endo meucorao bater to violentamente no peito. No esperei nem mais um instante. 6alceiminhas sand(lias imprenadas pelo frio do cho, peuei meu manto e empurrei a portabai!a do luar onde eu dormia.

    9eria ficado louca7 /ue estava acontecendo comio, que tantas ve$es me impedira de irvisitar meu amio dalma, l( embai!o no vale7 3al se en!erava l(... /ue iria di$er ?soutras a quem recomendava tanta discrio7 Nada aora importava. =ma fora me impeliae eu no procurava mesmo resistir-lhe.

    Andando ?s ceas pelo corredor para o qual davam quase todas as celas da nossa6omunidade, adivinhei, por uma porta entreaberta, a silhueta da minha irm Anes e deduas outras companheiras. Aqui, ali, tossiam. No deviam ver-me sair... No queria ter deme e!plicar. 2a para o vale visitar %rancisco, como ele me pedia, e era tudo...

    1or sorte, a porta da nossa casa, situada loo atr(s da irea de *o 8amio, no raneu./uanto ?s portas da cidade, dois uardas transidos de frio acabavam de levantar-lhe atrave. 3eio adormecidas, as sentinelas no disseram uma s palavra) com ar aparvalhado,apenas me cumprimentaram com uma e!aerada demonstrao de respeito que me dei!ouconstranida.

    A partir da, lembro-me de ter descido o caminho que corria serpenteando por entreoliveiras e carvalhos-an"es. 1oderia torcer os torno$elos, mas... nada disso5 +avia sempreaquela fora que no me abandonava e que me dava a impresso de estar flutuando acimados obst(culos. Apenas uma prea da minha roupa ficou presa numa rande moita decardos, obriando-me com isso a recobrar o f

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    I *enhor sea louvado5 @s tu, 2rm 6hiara. em depressa5 2rmo %rancesco manda tebuscar... Est( partindo, me parece.

    E quando 2rmo Geone acabava de falar, as ltimas palavras foram sufocadas na arantanum soluo reprimido.

    No me peruntou por que eu estava l(, so$inha, a uma hora to indecente para os nossos

    h(bitos. *em dvida adivinhava-o. 9nhamos vivido tantas coisas que a cumplicidade do2nvisvel no era motivo capa$ de surpreender nossa alma.

    A capela de 1orcincula hoe enlobada na Jaslica de *anta 3aria dos Anos.

    No tive vontade de questionar 2rmo Geone. 6omo, por que... nada disso tinhaimport:ncia. Era preciso chear o mais r(pido possvel ao refio no vale, aqueleencostado ? capela que %rancisco tinha restaurado to bem com suas prprias mos.

    Atr(s do irmo, pus-me a correr como podia, repetindo a cada passo o nome de Nosso*enhor, na esperana de Nele encontrar fora e vontade.

    %ora e vontade... era o que ele sempre nos tinha pedido) ele que aora ia partir...

    *ob um c4u que se tornava mais branco, as paredes do refio e o telhado da capelafinalmente apareceram na curva do caminho por entre o arvoredo, os espinheiros e aservas altas.

    %oi no celeiro que serve de hospital que o instalamos. Ele no queria... quase tivemosque for(-lo.

    2rmo Geone - %rate Geone, como o cham(vamos - estava e!austo quando empurrou aporta da pequena construo diante de mim. 2noro por que, mas devo di$er que umaaleria estranha apoderou-se ento do meu corao, uma aleria que me dava vontade dechorar. Jai!ei a cabea e penetrei sob o prtico.

    G(, enfileirados, havia aluns fei!es de palha e as rodas de uma charrete. A pea,ra$oavelmente ampla, havia sido dividida em v(rias partes por velhos lenis suspensosnas traves, dando assim a iluso de criarem um pouco de intimidade. &uvi ora"es queestavam sendo recitadas em latim, e meu corao p

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    E!austo, sempre em orao, tinha conversado comio s aluns minutos sob aamendoeira que ficava a dois passos da capela. /uase ( no en!erava mais ecompreendi perfeitamenKte que no queria mostrar-se assim por um certo pudor.

    8era-me aluns conselhos quanto ? boa administrao da 6asa das 8amas 1obres, queestava a meu caro) depois, como tinha olhado para ele com um ar visivelmentepreocupado, conKcluiu, acrescentando meio triste>

    No te preocupes, 6hiarina... 4 s aluma coisa que est( cansada...

    6hiarina... Era assim que ele me chamava quando tinha certe$a de que ninu4m mais oestava ouvindo.

    endo-me apro!imar-me do catre, um dos irmos que estavam orando afastou-se para olado, a fim de que eu pudesse acomodar-me no cho. 6reio que quase me dei!ei cairinconscientemente. Na verdade, meu olhar no conseuia desviar-se do rosto de%rancisco. 3al o reconhecia. Ele, que antes ( era to maro, aora no passava de umperaminho amarelado e percorrido por sulcos como um campo bem lavrado.

    Eras mesmo tu, %rancesco7 6omo cheaste a isso, tu, a quem o *enhor 8eus tinha dadotanto) tu, que tanto & tinhas amado tamb4m7 *abe como me fi$ esta perunta7 Ela no meatormentava. No... 1rocurava somente compreender teu mist4rio.

    *orri... e foi nesse momento, lembro-me, que abriste lieiramente os olhos.

    Apro!ima-te, minha 2rm, ele no te en!era - murmurou %rate Geone inclinando-se naminha direo.

    1ara de di$er bobaens, Geone5... 9alve$ ( no vea rande coisa, mas ouo bem...

    8oce e (spera ao mesmo tempo, em ra$o do esotamento que tradu$ia, a vo$ de%rancisco quase nos assustou, ( que no a esper(vamos.

    9u me chamaste, %rancesco7

    Ele fe$ um sinal afirmativo com a cabea, enquanto 2rmo Elias, ? sua esquerda, tentavadissuadi-lo de eruer-se apoiando-se nos cotovelos.

    No mesmo instante, dei-me conta de que, contrariando o reulamento interno da nossa

    6omunidade, simplesmente o tinha chamado pelo prenome.2mediatamente senti o olhar reprovador de todos os que estavam l(... mas no meimportava. Era a alma de %rancisco que eu tinha ido encontrar) a alma que me haviarevelado o caminho, no o fundador da &rdem.

    1ois bem, que... /ue tendes vs todos7 %a$endo-nos novamente estremecer por suareao, %rancisco fechou os olhos lentamente.

    8ei!ai-me s com 2rm 6hiara - murmurou ento entre dois acessos de tosse. 2de...

    +ouve um sil'ncio e adivinhei que os quatro homens se olhavam embaraados.

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    3as... 4 contr(rio ? nossa rera - aueou enfim um deles. - As mulheres...

    &ra5 As reras so feitas para os homens, meu irmo. &s homens mudam e passam.Goo quem passar( sou eu...

    A vo$ de %rancisco tornara-se de repente mais viorosa) senti-me corar pelo mal-estar queeu estava provocando.

    1or um instante que me pareceu intermin(vel, ninu4m se me!eu) depois %rancisco deuum lono suspiro que falava de impaci'ncia. * ento os quatro mones se levantaram.&uvi-os afastar-se sem uma palavra, depois sentar-se finalmente no outro lado da pea,atr(s da fileira de uma de$ena de lenis pendurados. Enfim a porta do hospital irousobre os on$os... certamente um dos mones preferira sair.

    Apaa essa vela por favor, *orella. No se deve desperdi(-la. Eles astaram duas estanoite... No conseui impedi-los.

    Estendi minha mo acima de uma chama$inha que crepitava num canto da parede e de

    repente vi o rosto de %rancisco mudar. =m laro e meio sorriso p

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    1ela seunda ve$ desde que tinha cheado, senti-me corar e no pude impedir-me dereaustar meu v4u na cabea.

    =ma lembrana de ns7 9ens veronha dela7 *ua vo$ estava quase e!tinta.

    Eu no... Em todo caso, aora no tenho mais. 1edi pa$ a Nosso *enhor... Ele merespondeu que sempre ma tinha oferecido, mas que eu nunca sabia abrir minha mo o

    suficiente. 3eses depois, consio um pouco melhor... enfim, acredito.

    6onta-me... conta-me para que eu saiba se 4 realmente verdade, se no tenho maisveronha...

    6ontar-te...7 %rancesco...

    No vi onde %rancisco queria chear. 9alve$ estivesse com febre7 Nunca tinha faladoassim antes. E os outros tr's que estavam sentados no fundo da sala... Jem que deviamestar tentando ouvir tudo aquilo5 &uvia-os re$ar, mas... somos todos to fracos5

    *er( esta a hora de esquadrinhar o passado, meu irmo7

    im para seurar a mo da tua alma, pois mo pediste.

    1odes simplesmente seurar minha mo...

    %ini no ter ouvido. %rancisco e!plodia todas as reras de vida que nos havia dado. 3aisuma ve$, um laro e doce sorriso instalou-se nos seus l(bios, mais terno do que oprecedente, talve$.

    & *enhor est( em toda parte) percorre todos os caminhos e fala todas as lnuas,irm$inha. 6onta-me em sil'ncio, se preferes...

    Ali, tive fora e ousei pear a mo de %rancisco que, envolta numa atadura, sobressaa umpouco da coberta rosseira que o aquecia precariamente. * tive o cuidado de escond'-lasob a dobra da minha mana. Em sil'ncio... *im, seria melhor. & sil'ncio... no era o quede mais belo ele nos tinha ensinado7 Era sempre todo dourado, esse sil'ncio... Nele sepassavam tantas coisas5

    1or um instante peruntei-me por que %rancisco queria que merulhasse naquela#lembrana de ns#, sem dvida a do momento do nosso encontro, quin$e ou de$esseis

    anos antes. %inalmente pus de lado quaisquer retic'ncias e, por tr(s das p(lpebrasfechadas, dei!ei as imaens das minhas lembranas surirem. Eu as tinha reprimido tantasve$es, como se pertencessem a um velho mundo, suo e inconfess(vel5

    %rancisco talve$ tivesse vinte e cinco anos, nem sei mais, e tnhamos nos encontrado novale, no muito lone da capela em runas. 3eio selvaem, eu tinha adquirido o h(bito defuir de casa por lonas horas sem que meus pais se preocupassem com isso. Na maiorparte do tempo, s minha irm Anes sabia onde eu estava. &h, eram to inocentes minhasescapadas de adolescente5...

    Na verdade, ostava de estar s e orar a 8eus. %ora, l( onde, parecia-me, a nature$a

    cantava discretamente, tinha certe$a de melhor encontr(-Go do que nas ireas. 1ara mim,era uma esp4cie de evid'ncia que no dava marem ? discusso.

