formação de adultos políticas e práticas numero2 completo

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“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente no universo que busca permanentemente conhecê-lo , o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar , sempre . A produção de conhecimento assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico . Este distingue-se pelo seu carácter sistemático , pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise, individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade , através de um conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos deuses a que foi sujeito Sísifo de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.” revista de ciências da educação Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó n.º 02 · Jan | Fev | Mar | Abr · 2007 > Formação de adultos: políticas e práticas coordenação de Rui Canário issn 1646-4990 http://sisifo.fpce.ul.pt

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Page 1: Formação de adultos políticas e práticas numero2 completo

“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente

no universo que busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua

especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente

e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. A produção de conhecimento

assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. Este distingue-se pelo seu carácter sistemático, pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise,

individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um

conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da

necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no

seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que

anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho

científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos

deuses a que foi sujeito

Sísifo de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.”

revistadeciênciasdaeducação Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó

n.º 02 · Jan | Fev | Mar | Abr · 2007

> Formação de adultos: políticas e práticas coordenação de Rui Canário

issn 1646-4990

http://sisifo.fpce.ul.pt

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SíSifoREvIStA DE CIênCIAS

DA EDUCAçãO

n.º 02

Formação de Adultos políticas e práticas

Edição

Responsável Editorial deste número:

Rui Canário

Director: Rui Canário

Director Adjunto: Jorge Ramos do Ó

Conselho Editorial: Rui Canário,

Luís Miguel Carvalho, Fernando

Albuquerque Costa, Helena Peralta,

Jorge Ramos do Ó

Colabor adores deste número:

Autoria dos artigos: António José

Almeida, natália Alves, Rui Canário,

Pierre Caspar, Cármen Cavaco,

Ana Luisa de Oliveira Pires,

Sonia Maria Rummert

e Susana Pereira da Silva.

Traduções: Alves Calado, Robert G.

Carter, thomas Kundert, Filomena

Matos e tânia Lopes da Silva

Secretariado de Direcção: Gabriela

Lourenço e Mónica Raleiras

Logotipo Sísifo

Desenho de Pedro Proença

Informação Institucional

Propriedade: Unidade de I&D

de Ciências da Educação

da Faculdade de Psicologia

e de Ciências da Educação,

da Universidade de Lisboa

issn: 1646-4990

Apoios: Fundação para a Ciência

e a tecnologia

Contactos

Morada: Alameda da Universidade,

1649-013 Lisboa.

Telefone: 217943651

Fax: 217933408

e-mail: [email protected]

Índice

Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1-2nota de Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3-4

DOSSI E R

Reconhecimento e validação das Aprendizagens Experienciais. Uma problemática educativaAna Luisa de Oliveira Pires . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5-20

Reconhecimento, validação e Certificação de Competências: Complexidade e novas actividades profissionaisCármen Cavaco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21-34

A educação de jovens e adultos trabalhadores brasileiros no século XXI. O “novo” que reitera antiga destituição de direitosSonia Maria Rummert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35-50

Empregabilidade, contextos de trabalho e funcionamento do mercado de trabalho em PortugalAntónio José Almeida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51-58

E se a melhoria da empregabilidade dos jovens escondesse novas formas de desigualdade social?natália Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59-68

Sem-abrigo: métodos de produção de narrativas biográficasSusana Pereira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69-82

RECEnSõES

Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista, de vanilda Paiva[2000 (reedição)]. São Paulo: GraalRui Canário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83-86

COnFERênCIAS

Ser formador nos dias que correm: novos actores, novos espaços, novos tempos (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

da Universidade de Lisboa, 4 de novembro de 2005)

Pierre Caspar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87-94

Sísifo, revista de ciências de educação: Instruções para os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95-96

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— que também me evoca directamente os trabalhos e os dias de Sísifo — a condição para uma interven-ção capaz de suscitar transformações dignas desse nome. Julgo que daqui se podem aduzir algumas considerações relativas à nossa prática científica.

Em primeiro lugar surge a questão da escrita. Parece-me decisivo que cada gesto se erga a partir de uma compreensão dos limites do discurso e que a estratégia do trabalho textual se comece por dar de empréstimo às palavras e aos fragmentos em cir-culação. Persuado-me que o texto que vários de nós procuramos concretizar se inscreve sempre e tende a superar o outro em que se funda e que toma por referente. O que denominaremos de nova concep-tualização tenderá a surgir, então, na demarcação, no desdobramento e na distância, ou, entrevista de outro ângulo, nos rastros, nas margens e nas entre-linhas. É assim que nos embrenhamos numa escrita que, de acordo com Derrida, podemos perceber ao mesmo tempo “insistente” e “elíptica”. É também por isso que muitas vezes nos descobrimos ora ar-rastando cada conceito numa “cadeia interminável de diferenças”, ora construindo a nossa análise por entre uma grande quantidade “de precauções, de referências, de notas, de citações, de colagens, de suplementos”1. “Como nenhum texto é sempre ho-mogéneo (isso tornou-se para mim uma espécie de axioma categórico, o registo de todas as interpre-tações)” — explicava Derrida numa das suas mais lidas entrevistas — “pode ser legítimo, e inclusive sempre necessário, fazer dele uma leitura dividida, diferenciada, até mesmo aparentemente contraditó-

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Editorial

Derridasísifo

Decidi hoje, nesta tribuna, abordar a possibilidade de uma escrita científica que se pretenda essencial-mente como de rompimento e de crítica, com o ob-jectivo de me poder acercar de um dos sentidos que, muito me encantaria, a Sísifo viesse a corporizar na sua trajectória futura. Escrevo então umas breves linhas tomado do propósito de melhor imaginar como a coisa poderá um dia identificar-se com o nome que lhe foi aposto faz ainda tão pouco tempo.

De imediato me surgiu o nome de Derrida e o seu conhecidíssimo exercício da descontrução. Usa-do pela primeira vez em 1967 em Gramatologia e tomado do universo da arquitectura — querendo significar o exercício de deposição e decomposição de uma estrutura —, o termo viria a impor-se no conjunto dos seus textos posteriores enquanto sinó-nimo de uma prática permanente de questionamen-to de todos os sistemas de pensamento hegemónico herdados, uma forma científica de resistir à tirania do Um e do logos da metafísica ocidental. Como se, na sua essência e destino, o trabalho intelectual fos-se o de contrapor uma assinatura a outra assinatura, mas sem os habituais equívocos omnipotentes que atravessam a noção de autor no Ocidente e o assi-milam à noção de autoridade. A descontrução seria essa inflexível guerra à doxa. Para Derrida, que só via vida nos lugares de dissidência, tratou-se segu-ramente menos de destruir o que era dominante do que reinterpretar, criticar, deslocar, arrastar esta ou aquela herança, inverter esta ou aquela hierarquia, desbloquear esta ou aquela oposição dual. Encon-tro em tal exigência de uma análise interminável

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ria. Activa, interpretativa, performativa, assinada, essa leitura deve e não pode deixar de ser a inven-ção de uma reescrita”2. Percebida desta forma, a au-toria será, afinal, o espaço da heteronomia.

Um segundo tipo de considerações deve, em meu entender, referir-se a uma outra ideia que podemos relacionar com este estado inacabado do livro por vir instaurado por Derrida, e não só. O meu ponto aqui é o de sugerir que todas as motivações que concor-rem para a construção de uma obra científica pos-sam, igualmente, convergir para a sua subsequente e perpétua divisão. A meu ver, importa desencadear a discussão ética do trabalho académico em torno de um impedimento fundamental: o da formação de um corpus de saber, de uma soma unitária, de uma configuração homogénea. Julgo que o valor deste interdito é, acima de tudo, performativo, posto que impõe o inacabamento como valor matricial e a di-mensão aberta de toda a escrita científica. Do mito grego que aqui nos ocupa e simbolicamente nos al-berga nesta publicação periódica ocorre-me então, como necessária, a reivindicação de um estatuto da diferença, correspondendo esta a uma articulação da unidade com a descontinuidade. Entendida a partir deste postulado que se opõe à velha ideia de uma busca metódica da “solução”, a nossa tarefa não será a de resolver, mas tão-somente a de problematizar. Em lugar de “reformar” talvez possamos desejar ser a um tempo mais modestos e ambiciosos. Como?

Instaurando formas de distanciamento crítico pela compreensão básica de que a resposta a qualquer pergunta será sempre a emergência de um problema e que este, pela sua multiplicidade dispersa, muda igualmente cada vez que a pergunta se vai deslocan-do. tomado neste quadro, o exercício crítico nada mais é que o exercício de colocar em crise a memó-ria do momento que atravessamos.

Assimilada ao tema da descontrução derridadia-na, a minha leitura da experiência de Sísifo conduz--me outrossim a esta nova relação do pensamento social com a verdade. Surge-me concretizada por meio de um vocabulário em que descontinuidade, diferença, multitude e problematização são as pala-vras maiores. Descubro aqui um instigante e imen-so território de pertença.

notas

1. Jacques Derrida (2001[1971]). Posições. Belo Horizonte: Autêntica, p. 21.

2. Jacques Derrida & Elisabeth Roudinesco (2001). De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 205-206.

Jorge Ramos do Ó(Lisboa, Março de 2007)

2 sísifo 2 | editorial

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nota de apresentação

Formação de Adultos: políticas e práticas

Rui Canário

mação não se confunde, como seria desejável, com modalidades de democratização de acesso ao saber.

Este segundo número da Sísifo organiza-se em torno de um “dossier temático” que tem como am-bição dar um contributo, ainda que modesto, para uma análise crítica de alguns contornos marcantes das actuais políticas e práticas de formação. A sua organização insere-se no plano de trabalhos da equi-pa de investigação do Projecto FAP, financiado pela FCt (Fundação para a Ciência e a tecnologia), e que se propõe estudar as políticas e práticas de formação de adultos, em Portugal, no período posterior a 1974. Esse estudo implica, necessariamente, dimensões comparativas e articulações com redes de investiga-ção, o que explica e justifica a inclusão, neste dossiê, do artigo assinado por Sonia Rummert, que nos dá conta do resultado de pesquisas sobre políticas re-centes, de âmbito federal, direccionadas para traba-lhadores jovens e adultos, no Brasil. O tema do re-conhecimento de adquiridos e da sua tradução nas políticas de formação de adultos é tratado por Ana Luísa Pires, numa perspectiva comparada e interna-cional, enquanto que o artigo produzido por Cármen Cavaco procede, a partir de uma investigação empí-rica em curso, à análise do modo como a institucio-nalização das práticas de reconhecimento de saberes adquiridos por via experiencial se repercute na re-alidade portuguesa actual. Os textos assinados por António José Almeida e por natália Alves, represen-tam contributos importantes para o esclarecimento teórico da natureza e do sentido do uso da noção de “empregabilidade”, enquanto elemento constitutivo

Há cerca de vinte anos, Gilles Ferry designou a for-mação como um dos grandes mitos do século XX, a par do computador e da conquista do espaço. In-vadindo todos os domínios do social, a formação instituiu-se como uma resposta às perturbações e às angústias individuais e dos grupos, desorientados por um mundo em rápida mudança e no contexto de uma situação percepcionada como uma “crise” so-cial e económica. O optimismo em relação à forma-ção não tem hoje razão de ser, num quadro em que o desemprego estrutural e o trabalho precário marcam o regresso da vulnerabilidade de massa, característi-ca, entre outras, do que o sociólogo Beck designou por “sociedade de risco”. vivemos um tempo em que as políticas e as práticas de formação assumem, por um lado, um carácter instrumental em relação à civi-lização de mercado e, por outro lado, se inscrevem em políticas de ortopedia social, em que o assisten-cialismo se substitui à justiça social. neste contexto, o trabalho de investigação tem como principal justi-ficação para a sua pertinência social a possibilidade de produzir um acréscimo de lucidez sobre os dis-cursos, as representações e as práticas que fazem da formação um dispositivo de distribuição de ilusões.

Sabemos, com base na investigação empírica, que mais formação não cria necessariamente mais empregos, que percursos escolares mais longos não colocam ninguém ao abrigo da “exclusão social”, que ao aumento da produtividade e da competitivi-dade não corresponde um mundo socialmente mais justo e solidário. Sabemos, também, que o cresci-mento exponencial da oferta e do consumo de for-

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central da ideologia que marca a generalidade dos discursos actuais sobre a formação.

Finalmente, o artigo da autoria de Susana Perei-ra da Silva, enquanto produto intermédio de uma investigação empírica sobre a problemática da for-mação no quadro de modos de vida da “margem” social (os designados “sem abrigo”), representa, fun-damentalmente, a abertura para um questionamento sobre a formação, em total divergência com a pers-pectiva oficial dos poderes instituídos. Centra-se nas questões metodológicas suscitadas por uma pesqui-sa orientada para a produção e análise de narrativas biográficas de pessoas que vivem ou viveram na rua.

Em complemento do “dossier temático”, pu-blica-se uma recensão, da autoria de Rui Canário,

ao livro de vanilda Paiva sobre “Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista”, obra cuja leitu-ra, pelo seu rigor metodológico e conceptual, pelo contributo original para o estudo da obra e do pen-samento de Paulo Freire, merece ser retirada do esquecimento e da marginalidade a que foi votada, mercê de ortodoxias bem pensantes, mais propen-sas a respostas do que a perguntas.

O número finaliza com a publicação do texto, inédito, de uma conferência de Pierre Caspar, pro-ferida, em 2005, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa e que constitui uma reflexão global sobre os proble-mas da formação e, em particular, sobre os modos de “ser formador, hoje”.

4 sísifo 2 | nota de apresentação

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Reconhecimento e validaçãodas Aprendizagens Experienciais.Uma problemática educativa

Ana Luisa de Oliveira PiresProfessora-coordenadora da Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Setúbal

Membro da Unidade de Investigação Educação e Desenvolvimento, Faculdade de Ciências

e tecnologia da Universidade nova de Lisboa

[email protected]

Resumo:Este texto centra-se na problemática do Reconhecimento e da validação das Aprendizagens Experienciais dos Adultos numa perspectiva educativa. Estas novas práticas enquadram-se num paradigma de Educação/Formação ao Longo da vida, valorizando as aprendizagens formais e não-formais que os adultos realizam ao longo das suas trajectórias pessoais, so-ciais, e profissionais. Encontrando suporte teórico-conceptual nas abordagens da aprendi-zagem e da educação/formação de adultos, estas práticas emergentes são no entanto terreno de tensões e contradições e, do ponto de vista da investigação educativa, ainda pouco apro-fundadas. Apresentamos neste texto uma breve análise dos conceitos de base, pressupostos e princípios subjacentes — o que se reconhece e valida, como se reconhece e valida, que lógicas se encontram em presença —, orientando as reflexões finais para o domínio da for-mação dos actores intervenientes no processo de reconhecimento e validação — professo-res, formadores, conselheiros, orientadores — e para a necessidade de a (re)pensar à luz de novos quadros de referência educativa.

Palavras-Chave:Educação e Formação de Adultos, Aprendizagem Experiencial, Reconhecimento e valida-ção de Adquiridos.

Pires, Ana Luísa Oliveira (2007). Reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais.

Uma problemática educativa. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 5-20

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Page 8: Formação de adultos políticas e práticas numero2 completo

nota introdutória

Considerando que a implementação e difusão de sistemas de reconhecimento e validação têm vindo a constituir-se como uma tendência relevante ao ní-vel dos sistemas educativos europeus, que têm feito parte da agenda política educativa europeia (nomea-damente traduzida nas comunicações da Comissão Europeia (2001, 2004), nas Declarações de Bolonha e de Copenhaga, etc.), e que, no terreno empírico nacional, estas práticas foram recentemente intro-duzidas — através dos Centros de Reconhecimen-to, validação e Certificação de Competências —, apresentamos neste texto uma abordagem educati-va desta problemática. É num quadro paradigmáti-co de Aprendizagem ao Longo da vida que a valori-zação das aprendizagens adquiridas no exterior dos sistemas formais de educação/formação se constitui como um novo campo de práticas educativas e como objecto de estudo científico, particularmente relevante no domínio da Educação.

Este tema foi aprofundado no trabalho de inves-tigação realizado para a obtenção do doutoramento em Ciências da Educação, e a problemática especí-fica do reconhecimento e validação desenvolvidos no âmbito do ensino superior constituiu o objecto da investigação do pós-doutoramento.

Este tema é particularmente relevante ao nível do ensino superior, particularmente pelas seguin-tes ordens de razão:

Por um lado, se tivermos em consideração as tendências de evolução europeias, verificamos que

o reconhecimento e validação de aprendizagens ex-perienciais tem-se vindo a constituir como um novo campo de práticas educativas, pondo em relevo a necessidade de conceber e desenvolver sistemas de reconhecimento e validação em diferentes níveis de qualificação, e concomitantemente, desenvolver a formação dos formadores/professores/orientado-res/acompanhadores que participam neste proces-so — missão fundamental das instituições de ensi-no superior.

Por outro lado, a disseminação destas práticas no âmbito do ensino superior, de uma forma mais ou menos formalizada dependendo dos diferentes contextos nacionais, leva-nos a perspectivar que num horizonte temporal relativamente curto as ins-tituições nacionais de ensino superior poderão vir a criar estruturas de apoio para o desenvolvimento destas novas práticas, considerando-as como uma parte integrante da sua oferta, de forma a alargar o acesso e a participação de novos públicos no ensino superior, e a oferecer novas oportunidades de edu-cação/formação ao longo da vida.

E, também, do ponto de vista científico, a cons-tatação da carência de trabalhos de investigação neste domínio, leva-nos a reforçar a necessidade de continuar a aprofundar e a reflectir sobre as ques-tões emergentes desta nova problemática educativa. Sendo a investigação uma função estruturante do ensino superior, parece-nos fundamental estimular a produção do conhecimento científico sobre esta problemática emergente.

6 sísifo 2 | ana luisa de oliveira pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais

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A emergência de novas práticas educativas num contexto de mudança

A Sociedade do Conhecimento e a Aprendizagem ao Longo da VidaA sociedade contemporânea pode ser caracterizada pela interdependência de fenómenos e de tendências evolutivas. É uma sociedade em mudança, suporta-da no Conhecimento e na Informação — que têm forte impacto na Economia e no Desenvolvimento —, e que faz da esfera do trabalho e das organiza-ções contextos de aprendizagem onde se constroem novos saberes e novas competências. É uma socie-dade onde actualmente emergem novas formas de olhar para os fenómenos educativos: assistimos à emergência de um paradigma de Aprendizagem ao Longo da vida1 — que ultrapassa as fronteiras tra-dicionais que delimitam os espaços-tempos formais de aprendizagem — e que faz apelo a novas teorias e modelos de educação e de formação.

Assistimos actualmente a uma convergência de preocupações, comuns a um conjunto significativo de países no espaço europeu e no mundo — pre-sentes no discurso político, económico, social e educativo — no sentido de desenvolver iniciativas com a finalidade de reconhecer e validar as apren-dizagens adquiridas ao longo da vida e nos seus di-versos contextos. Considerando as profundas muta-ções decorrentes da globalização das economias, da evolução do mundo do trabalho e das organizações, da emergência da Sociedade do Conhecimento e da Aprendizagem ao Longo da vida, esta problemática adquire uma relevância particular.

O reconhecimento e a validação inscrevem-se num paradigma de Aprendizagem ao Longo da vida, ou seja, num quadro de pensamento que valoriza as aprendizagens que as pessoas realizam ao longo das suas trajectórias pessoais, sociais e profissionais, ultrapassando as tradicionais fronteiras espaço--temporais delimitadas institucionalmente pelos sistemas de educação/formação. num contexto de atenuação de fronteiras entre educação, formação, trabalho e lazer, o reconhecimento das aprendiza-gens experienciais — principalmente de adultos — constitui-se como um desafio incontornável aos sis-temas de educação/formação nos dias de hoje.

De acordo com nóvoa (2001), a actual recompo-sição dos sistemas educativos não se reduz a uma

mudança “organizacional”, na medida em que toca profundamente no projecto histórico da escola; a designação “educação/formação”, acompanhada de “ao longo da vida”, traduz um conjunto de pre-ocupações que se fazem sentir a nível internacional. Segundo o autor, existem saberes que funcionam como “modelos de referência”, os quais ultrapas-sam as fronteiras tradicionais — construídos através de redes, articulações e filiações — e que, ao serem apropriados pelos actores, transformam as práticas locais de acção.

Os motivos subjacentes à emergência do reco-nhecimento e validação são múltiplos: os saberes adquiridos à margem dos sistemas formais de educa-ção/formação têm inegavelmente um valor pessoal, formativo, profissional, social e económico. E têm vindo a ser cada vez mais valorizados, quanto mais se acentua a rapidez das mudanças sociais, cientí-ficas, tecnológicas e económicas, que caracterizam a sociedade contemporânea, e que colocam novos e significativos desafios ao nível do conhecimento necessário — não apenas para lidar com as mudan-ças em curso, mas também para participar critica-mente nos processos de mudança.

Este conhecimento, simultaneamente local e glo-bal, constrói-se e dissemina-se através de novas for-mas de aprendizagem. Os saberes de carácter inova-dor produzidos nas organizações — a partir da uti-lização das novas tecnologias e de novas formas de organizar o trabalho — pela acção dos actores envol-vidos escapam frequentemente, pela sua natureza experiencial, aos referenciais clássicos dos saberes disciplinares. A produção e a difusão do conheci-mento e concomitantemente a aprendizagem, dei-xam de ser um monopólio dos sistemas de educa-ção/formação, na medida em que ultrapassam os espaços-tempos formais, tradicionalmente delimi-tados e balizados pelas instâncias educativas.

Estes saberes, experienciais pela sua natureza, desenvolvem-se numa multiplicidade de situações e de contextos de vida e obedecem a uma lógica de construção e de difusão distinta daquela que tem sido a lógica dominante (disciplinar, transmissiva), que se traduz no contexto educativo por determi-nados modelos e práticas pedagógicas2. As formas tradicionais de atestação dos saberes na sociedade (traduzida pelos diplomas e certificados, tanto esco-lares como profissionais), sempre atribuíram um

sísifo 2 | ana luisa de oliveira pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais �

Page 10: Formação de adultos políticas e práticas numero2 completo

estatuto privilegiado aos conhecimentos científi-cos e tecnológicos face aos saberes experienciais, de acordo com a concepção dominante herdada do racionalismo3. Em termos epistemológicos, a valori-zação destes últimos no seio dos sistemas tradicio-nais de educação/formação representa uma signifi-cativa mudança paradigmática, em que o “saber de experiência feito” adquire um novo estatuto face ao “saber científico”.

Esta ruptura, ao nível epistemológico, parece ser acompanhada em termos teóricos e metodológicos por um conjunto de mudanças significativas, que nos fornecem um quadro de leitura mais compreen-sivo sobre os novos fenómenos educativos e sociais. Para Pineau (1997), o reconhecimento e a validação constituem um “problema multidimensional com-plexo”, que integra diferentes dimensões — técni-cas, profissionais, económicas, sócio-culturais — e que implica a renegociação de um conjunto de regras de valorização das acções e dos actores humanos.

Emergência de novas práticas educativasO valor dos saberes experienciais detidos pelos adul-tos depende em primeira instância de um processo de explicitação e formalização, pois, pela sua natu-reza, os saberes experienciais são tácitos e implíci-tos. Identificá-los, nomeá-los, dar-lhes visibilidade e legitimidade, tanto na dimensão pessoal como na profissional e social, constituem a finalidade das novas práticas emergentes.

O reconhecimento e a validação das aprendi-zagens experienciais situa-se no cruzamento de diversas esferas: o mundo da educação/formação, o mundo do trabalho e das organizações e a socie-dade em geral. Segundo Farzad e Paivandi (2000, p. 6), “a problemática das aprendizagens anteriores encontra-se no cerne da articulação entre o exercí-cio de uma actividade profissional, a formação, e as diferentes actividades sociais e pessoais que consti-tuem os percursos dos indivíduos. Ela inscreve-se na lógica de uma exigência social emergente que tra-duz as novas realidades da sociedade tanto ao nível da formação, da empresa e do indivíduo”.

Do lado da educação/formação assiste-se a um movimento que põe em destaque a importância das aprendizagens realizadas a partir da experiência de vida (em sentido lato, englobando a esfera pessoal, profissional, social), através de processos de apren-

dizagem experiencial. A vida é reconhecida como um contexto de aprendizagem e de desenvolvimento de competências, e cada vez mais se valorizam os saberes e as competências adquiridas à margem dos sistemas tradicionais. A experiência é considerada como uma fonte legítima de saber, que pode (e deve) ser formalizado e validado.

Do lado do mundo do trabalho e das organiza-ções, em permanente evolução, assiste-se à emer-gência de novas formas de produção, de organiza-ção do trabalho, de novas práticas organizacionais, e de novas formas de gestão de recursos humanos. Reconhece-se o potencial formativo que as situa-ções de trabalho encerram, a construção de novos saberes e competências, e identificam-se caracterís-ticas que promovem a aprendizagem dos indivíduos e das organizações (“organizações qualificantes”).

Simultaneamente assiste-se à precarização dos empregos, ao aumento do desemprego e da crise económica e social, à penalização profissional e social, principalmente dos grupos mais fragiliza-dos e/ou em risco de exclusão (desempregados, em risco de desemprego, menos qualificados, baixos níveis de escolaridade,…). neste contexto, o reco-nhecimento e a validação das aprendizagens expe-rienciais podem constituir uma resposta perti-nente na diminuição da exclusão social, facilitando a (re)inserção escolar/formativa/profissional de gru-pos mais desfavorecidos.

Observa-se actualmente uma convergência ao nível dos discursos e das iniciativas concretas no sentido de promoverem estratégias coerentes e ade-quadas de reconhecimento e validação, promo-vendo a valorização do capital de saberes implíci-tos, não formalizados, mas de elevado valor pessoal, profissional, social e económico. Os poderes públi-cos têm vindo a incentivar o desenvolvimento destas práticas inovadoras, conscientes dos benefícios que daqui podem decorrer.

O reconhecimento e a validação no âmbito das políticas educativas europeiasA evolução das políticas sociais e educativas, que tem acompanhado a construção europeia e o seu re-posicionamento face aos desafios da globalização, tem contribuído decisivamente para a transforma-ção dos sistemas educativos, colocando-lhes novos

8 sísifo 2 | ana luisa de oliveira pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais

Page 11: Formação de adultos políticas e práticas numero2 completo

desafios, complexificando as questões existentes, e desencadeando a reflexão e a procura de respostas inovadoras face às problemáticas emergentes.

O reconhecimento e validação das aprendiza-gens experienciais — frequentemente designadas de não formais e informais — tem-se afirmado no espaço educativo europeu, e aparece de uma forma bem visível nos documentos e iniciativas desenvol-vidas pela Comissão Europeia. Do ponto de vista político, esta questão tem vindo a fazer parte das agendas actuais, e tem vindo a influenciar de uma forma significativa o debate educativo no espaço europeu.

Estas preocupações europeias, de acordo com Feutrie (2005), articulam-se com um conjunto de intenções, das quais se salientam:

• oferecer uma segunda oportunidade de adqui-rir uma qualificação, principalmente a todos os que não as possuem ou que não foram bem sucedidos na educação/formação inicial;

• suportar mutações económicas e enfrentar necessidades de níveis mais elevados de competên-cias;

• promover trajectórias de desenvolvimento pes-soal e profissional através da vida;

• facilitar e apoiar a mobilidade interna e exter-na das empresas e a mobilidade europeia;

• facilitar a ligação entre o mercado de trabalho e as instituições educativas e melhor responder às necessidades do mercado de trabalho.

A Declaração de Copenhaga (2002), — na qual participaram 31 ministros europeus de edu-cação/formação, os parceiros sociais e a Comis-são Europeia — solicita o desenvolvimento de “princípios comuns relativamente à validação das aprendizagens não-formais e informais com a finalidade de assegurar uma maior comparabi-lidade entre as abordagens em diferentes países e a diferentes níveis” (Colardyn & Bjornavold, 2005, p. 133)

Dando seguimento aos trabalhos da Comissão Europeia, o Conselho de Educação Europeu con-cordou no estabelecimento de um conjunto de prin-cípios neste domínio (Maio de 2004), que deverão ser tidos em consideração na definição das políticas e práticas de validação, e que se deverão orientar pelos seguintes aspectos:

• Direitos individuaisA validação das aprendizagens não-formais e in-

formais deverá ser um processo de iniciativa indi-vidual, voluntário, e que deve respeitar a igualdade de acesso e de tratamento. A privacidade e os direi-tos individuais devem ser respeitados.

• Obrigações dos prestadoresDevem definir as suas responsabilidades e com-

petências, os sistemas e as abordagens de identifi-cação e validação de aprendizagens não-formais e informais, garantindo mecanismos de controlo de qualidade adequados. Devem fornecer orientação, aconselhamento, e informação sobre os sistemas e as abordagens aos indivíduos.

• ConfiançaOs processos, procedimentos e critérios devem

ser justos e transparentes, e suportados por meca-nismos de controlo de qualidade.

• Credibilidade e legitimidadeOs sistemas e abordagens devem respeitar inte-

resses legítimos e garantir a participação equilibra-da das várias instâncias envolvidas.

O processo de validação deverá ser imparcial e estabelecer mecanismos que garantam a inexistên-cia de conflitos de interesse. Os técnicos que par-ticipam no processo devem ser profissionalmente competentes (Colardyn & Bjornavold, 2005).

O que se reconhece e valida? Como se reconhece e valida?

Conceitos de aprendizagem não-formal e informal, aprendizagem experiencialAs práticas de reconhecimento e validação procu-ram identificar e dar visibilidade às aprendizagens realizadas em contextos não-formais e informais de educação/formação.

Os conceitos de aprendizagem formal, não--formal e informal têm vindo a ser amplamente di-fundidos na literatura actual, e correntemente são entendidos da seguinte forma (C.E, 2000):

• aprendizagem formal — desenvolve-se em ins-tituições de ensino e formação, conduzindo à aqui-sição dos diplomas e das qualificações;

• aprendizagem não-formal — decorre de acções desenvolvidas no exterior dos sistemas formais, tais como no trabalho, na comunidade, na vida associa-

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tiva, etc., e que não conduzem necessariamente à certificação;

• aprendizagem informal — resulta das situações mais amplas de vida e frequentemente não é reco-nhecida (individual e socialmente).

O contexto e a intenção têm sido considerados como dimensões determinantes na categorização de diferentes tipos de aprendizagem (Colardyn & Bjornavold, 2005):

• Aprendizagens formais — quando a aprendi-zagem ocorre num contexto estruturado de apren-dizagem, em que as actividades se encontram pla-neadas e orientadas para essa finalidade, e a apren-dizagem é intencional. Ex: sistema formal de edu-cação/formação;

• Aprendizagens não-formais — a aprendizagem ocorre num contexto estruturado, com actividades planeadas (não necessariamente orientadas para a aprendizagem), e é intencional. Ex: contexto de trabalho;

• Aprendizagens informais — a aprendizagem ocorre em situações não estruturadas e não é inten-cional. Ex: contexto familiar, social, etc.

Consideramos assim que as aprendizagens não--formais e informais ocorrem em espaços-tempos não especificamente nem formalmente estrutura-dos de educação/formação, em situações do traba-lho, de lazer, da vida do quotidiano, e que frequen-temente não existe a intenção de aprendizagem (aprendizagens informais).

Do ponto de vista teórico, a problemática das aprendizagens realizadas em contextos não-formais e informais de educação/formação exige a adopção de uma perspectiva de educação e formação alargada e globalizante. Estas aprendizagens são entendidas à luz de um quadro teórico de referência, do qual des-tacamos o conceito de aprendizagem experiencial4.

O conceito de aprendizagem experiencial demar-ca-se de uma concepção de aprendizagem formal, estruturada e desenvolvida em contextos educa-tivos formais, de uma acção organizada explicita-mente com a finalidade de proporcionar a aquisição de um conjunto de saberes sistematizados e forma-lizados; tem um conteúdo aberto, que se organiza em função dos acontecimentos do meio envolvente e da vida quotidiana; no entanto, as aprendizagens

podem ocorrer em contextos formais, de uma forma residual e implícita, não controlável. Estas aprendi-zagens ocorrem numa multiplicidade de contextos e de situações de vida das pessoas, sendo os contextos espaços de interação da pessoa consigo própria, com os outros, com as coisas, com a vida em sentido lato.

A aprendizagem experiencial diz respeito a um processo dinâmico de aquisição de saberes e de competências (múltiplos e diversificados, tanto quanto à sua natureza como ao tipo de conteúdo), que não obedece a uma lógica cumulativa e aditiva, mas sim de recomposição — os novos saberes são construídos integrando os já detidos pela pessoa. O processo de aprendizagem experiencial desenvol-ve-se ao longo da vida, a partir de uma multiplici-dade de contextos — familiar, social, profissional, associativo, etc. A experiência é um elemento-chave no processo de aprendizagem5, constituindo a base para a reflexão, problematização e formação de con-ceitos, e que contribui para a transformação da pes-soa, em termos pessoais e identitários, promovendo a sua emancipação.

Os princípios de base nos quais se supor-tam as práticas de reconhecimento e de validação encontram-se em coerência com a perspectiva da aprendizagem experiencial dos adultos, ao valori-zarem as aprendizagens resultantes de uma diver-sidade de contextos e de situações e ao atribuirem--lhes um estatuto de legitimidade. A valorização dos saberes experienciais traduz uma ruptura epistemo-lógica com uma concepção positivista de conheci-mento, dicotómica; os saberes práticos não são uma mera aplicação dos saberes teóricos.

Por outro lado, a aprendizagem experiencial encontra-se de acordo com uma perspectiva holís-tica, que tem em conta a globalidade do processo de desenvolvimento da pessoa, na sua relação com o meio, com os outros e consigo mesma.

no entanto, experiência e aprendizagem não são sinónimos; não são as experiências que são reco-nhecidas e validadas, mas sim as aprendizagens e as competências que resultam de um processo de aprendizagem experiencial; como evidenciámos, a experiência é a base e a condição para a aprendi-zagem, e, para que seja formadora, ela tem de ser reflectida, reconstruída, conscientizada. O resul-tado deste processo é a elaboração de novos saberes,

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de novas representações, contribuindo para a trans-formação identitária da pessoa e da sua relação com o mundo. O saber resulta do confronto e da transfor-mação da experiência.

Este pressuposto encontra-se presente nos prin-cípios do reconhecimento e da validação: a experi-ência da pessoa é o ponto de partida para a cons-trução de saberes (de natureza diversificada), sendo estes passíveis de ser explicitados, reconhecidos e validados.

todos os contextos de vida constituem-se como terrenos propícios para a aprendizagem e o desen-volvimento de competências. A partir do con-fronto directo com as situações, com as vivências, desencadeia-se um processo reflexivo que dá ori-gem à aquisição de novos conhecimentos.

A dimensão da reflexividade na aprendizagem experiencial é considerada como um aspecto-chave do processo, mas a capacidade de reflexão não é idêntica em todas as pessoas. Ela pode ser estimu-lada e trabalhada, em situação individual ou colec-tiva, mas sempre a partir da implicação e da inten-cionalidade da própria pessoa. O processo reflexivo exige um retorno sobre a experiência, a sua re-ela-boração, a sua re-avaliação e a sua projecção na rea-lidade (presente ou futura).

Estes princípios decorrentes do pensamento educativo encontram-se presentes nos pressupos-tos que orientam as práticas de reconhecimento e de validação. A pessoa, ao fazer um balanço das suas aprendizagens, implica-se num processo retros-pectivo, num trabalho reflexivo com vista à identi-ficação dos conhecimentos e das competências daí resultantes. Por outro lado, o trabalho de re-elabo-ração da experiência é feito à luz de uma dada pro-jecção — o projecto, a finalidade com que é feito o balanço. O balanço das aprendizagens integra assim uma dimensão retrospectiva e uma prospectiva. Este trabalho de explicitação (do implícito para o explícito, do invisível para o visível), mediado pela linguagem, frequentemente só é conseguido com o apoio e suporte de técnicos especializados, atra-vés de um confronto intersubjectivo. Daí que a for-mação destes actores seja considerada um aspecto imprescindível para a garantia das condições neces-sárias à realização do reconhecimento e validação.

na medida em que a identidade pessoal é um processo em construção permanente (no confronto

de aspectos individuais e sociais), a partir de expe-riências significativas, e das aprendizagens que vão sendo integradas pela pessoa, a valorização ou a des-valorização das aprendizagens e das competências do adulto pode significar para si próprio a sua valo-rização ou a desvalorização enquanto pessoa. Este pressuposto tem implicações relevantes no domí-nio do reconhecimento e da validação das aprendi-zagens anteriores.

O processo de reconhecimento — que pressupõe a identificação e a explicitação das experiências vivi-das pela pessoa, e das aprendizagens daí decorrentes — se for sentido como gratificante, reforça a sua auto--estima e auto-imagem. A tomada de consciência — o (re)conhecimento — pela pessoa dos seus proces-sos de transformação construtiva (ao nível da perso-nalidade, do comportamento, dos conhecimentos e das competências, e das circunstâncias que possi-bilitaram essa transformação) reforça a sua autono-mia e emancipação. Pode, pelo contrário, contribuir para uma fragilização em termos identitários, se o processo não for conduzido e/ou vivenciado de uma forma positiva. O princípio subjacente a estas prá-ticas é o de valorização do potencial adquirido (dos conhecimentos e das competências, até aí não tra-duzidos explicitamente), e não o de valorização das carências, contribuindo desta forma para reforçar a identidade pessoal e profissional. Para Feutrie (1997) torna-se essencial fazer uma “dupla leitura dinâ-mica” das experiências das pessoas, através de um trabalho de mise-en-scène das competências adqui-ridas, pela definição das trajectórias, de capacida-des prometedoras para o futuro; e através do estabe-lecimento de correspondências, no sentido da expli-citação das suas potencialidades (mais do que de jul-gamento, numa lógica de necessidades).

Um dos pressupostos de base do reconheci-mento e da validação sustenta que as aprendizagens detidas (explicitadas em termos de conhecimentos, de competências, atitudes, etc.) devem ser conside-radas como ponto de partida e em articulação com as aprendizagens posteriores, numa perspectiva de recomposição. O reservatório de experiências vivi-das pela pessoa constitui-se como recurso impres-cindível para as aprendizagens futuras, mas a neces-sidade profunda de autonomia dos adultos entra fre-quentemente em choque com as formas impostas de aprendizagem, características do modelo tradicional

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de educação/formação, em que o adulto é perspecti-vado como dependente e em que não são considera-das relevantes as suas aprendizagens anteriores.

Desta forma, a introdução de práticas de reco-nhecimento e validação em contextos educativos vem questionar as concepções e os modelos tradi-cionais, que não se encontram em consonância com os desafios que esta problemática faz emergir.

