formação da literatura brasileira - antônio cândido de melo e sousa - 1-2

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Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a inteno de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma manifestao do pensamento humano.. FORMAO DA LITERATURA BRASILEIRA (MOMENTOS DECISIVOS) l.o VOLUME (1750-1836) #ANTNIO CNDIDO FORMAO DA LITERATURA BRASILEIRA 1. VOLUME LIVRARIA MARTINS EDITORA EDIFCIO MRIO DE ANDRADE RUA ROCHA, 274 - SO PAULO #ANTNIO CNDIDO FORMAO DA LITERATURA BRASILEIRA (MOMENTOS DECISIVOS) 1. VOLUME (1750-1836) LIVRARIA MARTINS EDITORA #Biblioteca Pblica "Arthur Vianna Sala Haroldo Maranho i #ANTNIO DE ALMEIDA PRADO

#PREFCIO 1. Cada literatura requer tratamento peculiar, em virtude dos seus problemas especfi cos ou da relao que mantm com outras. A brasileira recente, gerou no seio da portuguesa e dependeu da influncia de mais duas ou trs para se constituir. A su a formao tem, assim, caracteres prprios e no pode ser estudada como as demais, mormente numa perspectiva histrica, como o caso deste livro,, que procura, defini r ao mesmo tempo o valor e a funo das obras. A dificuldade est em equilibrar os dois aspectos, sem valorizar indevidamente aut ores desprovidos de eficcia esttica, nem menosprezar os que desempenharam papel aprecivel, mesmo quando esteticamente secundrios. Outra dificuldade conseguir a me dida exata para fazer sentir at que ponto a nossa literatura, nos momentos estudados, constitui um universo capaz de justificar o interesse do leitor, - no devendo o critico subestim-la nem superestim-la. No primeiro caso, apagaria o efeito que deseja ter, e justamente despertar leitores para os textos analisados ; no segundo, daria a impresso errada que ela , no todo ou em parte, capaz de suprir as necessidades de um leitor culto. H literaturas de que um homem no precisa sair para receber cultura e enriquecer a sensibilidade; outras, que s podem ocupar uma parte da sua vida de leitor, sob pena de lhe restringirem irremediavelmente o horizonte. Assim, podemos imaginar um francs, um italiano, um ingls, um alem, mesmo um russo e um espanhol" que s conheam os autores da sua terra e, no obstante, encontrem neles o suficiente para elaborar a viso das coisas, experimentando as mais altas emoes literrias. #^ Se isto j impensvel no caso de um portugus, o que se dir de um brasileiro? A nossa l iteratura galho secundrio da portuguesa^ por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas.. . Os que se nutrem apenas delas so reconhecveis primei ra vista, mesmo quando eruditos e inteligentes, pelo gosto provinciano e falta do senso de propores. Estamos fadados, pois, a depender da experincia de outras let ras, o que pode levar ao desinteresse e at menoscabo das nossas. Este livro procura apresent-las, nas fases formativas, de modo a combater semelhante erro, q ue importa em limitao essencial da experincia literria. Por isso, embora fiel ao esprito crtico, cheio de carinho e apreo por elas, procurando despertar o desejo de penetrar nas obras como em algo vivo, indispensvel para formar a nossa sensibilidade e viso do mundo. Comparada s grandes, a nossa literatura pobre e fraca. Mas ela, no outra,, que nos exprime. Se no for amada, no revelar a sua mensagem; e se no a amarmos, ningum o far por ns. Se no lermos as obras que a compem, ningum as tomar do esquecim o, descaso ou incompreenso. Ningum, alm de ns, poder dar vida

a essas tentativas muitas vezes dbeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em q ue os homens do passado,, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimao penosa da cultura europia, procuravam estilizar para ns, seus descendentes, os sen timentos que experimentavam, as observaes que faziam, - dos quais se formaram os nossos. A certa altura de Guerra e Paz, Tolstoi fala nos "ombrois e braos de Helena, sobr e os quais se extendia por assim dizer o polimento que haviam deixado milhares de olhos fascinados por sua belesa". A leitura produz efeito parecido em relao s ob ras que anima. Lidas com discernimento, revivem na nossa experincia, dando em compensao a inteligncia e o sentimento das aventuras do esprito. Neste caso, o es prito do Ocidente, procurando uma nova morada nesta parte do mundo. K .?" Este livro foi preparado e redigido entre 1945 e 1951. Uma vez pronto, ou quase, e submetido leitura de dois ou trs amigos, foi, apesar de bem recebido por eles,