  • 7/24/2019 Francisco Das Aves - Daniel m Givaudam

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    Aquela ve$, por4m, foi um pouco diferente. +avia alu4m no fim do meu caminho. No setratava de um encontro alante, certamente no... 8e tanto cru$ar-se na praa e nas ruelas,alo estranho se passara entre o olhar de %rancisco e o meu. & dele era to claro e totriste, querendo parecer ao mesmo tempo to alere e interroando-me constantemente.

    No sei mais por que %rancisco acabou me di$endo que ia ao vale todas as manhs. Aquilo

    combinava muito pouco com ele, com todos aqueles rapa$es barulhentos sempre andando? sua volta. 9amb4m no sei, ali(s, o que me fe$ responder-lhe que eu tamb4m ostava deestar l( embai!o e que iria cumpriment(-lo a partir do dia seuinte.

    /uando nos encontramos perto do rande bosque de loureiros que marcava o fim davereda, tive a impresso de que 4ramos dois velhos amios. No entanto, como nem umnem outro sabamos o que di$er, pus-me a falar-lhe de Nosso *enhor que tanto mehabitava. Gembro-me, principalmente, de ter-lhe dito que eu & via por toda parte e que Eleera toda minha vida.

    No sei... - respondeu-me ele, meio surpreso. - No sei se se pode re$ar bem numa

    capela cuo telhado est( no cho...

    /ueres re$ar comio... aora7

    No sei... & fato 4 que devo partir de novo com a espada para untar-me ?s tropas do*enhor de Jrienne. No pr!imo m's, talve$...

    ais matar ente, ento7

    No, no... mas vou lutar. 2sso 4 certo5

    @ isso mesmo que eu disse...

    No podes compreender...

    @ verdade - surpreendi-me respondendo-lhe com desembarao -, mas possocompreender que teu corao estea dividido em dois... *eno no virias aqui) h( tantosluares onde poderias estar melhor do que diante dessas paredes caindo em runas.

    %rancisco no replicou. i que o tinha maoado e imediatamente me censurei por isso.

    ir(s aqui amanh7 - peruntou ele, virando o rosto como se tivesse l(rimas nosolhos. - 1reciso voltar, 4 mais tarde do que eu pensava.

    No dia seuinte, evidentemente, l( estava eu ? mesma hora. 6omo parecia ter sido aprimeira a chear, decidi esperar na sombra, atr(s dos loureiros.

    Gembro-me de ter en!uado a testa com a mana do meu vestido, e foi ento que alu4msuriu das folhaens, ritando bem alto. Era %rancisco5 ;elou-me o sanue... %iqueiboquiaberta diante dele, que ria muito...

    8epois, no sei o que realmente aconteceu... No momento seuinte, ouei-me contra ele,

    nossas mos se encontraram... nossas bocas se tocaram de leve. 1us-me ento a chorarcomo se acabasse de cometer a mais terrvel das faltas, e ele comeou a passar-me

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    docemente a mo nos cabelos...

    6hiarina - murmurava -, perdo...

    %oi a primeira ve$ que me chamou assim, sem conseuir di$er outra coisa a no ser repetir>perdo, perdo...

    %rancisco e eu voltamos a ver-nos quatro ve$es seuidas, muito castamente, emboraabrasados por uma febre que nos era desconhecida.

    6arcias de olhos, carcias de mos que no se atrevem, carcias de cora"es que noencontram palavras...

    /uanto a mim, eu flutuava acima do cho e me acusava de estar traindo o *enhor Hesus aocometer o que via como o mais veronhoso dos pecados. Eram as portas do 1araso e asdo 2nferno ao mesmo tempo.

    %oi quase um alvio quando %rancisco partiu de repente para untar-se ao pequeno e!4rcito

    que ia uerrear. 6edo, pela manh, avistei-o com uma armadura relu$ente, montado numcavalo de batalha. 6om uma de$ena de companheiros, estava prestes a cru$ar as portas dacidade. Nossos olhos finiram que no se conheciam, ou mal se conheciam... /ue triste$a5

    Gembra-te, %rancesco7 Est(vamos no ano de BCIL de Nosso *enhor, e era o fim do vero.

    %oi doce e terrvel naquele tempo, no 4, irm$inha7

    A vo$ assombrosamente timbrada de %rancisco forou-me a abrir as p(lpebras. 3eu8eus... teria ele lido a esse ponto nas minhas lembranas, nas nossas lembranas7 Entoteria verdadeiramente se tornado quase como o *enhor Hesus7

    Gembra-te do tempo em que eu queria tornar-me cavaleiro e atacar 1eruia7 /ueloucura5 Eu tinha foo demais dentro de mim e no sabia para onde dirii-lo. Nosso *enhorparecia-me to distante com suas e!i'ncias que ninu4m queria ouvir5 +oe posso di$er-te que muitas ve$es me diverti na companhia de ;iovanni e dos outros aos passar na ruela,perto das co$inhas do bispo. Aquilo tinha um cheiro to bom5

    &lhos febris, %rancisco buscava f

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    No conseui renunciar... lutar.

    *ob a coberta que pu!ava para si, %rancisco conteve um lono soluo e mais uma ve$pensei que estava delirando. /uis dar-lhe um pouco d(ua, mas recusou-a, apertandomais forte ainda tr's dos meus dedos nos seus.

    ' - recomeou, aora com uma vo$ quase apaada -, a mentira so estas mos que seescondem. Elas tamb4m lutam...

    Eu no sabia o que di$er. Apenas uma perunta acabou atrevendo-se a chear ? borda dosmeus l(bios.

    9ens um seredo, %rancesco7

    6omo nica resposta, s recebi um sorriso e a imaem de dois olhos que se fechavam natmida claridade da manh. No corao do lono sil'ncio que de novo se instalava, cenasdo passado recomearam ento a invadir-me, apesar da minha vontade de conelar o

    instante presente.

    1or que ter chamado o passado, %rancesco7 1or qu'7 9u que querias avanar sempre ereinventar este mundo para a eternidade vindoura5

    Eu sei... um dia me disseste que todos tnhamos um seredo, mesmo que o inor(ssemos,mesmo que ul(ssemos o contr(rio. 8isseste-me que esse seredo era a locali$ao daporta atr(s da qual o *enhor 8eus se escondia em ns e que sEle sabia quando e como chearamos ao seu limiar. Em seuida, acrescentaste queninu4m podia ular ninu4m, porque ninu4m conhecia o caminho que levava cada um ?sua prpria porta de despertar.

    %oi to lindo quando me confiaste isso5 9inhas voltado de *poletto h( duas ou tr'ssemanas. 8i$iam que estavas doente e que por isso tinhas desistido de lutar. 1ara ti issoera bem conveniente... mas eu, loo vi que no era verdade. 9eu olhar tinha alo detransparente. Eu ainda era bem ovem, mas depressa compreendi que tinhas sidoatravessado de um lado a outro por uma espada que nada tinha de humano.

    Aquele dia, no vale, no havia mais motivo para que nossas mos se tocassem. Estavaclaro que no querias, que reunias todas as tuas foras para que aquilo no acontecesse.No me lembro se fiquei feli$... No o creio, mas aquilo tranquili$ou-me. 9inha medo de ir

    contra o chamado que sentia na minha alma e tinha imainado que o perio vinha de ti.3antendo-me prudentemente a aluns passos, me atrevi a falar-te da estranha espada quesentia merulhada no teu corpo. 3inha refle!o te dei!ou to alere5

    Ao contr(rio - me respondeste -, essa espada 4 verdadeiramente humana5 9em ahumanidade que todos ns deveramos conhecer, uma divina humanidade, 6hiara... 9odosns, aqui, 4 que no somos mais humanos. Esquecemos o que esta palavra sinifica.Acreditar(s em mim se te disser que comecei a reencontrar a memria7

    *acudi a cabea para te di$er sim. Efetivamente, %rancesco, no era difcil acreditar em ti.

    9eus olhos tinham se iluminado como as duas randes velas que acendamos sempre nocoro de *o 8amio no dia de 1(scoa.

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    6ompreendi que ostarias de falar mais, mas no podias. As id4ias entechocavam-se natua cabea. 9entaste... mas era cedo demais.

    =m som de passos tirou-me subitamente daquele passado que revivia em mim. irei acabea e desprendi meus dedos dos de %rancisco.

    2rmo Elias acabava de apro!imar-se) as mos atadas por seu tero de sementes deabbora.

    *orella... H( fa$ mais de uma hora... 9alve$ fosse prudente...

    Elias... - a vo$ de %rancisco pareceu-me vir de um outro mundo. 8ecidida e cansada aomesmo tempo, ela no dei!ou a 2rmo Elias a possibilidade de terminar sua frase. - Elias,em ve$ de di$er bobaens, auda-me a encostar-me a esta parede.

    Gembra-te... +( momentos em que o tempo dos homens no conta mais) so momentos emque o 9empo de 8eus se instala. No vos ensinei a sentir esses momentos chearem e a

    acolh'-los7 +oe, estou ensinando isso ? nossa 2rm... No rias assim. 8ei!a minha almafalar) quando o 9empo de 8eus sure, todas as reras dos homens no passam de umpunhado de areia ao vento.

    2rmo Elias nada replicou. &uvi-o conter uma esp4cie de suspiro) depois foi audar%rancisco, que ( estava tentando apoiar-se contra a pedra da parede. %inalmente, sem umapalavra, Elias procurou os dois p4s do seu irmo embai!o da coberta para colocar neles asmos por um instante, em sinal de respeito.

    E difcil para eles - murmurou %rancisco enquanto o mone se afastava para retomarseu luar no fundo da pea.

    Acho que os maltratei um pouco... 1assei a vida traando-lhes uma vereda muitoestreita, a que eu via na minha alma como uma trilha luminosa entre os espinheiros, edepois... eis que fiquei meio louco e a vereda se alarou. E ento eles v'em seu irmoarantir-lhes que h( verdadeiras rosas brotando nos espinheiros que deviam evitar. @difcil compreender isso... admitir que uma vereda possa enfim transformar--se numcaminho, num caminho que no corre to reto como se pensava e que pode mesmoserpentear por paisaens que no se havia suspeitado...

    Nunca me falaste assim, %rancesco.

    ... porque eu no era assim... porque nunca tinha visto a 1orta de to perto...

    9eu seredo7

    *im... &uve-meG. Enquanto andamos sem olhar para tr(s nem parar, h( verdades queacreditamos serem definitivas.

    /ue queremos que o seam. Aarramo-nos a elas e as impomos quando podemos, porque,se delas nos afastarmos, sabemos que sentiremos medo. &uve-me... sei que vai te parecerque estou reneando e quebrando um uramento. 8e tanto inorar esse medo, de tanto

    fuir dele, de caminhar reto na minha vereda, talve$ eu tenha descoberto outro medo> o decessar o combate, de acabar com minha condio de cavaleiro. 6ompreendes7

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    2sso sinifica que o medo est( se afastando... seno terias medo de prender tua roupade novo nos espinhos da beira do caminho. Est( tudo bem quando se tem a coraem detranspor uma passarela sem parapeito. 6ompreendeste isso mais cedo do que eu, *orella...

