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OLIBERAL 81 AMAZÔNIA 2 O capitalismo homogeneíza as pessoas e as etnias O brasileiro Milton Santos (1926-2001), que apesar de ter se graduado em direito se tornou um dos maiores geógra- fos do mundo, advertiu que a idéia de globalização, e isto muito antes que este conceito ganhasse o mun- do, poderia gerar o fim da cultura e dos saberes regionais. “Por uma Outra Globalização”, livro escrito por Milton Santos dois anos antes de morrer, traz uma abordagem crítica sobre o processo perverso de globalização atual na lógica do capital, apresentado como um pensamento único. Na visão dele, esse processo, da forma como está configurado, transforma o consu- mo em ideologia de vida, fazendo de cidadãos meros consumidores, massifica e padroniza a cultura e concentra a riqueza nas mãos de poucos. Este perigo é real porque os processos de globalização do capitalismo transcontinental atual ignoram que é nos diferentes luga- res do espaço regional, organizados em diferentes territórios, onde os sistemas particulares do acontecer social distinguem a identidade his- tória e cultural de uma população. Pois, inversamente à massificação da globalização - que tenta padro- nizar em todos os espaços do pla- neta comportamentos, sexualida- des e etnias - é em cada lugar que o tempo das diversas ações e dos diversos atores singulariza a histó- ria, a cultura e as relações sociais de um povo. Como o espaço não A globalização visa a desconstrução das identidades regionais e a transformação do Homem num ser universal meramente consumidor é homogêneo, evoluindo de modo particular em cada território, a ori- ginalidade do sentido dos compor- tamentos, da história e das relações entre as pessoas não é a mesma em toda parte. Portanto, toda vez que o mercado internacional projeta comportamentos e relações glo- bais, que podem ser identificados em qualquer lugar do mundo como um potencial nicho de consumo padronizado, essa projeção está desorganizando as estruturas cul- turais e até mesmo históricas dos lugares. Por exemplo, em São Paulo, quando 3 milhões de pessoas vin- das dos mais diferentes recantos do mundo participaram da Parada Gay pensando que desfilavam por uma ideologia de vida, o que mais se viu nos jornais, semanários e no- ticiários de TV que comentaram o evento, foi o potencial de consumo especializado que essa massa re- presentava ($$$$$). E se assim foi em São Paulo, também o foi em Pa- ris. Ou seja, para a lógica capitalista não importa onde um produto pode ser fabricado, se na Singapura, em Marabá ou no Alasca, a mercadoria padrão sempre satisfará um consu- midor gay globalizado em qualquer lugar do mundo. Então, para criar mercado consumidor para diferen- tes conjuntos de produtos padrão, produzidos em qualquer lugar e consumidos em qualquer lugar, o capitalismo homogeneíza as pesso- as, os comportamentos e as etnias em grupos globalizados de consu- midores especializados. Assim são criados mercados de gays, lésbicas, negros, mulheres independentes, teens, etc, etc e etc, que são iguais em toda parte. Isto facilita a circu- lação de bens e riquezas, mas aca- ba com a heterogeneidade cultural do mundo e com a identidade de povos e nações. 81 AMAZÔNIA 2 Texto Marcos Pereira Magalhães MISCIGENAÇÃO Identidade e desenvolvimento 81 AMAZÔNIA 2 Índio Kwazady, com traços de mestiçagem; liderança Xipaia, aldeia Tukamã, rio Iriri, Pará Milton Santos (1926-2001), geógrafo brasileiro que enfatizou o aspecto humano da geografia e foi um crítico da globalização perversa. Recebeu em 1994 o prêmio Vautrin Lud, o mais alto da geografia FOTO: ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES

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Page 1: Foto: Antônio CArlos MAgAlhães identidade e desenvolvimento · índios, mestiços de todos os tipos e até brancos? Porque, infelizmente, ... como Darci Ribeiro cunharam a expressão

o liberalo liberal

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O capitalismo homogeneízaas pessoas e as etnias

