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um francês nos trópicos Francis de Castelnau: o olhar de um viajante no século xix

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um francês nos trópicosFrancis de Castelnau:

o olhar de um viajante no século xix

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um francês nos trópicosFrancis de Castelnau:

o olhar de um viajante no século xix

Apresentação e organização

Maria Elizabeth Chaves de Mello

Prefácio

Roger Chartier

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© 2015 Maria Elizabeth Chaves de Mello

Direitos desta edição reservados a Viveiros de Castro Editora Ltda.

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial: Isadora Travassos

Produção editorial: Eduardo Süssekind, Rodrigo Fontoura, Victoria Rabello

Tradução: [v. 1] Carlos Eduardo do Prado, Flávia Lúcia Espíndola Silva, Maria Elizabeth Chaves de Mello, Maria Ruth Machado Fellows, Maria Zuleide Pires Killer, Sandra Regina Guimarães; [v. 2] Maria Elizabeth Chaves de Mello, Maria Ruth Machado Fellows; [v. 3] Maria Elizabeth Chaves de Mello; [v. 4 e 5] Maria Elizabeth Chaves de Mello, Mônica Fiuza Bento de Faria

Colaboradores: Alessandra Fontes Carvalho da Rocha, Carlos Eduardo do Prado, Flávia Lúcia Espíndola Silva, Maria Ruth Machado Fellows, Maria Zuleide Pires Killer, Mônica Fiuza, Bento de Faria, Patrícia Souza Lima, Sandra Regina Guimarães

2015Viveiros de Castro Editora Ltda.Rua Visconde de Pirajá, 580/sl. 320 – IpanemaRio de Janeiro – rj – cep 22410-902Tel. (21) 2540-0076 – [email protected] – www.7letras.com.br

cip-brasil. catalogação-na-fontesindicato nacional dos editores de livros, rj

F885

Um francês nos trópicos : Francis de Castelnau: o olhar de um viajante no século XIX / organização Maria Elizabeth Chaves de Mello. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2015. il.

isbn 978-85-421-0355-7

1. Castelnau, Francis, comte de, 1880. 2. Escritos de viajantes europeus. I. Mello, Maria Elizabeth Chaves de.

15-22837 cdd: 918.1 cdu: 913(81)

Ilustração de capa: Carte du cours du rio Madeira [Cartográfico]: depuis son embouchure jusqu’au rio Mamoré, Francis de Castelnau, 1853. © Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil, impressa sob permissão.

Ilustrações: © Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil, impressas sob permissão.

A editora agradece a atenção e a gentileza de todos os funcionários da Fundação Biblioteca Nacional, com um agradecimento especial a Claudia Mayrink, do setor de Obras Raras.

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Sumário

Prefácio 9Roger Chartier

O desafio de construir uma antologia: Francis de Castelnau e o seu relato de viagem 13Maria Elizabeth Chaves de Mello

Tomo 1

Introdução 23

Expedição às partes centrais da América do Sul

Capítulo 1 | partida da frança – goreia – rio de janeiro 37

Capítulo 2 | estadia no rio de janeiro – excursões botânicas nos arredores 40

Capítulo 3 | geologia – estabelecimentos públicos – estado moral dos habitantes – agricultura 54

Capítulo 4 | partida do rio de janeiro para o interior – chegada a minas gerais 60

Capítulo 5 | de paraibuna a ouro preto 69

Capítulo 6 | visita às minas inglesas – sabará – pitangui 78

Capítulo 7 | do rio são francisco ao rio paranaíba – chegada ao são francisco 87

Capítulo 8 | da vila de catalão a goiás 92

Capítulo 9 | estadia em goiás 100

Capítulo 10 | de goiás a salinas 109

Capítulo 11 | a descida do araguaia – os furos 125

Capítulo 12 | descida do araguaia – os xambioás 138

Capítulo 13 | descida do araguaia – as quedas d’água 156

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Tomo 2

Capítulo 14 | o forte de são joão das duas barras – subida do tocantins 161

Capítulo 15 | retorno a goiás pelos desertos dos xavantes 182

Capítulo 16 | história de goiás – dificuldades da navegação do tocantins e do araguaia 189

Capítulo 17 | descrição da província de goiás 193

Capítulo 18 | viagem de goiás ao rio grande 194

Capítulo 19 | viagem do rio grande a cuiabá 203

Capítulo 20 | cuiabá – diamantino de mato grosso 213

Capítulo 21 | nascentes do paraguai e do rio tapajós – minas de diamantes – volta a cuiabá 221

Capítulo 22 | descida dos rios cuiabá e são lourenço 228

Capítulo 23 | descida do paraguai – corumbá, albuquerque, nova coimbra 232

Capítulo 24 | viagem ao paraguai – forte bourbon 238

Capítulo 25 | retorno a albuquerque – miranda 253

Tomo 3

Capítulo 26 | subida do paraguai até vila maria – pântano de xarayes 269

Capítulo 27 | de vila maria a mato grosso 282

Capítulo 28 | de mato grosso à fronteira da bolívia 293

Capítulo 29 | história e geografia da província de mato grosso – rio arinos ou tapajós 303

Capítulo 30 | continuação do capítulo anterior – descrição do rio madeira – forte bragança 307

Capítulo 31 | viagem do dr. weddell de vila maria a cuiabá e retorno – excursão no rio cabaçal 309

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Capítulo 32 | país de chiquitos – monte grande 320