O reconhecimento e a validação de competênciastendo em consideração que em alguns países, no âmbito educativo, se têm vindo a introduzir mode-los de educação e de formação baseados em compe-tências, e que são estes os referenciais que servem de baliza ao reconhecimento e validação, então a ques-tão da identificação e avaliação das competências assume uma relevância particular.

Como temos vindo a evidenciar em diversos tra-balhos (Pires, 2002, 2003, 2004b), o conceito de competência pode ser enquadrado a partir de dife-rentes abordagens teóricas. A tomada de consciên-cia da diversidade — teórica e epistemológica — é fundamental quando se passa para o domínio das competências, pois cada enfoque, ao privilegiar determinados aspectos em detrimento de outros, vai condicionar, em termos metodológicos, a esco-lha das estratégias e dos instrumentos mais adequa-dos para a apreensão das suas componentes ou ele-mentos integrativos.

Como temos vindo a evidenciar noutros tra-balhos, a competência é uma construção social e depende das convenções ou dos pontos de vista que se adoptam; as competências existem em função do julgamento feito sobre elas, tendo como referên-cia um dispositivo; e os conceitos e os dispositivos adoptados nunca são neutros (Le Boterf, 2000).

Quais são as lógicas do reconhecimento e validação?

Os sistemas de reconhecimento e validação podem ser desenvolvidos segundo duas lógicas diferentes, mas complementares, de auto-avaliação e de valida-ção/acreditação (Kalika, 1998):

— A lógica individual da auto-avaliação é a do reconhecimento pessoal, com finalidades formati-vas. A pessoa faz um balanço das suas aprendiza-

gens procurando identificar os seus conhecimentos e competências, e realizar um projecto que se fina-lize eventualmente numa formação complementar. Um sistema que contempla esta lógica deve poder cobrir os níveis e os tipos de competências adquiri-dos e também os domínios nos quais a pessoa pode completar a sua formação.

— A lógica social da validação/acreditação visa o reconhecimento formal das competências (de acordo com referenciais predeterminados e sancio-nados para os diversos domínios) e é feita através de uma instituição com autoridade para tal. A utilidade social da validação/acreditação depende fortemente da legitimidade do sistema e do seu reconhecimento social.

O processo de reconhecimento diz respeito à dimensão individual, pessoal, e pode ser conside-rado como o ponto de partida para o processo de validação (que conduz a uma atestação oficial) e que diz respeito à dimensão social e institucional. Como identificámos, ambos os processos — reconheci-mento e validação — procuram centrar-se nas apren-dizagens e nas competências adquiridas pelos adul-tos, independentemente dos contextos onde foram desenvolvidas — educação/formação, profissional, familiar, social, desportivo, de lazer, etc.

O reconhecimento pessoal (“por si” e/ou “para si”) inscreve-se numa lógica formativa, de auto--avaliação, de tomada de consciência e apropria-ção pessoal dos saberes. Esta tomada de consciên-cia pode permitir um melhor posicionamento e pro-gressão da pessoa, tanto no sistema escolar/forma-ção, como no mundo profissional, como ainda na sociedade em geral. A partir da explicitação e da identificação das potencialidades e das intenciona-lidades da pessoa, permite a elaboração de projec-tos (pessoais, educativos, profissionais), e contri-bui para a (re)construção das identidades — como defendemos, o resultado do reconhecimento toca profundamente na dimensão identitária do adulto. A lógica formativa (de processo) procura valorizar a riqueza do potencial detido pela pessoa, e orientá--la de forma a progredir a partir dos recursos de que dispõe. Pode constituir-se como um motor desenca-deador de uma dinâmica pessoal de autoformação, de auto-valorização, de autoconfiança, e de desejo de desenvolvimento/construção permanente, sem-

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pre inacabado. A pessoa é reconhecida em si mesma, reforçando a sua auto-estima e promovendo a sua emancipação.

na medida em que, à partida, não existem refe-renciais externos face aos quais os recursos detidos são “comparados” e avaliados, o referencial é cons-truído pela própria pessoa, elaborando-se a partir dos saberes e das competências detidos. Os resul-tados do reconhecimento podem constituir um importante instrumento de negociação (materializa-dos num documento de síntese, ou num portfolio), que é gerido pela pessoa — tanto no âmbito edu-cativo, como profissional — podendo traduzir-se num maior investimento na gestão do seu percurso futuro.

A validação, pelo seu lado, atribui um estatuto formal, oficial, aos saberes detidos pela pessoa; con-duz à obtenção de diplomas/certificados/qualifi-cações, na sua totalidade ou em parte. Comporta uma etapa prévia de reconhecimento — a identifi-cação dos saberes detidos — para posterior compa-ração com um referencial determinado — um pro-grama de educação/formação, componentes de cur-sos, módulos ou disciplinas, referenciais de activi-dades profissionais — que é normativo, geralmente estandardizado, conferindo assim um valor legal às aprendizagens adquiridas numa diversidade de con-textos. A lógica subjacente aos processos de valida-ção/acreditação é a sumativa.

As aprendizagens que são valorizadas pelos sis-temas de educação/formação obedecem principal-mente à lógica disciplinar e científica, uma lógica de organização de saberes objectivados, formalizados. Estes são enunciados de forma a poderem ser apro-priados e “acumulados” pelas pessoas, e a forma como são representados encontra-se em conformi-dade com as formas de avaliação e sanção utilizadas pelo sistema em causa.

A concepção subjacente ao reconhecimento, ao defender que a experiência é produtora de saberes (saberes de acção, saberes implícitos, tácitos) não se confina apenas às aprendizagens valorizadas pelos sistemas formais (conhecimentos formais, teóricos, académicos) quer sejam de âmbito escolar ou profis-sional. Os saberes empíricos, resultantes da expe-riência adquirida, não se encontram estruturados de acordo com a lógica disciplinar. Eles obedecem a

uma lógica holística, integrativa, são frequentemente “invisíveis”, mas podem ser explicitados e identifi-cados através de um processo de enunciação, e reve-lar toda a sua riqueza e complexidade. Este processo depende não só dos recursos cognitivos da pessoa, mas também do suporte prestado pelo “mediador”, e da qualidade da relação que com ele se estabelece (confiança, abertura, autenticidade).

A lógica formativa implícita nas práticas de reco-nhecimento, pode permitir, em termos teóricos, apreender esta riqueza e diversidade, pois os proces-sos centram-se na identificação das aprendizagens adquiridas e na revelação do potencial que cada pes-soa contém em si própria.

A validação, na medida em que se reporta sem-pre a um referencial externo, determinado e estabi-lizado, apenas dá visibilidade às aprendizagens que são consideradas pertinentes no âmbito de um sis-tema educativo. O diploma, o título, o certificado (ou as unidades/módulos que o compõem) atestam os conhecimentos e as competências que lhe estão subjacentes. Assim, o processo de validação ape-nas abrange uma parte das aprendizagens construí-das experiencialmente ao longo da vida, em função da finalidade e da especificidade de cada sistema ou dispositivo.

De acordo com a natureza do referencial em causa (sistema de educação/formação, mundo do traba-lho) assim são privilegiados determinados domí-nios e conteúdos de saberes, sempre mais restri-tos do que aqueles que a pessoa adquiriu nos vários contextos de vida. Desta forma, a abrangência da validação é limitada pela maior ou menor abertura, maior ou menor flexibilidade dos seus referenciais de suporte.

Estas duas lógicas (formativa e sumativa) podem ser vistas a partir de uma perspectiva de comple-mentaridade — na medida em que para atestar for-malmente é necessário primeiro reconhecer — e encontram-se, geralmente, articuladas na generali-dade dos sistemas identificados (Pires, 2002, 2005) mas traduzem níveis diferentes de articulação.

A tensão existente entre as diferentes lógicas parece-nos poder conduzir a uma menor valorização da função formativa (reconhecimento), no âmbito dos sistemas cuja finalidade é principalmente suma-tiva (validação); no entanto, como evidenciámos,

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não é possível validar sem reconhecer previamente as aprendizagens detidas. Assim, questionamos até que ponto será possível evitar o risco deste “desli-zamento” da função formativa para a função suma-tiva, ou, explicitando a questão de outra forma, até que ponto se poderá evitar a desvalorização da fun-ção formativa (de processo) em benefício da suma-tiva (de produto) e o enfoque excessivo no produto final (diploma, certificado, crédito)?

numa perspectiva da formação dos adultos, defendemos que o processo de validação deve ser sempre suportado num processo de orientação e acompanhamento individual, antes, durante e após a validação. A qualidade do apoio e da orientação prestada à pessoa durante o processo de explicita-ção e nomeação dos saberes detidos (geralmente durante a fase de elaboração do portfolio), e o seu alcance — ao permitir realizar o balanço global das suas aprendizagens e competências, ou apenas iden-tificar aquelas que o sistema reconhece oficialmente (referenciais ou standards) — poderá ser decisiva ao nível da implicação futura do adulto num percurso formativo. no âmbito dos processos de educação/formação ao longo da vida, a vertente formativa des-tes sistemas e dispositivos deverá ser valorizada. A dimensão formadora do processo de reconheci-mento das aprendizagens, de grande complexidade, não nos parece dever ser reduzida a uma inventaria-ção e a uma comparação com listagens de competên-cias predefinidas.

Como se reconhecem e validam as aprendizagens?

A valorização das aprendizagens construídas em situações profissionais e de vida, mais amplas, para além dos contextos formais de educação/formação, implica o recurso a novas práticas de avaliação que não as tradicionais, de forma a contemplarem a multiplicidade e a complexidade destas aquisições.

Como constatámos no estudo realizado a nível internacional (Pires, 2002, 2005), a grande gene-ralidade dos sistemas implementados utiliza abor-dagens e metodologias diversificadas, consoante a natureza do processo em causa, o sistema ou as ins-tituições envolvidas; existe uma ampla variedade de instrumentos de suporte, e não nos parece possível

(nem desejável) identificar uma metodologia ou pro-cedimentos únicos.

Do ponto de vista dos princípios que orientam as práticas de reconhecimento e validação — centração na pessoa e na sua singularidade — será mais ade-quado utilizar metodologias que implicam proces-sos mais personalizados (como o portfolio, as Abor-dagens Biográficas, as Histórias de vida) pouco compatíveis com procedimentos massificados (os testes, exames, etc.). no entanto, identificámos sis-temas que recorrem à aplicação de testes, exames, ou outros instrumentos de avaliação tradicionais.

A escolha das abordagens depende da natureza do pedido, da motivação da pessoa, e do resultado a atingir. Por princípio, deverá ser sempre uma deci-são negociada entre a pessoa implicada e o conse-lheiro, considerando que a pessoa é a “autora” da sua própria história e da sua trajectória formativa, e como tal dever-lhe-á ser atribuído um papel central na escolha dos meios e na forma de explicitação das suas aprendizagens.

Em relação à grande generalidade dos sistemas e dispositivos que têm como finalidade a validação, identificámos entre as metodologias mais significa-tivas a elaboração de dossiers pessoais/portfolios de competências, e as entrevistas; também podem ser utilizados testes (de aptidões, de conhecimentos, etc.), as provas escritas ou orais, simulações, exercí-cios práticos, e ainda situações de avaliação em con-texto de trabalho (principalmente nos casos em que os referenciais são construídos com base em compe-tências de âmbito profissional).

O dossier pessoal/portfolio integra um descritivo das experiências e das actividades desenvolvidas, das aprendizagens e competências adquiridas, e também comprovativos e documentos justificativos tanto de entidades patronais, como de organismos de educa-ção/formação; pode ser acompanhado de projectos desenvolvidos, maquetes, produtos realizados, etc.

A implicação da pessoa e o apoio de técnicos espe-cializados são considerados imprescindíveis para o desenvolvimento do trabalho de reflexão/explici-tação/formalização. As entrevistas (estruturadas ou não), a par dos portfolios, também fazem parte das técnicas “obrigatórias” utilizadas. Assim, o diálogo parece fazer parte integrante das metodologias de reconhecimento, na grande generalidade dos países estudados. Para Bjornavold, “o diálogo equilibrado

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e o recurso à auto-avaliação (e ao autoconhecimento), com vista a melhorar a qualidade do processo de ava-liação, desempenham um papel fundamental nestas abordagens. Além disso, estes dois aspectos permi-tem reconhecer o carácter individual e contextual-mente específico dos conhecimentos a avaliar. Até certo ponto o candidato é único, pelo que as metodo-logias devem reflectir esse princípio” (1997, p. 59).

Identificámos a utilização combinada e flexível de diversas técnicas, com vista a uma exploração o mais rica e completa possível, em detrimento de pro-cedimentos estandardizados. no entanto, os testes de conhecimentos — instrumento da avaliação tra-dicional — são utilizados com alguma regularidade, quando se procura identificar o nível de conheci-mentos detidos pela pessoa em determinados cam-pos disciplinares e domínios específicos; o recurso à utilização de instrumentos de carácter quantita-tivo, como meio de “apreensão rigorosa e objectiva” dos saberes detidos pelas pessoas, pode ser uma ilu-são metodológica. Se considerarmos que a avaliação clássica testa principalmente a capacidade de resti-tuição de conhecimentos (Aubret & Gilbert, 1994), então, os instrumentos tradicionais não nos parecem ser os mais adequados para a identificação dos sabe-res experienciais, que não se encontram estruturados de acordo com uma lógica disciplinar e académica.

A tendência encontrada nos diversos sistemas é a da diversidade e da complementaridade de aborda-gens e de metodologias, caminhando-se no sentido do aprofundamento da pesquisa e da reflexão sobre os instrumentos e as técnicas mais adequadas para as práticas em questão.

Reflexões finais

Procurámos evidenciar que os processos de reco-nhecimento e de validação se suportam, do ponto de vista teórico, em conceitos decorrentes de abor-dagens da aprendizagem de adultos (Pires, 2002, 2005), nomeadamente:

• a aprendizagem é um processo de construção pessoal, que integra dinamicamente diferentes di-mensões: afectivo-relacionais, cognitivas, socio--culturais, sensorio-motoras e experienciais;

• aprendizagem e experiência são interdepen-dentes; a experiência assume um papel central na

aprendizagem dos adultos; a experiência (um “mate-rial bruto”), quando acompanhada de um processo de reflexão crítica e de formalização, pode ser tradu-zida (“trans-formada”) em saberes e competências;

• a aprendizagem e o desenvolvimento dos adul-tos não ocorre apenas nos espaços-tempos formais de educação/formação, institucionalizados; os adul-tos aprendem, constroem os seus saberes e desen-volvem competências numa multiplicidade de situ-ações e de contextos (formais, não formais e infor-mais) que fazem parte das suas trajectórias de vida;

• do ponto de vista epistemológico, os saberes que resultam de um processo experiencial não têm sido suficientemente valorizados pelos sistemas formais de educação/formação, que privilegiam o saber conceptual e universal;

• as formas tradicionais de atestação dos sabe-res encontram-se em consonância com um modelo de construção e difusão de conhecimento baseado numa lógica disciplinar e cumulativa;

• os saberes e as competências construídos atra-vés da experiência e noutros contextos que não os formais têm valor pessoal, social e profissional (e concomitantemente económico) mas para tal é ne-cessário que adquiram visibilidade — são geral-mente tácitos, implícitos, “invisíveis”.

na perspectiva da Educação/Formação — par-ticularmente no domínio da formação de adultos —, o reconhecimento e a validação, ao promoverem a visibilidade e a legibilidade das aprendizagens “ocultas”, constituem-se como um importante mo-tor de novas dinâmicas formativas, na medida em que (Pires, 2002, 2005):

• contribuem para a elaboração de projectos pes-soais, profissionais e sociais, articulando os saberes detidos com as motivações e as aspirações da pessoa;

• abrem caminho para novas oportunidades de educação/formação — não numa lógica “carencia-lista” mas sim de “experiencialidade”6 —, facili-tando a integração e a mobilidade formativa, promo-vendo a aprendizagem ao longo da vida;

• desenvolvem a auto-estima, a auto-imagem, a autonomia, fazendo elevar a motivação e o nível de implicação dos adultos nos processos de aprendizagem;

• contribuem para o reforço e a construção de identidades pessoais, sociais e profissionais.

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no entanto, a introdução destas novas práticas educativas exige uma mudança de fundo nos sis-temas de educação/formação, pois os processos de reconhecimento e de validação, na óptica de um para-digma de educação/formação ao longo da vida, não se podem limitar à aplicação de um conjunto de proce-dimentos e de metodologias7, numa perspectiva tec-nicista e tecnocrática de ensino-aprendizagem. tanto ao nível dos actores como das estruturas, implicam a mudança de representações e de práticas educativas: a evolução das representações e das práticas de apren-dizagem, a evolução dos modelos tradicionais de edu-cação/formação de forma a integrarem de forma coe-rente os princípios e os pressupostos que se encon-tram subjacentes ao reconhecimento e à validação.

Assim, a emergência destas práticas vem confron-tar os sistemas educativos com uma complexidade de questões, que traduzem uma mudança paradigmática ao nível das representações e das práticas, nomeada-mente ao nível das estruturas, da organização curri-cular, das metodologias de ensino/aprendizagem, das metodologias de avaliação, dos referenciais de educa-ção/formação, das relações institucionais do sistema com a sociedade, e entre os subsistemas que o com-põe, das representações dos actores institucionais — decisores políticos, gestores, conceptores, professo-res, formadores, técnicos, entre outros.

Por outro lado, é possível identificar uma diversi-dade de tensões e conflitualidades, das quais passa-mos a evidenciar algumas consideradas relevantes.

Tensões e conflitualidades no reconhecimento e validaçãoPara Liétard (1997), a problemática do reconheci-mento e da validação inscreve-se num jogo de influên-cias e numa relação de forças, nem sempre favoráveis à pessoa. A necessidade de apresentação de provas válidas das aprendizagens, que é da inteira responsa-bilidade do candidato, por vezes sem que as institui-ções ofereçam um sólido acompanhamento e suporte do processo (o que implica elevados custos de inves-timento humano), a constatação de que as aprendiza-gens experienciais são frequentemente comparadas com os conteúdos formativos instituídos, sem que estes se encontrem descritos em termos de capacida-des, ou de uma forma unívoca, são aspectos que evi-denciam a complexidade dos desafios e paradoxos que emergem desta problemática. Segundo o autor,

os sistemas de validação reenviam para a responsa-bilidade individual um conjunto de responsabilida-des colectivas “mal-geridas”, tais como a exclusão e o desemprego, num contexto de maior precarização e insegurança. “A focalização sobre a responsabilidade individual na gestão do seu ‘capital de competências’ não será uma camuflagem (...) que dilui o lugar dos determinismos sociais, económicos e organizacio-nais no sucesso ou no falhanço?” (op.cit., p. 73).

Estas questões são pertinentes, e reforçam a necessidade de entender o reconhecimento e a vali-dação noutra perspectiva que não como uma resposta “rápida e eficaz” para alguns dos actuais problemas sociais e económicos, de entre os quais destacamos a procura das “qualificações-chave”, supostamente capazes de tornar as pessoas aptas a lidarem com a rápida mudança tecnológica e organizacional, e a sobreviverem no mercado global da competitividade.

Os debates em curso sobre a problemática da validação indiciam que será necessário encontrar respostas inovadoras e adequadas, mas que as evo-luções se revestem de grande complexidade.

Para Merle (1997) não é possível encontrar uma “solução padrão, aplicável a todos os países”, pois os sistemas de validação são o resultado de uma cons-trução social, articulada com a especificidade his-tórica de cada sociedade. Por outro lado, este autor chama a atenção para o facto de que as opções a fazer não são apenas de ordem técnica, mas pertencem a uma ordem mais ampla: “seria ilusório considerar que um novo sistema de certificação, por mais bem concebido que fosse, se pudesse abster de reequacio-nar as relações entre formação inicial e formação con-tínua, de revalorizar o lugar ocupado pelas dimen-sões profissionais e tecnológicas na formação inicial e de contribuir para a evolução da gestão das qualifi-cações nas empresas” (Merle, 1997, pp. 38-9).

Qualquer solução que se encontre no domínio do reconhecimento e da validação nunca é simples do ponto de vista técnico, nem neutra em termos políticos.

O reconhecimento e a validação devem ser pers-pectivados, a médio prazo, como uma função edu-cativa “a tempo inteiro”, uma “espinha dorsal de um projecto educativo”, a construção de identidades pessoais e sociais de cidadãos, um meio de desen-volvimento pessoal que permite o acesso à qualifica-ção social (Liétard, 1997). Mas para o autor, o futuro

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destas práticas ainda é incerto: podem constituir--se como a raiz de uma nova ordem educativa, reno-vadora de projectos de educação permanente, ou podem ser as premissas de novas formas de gestão social ao serviço da economia do mercado.

A formação de professores/formadores/conselheiros/orientadoresParecem não existir ainda respostas estabiliza-das que garantam à partida a qualidade e a fiabili-dade dos processos em causa. Para além da validade dos procedimentos, também há que considerar que estes procedimentos são mediatizados por pessoas, o que implica directamente a questão da preparação adequada dos técnicos envolvidos.

Desta forma, a formação dos agentes implicados — formadores, professores, conselheiros, orientadores, tutores, etc. — constitui-se como um eixo imprescin-dível para a garantia da qualidade dos processos em causa. Entre os profissionais que intervêm nos pro-cessos de reconhecimento e de validação, os conse-lheiros, orientadores e professores/ formadores têm um papel fundamental ao nível da valorização dos adquiridos da pessoa, de elevação da sua auto-estima e da auto-imagem, de apoio à tomada de consciência e explicitação das suas aprendizagens, de suporte à construção identitária, e por vezes, de reconciliação da pessoa com a sua trajectória de vida.

Estes profissionais têm de ser capazes de fazer transpor um discurso de ordem pessoal para um de ordem social e profissional. Este papel não é redutí-vel à mera aplicação de técnicas e de instrumentos de avaliação. Os actores deste processo desempenham um papel mediador, formativo, mobilizador da auto-nomia e de novas dinâmicas de aprendizagem. As qualidades humanas, de escuta, de valorização do outro, são tão ou mais importantes do que as técni-cas, necessárias ao nível do conhecimento e utiliza-ção de instrumentos de apoio, ao nível dos domínios científicos, etc. A formação das equipas de profissio-nais parece-nos ser um eixo fundamental de qual-quer estratégia de implementação dos sistemas de reconhecimento e de validação das aprendizagens experienciais, papel que cabe prioritariamente às instituições de ensino superior.

E também, numa perspectiva mais lata, se consi-derarmos que “a sustentabilidade de um sistema de educação/ formação ao longo da vida implica colo-

car os professores e os educadores na primeira linha dos novos paradigmas educativos” (Carneiro, 2001), a formação destes actores assume neste contexto uma relevância particular.

Assim, a formação dos professores e dos forma-dores deverá ser (re)pensada à luz dos novos quadros de referência de acção educativa, no âmbito do novo paradigma de educação/formação ao longo da vida. De entre os eixos de mudança educativa analisados, e que influenciam as representações e as práticas dos professores, dos formadores, dos alunos, enfim, de todos os intervenientes no processo educativo, desta-camos os articulados com o processo de construção de conhecimento, com os saberes, com a aprendizagem, e com os processos e contextos onde se desenvolvem. Desta forma, a formação dos professores/formadores, numa lógica de educação/formação ao longo da vida, deve ser enriquecida com os contributos destes qua-dros de referência, e, na nossa perspectiva, tendo em consideração as dimensões sobre as quais procurá-mos reflectir, mas que não esgotam no entanto a com-plexidade dos fenómenos envolvidos. As mudanças necessárias ao nível das organizações educativas, no que diz particularmente respeito à sua estrutura e for-mas de organização, aos referenciais, às estratégias e modelos pedagógicos, vêm introduzir novos quadros de referência que confrontam os actores educativos ao nível das suas representações e questões identitárias. A mudança do pensamento educativo, o repensar dos saberes e das competências necessárias numa socie-dade em mudança, a valorização dos saberes adqui-ridos experiencialmente, a crescente atenuação das fronteiras entre formação geral, profissional, entre formação inicial e formação contínua, entre educação formal e informal, são aspectos que devem ser con-siderados e reflectidos no processo de formação dos professores e formadores. A formação destes profis-sionais deverá contribuir para a construção de uma cultura de aprendizagem ao longo da vida, respon-der às necessidades do actuais e simultaneamente permitir uma antecipação das necessidades futuras, numa lógica pro-activa. neste quadro, as instituições de ensino superior assumem uma dupla responsabi-lidade: enquanto instituições responsáveis pela for-mação dos professores e dos formadores, e enquanto contextos privilegiados de construção de conheci-mento, de questionamento permanente, de produção de novas formas de compreensão da realidade.

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notas

1. Aprendizagens lifelong e lifewide, de acordo com o “Memorando da Aprendizagem ao Longo da vida” (Comissão Europeia, 2000).

2. De acordo com Canário (1999), o funciona-mento da organização escolar caracteriza-se pela compartimentação estandardizada dos tempos, espaços, saberes, que se encontra articulada com uma concepção cumulativa do conhecimento e da aprendizagem. O autor identifica as convergências entre esta forma de organização e a concepção taylo-rista dos processos de produção, orientada para a produção e o consumo de massas.

3. Segundo Dominicé (1989), os cursos escolares e a tradição didáctica assentam sobre esta concep-ção, que se reflecte tanto nas universidades como na formação contínua. também Canário (1999, p. 100) evidencia que o funcionamento da organização escolar, do ponto de vista da relação com o saber, “subestima e desvaloriza as aquisições, os interes-ses e as experiências dos alunos, bem como as carac-terísticas sócio-culturais do seu contexto”.

4. O conceito de aprendizagem experiencial apre-senta proximidade conceptual com o de formação experiencial, educação informal (Pain, 1991), educa-ção experiencial (Gelpi, 1989). Este conceito foi enri-quecido com os contributos de Kolb, Landry, theil, Barkatoolah, Roelens, Pineau, Enriotti, Finger, McGill e Weil. A este propósito ver Pires (2002, 2005).

5. Evidenciado nos trabalhos de Dewey, Rogers, Knowles, Kolb, Mezirow e Freire, entre outros. ver Pires (2002, 2005).

6. De acordo com Correia (1997), as concepções da “racionalidade técnica e adaptativa” e da “racio-nalidade expressiva e emancipatória” sobre os sabe-res experienciais traduzem-se em diferentes for-mas de definir e responder aos problemas; a pers-pectiva crítica, defensora de “modelos de interven-ção preocupados com o aprofundamento das valên-cias emancipatórias da formação”, procura a “reabi-litação das experiências inserindo-as num processo cuja pertinência já não se defina pela sua adequabi-lidade relativamente aos saberes formais e suscep-tíveis de serem transmitidos, mas pelo sentido que lhes atribuem os indivíduos e os grupos em forma-ção. (…) Para além de se preocupar com o reconhe-cimento destes saberes, o trabalho de formação pro-

cura induzir situações em que os indivíduos se reco-nheçam nos seus saberes e sejam capazes de incor-porar no seu património experiencial os próprios saberes produzidos pelas experiências de forma-ção” (op.cit., p. 37). Segundo o autor, o que está em causa é a “reapropriação da formatividade”.

também Canário (1999) aponta a necessidade de se evoluir da lógica dominante das “necessidades” (visão negativa do sujeito, que dá visibilidade aos défi-ces e às lacunas) para a lógica dos “adquiridos” (enten-didos como potencialidades), perspectivando o adulto como o “principal recurso da sua formação”.

7. Uma “poção mágica”, de acordo com Bjornavold (2000). também para Rodrigues e nóvoa “A questão (do reconhecimento) não se resolve com a multiplica-ção de ‘centros’ onde se procede a análise, validação e certificação dos ‘documentos’ de uma vida. O essen-cial passa pela inscrição de determinadas práticas de formação no dia-a-dia das pessoas e das institui-ções”, fazendo parte da cultura dos organismos onde se inserem. (Canário & Cabrito, 2005, p. 12).

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Reconhecimento, validaçãoe Certificação de Competências:Complexidade e novas actividades profissionais

Cármen CavacoFaculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:O texto foi elaborado a partir de um conjunto de informação recolhida em três Centros de Reconhecimento, validação e Certificação de Competências (CRvCC). O trabalho rea-lizado nos CRvCC consiste na avaliação de competências através da experiência de vida. O processo de reconhecimento, validação e certificação de competências (RvCC) é com-plexo e difícil tanto para os adultos como para os profissionais envolvidos, o que resulta de um conjunto de factores. neste texto, optou-se por problematizar a complexidade ine-rente aos elementos que se consideram estruturantes do processo — as competências, a experiência de vida e a avaliação. As questões que orientam a problematização e reflexão ao longo do texto são as seguintes: Qual é a natureza dos elementos que estão associados ao reconhecimento e validação e que tornam este processo complexo? Que profissões emer-gem através do trabalho realizado nos CRvCC? As equipas dos CRvCC recorrem a um conjunto de estratégias (p.e. modelo metodológico híbrido, acompanhamento do adulto, triangulação da informação) para contornar a complexidade, as tensões e as dificuldades que marcam o processo de RvCC. A qualidade e equidade do processo dependem muito da orientação e do profissionalismo das equipas que trabalham nos Centros.

Palavras-Chave:Reconhecimento, validação e certificação de competências, educação e formação de adul-tos, perfil dos profissionais de RvC, aprendizagem experiencial.

Cavaco, Cármen (2007). Reconhecimento, validação e Certificação de Competências: Complexi-

dade e novas actividades profissionais. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 21-34

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Introdução

A investigação que suporta o presente texto1 enquadra-se num projecto de Doutoramento em Ciências da Educação — Formação de Adultos, cujo objectivo é compreender as lógicas da oferta forma-tiva direccionada para adultos pouco escolarizados e a percepção que os adultos têm dessas oportunida-des formativas. O texto centra-se apenas num domí-nio do mencionado estudo, o processo de reconhe-cimento, validação e certificação de competências e é baseado num conjunto de dados empíricos reco-lhidos em três Centros de Reconhecimento, valida-ção e Certificação de Competências2 (CRvCC), que surgiram em Portugal, no ano 2001. Os dados empí-ricos consistiram na realização de entrevistas semi--directivas aos elementos das equipas dos 3 Centros (entrevistas a 8 profissionais de RvC, entrevistas a 7 formadores de RvC e entrevistas a 3 coordenado-ras) e a alguns adultos certificados (14 entrevistas a adultos). Através do reconhecimento de competên-cias estes Centros permitem a certificação escolar de indivíduos, com mais de 18 anos, que não possuem o 9º de escolaridade. Os certificados3 atribuídos são referentes ao nível B1 (4º ano de escolaridade), B2 (6º ano de escolaridade) e B3 (9º ano de escolaridade). A decisão do nível escolar a atribuir depende essen-cialmente de dois factores: do nível de escolaridade que o adulto possui ao ingressar no Centro; e das competências que consegue demonstrar ao longo das várias fases do processo. Os Centros realizam um trabalho de reconhecimento, validação e certi-

ficação de competências adquiridas pelos adultos pouco escolarizados ao longo da vida, em diversos contextos (familiar, social, profissional e escolar/formação profissional).A reflexão e problematização realizada ao longo do texto são orientadas pelas seguintes questões: Qual é a natureza dos elementos que estão associa-dos ao reconhecimento e validação de competências e que tornam este processo complexo? Que pro-fissões emergem através do trabalho realizado nos CRvCC? Que profissões são profundamente alte-radas no contexto do trabalho dos CRvCC? Que implicações tem o processo de reconhecimento e validação de competências de adultos pouco esco-larizados nas funções e atitudes dos colaboradores dos Centros? O texto está organizado em dois pon-tos: o primeiro diz respeito à análise da natureza dos elementos inerentes ao processo de RvCC — as competências, a experiência de vida e a avaliação; e o segundo é referente à sistematização e reflexão sobre as funções e competências do profissional de RvC e do formador de RvC.

Pressupostos e dificuldades inerentes ao processo de reconhecimento e validação de competências

Os CRvCC em estudo baseiam-se no pressupos-to que há continuidade entre a aprendizagem e a experiência, os processos de aprendizagem são interdependentes da acumulação de experiên-

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cias, tornando-se por isso pertinente reconhecer e validar as aprendizagens que os adultos pouco escolarizados realizaram ao longo da vida, dando--lhes visibilidade social, através da certificação. Reconhece-se que aprendizagem resulta da neces-sidade de responder aos desafios e imprevistos que a vida quotidiana coloca, sendo “um direito inalie-nável que cada um tem para sobreviver” (Grone-meyer, 1989, p. 81), como tal, ocorre aprendizagem ao longo da vida e nos vários contextos, através de modalidades informais, não-formais e formais. Os adultos que aderem ao RvCC são encarados como indivíduos portadores de uma experiência de vida única, que é o seu principal recurso para a realiza-ção do processo. Faz-se uma “leitura pela positiva”, em que se pretende identificar e valorizar aquilo que a pessoa aprendeu ao longo da vida. neste processo de RvCC a educação é entendida como um proces-so contínuo no tempo e no espaço e uma “produ-ção de si, por si”, em que o indivíduo “se utiliza a si próprio como recurso” (Charlot, 1997, citado em Canário, 2000, p. 133). nos CRvCC em estu-do as equipas reconhecem a centralidade do sujeito no processo de aprendizagem, e enquadram-se na “perspectiva da produção de saber que se situa nas antípodas da concepção cumulativa, molecular e transmissiva própria da forma escolar tradicional” (Canário, 2000, p. 133). Estes pressupostos têm pro-fundas implicações na organização do dispositivo, nas metodologias, nos instrumentos e nas funções e postura dos actores envolvidos.

O carácter complexo dos elementos inerentes ao reconhecimento, validação e certificação de compe-tências — as competências, a experiência de vida e a avaliação — está na base da maior parte das difi-culdades e desafios que se colocam às equipas res-ponsáveis pelo processo nos CRvCC. O processo de reconhecimento e validação de competências é complexo e difícil tanto para o adulto envolvido como para as equipas dos Centros. Um dos motivos dessa complexidade e dificuldade resulta da natu-reza do próprio objecto em estudo — as competên-cias. A competência é referente à capacidade de mo-bilizar, num determinado contexto, um conjunto de saberes, situados ao nível do saber, saber-fazer e saber-ser, na resolução de problemas. A competên-cia não existe per se, está ligada a uma acção concre-ta e associada a um contexto específico. Conforme

refere Sandra Bellier (2001, p. 254) “a competência não é aquilo que se faz mas como se consegue fazê--lo de maneira satisfatória. É portanto aquilo que está subjacente à acção e não a própria acção”. O facto da competência ter por base uma acção, um contexto e procedimentos específicos coloca pro-blemas na avaliação de competências nos Centros em estudo, desde logo porque o processo de reco-nhecimento e validação ocorre diferido no tempo. Ou seja, o indivíduo não é avaliado no momento em que manifesta certa competência mas sim à pos-teriori. As equipas apercebem-se diariamente da dificuldade de captar com rigor as competências dos indivíduos; como forma de contornar esta si-tuação incidem no processo de auto-avaliação e op-tam pela triangulação de informação, recorrendo a várias fontes (p.e. provas sobre o percurso de vida, observações, análise do dossier e dos trabalhos re-alizados pelo adulto ao longo do processo), a vários instrumentos (p.e. exercícios de demonstração, instrumentos de mediação, situações-problema) e ao trabalho em equipa. todavia, têm consciência que esse trabalho de reconhecimento e validação de competências nunca será perfeito, apesar dos seus esforços de melhoria, acontecerão, inevitavel-mente, casos de sobreavaliação e subavaliação de competências.

A identificação das competências realiza-se, es-sencialmente, através da recolha de elementos sobre a experiência de vida do adulto pouco escolarizado, o que constitui outro motivo de dificuldade e com-plexidade do processo de RvCC. O conceito de ex-periência manifesta-se impreciso, englobando uma grande diversidade de significados. A experiência apresenta um carácter dinâmico, é questionada e alterada em função das novas situações vivenciais, o que permite a evolução do indivíduo, tornando-se um processo interminável, que resulta num processo de formação ao longo da vida. A amplitude do con-ceito de experiência resulta do facto da experiência “se confundir com a presença do sujeito no mundo, há permanentes interacções com o meio e consigo próprio, mesmo os não factos, as não-acções, as não-comunicações são também experiências” (ver-mersch, 1991, p. 275). também é necessário ter em atenção que “nem toda a experiência resulta neces-sariamente numa aprendizagem, mas a experiência constitui, ela própria, um potencial de aprendiza-

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gem” (Dominicé, 1989, p. 62). Perceber se se rea-lizaram aprendizagens não conscientes ou se pelo contrário a experiência não deu lugar a qualquer tipo de aprendizagem, torna-se uma tarefa bastan-te difícil e morosa, quer para o adulto, quer para as equipas. Como forma de ultrapassar esta dificuldade as equipas recorrem a instrumentos do tipo descriti-vo, apelando à descrição dos acontecimentos, numa tentativa de facilitar o acesso à sequência das acções e às aprendizagens realizadas, para depois inferir as competências do adulto.

A avaliação envolve sempre um juízo de valor que resulta da comparação entre uma situação exis-tente e uma situação desejável. neste caso a situação existente é o percurso de vida do adulto e as com-petências que este evidencia (indicadores), e a situ-ação desejável é o referencial de competências-chave (critérios de comparação). A avaliação é um processo complexo, e quanto se trata de avaliar competências a situação ainda se apresenta mais delicada, o que constitui um domínio de dificuldade no processo de RvCC. A análise da avaliação de competências rea-lizada nos Centros em estudo permite-nos efectuar uma reflexão sobre um conjunto de novos desafios que se colocam nos processos de avaliação. O estudo dos processos de avaliação de competências nos CR-vCC pode constituir uma oportunidade para rever e repensar as práticas de avaliação, nomeadamente, as presentes nas modalidades educativas formais. A ava-liação de competência no processo de RvCC é de-senvolvida numa perspectiva humanista, não é enten-dida apenas “para julgar” (Cardinet, 1989, citado em Paquay, 2000, p. 122) as competências manifestadas pelo adulto, mas também para dar sentido e valorizar o percurso de vida, a experiência, o adulto enquanto pessoa. Embora a principal finalidade das equipas dos Centros seja captar com rigor as competências do adulto e compará-las com as do referencial, de for-ma a avaliar a possibilidade e o grau de certificação, a metodologia de trabalho e os instrumentos utilizados permitem orientar o processo numa perspectiva de avaliação mobilizadora e humanista, com potenciali-dades ao nível da conscientização.

O processo de reconhecimento e validação das competências nos CRvCC tem por objectivo “tor-nar visíveis” (Liétard, 1999) as competências que os adultos pouco escolarizados possuem mas que, na maioria dos casos, desconhecem, ignoram e

desvalorizam; o que envolve um complexo e rigo-roso trabalho de avaliação de competências a par-tir da experiência de vida. O reconhecimento tem subjacente uma dimensão de auto-avaliação, que ocorre quando o adulto analisa as suas competên-cias; e uma dimensão de hetero-avaliação, quando os elementos da equipa dos Centros comparam as competências do adulto com as do referencial. O reconhecimento não se limita a um trabalho de descrição da experiência de vida, envolve rememo-ração, selecção e análise de informação, implica, sobretudo, um rigoroso processo de reflexividade e de distanciamento face ao vivido. A dinâmica que surge no decurso do processo de reconhecimento, exige uma grande implicação por parte do adulto e interfere com o seu “eu”, envolvendo mecanismos cognitivos e emotivos. O adulto para responder às questões: “Qual foi o meu percurso de vida ao nível profissional, familiar, social e escolar/formação pro-fissional? Que competências adquiri ao longo do percurso de vida? Onde as usei?”, equaciona inevi-tavelmente a questão “Porque sou o que sou?”.