    Eu sabia que nada havia a responder diante dessas palavras. %rancisco amais aceitara quecontestassem o que chamava sua insinific:ncia nem que rendessem homenaens aocaminho que havia desbravado. 8i$ia ter a simplicidade dos que eralmente compreendem

    tudo muito lentamente. 3esmo seu amor por Nosso *enhor e por tudo que e!iste parecia-lhe pequeno demais, insinificante demais, no estava ? medida das suas aspira"es.

    G( no alto, na colina, os sinos da nossa cidade puseram-se a tocar uns depois dos outros.& som tinha alo de bom para o corao. %alava de uma pure$a um tanto infantil, rstica e?s ve$es desaeitada como certamente era a nossa. No sabia que ofcio estavamanunciando. & tempo se havia deformado tanto desde a minha cheada5 &s laudes (tinham passado h( uma eternidade...

    2sso deve ser pelo velho 9ubaldini - comentou %rancisco. - *ua alma veio ver-me a noitepassada. *oluava. Esperava ver o *enhor Hesus na lu$, mas di$ia que Ele no tinha vindo

    e ninu4m o esperava. Gamentava-se... ento falei-lhe. Estava perdido, compreendes, tinhase esquecido de tudo...amos re$ar untos por ele7

    Aora, tamb4m, sabia que era intil resistir. 3esmo quando seu corpo o fa$ia sofrer mais,%rancisco no queria pensar em suas prprias dores.

    @ porque 3estre 6risto se lembra de mim - di$ia ?s ve$es em tom de brincadeira. - Eleme ara como um bom campo que vai semear. &cupemo-nos antes com os leprosos) elesprecisam mais de nossas mos e das nossas preces.

    Gembro-me de ter-me rebelado no incio. Era duro demais... 8epois compreendi que%rancisco sofreria muito mais se no pudesse oferecer seundo seu corao e se no oimit(ssemos nisso.

    6erta manh houve um estalo, um leve rudo no centro da minha cabea, como o de umalhinho que se quebra. 2mediatamente senti uma esp4cie de descontrao profunda eaceitei... 6ompletamente. #& %rancesco#, disse comio mesma, #tens ra$o5#. 1ude entocomear a dar sem contar, e senti com isso tamanha aleria...

    6hiara7 amos re$ar pelo velho7

    %rancisco e eu comeamos ento uma lona ladainha toda em latim, como sabamos fa$'-lo e como havamos feito tantas ve$es. Era uma orao intermin(vel que ele mesmo haviacomposto e na qual havia includo palavras santas que o prprio *enhor Hesus tinhapronunciado. %rancisco ostava de escrever ora"es.

    1ara ele, no eram ora"es no sentido em que o entendamos comumente naquele tempo./uando se permitiu escrever verdadeiramente, seundo seu corao e no somente comorespons(vel por nossa &rdem, havia alo diferente no que di$ia ou no que sua penatraava no peraminho. *ua prece no era mais um pedido, transformava-se numaradecimento que fa$ia o corao transbordar de ternura. Era nesses momentos que%rancisco se tornava mais ele, mais doce... quando simplesmente falava como um

    irmo$inho an

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    3uitas ve$es vi-o parar em plena prece) pouco importava que estiv4ssemos l(, atr(s dele,repetindo as palavras que lhe ocorriam. Ento punha-se a sorrir to abertamente que eutinha certe$a de que intimamente estava rindo.

    %oi e!atamente o que aconteceu bem no meio das nossas ladainhas pelo velho 9ubaldini.6omo %rancisco se calara de repente, abri os olhos para ver o que estava acontecendo. Eleme olhava fi!amente com aquele ar divertido que s os pequeninos conseuem ter.

    Enraado - disse num tom que lhe tradu$ia bem o olhar -, 4 enraado... o velhoesperava ver Nosso *enhor ao dei!ar este mundo... 3as por que o veria, se se preocupavato pouco com Ele7 No & via como um amio... apenas como um passante, ou umaesp4cie de m(ico e contador de histrias a quem interpelava quando aluma coisa ia male precisava 8Ele. No podemos nos comportar assim, no 4, 6hiara7 /uando se est( commedo, pode-se ficar to aparvalhado a ponto de dar ordens ao 64u7 3as no lhe bastaquerer, no... Ele no sabe... 4 velho, mas... 4 to ovem tamb4m. *omos todos mais oumenos como ele. 1edimos e e!iimos quando estamos mal... mas nos esquecemos quandoestamos de barria cheia.

    *er( que 4 por isso que a dor e o mal e!istem7 1ara que se aprenda a recobrar a memria...

    =m lono acesso de tosse obriou %rancisco a parar. Ele dei!ou que seus olhos sefechassem e, um instante depois, retomou no ponto onde havia interrompido sua ladainhados #novos viventes#, como a tinha bati$ado.

    No entanto, seus l(bios no tiveram por muito tempo fora para continuar a enrenar aspalavras tantas ve$es repetidas. 6ompreendi que, esotado, %rancisco havia adormecido.*ua respirao se tornara mais lenta, enquanto a cabea pouco a pouco se inclinara sobreo ombro. Em sil'ncio, no pude impedir-me de contempl(-lo assim por um bom momento.%inalmente, peuei aquilo que me servia de manto e o estendi sobre ele para aquec'-lo umpouco mais. 6omo no tinha pensado nisso antes7

    1elo canto do olho, percebi %rate Geone apro!imando-se discretamente e aproveitei paralevantar-me) uma esp4cie de refle!o antes que ele me dissesse alo que eu no tinhavontade de ouvir.

    8ei-lhe um sorriso acompanhado de um pequeno sinal de cabea e sa do hospital dosirmos.

    G( fora o ar estava perfumado. +avia um aroma indefinvel subindo da terra, e uma leve

    brisa brincava com ele. 1or tr(s das ervas altas e dos loureiros, as muralhas de Assis, noalto da sua colina (rida, atraram-me o olhar. & campan(rio de *o 8amio perfilava-senum canto do c4u como um apelo lanado ao 2nfinito.

    /uantas lembranas suas pedras no tinham uardado secretamente5 /uantas lembranasvivas5

    8AN2EG 3. ;2A=8AN

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    2 - OSCHAMADOS

    &s chamados

    /ueria que o dia seuinte cheasse correndo...

    Ao dei!ar %rancisco entreue aos irmos no seu pequeno hospital, o tempo petrificou-sena minha alma. No me lembro da volta ? 6asa das 8amas 1obres nem do que possa terdito ?s sorelle que deviam ter-se preocupado com minha aus'ncia to matinal.

    +( v(rios meses todos e todas sabamos que %rancisco estava muito doente e consumidona sua carne de homem. No entanto, quando uma partida se torna iminente, de repentetudo muda de tom. No sabemos mais se estamos saindo de um torpor ou se, ao contr(rio,estamos entrando no sonho de uma outra realidade. A realidade sem o outro... que noacredit(vamos ser verdadeiramente possvel.

    1assada a noite, uma ve$ entoados as matinas e os laudes, cantados numa n4voa interior,forcei-me a esperar que o sol subisse um pouco no c4u.

    9inha-me dito, estupidamente, que isso seria mais decente para retomar o caminho do vale.& olhar dos outros... sempre5

    8epois, finalmente, pus de lado meus escrpulos e, em ve$ de entrear-me ?s tarefascotidianas de arrumar e remendar, sa correndo.

    Estou voltando - disse lacnicamente ? minha irm Anes, que procurou abraar-me.8epois acrescentei> Elas tamb4m, um dia, abandonaram tudo quando viram que seu

    3estre, Nosso *enhor, ia ao encontro da morte.

    /uando, esbaforida e com os p4s machucados, finalmente cheuei a pequena dist:ncia dacapelinha de *anta 3aria dos Anos, meu corao no p

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    que tentava encostar-se no tronco da (rvore) ento caminhei at4 ele sem me preocuparcom nada mais.

    @s tu7 Ento voltaste...

    Aoelhei-me no capim e sem pensar muito peuei a mo que ele me estendia. A mo dele...8everia di$er antes a chaa dele, porque o que espontaneamente me era oferecido no

    passava de uma atadura manchada de sanue. %rancisco devia ter sanrado muito desde av4spera e no tinham tido o cuidado de trocar as tiras de linho que lhe proteiam osestimas da vista.

    6onseuireis um pouco de (ua7 - peruntei aos presentes.

    9rou!eram-me uma tiela e uns poucos pedaos de pano.

    @ que a noite foi difcil, *orella... - aueou Geone, saindo da sua reserva. - Nosso irmo%rancisco no queria que toc(ssemos nele.

    9odos concordaram com o coment(rio embaraado do seu companheiro. /ue poderiafa$er a no ser sorrir para aqueles homens confusos e desaeitados no seu eito de ser...

    @ mais f(cil cuidar de um leproso... - interferiu de novo %rate Geone. - *e lheobedecemos, tudo est( perfeito e 4 s dei!(-lo...

    %rancisco abriu os olhos, emitiu um breve resmuno, depois fe$ um leve movimento decabea que sinificava muita coisa. 6ompreendi que aquilo se tornara uma esp4cie decdio cuo sinificado os irmos haviam finalmente captado.

    =m depois do outro, vi-os afastar-se) dois na direo da rana e dois na do hospital onde,parecia, um homem ferido tinha-se apresentado na v4spera. /uanto a 0ufino, como se paradar ainda aluma ra$o de ser ? rera, foi simplesmente aoelhar-se a pequena dist:ncia,na soleira da capela cuas portas estavam abertas de par em par.

    Apertando minha mo na sua, %rancisco voltou a resmunar, se bem que num outro tom.Eu quis soltar meus dedos para pear um pouco d(ua e limpar-lhe as feridas, mas meuesto foi interrompido.

    8e que serve isso7 Este corpo no precisa mais de rande coisa, est(s vendo... E s aminha alma que reclama cuidados. @ importante que eu fale, 6hiarina. * isso pode torn(-

    la mais leve. 1reciso do teu ouvido. Ele escuta sem ular, eu sei...No ula porque lhe ensinaram a nunca ular, mas porque 4 incapa$ de fa$'-lo. Nasceuassim. No me dias que no 4 verdade...

    %rancesco...

    No... /ueres ser um ouvido para mim7

    No tive tempo de responder. & corao de %rancisco estava transbordando como umarepresa d(ua que no pode mais esperar e cuas pedras vo ceder para misturar-se ?

    torrente.

  • 7/24/2019 Francisco Das Aves - Daniel m Givaudam

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    /uero te falar sobre *poletto, 6hiara. Nunca falei com ninu4m sobre isso. +( temposescrevi alumas r(pidas palavras, mas... repetiram-nas e estavam completamentedeturpadas...

    *poletto7

    9u sabes muito bem... /uando disseram que eu estava doente e no podia mais lutar.