Capítulo 33 | rio grande – santa cruz de la sierra 329

Capítulo 34 | de santa cruz de la sierra a chuquisaca 335

Capítulo 35 | chuquisaca 340

Capítulo 36 | potosi 343

Capítulo 37 | de potosi a la paz 345

Capítulo 38 | la paz – tiahuanaco – desaguadero 349

Capítulo 39 | chegada ao peru – puno, lago de chucuyto, arequipa, islay 355

Capítulo 40 | ilhas do guano, callao 366

Tomo 4

Capítulo 41 | vestimentas de lima; as saias – lutas de touros 369

Capítulo 42 | zoologia e geologia dos arredores de lima 373

Capítulo 43 | história da cidade de lima – sua administração; seus monumentos 374

Capítulo 44 | resumo histórico do peru 376

Capítulo 45 | população; agricultura; comércio; receita e despesas; dívida pública; exército; posição dos empregados; correios; situação da escravidão 376

Capítulo 47 | partida de lima – cerro de pasco – produtos das minas do novo mundo – minas de mercúrio de huancavelica – pirâmide de curumbá – ponte suspensa de apurimac 383

Capítulo 48 | monumentos de cuzco – pesquisas sobre a raça vermelha 392

Capítulo 49 | urubamba – ruínas de ollyantay-tambo – vale de santa ana – cultura da coca – echaratê 402

Capítulo 50 | cascata de urubamba 409

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Capítulo 51 | descida do uyacale – pampa del sacramento 423

Capítulo 52 | sabayacu – padre plaza – geografia da região 432

Capítulo 53 | história do pampa del sacramento 446

Capítulo 54 | pesca no entorno de sarayacu – descida do ucayale até o amazonas – nauta 446

Tomo 5

Capítulo 55 | descida do amazonas, de nauta a pebas 455

Capítulo 56 | de pebas a tabatinga 458

Capítulo 57 | de tabatinga à barra do rio negro 462

Capítulo 58 | pesquisas geográficas sobre os rios do solimões 463

Capítulo 59 | da barra do rio negro ao pará – considerações gerais sobre o rio amazonas 465

Capítulo 60 | excursões na guiana francesa, caiena – mana 472

Capítulo 61 | guiana holandesa – organização política; geografia; comércio 477

Capítulo 62 | guiana inglesa – barbados – santa lúcia – guadalupe – retorno à frança 478

Anexo | o assassinato do sr. d’osery 483

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PrefácioRoger Chartier – Collège de France

Nos anos de 1850 e 1851, o livreiro-editor P. Bertrand, estabelecido à rua Saint-André-des-Arts, propõe aos leitores os seis primeiros volu-mes de uma imponente publicação, que finalmente conterá quatorze, no momento de sua conclusão. Esta coleção tem como objetivo publi-car os resultados de uma ambiciosa expedição científica realizada entre 1843 e 1847 no Brasil, Bolívia e Peru. Sob a direção do conde Francis de Castelnau, a empreitada, apoiada por Guizot e vários membros eminen-tes da Academia das Ciências, tinha como objetivo principal o estudo da bacia do Amazonas e deveria apresentar observações astronômicas e meteorológicas, registros cartográficos e descrições da flora e fauna ame-ricanas. Para assumir essas múltiplas tarefas, Castelnau uniu-se a um médico botânico, o doutor Hugh Weddell, um naturalista, Emile Deville, funcionário do Museu de História Natural, e um engenheiro de minas, o visconde Victor Eugène Hulot d’Osery.

A publicação dos resultados da expedição não foi fácil. Os aconte-cimentos de 1848 só contribuíram para adiá-la, assim como o péssimo estado de saúde de Castelnau. Mas, sobretudo, grande parte dos docu-mentos produzidos ao longo da viagem perdeu-se quando o visconde d’Osery, que havia se separado de seus companheiros, foi assassinado e roubado por remadores da embarcação em que navegava no rio Maranhão. Desapareceram, dessa forma, seu diário pessoal, o diário ofi-cial da expedição, registros de observações sobre os astros e o clima, bem como os cadernos de notas sobre a zoologia. Assim que começa a redação do relatório da empreitada, Castelnau só pode fazê-lo a partir das infor-mações que, como ele escreve em seu prefácio, “escaparam do desastre que causou a perda completa de mais de quatro anos de trabalhos con-tínuos”: ou seja, os manuscritos que ele havia endereçado à sua família, os relatórios enviados aos ministros, os diários de Deville e Weddell e

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rascunhos, por exemplo, de um caderno de delimitações geográficas. É com a tristeza da perda que Castelnau começa a publicação dos resulta-dos da expedição, com a Histoire du voyage, esses seis volumes dos quais Maria Elizabeth Chaves de Mello e seus colaboradores apresentam aqui longas passagens traduzidas em português.

A expedição iniciada em 1843 não era a primeira do conde de Castelnau na América. Entre 1837 e 1841, ele havia percorrido grande parte da América do Norte. Reunira suas observações de geógrafo e entomologista (em 1832, havia sido membro fundador da Sociedade de Entomologia da França) em três obras, todas publicadas por P. Bertrand: em 1840, Expédition dans les parties centrale de l’Amérique. Histoire natu-relle des insectes coléoptères; em 1842, Vues et souvenirs de l’Amérique du Nord; e em 1843, Essai sur le système silurien de l’Amérique septentrio-nale. A expedição de 1843 possui ambições maiores, embora seu título, presente desde o primeiro volume do relato de viagem, aproxime-se do livro de 1840: Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para. A empreitada científica, desde o começo, coloca-se sob o signo da autoridade política, por ele desejada, visto que o título menciona que ela fora “executada por ordem do Governo Francês, nos anos de 1843 a 1847”.