O reconhecimento e validação de competências através da análise do percurso de vida do adulto en-volve um processo de avaliação que suscita questões muito sensíveis, o indivíduo pode sentir que está a ser avaliado enquanto pessoa, que é o seu percurso de vida que está a ser julgado. Conforme refere Pa-quay (2000, p. 121), “desde o momento que se avalia uma competência, os sujeitos são necessariamente implicados, é o conjunto dos seus recursos cogni-tivos, afectivos e motores que são tidos em conta, eles sentem-se globalmente julgados, na sua pessoa, na sua identidade. Se o julgamento é negativo, sem dúvida que terá rapidamente efeitos desastrosos”. Como é que se pode contornar esta dificuldade no processo de RvCC? As equipas dos Centros em estudo contornam este problema optando por vá-rias estratégias: por um lado, tentam identificar no momento de inscrição ou nas primeiras sessões de reconhecimento as pessoas que à partida não têm o perfil adequado para realizar o processo com su-cesso, evitando criar falsas expectativas e reforçar uma imagem negativa; por outro lado, as metodo-logias, as técnicas e os instrumentos das sessões de reconhecimento são orientados sobretudo para a auto-análise, auto-reconhecimento e auto-avaliação; e por fim, os elementos da equipa dão ênfase e va-

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lorizam as competências que o adulto possui, e a apreciação tem sempre um enfoque positivo. to-davia, este processo comporta riscos, é susceptível de provocar traumas, de reforçar a imagem negativa do adulto e de contribuir para o ciclo de insucessos na sua vida, daí a pertinência dos Centros se orien-tarem com base na perspectiva humanista, centra-da no desenvolvimento pessoal e mobilizadora do adulto. Este é um domínio extremamente delicado e carece de uma vigilância permanente por parte das equipas dos Centros, que devem estar muito atentas aos adultos que avançaram no processo e o suspenderam, sem que posteriormente o tenham terminado. Atendendo à complexidade do processo de reconhecimento, torna-se fundamental o recurso a metodologias e a instrumentos adequados, assim como, o apoio e acompanhamento do adulto por parte de profissionais conscientes destes desafios.

A emergência e alteração de actividades profissionais — O profissional de RvC e o formador de RvC

Através do trabalho desenvolvido nos CRvCC surgiu uma nova actividade profissional — o profissional de RvC, e a actividade dos formadores viu-se profunda-mente alterada, quer em termos de funções desempe-nhadas, quer ao nível da atitude. A grelha que se apre-senta foi construída com base nos elementos recolhi-dos nos 3 CRvCC em estudo, e identifica as funções e competências do profissional de RvC e do forma-

dor de RvC. A análise do conteúdo funcional e das competências do profissional de RvC e do formador RvC é fundamental para, por um lado, compreender o processo de reconhecimento e validação de com-petências, e as suas especificidades enquanto pro-cesso de avaliação de competências com base no per-curso de vida; por outro lado, perceber a interdepen-dência entre a organização e funcionamento do dis-positivo e as funções e competências evidenciadas pelas equipas de cada Centro. Por último, defende--se que a lógica de funcionamento dos Centros e a visibilidade social deste processo depende, essen-cialmente, do trabalho realizado pelas suas equipas, fazendo por isso sentido formalizar e reconhecer as especificidades das funções que assumem; o que é fundamental no processo de construção da sua pro-fissionalização. A reflexão acerca das funções e com-petências das equipas responsáveis pelo processo de RvCC surge como muito importante para fortale-cer a lógica de funcionamento dos Centro e evitar a perversão das suas especificidades. A grelha que se segue identifica as funções e competências do pro-fissional de RvC e do formador de RvC, quando se coloca a cruz (x) significa que essa competência está presente no perfil do profissional correspondente, em pelo menos um dos Centros em estudo. A varia-bilidade dos contextos de trabalho influencia o per-fil profissional dos intervenientes, as diferenças de organização e funcionamento do dispositivo nos 3 CRvCC repercutem-se de uma forma notória nas funções e competências dos profissionais de RvC e dos formadores de RvC.

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Funções e competências do profissional de RvC e do formador de RvC

Funções CompetênciasProf.RvC

Form.RvC

1. Acolhimento e inscrição dos adultos no processo de RvCC, recolha de elementos sobre o adulto e esclarecimento sobre o processo

· Ser capaz de acolher o adulto de uma forma empática, incentivando-o a inscrever-se, contribuindo para que este ultrapasse o receio e angústia inicial· Ser capaz de explicitar o processo de RvCC ao adulto, para que este perceba as fases e implicações do processo · Ser capaz de orientar e apoiar o adulto no preenchimento dos instrumentos usados na inscrição e informá-lo sobre o tipo de elementos que deve reunir sobre o seu percurso de vida· Ser capaz de identificar e analisar, com base no diálogo e nos elementos disponibilizados nos instrumentos de inscrição, as situações em que o adulto não possui o perfil adequado para o processo RvCC, orientando-o para outro tipo de possibilidade formativa

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Funções CompetênciasProf.RvC

Form.RvC

2. Reconhecimento das competências dos adultos em processo de RvCC através da explicitação da sua experiência de vida e da resolução de problemas

· Ser capaz de apoiar os adultos no desenvolvimento dos instrumentos de mediação, explicando a finalidade de cada instrumento e esclarecendo as dúvidas que surgem no preenchimento para que estes possam perceber a lógica do processo · Ser capaz de envolver o adulto no processo, de modo a que este se sinta motivado e implicado na reflexão sobre a globalidade da sua experiência de vida· Ser capaz de incentivar o adulto a reflectir sobre a sua personalidade e os seus projectos de vida, apoiando-o na explicitação e formalização de um desses projectos· Ser capaz de animar sessões em pequeno grupo, gerando um processo de colaboração interpessoal entre os adultos envolvidos, uma dinâmica de discussão e troca de ideias e experiências· Ser capaz de apoiar e incentivar o adulto a ultrapassar bloqueios e estados emocionais que penalizam a reflexão sobre a sua experiência de vida· Ser capaz de identificar os saberes e competências de cada adulto, quer através da explicitação da sua experiência de vida, quer através de situações proporcionadas nas sessões de reconhecimento · Ser capaz de diagnosticar, nas primeiras sessões de reconhecimento, se o adulto possui o mínimo de competências para prosseguir o processo, orientando-o para essa tomada de consciência, por forma a que adulto perceba que pode ser mais adequado procurar outras ofertas formativas ou suspender o processo de RvC até adquirir outros saberes e desenvolver novas competências· Ser capaz de orientar o adulto em processo de RvCC para uma tomada de consciência dos seus saberes e competências, promovendo um processo de auto-reconhecimento· Ser capaz de confrontar o adulto com situações-problema para este evidenciar competên-cias, e assim promover o reconhecimento nas áreas de competência-chave· Ser capaz de orientar e apoiar os profissionais de RvC na operacinalização de situações-problema para que estes possam clarificar o tipo de competências passíveis de reconhecer

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3. validação das competências do adulto em processo RvCC, através da comparação entre as competências do adulto e as competências do referencial

· Ser capaz de comparar os saberes e competências que inferiu, através da experiência de vida do adulto e das situações vividas durante o processo, com as competências identificadas no referencial de competências-chave· Ser capaz de analisar e discutir em equipa as competências evidenciadas pelo adulto para cada área de competência-chave do referencial, propondo ao adulto, caso seja necessário, um plano de formação complementar· Ser capaz de fazer um balanço sobre o processo de reconhecimento do adulto no júri de validação e de incentivar o adulto a prosseguir o seu percurso formativo e a concretizar os seus projectos de vida, numa perspectiva de valorização e reconhecimento do potencial de cada pessoa· Ser capaz de justificar e realizar o balanço da formação complementar no momento júri, caso o adulto a tenha frequentado

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4. Adaptação do dispositivo de RvCC, reformulação e concepção dos instrumentos de mediação e de inscrição

· Ser capaz de analisar as potencialidades e fragilidades do dispositivo de RvCC, propondo alterações de metodologias e procedimentos no sentido de garantir uma maior qualidade e eficácia do processo, quer para o adulto, quer para os objectivos do Centro· Ser capaz de conceber e reformular os instrumentos de mediação aplicados no reconhe-cimento de competências e os instrumentos utilizados no momento da inscrição no processo de RvCC, promovendo a qualidade do trabalho realizado no Centro e o envolvimento do adulto ao longo do processo· Ser capaz de conceber situações-problema que permitam identificar um conjunto alargado de competências e que possam fazer sentido para os adultos em processo, tendo por base as suas experiências de vida e motivações

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5. Interpretação, descodificação e sugestões de alteração do referencial de competências-chave

· Ser capaz de interpretar e descodificar as competências do referencial tornando-o um instrumento de trabalho passível de ser utilizado por todos os elementos da equipa e, inclusivamente, pelos adultos em processo · Ser capaz de analisar criticamente o referencial de competências-chave no sentido de o tornar um instrumento mais adequado e pertinente para o processo de RvCC, sugerindo a introdução, suspensão ou alteração de competências

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Funções CompetênciasProf.RvC

Form.RvC

6. Realização de formação complementar para desenvolver competências não reconhecidas ao longo do processo de RvCC

· Ser capaz de conceber um plano formativo adaptado a cada adulto, que permita desenvolver as competências que não foram reconhecidas ao longo do processo, tendo por base a sua experiência de vida, os seus saberes e competências· Ser capaz de identificar e transmitir os saberes tidos como fundamentais para o adulto desenvolver as competências que não foram reconhecidas ao longo do processo· Ser capaz de orientar e apoiar o adulto na pesquisa para que este possa autonomamente desenvolver as competências que não foram reconhecidas ao longo do processo· Ser capaz de operacionalizar situações-problema para perceber em que medida o adulto desenvolveu as competências necessárias

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7. Divulgação do processo de RvCC e da organização e funcionamento do Centro

· Ser capaz de explicar o processo de RvCC, a organização e funcionamento do Centro, quer a responsáveis institucionais, quer a grupos de adultos em condições de vir a beneficiar do processo, promovendo a sua participação

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A emergência de uma nova actividade profissional — o profissional de RvC

O profissional de RvC é uma nova actividade pro-fissional, que emergiu com o trabalho realizado nos CRvCC. Estes profissionais têm um papel muito importante em todas as fases do processo e assu-mem um conjunto diversificado de funções, como se depreende da leitura do quadro anterior. toda-via, pode considerar-se que a sua principal fun-ção é referente ao reconhecimento de competên-cias dos adultos pouco escolarizados. no desem-penho desta função os profissionais de RvC têm como objectivos explorar os percursos de vida de cada adulto de forma a recolher elementos que lhe permitam inferir em que medida este apresenta as competências do referencial; motivar e envolver o adulto num processo de reflexão, auto-análise, auto--reconhecimento e auto-avaliação. Para além do reconhecimento, estes profissionais também asse-guram a validação de algumas competências e a con-cepção dos instrumentos de mediação e de inscrição. Os instrumentos de mediação são elementos funda-mentais para garantir a eficácia do processo de reco-nhecimento e para garantir a motivação e implica-ção dos adultos, daí a importância da reformulação e concepção de novos instrumentos. A validação de competências é também uma das funções que o pro-fissional de RvC assegura ao emitir, junto do forma-dor de RvC, um parecer sobre as competências que o adulto evidenciou ao longo do processo. O acolhi-mento e inscrição do adulto no processo e a divul-

gação do Centro são também funções asseguradas pelos profissionais de RvC. num dos Centros o aco-lhimento e a inscrição são uma função da exclusiva responsabilidade do profissional de RvC. nesse Centro este é um momento de recolha de informa-ção sobre o adulto, que permite fazer uma orienta-ção para outras oportunidades formativas quando se percebe que o perfil apresentado pelo adulto não se adequa ao processo RvCC.

O profissional de RvC é quem estabelece um relação mais próxima com os adultos ao longo do processo, isto porque, por um lado, o desenvolvi-mento dos instrumentos de mediação ocupa a maior parte das sessões do processo RvCC, por outro lado, o tema que abordam nas sessões de reconheci-mento é, essencialmente, a experiência de vida dos adultos. Os profissionais de RvC promovem a reme-moração da experiência de vida, o diálogo, a expli-citação das actividades para cada função/tarefa, a escrita, o debate, a cooperação e as relações inter-pessoais entre os elementos do grupo. no exercí-cio das suas funções o profissional de RvC assume várias posturas, a de animador, a de educador e a de acompanhador, o que varia em função das situações e do que lhe é solicitado pelo adulto. Adopta uma postura de animador quando gere de uma forma dinâmica as sessões de reconhecimento que se rea-lizam em pequenos grupos, promovendo discus-sões e reflexões conjuntas e reforçando situações de entreajuda que surgem espontaneamente entre os adultos. Assume-se como educador quando explica o processo, dá informações sobre a organização

nota: Prof. RvC é a abreviatura de Profissional de RvC; Form. RvC é a abreviatura de Formador de RvC.

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do dossier e o preenchimento dos instrumentos de mediação e quando esclarece as dúvidas dos adultos ao longo do processo. Adopta uma postura de acom-panhador quando ao longo do reconhecimento ouve a narração do percurso de vida do adulto, motiva o adulto a reflectir sobre o passado, o presente e a pers-pectivar o seu futuro e quando o ajuda no processo de tomada de consciência. Esta última postura é a mais significativa da actividade do profissional de RvC, e é a que melhor se enquadra nos pressupos-tos do próprio processo. Ao assumir uma postura de acompanhamento o profissional de RvC está a ser “um facilitador, um passador [...], um emancipa-dor” (Lhotellier, 2001, p. 196).

O profissional de RvC garante um acompanha-mento personalizado e torna-se um aliado do adulto. O principal tema de conversa, reflexão e debate é o percurso de vida, os interesses e motivações do adulto. O acompanhamento por parte do profis-sional é fundamental em toda a fase de reconheci-mento, é esta relação de ajuda personalizada que permite orientar o adulto no bom sentido, motivá--lo, aumentar a sua implicação, promover o auto--reconhecimento e a auto-estima. Seguindo a pers-pectiva de Guy Le Bouëdec (2001a, p. 24) “acom-panhar é ir com alguém, ao lado de, ir em compa-nhia”. O profissional de RvC faz um percurso com o adulto enquanto este fala e escreve sobre a sua vida, durante esse percurso de organização do dossier pessoal, o adulto é o “actor principal”, o profissional de RvC apoia e ajuda mas não se coloca no lugar do adulto ou no centro da acção, “não dirige os aconte-cimentos” (Bouëdec, 2001a, p. 24).

Durante o acompanhamento do processo RvCC, o profissional assume posições distintas. tomando como referência a tipologia apresentada por Robert Stahl (2001, pp. 104), na maioria das vezes adopta um registo de escuta, ajuda o adulto a construir a narração do seu percurso de vida, questiona-o, e orienta a sua reflexão; por vezes, adopta um registo de análise, que é, essencialmente, notório quando diagnostica as competências do adulto a partir da narração e do referencial; e também pode dizer-se que adopta um registo de influência, quando con-fronta o adulto com a análise que realizou, o que é fundamental para lhe promover a tomada de consci-ência. Os profissionais de RvC quando assumem um registo de influência utilizam-no, por norma, como

estratégia para valorizar o adulto, para lhe transmitir confiança nas suas capacidades e para promover o auto-reconhecimento do adulto, o que é muito im-portante no caso dos adultos que realizam o proces-so RvCC. Estes adultos sentem-se, na maioria das vezes, estigmatizados pela sua reduzida escolarida-de, ignorando e desvalorizando as suas experiências, saberes e competências. Quando o adulto reconhe-ce as suas próprias capacidades, percebe que tem recursos para influenciar o seu presente e o futuro. A adopção dos diferentes registos na situação de acompanhamento depende do adulto em processo, da dinâmica que se gera ao longo das sessões e das competências do profissional. De qualquer modo, a atitude adoptada pelo profissional de RvC deve ser um factor de vigilância permanente por parte dele próprio e das equipas, porque “o acompanhamento não é neutro” (Bouëdec, 2001c, p. 104).

O profissional de RvC quando assume uma postura de acompanhamento manifesta uma atitu-de de valorização do outro, de escuta positiva e em-pática, como referem Hennezel e Montigny (citados em Bouëdec, 2001b, p. 49) “entre as qualidades de bases de um bom acompanhante, eu insisto sobre a humildade, a autenticidade, a espontaneidade, a generosidade, a abertura de espírito, o respeito pela diferença, a escuta empática, e a capacidade de suportar os silêncios”. A relação numa situação de acompanhamento é desconhecida para o adulto e construída pelo profissional através da sua experi-ência de trabalho. no discurso dos profissionais de RvC é notório que aprendem “através da prática, por ajustamentos sucessivos” (Bouëdec & Pasquier, 2001, p. 16), mas também valorizam bastante a for-mação contínua, considerando-a essencial para a sua evolução profissional. Os profissionais de RvC podem considerar-se “passadores” no sentido em que Christine Josso (2005, p. 119) refere, porque estão preocupados em saber para onde é que a pes-soa quer ir e tentam perceber o tipo de ajuda que lhe podem prestar durante um certo período nessa caminhada. A emergência do profissional de RvC nos CRvCC dá lugar ao nascimento de uma activi-dade profissional, que para benefício de todos os que participam neste processo, deve ser definida e baseada num suporte legal. Importa clarificar e definir as funções e actividades deste novo profis-sional, as competências requeridas para o exercício

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da profissão, assim como, as regras éticas e deonto-lógicas pelas quais se deve orientar.

Alteração da profissão formador — o formador de RvC

Os formadores integrados nas equipas dos CRvCC asseguram um conjunto de funções que dão lugar à mudança do conteúdo funcional da profissão do formador. Como se pode depreender da leitura do quadro anterior, os formadores do processo RvCC assumem um conjunto diversificado de funções. Para assegurarem um desempenho adequado têm de desenvolver competências específicas, bastante dis-tintas das que lhe eram solicitadas quando exerciam as suas funções como professores ou formadores, ao nível da formação profissional. As funções e com-petências anteriormente identificadas são sistema-tizadas tendo por base a actividade profissional dos formadores nos 3 Centros em estudo, no entanto, há algumas especificidades do conteúdo funcional de Centro para Centro. Por exemplo, num dos Cen-tros os formadores não têm, normalmente, contacto directo com os adultos, e neste caso a sua principal função é orientar e apoiar os profissionais de RvC na operacionalização das situações-problema. tendo em conta as especificidades do conteúdo funcional em cada Centro, pode referir-se que as principais fun-ções dos formadores, atendendo ao tempo que lhes dedicam, são: a validação das competência do adulto em processo RvCC; realização da formação comple-mentar; interpretação, descodificação e sugestões de alteração do referencial de competências-chave; e reformulação/concepção de situações-problema. Ou seja, os formadores no processo de RvCC assumem, essencialmente, funções ligadas à avaliação de com-petências, distanciando-se assim da função tradicio-nalmente associada aos formadores — a transmissão de saberes. Esta alteração da principal função asso-ciada, tradicionalmente, aos formadores é resultante da finalidade dos CRvCC e contribui para aumentar a já diversidade e mutabilidade de perfis profissio-nais dos formadores identificada por vários autores, e que é destacada na afirmação de véronique Lecler-cq (2005, p. 110) “as missões da formação são cons-tantemente redefinidas, e os contornos da profissão são vagos e de geometria variável”

Os formadores do processo RvCC têm como principal objectivo avaliar as competências do adulto, como tal identificam e exploram, o mais exaustivamente possível, as competências desenvol-vidas pelos adultos ao longo da vida, comparando--as com as competências do referencial. A formação complementar tem uma carga horária muito redu-zida, variando, normalmente, entre 4 a 12 horas por cada área-chave, e os adultos só a frequentam quando não lhe são detectadas algumas competên-cias na fase do reconhecimento. A formação comple-mentar incide no domínio do saber-fazer e é direc-cionada para a identificação e desenvolvimento de competências. O adulto é confrontado com situações--problema em que tem de mobilizar um conjunto de “recursos” para fazer face ao desafio, o forma-dor orienta a resolução e, em simultâneo, explicita alguns elementos de carácter teórico fundamentais para a concretização da tarefa. Os saberes transmiti-dos são apenas aqueles que se consideram recursos fundamentais para que o adulto possa desenvolver determinada competência. Ou seja, são entendidos como instrumentos “para pensar e agir” como con-sidera Philippe Perrenoud (2000, p. 21) e não como tendo finalidade em si mesmo, são os designados “saberes vivos” para o autor supracitado. O treino é um elemento fundamental para o desenvolvimento de competências, e atendendo à reduzida duração da formação, pode colocar-se a questão: É possível desenvolver competências através da formação com-plementar do processo RvCC?

As novas funções dos formadores de RvC exigem--lhe o desenvolvimento de outros saberes profissio-nais e de outras competências. A maior parte dos for-madores dos CRvCC em estudo tinham experiên-cia formativa em contexto escolar o que os obrigou a repensar e reformular os seus modos de intervenção, isso é notório na seguinte afirmação de um dos entre-vistados: “tive que esquecer um pouco o que aprendi na escola [quando dava aulas]”. Esta capacidade para “esquecer” e “desaprender” tal como refere Christine Josso (2005, p. 124) é fundamental para se operarem processos de mudança, todavia, o saber “esquecer” implica processos complexos, a nível cognitivo e emo-cional, que apenas ocorrem quando os actores estão envolvidos e motivados para fazer face ao novos desa-fios. As mudanças operadas na actividade profissio-nal do formador de RvC manifestam-se ao nível das

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funções e também das atitudes. Um dos pressupos-tos inerentes à intervenção dos formadores de RvC inspira-se na teoria humanista defendida por Rogers, considerando que “todo o Homem possui recursos para se desenvolver, o papel do educador é de escutar de maneira empática, de o ajudar a elucidar através de reformulações, e isto num clima de aceitação incondi-cional (citado em Bouëdec & Pasquier, 2001, p. 14). Este pressuposto é fundamental no processo de reco-nhecimento e validação de competências, porque o formador não tem como objectivo principal transmi-tir conteúdos aos adultos, mas sim identificar e valo-rizar as competências que eles manifestam, ajudando--os a progredir tendo por base a sua experiência e os seus recursos. Como se pode depreender, o pressu-posto anteriormente indicado tem implicações no papel do formador que se “torna o facilitador, suporta as aprendizagens, organiza as situações complexas, inventa os problemas e os desafios, propõe enigmas ou projectos” (Perrenoud, 2000, p. 37). no exercício das suas funções os formadores do processo RvCC valorizam a experiência dos adultos; entendem a teo-ria/prática numa relação dialéctica; promovem o diá-logo, a reflexão e debate de assuntos relacionados com a vida dos adultos e incentivam-nos a intervir; e estabelecem uma relação de aprendizagem com os adultos, ambos ensinam e aprendem, o que se enqua-dra também na perspectiva de educação problemati-zadora defendida por Paulo Freire (1972).

Os formadores deparam-se com alguns desafios devido à complexidade da sua principal função, ava-liar competências tendo por base o percurso de vida do adulto. Deste modo é essencial uma reflexão per-manente, ao nível individual e em equipa, sobre as técnicas e instrumentos utilizados para diagnosticar e avaliar competências e sobre a pertinência e ade-quação do referencial de competências-chave. Os instrumentos de avaliação de competências têm de fazer sentido para o adulto, facilitar a sua implicação e auto-avaliação e permitir a inferência e avaliação de competências. O referencial é o principal instru-mento de trabalho das equipas dos CRvCC, e tanto os formadores como os profissionais de RvC con-sideram que algumas das competências enunciadas se baseiam em saberes disciplinares aos quais não é reconhecido uso social. A reflexão sobre as fragilida-des do referencial e a identificação de propostas de melhoria deste instrumento de trabalho, a apresen-

tar à tutela, é uma condição necessária para melho-rar o processo de RvCC. A atitude do formador é outro elemento que deve ser objecto de uma análise e reflexão permanente, uma vez que a sua principal função, a avaliação, coloca questões ao nível ético e deontológico, o que ainda é mais premente neste caso do CRvCC, em que a avaliação é suportada nas experiências de vida de cada adulto, pretendendo--se que seja formadora e mobilizadora.

Conclusão

Os pressupostos que orientam o trabalho nos CRvCC baseiam-se na valorização da experiência e das capa-cidades do indivíduo, considerando-o o principal actor do processo formativo. A complexidade ine-rente ao processo de reconhecimento e validação de competências resulta da natureza dos elementos que lhe estão inerentes — as competências, a experiência e também a questão da avaliação. Os pressupostos e natureza dos elementos inerentes ao processo de RvCC têm um conjunto de implicações no modelo de organização e funcionamento dos Centros em es-tudo; assim como, nas funções e atitudes dos profis-sionais que aí trabalham. As equipas que trabalham nos Centros têm um papel fundamental na gestão da complexidade, dos desafios e das tensões que se colo-cam ao longo de todo o processo de reconhecimento e validação de competências.

Atendendo ao carácter do processo de RvCC e à dinâmica promovida pelos actores no terreno, pode considerar-se que os Centros são pequenas estrutu-ras que trabalham como uma equipa de projecto, há uma missão para cumprir e todos os profissionais envolvidos têm o seu contributo a dar para a quali-dade e eficácia do dispositivo. A validação de com-petências, a reformulação do dispositivo de RvCC, a concepção de instrumentos e a divulgação são áre-as funcionais que se realizam, essencialmente, em equipa nos 3 Centros em estudo. O funcionamento em equipa justifica a semelhança entre as funções assumidas pelos profissionais de RvC e os formado-res, há uma grande articulação e entrosamento entre os vários elementos da equipa, registando-se parti-lha de informação e apoio permanente. Os actores reconhecem a importância do trabalho em equipa e consideram-no imprescindível tendo em conta a

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missão dos Centros, reconhecer e validar compe-tências através de uma abordagem experiencial.

no início do texto problematizou-se um pou-co a complexidade inerente à natureza de alguns elementos subjacentes ao processo de RvCC — a questão das competências, da experiência de vida e da avaliação. Estes elementos que estão na base de algumas das principais dificuldades e tensões do processo repercutem-se também nas funções e competências exigidas às equipas dos Centros. Através da análise das funções e competências dos profissionais RvC e dos formadores RvC é possível destacar alguns constrangimentos e dificuldades relacionadas com a sua actividade profissional:

§ o trabalho dos profissionais de RvC e dos for-madores é condicionado por uma tensão entre duas lógicas “avaliação humanista/avaliação instrumen-tal”. Por um lado, as equipas dos Centros em estudo tentam seguir uma lógica de avaliação centrada no adulto, na auto-avaliação e no auto-reconhecimento, que permita despoletar um processo formativo; por outro lado, o poder político baseado numa lógica de avaliação instrumental exige o cumprimento de me-tas quantitativas relativas ao número de adultos cer-tificados. Os Centros em estudo têm resistido, tanto quanto possível, à lógica de avaliação instrumental, o que se afigura cada vez mais difícil num contexto em que aumentam o número de CRvCC e a concorrência entre si. Esta situação é evidente no discurso de um profissional de RvC entrevistado: “As metodologias nós tentamos sempre o melhor possível adaptá-las às pessoas, não podemos adaptá-la a cada pessoa, isso não conseguimos, temos metas para cumprir”;

§ a decisão de encaminhar o adulto para outras ofertas ou deixá-lo avançar no processo com o ob-jectivo de perceber melhor as suas competências é muito difícil de tomar por parte dos profissionais RvC e dos formadores. Esta situação gera o dile-ma “permitir a oportunidade/evitar o insucesso”. Os profissionais de RvC e os formadores de RvC tentam fazer a triagem dos adultos o mais cedo pos-sível para evitar o insucesso no processo de RvCC, e é nesse sentido que tentam definir nas primeiras sessões quem está em condições de prosseguir o processo, e quem não está e deve ser encaminhado para outras ofertas. Por vezes deparam-se com si-tuações difíceis de equacionar (p.e quando não há ofertas alternativas ajustadas, ou quando a pessoa já

experimentou as várias possibilidades existentes e teve insucessos repetidos);

§ os profissionais de RvC e os formadores de RvC deparam-se com a dificuldade em fazer perceber ao adulto a lógica do processo, o que é fundamental para o seu sucesso. O processo de RvCC é novo, os adultos não têm referências relativamente ao modelo que é distinto do modelo escolar, utilizam-se termos técnicos que não lhe são familiares e não consegue interiorizar (p.e competências, referencial, ins-trumentos de mediação, formação complementar, profissional de RvC). Os adultos vão percebendo a lógica por ajustamentos sucessivos ao longo do pro-cesso, mas alguns, possivelmente, nem a chegam a perceber. A novidade da situação e do vocabulário é mencionada por um dos adultos entrevistados: “Um vocabulário que eu desconhecia, mais uma novida-de, coisas novas […] fiz um género de redacção, có-pia não, não sei precisar o termo…”;

§ a concepção e reformulação dos instrumentos de mediação constitui uma das principais dificul-dades nas equipas do processo RvCC, e gera um conjunto de dilemas difíceis de resolver, sendo de destacar, os seguintes: complexidade/facilidade (permitam identificar exaustiva e detalhadamente as competências/permitam um preenchimento aces-sível, por forma a promover a implicação e reflexão do adulto); rapidez/qualidade (permitam garantir a rapidez no preenchimento para tornar fácil o cum-primento das metas por parte dos CRvCC/permi-tam a garantia de qualidade, assegurando uma boa imagem e credibilidade do processo, dos profissio-nais envolvidos e do Centro); estabilidade/mudança (a estabilidade dos instrumentos é fundamental para garantir uma maior rentabilização do tempo e dos re-cursos dos Centros/a mudança e adaptação perma-nente é fundamental para adequação dos instrumen-tos à especificidade dos percursos experienciais dos adulto e para rentabilizar a experiência acumulada das equipas dos Centros), a exaustividade/intimida-de (permitam captar o melhor possível a globalidade da vida, mas evitando-se que a exaustividade na re-colha dos elementos não despolete a exploração de aspectos referentes à intimidade do adulto);

§ quando o profissional de RvC tenta ajudar o adulto a ultrapassar situações delicadas (p.e. quan-do adulto se emociona perante o grupo, quando fala de problemas da sua vida num registo de confidên-

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cia), nem sempre é fácil discernir os limites entre o profissional de RvC, o psicólogo e o amigo. Esta di-ficuldade é notória no discurso de um profissional de RvC entrevistado: “nós não nos podemos deixar envolver de mais, a nossa função não é sermos Psicó-logos de ninguém, a nossa função é outra, portanto precisamos de ter bem definida a barreira até onde se pode ir com eles […] mas não é muito fácil”;

§ a indução das competências a partir do relato do adulto é uma tarefa extremamente difícil para as equipas dos CRvCC, aquilo que cada adulto diz é referente a um saber prático e contextual, e as competências do referencial seguem outra lógica, a dos saberes teóricos e baseados em conteúdos. Os profissionais de RvC e formadores de RvC têm de realizar um rigoroso trabalho de descodificação do referencial e conseguir colocar-se no lugar do adul-to, o que não é fácil quando se trata de situações que desconhecem e sobre as quais não têm qual-quer tipo de referência;

§ a construção de situações-problema constitui uma dificuldade para os formadores de RvC, e dá lu-gar a uma tensão que se pode designar por complexi-dade/adequação. torna-se difícil conceber situações--problema em que se possa, em simultâneo, identificar um conjunto diversificado de competências (comple-xidade) e que seja pertinente e adequada às especifi-cidades do percurso de cada adulto (adequação). A aplicação das situações-problema, por parte dos pro-fissionais de RvC, é uma tarefa difícil que exige uma articulação e acompanhamento dos formadores, o que nem sempre é possível assegurar quando os formado-res trabalham a tempo parcial nos CRvCC;

§ na formação complementar os formadores deparam-se com o dilema “expor/reconhecer”. Ou optam por uma lógica de exposição de conteúdos para que o adulto adquira recursos e desenvolva as competências que não foram reconhecidas, ou op-tam por uma lógica de reconhecimento de compe-tências, através da resolução de situações-problema.

na formação complementar há um grande risco de perversão da lógica do processo de RvCC se o for-mador optar pela exposição de conhecimentos e pela demonstração de saberes.

Os formadores de RvC e os profissionais de RvC evidenciam reflexão consistente sobre o trabalho que desenvolvem, o que lhes permite ter também uma compreensão crítica do modo como exercem a sua profissão, isso revela-se muito positivo para os Centros e para a sua evolução profissional. A capa-cidade de reflexão crítica dos vários elementos da equipa dos CRvCC é extremamente importante por várias razões: os Centros são muito recentes e precisam de consolidar as suas metodologias e ins-trumentos de trabalho; funcionam com base numa perspectiva de valorização das competências dos in-divíduos, situando-se nas antípodas do modelo es-colar, e neste caso a atitude crítica revela-se impor-tante para evitar a perversão da perspectiva seguida nos CRvCC. Para além de um conjunto de conhe-cimentos que devem possuir, a atitude revela-se um elemento extremamente importante no desempenho das actividades profissionais quer dos profissionais de RvC, quer dos formadores. no desempenho das suas funções estes actores deparam-se com um con-junto de questões que se situam ao nível da ética e da deontologia profissional e que devem ser objecto de discussão e reflexão individual e colectiva. Os CR-vCC em estudo encontram-se numa fase em que é necessário consolidar a sua cultura organizacional, afirmando a pertinência e validade da sua interven-ção; de forma a conseguir visibilidade, valorização e reconhecimento social. Para que isso se concreti-ze é fundamental definir legalmente a profissão e a carreira dos profissionais de RvC e dos formadores que trabalham nos Centros, de modo a garantir a estabilização das equipas e a sua crescente mobili-zação neste projecto de reconhecimento, validação e certificação de competências.

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notas

1. Este texto foi elaborado no âmbito do Grupo de trabalho sobre Reconhecimento e validação de Adquiridos Experienciais da ADMÉE Europa e será publicado numa revista da editora Octares.

2. O CRvCC da ESDIME, em Ferreira do Alen-tejo; o CRvCC da Fundação Alentejo, em Évora e o CRvCC do Centro de Formação Profissional de Portalegre, em Portalegre.

3. O certificado atribuído aos adultos é emi-tido pelo Ministério da Educação e é, para todos os efeitos, equivalente ao obtido no sistema de ensino regular.

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A educação de jovens e adultostrabalhadores brasileiros no século XXI. O “novo” que reitera antiga destituição de direitos

Sonia Maria RummertFaculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense

[email protected]

Resumo:tratamos, neste texto, de iniciativas empreendidas pelo Governo Federal, no âmbito da Educação de Jovens e Adultos trabalhadores, no Brasil, no período de 2003 a 2006. São abordados: o Projeto Escola de Fábrica, o Programa nacional de Inclusão de Jovens: Edu-cação, Qualificação e Ação Comunitária — PROJOvEM, o Programa nacional de Inte-gração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos — PROEJA e o Exame nacional de Certificações de Competências em Educação de Jovens e Adultos — EnCCEJA. A análise efetuada parte do pressuposto de que o campo da educação é fortemente marcado por condicionantes estruturais e que as ações de governo constituem expressão dos processos de correlações de forças. Procura-se evidenciar, a partir de documentos oficiais, o fato de que essa modalidade de ensino cons-titui uma das mais claras expressões da dualidade característica do sistema educacional do país que, até os dias atuais, distribui de forma profundamente desigual as condições de acesso às bases do conhecimento.1

Palavras-chave:Educação de jovens e adultos trabalhadores, políticas educacionais, educação e condicio-nantes estruturais, educação da classe trabalhadora.

Rummert, Sonia Maria (2007). A Educação de Jovens e Adultos trabalhadores brasileiros no

Século XXI. O “novo” que reitera antiga destituição de direitos. Sísifo. Revista de Ciências da

Educação, 2, pp. 35-50

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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As atuais iniciativas referentes à Educação de Jovens e Adultos trabalhadores, no Brasil, adotadas pelo Governo Federal, são marcadas por duas ordens de questões, de caráter socioeconômico, que se com-plementam. A primeira constitui expressão histó-rica do quadro de distribuição profundamente desi-gual dos bens materiais e simbólicos, bem como da negação dos direitos fundamentais — entre os quais se destaca o direito pleno à educação — para a maio-ria da classe trabalhadora. A segunda, de origem recente, resulta das repercussões internas da rees-truturação produtiva, do aprofundamento do pro-cesso de internacionalização do capital e da redefini-ção das condições de inserção dependente e subor-dinada do país no capitalismo internacional, a par-tir do final dos anos de 1980. Esse quadro repercu-tiu no campo educacional com a retomada da teo-ria do Capital Humano, reapropriada, de modos similares, pelo Estado, pelo Capital e pelo trabalho (Rummert, 2000, 2005a).

O país chega, assim, a meados da primeira década do século XXI, enfrentando a baixa escolaridade da população, cujos índices se mantêm elevados, como demonstrado na mais recente Síntese de Indicado-res Sociais divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2006). nela afirma--se que, em 2005, o país “contava com cerca de 14,9 milhões de pessoas de 15 anos ou mais analfabetas”. É informado, também, que “apenas 53,5% dos alu-nos concluíam a última série do ensino fundamen-tal”. no que se refere especificamente à juventude, o documento destaca que para os “jovens de 18 a 24

anos, a freqüência à escola era ainda mais reduzida, um privilégio para 31,6% das pessoas nessa faixa etária” (itálico meu). Especificamente no que diz respeito ao Ensino Médio, verificamos, na mesma Síntese, que somente 45,3% dos jovens entre 15 e 18 anos o cursavam no ano de 2005.

Ao chamar a atenção para o fato de que “no con-texto latino-americano, países como Argentina e Chile apresentam apenas taxas residuais de analfa-betismo (em torno de 3%)”, em oposição ao percen-tual de 11,7% registrado no Brasil, o documento evi-dencia o fato de que nos encontramos ainda muito distantes da universalização da educação básica. tal distância, que não pode ser explicada por qual-quer argumento de caráter determinista, decorre de opções de ordem política e econômica que marcam a história do país e que repercutem de forma deci-siva no plano educacional. nesse quadro, não pode-mos ignorar o fato de que a classe trabalhadora bra-sileira não vem constituindo, nas últimas décadas, força social suficientemente expressiva na luta pelo direito ao acesso e à permanência em todo o percurso formativo referente à Educação Básica pública e gra-tuita, em tempo regular, cuja conclusão continua, assim, a constituir um privilégio, conforme assina-lado pelo próprio órgão governamental2.