    Ali(s, 4 verdade que eu estava doente. &h, como aradeci ?quela febre que continuamenteme assaltava5 Ela me audou, acho. 2mpedia-me de voltar atr(s, voltar ?s minhas loucuras.=ma verdadeira mensaeira... %oi realmente ento que o *enhor me falou pela primeira ve$.%oi obriado a falar bem alto... precisava fa$'-lo, eu estava completamente surdo5 Aorameus olhos me abandonaram, mas ouo melhor. Jem mais, tu sabes. 9udo vem pelo som,irm$inha... 9udo5

    1enso que a viso devora boa parte da nossa fora. @ uma esp4cie de oro que cria todosos apetites, todos os deseos e todas as pris"es.

    #*e soubesses... como comeavas a aprisionar-me antes de *poletto5 No, no dias

    nada... no protestes. 9u mesma no sabias... %oi por isso que o *enhor ritou nesseouvido que est( dentro da minha cabea...

    9nhamos assentado um pequeno acampamento no alto de uma colina para passar a noiteantes de retomar nosso caminho para untar-nos ao *enhor ;authier. & rosso dos quequeriam combater estava arupado em torno das quintas e ranas, mas convenci meuscompanheiros da conveni'ncia de ficarmos afastados. 6oncordava quanto a pu!ar aespada, mas no quanto a beber como todos iriam fa$er. *abia o que aquilo provocava e (tinha visto o suficiente...

    %oi em alum ponto, ? noite, que tudo aconteceu. i-me de p4 ao lado da nossa foueira deramaens quase e!tinta e estava en!erando como em pleno dia. No lone de ns eudeveria avistar os muros de *poletto, mas eles no estavam l(. +avia s campos incultos.Apressava-me a dar aluns passos para compreender o que se passava quando, derepente, senti um rande frescor nas costas. No era frio, no... aquilo me fa$ia pensar nacarcia de uma araem primaveril carreada de perfumes...

    irei-me e vi-me incrivelmente salpicado de Gu$. No havia mais campo, nem ranas, nemacampamento, nem noite, nada mais5 * Gu$... /uase instantaneamente, vi-me imerso nela,como se tivesse cado no fundo de um lao e sua (ua estivesse invadindo todo meu ser...mas uma (ua to lmpida, to fresca, to doce5 6reio que se tivesse procurado ver minhas

    mos, eu no conseuiria) no e!istiam mais.9ive a impresso de dar um passo ? frente e ento... uma espada apareceu diante de mim,suspensa na indi$vel claridade, com a ponta para bai!o5 *ua l:mina estava marcada pormanchas avermelhadas ou castanho-escuras. *eria sanue7

    %erruem7 No pude interroar-me por muito tempo porque, no instante seuinte, no eramais uma espada...

    No seu luar, ? lu$, havia Nosso *enhor suspenso na cru$. Ele estava l(... 1oderia t'-lotocado, 6hiara5 *eus olhos estavam muito abertos e me olhavam intensamente, como se

    para fa$er--me compreender aluma coisa.

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    &h, que olhos5 /ue olhar5 No era o das ireas... Era o verdadeiro, o dEle5 No falava desofrimento, e sim de uma esp4cie de... aleria to arraiada... =ma aleria e uma pa$ queno encontramos no nosso mundo, e que no entanto sabemos confusamente que e!istemqual um tesouro escondido... & tesouro5

    *enhor Hesus disse-lhe ento, soluando de aleria. @s tu7 Ento me aceitas7

    No ouvi resposta. +ouve apenas um bater de clios na minha alma. Nosso *enhor noestava mais l(... No seu luar, sempre em suspenso na lu$, percebi duas rossas vias demadeira semelhantes a dois troncos de (rvore mal desbastados.

    =ma eruia-se na vertical, enquanto a outra a encimava na hori$ontal. Era to lindo,irm$inha5 3as na verdade no tive tempo de contempl(-las porque loo tive a incrvelcerte$a de que havia sido proetado nelas at4 ?s fibras da sua madeira... &u de que elastinham se lanado em mim, misturando-se ? minha carne5

    A partir desse momento no vi mais nada. * ouvi... 3eus ouvidos tinham penetrado nomeu corao e ambos formavam um todo5 Eu ouvia pelo corao, asseuro-te...%rancisco

    teve que interromper-se) sufocava. A emoo que o tomava era to viva que lhe absorviatoda a fora. Apesar do corpo que tinha envelhecido muito e do rosto terrivelmenteemaciado, ele me fe$ pensar numa criana tentando recobrar o f #/ue fa$es tu,%rancesco7 Est(s dormindo7 9u me esqueceste7 Ento no v's como minha irea est(em runas7 olta para Assis e planta tua espada na sua rocha para amais tir(-la de l(. Note coloquei neste mundo para que me nutrisses de l(rimas e mortes. 1ensas que no veocomo te entedias com o *ol7 Ento, para de untar tua sombra ? *ombra) para de desear oque no e!iste... 6onfessa teus medos, tuas faltas e tua frailidade... @ ali, dio-te, no topodessa cru$ que te ofereo, que buscar(s tua plena fora. 1or ela, apresenta meu corao aeste mundo, ressuscita-o, %rancesco5 E que por toda parte diam que tu, pelo menos, no

    esqueceste5#.F 6hiara... se soubesses5 As palavras de Nosso *enhor estalaram dentro de mim mais doque o raio. 0essoaram com tanta fora que me levaram violentamente de volta, para untodos meus companheiros que continuavam dormindo. A noite estava escura e s conseuisentar-me na cama com a vertiinosa sensao de que minha alma e meu corpo iriamdispersar-se pelos quatro cantos do =niverso. ia-me to va$io e no entanto to pleno deuma presena apenas nome(vel, que eu hesitava entre o fato de abandonar-me ?s l(rimasde uma felicidade sem limites e o de ritar de desespero diante da minha ceueira e daminha insinific:ncia.

    No dia seuinte, do nascer ao p

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    disseram que eu estava doente antes mesmo que a febre tivesse me assaltado. 8uranteesse tempo, as tropas continuavam a enrossar nos campos ao redor e os :nimosesquentavam. A partida do e!4rcito estava prevista para o outro dia, mas meu corpo nopercebia e nada daquilo me interessava.

    's, 6lara, eu no conseuia orani$ar meus pensamentos) nada daquele mundo que seaitava ao redor de mim me di$ia respeito. Eram sempre as mesmas palavras da noite

    redemoinhando em mim> #/ue fa$es tu, %rancisco7 Est(s dormindo7

    9u me esqueceste7#. Eram insuport(veis e no entanto me fa$iam to bem5

    /uando na madruada do dia seuinte cheou a hora de selarmos nossos cavalos, no fuicapa$ de fa$'-lo. 3eus membros tremiam, e no viram outra sada para mim a no ser oretorno ? cidade. Era tudo o que eu queria. A viso de uma espada, a que conseuisteadivinhar, tinha-me traspassado para sempre.

    /uando meu primo Gucas finalmente me audou a montar meu cavalo na direo de Assis,disse-lhe, como se para desculpar-me, que al4m da doena eu tinha tido um sonho mau.

    %oi uma das minhas ltimas mentiras, creio. At4 bem pouco tempo sentia veronha disso./uase como a veronha que 1edro, o apstolo, sentiu na manh da reneao,compreendes7

    3as quantas ve$es na vida no reneamos o *enhor e no nos reneamos, 6hiara7/uantas ve$es7 No caminho de volta fi$-me essa perunta sem cessar. 9inha recebido o*ol em pleno corao e isso no bastara5 *er( que minha alma tivera coraem de di$er no? minha :nsia de combate e ?s minhas ilus"es de lria, ou apenas meu corpo havia ditadosua lei7

    A traio... *enti-me veronhosamente seu aliado antes que os muros de Assis finalmenteaparecessem no alto da sua colina. @ramos todos traidores, ali(s5 9raidores sem memriae sem vontade, homens e mulheres desarrados que nunca tinham compreendido nada doque o *enhor 8eus tinha procurado di$er-lhes.

    A quem amos roar, ou melhor, finir que ro(vamos nas ireas7 A quem7 A umsupliciado que se havia imolado voluntariamente e cuo apelo, desesperado talve$, nuncatnhamos escutado... ou ao prprio 8eus, que ainda no tinha descido bastante para querealmente & ouvssemos7

    *im, eu tinha veronha por mim e por ns todos ao chear ?s portas da cidade atr(s de

    Gucas que tivera a bondade de acompanhar-me at4 o fim... /uanto ? minha alma, ela noera suficientemente transparente para que eu tivesse a coraem de atravess(-las antes docair do dia. Era preciso que as ruas estivessem desertas e que ninu4m pudesse ver o filhode 1ietro Jernardone em estado lastim(vel.

    1odes imainar o que se passava dentro de mim, irm$inha7 Estava de luto por umaimensido de coisas e, ao mesmo tempo, estava atordoado por uma esp4cie de aleria quetomava meu corao. A diviso5

    Al4m dos assaltos da minha prpria veronha e da minha crescente perturbao, tive queenfrentar o mutismo de meu pai. *eria incapa$ de di$er se estava preocupado com minha

    sade ou se o que o mortificava era o meu desliamento da tropa e a id4ia que isso dariade nossa rica famlia.

  • 7/24/2019 Francisco Das Aves - Daniel m Givaudam

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    Na verdade, creio que essa ltima hiptese era a correta. 8epois dos tr's dias que passeino fundo da cama tremendo numa semiconsci'ncia, surpreendi e!plos"es de vo$ vindo doandar inferior. 3eu pai tinha finalmente sado da sua reserva e e!plodia diante de minhame. Ele que tanto havia lutado contra os pequenos pobres da provncia e alhures paraque houvesse enfim um pouco mais de ustia, eis que seu d4bil filho o desonrava5 ( verse no se finia de doente5

    No tive vontade de responder, 6hiara. 3esmo quando me levantei, nunca lhe falei daminha indinao. 3inha alma pensava em outra coisa. 3ais uma ve$, aconteceu em plenanoite... @ preciso e!istir a noite para que aspiremos ? Gu$7

    *entado no capim e com as costas apoiadas de trav4s contra a casca da sua (rvore,%rancisco comeava a aitar-se. A evocao do seu prprio passado parecia restituir-lheuma sbita fora. *eus olhos cintilavam e olhavam direto para frente, como se estivessemvendo imaens. %rancisco diriia-se a mim, mas creio que tamb4m falava para si mesmo.Estava limpando suas feridas secretas...

    /uanto a mim, aproveitando-me da sua alma escancarada e ? mostra, resolvi tomar-lhe asmos, tirar-lhe as ataduras pacientemente e lavar-lhes as chaas com um pouco de (ua.%rancesco no mostrou qualquer resist'ncia.