No momento em que redige seu relato, Castelnau reside em Salvador, na Bahia, onde foi nomeado cônsul da França, em 1848 (cargo que ocu-pará por quatorze anos, antes de terminar sua carreira diplomática na Austrália). Um texto redigido um pouco depois de ter se instalado no Brasil demonstra sua curiosidade geográfica e etnográfica, assim como a capacidade de fazer relações entre os continentes. Publicado em Paris, em 1851, por Bertrand, ele tem como título Renseignements sur l’Afrique cen-trale et sur une nation d’hommes à queue qui s’y trouveraient. Começa com essas palavras: “O pequeno trabalho que submeto, neste momento, ao público, é composto de informações que pude obter dos negros escravos da Bahia. Pouco depois de minha chegada a esta residência, não demorei a perceber que vários dentre eles sabiam ler e escrever em árabe e líbico, o que me fez pensar que, em tal multidão vinda de todos os pontos da África, seria possível encontrar indivíduos capazes de me dar informações sobre as partes ainda desconhecidas desse vasto continente”. O primeiro objeto da pesquisa é a existência de “homens de rabo”, confirmada por uma dúzia de escravos interpelados por Castelnau, na qual ele não crê,

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embora, diz ele, “o naturalista sabe que a teoria científica mais plausível pode, às vezes, ser derrubada por uma única observação”. Mas o essencial está em outro lugar: nas indicações geográficas sobre a África, forneci-das por seus “informantes”, provenientes das onze “nações” africanas, das quais os escravos são originários. Ao final da obra, Castelnau propõe um “mapa do Sudão segundo os negros escravos da Bahia” e, também, uma compilação dos “vocabulários de diversas línguas do Sudão”. A partir dos relatos dos escravos, ele cruza as descrições das instituições, dos hábitos e costumes africanos, ao mesmo tempo em que, brevemente, oferece a leitura dos relatos de vida, captura e servidão no Brasil.

Em sua última página da obra, um anúncio publicitário indica os títulos das diferentes partes da Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, que deverão ser publicados antes de 1857. A segunda parte, Vues et scènes, será acompanhada de um atlas de sessenta estampas; a terceira, Antiquités des Incas et autres peuples anciens, terá, também, um atlas de sessenta estampas; a quarta, Itinéraires et coupe géologique à tra-vers le continent de l’Amérique du Sud, apresentará setenta mapas em gra-vuras coloridas; e a quinta, Géographie des parties centrales de l’Amérique du Sud, outros trinta mapas em gravuras coloridas. Todas essas obras serão vendidas em seis fascículos (salvo a quarta parte, dividida em onze fascículos).

Todas essas partes da Expédition serão publicadas entre 1852 e 1854. Mas, como o demonstram as coleções conservadas na Biblioteca Nacional da França ou na Biblioteca da Academia Brasileira de Letras, duas outras partes foram adicionadas ao conjunto: uma sexta, Chloris andina, consa-grada à “flora da região alpina das Cordilheiras da América do Sul” (dois tomos em um volume, publicados em 1855 e 1857) e uma sétima parte consagrada à zoologia (oito partes em três volumes, publicados entre 1855 e 1859).1

Trazer à lembrança a dimensão fundamentalmente científica da expedição, e dos volumes que dela dão prova, permite situar sua pri-meira parte, o relato de viagem, na tensão sinalizada por Maria Elizabeth Chaves de Mello, entre, de um lado, a objetividade das observações que estão inscritas, desde os primeiros volumes, no projeto científico que

1 Encontra-se uma primeira descrição do conjunto dos volumes da Expédition em Anatole Garraux, Bibliographie brésilienne. Catalogue des ouvrages français et latins relatifs au Brésil (1500-1898). Paris: Chadenat, 1898. p. 51-52.

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comanda toda a empreitada, erudita e editorial, e, de outro, o “caráter romântico” de uma escrita que gostaria de restituir o espanto, o encan-tamento, quem sabe o êxtase produzido pelo espetáculo da natureza americana. Cada página da Histoire du voyage escrita por Castelnau está tomada por essa dupla e, às vezes, contraditória intenção que entrelaça as observações topográficas e as descrições antropológicas (particularmente as das populações indígenas encontradas, ameaçadoras ou pacíficas), com a lembrança do espetáculo da natureza, frequentemente qualificado de “magnífico”.

A publicação desta antologia de longas passagens dos seis volumes dessa Histoire é uma magnífica realização. É preciso agradecer a seus auto-res. Primeiramente, porque eles permitem fazer o resgate de uma expe-dição menos conhecida do que muitas outras, mesmo na França, ainda que por sua ambição e seus resultados, ela tenha sido uma contribuição decisiva para se conhecer cientificamente a América do Sul.2 Em seguida, porque ela permite aos leitores brasileiros obterem a justa medida do relato de viagem de Castelnau, parcialmente traduzido antes deste grande trabalho,3 com longas passagens dos capítulos consagrados ao Paraguai, à Bolívia e ao Peru, e daquelas que narram a descida do Amazonas. Enfim, e sobretudo, porque ela permite uma reflexão sobre o próprio gênero do relato de viagem. O texto de Castelnau é, ao mesmo tempo, um relatório de expedição, voltado para a construção e a comunicação de conheci-mentos inéditos, e um relato em primeira pessoa, no qual se expressa um “subjetivismo literário”, atravessado de emoções, mitos e nostalgias.

Tradução: Maria Ruth Machado Fellows

2 Cf. o título do ensaio de Michel P. Bajon, “Une expédition méconnue en Amérique du Sud: la mission Castelnau 1843-1847”. In: Les naturalistes français en Amérique du sud XVIe-XIXe siècles, sous la direction d’Yves Laissus. Paris, Comité des Travaux Historiques et scientifiques, 1995. p. 259-268.