O país encontra-se, portanto, numa situação aparentemente paradoxal. Por um lado, convive com elevados índices de analfabetismo absoluto e funcional, com baixas taxas de terminalidade do Ensino Fundamental e com possibilidades ainda menores de acesso ao Ensino Médio, atingindo

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particularmente a juventude. tal quadro, entretan-to, não desencadeou, até hoje, por parte do Estado, efetivas medidas de universalização da Educação Básica. Por outro lado, seguindo a tendência forte-mente hegemônica em âmbito mundial, os discursos dominantes atribuem à educação o ônus de colocar o país em lugar de destaque no quadro econômico internacional. A educação é, assim, (re)apresentada como a via de superação das assimetrias de poder entre os países centrais e aqueles que aspiram ao ingresso no bloco hegemônico, bem como entre classes, frações de classe e indivíduos.

Retoma-se, assim, em novas bases coaduna-das com a atual fase de expansão e consolidação do capital, matrizes ideológicas que atravessam as últimas seis décadas e que foram alvo de clássico estudo de Anísio teixeira (1962) ao analisar o que definia como conceitos falsos, por ele qualificados como míticos ou mágicos, que já marcavam, à épo-ca, o pensamento sobre a educação no país. tratava--se, na visão do autor, de atribuir à escola um valor absoluto e de tomar a educação formal como meio automático de ascensão social. teixeira sublinhava, assim, a grande distância entre o que denominou como valores proclamados, em oposição aos valo-res reais norteadores das políticas educacionais.

Condicionantes políticos e econômicos das atuais ações de governo para a Educação de Jovens e Adultos

Particularmente a partir da segunda metade dos anos de 1990, vivencia-se no país as conseqüências das políticas de ajuste e de estabilização macroeco-nômica. tais políticas geraram a elevação das taxas de desemprego, derivada da redução de postos for-mais de trabalho que atingiu, até mesmo, os setores mais dinâmicos da indústria. Concomitantemente, foram geradas e (ou) agudizadas várias condições favoráveis ao crescimento de trabalho precário, in-formal, sazonal ou terceirizado, para os quais acor-reram novos contingentes trabalhadores expulsos do mercado formal e que se somaram àqueles já vi-timados por nossa herança histórica de acumulação capitalista subordinada e dependente.

Agrava-se, assim, um quadro já delineado por nosella ao analisar as relações entre a moderniza-

ção dos processos produtivos e a educação escolar no país. O autor chama a atenção para o fato de que nosso sistema produtivo se configura como “uma mistura inorgânica de formas escravocratas e de for-mas industriais” (1993, p. 161), que impede a cons-trução de uma sociedade organicamente moderna e desenvolvida. Convive-se, assim, com arroubos de modernidade, que se manifestam concomitan-temente a diversas formas de expressão “de um sis-tema produtivo desorgânico, estigmatizado pelo trabalho escravo, logo pelo não-trabalho moderno” (Idem, p. 160). nesse tecido cultural particular, em que arcaico e moderno convivem, se mesclam e mesmo, muitas vezes, se desfiguram, produz-se um quadro desequilibrado e contraditório que imprime “uma profunda ruptura histórica, que atinge o nível dos valores, da fantasia, da organicidade ético-moral nacional” (Ibidem, p. 160).

Essas reflexões remetem à centralidade da cate-goria hegemonia (Gramsci, 1978,1980) que confere contornos claros e específicos à temática educacio-nal. Por um lado, as forças dominantes e as carac-terísticas do atual estágio da produção capitalista não requerem, efetivamente, que a totalidade da população tenha assegurado o direito a toda a es-colaridade básica de qualidade (Rummert, 1995, 2000). Por outro, a difusão massiva da crença de que a educação constitui a chave de ingresso exi-toso na esfera do “télos da economia competitiva” (Rodrigues, 1998) requer a oferta de simulacros de processos educacionais que propiciem à maioria da população a crença de estar recebendo, do Esta-do, as oportunidades de superação individual das marcas do modelo socioeconômico. Introjetado no tecido social o projeto identificatório dominante (Rummert, 2000, 2004), faz-se necessário imple-mentar ações que, ao distribuir certificados de con-clusão de cursos de nível fundamental e médio e de formação profissional, concorrem, de modo signi-ficativo, para construir o “consentimento ativo dos governados” (Gramsci, 1978).

Se, por um lado, a crença no sentido mítico ou mágico da educação se aprofunda nos dias atuais, não podemos ignorar o fato de que esta não consti-tui característica única de nosso tempo ou do Bra-sil. Em seu clássico trabalho sobre a classe operária inglesa, thompson (1987) evidencia que os traba-lhadores, de há muito, buscam na educação a via

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supostamente mais factível para alterar suas condi-ções de vida. Como exemplo, destaca registros, da-tados do final do século XvIII, de reivindicações voltadas ao “direito à educação, pela qual o filho do trabalhador poderia ascender ‘ao nível mais elevado da sociedade’” conforme documentos da época (p. 176) (itálico meu).

Em recente e detido estudo sobre as representa-ções dos jovens portugueses quanto à relação entre escola e a suposta inserção exitosa no sistema pro-dutivo, Alves (2006) afirma, ao analisar os dados obtidos junto a alunos do 9º ano, que esses aderem, de forma expressiva, ao “mito do progresso indivi-dual — expresso na afirmação ‘vale a pena estudar para ter sucesso na vida’” (Idem, p. 30). na conclu-são de seu trabalho, a autora destaca a “fé, que de um modo geral, os jovens depositam na educação e na forma como, acriticamente, aderem às premissas que estruturam os discursos sobre a Educação e o trabalho”. Assinala, ainda, que as opiniões colhi-das junto aos jovens “não podem deixar de ser en-tendidas como o reflexo do triunfo da visão técnico--instrumental da educação e do lugar secundário a que tem vindo a ser confinada a reflexão crítica e política sobre o papel da educação na sociedade” (Ibidem, p. 74).

O caso brasileiro não é distinto e, nele, se eviden-cia que as estratégias das forças dominantes para a permanente construção e manutenção da hegemo-nia, as quais transferem para os indivíduos a respon-sabilidade pelo maior ou menor êxito nas disputas por condições básicas de existência são, também, acolhidas de forma acrítica. num intrincado pro-cesso de distribuição de ilusões, os governos, suces-sivamente, procuram fazer frente à complexidade da estrutura social, a qual requer ações que contem-plem diferentes frações de classe segundo seu poder de reivindicação e organização. As frações mais frá-geis e vulneráveis da classe trabalhadora são alvo de políticas focais do mesmo modo frágeis e passíveis de rápida descontinuidade. Às frações de classe que podem exercer grau mais significativo, potencial ou real, de pressão no jogo das correlações de forças, são dirigidas medidas de caráter mais complexo que, entretanto, permanecem, sob novas roupagens, circunscritas aos limites de um mesmo que não se pretende, efetivamente, transformar. Retoma-se, assim, permanentemente, a máxima de tomaso di

Lapedusa, em O Leopardo: “É preciso mudar para que tudo permaneça como está”.

A Educação de Jovens e Adultos trabalhadores no Brasil atual

O acompanhamento das ações relativas à educação dos jovens e adultos trabalhadores, no período de 2003 a 2006, durante o qual exerceu seu primeiro mandato o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, evi-dencia o fato de que pouco foi efetivamente realizado no sentido de universalizar a educação básica no Brasil. tal constatação sublinha, particularmente, o que diz respeito à permanência no Ensino Fun-damental e ao acesso ao Ensino Médio que, como é afirmado no documento do IBGE, ainda constitui um privilégio.Entretanto, várias iniciativas focais foram imple-mentadas, atendendo a pequenos contingentes populacionais, aos quais, dadas as suas fragilida-des como atores políticos, são oferecidas possibili-dades de elevação de escolaridade com caráter pre-cário e aligeirado, porém anunciadas como porta-doras potenciais de inclusão. trata-se, assim, sobre-tudo, de atuar de forma urgente para controlar dis-funções de um sistema que, por sua origem estrutu-ral, continuará a gerar, cada vez mais, demandantes de novas medidas de caráter emergencial.

De acordo com essa perspectiva, o Governo Federal, particularmente por meio do Ministério da Educação (MEC), do Ministério do trabalho e Emprego (MtE) e da Secretaria-Geral da Presi-dência da República, vem, nos últimos quatro anos, definindo políticas e adotando diversas medidas que visam a ajustar a educação ao projeto de reestrutura-ção produtiva subordinada no plano da hegemonia internacional. É nesse quadro que se destacam as iniciativas destinadas à educação básica e profissio-nal dos jovens e adultos das frações mais desfavore-cidas da classe trabalhadora.

A Educação de Jovens e Adultos (EJA), regu-lamentada como modalidade de ensino, é, sem dúvida, uma educação de classe. Assim, se confi-gura, no Brasil, como oferta de possibilidades de elevação da escolaridade para aqueles aos quais foi negado o direito à educação na fase da vida histo-ricamente considerada adequada. É, mais precisa-

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mente, uma educação para as frações da classe tra-balhadora cujos papéis a serem desempenhados no cenário produtivo não requerem maiores investi-mentos do Estado, enquanto representante priori-tário dos interesses dos proprietários dos meios de produção. tal marca dessa modalidade de ensino não é assumida no Parecer nº 11 do ano de 2000, do Conselho nacional de Educação, que trata das Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Entretanto, o mesmo Parecer, ao atribuir à EJA a função reparadora de uma dívida social, evi-dencia tal destinação de classe.

O caráter de educação com “status” inferior no mercado de bens culturais, conferido à Educação de Jovens e Adultos, está também evidenciado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional nº 9.394 de 1996. Contemplando a EJA com apenas dois artigos, o texto refere à necessidade de que se-jam oferecidas aos jovens e adultos, “oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as caracte-rísticas do aluno, seus interesses, condições de vida e de trabalho” (LDB 9.394/96, Art. 37). Entretanto, os jovens das frações mais desfavorecidas da classe trabalhadora foram duramente atingidos pela redu-ção das idades para a prestação dos chamados exa-mes supletivos3. no Ensino Fundamental, a idade mínima para a prestação do exames passou de 18 para 15 anos e, no Ensino Médio, de 21 anos para 18 (Idem, Art. 38). tal dispositivo legal, que expulsou da escola regular diurna, do Ensino Fundamental, os jovens a partir dos 14 anos de idade, evidencia a ênfase atribuída à certificação, em detrimento da vivência plena dos processos pedagógicos necessá-rios ao efetivo domínio das bases do conhecimento científico e tecnológico.

A legislação ratificou, assim, tanto a subordina-ção da educação dos trabalhadores aos interesses do capital em sua atual fase de acumulação, quanto a valorização de medidas que alteram os indicado-res estatísticos de baixa escolaridade da população, sem que se verifique efetivo compromisso com a oferta de educação de qualidade para a maioria da classe trabalhadora. Destaca-se, ainda, outro as-pecto fundamental, que consiste na transferência da responsabilidade em relação ao direito público subjetivo à educação — do qual são portadores os trabalhadores — do Estado para diferentes inicia-tivas tomadas pelas esferas públicas não-estatais

e privadas a partir dos mecanismos centrados nas práticas de parceria e/ou de filantropia, com ênfa-se nas Organizações não Governamentais, sempre marcadas pelo caráter compensatório.

O destaque dado aqui aos instrumentos legais decorre do entendimento de que representam ex-pressão do grau de poder das forças sociais que disputam hegemonia num determinado momento histórico, posto que a legislação é expressão de correlações de forças. Representam, portanto, fun-damental instrumento de formulação e execução de políticas públicas, as quais, conforme assinala Rua (1998), constituem o “conjunto de decisões e ações destinadas à resolução de problemas políti-cos”. Essa perspectiva nos obriga a constatar o fato de que nem a juventude brasileira, em particular, nem o conjunto da sociedade assumiram para si, de forma plena, a tarefa de lutar pelo direito à edu-cação, deixando assim de criar, para as forças do-minantes, problemas políticos que as constranges-sem a assegurar a universalização das condições, não só do acesso, mas da permanência na escola, assegurando o direito à educação básica de quali-dade para todos.

Ações focais para minimizar efeitos da desigualdade estruturalComo educação de classe, a EJA, enquanto possibi-lidade de elevação de escolaridade e de qualificação dos trabalhadores, é apresentada como geradora de oportunidades diferenciadas de trabalho. Como as-sinalou Marx (1984), iniciativas como essas derivam do entendimento de que a força de trabalho, tomada como mercadoria, é capaz, ela própria, de ampliar suas possibilidades de exploração pelo capital.Em virtude dessa perspectiva, na busca de respon-der a problemas concretos como o da desigualdade socioeconômica, que é inerente ao sistema-capital, o conhecimento produzido nos limites da lógica conservadora ou, mesmo, da reformista os percebe como meras disfunções do sistema, do que resul-ta um conjunto de medidas que permanentemente buscam minorar conseqüências mas não eliminam suas determinações estruturais.

É inegável que, desde 2003, a EJA tornou-se objeto de um número bem mais significativo de ini-ciativas do que nos períodos governamentais ante-

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riores. Entretanto, tais iniciativas se apresentam como claras explicitações do quadro já delineado. A centralidade de tais ações reside na ampliação de mecanismos de certificação, relativos à conclusão do Ensino Fundamental, à formação profissional — particularmente a de caráter inicial, que não exige níveis de escolaridade mínimos, conforme previsto na legislação atual — e, com menor ênfase, ao tér-mino do Ensino Médio. As ações governamentais restringem-se, ainda, a metas quantitativas modes-tas, que não fazem frente ao grande contingente populacional sem escolaridade completa. Soma--se a isso a clara ausência de uma política unitária e fecunda que aponte, de forma segura, para a efe-tiva democratização do acesso às bases dos conheci-mentos científicos e tecnológicos e não para a mera ampliação de indicadores de elevação de escolari-dade da classe trabalhadora destituída do direito à educação.

Entre essas iniciativas, podem ser destacados o Projeto Escola de Fábrica, o Programa nacional de Inclusão de Jovens — PROJOvEM, o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio para Jovens e Adultos — PROEJA e o Exame nacional de Certificações de Competências de Jovens e Adultos — EnCCEJA, que abordaremos brevemente, a seguir, tomando por base os docu-mentos oficiais que os instituíram.

Projeto Escola de FábricaO Projeto Escola de Fábrica4 propõe oferecer cursos de formação profissional inicial, com duração míni-ma de 600 horas, para 10.000 jovens por ano, em 500 Unidades Formadoras, criadas nas empresas, cada uma atendendo 20 alunos. Pretende-se com isso possibilitar que jovens, com idade de 15 a 21 anos, pertencentes a famílias com renda “per capita” me-nor ou igual a um salário mínimo, sejam incluídos socialmente, por meio da formação profissional.

O atendimento dos jovens está, inicialmente, condicionado à matrícula no ensino público regu-lar, nas etapas finais do ensino fundamental ou no ensino médio (para os de idade entre 15 a 18 anos), bem como à conclusão da alfabetização no Pro-grama Brasil Alfabetizado ou à matrícula na Edu-cação de Jovens e Adultos, para aqueles com até 21 anos. Esses jovens receberão, ao longo de seis meses — tempo de duração do curso — uma Bolsa Auxílio

no valor mensal de meio salário mínimo, financiada, nos dois primeiros anos de implantação do Projeto, pelo MEC, com o intuito de estimular as empresas a participarem.

A iniciativa, no âmbito do MEC, é de responsa-bilidade direta da Secretaria de Educação Profissio-nal e tecnológica. Além do Ministério, são respon-sáveis pelo Escola de Fábrica as Unidades ou Ins-tituições Gestoras, às quais compete a implantação do Projeto nas empresas. tal responsabilidade con-siste em gerir os recursos a serem repassados, formu-lar a concepção pedagógica do Projeto, implementá--lo e acompanhá-lo, elaborar e distribuir material didático, treinar os instrutores, proceder à sensi-bilização em relação à proposta e selecionar os can-didatos, certificar os alunos, acompanhá-los poste-riormente na condição de egressos e avaliar o pro-cesso. São consideradas potenciais Unidades Ges-toras órgãos públicos ou privados, Organizações não-Governamentais (OnGs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPES) ou outras instituições formalmente sem fins lucrati-vos, que comprovem experiência na gestão de proje-tos educacionais ou sociais.

As Unidades Formadoras são as empresas de grande, médio ou pequeno porte, de qualquer natu-reza, incluindo-se as prestadoras de serviço, as res-ponsáveis por empreendimentos agro-industriais e rurais. Segundo o Projeto, as empresas são as detentoras do ambiente educativo necessário à for-mação dos jovens participantes. A elas cabe custear o “ambiente escolar” (sala de aula com os equipa-mentos necessários) montado em suas dependên-cias, os uniformes, alimentação e transporte dos alunos, ceder os funcionários que serão instrutores e, ainda, indicar suas necessidades de formação profissional sobre as quais estarão assentados os projetos pedagógicos.

São explicitamente mencionadas, ainda, as Ins-tituições de Educação Profissional e tecnológica chamadas a oferecer apoio às Instituições Gestoras (ou mesmo a atuarem nessa condição), auxiliando na criação dos cursos, na concepção metodológica, na formação de instrutores, na elaboração de material pedagógico, bem como na avaliação e certificação. Coloca-se, assim, no Projeto, instituições de ensino federais a serviço do empresariado, procedendo a trabalhos pedagógios diretamente direcionados a

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seus interesses, expressos na organização curricular, cujos conteúdos são por eles definidos.

Destaca-se, ainda, que o documento referente ao Projeto Escola de Fábrica anuncia que se pretende, com sua realização, provocar os seguintes impactos na sociedade: a) “inclusão social de jovens de 16 a 21 anos de baixa renda, por meio de formação profis-sional e ampliação das possibilidades de inserção no mundo do trabalho”; b) “reconhecimento do princí-pio educativo dos espaços produtivos”; c) “amplia-ção da responsabilidade social do empresariado brasileiro” (MEC/SEtEC, 2005, p. 3).

A suposta perspectiva “romântica” expressa pelo documento do MEC, ao referir à responsabi-lidade social do empresariado brasileiro, está cen-trada nas teses que afirmam estarem superados os antagonismos de classe e anunciam a humanização do capital em favor da classe trabalhadora. Assim, as relações entre o capital e o trabalho possuem hoje, supostamente, um caráter marcadamente coopera-tivo e solidário, expressão da consciência social do empresariado, que não deixa lugar às disputas por poder ou a antagonismos.

O real sentido de tal perspectiva é desvelado pela presidente da Fundação Iochpe, que desenvolve projeto cuja estrutura foi inteiramente reprodu-zida pelo Escola de Fábrica. Declara Evelyn Iochpe sobre a necessidade de que o empresariado desen-volva ações de caráter social: “Cai-se, portanto, na lei de fogo da responsabilidade social montada por Keith Davis: ‘a longo prazo, quem não usa o poder de uma maneira que a sociedade considera responsá-vel, tenderá a perder este poder’” (Iochpe, 1998) (itá-licos meus).

tal quadro evidencia que o MEC, coadunado com os parâmetros da atual ordem estabelecida pelo sistema capital, executa um duplo movimento de terceirização: por um lado, terceiriza instituições de diferentes tipos, transferindo recursos públicos para que executem trabalho educativo (que deveria ser de responsabilidade estrita do Ministério) junto aos jovens da classe trabalhadora; por outro, é tercei-rizado pelo empresariado para gerenciar uma ação educativa que atende a seus interesses imediatos em relação à força de trabalho e mediatos no que diz res-peito a iniciativas que concorram para a manutenção da hegemonia do capital. Estamos, portanto, diante de um exemplo do que afirmou Ramonet: “Os pode-

res públicos não passam, na melhor das hipóteses, de terceirizadores da empresa. O mercado governa. O governo gere” (1998, p. 60).

PROJOVEMO Programa nacional de Inclusão de Jovens: Edu-cação, Qualificação e Ação Comunitária — PRO-JOvEM5, implantado no Brasil a partir de 2005, está diretamente vinculado à Secretaria-Geral da Presidência da República, que o implementou em parceria com o MEC, o tEM e o Ministério do De-senvolvimento Social e Combate à Fome.

Segundo o documento-base que o apresenta, o PROJOvEM é “voltado para o segmento juvenil mais vulnerável e menos contemplado por políti-cas públicas vigentes” (Presidência da República, 2005). São seus destinatários jovens de 18 a 24 anos, com escolaridade superior à 4ª série, mas que não concluíram as oito séries do Ensino Fundamental, que não possuam vínculos formais de trabalho.

Aos participantes, o PROJOvEM pretende ofe-recer, de forma integrada, a conclusão do Ensino Fundamental, qualificação profissional e capacita-ção para a execução de ações comunitárias visando ao “engajamento cívico” (Idem). Atribui-se, ainda, ao Programa a possibilidade de contribuir, especifi-camente, para a re-inserção do jovem na escola, cur-sando o Ensino Médio, embora as vagas nas redes públicas de ensino não sejam objeto da ampliação necessária para atender às demandas presumivel-mente geradas pelo Programa. Anuncia-se, ainda, a intenção de propiciar a inclusão digital como ins-trumento de inserção produtiva e de comunicação, ignorando-se o fato de que somente 15% do total de jovens brasileiros têm acesso a microcomputadores (IPEA, 2006), percentual que não inclui a popu-lação de baixa renda, à qual se destina o PROJO-vEM. Esse conjunto de metas deverá ser atingido num curso de 5 horas diárias por um período de 12 meses ininterruptos. Aos alunos matriculados é concedida uma bolsa mensal no valor de R$ 100,00 (correspondente a aproximadamente 35 euros).

É importante assinalar, ainda, que o Programa atende às capitais dos 26 estados brasileiros, a 34 outros municípios das regiões metropolitanas e à capital do país. A justificativa oficial para tal de-limitação geográfica reside na alta concentração de jovens destituídos dos direitos fundamentais

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nas regiões metropolitanas e, também, decorre da “conjugação entre carências econômicas, presença do narcotráfico e certas práticas de corrupção poli-cial” (Idem) nessas mesmas regiões.

tais argumentos estão fortemente marcados pela associação, no imaginário social, da juventude “po-bre” com as chamadas “classes” perigosas. Para as camadas mais favorecidas da sociedade, os jovens oriundos da base da classe trabalhadora são poten-ciais delinquentes, constituindo, portanto, grave ameaça à ordem social. A concepção de que o jovem das frações mais pauperizadas da classe trabalhado-ra é alvo fácil do mundo do crime é explicitada cor-rentemente, mesmo pelos profissionais envolvidos com o Programa. Como exemplo, podemos citar o coordenador geral do PROJOvEM da cidade do Rio de Janeiro, Pedro veiga, que afirma em entre-vista concedida ao Observatório Jovem: “R$ 100,00 não mantêm jovem em programa nenhum, princi-palmente nesta idade. O tráfico, a informalidade, a ilegalidade em qualquer sentido paga muito mais do que isso. Os R$100 são, literalmente, uma bolsa para que o cara possa se deslocar, fazer um lanche — apesar de já ter lanche no projeto — é uma ajuda.” (Disponível em: www.uff.br/obsjovem).

Como já mencionado, o PROJOvEM objeti-va oferecer, em apenas um ano, os conhecimentos necessários à conclusão do Ensino Fundamental e formação profissional. Pretende-se, como anun-ciado no documento-base, propiciar as condições para que o jovem possa “compreender os proces-sos sociais e os princípios científicos e tecnológicos que sustentam a produção da vida na atualidade” (Presidência da República, 2005). Embora não possamos, aqui, analisar a real viabilidade peda-gógica dessas intenções, não é difícil perceber que tais objetivos não podem ser alcançados de modo a assegurar, a todos os que participam do Programa, efetivo acesso às bases do conhecimento científico e tecnológico, em tão curto espaço de tempo, so-bretudo se considerarmos que a organização curri-cular do Programa prevê apenas duas horas de aula semanais para o estudo da língua portuguesa, duas para língua estrangeira e, ainda, a mesma carga ho-rária para matemática, ciências humanas e ciências da natureza. As outras três horas de cada dia são ocupadas com a formação profissional, noções de informática e ação comunitária.

Outro aspecto a ser destacado no documento é a forma como aborda o perfil dos jovens que têm “acesso restrito à educação de qualidade e frágeis condições para a permanência nos sistemas escola-res”, além de “baixo acesso às atividades de esporte, lazer e cultura” (Presidência da República, 2005), o que é corroborado com a apresentação posterior de dados estatísticos sobre a escolaridade dos jovens. tais constatações são tratadas no documento como caraterísticas inerentes de parcela expressiva da população e não como explicitação do quadro de injustiça social do país e da ausência de efetivas polí-ticas de promoção, por parte dos poderes públicos, da igualdade de direitos.

Ao longo do texto, assim como nas muitas apre-sentações oficiais do Programa, são feitas referên-cias recorrentes ao protagonismo juvenil. É de supor--se, assim, que os jovens, ao passar a exercer plena-mente sua cidadania, se reconheçam como porta-dores de direitos públicos subjetivos, entre os quais o direito à educação básica de qualidade, indepen-dentemente de sua origem de classe. não é outra a expectativa gerada por afirmações como “assumir responsabilidades frente aos problemas que afetam o país” ou “identificar problemas e necessidades de sua comunidade, planejar e participar de iniciativas concretas, visando à sua superação”, já citadas.

Como a superação de problemas como os acima mencionados exige ampla mobilização da sociedade contra as opções político-econômicas que orientam as políticas implementadas pelo Governo Federal, é lícito indagar quais as características e os limites da ação comunitária prevista para os jovens atendidos pelo Programa e tutelados por agências executoras do Estado.

Essa questão encontra claros indícios de respos-ta em outra afirmação de Pedro veiga, na entrevista já citada:

“O projeto tem, então, a proposta de que o jovem leve uma carga de atividades para dentro da comuni-dade, isso representa um ganho primeiro individual, a partir do momento que ele começa a se relacionar de uma forma diferente com a comunidade dele e pra comunidade, obviamente. Haverá, portanto, [por exemplo] 1.200 jovens num final de semana por mês, pelo menos, fazendo uma atividade grande na comu-nidade: recreação com as crianças, esclarecimento na

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questão das drogas, esclarecimento na questão da ati-vidade sexual, ou efetivamente fazendo alguma coi-sa. Se [a meta é] a questão da construção civil, será possível ter, depois de 3 meses, 1200 jovens pintando a escola, fazendo uma calçada. O projeto tem a propos-ta de interligar o plano de qualificação, de formação e de ação comunitária de forma integrada” (Dispo-nível em: www.uff.br/obsjovem).

trata-se, portanto, no caso do PROJOvEM, de um tipo de ação comunitária restrita ao atendimen-to de demandas pontuais, exercida pelos jovens num tempo tutelado e que pouco ou nada acrescen-tará à sua formação integral, ao contrário do anun-ciado no documento da Presidência da República. Espera-se, portanto, que os jovens atuem pintando prédios públicos, construindo habitações precárias ou calçadas, ocupando-se como recreadores nas chamadas “comunidades carentes”. Ou seja, a ação comunitária esperada situa-se no vácuo deixado pelo próprio poder público, limitada pela ordem social já estabelecida, consistindo numa contrapar-tida ao ínfimo valor da bolsa mensalmente recebida a título de auxílio. não é demais assinalar o fato de que, também para a “comunidade” em que será de-senvolvida a ação, os resultados de caráter pontual não significarão alterações qualitativas e duradou-ras em suas precárias condições de vida.

Evidencia-se, também, a fragilidade da argumen-tação que apresenta como um dos aspectos positivos do Programa o acesso às bases do conhecimento científico e tecnológico. tal acesso deveria ocorrer a partir de uma ação pedagógica que integrasse as três vertentes do Programa: elevação da escolaridade, formação profissional e ação comunitária. na reali-dade, o leque estreito de possibilidades de atuação, circunscrito a limites já demarcados e pontuais, res-tritos a minimizar algumas das muitas expressões da “pobreza”, frustra as expectativas criadas em re-lação à ação comunitária. A análise da proposta e de sua implementação revela que o PROJOvEM convi-da os jovens ao engajamento em um projeto que lhes pré-determina o futuro nos marcos já estabelecidos para as frações mais exploradas da classe trabalha-dora. Do mesmo modo, as poucas horas destinadas à formação geral e profissional, evidenciam que, para a grande maioria dos atendidos, a experiência propiciada pelo projeto será pouco fecunda.

Outro aspecto a ser, ainda, registrado refere-se ao retrocesso que a implementação do PROJOvEM representou em relação à conquista duramente obti-da pelos profissionais da educação, no que se refere à transferência de ações de caráter educacional das agências de assistência social para as efetivamente envolvidas com a educação. Retrocede-se, assim, a práticas de transferência de recursos e de responsa-bilidades para esfera da assistência social, corrobo-rando um processo que já vinha sendo identificado em diferentes estudos, entre os quais se destaca o de Pochmann (2006).

nesse sentido, o PROJOvEM representa uma perda sensível para a educação pois que, além de seu caráter assistencialista, representa uma inicia-tiva que não oferece à juventude efetivo acesso à educação mas, apenas, à certificação de conclusão do Ensino Fundamental de discutível qualidade. O PROJOvEM constitui mais um exemplo de ação política que, sob a aparência da inovação, gera a continuidade da submissão ao instituído. E o ins-tituído, em nosso país, é gerador de diferenças de caráter sócio-econômico cada vez mais extensas e profundas. Ao analisar o Programa, apresentado pelo Governo Federal como elemento-chave de sua política nacional para a juventude brasileira, pode-mos perceber que esta não se apresenta como efetiva expressão de compromisso com a democratização e universalização da educação que envolva, numa direção comum e orgânica, a totalidade social. Ao contrário, sublinha, uma vez mais, o caráter dual do sistema educacional brasileiro, como expressão da estrutura socieconômica do país.

PROEJAOutra iniciativa a ser destacada é o Programa na-cional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos — PROEJA, sobre o qual apresen-tamos, ainda, análise preliminar. O PROEJA foi ins-tituído pelo Decreto 5.478 de 2005, posteriormente reformulado pelo Decreto 5.840 de 2006. Segundo esse último Decreto, o PROEJA abrange os seguin-tes cursos e programas de educação profissional: a) formação inicial e continuada, cuja oferta pode ser articulada com a elevação de escolaridade em nível de Ensino Fundamental; b) educação profissional técnica de nível médio, que poderá ocorrer de for-

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ma integrada ou concomitante à elevação de escola-ridade em nível de Ensino Médio.

Pelo primeiro documento legal, ficavam obriga-dos a oferecer o PROEJA todos os Centros Fede-rais de Educação tecnológica — CEFEts, as Es-colas técnicas e Agrotécnicas Federais e as Escolas técnicas vinculadas às Universidades Federais. Estabelecia-se, também, que do total de vagas ofe-recidas em todos os cursos de cada unidade edu-cacional, no ano de 2005, 10% deveriam ser desti-nados ao referido Projeto, reservando-se o MEC a atribuição de definir, nos anos subseqüentes, os novos quantitativos. A criação do Programa, assim, não concorreu para a ampliação do acesso, mas provocou o deslocamento de vagas já existentes, em todos os níveis de cada unidade, para o atendi-mento da nova ação, posto que sua oferta se dá em detrimento da criação de outras turmas de alunos.

Outro aspecto do Decreto 5.478/2005 a ser men-cionado evidencia a concepção de EJA corrente no âmbito do próprio MEC e refere-se ao estabeleci-mento de uma carga horária máxima, de 1.600 ho-ras para os cursos de formação inicial e continuada e de 2.400 horas para os cursos de educação profis-sional técnica de nível médio. A limitação do má-ximo de horas, bem como sua redução em relação aos cursos regularmente oferecidos, foram assim avaliadas por Frigotto et al.:

“Observamos algumas incoerências na disposição sobre as cargas horárias que, ao nosso ver, incorrem em deslizes éticos, políticos e pedagógicos. Primeira-mente, não há porque defini-las como máximas. A redução da carga horária de cursos nas modalidade EJA com relação aos mínimos estabelecidos em lei para a educação regular não deve ser uma imposi-ção, mas sim uma possibilidade (...) Limitar a carga horária dos cursos a um ‘máximo’ é, na verdade, ad-mitir que aos jovens e adultos trabalhadores se pode oferecer uma formação mínima”(Frigotto et al., 2005, pp. 318-9)

Entre outros aspectos bastante problemáticos, destaca-se, também, o fato de o Programa ter sido implementado sem as necessárias medidas de su-porte compatíveis com uma política pública. So-mente ao final de 2005 foi constituído Grupo de trabalho para elaboração de Documento Base re-

lativo ao PROEJA, divulgado em 2006. nesse do-cumento, merecem comentários alguns pontos que explicitam o caráter ambivalente da proposta.

O primeiro é a ampliação do espectro de ins-tituições que passaram a poder oferecer o PROE-JA, para além das definidas no primeiro Decreto, nomeadas como em Instituições Proponentes (de âmbito público: Instituições de Ensino Federais, Estaduais e Municipais de Educação, bem como Secretarias de Educação) e Instituições Parceiras, referidas como “quaisquer organizações da socie-dade civil que não visem lucro pecuniário na oferta de curso no âmbito desse Programa”. O documento destaca, entretanto, como “parceiras preferenciais instituições pertencentes ao Sistema S”6 (Proeja, Documento Base, p. 55. Itálico meu), num claro movimento de oposição em relação aos pressupos-tos anunciados nas partes introdutórias do mesmo documento e evidenciando a forte capacidade de intervenção do Capital nas propostas de educação da classe trabalhadora apresentadas pelo Governo Federal.

Outro aspecto explicita o caráter híbrido da fun-damentação teórico-política do Documento Base. Seus autores, ao apresentarem os princípios que devem nortear o PROEJA, afirmam que o “quarto princípio compreende o trabalho como princípio educativo” (Ibidem, p. 35), compreendido não em sua perspectiva de emprego, mas como forma de constituição da própria humanidade. tal princípio, entretanto, conflitua diretamente com a concepção de trabalho como princípio educativo, tal como o é concebido pelos “parceiros preferenciais” eleitos pelo próprio MEC: os empresários que regulam a formação dos trabalhadores segundo as necessida-des imediatas postas pelo mercado.

não pode deixar, ainda, de ser destacado que o documento incorpora, simultaneamente, referên-cias a críticas radicais ao atual estágio do modo de produção e teses e conceitos inteiramente confor-mados à ordem. Exemplo expressivo diz respeito à recorrente referência à “educação ao longo da vida”. Aqui verifica-se a ausência da percepção de seu caráter conservador e subordinado à lógica do mercado, conforme evidencia Canário quando, em rica discussão sobre o tema, destaca nessa proposta a fundamentação da “lógica argumentativa: a su-bordinação funcional das políticas de educação e

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de formação à racionalidade económica dominante, baseada na produção e acumulação de riqueza sob a forma de uma tendência inquieta e insaciável para acumular capital” (Canário, 2003, p. 195).

Como vemos, o PROEJA surge, reformula-se e amplia-se em meio a um conjunto de contradições que demandam aprofundamento para a sua plena compreensão. De todo modo, é necessário regis-trar que, em que pesem os muitos limites deriva-dos do projeto societário de caráter subordinado e dependente em que se inscreve e que o conforma, o Programa constitui uma iniciativa que, a ser levada adiante, pode possibilitar alguns avanços no âmbito da Educação de Jovens e Adultos trabalhadores, em particular por iniciativas que venham a ser tomadas no âmbito dos CEFEts e demais escolas públicas federais, como previsto no Decreto original.

ENCCEJAConcluímos esta abordagem sobre ações do Governo Federal relativas à Educação de Jovens e Adultos trabalhadores com uma breve referência ao Exame nacional de Certificações de Competências em Educação de Jovens e Adultos — EnCCEJA, o qual constitui “instrumento de avaliação para aferi-ção de competências e habilidades de jovens e adul-tos” (InEP, 2005). Sua primeira versão foi apresen-tada pelo Instituto nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais — InEP, vinculado ao Ministério da Educação, ao final do ano 2002, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Em outubro de 2004, o novo governo, seguindo a opção de imple-mentar ações apenas aparentemente renovadas, ins-titui o Exame nacional de Avaliação da modali-dade de Educação de Jovens e Adultos, pela Porta-ria nº 3.415. Em março de 2005, após reformulações pouco significativas em seu conteúdo, o Exame é implementado pela Portaria nº 44, do mesmo órgão, passando a integrar o conjunto de instrumentos de avaliação da Educação Básica no país.

Um primeiro aspecto a destacar é o fato de que esse exame nacional, ao contrário dos demais, é o único ao qual é conferida a possibilidade de certi-ficar, em nível do Ensino Fundamental ou Médio, os jovens e adultos sem os referidos graus de esco-laridade. Pretende-se, assim, “possibilitar uma ava-liação de competências e habilidades básicas de jovens e adultos de acordo com os preceitos legais,

que atenda às necessidades e ao perfil dessa popula-ção que não teve oportunidade de acesso à escola-ridade regular na idade própria” (InEP, 2005) (Itá-lico meu).

Assim, o EnCCEJA apresenta, como função principal, certificar jovens e adultos que não fre-qüentaram a escola regular básica, mas necessi-tam comprovar serem portadores dos conhecimen-tos equivalentes aos níveis de ensino da Educação Básica. O conteúdo de tal necessidade, tal como é abordada nos documentos aqui referidos, vai ao encontro da valoração do “diploma” em detrimento do valor do conhecimento. Isso pode ser confir-mado ao cotejar o grau de complexidade e a ampli-tude dos conhecimentos avaliados pelo EnCCEJA e pelo Exame nacional do Ensino Médio — EnEM. Este último, em vigor desde o ano de 1998, destina--se àqueles que cursam a escola regular. Embora os documentos relativos ao EnCCEJA afirmem serem ambos os exames estruturados a partir da mesma “matriz de competências”, o que se evidencia pela comparação é o fato de que o EnCCEJA, em detri-mento da efetiva aprendizagem, reforça o significado simbólico do certificado, concorrendo para ampliar seu “valor-de-troca”. Sua finalidade é, assim, pos-sibilitar a obtenção de certificados de conclusão de cursos e não propiciar as condições de acesso ao conhecimento.

A comparação entre os objetivos atribuídos ao EnCCEJA e ao EnEM permite também reconhecer a dualidade do sistema educacional. Segundo a Por-taria 06, de fevereiro de 2005, o InEP define, como um dos objetivos do EnEM, “oferecer uma referên-cia para que cada cidadão possa proceder à sua auto--avaliação com vistas às suas escolhas futuras, tanto em relação ao mercado de trabalho quanto em rela-ção à continuidade de estudos” (InEP, Portaria 06, Artigo 2º, Inciso I) (itálicos meus). Para o público a que se destina, ao EnCCEJA é atribuído o objetivo de “constituir uma referência nacional de auto-avaliação para jovens e adultos por meio de avaliação de compe-tências e habilidades, adquiridas no processo esco-lar ou nos processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil” (InEP, Portaria 44, Art. 2º, Inciso I).