    %a$ia muito tempo que no via aquelas feridas sanuinolentas que se tinham abertoespontaneamente havia quase tr's anos. 9inham aumentado, creio, e e!sudavam nas duasfaces das mos. 1or que, %rancisco7 Nunca se tinha ouvido falar de uma coisa assim...%oste tu que pediste para ter chaas iuais ?s do *enhor Hesus7 8issimulando-as om(!imo possvel, murmuravas no sab'-lo... mas que sem dvida aquilo era porque Elevivia at4 na tua carne.

    %rancesco... %ala menos, %rate5... *e queres esva$iar teu corao, dei!a que suas portasse abram devaarinho... seno fa$ muito mal. 9u mesmo me ensinaste isso quando teprocurei, a fim de entrar para a vida reliiosa. No te esqueas5...

    ;anhaste - respondeu ele apenas olhando-me enquanto eu aeitava pedaos de pano delinho em suas mos. - ;anhaste de novo... - e como meus olhos o interroassem,acrescentou>

    No sabes, mas tamb4m foste tu que me fi$este aceitar mais carinho por mim mesmo... epelos outros tamb4m. Eu fui to ferido pelo *ol, 6hiara... quase uma mordida5

    Atr(s de ns, ouvi 2rmo 0ufino fechando as portas da capela. entava um pouco e otempo estava refrescando. Ento vi o irmo afastar-se para o leste, abrindo passaem porentre as ervas altas. Atr(s delas eu sabia que havia um campo que ele cultivavaincansavelmente.

    Aps um leve suspiro de satisfao, %rancisco quis retomar sua narrativa. A vo$ deleestava fraca outra ve$.

    6omo te di$ia, 6hiara, foi ? noite que o *enhor veio de novo me falar... Na verdade, Elenada me disse com palavras. 1rimeiro senti *ua 1resena unto ? minha cama. Estava

    escuro e eu no en!erava nada) no entanto, uraria que Ele sorria divertido olhando-mepetrificado sob o lenol. Nenhuma palavra foi pronunciada, asseuro-te, mas minha alma

  • 7/24/2019 Francisco Das Aves - Daniel m Givaudam

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    ficou ainda mais despedaada do que em *poletto. *enti-a partir-se ao meio como umarande tapearia que um raio tivesse fendido.

    8e um lado havia todos os motivos do meu passado, e do outro... nada... nada que eupudesse identificar... uma esp4cie de lu$ concentrada e principalmente, principalmente...tanto amor, 6hiarina, tanto amor5

    Gevantei-me em seuida e, ?s ceas, tomado de emoo, procurei aluma coisa paraacender um toco de vela. Nada encontrei e ento me sentei na beirada da cama.

    &h, me lembrarei sempre disso5 %oi nesse momento que alu4m sentou-se ao meu lado.Era Ele, eu o sabia, Ele continuava l(, em sil'ncio, e me comunicava uma pa$ to bela...

    Nesse e!ato instante, posso di$er-te, senti meu colcho de l afundar sob *eu peso.6ompreendi ento que toda a minha vida estava traada e que eu nunca mais olharia paratr(s. Nunca mais5

    Assim que o dia se anunciou, conseui levantar-me e ento, na madeira da minha cama,

    tive que ravar imediatamente a famosa cru$ que o *enhor me tinha mostrado em *poletto.1or que no tinha feito isso antes7

    &s dias e as semanas que se seuiram foram de uma aleria infinita, sabes7 & *ol haviafeito seu ninho em mim e nada poderia desalo(-lo. %oi nesse perodo que voltamos a nosencontrar. 9u me assustavas um pouco... 1recisavas saber isso.

    No pude conter uma e!clamao>

    9u tamb4m me assustaste, %rancesco5 Eu no temia meu pai, que ( pensava em casar-me, mas tu... sim... tive medo de ti. 1or muito tempo pensei que untos podamosesquecer... Ento respirei um pouco quando vi que, nas nossas vidas, tudo se aeitava paraque s nos vssemos dificilmente. E naqueles dias, por sorte, s me falavas do *enhorNosso *alvador. H( estavas to... transparente5

    ;ostaria de fa$er-te peruntas, de conhecer-te mais... Nada sabia de ti. ;ostaria que mefalasses do ano de priso que tinhas passado quando partiste para a uerra pela primeirave$... 3as dir-se-ia que lias al4m de mim. * falavas das nossas indinidades de sereshumanos, de 8eus que no sabamos ver...

    ... e de nossas hipocrisias, 6hiara5 E verdade, estava assombrado por nossas

    hipocrisias. A ordem pervertida do nosso mundo ( me saltava aos olhos, um pouco mais acada dia, e no se tratava mais de apoiar toda esp4cie de mentiras e aberra"es cuo rastroeu via por toda parte. Eu tinha sido ceo a tal ponto7 No entanto era to simples,irm$inha, bastava abrir os olhos e en!erar.

    &h5 Era f(cil ir re$ar e cantar em latim todos os dias, dar sorrisos anelicais ou bai!ar asp(lpebras de arrependimento) e depois, na primeira oportunidade, tornar a vestir nossapele de animal. Esse era o nosso inferno... A avide$, a inconsci'ncia, o sono... Eu noqueria mais ser acorrentado, nem queria que os outros o fossem.

    *e soubesses como mil rostos desfilaram em mim para nutrir meus pensamentos

    inconvenientes, embora ( pontilhados pela aleria de estar comeando enfim a en!erar5Eram os mil rostos com que desde sempre tinha cru$ado... a comear pelo meu, o rosto

  • 7/24/2019 Francisco Das Aves - Daniel m Givaudam

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    tristemente sonolento do filho de um comerciante no menos adormecido sobre suafortuna. Essa era a vida que Nosso *enhor havia deseado para ns7 Entre dois orros defelicidade pressentida, eu me revoltava...

    =m dia no entanto, ( te contei, essa raiva acabou por si s. Esotara-se em mim)certamente eu a tinha e!plorado em todos os recantos. No devemos combater a viol'ncia,seno ela habilmente se multiplica em ns... 8evemos ser mais astutos do que ela e apelar

    para o que a causa.

    Est(vamos no ano de BCIM, sentia dor nas entranhas e tinha acabado de sair de casa parano revidar um coment(rio ir

  • 7/24/2019 Francisco Das Aves - Daniel m Givaudam

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    viria. No entendia nada daquilo, mas podia pedir conselhos. * precisava de alumdinheiro para comprar madeira de construo e tinha de trocar a porta que, tamb4m ela,estava apodrecida.

    Aquilo custava caro. Ento pedi dinheiro ao meu pai... eu te disse que eu era in'nuo... *conseui fa$'-lo rir de mim e ficar $anado.

    Ainda me lembro da sua observao> #0econstruir a capela7 3as h( de$enas est( emrunas... e depois, o que no falta aqui 4 irea5 9rabalha um pouco comio, em ve$ dearrastar as pernas e seurar a barria5#.

    *uas palavras me maoaram, sabes... %eli$mente, o *enhor estava presente em mim e nadarepliquei que pudesse ser ofensivo. 3antive-me estranhamente calmo... Apesar da minhainenuidade, dir-se-ia que eu sabia antecipadamente que havia p(inas da minha vida que( estavam escritas. 2sso pode acontecer, 6hiara7 6r's que o *enhor 8eus tenha escritoum papel para cada um de ns e que no podemos fuir dele7

    Era uma das principais peruntas que %rancisco ostava de fa$er-nos de tempos em

    tempos. 9inha voltado aos seus l(bios muitas ve$es. 6ertamente ele tinha sua prpriaresposta, mas era o que nos mostr(vamos capa$es de responder que lhe interessava.Arrisquei alumas palavras...

    6omo tu, penso que Ele escreveu um papel para ns, sim... &u pelo menos que nosaudou a escrev'-lo e que no podemos voltar as costas ao nosso destino... mas achotamb4m que temos a liberdade de desempenhar muito mal nosso papel, se o quisermos, eque podemos escolher esquecer uma r4plica em duas, ou improvisar, no importa como...tal como fa$em os maus atores e saltimbancos que percorrem os povoados...

    s ve$es, no sei mais - recomeou %rancisco -, mas o que veo 4 que a partir da recusade meu pai, continuei indo l( onde o *enhor Hesus mo pedia.

    9u *abes, 6hiarina... /uando peuei aluns dos belos tecidos do com4rcio de meu paipara conseuir um pouco de dinheiro a fim de comprar madeira, nem sequer pensei que onome daquilo era roubo. Eu era filho de Jernardone, o comerciante, ento seus bens noeram em parte meus7 E depois, havia por toda parte na casa ricos tecidos que ele sevanloriava de comprar barato. +avia bas sem conta5 %oi s porque alu4m contou ter-mevisto vendendo peas de tecido bordado numa ruela que a histria acabou mal.

    3as... acabou realmente mal, %rancisco7

    No sei se foi o efeito da nossa conversa, mas %rancisco merulhou ento em lona edolorosa tosse. i-o dobrar-se em dois) depois voltar a endireitar-se enquanto um poucode sanue brilhava-lhe na comissura dos l(bios.

    9udo aquilo era demais para ele. Estava sem foras, moribundo, mas continuava querendofalar e falar... Aceitando aud(-lo com minha escuta, no iria abreviar ainda mais seus dias7

    Gevantei-me devaarinho e disse-lhe que o dei!aria dormir um pouco. 1enso mesmo quelhe falei quase como uma me com seu filho. %rancesco no protestou.

    6omo no meu corao nem pensava em partir, pus-me a re$ar, seuindo as peadas que2rmo 0ufino havia dei!ado na erva na direo do seu campo. Gembro-me de que as

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    andorinhas voavam bai!o, como se evitassem as lufadas do ventinho fresco querodopiava. 9inha a impresso de que me escoltavam soltando seus ritos estridentes.

    2rmo 0ufino loo me apareceu em sua veste com capu$ cua barra tinha levantado at4 osoelhos. 6urvado no seu pedao de terra, reme!ia-lhe os sulcos com a auda de uma lonaferramenta de l:mina recurvada. Ele tamb4m parecia abatido. No sendo mais velho do que%rancisco, parecia um ancio de barba hirsuta. &uvindo-me chear, dei!ou sua ferramenta

    cair no cho.

    Ele est( partindo, no 4, *orella7

    No tive vontade de responder-lhe. /ue sinificava partir7 *e nossa f4 no *enhor Hesusera usta, sinificava apenas reressar ? 6asa. Ento, que era aquilo que se revolvia dentrode ns7 Nosso eosmo7 Nossa necessidade de controlar7 =ma parte da nossa alma aindaamn4sica7 *im, devia ser isso. porque eu deveria, todos deveramos, ter no olhar alodiferente dessa triste$a que parecia querer chamar a chuva.

    6omo era prescrito, afastei-me a boa dist:ncia de 2rmo 0ufino e olhei para ele fi!amente,

    com um sorriso forado...