posto de lado alguns anos e retomado em 1955, para uma reviso terminada em 1956, quanto ao primeiro volume, e 1957, quanto ao segundo. 8 #A base do trabalho foram essencialmente os textos, a que se juntou apenas o nec essrio de obras informativas e crticas, pois o intuito foi no a erudio, mas a interpretao, visando o juizo crtico, fundado sobretudo no gosto. Sempre que me ac hei habilitado a isto, desinteressei-me de qualquer leitura ou pesquiza ulterior . O leitor encontrar as referncias nas notas ou na bibliografia, distribuda segundo o s captulos, ao fim de cada volume. Mencionaram-se as obras utilizadas que se recomendam, excluindo-se deliberadamente as que, embora compulsadas, de nada serviram ou esto superadas por aquelas. Nas citaes, a obra indicada pelo ttulo e nmero da pgina, ficando para a bibliografia os dados completos. Sempre que possvel, isto , no caso de citaes sucessivas da mesma obra, as indicaes da pgina so dadas no prprio texto, entre parnte es, ou reunidas numa nica nota, para facilitar a leitura. Como freqente em trabalhos desta natureza, no se d especificao bibliogrfica dos textos sobre os qua is versa a interpretao; assim, no se encontrar, depois de um verso de Castro Alves, em nota, "livro tal, pgina tal". Mas sempre que o autor invocado como autoridade, recebe tratamento adequado. As citaes de autor estrangeiro so apresentadas diretamente em portugus, quando se tr ata de prosa. No caso mais delicado dos versos, adotou-se o critrio seguinte: deixar no original, sem traduzir, os castelhanos, italianos e franceses, accessve is ao leitor mdio; nos latinos e ingleses dar o original e, em nota, a traduo; dos outros, apenas a traduo. Como os dados biogrficos so utilizados acidentalmente, na medida em que se reputam necessrios interpretao, juntei, s indicaes bibliogrficas, um rpido traado da vida dos autores. Nisto e no mais, deve haver muitos erros, cuja indicao aceitarei reconhecido. No tenho iluses excessivas quanto originalidade, em livro de matria to ampla e diver sa. Quando nos colocamos ante um texto, sentimos, em boa parte, como os antecessores imediatos, que nos formaram, e os contemporneos, a que nos liga a co munidade da cultura; acabamos chegando a concluses parecidas, ressalvada a person alidade por um pequeno timbre na maneira de apresent-las. O que nosso mingua, ante o. con tribuio para o lugar comum. Dizia o velho Fernandes Pinheiro, nas Postilas de Retrica e Potica, que "os homens 9 #T tm quase as mesmas idias acerca dos objetos que esto ao alcance de todos, sobre que versam habitualmente os discursos e escritos, constituindo a diferena na expresso, ou estilo, que apropria as coisas mais comuns, fortifica as mais fracas , e d (jrandesa s mais simples. Nem se pense que haja sempre novidades para exprim ir;

uma iluso dos parvos ou ignorantes acreditarem qiie possuem tesouros de originali dade, e que aquilo que pensam, ou dizem, nunca foi antes pensado, ou dito por ningum". A bem dizer, um trabalho como este no tem incio, pois representa praticamente uma vida de interesse pelo assunto. Sempre que tive conscincia,, reconheci as fontes que me inspiraram, as informaes, idias, diretrizes de que me beneficiei. Desejo, aq ui, mencionar um tipo especial de dvida em relao a duas obras bastante superadas, que paradoxalmente, pouco ou quase nada utilizei, mas devem estar na base de mui tos pontos de vista, lidas que foram repetidamente na infncia e adolescncia. Prime iro, a Histria da Literatura Brasileira, de Slvio Romero, cuja lombada vermelha, na edio Garnier de 1902, foi bem cedo uma das minhas fascinaes na estante paterna, tendo sido dos livros que mais consultei entre os dez e quinze anos, busca de ex cerptos, dados biogrficos e os saborosos julgamentos do autor. Nele esto, provavel mente, as razes do meu interesse pelas nossas letras. Li tambm muito a Pequena Histria, de Ronald de Carvalho, pelos tempos do Ginsio, reproduzindo-a