A comparação entre os dois objetivos nos per-mite perceber as diferenças que caracterizam o pre-

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tendido pelos dois exames, que se destinam a públi-cos marcados por distinções de caráter socioeconô-mico. Para aqueles a quem o Estado não assegurou o direito à Educação Básica, isto é, os pertencentes às frações mais pauperizadas da classe trabalhadora, não são cogitadas nem as “possibilidades de esco-lha”, nem “a continuidade dos estudos”.

Ainda segundo documentos do InEP, as com-petências a serem aferidas correspondem aos “eixos cognitivos básicos, a ações e operações mentais que os jovens e adultos devem desenvolver como recur-sos mínimos que os habilitem a enfrentar melhor o mundo que os cerca” (Documento Básico, Livro Introdutório, 2003, p. 15) (itálico meu). Mais uma vez legitima-se, em documentos oficiais, a lógica do mínimo para as frações da classe trabalhadora às quais foi negado o direito de acesso à escola, como em outras iniciativas anteriormente mencionadas.

Conclusão

Com a preocupação de não promover mudanças estruturais na ordem societária, são implementadas medidas que visam a minimizar, de forma superficial, as consequências das opções político-econômicas das forças dominantes, condicionadas por interesses corporativos do capital e pelo alinhamento subordi-nado do país ao quadro hegemônico internacional. Assim, o Governo Federal adota procedimentos de democracia filantrópica, de caráter demonstrativo, em que proliferam as políticas focais, de que emer-gem programas que oferecem bolsas ou diferentes tipos de auxílio e requerem contrapartidas simbóli-cas, no mais claro modelo neoliberal.

Ademais, cabe ressaltar que, ao contrário do difundido pelo discurso oficial, as iniciativas re-feridas não constituem a novidade anunciada. Ao contrário, à semelhança de práticas em uso recor-rente pelas esferas de poder, se apresentam, por ve-zes sob nova roupagem, como ações de caráter de emergência, que vêm preencher as enormes lacunas deixadas pela ausência de políticas de universaliza-ção de direitos. Além disso, evidenciam que o atual governo não optou, até o momento, por promover políticas que causem impactos duradouros no sen-tido de superar as desigualdades estruturais que caracterizam o país e, por decorrência, a educação.

A história da educação brasileira demonstra que tais medidas não oferecem respostas concre-tas e de longo prazo para a imposição ético-política de universalização do acesso e das condições ob-jetivas de permanência numa escola de qualidade para todos, independentemente de sua origem de classe. Insistir no uso da categoria classe trabalha-dora ao nos referirmos àqueles que não têm asse-gurado o direito à educação constitui uma opção teórico-metodológica que não abdica de sublinhar o fato, hoje negado, de que a distribuição desigual de oportunidades educacionais continua a ser uma questão derivada da origem socioeconômica e das assimetrias de poder daí advindas.

O teor das ações aqui tratadas explicita o fato de que tratamos de propostas destinadas a jovens pobres que se encontram supostamente na cha-mada “situação de risco social”, para que eles, per-manecendo na base da pirâmide socioeconômica, recebam uma formação que lhes pré-determina um futuro conformado à ordem societária que não se intenciona transformar.

A perspectiva geradora de tais medidas estrutura--se a partir de falsas premissas, entre as quais se des-tacam a naturalização da pobreza e a relação linear entre escolaridade e superação individual das desi-gualdades. Essas grandes máximas míticas ou mági-cas, que as forças dominantes difundem em larga escala, valendo-se dos meios de comunicação de massa como aliados preferenciais, constituem, nos processos de correlações de forças, mais do que a quimera da inclusão anunciada. Configuram-se — apesar das concretas evidências em contrário apre-sentadas pela vida cotidiana — como recursos de controle social, concorrendo de forma decisiva para a adesão acrítica ao projeto de sociedade que cada vez mais favorece àqueles que detêm o poder, ou que nas palavras de Forrester (1997), alimentam o (e se alimentam do) “horror econômico”.

Qualquer iniciativa que se pretenda construtora de concretas possibilidades de superação ou, mes-mo, de redução sensível de desigualdades, ainda que, como destaca Oliveira (1998), nos marcos e li-mites do capitalismo, não poderá advir de propos-tas que se afastam, de forma tão clara, da universa-lização da educação.

não podemos nutrir a ilusão de que medidas res-tritas e “focalizadas” irão alterar, minimamente, o

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quadro de dualidade que marca a educação brasi-leira, como expressão cruzada de nossas históri-cas contradições internas e da globalização do capi-tal. É, também, evidente que não há espaço, na for-mação proposta pelas iniciativas analisadas, para o pensamento rebelde que concorra para fragilizar as bases do “capitalismo auto-reformador” (Mészáros, 2002, p. 38).

Ao finalizar, entendemos ser importante des-tacar que as considerações aqui apresentadas não derivam da ingenuidade epistemológica que leva-ria a supor que o sistema-capital venha a promover a educação que efetivamente interessa aos trabalhado-res e possa, assim, concorrer voluntariamente para a corrosão de suas próprias bases (Rummert, 1995). Conquistar essa educação é tarefa a ser enfrentada

pela própria classe trabalhadora. Do mesmo modo, entendemos não constituir prática fecunda o mero “espetáculo da denúncia”.

Entretanto, como sublinha Brunhoff, “embora tenhamos pouca audiência no momento atual, a análise crítica dos dogmas liberais deve continuar, tentando--se situá-la em relação àquilo que o autor percebe hoje das práticas sociais” (1991, p. 9). Se vivemos hoje, tem-pos denominados neoliberais ou pós-modernos, isso não torna menos concreta, embora metamorfoseada, a máxima de Adam Smith (1983): “instrução para os trabalhadores, porém em doses homeopáticas”. Con-sideramos, assim, que trazer à luz os simulacros que dão sustentação a esta realidade pode contribuir para um processo de construção de mudanças substanti-vas na vida da classe trabalhadora.

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notas

1. Este texto apresenta resultados parciais da pes-quisa Educação básica e profissional de trabalhado-res. Políticas públicas e ações do Estado, do trabalho e do Capital, empreendida com o apoio do CnPq.

2. no Brasil, a Educação Básica, conforme os ins-trumentos legais, é constituída pelo Ensino Fun-damental, com duração de oito anos e pelo Ensino Médio, com duração de três anos. Cumpre assinalar que, até hoje, a frequência ao Ensino Médio não é obri-gatória e que o número de vagas nas redes públicas de ensino é substantivamente inferior à demanda.

3. São denominadas como Exames Supletivos as provas aplicadas por Secretaria de Educação Muni-cipais ou Estaduais com o objetivo de proporcionar aos jovens e adultos que não concluíram o Ensino Fundamental ou Médio, a certificação equivalente

4. Os documentos que serviram de base à aná-lise estão disponíveis em: http://portal.mec.gov.br/setec/index.php?option=content&task=view&id=479&Itemid=602 (01-2007). também para maior conhecimento acerca do Projeto Escola de Fábrica, pode ser consultado: ver Rummert (2005b), tra-balho em que as considerações aqui apresentadas foram detidamente desenvolvidas

5. O PROJOvEM foi analisado no trabalho de Rummert (2007), Intervenções comunitárias como controle social na sociedade brasileira: o caso do PROJOvEM, apresentado no Congresso Interna-cional Intervenção com Crianças, Jovens e Famílias. Braga, Universidade do Minho. 08 a 10 de fevereiro de 2007. nessa apresentação foi dado destaque às questões relativas à intervenção comunitária, con-forme prevista no Projeto.

6. O chamado “Sistema S” tem sua origem na dita-dura de Getúlio vargas, quando foi criado o Serviço nacional de Aprendizagem Industrial — SEnAI. É constituído, hoje, por entidades vinculadas às Confederações que representam o empresariado dos diferentes setores produtivos (indústria, comércio, agricultura, transportes entre outros) com a finali-dade de qualificar e propiciar atividades de cultura e lazer aos trabalhadores. As organizações do Sis-tema “S” são: o Serviço nacional de Aprendiza-gem Industrial (SEnAI), o Serviço Social da Indús-tria (SESI), o Serviço nacional de Aprendizagem Comercial (SEnAC), o Serviço Social do Comér-

cio (SESC), o Serviço nacional de Aprendizagem Rural (SEnAR), o Serviço nacional de Aprendiza-gem em transportes (SEnAt), o Serviço Social de transportes (SESt), o Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas (SEBRAE) e o Ser-viço nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP). É fundamental assinalar que o Sis-tema S é financiado com recursos chamados “para-fiscais”, recolhidos pela Previdência Social e devol-vidos às diferentes Confederações. tais recursos são considerados públicos, uma vez que as empresas o tratam como mais uma contribuição e, em decor-rência, seu valor seja computado no preço final dos produtos e serviços. tal procedimento faz com que o ônus pela manutenção do Sistema S recaia sobre a população brasileira. Detido estudo sobre suas ori-gens, vinculadas à Confederação nacional da Indús-tria e sobre o que efetivamente representam como difusores da ideologia necessária ao capital, pode ser encontrado em Rodrigues (1998).

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Empregabilidade, contextos de trabalho e funcionamento do mercado de trabalho em Portugal

António José AlmeidaEscola Superior de Ciências Empresariais/IP Setúbal

[email protected]

Resumo:O presente artigo procura contribuir para a problematização do conceito de empregabili-dade, nomeadamente através da discussão do seu potencial heurístico para a compreen-são de algumas das dinâmicas do mercado de trabalho em Portugal.Partindo da revisão de literatura nacional e internacional, discutimos o papel das empre-sas na promoção da empregabilidade quer seja através das suas políticas de formação pro-fissional contínua quer seja através dos modelos de organização do trabalho adoptados.

Palavras-chave:Empregabilidade, formação profissional, organização do trabalho e gestão de recursos humanos.

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Introdução

A introdução do conceito de empregabilidade nos diferentes discursos sobre a organização do mer-cado de trabalho tem vindo a pôr em causa a ca-pacidade dos sistemas de educação e de formação em dotar os indivíduos das competências desejadas pelos sistemas económicos. Este enfoque contribui para ocultar o papel central dos contextos de tra-balho na promoção e/ou manutenção dessa mesma empregabilidade.

Partindo da realidade empírica portuguesa, propomo-nos discutir o papel dos contextos de trabalho no desenvolvimento da empregabilida-de dos trabalhadores quer por via da importância que as empresas atribuem à formação profissional contínua enquanto instrumento de suporte ao de-senvolvimento e/ou manutenção de competências quer por via da adopção de formas organizacionais potenciadoras da auto-aprendizagem.

Com os resultados obtidos pretendemos de-monstrar a existência de um conjunto de limita-ções estruturais que põem em causa a relevância do conceito de empregabilidade para a caracterização das lógicas subjacentes ao funcionamento do mer-cado de trabalho em Portugal, tendo em conta os baixos níveis de habilitação escolar da população, o reduzido investimento das empresas na formação profissional contínua e o predomínio de formas or-ganizacionais tayloristas.

Empregabilidade: um conceitopolissémico e multidimensional

Utilizada fundamentalmente como uma “bu-zzword” quer no plano da definição de políticas pú-blicas orientadas pelo primado da individualização quer no plano dos discursos gestionários adeptos da desregulamentação dos mercados, em particular do mercado de trabalho, o termo empregabilidade tem vindo a ser aceite acriticamente para legitimar uma visão do mundo ideologicamente centrada nas concepções neo-liberais.

A sua disseminação no meio académico, pelo menos no caso português, parece contagiada pela carga ideológica que arrasta consigo, sendo poucos os que procuram problematizar a expressão ao pon-to de a tornar um efectivo conceito científico capaz de dar conta dos novos fenómenos sociais com base numa resposta heuristicamente relevante.

Dos trabalhos que a comunidade científica in-ternacional tem vindo a produzir tendo em vista a discussão das origens e dimensões do conceito, as-sumem, para nós, um carácter estruturante as contri-buições de Bernard Gazier (1990, 1998) e de Ronald McQuaid e Colin Lindsay (2005). O primeiro autor propõe-se fazer uma radiografia do conceito e, os se-gundos, propõem-se discutir as aplicações que têm vindo a ser dadas ao termo empregabilidade, particu-larmente ao nível das políticas públicas de emprego.

A genealogia do conceito não parece marcada por grandes polémicas sendo a sua origem atribu-ída aos anglo-saxónicos que no início do século

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XX o utilizavam para distinguir a população em-pregável da não empregável. A partir deste marco histórico, o conceito de empregabilidade veio a ser objecto de uma significativa disseminação no mun-do ocidental, a mais notória das quais em finais do século por via de organizações internacionais tais como a OCDE, a OIt, a OnU e a UE.

Essa disseminação fez-se ao longo do tempo de uma forma muito associada às condições societais dos diferentes contextos nacionais em que se foi afirmando. Assim, partindo da proposta de Gazier (1990 e 1998) sobre a evolução histórica do concei-to, é possível identificar oito concepções diferen-ciadas a que McQuaid e Lindsay (2005) também recorrem: a empregabilidade dicotómica, a em-pregabilidade sócio-médica, a empregabilidade da política da força de trabalho; a empregabilidade de fluxo, a empregabilidade da performance no mer-cado de trabalho, a empregabilidade de iniciativa e a empregabilidade interactiva.

Das várias concepções enunciadas, centrar-nos--emos naquelas que, no actual contexto, apresen-tam maior valor heurístico: a empregabilidade de iniciativa e a empregabilidade interactiva.

A empregabilidade de iniciativa nasceu nos EUA nos anos 80 num quadro de individualização das relações de trabalho em que se assumia que as carreiras individuais eram um produto da capaci-dade dos indivíduos em mudar de papel no interior das organizações seja porque emergiu uma opor-tunidade seja porque a isso é obrigado por via das reestruturações internas. transposta para o campo do mercado de trabalho externo, trata-se de uma concepção que “pressupõe [por parte dos trabalha-dores] uma acção amplamente flexível num merca-do de trabalho desregulado” (Gazier, s/d., p. 11).

Por sua vez, a empregabilidade interactiva, ten-do igualmente emergido nos EUA em finais da dé-cada de 80, acrescenta à lógica individualista da fase anterior uma dimensão interactiva e colectiva na determinação da empregabilidade. tal significa que a empregabilidade individual é condiciona-da pelas regras de funcionamento do mercado de trabalho, pelas dinâmicas dos ciclos económicos e depende, igualmente, da empregabilidade dos res-tantes membros do grupo profissional de pertença.

Estas abordagens do conceito de empregabili-dade, bem como a sua centralidade na sociedade

contemporânea, reflectem a crescente tensão entre a gestão colectiva e individual das relações de traba-lho a qual se traduz no confronto entre o primado do “pleno emprego” e a promessa de “plena emprega-bilidade”, como refere Finn (McQuaid & Lindsay, 2005, p. 203), do “emprego para a vida” com a “em-pregabilidade para a vida”, como refere Kluytmans e Ott (1999, p. 262) ou ainda do trabalho como um “direito” com o trabalho como uma “responsabili-dade”, como refere White (2001, p. 7).

Posicionando-se no campo da empregabilida-de interactiva, as propostas dos autores que temos vindo a referenciar privilegiam uma concepção de empregabilidade que pode ser definida como “a ca-pacidade relativa de que um indivíduo dispõe para obter um emprego que o satisfaça tendo em conta a interacção entre as suas características pessoais e o mercado de trabalho” (Gazier, s/d., p. 11).

tendo por base este quadro analítico, que con-cebe a empregabilidade como o resultado da inte-racção entre o indivíduo e o mercado de trabalho, McQuaid e Lindsay (2005, p. 208) propõem-nos uma abordagem da empregabilidade individual que tenha em conta três dimensões que interagem entre si: factores individuais, circunstâncias pesso-ais e factores externos.

Para os autores, os factores individuais estão associados às competências e atributos da empre-gabilidade que incluem as habilitações escolares e qualificações profissionais dos indivíduos assim como um conjunto de competências de natureza di-versa que passam, entre outras, pelas suas compe-tências sociais, comportamentais, de resolução de problemas e de adaptação a novas situações. Como os próprios autores chamam à atenção, esta dimen-são reflecte em parte os contributos da teoria do ca-pital humano ao valorizar o papel da formação bem como os contributos da Psicologia, no que respeita ao estudo das formas de inteligência.

As circunstâncias pessoais reflectem, por sua vez, três categorias de factores: as circunstâncias fa-miliares, como por exemplo, a necessidade de cui-dar de crianças ou de idosos, a cultura de trabalho traduzida no modo como o trabalho é ou não enco-rajado no contexto familiar, no grupo de amigos ou na comunidade de pertença e o acesso aos recur-sos sejam eles os que permitem a mobilidade física (transportes), os que permitem o acesso ao consu-

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mo (capital financeiro) ou que permitem o acesso a informação e grupos de status (capital social).

Por último, os factores externos estão associados às dinâmicas do mercado de trabalho quer em ter-mos quantitativos quer qualitativos, às tendências macroeconómicas, às formas contratuais, às con-dições de trabalho e às políticas de recrutamento das empresas. Estes factores externos reflectem, em grande parte, os mecanismos de regulação do mer-cado de trabalho bem como as políticas de gestão de recursos humanos por parte das empresas.

Pensar a empregabilidade a partir de uma abor-dagem interactiva, como nos propõe Gazier, e multidimensional, como nos propõem McQuaid e Lindsay, assume particular relevância não só pelo seu intrínseco potencial heurístico mas também porque nos permite discutir o papel dos contextos de trabalho na promoção da empregabilidade dos indivíduos.

O papel dos contextos de trabalho na construção da empregabilidade

Contribuindo para explicar uma parte da emprega-bilidade individual, dado que “também as empresas contribuem para a construção da empregabilidade” (Gazier, 1990, p. 583), os contextos de trabalho têm vindo a merecer uma atenção crescente por parte dos investigadores devido à crescente diferenciação das políticas de gestão de recursos humanos com o intuito de procurar novas vantagens competitivas no quadro de um paradigma técnico-económico (cf. Freeman & Soete, 1987) fortemente associado ao desenvolvimento tecnológico em geral, e em par-ticular, ao papel que têm vindo a assumir as tecno-logias de informação.

Este novo paradigma técnico-económico coloca no centro do debate a importância dos modelos de competitividade dinâmica baseados na capacidade de inovação ao nível dos processos produtivos, dos produtos e da base organizacional (cf. Rodrigues, 1991).

Face a este contexto, a construção da emprega-bilidade deixa de ser um problema estritamente in-dividual ou dos poderes públicos para passar a ser igualmente uma responsabilidade das organizações transformando-se numa “verdadeira política social

das empresas” (Saint-Germes, 2004, p. 1889). Ao exigir a aprendizagem da mudança, a construção da empregabilidade transforma-se numa prática de gestão de recursos humanos capaz de sustentar processos de inovação técnica e organizacional in-dispensáveis à competitividade moderna.

Para promover os processos de aprendizagem individual e/ou colectiva as organizações dispõem de dois instrumentos privilegiados: as políticas de formação profissional e as formas de organização do trabalho.

Relativamente ao primeiro instrumento, ao adoptarem políticas estruturadas de formação pro-fissional, as organizações não só estão a reforçar a sua capacidade competitiva, dado que à luz da teoria do capital humano tal implica um aumento da produtividade do trabalho, mas também estão a promover um maior comprometimento dos tra-balhadores com a organização, ao valorizar as suas competências num quadro de potencial mobilidade profissional.

Contudo, esta relação aparentemente virtuosa apresenta algumas limitações decorrentes dos dife-rentes níveis de investimento na formação, da exis-tência de mecanismos de discriminação no acesso à formação e das opções quanto às modalidades de formação privilegiadas.

vários são os autores que, recorrendo às mais diversas fontes estatísticas, chamam à atenção para os desfasamentos que se verificam no investimento em formação quer entre países quer entre empre-sas. Daqui decorre que, existindo uma relação en-tre empregabilidade e investimento em formação, a sua promoção é desde logo marcada pelos dife-rentes contextos nacionais bem como pelo tipo de empresa em que o trabalhador está inserido.

no que respeita à segunda variável, discrimi-nação no acesso à formação, constata-se que certos grupos sócio-profissionais são confrontados com barreiras materiais e simbólicas quando chega a hora de aceder à formação. Estão neste grupo as mulheres, os menos escolarizados, os trabalhado-res em fim de vida profissional útil, os que estão na base da hierarquia profissional, entre outros.

Por último, importa referir que as opções em função das modalidades de formação assumem um papel particularmente importante na medida em que nem toda a formação permite a sustentabilida-

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de do desenvolvimento de competências passíveis de garantir a empregabilidade, num contexto mar-cado pela importância da inovação e pela volatilida-de dos empregos.

nesta óptica, sendo a empregabilidade um pro-cesso sustentado por uma aprendizagem perma-nente orientada para o longo prazo, a aposta no de-senvolvimento de capital humano específico ou de capital humano geral (Becker, 1964) ou, como re-fere Boyer (2000), de competências específicas por contraposição a competências transversais, assume particular importância.

A opção entre ambos os modelos parece forte-mente condicionada pelos riscos que lhe estão as-sociados criando um dilema organizacional entre o comprometimento e a desimplicação, principal-mente se tivermos em conta que a “promoção da empregabilidade dos trabalhadores também au-menta a probabilidade de estes deixarem a empresa antes do investimento em capital humano gerar re-torno” (Kluytmans & Ott, 1999, p. 269). Contudo, este risco é tanto mais provável quanto menos inte-grada for a política de gestão de recursos humanos da organização. Ele deve ser avaliado, segundo os mesmos autores, tendo em conta as consequências organizacionais da estagnação profissional da gene-ralidade dos trabalhadores.

Relativamente ao segundo instrumento de pro-moção da aprendizagem, as formas de organização do trabalho, estão por demais ilustradas as limita-ções dos modelos tradicionais, de base taylorista, na criação de condições de aprendizagem sendo mesmo, nas sociedades contemporâneas, um ins-trumento de regressão cultural para trabalhadores que se apresentam cada vez mais escolarizados (cf. Kovacs & Castillo, 1988).

Por isso, a adopção de formas de organização do trabalho mais participativas e potenciadoras de condições de aprendizagem parecem fundamentais na medida em que “o trabalhador enquanto actor deve ser capaz de ir além do trabalho prescrito” (Saint-Germes, 2004, p. 1899) o que se torna tão mais importante quanto “aprender ocorre especial-mente no próprio local de trabalho” (Kluytmans & Ott, 1999, p. 267).

A revalorização epistemológica da experiência, que está subjacente às novas formas de organização do trabalho e que arrasta consigo a necessidade de

repensar o papel da formação profissional ao longo da vida, transformando-a num “processo de produ-ção de si” (Canário, 2001, p. 15), remete-nos para o desenvolvimento de uma empregabilidade baseada no trabalhador enquanto “profissional reflexivo” (Schon, 1987).

É neste contexto que emergem as potencialida-des do conceito de organização qualificante enten-dido como “um modelo global de desenvolvimento dos recursos humanos no qual todos os trabalhado-res tomam parte nas experiências diárias de apren-dizagem” (Stahl et al., 1993, p. 11) ou, na proposta de Peter Senge (1993), de “learning organization” entendida como a organização onde os trabalha-dores se desenvolvem constantemente aprendendo como se aprende.

As organizações baseadas no primado da quali-ficação dos seus actores assentam em três caracte-rísticas básicas (terssac, 1994):

• São organizações em que se torna possível ge-rir a incerteza própria de sociedades em mutação, opondo-se por isso às organizações prescritivas como são as tayloristas que pressupõem a existên-cia de ambientes estáveis;

• São organizações dominadas por sistemas de comunicação horizontal entre os diferentes serviços e os diferentes centros de decisão, por oposição às organizações dominadas por sistemas de comuni-cação vertical centrados num único pólo de decisão e de produção de valores;

• São organizações nas quais os seus membros dispõem de autonomia e de capacidade de iniciati-va para tomar decisões relativas ao trabalho a rea-lizar.

A adopção do modelo de organização qualifi-cante torna-se, por isso, numa opção capaz de pro-mover o desenvolvimento da empregabilidade indi-vidual, tanto interna como externa, na medida em que tende a valorizar o desenvolvimento de com-petências que colocam os trabalhadores no papel de actores fundamentais dos processos de mudança (villeval, 1993) através da promoção da flexibiliza-ção do espaço organizacional (Iribarne, 1984).

Em síntese, as organizações qualificantes pa-recem representar uma oportunidade indiscutível para manter e aumentar a empregabilidade particu-larmente de trabalhadores que, de outra forma, fa-cilmente seriam excluídos do mercado de trabalho

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(Lopes, 2000), em consequência de processos de reestruturação organizacional que apelam a com-petências de uma nova geração, próprias da socie-dade do conhecimento.

Algumas especificidades estruturais do mer-cado de trabalho português

Analisar as potencialidades dos contextos de tra-balho na construção da empregabilidade no qua-dro das dimensões até aqui referidas — políticas de formação profissional e formas de organização do trabalho — implica, no contexto português, ter em conta alguns elementos estruturais que configuram a sua especificidade no quadro do espaço político e económico em que o país se integra.

Dominado por um paradigma de competitivida-de historicamente baseado na mão-de-obra barata e num padrão de especialização produtivo assente em mão-de-obra intensiva (cf. Rodrigues, 1991), em Por-tugal têm vindo a emergir algumas ilhas de inovação mais marcantes pelos seus efeitos de demonstração do que pelos seus impactos estruturais sobre o mo-delo dominante de organização económica e social.

As explicações para esta realidade são certa-mente múltiplas e passam também pelas políticas de gestão de recursos humanos das organizações que, apesar dos discursos modernizadores, pou-co parecem orientar-se para romper com o quadro descrito, colocando-se antes ao serviço da reprodu-ção de um modelo de gestão socioeconómica histo-ricamente datado.

Como refere Helena Lopes (2000, p. 239) nas conclusões de um estudo empírico sobre a realidade portuguesa, “os recursos humanos são reconheci-dos por todas as empresas como sendo um factor de competitividade, mas a maioria dos dirigentes tem dificuldade em reconhecer, gerir e potenciar o capi-tal de conhecimentos acumulado pelas pessoas”.

no campo das políticas de formação profis-sional, se exceptuarmos um reduzido número de empresas de grande dimensão que operam em sec-tores mais expostos à concorrência internacional, constata-se um fraco comprometimento quer com a promoção de formação profissional (gráfico 1), quer com a estrutura institucional que configura o siste-ma nacional de formação profissional (cf. Aventure

et al., 1999; Almeida, 1995).

Gráfico 1

Acesso dos trabalhadores à formação por países

0

10

20

30

40

50

60

70

Se Dn Fin RU Fr Ir Hol Be Lu Al Au Esp Pt Gr

Entre todos os W's Entre os w's das empresas c/ fp

Fonte: thérry et al., 2002

A este cenário acresce a elevada discrimina-ção no acesso à formação para certas categorias de trabalhadores nomeadamente (DGEEP, 2005): mulheres, trabalhadores com baixa escolaridade, trabalhadores em fim de vida profissional útil e tra-balhadores da base da hierarquia profissional.

Por último, as modalidades de formação privile-giadas parecem orientar-se para o desenvolvimento de competências específicas como é referido num dos mais recentes e completos estudos empíricos realizado em Portugal (Caetano, 2000, p. 295). nele se conclui que: “as empresas se preocupam sobretudo com o aumento das competências que correspondem às suas necessidades de curto prazo e não tanto com o desenvolvimento das capacida-des e o aumento das qualificações dos empregados enquanto profissionais”.

no que respeita às formas de organização do trabalho, em Portugal é inequívoco o predomínio do modelo taylorista em que “o conteúdo da activi-dade de trabalho só permite a aquisição de saberes práticos, o que indica aprendizagens pobres” (Lo-pes, 2000, p. 236).

tal não significa, contudo, que não possamos encontrar modelos organizacionais neotayloristas, centrados na valorização de algumas elites profis-sionais, e pós-tayloristas, marcados pela participa-ção, interna e generalizada a toda a organização, nos processos de decisão e resolução de problemas, no desenvolvimento e experimentação de novos procedimentos e na adopção de novas formas de trabalhar.

É nestes modelos pós-tayloristas, que em Por-tugal apenas são adoptados por uma minoria de organizações, que se enquadram as organizações qualificantes as quais “constituem, a longo prazo, a garantia possível de uma adequação às novas con-

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dições de competitividade assim como representam uma oportunidade única para manter e aumentar a empregabilidade de muitos trabalhadores” (Lopes, 2000, p. 242).

neste contexto, a importância das organiza-ções qualificantes é tanto maior quanto Portugal se caracteriza pelos baixos níveis de escolarização da sua população activa — mais de 60% dos traba-lhadores por conta de outrem não têm mais do que o 9º ano de escolaridade — e pelo elevado núme-ro de jovens que não conclui o ensino secundário — mais de 50% dos jovens que nele ingressam não o concluem. Para esta população, o contexto de trabalho configura-se como o espaço privilegiado, se não mesmo único, de construção da sua empre-gabilidade.

Conclusão

A adopção do conceito de empregabilidade para compreender algumas das dinâmicas do mercado de trabalho português parece apresentar um po-tencial heurístico limitado se tivermos em conta as lógicas diferenciadas que estão subjacentes às con-

cepções de empregabilidade individual e de empre-gabilidade interactiva.

tal facto decorre das condicionantes estruturais em que o país se move, marcado pelo défice de es-colarização de uma parte significativa da população e por políticas de gestão de recursos humanos pou-co valorizadoras do capital humano.

nesta perspectiva, assume particular relevância o modo como os contextos de trabalho se configu-ram para potenciar ou condicionar o desenvolvi-mento profissional de uma mão-de-obra estrutural-mente desqualificada face às exigências da compe-titividade moderna.

Generalizar políticas de formação profissional orientadas para o desenvolvimento integrado de competências específicas e de competências trans-versais e adoptar formas de organização do traba-lho progressivamente mais enriquecedoras, parece ser uma estratégia adequada ao reforço da emprega-bilidade. tal estratégia permitirá evitar a exclusão duma massa de trabalhadores que, inevitavelmen-te, apresentam maiores dificuldades em se adaptar ao novo contrato social que pretende substituir o primado do emprego para a vida pelo primado da empregabilidade para a vida.

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 i s s n 1 6 4 6 - 4 9 9 0

E se a melhoria da empregabilidade dos jovens escondesse novas formas de desigualdade social?

natália AlvesFaculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:O termo empregabilidade tem vindo a impor-se como uma categoria universal de análise do mercado de trabalho, como um referente hegemónico das políticas de emprego e, mais recentemente, das políticas educativas. A sua introdução nos discursos educativos oficiais corresponde a uma alteração no paradigma por que se têm orientado as políticas sociais e inscreve-se numa lógica de individualização e responsabilização individual e na tendência crescente para a privatização dos problemas sociais. Mas a empregabilidade le-gitima, também, o reforço das fileiras profissionalizantes destinadas a todos e de medidas específicas destinadas a alguns: aos jovens das classes populares, com trajectórias escola-res de insucesso e em risco de abandono escolar. neste artigo, pretendemos demonstrar que, em Portugal, a profissionalização do sistema educativo é o resultado de uma polí-tica voluntarista do Estado que não encontra eco num tecido empresarial que continua a apostar nos baixos custos da mão-de-obra como factor de competitividade ao mesmo tempo que relega para um plano secundário a discussão do seu papel na (re)produção social e na criação de formas “doces” de exclusão.

Palavras-chave:empregabilidade, desigualdades sociais, formação inicial e inserção profissional.

Alves, natália (2007). E se a melhoria da empregabilidade dos jovens escondesse novas formas de

desigualdade social? Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 59-68.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Introdução

A introdução da palavra “empregabilidade” nos discursos políticos corresponde a uma mudança de paradigma que importa esclarecer antes de ana-lisar a forma como o sistema educativo português responde ao que tem vindo a ser identificado como a necessidade de aumentar a empregabilidade dos jovens. Colocar a empregabilidade no centro das políticas educativas corresponde a uma mudança no debate sobre a educação e sua relação com a socie-dade em geral e a economia em particular. Até às cri-ses dos anos setenta, a educação era concebida como um instrumento fundamental para diminuir as desi-gualdades sociais e como uma condição indispen-sável para assegurar o crescimento económico. O aumento do desemprego, em particular do desem-prego juvenil, traz para a agenda política a discus-são sobre o seu papel no combate a este fenómeno e está na origem da profissionalização dos sistemas educativos. A introdução recente do termo empre-gabilidade nos discursos educativos corresponde a uma alteração no paradigma por que se têm orien-tado as políticas sociais e inscreve-se numa lógica de individualização e responsabilização individual e na tendência crescente para a privatização dos pro-blemas sociais. Mas a empregabilidade legitima, também, o reforço das fileiras profissionalizantes destinadas a todos e de medidas específicas desti-nadas a alguns: aos jovens das classes populares, com trajectórias escolares de insucesso e em risco de abandono. neste artigo, pretendemos demons-

trar que em Portugal a profissionalização do sistema educativo é o resultado de uma política voluntarista do Estado que não encontra eco num tecido empre-sarial que continua a apostar nos baixos custos da mão-de-obra como factor de competitividade ao mesmo tempo que relega para um plano secundário a discussão do seu papel na (re)produção social e na criação de formas “doces” de exclusão.

Algumas considerações em torno do conceito de empregabilidade

O termo empregabilidade tem vindo a impor-se como uma categoria universal de análise do mer-cado de trabalho, como um referente hegemónico das políticas de emprego e, mais recentemente, das políticas educativas. Como muitas outras palavras hoje em voga1, também esta é objecto de um consen-so semântico generalizado que dispensa, à partida, qualquer tipo de definição. no entanto, este con-senso é apenas aparente. A polissemia da noção de empregabilidade está patente nas diferentes defini-ções produzidas no campo científico, nos usos que decorrem da sua utilização enquanto categoria de acção das políticas de emprego2 e nos significados que lhe são atribuídos, por exemplo, nos documen-tos produzidos no âmbito da Comissão Europeia e da OCDE3. Os objectivos que orientam a nossa re-flexão levam-nos a debruçarmo-nos exclusivamente sobre a genealogia do conceito e os seus significados científicos, seguindo de perto os trabalhos de Gazier

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(1990, s/d). Este autor identifica sete noções diferen-tes de empregabilidade: empregabilidade dicotómi-ca, empregabilidade sócio-médica, empregabilidade como política da força de trabalho, empregabilidade fluxo, empregabilidade como performance esperada no mercado de trabalho, empregabilidade de inicia-tiva e empregabilidade interactiva.

A empregabilidade dicotómica tem origem no início do século XX nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha e era usada, pelos serviços públicos, para classificar as pessoas que se apresentavam no mer-cado de trabalho ou solicitavam assistência pública em duas categorias: os empregáveis e os “inempre-gáveis”. A primeira categoria englobava todos aque-les que podiam ou queriam trabalhar; a segunda integrava os que não podiam trabalhar em virtude de constrangimentos vários sendo, por isso, candi-datos a beneficiários da segurança social. na práti-ca, tratava-se, nas palavras de Gazier (s/d, p. 10) de um “instrumento elementar de partição dos pobres e de gestão de uma situação de urgência”.

Os anos cinquenta e sessenta definem tempo-ralmente a emergência de três novas noções de empregabilidade que têm em comum uma aborda-gem quantitativa dessa mesma empregabilidade, mantendo intacto o grupo social de referência: os desempregados4. A empregabilidade sócio-médi-ca é a primeira a surgir, nos anos cinquenta, nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na Alemanha e pretende medir, através da aplicação de baterias de testes, a distância entre as características físicas, cognitivas e mentais de quem procura emprego e os requisitos associados a um determinado emprego. A empregabilidade como política da força de tra-balho, desenvolvida nos Estados Unidos, a partir dos anos sessenta não é mais do que uma exten-são da empregabilidade sócio-médica. A avaliação das distâncias entre os requisitos associados a um determinado emprego e os atributos individuais, incorpora, agora uma outra dimensão: a aceitabili-dade social. nesta perspectiva, a empregabilidade designa, segundo Gazier (1990, p. 579) “a atracti-vidade de um indivíduo aos olhos de um emprega-dor, apreciada através dos resultados dos testes que combinam a avaliação de aptidões e de comporta-mentos e privilegiam a integridade profissional”. Comum a estas duas noções está uma concepção estritamente individual da empregabilidade, assen-

te numa lógica que se organiza em torno da ideia de défice de aptidões. Em contrapartida, a empre-gabilidade fluxo, de origem francesa5, apresenta-se como uma alternativa às abordagens individualistas centradas na oferta de trabalho, dominantes até en-tão. A empregabilidade à francesa, como a designa Gazier (1990), focaliza-se nas condições globais da procura de trabalho. Ela corresponde às probabili-dades diferenciais de saída do desemprego, segun-do as características sócio-demográficas clássicas e as condições gerais da economia. Esta concepção de empregabilidade, que contempla ainda dois ti-pos conceptualmente distintos – empregabilidade média6 e empregabilidade diferencial7 - toma como unidade de análise o grupo de desempregados e não o desempregado individual. Ao colocar a tó-nica nos determinantes colectivos do desemprego, esta concepção de empregabilidade estabelece uma rotura com a perspectiva psicologizante de pendor deficitário que enforma as outras noções para se inscrever numa perspectiva sócio-económica que tem em conta os ciclos económicos e a forma como os modos de regulação dos mercados de trabalho afectam, diferenciadamente, categorias distintas de trabalhadores.