    No sei se compreendemos, %rate... &lhe para ns... Ele est( indo ao encontro dEle ens estamos chorando5 Eu sou a primeira... 8ei!amos de invocar as portas da Eternidade,mil ve$es as cantamos, e vea-nos... Aqui estamos, quase como rfos desolados,enquanto o melhor dentre ns se prepara para encontrar o *ol. & maior dos ateus no fariapior. 6heo a duvidar da fora das minhas ora"es, meu irmo. &s meandros da minhaalma seriam to misteriosos para que a incoer'ncia nela sura com tamanha evid'ncia nofim do caminho7

    +ouve um lono e eloquente sil'ncio entre 0ufino e eu. 6ompreendi que ele procurava umaresposta que no vinha.

    1erdoa-me por ter perturbado teu trabalho - falei, afastando-me tristemente.

    Assim que havia dado aluns passos, a vo$ hesitante do mone veio finalmente alcanar-me.

    *orella... Nosso *enhor o 6risto no sentiu tamb4m aflio, e talve$ medo, quando nacru$ chamou *eu 1ai7

    No fundo do corao, sei que naquele dia aradeci ao 2rmo 0ufino. Ele tinha falado por%rancesco) tinha falado desse orulho que fa$ com que nos imainemos mais fortes doque somos, um orulho sutil... que se esconde nas mais belas dobras da nossa alma, altima paliada que teremos de atravessar...

    8AN2EG 3. ;2A=8AN

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    3 - UMAJANELA NA

    ALMA

    =3A HANEGA NA AG3A

    Eu devia partir... 1recisava retomar o caminho, voltar a subir a colina, passar os muros dacidade e finalmente fechar atr(s de mim a porta da 6asa das 8amas 1obres. =ma certaprud'ncia me pedia isso, um certo decoro tamb4m... mas no %rancisco. No, eu noescaparia como na v4spera, aproveitando-me do seu torpor5

    &h, onde estava o manto que tinha dei!ado com ele7 No me ocorrera a id4ia de ir busc(-loimediatamente no momento em que notei que lhe faltava.

    Aborrecida comio mesma, empurrei a porta do pequeno hospital situado atr(s da capela.&s outros irmos ainda estavam l(, meio perdidos entre as divisrias de lenis e envoltosnuma nuvem de ervas arom(ticas.

    3ais de um doente deveria ter cheado desde a v4spera, porque havia uma certa aitaoe a palha do cho tinha sido bastante pisoteada.

    Atravessei a pea sem que me peruntassem nada e enfim encontrei meu manto em cimado catre de %rancisco.

    =ma onda de amaror atiniu-me quando me inclinava para pe(-lo. Ento nossoirmo$inho, como ele mesmo ostava de definir-se, tinha nos convencido de que suapessoa fsica era to sem import:ncia a ponto de mesmo seus companheiros maispr!imos no terem percebido... 3inha refle!o parou por a. No se podia oar pedras em

    ninu4m... ninu4m5

    Ninu4m me diriiu a palavra e no instante seuinte eu estava de novo ao lado de%rancisco. Ele no estava dormindo e aceitou meu manto com visvel satisfao. 8erepente, vi que seus l(bios estavam a$ulados e no pude dei!ar de me peruntar sepassaria daquela noite. *ua respirao tornava-se realmente difcil e seus olhos estavamimprenados daquele brilho to comum aos que esto se apro!imando da outra marem...

    %rancesco...

    *' apenas um ouvido, 6hiarina... 1odes escutar-me mais um pouco7

    %ui aoelhar-me aos seus p4s e tomei-os nas mos para aquec'-los. 9amb4m eles estavamenvoltos em pobres ataduras que precisariam ser trocadas.

    Gembra-te de quando o esc:ndalo estourou7 3al tinha tido tempo de fa$er com que umacharrete carreada de madeira cheasse diante da capela e descarreasse tudo sobre aerva. Assim que entrei de novo sob o teto familiar, muito orulhoso de mim e sem nadadi$er, a tempestade e!plodiu. &s insultos de meu pai, a veronha de minha me...

    Nunca soube e!atamente por que a notcia tinha cheado antes de mim, mas eles sabiamde tudo. 3ais uma ve$, nada repliquei... No tinha arumentos humanos que elespudessem entender e... no sei como di$er-te... +avia mesmo uma fora em mim que noprocurava arumentos e at4 $ombava deles insensatamente. Era estranho... *entia-me num

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    estado pr!imo ? embriaue$. Estava... e!tasiado pelo fato de ter verdadeiramente ousadofa$er o primeiro esto da minha vida que me apro!imava do meu corao. %inalmente iapoder olhar o *enhor Hesus face a face e dar um sentido ? minha e!ist'ncia.

    *em nada replicar, sa e passei o resto do dia no flanco da colina. &lhava para as oliveiras)elas no se fa$iam peruntas, e tamb4m para as abelhas, que simplesmente fa$iam seutrabalho.

    3inha cabea estava oca... no entanto, nunca, nunca meu ser tinha se sentido to pleno deamor5

    Eu tinha ousado, 6hiara, compreendes7 Eu tinha ousado5 &usar um primeiro passo 4 o quea maioria de ns no conseue fa$er neste mundo. 9entar uma loucura para no continuardormindo... plantar um pouco de vida, em ve$ de repetir sempre os mesmos estosseuros, as mesmas palavras bem racionais, como os dedos que todos os dias molhamosna pia de (ua benta, num esto que deve, parece, condu$ir-nos ao 1araso de Nosso*enhor...

    Estranho estado, irm$inha... Eu no di$ia nada, mas sorria diante da minha revolta e daminha pa$. Naquela noite, eu mesmo tinha-me transformado numa tranquila e doce revolta.

    No dia seuinte, como sabes, toda Assis estava a par do meu p4ssimo comportamento. &sr. 1ietro tinha um filho ladro5

    6omo meu pai conhecia bem o bispo, conseuiu persuadido a convocar-me ? suapresena para repreender-me e fa$er-me encontrar um eito de reembolsar tudo.

    *em dvida, eu tinha vendido os tecidos a um preo barato demais, quando seu valor eraconsider(vel, pois no me restava mais nada, ou quase nada. & dinheiro por si s nuncatinha me interessado...

    1or a$ar, ou por sorte, no tive que entrar na resid'ncia do bispo para encontr(-lo a fim dee!plicar-lhe tudo. & encontro, como deves lembrar-te, aconteceu espontaneamente nocanto da praa, perto da barraca do padeiro.

    3eu pai me escoltava cheio de raiva e no descerrava os dentes, como se eu fosse umacriana que devia ser punida. /uanto a minha me, arrastava-a com ele ? fora, e chorava.

    /uando comecei a querer e!plicar tudo ao senhor bispo em plena rua, loo se formou uma

    alomerao. 8ir-se-ia que toda cidade tinha marcado encontro para ular-me. ;ostaria decontar tudo, minhas vis"es, a presena de Nosso *enhor ao meu lado, *ua vo$, *eupedido, mas no me escutavam e cada qual tinha um coment(rio a acrescentar.

    Ento, 6hiara, tudo mudou definitivamente. +oe veo aquilo como uma rande anela quese abriu na minha alma. & a$ul do c4u que se mostrava atrav4s dela era to lmpido esimples5 9odas as palavras que me ocorreram e que a princpio tive de ritar para que meouvissem no eram minhas, pelo menos... no daquele %rancesco Jernardone que estavamorrendo para sempre.

    No estavas l( quando finalmente conseui falar, mas aranto-te que o que te contaram

    sobre as minhas palavras 4 verdade.

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    0eneuei meu pai... com palavras ponderadas mas incisivas... 6ertamente, no pormaldade, nem para superar-lhe a prpria reneao, mas porque, com uma evid'nciaterrvel, pareceu-me que ele no era mais meu pai e nunca mais poderia s'-lo.

    No foi um c(lculo da minha parte como aluns di$em, irm$inha. Aquilo vinha-me docorao repleto da raa de Nosso *enhor Hesus.

    3eu pai no podia mais ser meu pai, porque o nico para quem eu aora ia trabalhar tinhavindo dos 64us para me tomar pela mo...

    /uando comecei a tirar minha tnica, meus cal"es e toda a minha roupa, chamaram-mede escandaloso e louco. No entanto, acredita, 6hiarina, nunca estive mais lcido, nem fuimais profundamente eu mesmo do que naquele momento, embora no overnasse aspalavras que saam de mim.

    /uis-me nu como Nosso *enhor na cru$ para oferecer-me completamente ao mundoe!atamente como eu tinha sido criado e como estava morrendo, sem dissimulao nemmedos... porque nada mais relativo ? 9erra me interessava. Nada5 A no ser como os

    deraus de uma escada a alar para aprender a audar, aprender a amar e subir at4 Nosso*enhor. 6ompreendes isso7

    3uitos o compreenderam, %rancesco...

    Achas7

    ' todos que te seuiram desde aquele dia... No se conseue mais cont(-los... Elesrepetem tuas palavras e usam vestes iuais ?s tuas do outro lado das fronteiras, mesmoentre os francos.

    Hustamente, 6hiara... Este foi o sentido da minha perunta. Eles citam as minhaspalavras e adotaram a pobre$a do meu caminho... mas no 4 a mim que devem escutar eseuir. No 4 minha pessoa que conta. Eles me imitam... sem perceber que no so asminhas palavras que devem repetir. No passo de um lembrete ao mundo para tentar fa$'-lo compreender o que esqueceu,

    3inhas palavras, eu vi, ( foram deformadas ou reescritas de uma maneira que nunca foi aminha. No so elas que devem inspirar5 *empre as imainei como um vento cua nicautilidade era banir um pouco da poeira do tempo. & que se precisa fa$er reviver so aspalavras de Nosso *enhor, nada mais5

    1or um breve instante pensei em intervir. oltara-me ? lembrana a discusso quetiv4ramos na volta da sua viaem entre os mouros. 6om ar interroativo, %rancisco mehavia dito ento que se quis4ssemos ser realmente honestos, inoraramos quais tinhamsido as palavras e!atas de Nosso *alvador, uma ve$ que Ele prprio amais as haviaescrito. * o que devia contar era o perfume dalma que Ele tinha dei!ado neste mundo./uanto ao resto, simplesmente devamos confiar, sem procurar torcer o sentido daspalavras que Ele teria pronunciado...

    3as %rancisco estava to aitado que eu nada disse que pudesse reavivar-lhe a memria (em foo. Al4m do mais, ele evitava qualquer pol'mica.

    %rancesco - simplesmente murmurei, comeando a tirar--lhe as ataduras dos p4s -,

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    %rancesco... 6omo sabes se no 4 teu... perfume dalma que 4 percebido mais do que tuaspalavras7

    %rancisco pareceu no ter ouvido minha refle!o e continuou seu raciocnio.

    6ertamente foi por isso que Ele nada escreveu... para convidar-nos a procurar e a noslembrarmos enfim... quando todos os arumentos dos cl4rios estiverem esotados.