3 A tradução de Olivério M. Oliveira Pinto, Francis Castelnau, Expedição às regiões centrais da América do Sul (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949, 2 volumes), contém apenas os vinte e oito primeiros capítulos da Histoire du voyage e omite o prefácio. Ver também Antônio Porro, “Índios e brancos do rio Amazonas em 1847. Páginas de Castelnau inéditas em português, traduzidas e anotadas”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 56, 2013, p. 281-308.

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O desafio de construir uma antologia: Francis de Castelnau e o seu relato de viagemMaria Elizabeth Chaves de Mello

Escrever é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a que preside,

é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é um ato de citação.

antoine compagnon

Em 2011, ganhei o prêmio de “cientista do nosso estado”, da Faperj, com o projeto de pesquisa intitulado Traduzir e construir antologias: tradu-ção, memória, imaginário e diálogo de culturas. A primeira obra que sele-cionei para a tarefa é a que apresento, agora, ao leitor brasileiro. Trata-se da antologia do relato de Francis de Castelnau, viajante que esteve no Brasil entre 1843 e 1847, e, para narrar a sua viagem, escreveu Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années 1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau. Esse texto me che-gou às mãos na Bibliothèque de l’Arsenal, em Paris, por ocasião do meu pós-doutorado, realizado com a colaboração do professor Roger Chartier, na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Bolsista do CNPq, eu procurava viajantes franceses no Brasil que fossem desconhecidos do público de Letras e Ciências Sociais. Deparei-me com o texto de Francis de Castelnau e, desde então (2008), dediquei-me a construir esta antolo-gia, recortando os textos, selecionando-os, traduzindo-os, com a ajuda de alunos e ex-alunos, do grupo de pesquisa “O passado no presente: releitu-ras da modernidade”. Foi um trabalho árduo e muito agradeço aos meus colaboradores: Alessandra Fontes Carvalho da Rocha, Carlos Eduardo do Prado, Flávia Lúcia Espíndola da Silva, Maria Ruth Machado Fellows, Maria Zuleide Pires Killer, Mônica Fiúza Bento de Faria, Patrícia Souza

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Lima, Sandra Regina Guimarães, sem os quais nada poderia ter sido feito. Agradeço principalmente ao professor Roger Chartier, do Collège de France, pela acolhida em Paris e pelas boas sugestões para este trabalho. Sem a sua colaboração, nada teria sido possível, também. Contendo seis volumes, o texto descreve grande parte do Brasil e de alguns países da América do Sul, discorrendo sobre a flora, a fauna, os minerais, o clima, a latitude e longitude e muitos outros temas que interessam aos colegas das áreas de ciências naturais, zootecnia, paisagismo, biologia etc. Mas lá também encontramos descrições preciosas da sociedade brasileira da pri-meira metade do século XIX, seus hábitos e costumes, que muito podem interessar às ciências humanas e sociais. Dada a vastidão de assuntos tra-tados, bem como a extensão do texto, assim como o pouco conhecimento desse autor no Brasil, a seleção de trechos da obra tornou-se preciosa para o trabalho que desenvolvemos, das relações entre o Brasil e a França.

O trabalho de organização de uma antologia sobre um relato de via-gem pode suscitar várias questões e, para abordá-las, torna-se importante estabelecermos algumas considerações.

A narrativa de viagens apodera-se do ritmo e da técnica do episódio e do relato histórico, assegurando a cor local, através de um olhar teste-munha, subjetivo. A tradução desse relato, em princípio, também deveria dar conta disso. Mas como, se o tradutor não vivenciou o que é relatado e, ainda por cima, vive em outra época? Neste trabalho, lendo, selecio-nando e traduzindo textos do relato de viagem de Francis de Castelnau, apresenta-se-nos a ocasião de refletir sobre em que medida um objeto editorial pode nos levar a pensar sobre o que é a literatura, interrogação que permanece na base de todas as nossas pesquisas. Constatamos, assim, que a antologia pode constituir um observatório do fato literário, pois sua evolução é inseparável de uma reflexão do conjunto dos textos, do seu modo de atuação e transmissão, bem como do ato de traduzir.

Organizar uma antologia, mantendo a narratividade, é um grande desafio. Quando falamos em narrativa, supõe-se que se saiba o que é “nar-rar”. Não seria a relação entre o narrador e sua matéria uma relação arte-sanal? Segundo Walter Benjamin, o narrador sabe dar conselhos que ser-vem para muitos casos, pois dispõe da experiência (cf. BENJAMIN, 1994, p. 210). Seu dom é poder contar alguma coisa e contá-la por inteiro. Por outro lado, a memória é a mais épica de todas as faculdades.

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Mas, se estivermos nos referindo ao relato de viagem, a situação se complica, pois, além da memória, surge a questão do ficcional, do ima-ginário e do fictício. É preciso, então, estabelecer algumas considerações. Numa narrativa, é necessária uma organização temporal, uma ordem na desordem do diverso, irregular e acidental. Essa ordem seria conco-mitante ao ato de escrever. No entanto, ao organizarmos um relato de viajante, isso não seria, também, nos inserirmos na narratividade? Aliás, como um texto em prosa, crítico ou literário, se relaciona com a narra-tiva? Estará sempre ligado a ela, de uma maneira ou de outra? Monsieur Jourdain, personagem de Molière na peça Le bourgeois gentilhomme, des-cobre, a um dado momento, que fala em prosa, sem ter disso consciência. Não estaríamos nós, ao organizarmos uma antologia a partir de textos de um relato de viagem, adotando a mesma atitude do personagem, usando a narrativa sem o saber?