A partir dos anos oitenta, desenvolvem-se três novas formulações do conceito de empregabilida-de. O aumento do desemprego conduz à criação de um vasto número de medidas e de programas no quadro das políticas públicas de emprego. neste novo contexto, a empregabilidade transforma-se, segundo Barbier (2000), numa categoria de acção dos organismos e dos operadores das políticas de emprego, no quadro da gestão do desemprego de massas e num indicador para avaliar a sua eficácia. A empregabilidade como performance esperada no mercado de trabalho surge, assim, como uma noção descritiva, usada internacionalmente, para avaliar o sucesso ou fracasso de uma medida de política de emprego ou de formação8, através do cálculo do tempo dispendido até à obtenção de um emprego, do número de dias de permanência nesse emprego e da remuneração auferida. Esta noção de emprega-bilidade, de cariz marcadamente instrumental, é si-nónimo da “capacidade para obter um rendimento no mercado de trabalho” (Gazier, s/d, p. 11).

nos finais da década de oitenta, surgem duas outras noções de empregabilidade que, uma vez

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mais, reflectem a querela que opõe os que defen-dem uma análise da empregabilidade que tome em linha de conta as dinâmicas sócio-económicas e os que a concebem como um atributo individual, qua-se ontológico. A empregabilidade de iniciativa ins-creve-se, precisamente, nesta última tendência que tem sido dominante e que ganha um novo fôlego com a difusão da ideologia neoliberal em particu-lar nos Estados Unidos e no Reino Unido. Definida por Gazier (s/d, p. 11) como “as capacidades indi-viduais para ‘vender’ as qualificações no mercado de trabalho”, esta concepção coloca uma vez mais a tónica no trabalhador individualmente conside-rado. trata-se, como o mesmo autor defende, de desenvolver a criatividade e a responsabilidade in-dividuais e a capacidade para construir e mobilizar os recursos sociais, indispensáveis para manter um emprego ou para obter um novo. Aos trabalhadores não lhes basta, como há algumas décadas atrás, rea-lizar as tarefas que lhes são exigidas. Eles têm agora de se investir objectiva e subjectivamente no traba-lho, de adquirir capacidades de empregabilidade vendáveis no mercado de trabalho, de se tornar em-presários de si. A empregabilidade de iniciativa é, assim, uma característica de indivíduos atomizados e flexíveis, capazes de se deslocar entre empregos, num mercado de trabalho cada vez mais desregula-do. A empregabilidade interactiva, por seu turno, é originária do Canadá e, embora mantenha a ênfase no indivíduo e nas suas capacidades, admite que a empregabilidade individual não pode ser disso-ciada dos modos de funcionamento do mercado de trabalho. neste sentido, a empregabilidade não é um estado, mas um processo que se constrói na in-teracção entre as estratégias e os recursos individu-ais, por um lado, as dinâmicas macro-económicas e as estratégias empresariais, por outro.

no entanto, apesar de existir um consenso for-mal em torno da concepção interactiva da empre-gabilidade, e de no campo científico se desenvolve-rem abordagens que operacionalizam as diferentes dimensões deste conceito9, o que é um facto é que, o aumento do desemprego, o seu carácter estrutu-ral e a consolidação do pensamento neoliberal têm contribuído para a manutenção e mesmo para o reforço da perspectiva individual da empregabili-dade. McQuaid e Lindsay (2005, p. 205) referem-se, precisamente a esta tendência, quando afirmam

que “a interactividade, supostamente no centro do conceito, parece estar a ser substituída por um en-foque singular no indivíduo e no que pode ser de-signado por ‛competências de empregabilidade’”. A crítica à hegemonia que a concepção individual da empregabilidade tem vindo a assumir é também partilhada por sociólogos como Charlot e Glassman (1998) e Ebersold (2001). Para estes autores, esta hegemonia inscreve-se num processo mais geral de individualização e de responsabilização individual a que se referem numerosos sociólogos (Beck, 2001; Dubet & Martucelli, 1996; Ehrenberg, 1991, 1995; Giddens, 2001) e que tem como corolário o que Wallace e Kovatcheva (1998) designam por uma crescente privatização dos problemas sociais.

Desde sempre associada à questão do desem-prego, a empregabilidade individual assume agora uma nova centralidade face à necessidade de gerir um desemprego estrutural de massas e à incapa-cidade e impossibilidade dos governos nacionais para criar emprego. Sem poderem intervir direc-tamente sobre a oferta, eles vêem o seu campo de intervenção reduzido a acções que incidem quase exclusivamente sobre o lado da procura, quer sob a forma de políticas de emprego quer de educa-ção-formação. Actuar sobre a melhoria da empre-gabilidade individual surge como a única resposta política possível, no quadro do ideário neoliberal, para gerir um desemprego de massas que assume contornos paradoxais. Ele é concomitante com o aumento generalizado das qualificações escolares (Beck, 2001; Canário, 2005; Castel, 1999); atinge não só os detentores de baixos níveis de habilitação escolar, mas também os mais qualificados dos qua-lificados e, deixa de ser o resultado da ausência de crescimento económico para se tornar inerente ao próprio modelo de crescimento económico, como Boltanski e Chiapello (1999) tão bem demonstra-ram e os lucros das grandes empresas nacionais e multinacionais não param de confirmar. A aceita-ção da inevitabilidade do desemprego como con-dição indispensável ao crescimento das economias nacionais e das taxas de lucro das empresas vai a par com a difusão de um discurso que não cessa de “culpabilizar as vítimas” e onde a empregabilidade é o termo que lhe confere a necessária legitimidade científica e que ofusca os interesses, estruturalmen-te antagónicos, entre capital e trabalho. Com efeito,

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explicar o desemprego por via, exclusiva, da ausên-cia de competências de empregabilidade é ocultar os efeitos sociais e económicos desta nova fase de acumulação capitalista. Assim, num contexto onde impera a penúria de emprego e uma crescente flexi-bilização da relação salarial, colocar o ónus do de-semprego nos desempregados e explicá-lo por via da sua reduzida empregabilidade é mistificar um problema, por definição complexo, cuja resolução não se compadece nem com medidas compensató-rias nem com medidas paliativas.

Aumentar a competitividade, combater o desemprego e a exclusão social, melhorar a empregabilidade

Em Portugal, o termo empregabilidade tem esta-do, principalmente reservado ao “tratamento” dos desempregados, em geral, e dos desempregados de longa duração em particular, sendo por isso uma constante nas medidas de política pública de empre-go-formação, destinadas a este grupo alvo. Já no do-mínio educativo, a sua inclusão na retórica discursi-va oficial é muito mais recente e marginal. Melhorar a empregabilidade dos jovens surge actualmente a par de três outros grandes objectivos definidos para a educação no nosso país: aumentar a competitivida-de, combater o desemprego e a exclusão social. Es-tes objectivos, reiterados pelos vários governos nas últimas décadas, independentemente da sua filiação política, colocam no centro da agenda e do debate políticos a relação entre educação e trabalho, a qual ganha uma actualidade renovada com a manutenção do problema estrutural do desemprego.

Em Portugal, esta sempre foi uma relação con-turbada. Materializada nos cursos do ensino técni-co até à Revolução de 1974, ela foi e continua a ser o resultado de uma política voluntarista do Estado com pouco eco numa classe empresarial que não privilegiava a formação profissional nem inicial nem contínua (Grácio, 1986)10 e que, nos dias de hoje, continua a apostar nos baixos salários como prin-cipal factor de competitividade económica. Mas ela foi também um instrumento essencial para respon-der, a partir da década de sessenta, ao aumento da procura social de educação por parte da classe mé-dia e de algumas franjas do operariado, mantendo

intacto o processo de recrutamento e formação das elites nacionais11. via de escolarização por excelên-cia das classes populares, o ensino técnico é extinto na segunda metade da década de setenta, fruto da revolução em curso e do movimento de unificação do ensino que esteve na origem do collège em Fran-ça e da comphreensive school no Reino Unido.

O início dos anos oitenta marca um novo ciclo nas políticas educativas em Portugal e uma alte-ração na forma de conceber o papel da educação. Se até às crises económicas dos anos setenta, a educação era entendida como um instrumento no combate às desigualdades sociais e uma condição indispensável para assegurar o crescimento econó-mico, com o aumento do desemprego juvenil vê-se investida de um novo papel: o de contribuir para a diminuição do desemprego. A reintrodução de fileiras profissionalizantes nos países onde tinham sido extintas e o seu reforço nos restantes são legiti-mados, do ponto de vista político, pela necessidade de aumentar a competitividade das economias eu-ropeias e principalmente, pela necessidade de com-bater o desemprego juvenil. Fazendo tábua rasa dos conhecimentos produzidos nos campos da econo-mia e da sociologia12, o desemprego é explicado nos discursos políticos e nalguns discursos produzidos no campo científico como o resultado das deficiên-cias do sistema educativo que: não incute nos jo-vens um sistema de disposições favoráveis ao traba-lho (Furlong, 1988); não desenvolve as competên-cias necessárias à sua inserção na vida activa (Finn, 1985); ministra uma formação que é acusada de ser demasiado académica e pouco relevante em termos profissionais (Finn, 1984; Sherman, 1991). Portugal não foge a esta tendência pelo que a reintrodução da fileira profissionalizante no nosso país ou a fle-xibilização externa do sistema educativo, como lhe chama Correia (1999), vai reproduzir os argumen-tos dominantes: dar resposta à necessidade de au-mentar a competitividade da economia nacional e de combater o desemprego juvenil explicado pela falta de qualificação profissional dos jovens.

As críticas ao retorno a uma concepção instru-mental e gestionária da educação fazem-se imedia-tamente sentir quer em Portugal quer nos restantes países europeus onde se assistiu a uma progressiva subordinação da educação aos interesses económi-cos. no essencial, estas críticas organizam-se em

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torno de três tipos de argumentos distintos: políti-cos, educativos e económicos.

Do ponto de vista político, critica-se quer a su-bordinação da educação à economia quer a concep-ção fragmentada do actor social em que se valoriza a formação do trabalhador como se este papel fosse autónomo relativamente ao do cidadão (Correia, Sto-leroff & Stoer, 1993). Critica-se ainda a deslocação do locus da discussão do conceito de igualdade de oportunidades do universo educativo para o mundo do trabalho (Alves et al., 2001). A igualdade de opor-tunidades deixa de ser uma referência central da po-lítica educativa sendo substituída pela igualdade de oportunidades na obtenção de um emprego.

no plano educativo, fazem-se ouvir críticas ao carácter socialmente discriminante destas ofertas formativas que tendem a transformar-se em ghetos habitados por jovens das classes populares marca-dos por trajectórias escolares de insucesso (Alves et al., 2001; Combes, 1988; Grácio, 1991; São Pe-dro et al., 2002) o que lhes confere um estatuto de segunda oportunidade no interior do sistema edu-cativo e que se perpetua no mercado de trabalho com os seus detentores a terem proporcionalmente menores oportunidades de promoção na carreira do que os seus colegas universitários, a terem mais probabilidades de ficar desempregados e de obter uma menor rendibilidade dos seus diplomas (Grá-cio, 1997; Portugal, 2004)13. O carácter socialmente selectivo e, nalguns casos estigmatizante, destas ofertas educativas foi recentemente reforçado com a criação dos currículos alternativos e dos cursos de educação formação na escolaridade obrigatória. Elegendo como público-alvo os jovens em risco de abandono escolar, estas modalidades, que apresen-tam como objectivos combater a exclusão social e aumentar a empregabilidade, vêm introduzir per-cursos diferenciados no ensino básico, legitimados à luz da ideologia da inclusão (Correia, 1999). Ao fazê-lo, elas estão a contribuir para a uma nova re-formulação semântica da noção de igualdades de oportunidades que deixa de ter como referente um ensino igual para todos para passar a consagrar a ideia de um ensino diferente para capacidades di-ferentes. Mas estas modalidades, que se inscrevem num processo de flexibilização interna do sistema educativo (Correia, 1999), são também uma das fa-ces visíveis da exclusão doce a que se refere Dubet

e a prova de que uma educação orientada para o tra-balho, que diminua os riscos de exclusão e aumen-te a empregabilidade, é algo que se destina aos que não possuem as competências cognitivas que lhes permita seguir um curriculum “normal” e que, por acaso, são, na sua quase totalidade, oriundos das classes populares e das minorias étnico-culturais.

Do ponto de vista económico, alguns estudos pro-duzidos no domínio da economia da educação, como é o caso do trabalho realizado por Corson (1991), demonstram que os elevados custos indexados aos cursos profissionalizantes, quando comparados com os da formação geral, não têm o retorno esperado no que respeita ao aumento da produtividade individu-al concluindo que, em termos económicos, eles são comparáveis aos da formação geral. Outras investiga-ções corroboram a tese de que este tipo de formação não aumenta as vantagens comparativas destes jovens no mercado de trabalho. Dois estudos realizados so-bre a inserção na vida activa de jovens que concluíram o ensino secundário (São Pedro et al., 2002) e acções de formação profissional inicial (Carimbo, 2001) de-monstram que não existe uma diferença significativa na situação face ao desemprego, uma vez que: dos jovens que frequentaram os cursos gerais do ensino secundário, 18% estava desempregado; dos que fre-quentaram os cursos tecnológicos, 19% encontrava-se no desemprego; entre os que concluíram cursos pro-fissionais a taxa de desemprego era de 15% e dos que concluíram acções de formação profissional inicial, 17% tinha o estatuto de desempregado. Outros ainda, centrados nas estratégias de recrutamento (Moreno, 1998) mostram que os empresários portugueses con-tinuam a privilegiar o recrutamento dos jovens menos qualificados, portadores de qualificações de nível I e II e que a formação geral, a capacidade de aprendiza-gem e as capacidades motivacionais (empenhamento e esforço) e comportamentais (assiduidade, pontuali-dade, respeito pelas hierarquias) são critérios de se-lecção mais valorizados do que a formação de matriz profissionalizante.

Síntese conclusiva

Que conclusões retirar do que acabámos referir?Em primeiro lugar, que em Portugal persiste um

modelo de especialização económica que continua

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a construir as suas vantagens competitivas nos bai-xos custos da força de trabalho. Em segundo lugar, que as estratégias de recrutamento das empresas, ao valorizarem o perfil motivacional e comporta-mental dos trabalhadores, estão, no essencial, a privilegiar a sua capacidade de se investir subjec-tivamente no trabalho, capacidade essa que é si-multaneamente sinónimo de empregabilidade e de permeabilidade às novas formas de exploração do trabalho. Em terceiro lugar, que se mantém inalte-rável a contradição entre a política educativa e as estratégias empresariais, a qual se traduz na con-traposição entre a coincidência dos discursos polí-ticos e empresariais, que atribuem o desemprego e a reduzida competitividade da economia à falta de

qualificação da mão-de-obra juvenil, e a discordân-cia profunda ao nível das práticas sociais concretas. Em quarto lugar, que os discursos e as políticas, as-sentes na defesa de modalidades de formação pro-fissionalizante, são marcados por uma forte carga ideológica que tendem a resistir a todas as evidên-cias empíricas que os colocam em causa. Em quinto e último lugar, que estamos perante discursos e po-líticas que ocultam o papel destas modalidades de formação na reprodução das desigualdades sociais colocando a tónica em argumentos que se preten-dem ideologicamente neutros como a competitivi-dade económica, o combate ao desemprego e à ex-clusão social e, mais recentemente, no aumento da empregabilidade.

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notas

1. Estamos a pensar, concretamente, em pala-vras como exclusão social, flexibilidade ou apren-dizagem ao longo da vida que são hoje uma pre-sença constante nos discursos políticos nacionais e transnacionais e que dispensam qualquer definição prévia.

2. Sobre este tipo de estudos ver, por exemplo, para o caso francês, o artigo de Barbier (1994), e para os Estados Unidos e o Reino Unido o trabalho de McQuaid e Lindsay (2005).

3. Sobre este tipo de análise ver Pochet e Pater-notre (1998).

4. Desde a sua génese que empregabilidade está associada à privação de emprego. A empregabili-dade é, assim, uma questão que diz essencialmente respeito aos desempregados.

5. Esta noção de empregabilidade tem origem no trabalho pioneiro de Ledrut (1966).

6. Este tipo de empregabilidade está dependente da conjuntura económica (Gazier, 1990) na medida em que a probabilidade de encontrar um novo emprego, quando se está desempregado, aumenta em períodos de crescimento económico e diminui em conjunturas de recessão.

7. A empregabilidade diferencial remete para análise das desigualdades sociais e económicas que afectam determinados grupos de desempregados e que influenciam a probalidade de aceder a um novo emprego (Gazier, 1990).

8. Em Portugal, esta noção de empregabilidade assume, frequentemente, a designação de taxa de empregabilidade e é um dos indicadores mais uti-lizados para avaliar a qualidade e a eficácia dos cur-sos de formação profissional inicial da responsabili-dade do Ministério da Educação e/ou do trabalho.

9. ver por exemplo a proposta apresentada por Evans et al. (1999) apresentada no artigo de McQuaid e Lindsay (2005) e aquela que estes últimos autores apresentam no referido artigo.

10. A reduzida valorização da formação conti-nua a ser uma característica dos empresários portu-gueses, confirmada por estudos mais recentes (Aze-vedo, 1999; Moreno, 1998).

11. Este processo consistia na frequência do liceu e, posteriormente da universidade.

12. Refiro-me concretamente às várias teorias

explicativas do desemprego juvenil como a teoria do ciclo, a teoria da concorrência ou da fila, a teoria estrutural e as teorias da segmentação do mercado de trabalho (Cf. Giret, 2000).

13. Registe-se que, de acordo com dados recen-tes, divulgados pelo Eurostat e pela OnU, Portugal é entre os países da EU (15) o segundo país onde a desi-gualdade na repartição dos rendimentos é maior. A enorme dispersão salarial registada no nosso país e a elevadíssima rendibilidade individual do diploma do ensino superior, a par do estigma social que acom-panha estas modalidades contribuem para explicar a reduzida atracção que elas exercem sobre a popu-lação discente.

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Sem-abrigo: métodos de produçãode narrativas biográficas

Susana Pereira da SilvaFaculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

[email protected]

Resumo:O texto dá conta de uma investigação, ainda em pleno curso, centrada nas dinâmicas de socialização de pessoas adultas que vivem ou viveram na rua. na sua globalidade, ela irá estruturar-se em três grandes níveis: i) um macro destinado a analisar as políticas sociais de combate à pobreza introduzidas nos últimos vinte e cinco anos; ii) um meso que carac-terizará as organizações que trabalham com esta população; iii) e um micro que incide sobre dois grupos de pessoas que vivem ou viveram em situação de sem-abrigo. Para a con-secução deste último nível estou a realizar entrevistas de carácter biográfico que visam identificar as razões que conduziram as pessoas à situação de sem-abrigo. no presente texto — ainda de pendor metodológico e clarificador da arquitectura teórica da investi-gação — reflicto acerca das práticas e dos processos a considerar na recolha de material biográfico: as questões éticas relacionadas com o acesso ao terreno, as decisões relativas à selecção e aos encontros com os entrevistados, as dinâmicas na interacção entrevistado--entrevistador, além de, como é evidente, discutir o papel do último na co-produção da narrativa biográfica.

Palavras-chave:Entrevista biográfica, Histórias de vida, narrativa biográfica, Sem-abrigo.

Silva, Susana Pereira (2007). Sem-abrigo: métodos de produção de narrativas biográficas

Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 69-82.

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Introdução

O presente artigo decorre do trabalho desenvolvido no âmbito do doutoramento em Ciências da Edu-cação, na área de especialização em Formação de Adultos. A investigação incide sobre os processos de socialização e aprendizagem de pessoas adul-tas que vivem ou viveram na rua (“sem-abrigo”)1 e estrutura-se em três eixos orientadores de pesquisa: i) um nível macro, de índole documental, em que se procura analisar as políticas sociais de combate à pobreza implementadas em Portugal a partir dos anos 90 e as directrizes emanadas pela Comunida-de Europeia; ii) um nível meso em que se pretende realizar o levantamento e caracterização das orga-nizações que trabalham com as pessoas sem-abrigo na zona de Lisboa; iii) um nível micro que incide sobre dois grupos de pessoas que vivem ou viveram em situação de sem-abrigo. Este último nível de análise desenvolve-se a partir da realização de en-trevistas de carácter biográfico que visam identifi-car as razões que conduziram as pessoas à situação de sem-abrigo, o que as levou a manter ou a alterar essa condição e as lógicas subjacentes às decisões de viver na rua, sair ou manter-se nela.

neste texto procura-se reflectir sobre a articu-lação dos aspectos teóricos e práticos a considerar na recolha de material biográfico: questões éticas relacionadas com o acesso ao terreno e aos entre-vistados; decisões relativas à selecção dos sujeitos; formulação do pedido de concessão da entrevista; aspectos práticos relacionados com a marcação da

data e do local onde se realizará o encontro; as di-nâmicas que constituem a entrevista propriamente dita; e o papel do entrevistador na produção da nar-rativa biográfica.

Contexto da investigação

Uma investigação não é independente da pessoa que a desenvolve e dos referenciais que possui, é um processo pessoal de construção de um objecto de estudo e desconstrução de ideias pré-concebidas, de formas simplistas de ver o mundo e de pers-pectivar a realidade envolvente. A escolha do tema deve-se ao trabalho de voluntariado que realizo, em Lisboa, desde 2004 numa Equipa da noite de uma Instituição Particular de Solidariedade Social que se dedica à distribuição de alimentos e apoio às pessoas sem-abrigo. Esta actividade permitiu-me conhecer de perto algumas pessoas que vivem na rua ou em alojamentos precários ou deteriorados. O contacto com esta realidade é muito intenso, quer pelos sentimentos despertados — dor, compaixão, impotência — quer pela necessidade de procurar compreender este fenómeno que afecta simultanea-mente indivíduos e grupos, que é individual, social e global.

Se todo o conhecimento é sempre autoconhe-cimento, como propõe Boaventura Sousa Santos (2003), a investigação que está sendo desenvolvida parte do desejo de conhecer e de compreender esta realidade. O objecto de estudo foi sendo construído

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tendo por base um conhecimento pessoal e directo duma realidade complexa, um fenómeno conhe-cido por sem-abrigo que se cruza com realidades múltiplas: pessoas a viverem nas ruas de Lisboa; instituições que se dedicam a auxiliá-las; organi-zações que pretendem “reinseri-las na sociedade”; pessoas reinseridas; e um sujeito que percepciona essa realidade, a interroga e se questiona. Parale-lamente ao processo de construção do projecto de investigação, houve uma grande implicação pessoal na realidade de algumas pessoas que vivem na rua, através de conversas mais longas e encontros mais frequentes que permitiram a criação de relações de afecto. Ignorar a influência das várias interacções com estas pessoas seria esquecer a totalidade da “pessoa-investigadora”, o principal instrumento de observação e de recolha de dados numa investiga-ção que se pretende qualitativa.

Ética do acesso ao terreno e contextualização da recolha biográfica

O trabalho de voluntariado iniciou-se em Agosto de 2004 e, desde novembro do mesmo ano, acumulei os papéis de voluntária com o de investigadora. O relacionamento dialéctico entre estas duas activi-dades suscitou hesitações quanto à natureza deste papel duplo de espia e confidente, de interessada e interesseira, fazendo-me sentir por vezes desmerece-dora da confiança depositada em mim. As questões éticas, suscitadas pela duplicidade dos papéis, foram ultrapassadas, em parte, pelo pedido de autorização verbal dirigido à presidente da organização onde sou voluntária. Mas a questão ética não se limita à auto-rização da instituição para aceder ao terreno: como explicar o meu papel duplo às pessoas com quem me relaciono quinzenalmente, que alimentam o meu conhecimento e o meu diário de campo? Devem ser informadas para que saibam que me relaciono com elas com o duplo interesse? Até que ponto esse co-nhecimento irá condicionar o desenvolvimento das nossas relações? Como ultrapassar esta questão?

Para Hughs (1996), o sociólogo é membro e estran-geiro, membro porque participa e estrangeiro porque observa, descreve e relata. Para ultrapassar a duplici-dade de papéis é necessário o investigador efectuar a separação e a parcialização temporal, ou seja deve

ser participante em privado e observador em público ou participante em público e observador em privado. O equilíbrio entre os papéis de participante e obser-vador está no cerne das ciências sociais :

“… il faut être proche de ceux qui vivent leur vie, mais il faut aussi vivre sa vie et en même temps re-later ce que l’on a observé. Le problème qui consiste à maintenir un bon équilibre entre ces rôles est au cœur même de la sociologie et, de fait, de toute science sociale. (…) l’observateur se trouve pris, à un degrés ou un autre, dans le réseau de l’interaction sociale qu’il étudie, qu’il analyse, et dont il rend compte” (pp. 276 e 278).

Os vários papéis desempenhados na observação participativa documentados e sistematizados em Burguess (1991) podem ser tipificados em duas ver-tentes: um relativo à participação; e outro ao anoni-mato do observador (Schwartz e Schwartz, citados em Burguess, 1991). Gold, citado em Burguess, de-fende a existência de um continuum entre o papel de observador passivo, num dos extremos de um eixo e o de participante activo no outro extremo. Entre estas posições extremas, Gold identifica os papéis de participante-como-observador e o de observador-como-participante.

A duplicidade de papéis forçou-me a criar um distanciamento entre a voluntária e a investigadora, pertencendo a voluntária ao mundo observado, e a observadora ao mundo da investigação. nos contac-tos com o mundo das pessoas sem-abrigo, o papel de voluntária é o papel principal que desempenho, e as minhas acções, enquanto tal, são também alvo de observação por parte da investigadora.

Para além da questão do papel de “agente--duplo”, há uma segunda dificuldade de natureza ética também referida por Burguess (1991):

“… even if participant observers can overcome role problems that confront them in the field, there are still unanswered questions about the ethics of reporting and publishing data that were gathered covertly” (p. 44).

Desde a primeira vez em que saí com a Equipa da noite, senti necessidade de escrever um diário, inicialmente com a função de espaço e tempo de

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verbalização de sentimentos e emoções suscitados pelo contacto com a realidade das pessoas sem--abrigo. Os registos foram-se alterando e, actual-mente, utilizo-o como diário de campo. Os dois anos de anotações permitem análises interessantes sob várias dimensões: uma pessoal relativa ao meu próprio percurso enquanto voluntária, do modo como superei o contacto com o sofrimento alheio, como sobrevivi ao que considerei serem tentativas de manipulação de algumas pessoas, ou como julgo ter ultrapassado questões relativas ao “internamen-to” de pessoas sem-abrigo e o relacionamento, por vezes ambíguo e complexo, entre a equipa técnica, as equipas de voluntários e as pessoas sem-abrigo; outra dimensão interessante deriva das notas que vou tomando sobre algumas pessoas, como nos va-mos relacionando, como se criaram os laços afecti-vos, ou como se resolveram conflitos, o diário con-tém inúmeras pequenas histórias das várias pessoas com quem me vou cruzando e se cruzam também com a minha própria história; outra dimensão refe-re aspectos relacionados com a organização e o fun-cionamento da instituição onde sou voluntária e do meu papel enquanto coordenadora da Equipa da noite; por último há uma outra dimensão que relata as relações com outras instituições que trabalham na área social, como são vistas pelas pessoas sem--abrigo, como se relacionam com a instituição onde trabalho, e foca também questões relacionadas com as pressões sociais sobre as pessoas sem-abrigo e com a “luta” pelo poder sobre o espaço público — a rua. Esta última dimensão não foi visível durante o primeiro ano e meio de contacto com esta realidade, mas actualmente tem sido uma constante no quoti-diano das pessoas sem-abrigo, quer pela interdição de ocupação de espaços onde inicialmente não ha-via impedimentos, quer pela pressão exercida por algumas instituições para o encaminhamento para os albergues e o aparecimento de algumas tensões sobre a utilização de espaços comuns pelas pesso-as “com-abrigo” e pelas pessoas “sem-abrigo”. De quem é a rua, os jardins, as paragens de autocarro?

Critérios para selecção dos entrevistados

A investigação que está a ser efectuada tem uma di-mensão forte de trabalho de campo e, uma outra,

relativa à recolha de informação biográfica de algu-mas pessoas que vivem ou viveram na rua. A equipa onde sou voluntária contacta, em média, 140 pesso-as por noite, o número de sacos com refeições que transportamos. Há alguma mobilidade das pessoas sem-abrigo e, nestes dois anos de proximidade, vão aparecendo novas pessoas, outras mudam de local de pernoita ou de trabalho, ou mudam de vida, vol-tando para a casa de familiares ou amigos, ou ade-rindo a programas de “reinserção”. Cada uma des-tas pessoas tem a sua história pessoal, com interes-ses específicos, formas de sobrevivência distintas, relacionamentos díspares, motivações para ficar ou sair da rua diferentes.

Frequentemente fala-se das pessoas sem-abrigo como se fosse um grupo homogéneo com caracte-rísticas comuns, mas o que tenho observado con-traria esta ideia. Para mim, o que estas pessoas têm em comum, tirando a sua humanidade, é o facto de se deslocarem regularmente à carrinha para receber um saco com alimentos. Algumas pessoas dormem na rua, outras têm casa e vivem com difi-culdades, outras, ainda, querem apenas conversar e outras aguardam ansiosamente pelo saco pois este é o único alimento que comem durante o dia. Al-gumas instituições que trabalham para as pessoas sem-abrigo sentem necessidade de as categorizar em função dos “problemas” que parecem apresen-tar: alcoolismo; perturbações psiquiátricas; toxico-dependência — por considerarem ser este o modo mais simples de criar respostas e soluções para es-tas pessoas. Deste universo de 140 pessoas tive de estabelecer critérios para seleccionar os entrevista-dos e novas questões éticas surgiram também. O primeiro critério a definir tratou-se da construção operatória do conceito “sem-abrigo”.

O conceito de sem-abrigo é ambíguo e a sua defi-nição não é oficial em Portugal e em diversos países da Europa. A Federação Europeia de Associações que trabalham com os Sem-abrigo (FEAntSA) propôs, em 2005, uma categorização das várias for-mas de exclusão relativas à habitação, e sem-abrigo2 é uma das quatro categorias conceptuais estabeleci-das pela EtHOS — tipologia Europeia sobre Sem--abrigo e Exclusão Habitacional. A expressão sem--abrigo é também utilizada para descrever pessoas que, para além de viverem em condições de habi-tação imprópria, se encontram em situação defici-

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tária a vários níveis: na sua vida privada (afectiva, saúde); profissional (sem emprego); e/ou financei-ra (Baptista, 2004; Bento, 2004; Bento & Barreto, 2002; Pereira et al., 2001). O fenómeno sem-abrigo é geralmente associado à pobreza, considerando-se como o escalão mais baixo da pobreza, e da “exclu-são social” (Costa, 1998). Desde os anos 80 tem-se intensificado a investigação nesta área, inicialmente nos Estados Unidos da América e posteriormente na Europa. Em Portugal, os primeiros estudos efec-tuados, datam dos finais dos anos 80.

no âmbito desta investigação, adoptei a tipolo-gia EtHOS3 por se tratar de um trabalho desen-volvido no âmbito da FEAntSA e pela clareza das categorias conceptuais e operacionais. Assim, os sujeitos seleccionados para a entrevista estão ou es-tiverem incluídos numa das categorias conceptuais constantes na EtHOS 2006: sem tecto; sem casa; habitação insegura; habitação inadequada. Em re-lação ao tempo em que uma pessoa é considerada sem-abrigo, devem ser atendidos alguns aspectos, nomeadamente, há quanto tempo vive numa habi-tação imprópria, ou onde está a viver na altura da investigação. Há autores que consideram a pessoa sem-abrigo se no dia anterior ao da investigação passou a noite na rua, num abrigo ou num local im-próprio para habitar, outros se durante um deter-minado período de tempo, semana, mês, ou ano, pernoitou em locais não adequados. Adoptei o cri-tério temporal sugerido por Marpsat (2003), sendo os entrevistados pessoas que viveram numa situa-ção definida na tipologia EtHOS por um período superior a 30 dias.

Um outro critério estabelecido para seleccionar os entrevistados foi o da escolha de um idioma in-teligível comum. As entrevistas seriam realizadas por mim e seriam gravadas para análise posterior e o entendimento mútuo e a necessidade de comu-nicarmos com facilidade e clareza, sem o recurso a um intermediário, pareceu-me fundamental.

Para além dos dois critérios acima referidos, viver ou ter vivido sem-abrigo e comunicação in-teligível, optei por entrevistar, numa primeira fase, pessoas com quem mantinha uma relação de proxi-midade, que poderiam estar disponíveis para acei-tar a entrevista e pudessem, de certa forma, ilustrar a diversidade de situações que conduzem as pesso-as a procurar abrigo na rua. nesta primeira fase ex-

ploratória da investigação foram entrevistados três homens: um que vive na rua há vários anos; outro que viveu 20 anos sem-abrigo e tem uma vida pes-soal e profissional estável há mais de dois anos; e um terceiro que saiu da rua há cerca de um ano e se encontra em fase de “reinserção” numa das residên-cias geridas pela organização onde sou voluntária. As estratégias utilizadas para solicitar a entrevista foram distintas nos três casos apesar de todos os sujeitos serem pessoas com quem tenho relações próximas.

A primeira pessoa a ser contactada foi Sérgio, um homem conversador e amável, de 53 anos que vive na rua há vários anos e arruma carros numa praça junto de uma igreja. Evitei falar com Sérgio enquanto voluntária, optando por o procurar no local de trabalho. Expliquei-lhe que estava a estu-dar, andava à procura de pessoas que viviam na rua para entrevistá-las e que gostaria de o entrevistar. Disse que sim, sem grande convicção, afirmando que não se importava de me ajudar e marcámos a entrevista para o Domingo seguinte, à noite, no lo-cal onde dorme. na data marcada fui à praça, levava o gravador, o guião da entrevista e um pacote de bolachas de chocolate para lhe oferecer. Pediu des-culpa mas nesse dia não podia ser pois tinham-lhe pedido para ficar a vigiar um carro e ele não podia dizer que não, adiámos a entrevista para a quarta--feira seguinte. voltei para casa um pouco desani-mada, provavelmente ele sentia receio de ser entre-vistado. no dia marcado cheguei à praça e não o vi. não fiquei muito surpreendida, já tinha pensado que poderia não estar. Comecei a pensar noutras al-ternativas para o substituir. voltei a casa e estava já sentada ao computador para trabalhar quando me telefonaram de um número desconhecido. Era Sér-gio a pedir desculpa pelo atraso mas tinha tido um compromisso. Perguntou se eu queria fazer a entre-vista ainda nessa noite e que a Joana, uma amiga, iria estar connosco. Disse-lhe que estaria na praça dali a um quarto de hora.

Quando cheguei à praça vi os pertences de Sérgio montados na entrada do Banco, reparei que tinha a viola, ao lado do saco-cama e de várias coisas. Esta-va um jipe parado junto ao Banco. Esperei um pou-co e a jovem que estava dentro saiu, devia ser a Joa-na. Apresentámo-nos, comentei a viola e trocámos algumas impressões sobre Sérgio e como se tinham

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conhecido. Sérgio apareceu, cumprimentámo-nos e sentámo-nos. Pensava que eu era jornalista ou es-tava a estudar jornalismo e tinha pedido à Joana a opinião sobre a entrevista. Pediram-me se lhes dava a cassete com a entrevista e disse-lhes que sim, po-dia dar a cassete ou o texto da transcrição, a Joa-na preferia a cassete. Sérgio explicou que a Joana sabia muitas coisas da vida dele, mas ele gostaria que ela ficasse a saber mais. Ela não podia ficar a assistir à entrevista pois é voluntária numa corpora-ção de bombeiros e estava de serviço naquela noite. Expliquei-lhe que estava a estudar, o quê e onde e Sérgio ficou satisfeito por ser Ciências da Educação e se tratar da Universidade de Lisboa. Expliquei su-mariamente qual era a questão de pesquisa, queria saber porque há pessoas que vivem na rua e outras viveram e saem da rua. Sérgio falou muito antes de iniciarmos a entrevista, explicou que o tinham acordado na noite de segunda-feira e que depois de acordar não conseguia adormecer. Mostrou-me o telemóvel que lhe tinham oferecido, lembrei-me que tinha um cartão da tMn que nunca tinha uti-lizado e ofereci-lhe. Sérgio faz questão de mostrar que não é “um coitadinho”, até me parece que não gosta nada que o tratem como tal.

Comecei a entrevista, disse-lhe que ia fazer uma pergunta e ele respondia como quisesse, mas que o iria deixar falar à vontade dele. Ele estava sentado no cartão e enfiado no saco-cama, eu estava senta-da na ponta do cobertor e a Joana ficou encostada à parede, de cócoras, até se ir embora. Ficou uns minutos no início da gravação.

A entrevista correu bem, ele “abriu o saco” e deixou sair muita coisa: as dificuldades da vida de criança; o primeiro emprego com 10 anos de idade; a raiva da mãe contra ele; a apetência para apren-der; a experiência de guerra; a vida com a mulher e a filha. Falei pouco e quando a história terminou, Sérgio disse-me que estava a sentir frio e tínhamos de parar. Desliguei o gravador, conversámos mais um pouco. Sentia-me uma intrusa ou abusado-ra — ele tinha-me confiado pedaços da vida e dos sentimentos sem me pedir nada em troca. Agradeci--lhe a confiança que tinha depositado em mim e fui embora silenciosa. Ficaram muitas perguntas por fazer, as que se referiam à organização da vida dele na rua. Mais tarde teria de resolver a questão, fazer uma nova entrevista mais centrada nos aspectos da

vida na rua, ou aprofundar mais dados sobre a sua história. Continuo a ver Sérgio regularmente, uma das cassetes não estava em boas condições e quan-do terminei a transcrição da entrevista imprimi o texto e dei-lhe para que pudesse usá-lo como qui-sesse, soube que o ofereceu à Joana. Algum tempo depois falámos sobre a entrevista, pediu-me para o entrevistar novamente porque tinha sido muito im-portante para ele e gostaria de conversar comigo so-bre a vida mais recente, ou seja, o período na rua.

O segundo entrevistado, tomás, tem cerca de 40 anos e actualmente trabalha na organização onde sou voluntária. Sabia que tinha vivido vários anos na rua e pedi ajuda a uma pessoa que o conhece bem para o sondar e saber se estaria disposto a ser entre-vistado, explicando-lhe o meu interesse no assunto. A entrevista foi marcada várias vezes e adiada. num sábado à noite conseguimos encontrar-nos no local onde tomás trabalha e vive. Atrasou-se e iniciámos a entrevista tarde, quando terminei, cerca de uma hora e meia depois, apercebi-me que já passava da uma da manhã. A entrevista foi diferente do que es-tava à espera, aliás a de Sérgio também tinha sido uma surpresa.

O terceiro entrevistado, Jorge, tem 45 anos e foi a primeira pessoa que quis sair da rua com a minha ajuda. Já lhe tinha falado várias vezes se, caso fosse necessário, o poderia entrevistar. teria muito gos-to em me ajudar. A primeira entrevista realizou-se num sábado, numa das visitas de Jorge a Lisboa. Encontrámo-nos de manhã cedo e levei-o para a Fa-culdade, tomámos um café e subimos para uma das pequenas salas do sótão. Foi uma entrevista longa, cerca de três horas e tivemos oportunidade para aprofundar factos, sentimentos e emoções. Quin-ze dias mais tarde realizei uma segunda entrevista sobre os três anos que viveu na rua. Esta segunda conversa foi realizada num jardim público, senta-dos num banco.

Os três entrevistados acederam a conversar co-migo, permitiram-me gravar as suas histórias e a todos prometi o texto transcrito. tenho mantido contactos regulares com todos eles e é curioso refe-rir que os três gostaram muito da entrevista, sentem que me ajudaram e que foi uma experiência interes-sante e gratificante para eles e para mim.

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Percurso biográfico

Sobreviver na rua, num espaço público, implica uma grande capacidade de adaptação a novas si-tuações práticas e sociais. As crianças educadas nas sociedades ditas desenvolvidas não aprendem a viver na rua. Do mesmo modo, os espaços urba-nos não foram concebidos e construídos para alojar pessoas. Quem utiliza a rua como espaço para viver tem de passar por um processo de aprendizagem. Assim, importa compreender quais os processos subjacentes à socialização e às aprendizagens dos adultos. Estes conceitos são atravessados pelo “ci-clo vital” (Canário, 1998) dos indivíduos, estando intimamente ligados à própria biografia. Charlot (1997) ilustra bem a relação entre a existência hu-mana e os processos de aprendizagem. De acordo com o autor o homem nasce inacabado e o processo de hominização obriga-o a aprender:

“Aprender para se construir, num triplo processo de hominização (tornar-se homem), de singulariza-ção (tornar-se um exemplar único de homem), de so-cialização (tornar-se membro de uma comunidade, na qual se partilha os valores e se ocupa um lugar). (...) Nascer, aprender, é entrar num conjunto de re-lações e de processos que constituem um sistema de sentido — onde se diz quem sou eu, o que é o mundo, quem são os outros” (p. 60).