abundantemente em provas e exames, de tal modo estava impregnado das suas pginas. S mais tarde, j sem paixo de nefito, li a Histria, de Jos Verssimo, provavelmente a hor e ainda hoje mais viva de quantas se escreveram; a influncia deste crtico,, naqueles primeiros tempos em que se formam as impresses bsicas, recebi-a a travs das vrias sries dos Estudos de Literatura. O preparo deste livro, feito por etapas, de permeio a trabalhos doutra especiali dade, no decorrer de muitos anos, obedeceu a um plano desde logo fixado, por fid elidade ao qual respeitei, na reviso, certas orientaes que, atualmente, no teria escolhido. Haja vista a excluso do teatro, que me pareceu recomendvel para coerncia do plano, mas importa, na verdade, em empobrecimento, como verifiquei ao cabo da tarefa. O estudo das peas de Magalhes e Martins Pena, Teixeira e Sousa e Norberto , Porto-Alegre e Alencar, Gonalves Dias 10 #e Agrrio de Menezes, teriam, ao contrrio, reforado os meus pontos de vista sobre a disposio construtiva dos escritores, e o carter sincrtico, no raro ambivalente, do Romantismo. Talvez o argumento da coerncia tenha sido uma racionalizao para just ificar, aos meus prprios olhos, a timidez em face dum tipo de critica - a teatral - que nunca, pratiquei e se torna, cada dia mais, especialidade amparada em conhecimentos prticos que no possuo. Outra falha me parece, agora, a excluso do Machado de Assis romntico no estudo da fico, que no quiz empreender, como se ver, para no seccionar uma obra cuja unidade cada vs mais patente aos estudiosos. Caso o livro alcance segunda edio, pensarei em sanar estas e outras lacunas. No captulo dos agradecimentos, devo iniciar por Jos de Sarros Martins, que me come teu a tarefa em 1945. O projeto encarava uma histria da literatura brasileira, das origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a divulgao sria e o compn dio. Excusado dizer que, alm de modific-lo essencialmente, para realizar obra de natureza diversa, rompi todos os prazos possveis e impossveis, atrazando n ada menos de dez anos... Mas o admirvel editor e amigo se portou com uma tolerncia

e compreenso que fazem jus ao mais profundo reconhecimento. Por auxlios de vria espcie,, como emprstimo e oferecimento de livros, obteno de micro ilmes e reprodues, sugestes terminolgicas, agradeo Lcia Miguel-Pereira, Edgard Carone, Joo Cruz Costa, Laerte Ramos de Carvalho, Odilon Nogueira de Matos , Olinto de Moura, Srgio Buarque de Holanda. Agradeo aos funcionrios das seguintes instituies: Biblioteca Central da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, notadamente ao seu Chefe, Pr/. Aquiles Raspantini; Seco de Livros Raros da Biblioteca Municipal de So Paulo; Seco de Livros Raros da Biblioteca Nacional; Seco de Manuscritos do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro; Seco de Manuscritos do Arquivo Pblico M ineiro; Servio de Documentao da Universidade de So Paulo; Servio de Microfilme da Biblioteca Municipal de So Paulo; Servio de Microfilme da Biblioteca

Nacional; sem falar nos encarregados das seces comuns destas e outras instituies, como a Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo; Biblioteca do Instituto de Administrao da Faculdade de Cincias Econmicas da mesma Universidade ; Biblioteca do Instituto de Educao de So Paulo; Gabinete li #Portugus de Leitura do Rio de Janeiro; Biblioteca da Secretaria do Interior do E stado de Minas Gerais; Biblioteca Municipal de Belo Horizonte; Biblioteca Pblica de Florianpolis. ANTNIO CNDIDO DE MELLO E SOUZA So Paulo, agosto de 1957. P. S. Devo ainda agradecer s pessoas e instituies que me auxiliaram na obteno das ilustrae Olinto de Moura; Servio de Microfilme da Biblioteca Municipal de So Paulo; Servio de Microfilme da Biblioteca Nacional; Diviso do Patrimnio Histrico e A rtstico Nacional, notadamente o seu ilustre chefe e eminente escritor, Rodrigo Melo Franco de Andrade, a quem devo conselho e orientao em vrios casos. Agradeo finalmente o auxlio prestado na correo das provas pelas minhas colegas Carla de Queiroz, Maria Ceclia Queiroz de Moraes e Slvia Barbosa Ferraz. 