O termo “literatura de viagem” suscita ambiguidade, dando ao relato um status de gênero, que merece ser problematizado. O escritor viajante é, antes de tudo, um jornalista em missão, afirma François Moureau (cf. 2005, p. 12). Por outro lado, é a viagem que faz o escritor. Mas não basta ser um escritor e viajar, para sentir a necessidade de passar da situação de espectador para a de narrador. Na verdade, a literatura de viagem parece não interessar muito, nem ao ficcionista, nem à narrativa memorialista. Enquanto escritor, Rousseau, por exemplo, não nos conta grande coisa de suas viagens. Em compensação, o memorialista das Confessions pinta com exagero o que vê e se apresenta como herói em contextos e cená-rios que o valorizam. O que dizer, então, sobre a narrativa de viagens? Ela surge junto com a imprensa e trata, inicialmente, da única coisa que valia a pena ser narrada, aos olhos renascentistas, pós-medievais: as pere-grinações, as cruzadas, as viagens à Terra Santa. Marco Polo, mais ou menos na mesma época, impregna os seus relatos de fictício e imaginá-rio, seduzindo os europeus para as viagens a novas terras e o encontro com novos povos. Há quem diga que ele nem sequer esteve na China, o que torna mais interessante, ainda, a sua narrativa, pois liberta-a da memória, passando a figurá-la nos domínios do fictício e imaginário. A partir dos Descobrimentos, os jesuítas foram os primeiros a divulgarem os relatos de suas missões, ad majorem Dei gloriam. O velho mundo é sacudido nas suas certezas, surge a Utopia de Thomas Morus, em 1516, dando conta das mudanças que ocorriam na concepção dos europeus,

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diante da descoberta do outro. Durante séculos, o relato de viagem estará ligado à ficção utópica...

Dois franceses escrevem primeiro, no século XVI, sobre o Brasil: André Thevet e Jean de Léry. A baía de Guanabara, berço do sonho de Villegagnon, torna-se, segundo os relatos dos dois viajantes, cenário de guerras de religião, importadas da Europa, e de lutas sangrentas com os índios canibais. Segundo Maria Helena Rouanet, há três aspectos funda-mentais nos escritos desses viajantes: ver, descrição completa e porme-norizada de tudo o que se viu e publicação, visando preservar a memória (cf. ROUANET, 1991, p. 82). Esses três aspectos serão fundamentais, a partir daí, na literatura de viagem sobre o Brasil, na França, sendo responsáveis pela tensão do olhar francês sobre o país, que ora vê a natureza e o povo nativo com um sinal positivo, ora com pessimismo e pavor.

Em 1558, André Thevet publica Les singularitez de la France Antarctique – as primeiras impressões sobre a tentativa francesa de colonização do Brasil. Padre católico, Thevet acusa os protestantes do fracasso da emprei-tada. Anos mais tarde, para responder ao autor, o protestante Jean de Léry escreve l’Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, autrement dit Amérique, uma das obras-primas da literatura de viagem francesa no século XVI. Nela, Léry narra a sua viagem de cerca de um ano na França Antártica, na baía de Guanabara, cujos habitantes, os Tupinambás, são descritos, nos seus costumes e modos de vida. A Histoire d’un voyage só é publicada vinte anos após o retorno do seu autor à França, tempo mais do que suficiente para os franceses terem sido obrigados a deixar o Brasil, e para as guerras de religião explodirem em toda parte, na Europa. A apresentação que Léry faz dos índios interessa, entre outros elementos, pela questão da narrativa, pois ele apresenta, logo no início, a necessidade de pôr ordem na desordem da memória. Afinal, o texto é publicado vinte anos depois do seu retorno à França:

Em primeiro lugar, portanto (para que, começando pelo principal, eu possa continuar na ordem), os selvagens da América, habitantes da terra do Brasil, chamados de Tupinambás, com os quais vivi e frequentei familiarmente durante cerca de um ano... (LÉRy, 1994, p. 210-211).

Lendo esses textos, podemos afirmar que, no século XVI, os projetos de França Equinocial e França Antártica, a fascinação pelo pau-brasil e pelos costumes indígenas, fazem do Brasil o “avesso da Europa”. O Brasil é e tem tudo o que a Europa não é, ou tudo o que ela não tem. Diante dos

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índios brasileiros levados a Rouen e exibidos na corte como selvagens e exóticos, Montaigne se inspira e escreve uma das páginas mais importan-tes sobre o homem natural: o ensaio Os canibais, em que ele questiona o epíteto de “selvagens”, dado a esses índios, e afirma sua superioridade sobre o europeu, dito “civilizado”. Estavam lançadas as bases das teorias sobre a bondade natural do homem, o bon sauvage.

Após o fracasso da colonização no Brasil, durante muito tempo a França voltará o seu olhar sobre o hemisfério norte. É o tempo dos aven-tureiros na América do Norte, da colonização na América Central e na África. O Brasil é constantemente saqueado por piratas franceses e ingle-ses, mas só retomará um lugar no imaginário francês durante o século das luzes.

De fato, no final do século XVIII, a Europa tornara-se maníaca pelas viagens, pelo encontro com o outro, alargando a cada dia o seu objeto de interesse, estudo e reflexão. Ora, entre essas novas possibilidades que se ofereciam ao Velho Mundo, a América era um dos lugares preferidos para a difusão das luzes, o lugar de prática das doutrinas sobre o homem primi-tivo e a sociedade civilizada. Assim, a França lança-se às missões científicas, que, sob pretexto de explorações do solo, do clima, da latitude e longitude, do estudo dos povos, da fauna e da flora, vão muito mais longe, no sen-tido de buscarem garantir a irradiação das ideias do Iluminismo. Cumpre lembrar que esses cientistas viajavam todos, ou quase todos, em missão do governo, com o compromisso de publicarem os seus relatos, de retorno à metrópole. Esses textos, escritos na volta à França, reforçavam a utopia do homem natural, representado pelo indígena. Mas o mito do bon sauvage é ambíguo, servindo tanto a religiosos quanto a ateus: aos primeiros, como base de crítica à moral da civilização do século XVIII, apresentando-lhe o selvagem como isento de todos os vícios e defeitos dessa sociedade; por sua vez, os cientistas livres pensadores, não religiosos, servem-se também dos índios para provarem a superioridade do homem natural, baseada no instinto e na razão. Acrescente-se a isso um outro elemento, pois alguns viajantes falam de seres repulsivos, antropófagos e ferozes, e teremos o sel-vagem ora bom, ora mau, dando respaldo a agnósticos e religiosos, e o Brasil torna-se, ao mesmo tempo, um paraíso natural a ser preservado e um mundo primitivo que deve ser “civilizado”.