    &h5 *e tivesses visto a cara do senhor bispo, a dos meus pais e a de todos que estavam nocanto da praa... endo-me nu, houve um que at4 me chamou de diabo. Eu, que no tinha amenor malcia, irm$inha.

    /ue o *enhor me perdoe, mas, por um instante, um breve instante, senti-me no luar dEleem alum ponto de uma rua de Herusal4m. Entreava-me a 8eus como Ele se entreara .1ouco importava o que iam pensar de mim ou fa$er comio. Nunca mais usaria as vestesde uma semi-humanidade. *eria plenamente humano ou no seria mais5 Era orulhoso,no 47

    %rancisco fe$ uma viaem ao Eito por volta de BCBO.

    /uando minha me resolveu p #em, %rancisco, entremos... 1recisamosconversar#.9omou-me ento pelo brao, fe$-me untar minhas roupas no cho e depoislevou-me com ele, dei!ando os outros estupefatos.

    6reio que foi naquele momento que cheaste, 6hiara, mas no te vi... No en!erava maisnada e nem mesmo sentia mais a terra ou a pedra sob meus p4s.

    Na casa dos bispo, tornei a vestir-me porque estava com frio) infeli$mente, o frio vinha dedentro de mim. 6omecei a tremer e ento... pus-me a falar. /ueria dar minha vida, tusabes... e as palavras para di$'-lo brotavam espontaneamente do meu corao, sem dar-me a impresso de que meus l(bios se moviam. 9alve$ eu tenha sido insolente para com osenhor bispo quando mencionei o rico mobili(rio que nos rodeava) no me lembro bem,mas acho que ele no ficou ofendido, porque me ouviu at4 o fim, seurando-me a mo.

    6reio que foi durante aqueles lonos instantes que passamos untos que ele

    definitivamente percebeu a chama que me animava. %alou pouco... No entanto, as poucaspalavras com que me ratificou fi$eram-me compreender que me abenoava e meproteeria, caso fosse necess(rio. No lhe pedia tanto, eu que no queria nada5

    Ele at4 procurou reter-me para que me sentasse ? sua mesa, sabes7 0ecusei. 6omer ebeber numa belssima bai!ela e dei!ar que me servissem depois do que acabava de viver edi$er... teria a imediata impresso de renear-me. & bispo me olhou fi!amente, meioconfuso, e ento pedi-lhe autori$ao para retirar--me na sua capela at4 a noite e emseuida partir. %oi o que aconteceu.

    * a solido e a orao conseuiriam abrandar o foo do meu ser... embora no tivesse

    mesmo certe$a de querer que ele se acalmasse. ivia uma incrvel tempestade de amor, tucompreendes... 3eu corao estava abrasado) rendia-me, enfim, sem reservas, e aquilo me

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    fa$ia to bem.

    6omo tinha podido imainar que seria montado num cavalo de batalha e empunhando aespada que conseuiria melhorar a sorte do mundo7 Esquecer as inustias para impor aminha prpria ustia7 * sendo louco, ceo e surdo5

    6onfesso-te hoe, 6hiarina... acreditava ter passado minha vida lutando por mais equidade

    entre os homens quando, na realidade, s tinha buscado honrarias... =m ttulo de cavaleiro,o respeito, a admirao, aluns pequenos privil4ios, que sei eu7

    3entimos tanto para ns mesmos5 @ essa a nossa anrena... & bem do mundo sempre separece, definitivamente, com nosso prprio bem, com nossa tranquilidade, com nossadoce e nobre indol'ncia.

    E, tu o sabes, as coisas no mudaram em todos estes anos. /ue sinifica dormir em pa$seno, na maior parte do tempo, destilar sono em nosso centro de amor7 s ve$es, aora,finalmente e s aora, acontece-me encontrar a verdadeira pa$. @ quando no sinto maismeu corpo, quando me alcei na ponta dos p4s e minha cabea conseuiu atravessar a

    camada de nuvens que a separava do *ol, nosso irmo.

    No sei mesmo para onde foste depois de teres dei!ado o bispo, %rancesco. 8isseramque tinhas dormido na casa dele.

    ... no vale. 8ei a um uarda tr's moedas que me restavam para que me abrisse umaporta secreta. %oi assim que atravessei os muros discretamente, que desci o caminho ?claridade da Gua e cheuei ? minha capela em runas. 8ormi l(, e!austo, abriado pelapilha de madeira que me auardava.

    * o uincho de uma raposa me fe$ abrir os olhos aos primeiros clar"es do dia. *entei-me,coberto de orvalho, e vi o animal passar entre as ervas com um coelho na boca.

    *e soubesses como aquela primeira viso do dia me perKturbou5 1edia ao *enhor Hesus apa$ absoluta, pa$ com toda a doura que era *ua, e eis que a nature$a me respondia com osanue que vertia de uma morte... embora sendo uma morte animal, no dei!a de ser umamorte apesar de tudo, um sofrimento, 6hiara. Ento, teria motivos para esperar tanto epedir tanto, quando o prprio 8eus havia autori$ado a dor at4 no equilbrio da *ua criao7

    Nenhuma resposta me ocorria. Afinal, talve$ eu no passasse de um orulhoso que queriainsensatamente identificar-se com o 6risto, arriscando-se a roubar e a mostrar falta de

    decoro em praa pblica, s para afirmar-se acima das leis e de tudo...%iquei por muito tempo prostrado com esses pensamentos que me enevoavam a cabea.*er( que sinificava que eu devia p

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    esmaar uma formia no cho. & *enhor 6risto tamb4m as teria matado andando peloscaminhos7 & 6hiarina, que era preciso ento para ser somente amor755

    /uando o *ol comeou a aquecer o vale, avistei dois mones montados em asnos vindo naminha direo.

    & bispo os enviava. Este, disseram-me eles, recomendava-me que partisse sem demora

    para ;bio. 6ontava l( com aluns amios, e principalmente com um pequeno mosteiroque concordaria em abriar-me at4 que tudo se acalmasse.

    *eundo suas palavras, o estatuto de penitente que eu havia invocado para escapar daustia dos homens era discutvel e, como meu pai alardeava por toda parte sua veronha ea minha ofensa, o melhor seria recolher-me e re$ar.

    &s mones tinham alumas bolachas de massa de po e um queio de ovelha. Aceitei-os,bem como um dos seus asnos. *em fora e no sabendo para onde ir, parti quaseimediatamente. Era domino, lembro-me... &s sinos de Assis batiam com fora na suacolina e o caminho at4 ;bio era lono.P 1equena cidade da atual provncia da Qmbria, na

    2t(lia central. R

    %rancisco interrompeu seu relato por um instante. *ua respirao cansada erapreocupante. Estendi-lhe um pouco de (ua sem nada di$er) depois, com o que restava natiela, comecei a lavar-lhe as chaas dos p4s. +avia nele duas randes feridas abertas quee!sudavam pouco, mas pareciam muito dolorosas...

    =m rudo de cascalho rolando me fe$ virar a cabea. No linal da vereda, um rupo dehomens avanava apressado na nossa direo. 9odos usavam o h(bito da nossa &rdem>lonas vestes escuras amarradas ? cintura por uma simples corda pobres e remendadascomo supnhamos ter sido a Ele mais de mil anos antes. Geventei-me...

    imos de 1eria, *orella. 8i$em por l( que nosso 2rmo %rancesco est( pior.

    Ele est( ali...

    &s homens adiantaram-se, visivelmente surpresos por encontrar uma mulher naqueleluar. No conhecia nenhum deles. Nossa &rdem tinha crescido tanto nos ltimos anos5No era mais a famlia que tnhamos conhecido nos primeiros tempos.

    A famlia5 &h, ela tinha at4 tomado seu nome. Aquilo ?s ve$es me aborrecia.

    6om certe$a, %rancisco sempre tivera - ou quase - os mesmos companheiros ao seu redor)aluns deles ainda h( pouco tinham participado comio de brincadeiras infantis, perto dobebedouro. 9odos nos conhecamos muito bem, com nossas pequenas e ridculas manias.No entanto...

    No entanto, como %rancisco ?s ve$es nos di$ia amaramente> #/uando uma rosa vem adesabrochar plenamente, aluma coisa nela ( comea a murchar) a e!panso do seuperfume anuncia-lhe tamb4m a fadia e nos di$emos que deveria ser colhida, como se esseesto fosse conelar-lhe a bele$a na eternidade. Ento, nos ferimos nos seus espinhos edepois... sabemos o que acontece#.

    /uando vi os irmos aoelharem-se ao lado de %rancisco, senti que devia afastar-me um

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    pouco. No tinham percorrido todo aquele caminho por nada e o *ol, ( comeando adeclinar, bastava para fa$er-me compreender que eles passariam a noite l(. 1ara eles, seriauma felicidade estar l(, ao lado do seu irmo$inho, to e!austo, to consumido, que eutinha visto a trama da sua alma subir-lhe ? pele.

    &bservando um dos mones colocar novas ataduras nos p4s de %rancisco, disse comiomesma que tinha cheado a hora da minha partida. %ui aoelhar-me um instante diante da

    modesta cru$ de madeira colocada sobre o minsculo altar da capela) depois retomei meucaminho, passando pelo rande bosque de loureiros, como antiamente.

    8AN2EG 3. ;2A=8AN

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    4 - PELAPORTA DOS

    MORTOS

    1ela 1orta dos 3ortos

    A noite foi lona... 9inha quase fuido das peruntas com que minhas companheiras mehaviam acossado desde o meu reresso ? 6asa das 8amas 1obres.

    As ve$es, h( tanto a di$er que nossas frases v'm a desarear-se na nossa cabea nomomento em que poderiam sair dos nossos l(bios.

    Gembro-me de ter fechado atr(s de mim a porta bai!a da minha cela, to pronta ediscretamente quanto possvel. Nem sequer aceitei a tiela de sopa de leumes estendidapor 2rm 6atarina. No estava com fome e pressentia que no conciliaria facilmente o sono.

    6omo poderia7 %rancisco tinha se e!posto tanto, e depois... havia tamb4m aquele seredo

    que morava nele e do qual s havia levantado um cantinho do v4u. /ual seria, para t'-lomudado a tal ponto7

    &h, sem dvida era uma mudana sutil, mas no conseuia dei!ar de not(-la. Atrav4s domeu irmo soprava um ar de liberdade to vasta, to total... 6ertamente no era a prov(vele pr!ima partida da sua alma que lho conferia, no... +avia outra coisa...

    6antei as matinas e os laudes so$inha e enfim o sol de outono se decidiu a entrar entreminhas quatro paredes de pedra.

    a$ia de pensamentos e com os olhos ardendo, passei um pouco d(ua no rosto,

    dissimulei como se devia uns poucos fios de cabelo sob meu v4u e quis antecipar-me ?soutras na pea e!ua que nos servia de refeitrio.