Obrasileiro Milton Santos (1926-2001), que apesar de ter se graduado em direito

se tornou um dos maiores geógra-fos do mundo, advertiu que a idéia de globalização, e isto muito antes que este conceito ganhasse o mun-do, poderia gerar o fi m da cultura e dos saberes regionais. “Por uma Outra Globalização”, livro escrito por Milton Santos dois anos antes de morrer, traz uma abordagem crítica sobre o processo perverso de globalização atual na lógica

do capital, apresentado como um pensamento único. Na visão dele, esse processo, da forma como está confi gurado, transforma o consu-mo em ideologia de vida, fazendo de cidadãos meros consumidores, massifi ca e padroniza a cultura e concentra a riqueza nas mãos de poucos. Este perigo é real porque os processos de globalização do capitalismo transcontinental atual ignoram que é nos diferentes luga-res do espaço regional, organizados em diferentes territórios, onde os sistemas particulares do acontecer social distinguem a identidade his-tória e cultural de uma população. Pois, inversamente à massifi cação da globalização - que tenta padro-nizar em todos os espaços do pla-neta comportamentos, sexualida-des e etnias - é em cada lugar que o tempo das diversas ações e dos diversos atores singulariza a histó-ria, a cultura e as relações sociais de um povo. Como o espaço não

A globalização visa a desconstrução das identidades regionais e a transformação do Homem num ser universal meramente consumidor é homogêneo, evoluindo de modo

particular em cada território, a ori-ginalidade do sentido dos compor-tamentos, da história e das relações entre as pessoas não é a mesma em toda parte. Portanto, toda vez que o mercado internacional projeta comportamentos e relações glo-bais, que podem ser identifi cados em qualquer lugar do mundo como um potencial nicho de consumo padronizado, essa projeção está desorganizando as estruturas cul-turais e até mesmo históricas dos lugares.

Por exemplo, em São Paulo, quando 3 milhões de pessoas vin-das dos mais diferentes recantos

do mundo participaram da Parada Gay pensando que desfi lavam por uma ideologia de vida, o que mais se viu nos jornais, semanários e no-ticiários de TV que comentaram o evento, foi o potencial de consumo especializado que essa massa re-presentava ($$$$$). E se assim foi em São Paulo, também o foi em Pa-ris. Ou seja, para a lógica capitalista não importa onde um produto pode ser fabricado, se na Singapura, em Marabá ou no Alasca, a mercadoria padrão sempre satisfará um consu-midor gay globalizado em qualquer lugar do mundo. Então, para criar mercado consumidor para diferen-tes conjuntos de produtos padrão, produzidos em qualquer lugar e consumidos em qualquer lugar, o capitalismo homogeneíza as pesso-as, os comportamentos e as etnias em grupos globalizados de consu-midores especializados. Assim são criados mercados de gays, lésbicas, negros, mulheres independentes, teens, etc, etc e etc, que são iguais em toda parte. Isto facilita a circu-lação de bens e riquezas, mas aca-ba com a heterogeneidade cultural do mundo e com a identidade de povos e nações.

81AmAzôniA2

texto Marcos Pereira Magalhães

MISCIGENAÇÃO

identidade e desenvolvimento

81AmAzôniA2

Índio Kwazady, com traços de mestiçagem; liderança Xipaia, aldeia Tukamã, rio Iriri, Pará

Milton santos (1926-2001), geógrafo brasileiro que enfatizou o aspecto humano da geografi a e foi um crítico da globalização perversa. Recebeu em 1994 o prêmio Vautrin Lud, o mais alto da geografi a