Por outro lado, nessa época, um certo subjetivismo literário, se pode-mos chamá-lo assim, começa a tomar o lugar do academicismo clássico,

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na Europa, dando origem a gêneros como o diário íntimo, ou as memó-rias. Embora esses gêneros já sejam frequentes na literatura ocidental há muito mais tempo, é no final dos setecentos que eles passarão a ser impregnados do “eu”, associando memória, fictício e imaginário, como nunca antes. Surge, então, a categoria do escritor viajante, com uma dupla função: ser um olhar que escreve e, ao mesmo tempo, um escritor, longe da sua mesa de trabalho, e em permanente ação. Para esse autor, a escrita está diretamente vinculada ao olhar. Ele se distingue de outra catego-ria, surgida, também, na mesma época: o turista, que viaja por prazer e não escreve, ou escreve apenas cartões e/ou cartas curtas, quase sempre apoiado por um “manual” de viagem, texto anônimo e impessoal, que lhe fornece pronto o roteiro dos prazeres que busca.

Ora, o viajante de que falamos aqui não viaja por prazer. Ao contrá-rio, sua viagem deve ser útil, justificada, bem no espírito do Iluminismo. A América do Sul é vista por esse viajante como o “avesso da Europa”, na descrição de uma natureza paradisíaca, grandiosa e inacessível, afastada da civilização, diferente da europeia, um lugar do novo e do desconhe-cido, onde vive o novo homem, representante desse novo mundo.

Nessa mesma época, é escrita a Histoire philosophique et politique des Établissements et du Commerce des Européens dans les deux Indes, do abade Raynal. Esta obra, publicada em 1770 e posteriormente modificada por Diderot, é considerada o primeiro clássico francês anticolonialista. Trata dos efeitos negativos dos descobrimentos sobre as civilizações nativas, com muita desconfiança em relação às narrativas de viagem. Raynal descreve os índios brasileiros de antes das descobertas como um povo de ateus felizes, hospitaleiros, sociáveis. Percebe-se, aí, já um con-flito interessante entre o código da natureza e a civilização europeia, de tanta importância para o estudo de autores como Rousseau e o próprio Diderot, no Supplément au Voyage de Bougainville. O livro, nos seus trinta primeiros capítulos, narra a maneira pela qual Portugal impôs modelos imperialistas, adaptados e adotados, posteriormente, por outras nações europeias. Além do mais, descreve a ascensão e decadência de um povo (o português), esta última devida, principalmente, à política econômica fundada na busca do ouro, com o consequente abandono da agricul-tura e da indústria. A obra narra, também, a luta dos portugueses contra as outras nações predatórias do Brasil (França e Holanda) e mostra os

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indígenas brasileiros muito próximos dos habitantes do Taiti, descritos por Bougainville e idealizados por Diderot: bons sauvages, mais próximos da natureza do que da civilização europeia corrompida; generosos, sem religião (ou adeptos de uma religião da natureza), praticantes da poliga-mia, enfim, livres e puros. A obra foi censurada em Portugal e na Espanha e proibida pela Inquisição, mesmo na França. Mas há estudos que provam que l’Histoire des deux Indes teve repercussões no Brasil, tanto na Revolta dos Alfaiates, na Bahia, quanto na Conjuração Mineira, ambas de 1789.

Fica evidente, no que estamos vendo até agora, essa oscilação, ou tensão, entre imagem positiva e negativa do homem americano, no olhar francês. Tensão que persiste no século XIX, como se pode constatar nos textos de Francis de Castelnau, que trazemos ao leitor brasileiro de hoje. O naturalista percorreu o Brasil e a América do Sul de 1843 a 1847, e retorna, posteriormente, como cônsul na Bahia, onde escreve o seu relato. A nar-rativa de sua viagem contém seis volumes – Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années 1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau. O texto percorre grande parte do Brasil, discorrendo sobre a população, seus hábitos e costumes, assim como sobre os índios e os escravos, a condição da mulher, a cidade e o campo, a mata, os animais, as relações do Brasil com a Europa naquele momento, o imperador, a aristocracia urbana e rural etc. O entusiasmo e interesse de Castelnau pela América do Sul é evidenciado em muitos dos seus textos, tais como este:

Poucos lugares se apresentam à imaginação com tanto prestígio quanto a América do Sul; enquanto a parte setentrional desse continente perde cada dia mais o seu caráter primitivo, substituindo-o pelas maravilhas da indús-tria moderna, a parte Sul, ao contrário, conserva ainda hoje o selo da natu-reza virgem: aí, nada de estradas de ferro, nem de canais, nem, na maioria das vezes, estrada nenhuma; mas, em toda parte, admiráveis florestas vir-gens, rios cujas extensões não têm limites, montanhas cujos picos gelados se perdem acima das nuvens, nações selvagens, que desconhecem até o nome da Europa (CASTELNAU, 1850, v. I, p. 42).