12 #pr~ FORMAO DA LITERATURA BRASILEIRA (MOMENTOS DECISIVOS) 1. VOLUME (1750-1836) #INTRODUO 1. Literatura como sistema 2. Uma literatura empenhada 3. Pressupostos 4. O terreno e as atitudes crticas 5. Os elementos de compreenso 6. Conceitos #1. Literatura como sistema. Este livro procura estudar a formao da literatura brasileira como sntese de tendncia s universalistas e particularistas. Embora elas no ocorram isoladas, mas se combinem de modo vrio a cada passo desde as primeiras manifestaes, aquelas parec em dominar nas concepes noclssicas, estas nas romnticas, - o que convida, alm de motivos expostos abaixo, a dar realce aos respectivos perodos. Muitos leitores acharo que o processo formativo, assim considerado, acaba tarde d emais, em desacordo com o que ensinam os livros de histria literria. Sem querer contest-los, - pois nessa matria tudo depende do ponto de vista, - espero mostrar a viabilidade do meu. Para compreender em que sentido tomada a palavra formao, e porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convm principiar distinguindo manifestaes literrias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes du ma fase. Estes denominadores so, alm das caractersticas internas, (lngua, temas, imagen s), certos elementos de natureza social e psquica, embora literriamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgni co da civilizao. Entre eles se distinguem: a existncia de um conjunto de produtores literrios, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, for mando os diferentes tipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos trs elementos d lugar a um tipo de comunicao inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ngulo, como sistema simblico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretao das diferentes esferas da realidade.

A leitura desta "Introduo" dispensvel a quem no se interesse por questes de orienta ica, podendo o livro ser abordado diretamente pelo Captulo I. 17 #Quando a atividade dos escritores de um dado perodo se integra em tal sistema, o corre outro elemento decisivo: a formao da continuidade literria, - espcie de transmisso da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjun to, definindo os neamentos de um todo. uma tradio, no sentido completo do termo: transmisso de algo entre os homens; conjunto de elementos transmitidos, fo rmando padres que se impem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradio no h literatura, como fenmeno de civilizao. Em um livro de crtica, mas escrito do ponto de vista histrico, como este, as obras no podem aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstramos as circunstncias enumeradas; aparecem, por fora da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaborao de outras, formando, no tempo, uma tradio. Em fases iniciais, freqente no encontrarmos esta organizao, dada a imaturidade do me io, que dificulta a formao dos grupos, a elaborao de uma linguagem prpria e o interesse pelas obras. Isto no impede que surjam obras de valor, - seja por fora da inspirao individual, seja pela infuncia de outras literaturas. Mas elas no so representativas de um sistema, significando quando muito o seu esboo . So manifestaes literrias, como as que encontramos, no Brasil, em graus variveis de isolamento e articulao, no perodo formativo inicial que vai das origens, no sculo XVI, com os autos e cantos de Anchieta, s Academias do sculo XVIII. Perodo importante e do maior interesse, onde se prendem as razes da nossa v ida literria e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte de Antnio Vieira e Gregrio de Matos, - que poder, alis, servir de exemplo ao que pretendo dizer. com efeito, embora tenha permanecido na tradio local da Bahia, ele no existiu literriamente (em perspectiva histrica) at o Romantismo, quando foi redescoberto, s obretudo graas a Varnhagen; e s depois de 1882 e da edio Vale Cabral pde ser devidamente avaliado. Antes disso, no influiu, no contribuiu para formar o nos so sistema literrio, e to obscuro permaneceu soo os seus manuscritos, que Barbosa Machado, o minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (17411758), ignora-o completamente, embora registre quanto Joo de Brito e Lima pde alca nar. Se desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formao