Foto: Antônio CArlos MAgAlhães

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Desconstrução da identidade

Todo brasileiro já teve ou tem uma mãe índia, branca ou negra

Esta lógica de acúmulo de ca-pital através da geração de merca-dos consumidores especializados e homogeneizados, tem como efeito colateral aberrações bem piores do que a atual crise financeira do ca-pitalismo, que tem arrastado para a miséria e para a fome justamente os países menos desenvolvidos da África e da América Latina. Qual seja: o esfacelamento de países e o conflito entre etnias, fatos geral-mente relacionados. Claro que o Brasil não está imune a tais efeitos e já tivemos exemplos recentes da defesa do separatismo do sul do país, justamente a região onde se concentra a população de coloniza-ção mais nova e eticamente homo-gênea. Porém, as discussões sobre as ações afirmativas e a reserva de cotas para alunos negros nas universidades, por sua vez, ainda que possam parecer mesquinharia ou uma simples marola diante das desigualdades sociais tão marcan-tes do Brasil, podem estar camu-flando um problema maior. Afinal, os sinais de aproximação de um tsuname começam com inocentes marolas. Na verdade, o que essas discussões não têm levado em con-sideração ou escondem, é que a divisão da nossa sociedade em gru-pos étnicos diferentes, ainda que em harmonia, é a desconstrução da própria identidade brasileira! Por que as cotas não são reservadas às camadas mais pobres da população que, dependendo da região, favore-cerão proporcionalmente negros, índios, mestiços de todos os tipos e até brancos? Porque, infelizmente, a criação de cotas baseadas na cor da pele e não simplesmente no ní-vel socioeconômico, visa, acima de tudo e de qualquer coisa, a criação de consumidores especializados!

A iDentiDADe brAsileirA

(Ser brasileiro é ser interétnico: num só corpo ser o cruzamento de índios, brancos e negros).

O brasileiro foi sendo construído pela história desde o início da colo-nização e se consolidou no século XIX. A nossa identidade enquanto brasileiros ficou bastante evidente quando um grande contingente de imigrantes europeus e orientais foi trazido para a América do Sul, com

a maioria vindo para o Brasil, para a Argentina e para o Chile. Enquanto que na Argentina e no Chile, cujos imigrantes eram de maioria euro-péia, têm a sua identidade forjada justamente a partir daí, já que esses imigrantes se juntaram aos nativos de maioria euro-descendente e com sentimentos de superioridade aos nativos originais, no Brasil eles en-contram uma população nativa de maioria mestiça e já identificada com o ser brasileiro. Daí que vamos ter na Argentina, por conseguin-te, o orgulho de ser a Europa na América e no Chile, o orgulho de ter uma educação exemplarmente européia. Já no Brasil, tanto os imi-grantes orientais quanto os euro-peus foram absorvidos pela cultura brasileira em transformação, mas já consolidada.

Hoje, estudos genéticos a partir da linhagem materna, isto é, da mãe, da avó (mãe da mãe), da bisa (mãe da mãe da mãe) e assim por diante, revelam que, no mínimo, 85% da população brasileira é mes-tiça: todo brasileiro já teve ou tem uma mãe índia, branca ou negra. Os demais 15% ficam por conta da população branca, concentrada no Sul do país, que ainda não foi gene-ticamente absorvida pela maioria. Portanto, o brasileiro típico é mesti-ço não importando se a cor da pele seja branca, negra ou morena. Este amálgama não foi consolidado ape-nas racialmente, mas fundamental-mente, culturalmente também. Ou seja, a cultura brasileira é aquela que evoluiu a partir da combinação das culturas indígenas, européias e africanas, que assim formataram um padrão cultural singular que, por sua vez, não é indígena, nem europeu, nem africano. É brasileiro! Um exemplo marcante desse amál-gama cultural é a luta da Capoeira. A Capoeira deriva de uma dança rural africana e foi desenvolvida com elementos culturais indígenas, de tal importância, que o nome dela é tupi. Apesar de toda repressão, a Capoeira permaneceu como uma expressão urbana da criatividade da cultura brasileira. Entretanto, no exterior, onde ela é bem popular, é conhecida como uma arte afro-bra-sileira. Um tremendo estapafúrdio!

Na primeira metade do século XX, enquanto boa parte da inte-

lectualidade e dos cientistas norte americanos e europeus discutiam a eugenia, ou seja, o melhoramen-to da espécie humana tendo como modelo a raça branca, para eles a superior, outros estudiosos e inclu-sive no Brasil - onde se destacou Gilberto Freire - combatiam feroz-mente esta idéia. Eles mostraram que o conceito de raça estava em desacordo com o que era observado na história da formação das popu-lações em todo mundo. E para essa discussão, o Brasil era o laboratório por excelência, pois aqui a mistura de raças era mais que evidente: era a base da nossa formação nacional. O problema que o Brasil era um

país periférico, de desenvolvimen-to pífio, cuja população pobre e de maioria analfabeta era justamente a morena, a mulata e a negra. Isto parecia alimentar os argumentos racistas, mas nossos intelectuais reagiram mostrando que o estado da população era causado não por motivos raciais, muito pelo contrá-rio, mas pela péssima distribuição de renda, pela secular carência ali-mentar e pela absoluta indiferença das classes dominantes pelo nosso capital humano. No entanto, a eu-genia só foi derrotada quando seu braço armado sustentado por Na-zistas e Fascistas perdeu duas guer-ras: a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim alguns bol-sões de resistência permaneceram incrustados em certos países de língua inglesa, como nos Estados Unidos e na África do Sul, que só no final do século XX conseguiram colocar o racismo na ilegalidade.