O que significa sermos os autores da nossa vida? Até que ponto o nosso percurso é escolhido, im-posto, negociado, adiado ou negligenciado? Sendo a vida de cada indivíduo uma das matérias-primas para a sua auto-construção, a noção de percurso biográfico é abordada tendo por base os trabalhos desenvolvidos pelos investigadores que se têm de-dicado às Histórias de vida enquanto processo de formação. Estes estudos visam alcançar, essencial-mente, dois grandes objectivos: formar formadores; e investigar sobre os processos de formação, ou seja, responder à pergunta — como se formam os adul-tos? As histórias de vida têm sido utilizadas nesta dupla dimensão, como instrumento de formação e como metodologia de investigação. Os mais de vin-te anos de pesquisa e a existência da “segunda gera-ção” de investigadores que têm utilizado as histórias de vida e as biografias educativas, nestas duas ver-

tentes, permitiram a compilação e disseminação de conhecimentos sobre os processos de formação dos adultos, tendo por base as suas vidas. Esse corpo de conhecimentos é de grande riqueza, pois através da análise das histórias de vida e da singularidade de cada percurso de formação é possível identificar algumas regularidades, por exemplo: momentos importantes; situar os ambientes sociais; as pessoas influentes. Dominicé (1996) afirma que “a biografia educativa é sempre uma interpretação da vida adul-ta” (p. 75) e acredito que esta área de investigação nos pode fornecer pistas pertinentes para compre-endermos o modo como os adultos interpretam os seus percursos biográficos.

Com base no longo trabalho sobre as Histórias de vida e encarando a formação do ponto de vista do aprendente, Josso (1989) aponta algumas pistas de reflexão e compreensão do lugar ocupado pelas ex-periências na formação e transformação da identida-de e da subjectividade individual. Segundo a autora os desafios da dialéctica entre indivíduo e colectivo são formadores na medida em que as actividades, as situações, as interacções o forçam a reconsiderar ou a reconstruir ideias, soluções e comportamentos. Esta tensão entre o indivíduo e o colectivo confere uma “capacidade imitava de modelos culturais e uma capacidade de orientação aberta ao desconhecido” (p. 166). As experiências formativas tanto são as que alimentam a autoconfiança como as que alimentam as dúvidas, os erros e o questionamento. Segundo a autora e, de acordo com a sua experiência, é difícil estabelecer uma correlação entre as circunstâncias e os tipos de aprendizagem.

A tese de doutoramento de Christine Josso (1991)4 foi construída com base na sua biografia educativa. A partir da análise da sua própria narra-tiva e de mais de 80 biografias educativas, foi pos-sível criar categorias que constituem os processos de formação. Uma primeira categoria — “Momen-tos Charneira” — corresponde às escolhas e rup-turas feitas livremente, considerados como “saltos perigosos e dolorosos”. Estes momentos constituem verdadeiras “aprendizagens de rupturas: ruptura nas relações afectivas; rupturas nos modos de vida; rupturas nas actividades; rupturas com os contextos socio-culturais” (p. 207). As aprendizagens realiza-das com as rupturas tornam claro que a transforma-ção “implica tanto o abandono de certas aquisições

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como a abertura a novas potencialidades” (p. 207). Estes momentos de mudança obrigaram a autora a empreender actividades de adaptação ao ambiente, de investigação de novas realidades, criação de no-vas relações e de participação em actividades no-vas. Estas etapas foram de confronto com a com-preensão anterior do mundo e de modos de estar e de integração de novas construções de sentido.

“Assim, o que foi formador no meu percurso, foram as actividades, situações, acontecimentos, encontros e relações que me fizeram descobrir reali-dades desconhecidas até então e que me permitiram exercer ou adquirir qualidades, que me provocaram tomadas de consciência, que interrogaram os signi-ficados adquiridos ou criados anteriormente e me forçaram a reelaborar o sentido” (p. 208).

Josso considera dois níveis de aprendizagem, um primeiro composto por quatro etapas: inicia-ção, aquisição; manutenção; e transferência. E um segundo nível que surge com a acumulação de aprendizagens e advém da “capacidade de auto--observação e de explicitação do que foi feito para se conseguir a aprendizagem” (p. 210), este nível remete para a capacidade de aprender a aprender. Apesar da grande diversidade de aprendizagens que realizamos ao longo da nossa existência, Jos-so considera quatro categorias de aprendizagens: psico-somáticas; instrumentais; relacionais; e refle-xivas. Aprender exige que se saiba:

“… mobilizar os atributos físicos e psíquicos, des-cobrir as propriedades dos objectos e do ambiente, ser sensível às qualidades dos outros, para que a articu-lação entre o sujeito e os meios permitam o sucesso da actividade” (p. 209).

na categoria, “Dinâmicas”, importa considerar as transformações inscritas na temporalidade. Es-sas transformações são sentidas como desafios que se colocam às pessoas e implicam uma evolução sin-gular. Josso procurou encontrar uma categoria que permitisse englobar as dinâmicas que conduzem à transformação — as relações entre o individual e o colectivo (família, grupo, sociedade alargada).

“As relações indivíduo-grupos podem ser mais ou menos harmoniosas ou conflituosas, mas seja qual for

o modo como elas são vividas, apresentam-se como a trama da nossa existência, o lugar onde se joga a nossa identidade, onde ela se define e redefine sem cessar ...] num duplo movimento de identificação e diferenciação. ... Todas as biografias, em que partilhei na elaboração ou às quais tive acesso por uma simples leitura, teste-munham um ajuste dialéctico entre as exigências indi-viduais e os constrangimentos colectivos” (p. 214).

As dinâmicas encontradas por Josso foram cate-gorizadas em três pólos:

• Autonomização/Conformismo;• Responsabilização/Dependência;• Interioridade/Exterioridade.

As tensões entre autonomia ou conformismo vivem-se habitualmente em relação à família de origem, aos constrangimentos sociais; aos modelos tradicionais de estilo de vida, sistemas de pensa-mento, representações sobre si e sobre as relações com os outros. As tensões entre responsabilização e dependência marcam também os percursos biográ-ficos: também em relação à família, grupos, relações interpessoais, às escolhas profissionais; tomada de consciência da responsabilidade pela saúde indivi-dual, pelo ambiente, etc. Em relação às tensões en-tre interioridade e exterioridade, Josso afirma:

“Todos temos uma “vida dupla” com momentos de tensões que emergem dessa bipolaridade da nossa exis-tência: a nossa vida interior e a forma de viver em rela-ção aos outros. Estas tensões nascem duma contradição entre comportamentos e ideias expressas por um lado, pensadas, sentidas e não exteriorizadas, por outro. Podem aparecer quando uma evolução interior é con-trariada por condições exteriores, até então satisfató-rias, por uma tomada de consciência que questiona uma coerência interior, ou ainda nas situações em que desejamos evitar um conflito aberto, ou em todos aque-les momentos em que os outros nos enviam uma ima-gem de nós próprios que sentimos não ter uma corres-pondência interior. Aqui também, os momentos de ten-são não são mais do que tempos fortes duma dialéctica permanente ao longo da nossa existência” (p. 216).

A categoria “Atitudes e qualidades do sujeito” é mais difícil de definir. De acordo com Josso, as ati-tudes e qualidades do sujeito são mais salientes nos

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momentos charneira, apesar de oscilarem com o tempo. nesta categoria sobressaem as ideias que o indivíduo tem sobre si, entre passividade e inicia-tiva, entre considerar-se o autor da sua vida, sujeito a limites e constrangimentos, ou ver-se como um ser condicionado, resultado de acontecimentos que lhe são alheios e que determinam as suas escolhas.

A entrevista biográfica e a influência do entrevistador na produção da narrativa

Embora o trabalho de Josso tenha por objectivo encontrar os marcos de um percurso de formação, a transposição destes marcos para os percursos de vida é lícita e foi-me útil para a construção da questão ini-cial da entrevista e para a condução da mesma. Foram construídos dois guiões de entrevista com uma ques-tão de partida e algumas perguntas orientadoras que focavam aspectos que me interessavam explorar. A questão de partida: “O que sucedeu na sua vida que o conduziu a viver na rua?”, foi igual para os dois gui-ões e pretendia orientar a construção da narrativa bio-gráfica para a selecção dos episódios mais relevantes para o entrevistado, propiciando a elaboração da nar-rativa e os argumentos sobre o sentido ou a direcção e o significado do seu percurso biográfico.

Demazière e Dubar (1999) definem a entrevista biográfica de investigação como uma “narrativa ou conto”5 que deve suscitar “… une conduite de récit c’est à dire une mise en forme argumentée de son par-cours” (p. 226) e consiste na recordação de episó-dios, na sua interpretação e na articulação temporal do passado, presente e futuro, inserindo-os numa história com um sentido:

“C’est une caractéristique essentielle de la con-duite de récit: l’évocation du passé implique le juge-ment sur le présent qui suscite l’anticipation des ave-nirs possibles. Ainsi, comme le reconnaît d’ailleurs Greimas, la narration est “un processus créateur de valeurs” (p. 234).

Hughes (1996) considera a sociologia actual como a “ciência da entrevista” em dois sentidos: como instrumento preferido dos sociólogos; como o próprio objecto da sociologia — a interacção “a troca de palavras e gestos ” (p. 282). Para Bourdieu (1993) a entrevista é também uma troca, uma relação

social distinta da maior parte das outras que exerce efeitos sobre os resultados obtidos. Esta interacção é marcada por diferentes expectativas e papéis entre os interlocutores e por distintos graus de implicação pessoal. Hughs refere a existência de códigos que permitem definir a intensidade das expectativas po-dendo ter vários graus, desde a imposição absoluta até à igualdade ou neutralidade de papéis, existindo em ambas as situações regras ou convenções, mais claras e explícitas no grau máximo de intensidade (normas e leis) e mais ligeiras no limite inferior.

A entrevista, enquanto uma metodologia de in-vestigação tem sido estudada por vários autores pro-venientes de diferentes campos nas ciências sociais que se debruçam sobre as técnicas da entrevista. Para este artigo, importa essencialmente explorar a componente relacional que se cria entre o entrevista-do e o entrevistador; e reflectir sobre a co-produção da narrativa biográfica. Segundo Demazière e Du-bar (1999), numa entrevista de investigação biográ-fica cada interveniente, com papéis distintos, utiliza a linguagem para mediar a troca de palavras e a pro-dução da narrativa. O entrevistado faz uma reflexão retrospectiva e prospectiva do que é importante na própria vida, que os autores denominam por “tra-vail sur soi”. O entrevistador, através de uma escuta activa, é co-produtor da narrativa:

“En cherchant à comprendre, il incite à produire des significations, il pousse à développer des argu-mentations, il sollicite des enchaînements, des mises en relation, des explicitations de formules qui lui paraissent obscures” (p. 228), na medida em que ele participa intelectualmente e afectivamente no diá-logo que produz a narrativa. Através da introspec-ção e do diálogo. “… les narrateurs ne racontent pas leur vie mais ils mettent en scène, de manière à convaincre, le sens de leur propre parcours” (théry, 1994, cit. in Demazière & Dubar, 1999).

As três entrevistas foram realizadas por mim em períodos distintos, as duas primeiras aconteceram em Janeiro de 2006 e a última em Maio do mesmo ano. As três narrativas biográficas produzidas são muito diferentes e a forma como cada um dos entre-vistados respondeu à questão inicial indicia alguns aspectos que gostaria de partilhar neste artigo: as dimensões “produção da narrativa biográfica”; do

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“trabalho sobre si”; e da “escuta activa” referidas por Demazière e Dubar (1999). Para ilustrar estas dimensões transcreve-se, seguidamente, o início das três entrevistas:

11 de Janeiro de 2006 — entrevista sérgio

E.: Bom, posso fazer a primeira pergunta? Que é as-sim: — O que é que sucedeu na sua vida que o conduziu a viver na rua?

Sérgio: Eu para lhe responder a essa pergunta, começo mesmo desde já a responder-lhe, mas a expressão correcta é essa... eu tenho de começar a falar de mim mesmo, daquilo que fui, daquilo que gostaria de ter sido, daquilo que me obrigaram a ser. E não sei... eu lembro-me de ser eu, desde que fui baptizado, até me lembro de ter tratado mal o padre, porque fa-zia muito frio e a água estava gelada. Acho que lhe chamei de tudo e depois os meus pais repreenderam--me com um par de acoites, mas foi bom, passou-se. E é sobre os meus quatro anos, mais ou menos. Tive uma infância, simples, maravilhosa, bonita, como todos os miúdos, meninos e meninas têm. Gostei, lembro-me muito da minha infância. Fiz a escola primária como todos e sempre com muito respeito pelos professores e pelos amigos, mas sempre tão mau e tão bom como eles. É verdade... e uma das coisas que eu mais gostava de fazer era de ir à escola e dar água de beber aos burros.

E.: Dar água a quê?Sérgio: Dar água aos burros. Porque eu vivia numa

aldeia, na aldeia onde eu nasci...E.: Onde é que era?Sérgio: Em Vera Cruz, no Alto Alentejo, no distrito

de Évora. Mas é uma aldeia muito bonita.E.: E vivia lá com os seus pais e com os seus irmãos?Sérgio: Com os meus pais e com os meus irmãos na

casa dos meus avós. Na casa da minha avó que era a pessoa mais bonita, a pessoa mais mara-vilhosa que eu tive, para mim foi uma mãe! Os meus pais sempre gostaram de mim, tanto o meu pai como a minha mãe. Os meus irmãos, sem-pre gostámos muito uns dos outros, sempre fomos muito amigos. Depois aí sobre os nove anos... não, sobre os dez anos, tinha acabado de fazer a 4ª classe, quando os meus pais vieram aqui para a Malveira. Viemos aqui para a Malveira numa terça-feira e comecei a trabalhar numa quinta...

27 de Janeiro de 2006 — entrevista tomás

E.: Eu vou pôr o gravador aqui mais no meio, mais pertinho de ti. Pronto e eu faço-te uma pergunta e depois tu vais respondendo. As coisas que eu não perceber muito bem vou-te perguntando e assim.

Tomás: Está bom.E.: Tá? Pronto, então a primeira pergunta é: — O

que é que sucedeu na tua vida que te conduziu a viver na rua?

Tomás: O que é que me sucedeu na vida para eu vir parar ao meio da rua? Foi, hum... tudo tem um princípio e um conjunto de várias situações que me aconteceram na vida levaram a que eu... fosse mais fácil para mim, estar nas ruas, e isto numa primeira fase. Depois, lógico que a médio e a lon-go prazo tornou-se foi no revés, foi o contrário.

E.: Como?Tomás: Começou a tornar-se muito mais difícil estar

nas ruas do que estar em casa. Só que ao princí-pio era muito mais fácil estar nas ruas do que estar em casa.

E.: Mas, mas uma pessoa vai para a rua assim de repente? No teu caso foi assim?

Tomás: Não.E.: Ou são várias coisas...Tomás: São várias coisas que sucedem...E.: E um dia acordas e estás na rua? Como é que é?Tomás: Não. Foram várias coisas que sucederam.

Foram problemas a nível familiar... que tinha uma grande instabilidade em casa... fruto de problemas com irmãos, com o pai que não era o meu pai, com um conjunto de... antigamente vivia-se num regime bastante difícil, as coisas eram muito mais rígidas. Hoje existe...

E.: Mas tu vivias onde? Em Lisboa?Tomás: Vivia em Lisboa...

13 de Maio de 2006 — entrevista Jorge

E.: Então estás de acordo com tudo? Eu vou pôr o gravador aqui pertinho de ti para se ouvir me-lhor, está bem?

Jorge: Sim.E.: E vou fazer-te uma pergunta e tu vais respon-

dendo e à medida que eu for tendo dúvidas, vou perguntando...

Jorge: Ok.

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E.: Está certo? Então vá, é só uma questão, que é, o que é que sucedeu na tua vida que te conduziu a viver na rua?

Jorge: (Pausa) O que sucedeu na minha vida foi eu não aceitar que era... não admitir que era alco-ólico, continuar no meu alcoolismo diariamente, apesar de ter empregos, despedir-me dos empregos ou às vezes ser despedido. O último emprego, por exemplo, trabalhava em Lisboa, chegou ao fim do mês, tinha um quarto alugado, o patrão em vez de me pagar o ordenado, o salário completo, só me pagou metade.

E.: Porquê, não tinha dinheiro?Jorge: Porque... ele disse que me dava o outro pas-

sado dois ou três dias, só que eu mal recebi logo a metade desse salário, comprei a senha do au-tocarro porque precisava dela porque morava... tinha o quarto alugado em Santo António dos Cavaleiros...

E.: Hum, e trabalhavas em Lisboa.Jorge: E trabalhava em Lisboa, ali por perto da Ala-

meda.E.: Hum...Jorge: E depois, numa segunda-feira.E.: Ele deu-te o teu ordenado numa segunda-feira?Jorge: Não. E depois numa segunda-feira apanhei

uma bebedeira... já gastei mais... já quase a me-tade do salário que eu tinha recebido e ainda me faltava o outro que era para o quarto, como não tinha o resto do salário para o quarto, acabei por ir, por vir para a rua. Não tinha coragem de aparecer perante a senhora do quarto, tanto que a minha roupa ficou lá toda no quarto, ainda, em Santo António dos Cavaleiros, ainda lá está.

E.: Mas então, um dia o teu patrão disse que não te podia pagar o ordenado todo...

Jorge: Disse que me pagava depois.E.: Sim e tu precisavas de dinheiro para pagar o

quarto?Jorge: Sim, precisava de dinheiro para pagar o quar-

to e era fim do mês.E.: Sim...Jorge: Como não o tinha, apanhei a bebedeira no dia

anterior...E.: Mas quando tomaste a decisão... percebeste que não

tinhas coragem... ou percebeste que gastaste o dinhei-ro e que não ias ter dinheiro para pagar à senhora...

Jorge: — Sim.

E.: — Não estavas bêbado? Quando decidiste que não tinhas coragem, que no fundo foi falta de cora-gem, não foi?

Jorge: — Foi.E.: — Não foi por teres bebido!...Jorge: — Eu ainda estava ressacado.E.: — Sim, mas o que te levou a não voltar para casa,

foi o quê, dizeres à senhora que tinhas feito asneira, não querias ter dito? (pausa) Estás a perceber?

Jorge: — Não porque ela já me tinha avisado antes.E.: — Já tinhas falhado o pagamento mais vezes?Jorge: — Porque tinha falhado uma vez, num empre-

go anterior e ela...E.: — O pagamento?Jorge: — Sim.E.: — Mas depois deste-lhe o dinheiro, ou não?Jorge: — Dei algum dinheiro.E.: — Não deste todo?Jorge: — Não, porque ela não o quis.E.: — Não quis porquê?Jorge: — Porque ela, primeiro... agora já arranjaste

outro emprego, porque no espaço de quatro meses tive em quatro empregos.

na dimensão “produção da narrativa biográfica” importa realçar que Sérgio inicia a sua narrativa com a história do seu percurso, ou seja, aparentemente desprezou a questão inicial, e narrou o seu “conto” desde que tomou consciência de si próprio, seleccio-nando sequencialmente os factos mais relevantes: o baptismo, a infância, a escola, a chegada à Malveira e o início do trabalho. tomás tentou responder à ques-tão de partida, procurando argumentos justificativos das suas opções de viver na rua e posteriormente de deixar a rua. A sua narrativa começa na infância e no contexto de vida familiar e social. Jorge começou a entrevista com uma pausa, como se procurasse uma única resposta que satisfizesse a minha questão. Ini-ciou a sua narrativa, não na infância, como os dois primeiros entrevistados, mas a partir do último em-prego que teve antes de ir viver para a rua.

na dimensão “trabalho sobre si”, e com base nos textos integrais das entrevistas, os três inquiridos fize-ram uma reflexão retrospectiva do que consideraram importante nas suas vidas e que, de certo modo, res-pondesse à questão inicial. Os excertos apresentados ilustram de uma forma muito ténue esse trabalho de reflexão. tomás e Jorge fizeram um esforço para res-

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ponderem à questão inicial, logo no início da entre-vista, o que as tornou, no seu todo, circulares, pois o início da narrativa coincide com o final. na narrativa de Sérgio o início da entrevista coincide com o seu baptismo quando era criança e o final com o momento presente. O trabalho sobre si é também induzido na situação da entrevista, na interacção com o entrevista-dor e na interacção do entrevistado consigo próprio.

Em relação à “escuta activa” e ao meu papel en-quanto co-produtora da narrativa biográfica penso que é pouco visível na narrativa de Sérgio: a sua história já estava contada, as minhas intervenções tiveram como objectivo esclarecer frases ou con-textualizar as situações descritas. A narrativa de tomás começou por ser mais argumentativa e me-nos cronológica tornando necessária uma maior in-tervenção da minha parte, no sentido de procurar o suporte das suas razões no seu percurso pessoal. na entrevista de Jorge, creio que assumi um papel mais activo enquanto entrevistadora, uma vez que o seu discurso era bastante argumentativo, parecendo procurar razões que esclarecessem a questão inicial ou confirmassem a sua justificação inicial.

Conclusão

O presente texto pretende relatar o processo de reco-lha das narrativas biográficas que estão a ser realiza-das no âmbito do meu doutoramento em Ciências da Educação, reflectir sobre o modo como o processo está a ser efectuado no terreno e como se produzem as narrativas biográficas recolhidas através de entre-vistas de investigação. Foram discutidos aspectos re-lativos ao acesso ao terreno, à duplicidade de papéis voluntária-investigadora e às questões éticas que lhe estão associadas. Os critérios de selecção dos indi-víduos foram enunciados e considera-se um factor importante o conhecimento prévio e a proximidade afectiva, pois parecem ter sido facilitadores, quer na condução das entrevistas, quer no empenhamento e na confiança que todos eles me demonstraram.

Foram referidas as categorias mais pertinentes para a análise dos percursos biográficos, tendo por base o trabalho de Josso. no âmbito deste artigo não foi possível apresentar os resultados das análises in-tegrais das narrativas, mas estas categorias estiveram

presentes na elaboração dos guiões e na própria condução das entrevistas. Os excertos apresentados não permitem dar uma visão global dos três per-cursos biográficos, da identificação dos momentos charneira, das dinâmicas e das atitudes e qualidades dos sujeitos. Fica em aberto a análise das narrativas construídas a partir de entrevistas biográficas.

As entrevistas foram marcadas previamente e to-dos os sujeitos tinham uma ideia, ainda que vaga, sobre o tema da conversa e do meu interesse pes-soal neste trabalho. Acederam ao meu pedido e mostraram-se empenhados e dispostos a contribu-írem com os seus conhecimentos e as suas vidas no meu projecto de investigação. Ainda que seja pos-sível tomar, antecipadamente, algumas precauções para que a entrevista seja bem sucedida, cada en-contro é um acontecimento único e em directo, as decisões são tomadas com base na experiência ante-rior do investigador e nos interesses da investigação. Foi dada uma grande liberdade aos entrevistados para narrarem os seus percursos; no entanto a nar-rativa assim recolhida é sempre um trabalho conjun-to de construção de um “conto”, porque, ainda que o entrevistador assuma uma escuta mais passiva do que activa, as questões que coloca, os comentários que a narrativa lhe sugere, os gestos involuntários de aprovação ou de distracção influenciam a dinâmica de produção do discurso, quero dizer, a selecção de episódios mais significativos, a expressão ou con-tenção de sentimentos dolorosos e de emoções. As trocas que se geram neste processo são complexas e de difícil análise, no entanto, penso que através dos exemplos apresentados é possível apercebermo-nos que, apesar da questão inicial ser comum, cada pes-soa possuiu uma narrativa própria, para uns mais factual e sequencial, da infância para a idade adulta, para outros mais argumentativa, buscando razões e explicações retiradas da infância ou da vida adulta.

A narrativa biográfica recolhida e construída através de entrevistas é produzida pelo autor e co--autor: o primeiro possuiu a globalidade da matéria--prima, os factos vividos, sentidos, pensados, reflec-tidos, alterados e integrados em si; o segundo tem interesse na produção de uma narrativa que sirva os objectivos da investigação. Juntos constróem esse produto final, a narrativa biográfica que irá alimen-tar a produção do conhecimento científico.

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notas

1. no Brasil a expressão equivalente a sem-abrigo é “sem-tecto”.

2. Em 2005 a categoria utilizada foi traduzida do francês “sans abri”. Em 2006 a FEAntSA actua-lizou esta tipologia e foi traduzida para português como categoria conceptual “Sem tecto”.

3. EtHOS — tipologia Europeia sobre Sem--abrigo e Exclusão Habitacional “Au cours de ces der-nières années, le groupe de travail collecte de données de la FEANTSA et l’Observatoire européen sur le sans--abrisme a développé une typologie de l’exclusion liée au logement appelée ETHOS (European Typology on Homelessness and housing exclusion). Cette typologie a été lancée début 2005 et a été analysée à l’occasion de différents séminaires/réunions à l’échelon local, natio-nal et européen. ETHOS est maintenant sert de cadre pour des débats, des initiatives de collecte de données, des recherches, et l’élaboration de politiques de lutte contre l’exclusion liée au logement. Il est important de noter que cette typologie est un exercice ouvert qui fait abstraction des définitions nationales dans les états membres de l’Union européenne. ETHOS est fon-dé sur la notion de «home» en anglais (qui serait com-posé de trois domaines: logement, social, et juridique) pour créer une définition large de l’exclusion liée au logement. ETHOS classe les personnes sans domicile fixe en fonction de leur situation «de vie»: être sans abri (dormant à la rue); être sans logement (avec un abri mais provisoire dans des institutions ou foyers d’hébergement) ; en logement précaire (menacé d’ex-clusion sévère en raison de baux précaires, expulsions, violences domestiques) ; en logement inadéquat (dans des caravanes sur des site illégaux, en logement indi-gne, dans des conditions de surpeuplement sévère)”. Consultado em Dezembro de 2006, em: http://www.feantsa.org/code/En/pg.asp?Page=546.

4. As citações extraídas desta obra foram traduzi-das livremente do texto original em Francês.

5. no original, récit.

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 i s s n 1 6 4 6 - 4 9 9 0

Recensões

Como refere António nóvoa1 (1998, p. 169), a vida e a obra de Paulo Freire estão inscritas no imaginário pe-dagógico do século XX, constituindo uma missão qua-se impossível a separação do homem do mito. É este lado mitológico de Paulo Freire que tem alimentado uma produção intelectual que, em muitos casos, assume cla-ras características hagiográficas. O papel das ciências sociais, e em particular da sociologia, consiste em dar “caça aos mitos”, desmontar ideias recebidas, reequa-cionar e reformular problemas. É por ter adoptado esta postura epistemológica que a obra de vanilda Paiva é susceptível de abalar algumas ortodoxias simplifica-doras. Mas é também essa reflexividade crítica que lhe permitiu escrever um livro que, como escreveu João trajano Sento-Sé na nota de apresentação desta edição, “abre possibilidades para que outros livros sejam lidos e escritos”, não tendo a “pretensão de ser definitivo” e transformando-se, por isso, num “clásssico” que é um dos “mais belos trabalhos de história das ideias já pro-duzidos no Brasil”.

A famosa experiência de Angicos, legitimada pela presença e o aval político do então presidente João Goulart, tornou Paulo Freire um dos mais conhecidos e prestigiados pedagogos no Brasil, particularmente através do “método de alfabetização” proposto, experi-mentado e apresentado como capaz de alfabetizar adul-tos em apenas 40 horas. Este método constituiria a base para a realização de um ambicioso Plano nacional de Alfabetização (PnA) que propunha como meta a alfa-betização de cinco milhões de brasileiros no curto perí-odo de dois anos. A esperança suscitada pelo “método Paulo Freire” de representar uma solução pedagógica de validade universal, de efeitos quase milagrosos, ex-plica a notoriedade ganha por Paulo Freire num contex-to nacional e internacional em que o analfabetismo e o desenvolvimento eram encarados como problemáticas centrais e umbilicalmente ligadas.

Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista, de vanilda Paiva

A edição original desta obra remonta a 1980 (Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira, Colecção Educação e trans-formação) e corresponde, com algumas pequenas altera-ções, ao trabalho de investigação realizado pela autora, consubstanciado na sua tese de Doutoramento. Apesar de traduzida em espanhol, alemão e inglês, só vinte anos mais tarde viria conhecer uma reedição no Brasil, per-manecendo, no quadro da vastíssima bibliografia consa-grada à obra de Paulo Freire, como uma obra pouco co-nhecida, deliberadamente ignorada ou esquecida. A esta omissão não será certamente alheio o conteúdo da obra e a originalidade da sua tese fundamental: a autora estabe-lece uma relação entre a acção pedagógica e a produção teórica de Paulo Freire, até 1965, e a ideologia nacionalis-ta e desenvolvimentista, de cariz populista, desenvolvida e divulgada a partir de um núcleo de intelectuais agru-pados institucionalmente no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Essa ideologia é apresentada por vanilda Paiva como a tradução política e intelectual para a realidade brasileira dos anos 50 e 60 — zona periférica do mundo capitalista — do keynesianismo e das ideias sociais que serviram de base aos “Estados Providência”.

Esta proposta de abordagem crítica da obra e do pensamento de Paulo Freire, na fase que termina com o golpe de estado militar de 1964, procura situar a acção e o pensamento de Paulo Freire no seu tempo e lugar his-tóricos, o que conduz, em contracorrente com aqueles que dele propõem uma visão essencialmente panegírica e simultaneamente com os seus detractores, a defender teses, propor hipóteses e interrogações que, pela in-comodidade que eventualmente possam produzir, se traduziram numa atenção ao trabalho de vanilda Paiva que está muito aquém dos seus méritos.

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Ao nível brasileiro, a existência de níveis de analfa-betismo próximos dos 50%, com repercussões drásticas na amplitude do universo de eleitores (a alfabetização era condição necessária para exercer o direito de voto), transformava a questão do combate ao analfabetismo numa questão eminentemente política, directamente articulada com os projectos de modernização económi-ca e social do Brasil. Os projectos desenvolvimentistas e de cariz nacionalista eram naturalmente encorajados por uma conjuntura política internacional favorável ao desenvolvimentismo, o que do ponto de vista ocidental representava uma resposta ao perigo do alargamento da área de influência soviética, num contexto de “guerra fria”. O início dos anos 60 coincide temporalmente com a política norte americana da “Aliança para o progres-so”, dirigida ao sul do continente e, como refere vanil-da Paiva, a experimentação do método de Paulo Frei-re foi parcialmente financiada por uma agência norte americana para o desenvolvimento internacional (US. Agency for International Development). O golpe militar de 1964 conduziu Paulo Freire à prisão, num primeiro momento, e ao exílio, num segundo momento. Aqui se transformou no “tradutor” pedagógico das ideias do Concílio vaticano II, por ser fundamentalmente “um homem prático e um militante político e religioso” e pelo protagonismo que lhe foi proporcionado pelo Con-selho Mundial das Igrejas. Como sugere vanilda Paiva, o golpe militar de 1964 poupou Freire à erosão crítica que a concretização do Plano nacional de Alfabetiza-ção quase inevitavelmente suscitaria e, por outro lado, projectou-o para uma acção internacional no contexto de uma vaga de movimentos de libertação nacional, também eles confrontados e tributários da ideologia desenvolvimentista. Para vanilda Paiva, a continuada e crescente notoriedade e reconhecimento internacionais de Paulo Freire permanecem pouco esclarecidos, se a origem das suas ideias, as suas vertentes pragmática e ecléctica, não forem analisadas à luz do contexto histó-rico brasileiro e internacional dos anos 50 e 60.

Em relação ao contexto brasileiro, no seu trabalho de investigação vanilda Paiva desvenda as conexões directas das ideias e da acção de Paulo Freire com o nacional desenvolvimentismo propugnado pelos inte-lectuais do ISEB e, através desta influência, a conexão mais indirecta com a corrente populista representada por Getúlio vargas e que marca toda a realidade polí-tica do século XX brasileiro desde os movimentos dos jovens tenentes contra a “República velha”, a partir da década de 20.

Em matéria de nacionalismo, desenvolvimentismo e populismo, as fronteiras entre esquerdas e direitas são fluidas, sendo comuns muitas das vertentes desse patri-mónio ideológico. A osmose política, traduzida numa espécie de unidade conflitual entre forças aparentemen-te opostas do espectro político brasileiro, tem a sua me-

lhor expressão no percurso político de Luís Carlos Pres-tes. Será esta uma das razões possíveis para uma certa hostilidade da intelectualidade universitária em acolher uma proposta de “explicar política e intelectualmente o surgimento do método e das ideias de Paulo Freire”, recolocando-o no seu contexto histórico e procurando a “descoberta do social a partir do pedagógico”, prin-cipalmente tendo em conta a época da publicação, em plena ditadura militar.

O trabalho analítico e interpretativo realizado por vanilda Paiva constitui uma contribuição teórica rele-vante para a compreensão da obra e do pensamento de Paulo Freire. O valor dessa contribuição pode ser, do nosso ponto de vista, sintetizado em seis ideias princi-pais que, muito sinteticamente passamos a enunciar:

– A filiação nacionalista e desenvolvimentista da ac-ção e pensamento de Paulo Freire exprime-se no modo como interpretava a realidade brasileira, apelando a um processo de desenvolvimento que permitisse a transição de uma sociedade “arcaica” para uma sociedade “moder-na”, marcada por uma efectiva democratização política. nas palavras de vanilda Paiva, a “preocupação de Freire é a de desenvolver uma pedagogia adequada a essa mu-dança”, propiciadora da formação de um “homem demo-crático”, susceptível de corresponder à situação de tran-sição vivida pela sociedade brasileira (pp. 144-145);

– no quadro de uma “Revolução Brasileira” baseada no consenso e comandada pela razão - expectativa de grande parte da intelectualidade brasileira nos anos 50 e inícios dos anos 60 - insere-se a ideia de mudança as-sociada à pedagogia de Paulo Freire, cujos limites ficam claros “quando vemos que, “para ele, a mudança exige reformas sociais que devem ser promovidas mediante o consenso entre grupos e classes sociais” (p. 150);

– É no quadro destes limites que deve ser entendido o alcance do conceito de conscientização que, nesta fase, representa para Freire, não uma forma de “consciência de classe”, mas “um tipo de consciência que permitisse a percepção da situação global do país de modo a gerar acções que promovessem o desenvolvimento nacional e consolidassem a democracia parlamentar” (p. 159);

– É desta perspectiva que a concepção pedagógica de Freire pode ser encarada, como sustenta a autora do livro, enquanto tradução “sob o manto do combate ao autoritarismo tradicional da sociedade brasileira, do autoritarismo ‘esclarecido’ subjacente ao isebianismo”;

– É neste sentido que a proposta pedagógica elabo-rada por Paulo Freire no final dos anos 50 e inícios dos anos 60 pode ser interpretada como uma pedagogia di-rectiva: “educar as massas era conquistá-las para a ‘ide-ologia do desenvolvimento’ formulada pelos isebianos. (…). Se aceitarmos que o isebianismo é uma expressão teórica do populismo, não podemos deixar de perceber tal caráter nesta tradução pedagógica do nacionalismo desenvolvimentista por Freire” (p. 209);

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– Um certo autoritarismo pedagógico é consonante com o papel atribuído ao Estado e à sua acção planifica-da, no sentido de promover a passagem de uma socieda-de agrária e oligárquica para uma sociedade industrial moderna. Esta vertente contrasta com uma progressiva orientação pedagógica não directiva que confere ao pen-samento de Freire uma ambiguidade essencial entre um “não diretivismo pedagógico nas relações face a face e certo dirigismo no plano ideológico mais amplo, ditado pelos valores básicos de sua proposta histórico-social, religiosa e cultural” (p. 25).

Como a autora não se cansa de sublinhar, este estu-do diz respeito ao período da acção e da obra de Paulo Freire na sua etapa inicial, cobrindo o período que vai até 1965. A evolução de Freire a partir da segunda me-tade dos anos 60 exige uma abordagem específica que não foi objectivo deste trabalho. Ele representa, sem dúvida, um contributo indispensável à análise, estudo e compreensão da posterior trajectória intelectual e po-lítica de Paulo Freire. Pelas questões que levanta, pe-las perguntas que induz e pela sua actualidade para a

discussão do potencial transformador e emancipatório da educação, é urgente retirar do esquecimento, reler e discutir, este livro apaixonante e estimulante.

notas

1. vide nóvoa, António (1998). Paulo Freire (1921-1997): a “inteireza” de um pedagogo utópico. In M. Apple e A. nóvoa (orgs.). Paulo Freire: política e pedago-gia. Porto: Porto Editora, pp. 167-187.

Rui Canário

Canário, Rui (2007). Recensão da obra “Paulo Freire e o nacionalismo de-

senvolvimentista”, de vanilda Paiva [2000 (reedição)]. São Paulo: Graal.

Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 83-86

Consultado em [mês, ano], em: http://sisifo.fpce.ul.pt

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Conferências

Ser formador nos dias que correm:novos actores, novos espaços, novos temposFaculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, 4 de novembro de 2005

Pierre Caspar

suas formas modernas, farei a ligação com alguns tra-ços marcantes da formação profissional de adultos, vo-cação primeira do Conservatório nacional das Artes e Ofícios (C.n.A.M.) de onde venho. Finalmente, depois de examinar alguns territórios novos que se abrem aos formadores, partilharei convosco as minhas reflexões pessoais a propósito da riqueza e das dificuldades de ser formador nos dias que correm.

O quadro desta intervenção, orientado segundo o eixo da formação profissional contínua, não irá permi-tir que se examinem nem outras formas da formação de adultos, nomeadamente as formações informais ou a educação popular, nem os elos incontornáveis entre formação inicial e formação contínua, nem a formação considerada como um campo de investigação. É pena, mas como conseguir tratar tudo?

A QUEStãO DO ACESSO AO SABER situa-se no centro do próprio conceito de aprendizagem, no cora-ção dos elos entre ensinar e aprender, na articulação das relações entre saber e poder.

Durante séculos, aprender dependia, antes de mais, da capacidade e do direito a aceder aos lugares do saber, espaços esses, comunidades essas, onde eram reunidas as aquisições da humanidade, guardadas, mantidas, estudadas, interpretadas, reproduzidas e difundidas. Invejosamente escondidas até, não seria que para não desvendar o seu conhecimento aos que não estariam aptos a recebê-lo e dele fazer uso com discernimento… Ou que como tal seriam julgados por certos grupos so-ciais escolhidos como detentores e guardiães do conhe-cimento, esse conjunto de saberes portador de sentido. Recorde-se o filme “O nome da Rosa” e a sua biblioteca secreta, de que a maioria dos membros da comunidade monástica ignorava mesmo a existência. não há neces-sidade de se proteger de um eventual acesso àquilo que não existe.