de um sistema, pre fervel nos limitarmos aos seus artfices imediatos, mais os que se vo enquadrando como herdeiros nas suas diretrizes, ou simplesmente no seu exemplo. Trata-se, en to, de *18 #averiguar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e aut ores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formao literria; salvo melhor juzo, sempre provvel em tais casos, isto ocorre a partir dos meados do sculo XVIII, adquirindo plena nitids na primeira metade do sculo XIX. Sem desconhecer grupos ou linhas temticas anteriores, nem influncias como as de Rocha Pita e Itapa rica, com os chamados rcades mineiros, as ltimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgnicos manifestando em graus variveis a vontade de fazer literatura brasileira. Tais homens foram considerados fundadores pelos que os sucederam, estabelecendo-se deste modo uma tradio contnua de estilos, temas, formas ou preocupaes. J que preciso um comeo, tomei como ponto de partida as Academias dos Seletos e dos Renascidos e os primeiros trabalhos de Cludio Manoel da Costa, arredondando, para facilitar, a data de 1750, na verdade puramente convencional. O leitor perceber que me coloquei cleliberadamente no ngulo dos nossos primeiros r omnticos e dos crticos estrangeiros, que, antes deles, localizaram na fase arcdica o incio da nossa verdadeira literatura, graas manifestao de temas, notadamen e o indianismo, que dominaro a produo oitocentista. Esses crticos conceberam a literatura do Brasil como expresso da realidade local e, ao mesmo te mpo, elemento positivo na construo nacional. Achei interessante estudar o sentido

e a validade histrica dessa velha concepo cheia de equvocos, que forma o ponto de pa rtida de toda a nossa crtica, revendo-a na perspectiva atual. Sob este aspecto, poder-se-ia dizer que o presente livro constitui (adaptando o ttulo do conhecido estudo de Benda) uma "histria dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura ". um critrio vlido para quem adota orientao histrica, sensvel s articulaes e dino ras no tempo, mas de modo algum importa no exclusivismo de afirmar que s assim possvel estud-las. 2. Uma literatura empenhada. Este ponto de vista, alis, quase imposto pelo carter da nossa literatura, sobretud o nos momentos estudados; se atentarmos bem, veremos que poucas tm sido to conscientes da sua funo histrica, em sentido amplo. Os escritores noclssicos so quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram to capazes quanto os europeus; mesmo quando 19 #procuram exprimir uma realidade puramente individual, segundo os moldes univers alistas do momento, esto visando este aspecto. expressivo o fato de que mesmo os residentes em Portugal, incorporados sua vida, timbravam em qualificar-se com o brasileiros, sendo que os mais voltados para temas e sentimentos nossos foram, justamente, os que mais viveram l, como Duro, Baslio ou Caldas Barbosa. Depois da Independncia o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade lit erria como parte do esforo de construo do pas livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciao e particularizao dos temas e modos d e exprimi-los. Isto explica a importncia atribuda, neste livro, "tomada de conscincia" dos autores quanto ao seu papel, e inteno mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando no a descreviam. este um dos fios condutores escolhidos, no pressuposto que, sob tal aspecto, os refinados ma drigais de Silva Alvarenga, ou os sonetos camonianos de Cludio, eram to nativistas quanto o Caramuru. Esta disposio de esprito, historicamente do maior proveito, exprime certa encarnao li terria do esprito nacional, redundando muitas vezes nos escritores em prejuzo e desnorteio, sob o aspecto esttico. Ela continha realmente um elemento am bguo de pragmatismo, que foi se acentuando at alcanar o mximo em certos momentos, como a fase joanina e os primeiros tempos da Independncia, a ponto de sermos por vezes obrigados, para acompanhar at o limite as suas manifestaes, a abandonar o terreno especfico das belas letras. Como no h literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcend-lo pela imaginao, os escritores se sentiram