    Anes, minha cmplice de sempre, ( estava l( com seu sorriso quase desencarnado e seuolhar translcido.

    6hiara, preciso falar-te... =m enviado do senhor bispo apresentou-se aqui ontem. Nosei como as coisas se espalharam, mas estava encarreado de di$er-te que no eradecente passar tanto tempo unto do 2rmo %rancesco... 1arecia contrito e compadecido)no entanto nada quis ouvir da minha parte como resposta.

    9enho certe$a de que meu rosto ficou vermelho, como de h(bito. 3as de que... de que meenveronhava7 8e ter ousado ser eu mesma7 8e ter emprestado meu corao comorecept(culo para as palavras de um homem que estava morrendo7

    *em nada responder ? minha irm, dei!ei-me cair num banco. /ue haveria para di$er,ali(s7 =ma das reras da nossa &rdem era a obedi'ncia... 9udo que o bispo fa$ia eralembr(-la.

    Anes veio sentar-se ao meu lado e tomou-me a mo. Era bom que ela estivesse l(.%rancisco lhe tinha dado a responsabilidade de uma 6asa das 8amas 1obres em %lorena,mas a 1rovid'ncia quisera que viesse visitar-nos por duas semanas e!atamente aora.

    A 1rovid'ncia5 Eis uma palavra que tnhamos aprendido a banir do nosso vocabul(rio. A

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    1rovid'ncia, seundo ns, era 8eus, que escrevia discretamente nosso caminho sobnossos passos... ou que no-lo lembrava. E 8eus era... o amor... pura e simplesmente oamor, cuo perfume tentamos reencontrar a cada ve$ que temos coraem para tanto.

    9u o amas7 - peruntou-me Anes de repente, de um modo que me pareceuterrivelmente abrupto.

    *abia que ela estava falando de %rancisco. ;ostaria de poder fuir dos seus olhos, mas elacaptou meu olhar, vindo acocorar-se na minha frente.

    @ claro que amo a 8eus5 &fereci-lhe toda a minha vida. 0espiro-I a cada instante...

    i Anes sorrir-me divertida. & minha irm$inha na carne e irm$inha de alma, queprocuravas fa$er-me di$er aquela manh755 /uase te censurei, mas era sem dvida a...1rovid'ncia que passava atrav4s de ti para que eu fosse mais lone.

    Ela fa$ia tudo para que me desnudasse cada ve$ com mais verdade. No e!isteinvariavelmente o papel que se quer representar, o que realmente se representa e... o ator

    que aprendeu a se calar por tr(s disso tudo7 *em a menor dvida, era a chaa secretadeste ltimo que Anes estava encarreada de desnudar em mim.

    #1rocurais 8eus#, tinha ouvido %rancisco ritar um dia diante de ns. #&lhai bem uns paraos outros e & vereis sem que sea preciso ir mais lone5 No h( uma s palavra que vosdiriis que no sea inspirada pelo trabalho de lavra que Ele empreendeu em vs...principalmente se a relha do arado vos parece meio rude#.

    &ito s4culos depois, continuo sem saber se teria conseuido responder a Anes. A1rovid'ncia - o dedo de 8eus - fe$ com que no tivesse oportunidade de fa$'-lo. Nossascompanheiras vieram untar-se a ns, quase todas ao mesmo tempo.

    & costume e!iia que oferec'ssemos em prece nossa ornada ao corao do *enhorHesus, depois que repartssemos os ltimos pedaos de po economi$ados na v4spera.=ma profunda aleria sempre me havia acompanhado nessa primeira reunio matinal, cuoobetivo era dar uma orientao ao nosso dia. Naquela ocasio, no entanto, devoreconhecer que aluma coisa de mim no estava presente ao redor da lona mesa donosso refeitrio.

    ais voltar hoe para unto de %rancisco7 - peruntou de repente uma das 2rms,marcando com isso o fim da nossa mara refeio em sil'ncio.

    Anes tirou-me do meu embarao.

    +oe nosso irmo tem visitas) ser( bem cuidado. 2rm 6lara e eu falamos sobreisso...9odas re$aremos por ele a cada um dos nossos trabalhos.

    Nossa 6omunidade mantinha uma modesta horta atr(s da casa. 6ultiv(vamos alunsr(banos e favas no fundo do terreno cm declive que ia at4 os muros da irea. & trabalhoera rude e no corramos para l(, mas, ao dei!ar meu banco, compreendi que esse seriameu refio, onde encontraria tudo que me era mais caro... a presena de Nosso *enhor eo toque amoroso da terra, sua enerosidade sob o *ol, mesmo que os espinheiros a

    invadissem.

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    /uanto a %rancisco... 6omo ele mesmo havia denunciado, talve$ se tivesse tornadoimportante demais para ns. 8isse a mim mesma que, com a autori$ao do bispo, iriavisit(-lo de novo dentro de dois ou tr's dias...

    1us ento meu vestido comprido de uta, imprenado de lama seca, peuei uma en!ada euma foice e fui para a horta, enquanto as outras partiam pelas ruelas para visitar alunsdoentes.

    Enfrentar o mpeto invasor do espinheiro que queria aarrar-se a *o 8amio, certamenteme faria bem ? alma.

    &rar cumprindo uma tarefa ?s ve$es inrata no fa$ia parte dos princpios purificadoresque %rancisco nos havia ensinado7

    #A cada ve$ que arrancais uma erva m( recitando o nome de Nosso *enhor, 4 como umpensamento feio e ofensivo que arrancais da vossa cabea... Assim, o que vos parece mauser( posto ao servio do melhor que ( est( em vs. Esva$iai vossa cabea... e vossocorao se encher(5#

    Eis e!atamente o que eu queria, o que eu sempre tinha deseado... esva$iar meu cr:nio detudo que no fosse voltado para 8eus. & nico problema 4 que as palavras e o olharnost(lico de %rancisco estavam mais do que nunca orientados para 8eus. No adiantavamanear a foice sem me preocupar com minhas mos, o rosto de %rancisco suria-me semcessar com uma insist'ncia obsedante. Ao fim de uma boa hora de resist'ncia, finalmentetive de aceitar que me invadisse. Afinal, ele no era meu uia neste mundo7

    Gembro-me que, a partir do momento em que reconheci essa evid'ncia, uma real quietudeinstalou-se docemente em mim) minha respirao acalmou-se e imaens de outros temposemeriram...

    A discusso que Anes e eu tiv4ramos ao tomar conhecimento do retorno de %rancisco,depois de um ano de isolamento em ;bio, os relatos que nos haviam feito acerca do seutrabalho incans(vel nos telhados de duas ou tr's capelas, os companheiros quecomeavam a untar-se a ele... %rancisco estava to entusiasmado, to... inebriado porNosso *enhor, ( se di$ia por toda parte5 *uriram tamb4m lembranas do mau humor demeu pai, que no compreendia minha obstinada recusa ao belos e ricos partidos que meapresentava...

    * Anes tinha sabido escutar o fundo do meu corao. Ns nos refui(vamos nos

    mesmos sorrisos cmplices, ( bem conscientes da terna loucura que nos estendia osbraos, uma loucura cuo smbolo vivia l( embai!o, no vale, despoado de tudo e com osolhos incessantemente voltados para o 64u.

    /ue teria verdadeiramente acontecido em ;bio7 No o sabia, mas por toda cidademurmurava-se que %rancisco tinha voltado com uma fora inabal(vel que fa$ia com que at4os mais ir

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    Esse perodo tinha durado quatro ou cinco anos. Anos difceis para minha alma. Eu viviaentre dois mundos, duas realidades... 9inha que aradecer ao *enhor por ter-me feitonascer numa famlia em que minha subsist'ncia cotidiana estava comodamente arantida,mas eu me acusava do que chamava minha indol'ncia e minha ociosidade.

    &h, todas aquelas imaens da silhueta de %rancisco vislumKbrada de tempos em temposno telhado da capela de *o 1eKdro... como haviam me assombrado naquela 4poca5

    E depois... vieram as lembranas daquele dia em que me decidi a dar o salto. *uperandominha timide$ e os sarcasmos de meu pai, finalmente me esueirei pelas vielas a fim dealcanar um luar$inho embai!o de uma escada onde di$iam que %rancisco costumavacomentar as 1alavras *aradas. %rancisco estava realmente l(, e havia mesmo, comodi$iam, um pequeno auntamento ao redor dele. 9rinta ou quarenta pessoas... o suficientepara tornar discreta a minha presena.

    & que acontecia l( era incrvel5 %rancisco falava e no est(vamos mais numa das rua$inhastortuosas de Assis, mas em pleno deserto da Hud4ia, prontos para ouvir o 6risto e seuir-lhe as peadas na areia...

    6omo no ter voltado e voltado a escut(-lo, de novo e sempre7

    %rancisco no me via, acho5 s ve$es, eu cheava a empurrar Anes ? minha frente paraficar mais escondida. E Jeatrice, nossa irm caula5 2mpossvel esquecer-lhe a boquinhaentreaberta e os olhos arrealados quando, pela primeira ve$, conseuimos lev(-laconosco5

    =ma tarde, quando me esforava por servir para aluma coisa aprendendo a tocar alade,minha me, a nobre &rtolana, veio anunciar-me que Jernardo de /uintavalle, um dosovens afortunados da cidade, tinha resolvido untar-se a %rancisco...

    #1ara sempre#, teria ele declarado. Na hora, no soube se o tom da minha me tinha sidode ironia ou se, ao contr(rio, estava imprenado de uma admirao velada.

    3inha triste$a tinha aumentado a partir da noite que se seuiu ?quela notcia. /ual era,afinal, o sentido daquela vida que eu queria votar a Nosso *enhor7 Ela me tinha feitoencontrar um homem que s vivia para Ele e, apesar de tudo, me devolvia apenas lanor,veronha e frustrao7 8eus no falava a linuaem da aleria7

    2noro por quanto tempo fiquei presa ?s minhas lembranas, no fundo da nossa horta. *a

    delas raas a alumas otas de chuva que me foraram a abriar-me. 3inha foice haviaderrotado boa parte do espinheiro e minhas mos sequer lhe tinham sentido a aresso.

    /ue estaria %rancisco fa$endo ?quela hora7 &s irmos de 1eria ainda estariam com ele7

    Embora a chuva no cessasse, voltei loo ao fundo da horta. 8o cho subia um perfumeto c(lido que teria sido absurdo recusar aquela chance de sair da minha nostalia.

    Arrisquei aluns passos sob a chuva... No adiantava. 8ir--se-ia que at4 os odores danature$a tinham decidido tra$er o passado de volta. *er( que a alma de %rancisco estavatentando prender-me, ou era eu que sentia necessidade de folhear meu prprio livro7

    3inhas lembranas voltaram a invadir-me...

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    8epois de Jernardo de /uintavalle, houve, parece-me, 1edro de 6atania e outros ovensbem cot