Fiquei muito honrado por ter sido convidado a parti-cipar neste colóquio que suscita questões maiores para o desenvolvimento da formação profissional: as que respeitam aos actores centrais desse desenvolvimento. E, por isso, vos estou grato.

Sinto-me feliz por este colóquio, inscrito na pers-pectiva de uma educação e de uma formação ao longo da vida, se realizar em Lisboa. Pois que esta noção, cara à União Europeia, formalizada no seu memorando, foi fortemente reafirmada nesta bela cidade, no ano de 2000, como expressão de uma ambição europeia maior: “fazer da União Europeia a sociedade do conhecimento mais dinâmica e mais competitiva do mundo”. O futuro desta ambição está-se construindo neste preciso mo-mento.

Sinto-me tanto mais feliz porquanto me foi dada a oportunidade de me fazer ouvir em Portugal, este país de engenho cuja irradiação e expansão estiveram, desde sempre, em relação directa com o domínio dos saberes e o desenvolvimento das técnicas do seu tempo. Recor-demos uma frase desse homem fora do comum que é vitorino Magalhães Godinho, igualmente um dos es-pecialistas mundiais da história dos descobrimentos: “Com o alargamento do mercado à escala planetária, nasce uma nova mentalidade graças à qual o homem aprende a situar-se no espaço da percepção visual e da geometria, no tempo da data, da medida e da mudança, a orientar-se graças ao algarismo, objecto de verificação, começando assim a forjar o instrumento que lhe irá per-mitir separar o real do manto da fantasia.” Referindo-se ao séc. Xv/XvI, esta elegante frase afirma-se contudo particularmente premonitória dos modos de vida das nossas sociedades dos dias de hoje totalmente constru-ídas ao redor da informação, dos saberes, dos conheci-mentos e das suas utilizações.

Foi com este espírito que foi articulada esta inter-venção: partindo do acesso ao saber na história e nas

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QUE LUGARES ERAM ESSES DE SABER? Eis rapi-damente alguns exemplos ilustrativos.

Primeiramente, os mosteiros e os templos, lugares de um conhecimento revelado, recebido ou detido pelos sacerdotes, inscrito e oferecido pela própria arquitec-tura dos edifícios e pelos seus ornamentos. Pensar-se--á, conforme os países, em Stonehenge, em Angkor, ou, claro, nas nossas basílicas romanas, nas nossas ca-tedrais góticas. Elas constituem verdadeiros livros de pedra portadores de ensinamentos para quem quiser ou souber decifrá-los, mensagens oferecidas e ao mesmo tempo escondidas como na “carta roubada” de Edgar Poe. As universidades, sob todas as suas formas, a elas se associavam, enquanto comunidades científicas, luga-res de permuta e de investigação, de criação, de análise crítica, de exegese e de transmissão do saber, e enquan-to instituições encarregadas das provas e exames liga-dos à atribuição de graus académicos.

Igualmente se poderá referir as grandes bibliotecas, como a emblemática biblioteca de Alexandria. Em pri-meiro lugar, elas são lugares de colecta e de conservação dos saberes materializados da humanidade; constituem igualmente lugares de pesquisa tanto mais que se afirma que o saber atrai o saber e suscita a interrogação, que a abertura de espírito abre de volta os espíritos e que a confrontação com os saberes de outrem contribui para a formação de saberes novos. A enciclopédia, obra maior do século das Luzes não era ao mesmo tempo “inventá-rio e invenção”?

Muitos outros exemplos poderiam ser evocados. Para só citar dois, pensemos primeiramente nos cabi-nets de curiosité, muito apreciados na Europa dos sécu-los XvII e XvIII. Eminentes exploradores ou viajantes, grandes coleccionadores davam assim a ver, num meio fechado, troféus, objectos de arte ou de culto, minerais, escritos, animais estranhos ou instrumentos científicos que tinham coleccionado durante anos. Lugares de ad-miração, lugares de preservação de patrimónios até en-tão desconhecidos, esses gabinetes tornaram-se muitas vezes museus, esses lugares de encantamento que não nos cansamos de frequentar. na realidade, não posso deixar de evocar o Museu nacional das técnicas, em Paris, no seio do CnAM, que apelidamos de “memória da nossa imaginação”.

na mesma época da nossa história, agora no campo do imaterial, certos “salões”, certos castelos como o de voltaire e da condessa do Châtelet, certas cortes reais como as Frederico da Prússia, de Catarina da Suécia ou do Khan Akbar, em Fatehpur Sikri, na Índia, desempe-nharam um importante papel na circulação e na troca de saberes. Eles reuniram aqueles a quem se chamava “be-los espíritos”, preocupados em fazer progredir o conhe-cimento humano na encruzilhada das ciências, das cultu-ras, da poesia… e do prazer das músicas e das palavras.

Que havia de comum entre esses diferentes lugares de saber? Provavelmente as funções que cumpriam no seio da sociedade. Fixemo-nos em quatro.

Dar testemunho sobre as origens do saber será a pri-meira destas funções. Poder-se-á considerar estes sabe-res como revelados, e logo como um dos fundamentos espirituais de uma civilização; ou como o produto de uma investigação que veio, também, em resposta a uma pesquisa de sentido e ao desejo de compreender e de ac-tuar sobre os problemas do tempo. Em ambos os casos, quer a busca das origens e das provas de autenticidade dos saberes, quer a preservação do elo com as fontes, fazem dela uma função de referência.

Conservar os saberes e os seus suportes materiais ou imateriais e protegê-los contra os ataques do tempo ou a loucura dos homens representa uma das funções mais clássicas destes lugares. É uma função muito mais acti-va que o armazenamento e o arquivo; pois que se trata igualmente de constituir e de preservar um verdadeiro património o qual singulariza o nosso contributo para a história da humanidade. Até mesmo no tempo da revo-lução francesa, houve pessoas preocupadas em preser-var o nosso património nacional sob todas as formas. O CnAM para isso contribuiu.

Estruturar, transmitir, ajudar a adquirir os sa-beres, fazem parte da função-chave da mediação que os formadores exercem, os professores, os tutores, os monitores… os “mestres”. Seja qual for o nome que lhes dermos, todos têm em comum exercer funções de educação e de socialização, de facilitação da inscrição em formação e da persistência no tempo, de criação das condições de aprendizagens bem sucedidas no seio de um ambiente favorável; cabe-lhes igualmente estruturar ou reconceptualizar os saberes peritos ou sábios para os tornar assimiláveis, dar visibilidade a tudo o que faz com que aprender tome corpo e sentido. O despertar do gosto e do prazer de aprender, e da confiança nas suas capacidades de sucesso, está na base de toda a formação ulterior.

Pois fazer esforço para aprender não conduz imedia-tamente a compreender. E mesmo se se pode aprender a aprender, os saberes resistem a entregar-se quando nos aproximamos deles demasiado depressa, ou prema-turamente. É necessário saber-se já muito para poder aprender mais. É preciso maturidade para estar apto a desenvolver em si e para os outros a inteligência do sa-ber. É preciso igualmente encontrar os meios de saber o que se sabe e o fazer saber. Finalmente, é necessário compreender que ter aprendido não constitui o termo do caminho; e que falta querer e poder servir-se das suas aquisições, no mundo da acção, com pertinência e eficácia. Isso supõe enriquecer as suas actividades cog-nitivas através da lucidez e da sabedoria.

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E é então que intervém uma função de acompanha-mento daquelas e daqueles que se instruem na sua evo-lução e na sua socialização. Consiste em particular em ajudá-los a identificar, pesquisar, e apropriar-se dos sa-beres técnicos e dos comportamentos sociais necessá-rios, num dado momento da sua vida, para diagnosticar a origem das dificuldades de aprendizagem, e remediá--la, e para utilizar as suas aquisições com discernimen-to. A confederação medieval e as instituições que a cercavam não visavam designadamente esse objectivo. Resta a actualidade.

Como estamos hoje?

Estou convencido que a questão do acesso ao saber per-manece mais essencial que nunca. Contudo, os saberes de que se fala não são os mesmos de antigamente. E se as funções que acabam de ser evocadas subsistem plena-mente, a sua ordenação pode ser profundamente posta em causa por novas perspectivas do papel do formador, das suas funções e dos seus territórios de intervenção. O conceito de formação dos adultos encontra-se agitado.

O que talvez mais profundamente hoje muda é o es-tatuto que se concede ao saber no seio da nossa socie-dade, que alegremente mistura dados, informações, sa-beres e conhecimentos. Por um lado, a recolha de dados sobre tudo e sobre todo o mundo tornou-se exponen-cial. O seu tratamento com vista a transformá-los em informações visando objectivos conhecidos ou não re-velados transforma-se numa operação intelectual maior naquilo que o Livro Branco de 1995 via como uma “so-ciedade cognitiva”: uma sociedade onde a globalização, a aceleração da criação de novos saberes e a sua assimi-lação constituem sempre um dos maiores desafios a que temos de aprender a responder. Os lugares tradicionais do saber, mas também a Internet e seus derivados, os portais e bancos de dados, os centros de recursos, a rá-dio e a televisão quando querem e as inumeráveis redes de permuta de saber colocam, pelo menos em teoria, to-dos os saberes do mundo ao alcance da nossa mão. Os inestimáveis contributos das tecnologias e das forma-ções à distância permitem-nos viver toda uma outra li-gação ao espaço e ao tempo. Resta progredir no sentido da identificação dos saberes pertinentes num dado mo-mento, para uma dada pessoa ou um dado grupo, e no dos custos reais ou simbólicos de conexão e de acesso a esses saberes, custos tão diferentes segundo os países e os grupos sociais. A sociedade dual começa aqui.

Por outro lado, sente-se bem que o saber perde a imagem de absoluto e se vê progressivamente atribuir um valor nos mercados da formação formal e informal; mas não só: portador de informações que fazem sentido

relativamente a uma intenção, um projecto, uma orga-nização, ou no seio de ligações de força entre actores, ele pode tornar-se um bem que se vende, se compra, se troca ou, por vezes, se rouba. O saber de uns sobre os outros e os saberes que eles detêm torna-se ele tam-bém um trunfo de desenvolvimento comercial ou… de poder.

O próprio facto de se atribuir um valor comercial ao saber lança as bases de uma dupla economia: por um lado uma economia de serviço, baseada na capaci-dade de resolver problemas que o saber obtém e num profissionalismo crescente dos formadores; porque, no momento em que cada um, nesta sociedade de informa-ção, pode operar ao mesmo tempo na aprendizagem e na transmissão, começa a colocar-se em dúvida a neces-sidade e a mais-valia destes “trabalhadores do saber” em que se tornaram. E, por outro lado, uma economia de mercado em que a formação e a aprendizagem, bases da construção de um “capital humano”, se transformam em investimentos imateriais por excelência.

Isto suscita questões deontológicas maiores no exercício das funções precedentes. Isso coloca ainda questões profissionais e na área da gestão. Porquanto gastar não é investir, e investir não é suficiente para se obter resultados compatíveis com os esforços autoriza-dos. Mais, é preciso investir no momento certo, no lo-cal certo e com as pessoas certas, que o mesmo é dizer, aquelas para quem a aquisição ou a modernização das competências constituem elemento-chave da resolução de problemas individuais (evolução, inserção, reconver-são, promoção…) ou colectivos (evolução do trabalho, das tecnologias, dos produtos, dos mercados…) que encontrarem. Mais ainda, será necessário dispor dos meios para apreciar o que deveria ser e qual foi, in fine, o retorno desse investimento. Enfim, afloramos aqui um debate maior para as nossas sociedades marcadas por um capitalismo à escala mundial: o da distribuição equitativa das riquezas produzidas entre os diversos ac-tores que contribuíram para as criar.

neste contexto, já se não poderá considerar isolada-mente as quatro funções anteriormente apresentadas, ou atribui-las a diferentes corpos sociais. Porque, numa economia globalizada e em rápida mutação, a compe-titividade tornou-se regra; e, simultaneamente, porque ela assenta, não só em saberes e conhecimentos, mas igualmente em competências, directamente ligadas ao trabalho e ao emprego, e avaliadas à luz dos resultados que permitirem obter. E porque, numa sociedade do conhecimento, as instituições educativas já não detêm o monopólio das actividades formativas. As formações informais, no e através do trabalho, a análise das acti-vidades, as redes de aprendizagem mútua, as organiza-ções de aprendizagem, a gestão da mobilidade e das car-reiras, o trabalho com consultores, as práticas de audi-

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toria, ou aquilo que agrupamos sob a expressão cómoda de “knowledge management” para tanto contribuem de igual modo: falamos da importância acrescida dos res-ponsáveis pela gestão e pelo desenvolvimento dos “re-cursos humanos”, noção que condiz perfeitamente com o sentido de um “capital humano”.

Os organismos e serviços de formação persistem e permanecem incontornáveis no exercício nomeada-mente das suas funções tradicionais. Surgem, contudo, novas funções que se afastam singularmente da acepção habitual da palavra “formação” para se inscrever numa visão mais institucional e mais estratégica.

Restam as funções pedagógicas e de mediação. Elas inscrevem a formação na realidade vivida pelas pesso-as e pelas organizações. Organizam o encontro entre as expectativas dos estudantes, as exigências das organi-zações, as competências a desenvolver e as escolhas pe-dagógicas. Permitem conduzir o acto de aprender atra-vés do face a face entre criadores, detentores, transmis-sores de saber e estudantes, mesmo se este face a face é virtual. Simultaneamente, alargaram-se estas funções. Ocorre-lhes também gerar o montante, o durante e o jusante do acto de aprender. O montante é, nomeada-mente, a informação, a escuta, a orientação, a ajuda na elaboração de um projecto pessoal e profissional no seio do qual a formação toma assento e sentido, a individu-alização dos percursos, e, recentemente, as actividades de validação das aquisições profissionais. O “durante” inclui totalmente a quarta função de que falámos atrás. O jusante prolonga a responsabilidade da formação até à avaliação dos resultados, não só nas aprendizagens mas também no campo profissional. O mesmo é dizer que a criação de ambientes favoráveis à apprenance, à transferência dos saberes e competências em situação de trabalho fazem doravante parte destas funções pri-meiras.

Simples de dizer, tudo isto não é tão simples assim de realizar. Pois que os “públicos da formação” também eles mudaram muito. Em número, primeiramente, o que interfere directamente com a concepção da forma-ção contínua nas universidades e a gestão do binómio estudantes/adultos. Igualmente em natureza. Muito mais informados que no passado, graças à informática e à proliferação de sites Internet permitindo estabelecer comparações entre organismos, os formandos tornam--se mais exigentes por disporem de menos disponibili-dades para se formar. Caracterizando-se mesmo certos públicos por uma perda de confiança ou um desamor face à formação, o qual se traduz por dificuldades de atenção, de concentração, por zapping ou abandonos precoces. Se a formação for entendida, relativamente a outros projectos, como um sobre-investimento, pode rapidamente conduzir a um desinvestimento. E como

não entender que a mobilidade, a flexibilidade, a em-pregabilidade, quando se tornam valores predominan-tes, a competitividade, quando conduz à exigência de fazer melhor e mais com menos, a precariedade que se transforma em ameaça face ao aumento das incertezas do trabalho e do emprego, ligadas a decisões tomadas numa espécie de outro espaço-tempo, possam pôr em dúvida a utilidade de uma formação, sobretudo se for longa e qualificante? Como nos poderemos admirar que, em França, nomeadamente, a obtenção de um di-ploma se tenha tornado mais premente?

Dito isto, esta própria complexidade do sector da “apprenance” faz emergir novas responsabilidades que adquirem pouco a pouco uma posição crescente. Pode-remos reagrupá-las à volta de quatro termos frequente-mente utilizados em literatura: política, técnica, comer-cial e aconselhamento.

num universo onde o sector terciário e as opera-ções imateriais invadem todos os outros sectores, em que a matéria cinzenta se tornou o principal recurso, a formação pode tornar-se uma parada estratégica. Ao afastar-se das lógicas de conteúdos, de oferta e de programas, encontrará fora de si mesma uma parte crescente das suas razões de ser, das suas determinan-tes, e dos seus constrangimentos; como encontra fora de si própria os contributos científicos que permitem compreendê-la melhor, concebê-la melhor e guiá-la di-ferentemente do que com a simples ajuda da experiên-cia e do bom senso.

Assim os problemas que se colocam aos formado-res são frequentemente formulados logo de entrada em termos de evolução das matérias, de eficácia e de per-formances, em termos de organização do trabalho e da produção, de desenvolvimento das vendas, de optimi-zação orçamental ou de gestão financeira; ou ainda em termos de montagem e de condução de projectos, de gestão, de fusão de empresas e de mutações culturais.

Surgem novos actores a exercer poder sobre a deci-são, o financiamento e o acto de formar sem profissiona-lismo nessas matérias… Aos formadores e, sobretudo, aos responsáveis pela formação caberá analisar esses pedidos ou essas encomendas, separar os projectos que envolvam mudanças de competências daqueles que dependem de transformações ou de decisões de outra natureza.

no momento em que a produção de competências se torna uma parada estratégica e em que o apelo à for-mação deixa de ser formulado em termos de saberes a adquirir mas de problemas a resolver, os formadores e, sobretudo, os responsáveis pela formação têm, primei-ramente, a responsabilidade de verificar se a opção pela formação é uma opção pertinente e não um engodo que caracteriza a ausência de decisões prévias noutros ní-veis hierárquicos ou noutros sectores.

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Compete-lhes ainda inscrever no amanhã as ac-ções pensadas a partir de trabalhos de vigília estraté-gica, propor e negociar os objectivos e as modalidades de uma formação tantas vezes concebida à medida e a partir de uma análise das pessoas e dos grupos a que respeita. Finalmente, ser-lhes-á preciso entender-se so-bre os indicadores de resultados a partir dos quais eles serão avaliados, montar a engenharia de dispositivos de formação adaptados e constituir as equipas e os par-tenariados necessários. Resta velar por que uma enge-nharia orçamental saudável garanta a qualidade e o bom termo das operações, conduzir o projecto e proceder à sua avaliação.

Frequentemente se agrupam estas diferentes res-ponsabilidades de direcção sob a designação de “fun-ções políticas” ou “estratégicas”. As funções administra-tivas, os apoios de peritos, financeiros ou jurídicos, por exemplo, não podem delas estar dissociados.

A complexidade das tarefas e dos jogos de actores, as novas potencialidades abertas pelas múltiplas tec-nologias de tratamento da informação e da transmissão dos textos, imagens e sons conferem toda a importância às funções ditas técnicas. Eis quatro exemplos.

Primeiramente, e para que conste, os exames de peritos à utilização e manutenção das próprias tecno-logias. Muitos dos avanços pedagógicos viram a luz do dia com o aparecimento de novos programas ou de novos materiais. Muitos dos dispositivos de formação viram o seu desenvolvimento entravado pela ausência de hot-lines eficazes. E daí essa função incontornável. Reporta directamente ao equipamento da formação, função activa que faz crescer as potencialidades e o grau de profissionalização dos seus actores; é exactamente o oposto da instrumentalização. Encontramos aqui ao mesmo tempo a concepção e o emprego de processos baseados na utilização de simuladores, os dispositivos multimédia de vocação internacional, as novas técnicas inspiradas nos jogos de informática e a construção de realidades virtuais, ou ainda a gestão de redes de recur-sos à escala planetária.

As funções técnicas incluem também o acompanha-mento das diferentes formas de engenharia atrás citadas que visam conceber, construir, empregar, acompanhar e avaliar acções, dispositivos, mesmo sistemas de for-mação em grande escala.

na encruzilhada das ciências, para o engenheiro, e da arquitectura, as engenharias de formação devem hoje muito aos trabalhos teóricos e metodológicos oriundos da ergonomia, da didáctica profissional e da análise da actividade, que actualizaram a tradicional análise das necessidades. Enfim, uma nova forma de engenharia parece muito prometedora: chamam-lhe engenharia dos ambientes. Partindo da análise das interacções en-tre os fenómenos da aprendizagem e os meios em que

se desenrolam, esta engenharia trabalha essencialmente na evolução dos ambientes económicos, sociais, cultu-rais para posições favoráveis às aprendizagens.

Falávamos atrás da entrada da formação de adultos numa dupla economia, de serviços e de marcado. no momento em que o saber adquires um valor comercial, a formação é também ela chamada a colocar em evidên-cia os seus custos e os seus proveitos. Isto não faz ne-cessariamente desaparecer os valores humanistas que a incorporam; mas perderá o monopólio e o seu estatuto, até então privilegiados, para se transformar numa acti-vidade entre outras, submetida a regras de produtivida-de, de rentabilidade, da concorrência e do retorno dos capitais investidos. O sector privado já antecipara esta evolução. O sector público nela avança a passos largos, universidades incluídas e seus serviços de formação contínua. trata-se de uma verdadeira mudança cultu-ral, na medida em que os termos e os argumentos da economia de mercado irromperam na linguagem da for-mação, trazendo consigo um certo número de valores, a saber, os das actuais ideologias de gestão.

neste terceiro terreno surgem novas actividades, que se não ousaria evocar há duas décadas, designadamente as funções comerciais e de marketing. Envolvem elas to-dos os actores da formação. Mais ligadas às funções es-tratégicas, já que contribuem para definir as actividades futuras, as funções de “marketing” e o trabalho de casa poderão apoiar-se em estudos prospectivos sobre os di-ferentes sectores de actividade… o da educação e o da formação incluídos. Elas fazem apelo a profissionalida-des reconhecidas, o que não dispensa a sua vigilância. A perenidade e o desenvolvimento dos serviços ou dos organismos de formação dela dependem. As responsa-bilidades comerciais que cada vez mais recaem nos pró-prios formadores, os quais, como sabemos, nem sempre estão à-vontade na procura de potenciais clientes como na preocupação de fidelizar os actuais. Os responsá-veis pela comunicação desempenham aqui um papel ao mesmo tempo de apresentação da oferta da formação em termos inteligíveis pelo seu círculo e de animação dos sites da Internet, apresentando as actividades de um modo interactivo. É preciso não esquecer tudo o que está ligado aos pedidos de ofertas, nomeadamente europeus, desde o referenciamento até à apresentação de dossiers em satisfação de cadernos de encargos cada vez mais exigentes e face a uma concorrência cada vez mais agressiva. Os serviços de compras das instituições ou das empresas tornaram-se interlocutores progressi-vamente incontornáveis.

Enfim, numa sociedade do saber, as decisões de formação estão muitas vezes descentralizadas, mais próximas das operações e dos actores a que respeitam; quer dizer que os formadores e os responsáveis pela for-

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mação têm cada vez mais de exercer as funções de con-sultor. Escasseia-me o tempo para as apresentar com o cuidado que merecem. Recordemo-nos simplesmente que a “postura” profissional que elas implicam, num terreno em que a sua simples presença pode bastar para modificar, com actores que podem sentir-se tentados a incluí-las nas suas próprias estratégias, resulta mais da “clínica” que da infalibilidade do perito e que o cruza-mento entre funções tradicionais e novas responsabili-dades frequentemente induz choques culturais, quando não conflitos de valores.

novos territórios para a formação

Compara-se frequentemente a formação à tragédia clás-sica que reunia os actores para uma acção conduzida num só local e no mesmo espaço de tempo. Mas é ver-dade que o recurso aos estágios, à formação residencial, com recurso a animadores, tem um importante espaço na paisagem da formação profissional de adultos.

Dito isto, no processo complexo que agora se deno-mina “ apprenance “, noção cara a Philippe Carré, aque-les e aquelas a quem, por comodidade, continuamos a designar por “ formadores ”, movimentam-se em terri-tórios que anteriormente não eram os seus. Os gestores questionam o direito de aí estarem, porque ainda não perceberam que a formação de sucesso necessita de re-correr a meios mais diversificados do que no passado.

A formação, produtora de competências, insere-se mais directamente no posto de trabalho. não apenas porque se redescobrem as virtudes dessa formação, ou porque se quer renovar as antigas pedagogias fazendo “ entrar a formação na vida e a vida na formação ”. Mas também porque se está duplamente consciente das rela-ções indissolúveis entre o trabalho, o emprego e a for-mação e a obrigatoriedade da evolução da formação pro-fissional determinada pelas transformações ou rupturas técnicas, económicas, sociais e culturais que marcam as nossas sociedades. Daí a necessidade, atrás invocada, duma posição de vigília face às “ grandes tendências ”, às grandes alterações em curso, bem como atenção aos sinais mais débeis que se possam transformar em “ fac-tos portadores de futuro ” para repescar a expressão de Gaston Berger, criador da prospectiva.

Em segundo lugar, o desenvolvimento da Sociedade da Informação, a um ritmo sem paralelo na história da Humanidade, deu lugar a modos de aprendizagem não formais que prescindem frequentemente de forma eficaz da mediação de formadores: autoformação, coaching, partilha de saberes, redes de experiências, alargando as fronteiras e o formato da formação tradicional. O re-latório sobre a educação e formação ao longo da vida legitimara já a distinção entre formações formais, não formais e informais. A sua existência não é conflituosa

mas complementar. Podem mesmo suprir as carência de uma e de outra, quando o abandono, o insucesso esco-lar e a rejeição pelas instituições educativas remetem ge-rações inteiras para a aprendizagem no próprio posto de trabalho, o que se verifica, por exemplo, em numerosos países em vias de desenvolvimento.

Coloca-se então uma dupla questão ; o papel dos professores e formadores que devem passar “ do estrado ao estirador ” e modificar a sua postura face aos apren-dizes se querem manter-se úteis, sem procurar dominar as actividades que funcionam tanto melhor quanto se afastam, por definição, das propostas do sistema educa-tivo. E o da certificação dos saberes adquiridos por vias alternativas como estas. Isto conduz à validação e cer-tificação de competências adquiridas pela experiência (RvC). Marcado, nomeadamente em França, por uma lógica de certificação, este processo apresenta-se como uma via de pleno acesso aos títulos e diplomas permitin-do uma dispensa parcial ou total do ensino ou formação prévios. Esta matéria é bem conhecida e especialmente nesta Universidade. nada direi, portanto, sobre as suas dimensões técnicas.

Impõem-se três apontamentos para concluir esta terceira parte.

Primeiro, pelo menos no meu país, a legitimidade legislativa desta iniciativa é parte integrante das activi-dades e responsabilidades dos professores e formado-res, sobretudo se estiverem envolvidos em formações certificantes. não se pode, no entanto, olvidar a dimen-são essencial da construção identitária deste processo fundado sobre o conceito de reconhecimento da histó-ria e competências do candidato. Isto implica que as instituições reconheçam, com a mesma dignidade, os saberes adquiridos de forma formal, não formal e infor-mal e os diplomas que os certificam. A Lei refere-o ex-pressamente. Os debates científicos sobre esta matéria e as correspondentes confrontações de valores não se encontram ainda encerrados.

Em segundo lugar o RvC revela-se, na sua utiliza-ção, como um verdadeiro instrumento de análise dos hábitos, modos de pensamento e funcionamento de pessoas e instituições de formação, na forma como o novo processo é integrado ou rejeitado nas actividade normais das instituições envolvidas, nas relações que se estabelecem entre os profissionais, detentores de uma visão das competências que não se coaduna obri-gatoriamente com a dos professores ou formadores, e na capacidade de passar de uma lógica de disciplina e programa a uma lógica de competência e de validação, apoiando-se em referenciais e em novos processos : as provas de validação e certificação.

Por fim não devemos olvidar o território principal da apprenance que é o próprio aprendiz. Formar-se, isto é, querer transformar-se, constitui, sobretudo, um caminho, uma viagem interior. Formar-se é adquirir,

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refrescar ou desenvolver saber e saber-fazer, habilida-des, capacidades, é desenvolver competências que com-binam uma gama de comportamentos e de saberes face a problemas a resolver em situações específicas. Formar--se é operar uma transformação, querida, esperada ou imposta, dando ao mesmo tempo vida a uma ligação que configura o conhecimento, a um desejo de progresso, a uma motivação que não pode deixar de alimentar, con-fortar e, por vezes, restaurar a sua própria identidade.

Formar-se é escolher a formação de entre outros meios possíveis, para atingir um objectivo, para reali-zar um projecto que a ultrapassa, seja ele pessoal, fa-miliar, profissional, associativo ou político ; é também envolver-se, ou seja, criar uma situação favorável a um desenvolvimento desejado e duradouro.

Dito isto, a escolha da “ ferramenta de formação ” está longe de ser neutra. Através de um trabalho sobre as suas próprias competências, as suas posturas, inscreve--se numa biografia, um universo relacional, uma histó-ria de vida. Com isto, envolver-se em formação é tam-bém agir sobre as suas apropriações colectivas, sobre a sua própria singularidade e sobre a sua interacção. Esta abordagem da formação de adultos assume uma outra dimensão. Retomando um tema caro a Claude Dubar, ela não é somente o produto duma história e de jogos de equilíbrio e de desequilíbrio dos sistemas produtivos e sociais. Ela aparece também como uma transacção complexa entre o sujeito e os outros, uma confrontação entre a imagem que se tem de si próprio e aquela que nos é atribuída pelos outros, entre um projecto profis-sional e a busca de um reconhecimento social.

Assim, este território tão particular que os forman-dos e formadores decidem percorrer em conjunto ad-quire sentido não só pela alteração de competências que alimenta, mas também pelas perspectivas simbólicas e imaginárias que desvenda.

Ser formador hoje…?

Dissemos do formador que ele (ela) era um pensador do futuro. Bela expressão. Conhecemos também a comple-xidade das suas relações com os decisores e financiado-res que são, como os formandos, seus interlocutores. É uma coexistência incontornável, complexa e flutuante, já que as formas de vida, valores, modos de trabalho po-dem ser diferentes. Max Weber a seu tempo, mostrou-o nas relações entre o sábio e o político.

À guisa de caricatura, o decisor vive num universo de tomada de decisão rápida. Ele é julgado pelos resul-tados ao ano, ao mês, por vezes mesmo pelas cotações da Bolsa num determinado dia. Ele deve decidir sob pressão, centrando-se nas suas prioridades e portanto renunciar a outras escolhas possíveis. A sua credibili-

dade assenta em parte no enunciar das suas convicções, sobre a sua capacidade de suscitar a adesão e sobre a sua determinação em manter as suas posições ; pelo menos durante um período de tempo suficiente para as con-frontar com os resultados. Espera-se dele que esclareça o futuro.

O formador, muitas vezes no papel de consultor, é o garante dos investimentos imateriais ; os seus horizon-tes são mais longínquos. Deve ter uma visão alargada no espaço e no tempo, pensar em alternativas, e não elimi-nar demasiado depressa outras possibilidades. Habitu-ado a cultivar a dúvida e o espírito crítico, deve racio-cinar globalmente incluindo as mudanças individuais e colectivas que lhe é exigido que suscite nas transforma-ções. Por natureza, desconfia das escolhas irreversíveis e das certezas peremptórias. E o facto de não ser mais do que um mero contribuinte para o alcance de jogadas de outra escala que não a sua torna-o prudente em face do risco de que as suas análises possam fazer sombra aos responsáveis por essas jogadas.

Em velocidade de cruzeiro ou de evolução lenta, uns e outros têm tempo de se falar, se escutar e expe-rimentar com direito ao erro. Em regime de incerteza, turbulência, polémica, os seus pensamentos e acções diferenciam-se muito mais. Face às incertezas e receios que frequentemente os acompanham, o primeiro não tem outra escolha que não seja satisfazer-se com infor-mações incompletas e de decidir depressa, mesmo que não se sinta pronto a fazê-lo. Porque ele é julgado pelos resultados mais imediatos. Portador de valores huma-nistas, o segundo talvez tenha mais necessidade de se assegurar do rigor das suas análises e de as avaliar antes de agir. Ele sabe que pode ser mal julgado, porque se pode considerar que levou demasiado tempo ou muita ponderação para agir — ou muito pouco, caso fracasse. Ou ainda, porque quis desempenhar o seu papel hones-tamente, centrando-se no que dele depende em vez de fazer crer que possui resposta para todos os problemas que lhe são colocados. Ele deve, constantemente fazer compreender que qualquer mudança pode ser aperce-bida como uma ameaça por aqueles ou aquelas a quem ela atinge, e que é necessário, sistematicamente, muito tempo para compreender e aprender. Em períodos de instabilidade não se é uma eminência parda impune-mente.

Ser formador nestas condições pode então levar a trabalhar e a viver sob dois compromissos, em dois tempos diferentes. Por um lado, é necessário articular com a realidade quotidiana dos problemas, ser um ac-tor como os outros no seio dos processos produtivos e de criação de riqueza, financeiramente e em termos de contribuição para a mais-valia do património imaterial das pessoas e da organização. Por outro lado, deve ser pertinente para se resguardar da impertinência, em todo

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o caso ser “ razoavelmente irreverente ”. Isto implica fi-car diferente : para assegurar que se não faz espontane-amente apelo aos êxitos do passado. Para relembrar que não se pode trazer soluções harmoniosas aos problemas económicos e financeiros, negligenciando as pessoas e o seu desenvolvimento. Para ousar propor rupturas com os modos de pensar, nas formas de ler e de tratar as situações encontradas, para abrir no presente janelas para outros futuros possíveis e para futuros que façam sentido.

As funções de laços de saber mudam. As responsa-bilidades e os territórios de exercício dos formadores mudam igualmente. Isto só pode modificar o acesso e a relação do conhecimento, e isto à escala da União Europeia. É um acto político no sentido mais profundo do termo. Permite, ou não, a socialização e a inserção ; permite ou não posicionar-se na sociedade ; facilita, mais ou menos, a revelação de talentos, o desenvolvi-mento de capacidades de inovação, de autonomia e de responsabilidade. Fazer progredir os direitos e as capa-cidades de acesso ao conhecimento ao longo da vida é repartir de uma forma que se espera mais equitativa a herança cultural das gerações passadas ; é também fa-cilitar a abertura aos patrimónios materiais e imateriais criados pelo progresso das artes e ofícios, pelos avan-ços das ciências e das técnicas. Em suma, melhorar as relações de cada um com o conhecimento, é enriquecer as entidades individuais e colectivas e, assim, o próprio exercício da cidadania.

Ser formador hoje ? É exercer uma profissão difícil, apaixonante e dura. Um extracto de um poema de René Char1 ilustra-o de forma mais acertada do que qualquer discurso: “se a tempestade permanentemente me quei-ma as costas, a minha onda ao largo é profunda, com-plexa, prestigiante. não espero nada de definitivo, acei-to gingar entre duas dimensões desiguais. no entanto os meus sinalizadores são de chumbo e não de cortiça, o meu rasto é de sal e não de fumo.”

notas

1. Les matinaux — Gallimard — coll. Poésie — 1967.

Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Uni-versidade de Lisboa, a 4 de Novembro de 2005Pierre Caspar

Professor jubilado — C.n.A.M.

tradução de Alves Calado

Caspar, Pierre (2007). Ser formador nos dias que correm — novos ac-

tores, novos espaços, novos tempos. texto da conferência proferida na

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de

Lisboa, a 4 de novembro de 2005. Sísifo. Revista de Ciências da Educação,

2, pp. 87-94

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 i s s n 1 6 4 6 - 4 9 9 0

Sísifo, revista de ciências de educação: Instruções para os Autores

1. A Sísifo é uma revista universitária de Ciências da Educação, em formato electrónico, publicada pela Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa;

2. A Sísifo é de consulta livre e está disponível no endereço http://sisifo.fpce.ul.pt.

3. A Sísifo é publicada em duas versões (portuguesa e inglesa). As traduções são da responsabilidade da revista;

4. Cada número da revista terá um responsável editorial que poderá solicitar o parecer de especialistas para, em conjunto com o Conselho Editorial, assegurar a qualidade e o rigor científico dos textos;

5. O núcleo central de cada número da revista é constituído por um dossier temático. A revista aceita trabalhos académicos sob a forma de artigos, notas e recensões de livros em Ciências da Educação. Pode aceitar artigos já publicados em línguas estrangeiras desde que inéditos em português;

6. As colaborações devem ser submetidas através do e-mail [email protected];

�. Os artigos não devem exceder os 60.000 caracteres, incluindo espaços, notas e bibliografia (excepto quadros e gráficos); os estudos, notas e review articles não deverão ultrapassar os 30.000 caracteres e as recensões individuais 10.000 caracteres.

8. Os artigos devem ser acompanhados de um resumo de 1.200 caracteres, 4 palavras-chave e os dados de identificação do autor (instituição, áreas de especialização, últimas publicações e elementos de contacto — telefone e e-mail);

9. As citações e referências a autores no texto seguem as normas seguintes: (autor, data) ou (autor, data: página/s); se houver referências a mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, elas serão diferenciadas por uma letra minúscula a seguir à data: (Bastos, 2002a), (Bastos, 2002b). no caso de a referência se referir a mais de um autor: (Bastos, et al., 2002).

10. As notas de rodapé deverão ser reduzidas ao estritamente indispensável e conter apenas informações complementares de natureza substantiva; a bibliografia será colocada no final do artigo e conterá apenas a lista das referências feitas no texto ordenadas alfabeticamente e por ordem cronológica crescente para as referências do mesmo autor;

11. Critérios bibliográficos:

a. Livros: Bastos, C. (2002). Ciência, poder, acção. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. b. Colectâneas: Bastos, C.; Almeida, M. & Feldman-Blanco (orgs.) (2002). Trânsitos coloniais: diálogos

críticos luso-brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. c. Clássicos, nomeadamente em tradução, indicar data da 1.ª edição e nome do tradutor: Espinosa, B.

(1988 [1670]). Tratado teológico-político. tradução de D. P. Aurélio. Lisboa: Imprensa nacional-Casa da Moeda.

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d. Artigos em revistas: Cabral, M. v. (2003). O exercício da cidadania política em perspectiva histórica (Portugal e Brasil). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18 [indicar o número do volume anual], 51 [indicar o número da revista], pp. 31-60.

e. Artigos em colectâneas: Bastos, C. (2002). Um centro subalterno? A Escola Médica de Goa e o Império. In C. Bastos; M. v.Almeida & B. Feldman-Blanco (orgs.), Trânsitos Coloniais: diálogos críticos luso--brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, pp. 133-149.

f. Artigos em Revistas on-line: Hidi, S. (2006). Interest: A unique motivational variable. Educational Research Review, 1 [indicar o número do volume anual], 2 [indicar o número da revista], pp. 69-82. Consultado a [mês, ano], em http://www.sciencedirect.com/science/article/B7Xnv-4M21tB1-2/2/ccf7573a154cffb09d7b1c057eff198d [endereço].

g. Documentos on-line: Wedgeworth, R. (2005). State of Adult Literacy. Consultado a [mês, ano], em http://www.proliteracy.org/downloads/stateoflitpdf.pdf [endereço].