Mas as raízes afro-luso-indígenas do brasileiro parecem incomodar

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muita gente, que tenta marginali-zar a originalidade de nossa cultura fragmentando-a em afro e euro bra-sileira, sem perceber que isto é a ne-gação da nossa própria identidade. Daí muitas pessoas pensarem que nossas origens são greco-romanas, africanas e até fenícias, ignoran-do completamente que a natureza cultural de qualquer sociedade tem por fundamento o lugar, porque é nele onde se caracterizam as intera-ções socioculturais dos povos, que assim vivifi cam a sua singularida-de e originalidade cultural.

Na ânsia para criar nichos de consumidores especializados o capitalismo transnacional, através dos meios de comunicação, abar-rota nossos ouvidos com disparates históricos e científi cos, todos gera-dos dos países onde um dia, não tão distante na história, a eugenia fez parte das academias de ciência. Assim, como a propaganda é alma dos negócios, vemos nos jornais e nas TVs e apoiados por juristas,

jornalistas e intelectuais, conceitos completamente absurdos para a nossa formação cultural e étnica, como a idéia de uma cultura afro-brasileira, ou de uma população afro-descendente. Porém, a nossa “identidade nacional” vem sendo idealizada desde o século XIX e popular seria, desde então, aquilo que se identifi ca no conjunto e não separadamente, com o índio, o ne-gro e o branco. E foi a partir dessa identidade coletiva, que pensadores como Darci Ribeiro cunharam a expressão “Civilização Brasileira” para marcar bem a diferença em re-lação à chamada Civilização Latina Americana, regularmente associa-

da ao atraso político, ao sub-desen-volvimento econômico e à miséria.

O século XX desenvolveu uma tradição de estudiosos voltados para o pensamento de nossa sin-gularidade civilizadora, a qual teve representantes ideológicos tanto na chamada esquerda quanto na cha-mada direita. Entretanto, desde a década dos anos de 1970, quando a ditadura militar - que chegou ao poder com apoio estrangeiro - assu-miu a defesa nacionalista de nossas singularidades e, em contrapartida, a resistência de esquerda assumiu um discurso internacionalista e o Brasil foi indiretamente envolvi-do na Guerra Fria, a idéia de uma civilização brasileira foi gradati-vamente desacreditada. E parece que agora atingimos o auge deste descrédito, por conta do discurso da globalização, cuja pós-moder-nidade desterritorializante massi-fi ca as Nações entre dois mundos: o dos incluídos e o dos excluídos. Paralelamente, ao mesmo tempo fragmenta as sociedades quase ao infi nito, em grupos (sempre mino-ritários: homossexuais, feministas, étnicos e etc.) sempre agenciados em categorias universalizantes.

Mas apesar das diferentes pers-pectivas ideológicas voltadas para a interpretação da nossa composição social inter-racial e inter-cultural, é a mestiçagem que identifi ca a Nação brasileira. Portanto, se a Civilização Brasileira tem por base a relação entre os elementos indígena, euro-peu e africano já consolidados em nossa identidade cultural e étnica, então não há qualquer cabimento afi rmar uma cultura afro-brasilei-ra contra outra euro-brasileira. Isto parece ser apenas uma afi rmação hipócrita para disfarçar a vergonha que certos setores da nossa socieda-de têm de suas próprias raízes e, por outro lado, da ideologia colonizada e oportunista de certas minorias “raciais” organizadas da sociedade. Aliás, não há melhor exemplo de auto-identidade do que as palavras desse samba: “...eu não sou africa-no, eu não sou americano, eu sou do samba, eu sou brasileiro...”