Estamos diante da presença da natureza virgem, propícia a desenca-dear o imaginário do viajante... Mas também se pode observar a ambi-guidade do discurso sobre o homem americano do sul, ao mesmo tempo apresentado como selvagem, ignorando a civilização europeia, e, por outro

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lado, mantendo-se mais próximo da natureza, ao recusar imitar o modelo industrial europeu.

Castelnau, embora vivesse em meados do século XIX, era ainda um homem do Iluminismo francês, leitor de Rousseau e Montesquieu, o que se evidencia por esse paradoxo nos seus textos sobre o brasileiro. A América do Sul, especialmente o Brasil, seria mais interessante do que a América do Norte, principalmente porque está mais próxima da natu-reza, prestando-se mais a ser um laboratório de provas sobre as questões da natureza x cultura, do bon sauvage, e, por isso mesmo, oferecendo mais condições ao trabalho do imaginário. Embora guardando ainda traços dos philosophes, homem do seu século, Castelnau se encanta com a paisagem e oferece muito material de reflexão teórica sobre o roman-tismo, nos inúmeros momentos em que pretende descrever a natureza deslumbrante que percebe. Por outro lado, confessa não encontrar pala-vras para a sua narrativa e lamenta não ser um grande pintor para dar conta do que vê. Seus relatos se prestam a muitas discussões, entre as quais a da impossibilidade da linguagem escrita de reproduzir os senti-mentos e as ideias.

E, efetivamente, o autor desenha o que vê, como o provam as inú-meras ilustrações e gravuras na sua obra, na esperança de que a narra-tividade do desenho transmita o que ele não consegue com a linguagem verbal. Muito haveria a dizer sobre várias passagens do texto, mas gos-taríamos de enfatizar o seu caráter romântico, em que o autor se mostra consciente do trabalho do imaginário diante do real, chegando até a ter alucinações sobre os gelos dos polos, a partir de uma paisagem da natu-reza tropical. Essa relação entre realidade e ficção atravessa todo o texto de Castelnau, e leva-nos a concluir sobre a literariedade do texto, mesmo se admitirmos que o gênero narrativa de viagens não é muito prestigiado enquanto literatura. Além disso, nesses relatos, encontramos muitas informações sobre os costumes e a vida quotidiana no Brasil, tanto na cidade, quanto no campo. Trata-se de verdadeiras crônicas dessa época sobre o país. Castelnau é muito consciente das funções do imaginário, da memória e do esquecimento nos seus textos, ao contrário da maioria dos autores viajantes, que, normalmente, recusam o caráter ficcional de suas narrativas, que eles consideram como meros “documentos”. O autor está na contramão do seu tempo, legando-nos um texto bem curioso e rico de

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elementos que podem interessar aos pesquisadores de teoria da literatura, de história e de literatura comparada.

Ao oferecer a leitura de Francis de Castelnau ao leitor brasileiro, res-ta-nos reforçar o que já vinha sendo anunciado desde o início do texto: que o Brasil é, desde o Renascimento, um mito paradoxal para os france-ses, ponto de partida de crítica à moral da civilização europeia, pelo fato de oferecer o espetáculo da superioridade do homem natural. Mito de um mundo novo, que deve ser preservado, mas, ao mesmo tempo, um mundo primitivo, que precisa ser civilizado...

Essas constatações nos permitem estudar o papel e a função que esses viajantes escritores tiveram na formação do conceito de identidade nacional, tanto no Brasil, quanto na América do Sul. Além de farto mate-rial para a reflexão sobre o conceito de nação que aqui se elaborava, com a ajuda desse imaginário estrangeiro, cumpre reafirmar que a grande maio-ria dos viajantes da modernidade negava a literariedade de suas narra-tivas, por serem cientistas, savants, que olhavam as literaturas e as artes com desprezo. Assim, a discussão sobre o fictício e o imaginário, a partir desses textos, bem como o papel das narrativas de viagem na formação da literatura brasileira e do conceito de Brasil visto pelos brasileiros, podem ser o ponto de partida para novos aprofundamentos nos estudos sobre o Iluminismo e o Romantismo, no cotejo desses relatos com a literatura desses dois movimentos, tanto na França, quanto no Brasil. E onde há sempre lugar para o imaginário...

referências bibliográficas

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CASTELNAU, Francis de. Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para – exécutée par ordre du gouver-nement français, pendant les années 1843 et 1847, sous la direction de Francis de Castelnau. Paris: Chez P. Bertrand, Libraire-Editeur, 1850. 6 v.

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MOUREAU, François. Le théâtre des voyages. Paris: PUF, 2005.

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Tomo 1

Introdução

A história de viagens sempre foi para mim objeto de uma paixão dominante: quando criança, os relatos de Cook e de Levaillant substi-tuíam, em minhas mãos, os contos de fadas; na juventude, meu sono era frequentemente perturbado pelo pensamento em aventuras longínquas e pelas maravilhas que nos apresentam as grandes cenas da natureza.