seXO, PODer e iDentiDADe

(As índias foram para nós, o ventre primordial que amalgamou todas as raças que aqui chegaram com a conquista portuguesa)

É comum ouvirmos dizer por aí que Zumbi foi um herói africano

no Brasil. Inclusive o busto exposto em sua homenagem na Praça XI, no Rio de Janeiro, representa um Deus de origem africana. Entretanto, es-tudos históricos e arqueológicos confi rmam que Palmares era uma comunidade inter-étnica, tipica-mente brasileira: uma parte signi-fi cativa da população era mestiça; a cultura material era predominan-temente indígena; e a língua falada era a “língua geral”, o tupi. Não é nenhum absurdo supor que Zumbi, provavelmente, não era negro. Nes-ta época, a massa de mão-de-obra escrava importada era masculina, já que a mulher (restrita aos serviços domésticos) era desvalorizada. Por isso, havia carência de mulheres negras nos primeiros quilombos, as quais eram substituídas pelas in-dígenas. A mestiçagem, enfi m, era costumeira.

Realmente, basta lembrar que até o século XVIII a mestiçagem era fonte de preocupação para as auto-ridades lusitanas já que o concubi-nato dos próprios portugueses com as índias e mais tarde com as ne-gras era regra na colônia. Inclusive, por causa disso, durante um bom tempo foi proibido a construção de conventos na colônia e mulheres brancas não podiam sair dela, nem mesmo para serem freiras em Por-tugal.

Nos quilombos, de africano, so-mente alguma infl uência no siste-ma de organização política, que por sua vez, governando uma sociedade plural, era muito específi co e único. Estudos arqueológicos recentes em áreas de antigos engenhos coloniais com mão-de-obra escrava, nas pro-ximidades de Belém, revelaram que a cultura material encontra-da nas áreas das antigas senzalas apresenta características africanas. Entretanto, outras pesquisas em andamento nos quilombos (quer tardios ou do período colonial) re-manescentes dessas mesmas fazen-das, também têm mostrado que a cultura material neles depositada, não preservou qualquer traço afri-cano evidente e apresenta origem exclusivamente indígena. Ou seja, a cultura africana só resistiu en-quanto ela esteve confi nada em uma senzala, mas quando o negro começa a interagir com o mundo, tal como ocorre nos quilombos, ela vai se tornando cafusa (cabocla) e defi nitivamente brasileira. Zumbi, na verdade, enfi m, é um herói bra-sileiríssimo.

Nem índio, nem branco, nem negro: apenas brasileiro

As índia foram o nosso ventre primordial. Índias Xipaia em apresentação na aldeia Tukamã, rio Iriri, Pará

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CAMINHOS PARA APROFUNDAMENTOS

Freyre, G. 2006. (1ª Ed. 1933). Casa grande e senzala. 18ª Ed., Global Editora, São Paulo. - Jorge Amado. Obras completas. Jurandir, D. 1997. Chove nos campos de

Cachoeira. Belém: Cejup/Secult. Machado de Assis. Obras completas. Nelson Rodrigues. Obras completas. Rosa, J.G. 2005. Grande sertão: veredas.

20ª Ed., Editora Nova Fronteira. 624p. Ribeiro, D. 1995. O povo brasileiro. São Paulo: 1ª Ed., Editora Companhia das Letras, 440p.

Santos, M. 2004. Por uma outra globalização. Do pensamento único a consciência universal. 5ª Ed. Editora Record. 176p.

O verdadeiro papel de eva

A herança bendita da Eva indígena na alma do brasileiro

Aliás, temos que reconhecer que a mulher índia exerceu para a formação gênica do povo brasileiro o verdadeiro papel de Eva. No início da coloniza-ção, por conta da ausência de mulhe-res brancas e negras, foram os ventres das índias que serviram de matriz do brasileiro. Para isto contribuíram dois fatos: 1) os portugueses não as rejei-tavam e, muito pelo contrário, como política colonial teve nelas e depois nas negras, seu principal elemento de formação e fi xação populacional; 2) por outro lado e mais importante ainda, o sexo foi um elemento fun-damental na relação indígena com estrangeiros, especialmente se esses eram considerados mais fortes. Por isto as índias se relacionaram com portugueses, franceses e negros, não porque fossem devassas, ou achavam o homem indígena sexualmente in-competente. Não! Era uma política de estado, diplomática, de conquistar ou amansar o inimigo através da sexua-lidade da mulher. Esta prática política perturbou administradores coloniais e os jesuítas, que se apressaram em ten-tar desfazer este costume. Posterior-mente, por necessidades econômicas do colonizador, pelo menos adminis-trativamente, acabou sento tolerado e até incentivado. Porém, esta política também foi perturbadora para os an-tropólogos que tentaram compreender essa prática sem chegar a uma con-clusão. Eles acabaram repetindo a im-pressão do colonizador, que achavam as índias sexualmente mais oferecidas do que a média, porque seriam fêmeas selvagens de sociedades primitivas.

Mas não era bem assim. Hoje sa-bemos que muitos grupos indígenas desenvolveram sofi sticadas relações políticas, constituindo sociedades complexamente estruturadas. Além disto, as mulheres eram para essas so-ciedades as detentoras das principais tecnologias econômicas, como a da produção da cerâmica e a do processa-mento da mandioca, bem como eram elas quem exercia a ação pedagógica

que passava para as gerações futu-ras, os conhecimentos técnicos e os signifi cantes simbólicos e ideológicos relacionados a eles. Portanto, a perda de uma mulher para o inimigo não poderia ser simplesmente ignorada e, se isto ocorria, era porque havia uma intenção deliberada por trás. O que os indígenas ignoravam é que não have-ria mulher sufi ciente para amansar os conquistadores, porque sempre viriam mais e mais a serem amansados. Por outro lado, a falta de higiene corporal de portugueses e franceses era foco de transmissão de doenças. Foi assim que a sífi lis, demais doenças venére-as, as gripes e outras doenças infec-to-contagiosas se espalharam entre as populações indígenas, dizimando grande parte delas. Enfi m, o tiro saiu pela culatra, mas foi graças a este cos-tume “suicida” que herdamos traços

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marcantes da cultura indígena, que se refl etem na culinária, na música, na dança, na linguagem e, inclusive, no comportamento afetivo das brasi-leiras, em várias técnicas de cultivo e no conhecimento de plantas fi toterá-picas. Perderam eles, ganhamos nós, brasileiros.

Portanto, frente aos processos eco-nômicos da globalização são as mani-festações e conhecimentos regionais que devem se impor. Na Amazônia, em particular, se o conhecimento caboclo fosse potencializado pelo desenvolvimento pedagógico do seu domínio, a riqueza que poderia ser extraída daí seria sufi ciente para tor-nar a região um centro de excelência tecnológica. Mas, além desse conheci-mento estar sendo desvalorizado e ig-norado em nome da produção imedia-ta de riquezas através da exploração de minério, da industria madeireira e da agropecuária extensiva, ela está sendo apagada da memória. A falta de políticas públicas que desvie parte dos recursos gerados por essas indús-trias para investir no desenvolvimento do conhecimento e práticas regionais vai transformar a Amazônia em mais

uma área homogênea do capitalismo transnacional.

Esta ameaça é verdadeira e ime-diata, pois a nossa identidade vem sendo constantemente bombardeada por aqueles mesmos que deveriam defendê-la: os governos e os demais poderes da república; em nome de um desenvolvimento cuja fi nalidade últi-ma é seu alinhamento com o capital transnacional. Por isto devemos mais do que nunca valorizar a nossa iden-tidade brasileira, não só na cultura bem como no nosso corpo, na nossa carne. Reconhecer e lutar pela nossa identidade é garantir o desenvolvi-mento social da nação brasileira. Re-conhecer, como no início deste artigo, que Nilton Santos, que era negro, foi um “gênio da raça” 100% brasileira e não um afro-descendente qualquer é reconhecer que fazemos parte de uma Civilização, da Civilização Brasileira.

Marcos Pereira Magalhães é gradu-ado em Ciências Sociais, mestre em História Antiga e Medieval, doutor em História Social e pesquisador arqueólo-go do Museu Paraense Emílio Goeldi

Quadro “Loja de Rapé”, aquarela inacabada do pintor J. B. Dubret (1913); mostra o cotidiano dos escravos no Brasil. À direita observa-se o “namoro” de um miliciano português com uma negra.