O estudo das ciências naturais, de mestres como Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire, Brongniart, Élie de Beaumont, de Jussieu, de Blainville, Desfontaines, Duméril, Latreille etc., logo veio acrescentar um novo e bem poderoso incentivo a essas disposições aventureiras. Enfim, quando cheguei à idade em que a liberdade de ação não tem mais controle, não pude mais resistir muito tempo a esse ímã que me arrastava para longe do meu país, longe dos meus, longe das doçuras da civilização; fiquei, muito tempo, buscando o lugar para o qual dirigiria minha corrida incerta. O desconhecido sempre teve, para mim, uma atração irresistível: ora, seguindo os traços de Burns, queria me dirigir aos planaltos da Ásia Central, onde a civilização de nossa raça teve seu começo; ora, seduzido pelos relatos dos Munge-Park, dos Long, dos Lyon, dos Clapperton, dos Denham, dos Caillé, sonhava apenas em penetrar no meio dos desertos ardentes do interior da África, cuja geografia, até hoje, é muito pouco conhecida; mais frequentemente ainda, sentia-me atraído por esse Egito antigo, por essa misteriosa Etiópia, onde o homem aprendeu a balbuciar a ciência. Que encantamento não encontrava só em pensar em me perder no meio desses obeliscos que viram a grandeza dos faraós e as explorações dos Sesóstris? Nessas pirâmides, em cujos degraus choraram os filhos de Israel? Enfim, minha imaginação delirante me fazia ler os hieróglifos das primeiras eras, e a história de um mundo novo brotava através do granito

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e se desvendava como um vasto panorama para o meu espírito doente. Outras vezes, ainda, sonhava em seguir, com as Escrituras na mão, a mar-cha dos judeus através dos desertos da Palestina, vendo os lugares que ainda falam de Moisés, visitando a cidade de Baal, buscando os restos da suntuosa Nínive. Mas, de repente, a grande figura de Colombo vinha, como um espectro imenso, exigir o meu respeito; apoiando-se em Cortez e Pizzarro, ela parecia me repreender pelo abandono no qual eu deixava esse continente inventado pelo seu gênio. Então, o resto do mundo era esquecido, o Niágara, o Mississípi, a Amazônia absorviam completa-mente os meus pensamentos; errar com os selvagens nos lagos outrora franceses do Canadá, perseguir bisões nas pradarias do Oeste, visitar as minas de prata do México e de Potosí e as formações auríferas do Brasil, estudar esses seres anormais que se escondem entre as árvores tão varia-das dos trópicos, esse era o sonho ao qual me abandonava. Oh! Nesse momento, minha cabeça se perdia, e eu ficava louco de felicidade e ávido de curiosidade.

Uma oportunidade de visitar a América do Norte se apresentou, enfim, e, mesmo sempre tendo sentido uma predileção particular pelas regiões equatoriais, eu a agarrei prontamente. Cinco anos de viagem me fizeram percorrer todos os Estados da União-Americana, o Texas e o Canadá; as produções dessas vastas paragens e as leis desse povo, que se chama americano por excelência, tornaram-se o objeto de longos mas atraentes estudos. Antes de minha partida, havia publicado várias obras de zoologia; quando retornei, publiquei minhas Vues et souvenirs de l’Amérique du Nord e meu Essai sur le système silurien de l’Amérique septentrionale.

Durante minha permanência nos Estados Unidos, tive contatos fre-quentes com grande parte dos eminentes homens de Estado que essa jovem e enérgica república produziu, e eles, desejando facilitar para mim uma viagem às partes equatoriais da América, que sabiam ser meu maior desejo, propuseram-me, em nome do governo da União-Americana, ir a Lima cumprir funções diplomáticas. Apesar de ter ficado bastante como-vido com essa marca de estima, só pude aceitar com a condição de pri-meiramente retornar à França, para solicitar a autorização do Governo de meu país. Quando cheguei à Europa, fui recebido com a maior gene-rosidade, por um príncipe que havia confessado um interesse tão grande quanto esclarecido pelas ciências geográficas; ele me censurou pelo que

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chamava de minha deserção e quis me propor dirigir uma expedição científica que o Governo francês sonhava, sob seus auspícios, enviar às regiões mais centrais e menos conhecidas da América do Sul. Inútil dizer que aceitei, com profundo reconhecimento, semelhante missão que iria, enfim, me permitir visitar essas paragens que o sol jamais abandona e onde a natureza apresenta todas as suas maravilhas luxuriantes. Sempre me pareceu que, devido apenas a um efeito estranho da civilização, as mais belas regiões do globo estão hoje negligenciadas pelos homens e entregues aos tigres e aos répteis gigantescos. A raça humana, aban-donando a caça para buscar recursos mais seguros na cultura do solo, e sentindo a necessidade de escapar dessa inebriante moleza que, sob os trópicos, vem destruir nossas forças e amortecer todas as nossas faculda-des, fez então o sacrifício voluntário de uma parte de seu bem-estar, para ir buscar nos climas frios e variáveis a energia do corpo, que se tornava necessária à sua nova maneira de viver. Assim avança a civilização e se desenvolvem as raças; mas também é certo que, mesmo contra a vontade, nossos pensamentos se voltam para essas zonas onde abundam as pal-meiras, que gozam de uma perpétua primavera e cujo solo produz sem exigir trabalho.

Impossível duvidar que esse fosse o berço da raça humana, pois uma região semelhante se apresenta uniformemente à mente, como sendo o paraíso terrestre da cosmogonia universal dos povos; observa-se também que os animais que mais se aproximam de nossa raça, os quadrúpedes quadrúmanos (os macacos), mais sábios que nós, talvez, permaneceram fiéis a essas belas paragens, o que lamentamos sempre.

Hoje, a América só conservou de sua população aborígene as tribos errantes de homens de cor acobreada e ligeiramente avermelhada, que se organizam em pequenas famílias no meio de florestas sem demarcação, têm línguas infinitamente diversificadas, estão em guerra permanente uns contra os outros e parecem ser instrumentos cegos de um decreto misterioso dessa providência que destrói, por milhares de meios, tudo o que se tornou inútil a seus fins. Dessa forma, assim que um novo broto se lança forte e ativo, os velhos ramos secam e se decompõem, pois a natureza, assim como protege a conservação da espécie, trata com indi-ferença tudo o que diz respeito à individualidade. Para aquele que estuda profundamente essa raça, ela só é representada hoje por alguns indiví-duos de cada uma das mil nações que a compunham no passado. Essa