freqentemente tolhidos no vo, prejudicados no exerccio da fantasia pelo peso do sentimento de misso, que acarretava a obrigao tcita de descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance geral. Este nacionalismo infuso contribuiu para certa renncia imaginao o u certa incapacidade de aplic-la devidamente representao do real, resolvendo-se por vezes na coexistncia de realismo e fantasia, documento e devaneio, na obra de um mesmo autor, como Jos de Alencar. Por outro lado, favoreceu a expresso de um contedo humano, bem significativo dos estados de esprito duma sociedade que se estruturava em bases modernas. Alis, o nacionalismo artstico no pode ser condenado ou louvado em abstrato, pois fr uto de condies histricas, - quase imposio nos momentos em que o Estado se forma e adquire fisionomia nos povos antes desprovidos de autonomia ou unidad e. Aparece no mundo contemporneo como elemento de auto-conscincia, /( l 20 #nos povos velhos e novos que adquirem uma e outra, ou nos que penetram de repen te no ciclo da civilizao ocidental, esposando as suas formas de organizao poltica. Este processo leva a requerer em todos os setores da vida mental e artstica um es foro de glorificao dos valores locais, que revitaliza a expresso, dando lastro e significado a formas polidas, mas incaractersticas. Ao mesmo tempo, compromete

a universalidade da obra, fixando-a no pitoresco e no material bruto da experinci a, alm de quer-la, como vimos, empenhada, capaz de servir aos padres do grupo. Para ns, foi auspicioso que o processo de sistematizao literria se acentuasse na fase noclassica, beneficiando da concepo universal, rigor de forma, contenso emoc ional que a caracterizam. Graas a isto, persistiu mais conscincia esttica do que seria de esperar do atrazo do meio e da indisciplina romntica. Doutro lado , a fase noclassica est indissolvelmente ligada Ilustrao, ao filosofismo do sculo XVIII; e isto contribuiu para incutir e acentuar a vocao aplicada dos noss os escritores, por vezes verdadeiros delegados da realidade junto literatura. Se no decorreu da realismo no alto sentido, decorreu certo imediatismo que confund e no raro as letras com o padro jornalstico; uma bateria de fogo rasante, cortando baixo as flores mais espigadas da imaginao. No espanta que os autores bras ileiros tenham pouco da gratuidade que d azas obra de arte; e, ao contrrio, muito da fidelidade documentria ou sentimental, que vincula experincia bruta. Alis, a coragem ou expontaneidade do gratuito prova de amadurecimento, no indivduo e na civilizao; aos povos jovens e aos moos, parece traio e fraqueza. Ao mesmo tempo, esta imaturidade, por vezes provinciana, deu literatura sentido histrico, e excepcional poder comunicativo, tornando-a lngua geral duma sociedade busca de auto-conhecimento. Sempre que se particularizou, como manifestao afetiva e descrio local, adquiriu, para ns, a expressividade que estabelece comunicao entre autores e leitores, sem a qual a arte no passa de experimentao dos recursos tc nicos. Neste livro, tentar-se- mostrar o jogo dessas foras, universal e nacional, tcnica e emocional, que a plasmaram como permanente mistura da tradio eur opia e das descobertas do Brasil. Mistura do arteso noclssico ao bardo romntico, duma arte de claresa e discernimento a uma "metafsica da confuso", para d izer como um filsofo francs. A idia de que a literatura brasileira deve ser interessada (no sentido exposto) f oi expressa por toda a nossa crtica tradicional, desde Ferdinand Denis e Almeida Garrett, a partir dos quais tomou-se a brasilidade, isto , a presena de elementos descritivos locais, como trao diferencial e critrio de valor. Para os romn21 #ticos, a literatura brasileira comeava propriamente, em virtude do tema indianis ta, com Duro e Baslio, reputados, por este motivo, superiores a Cludio e Gonzaga. O problema da autonomia, a definio do momento e motivos que a distinguem da portug uesa, algo superado, que no interessou especialmente aqui. Justificava-se no sculo passado, quando se tratou de reforar por todos os modos o perfil da jovem ptria, e ns agamos, em relao a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam a dvida aos pais e chegam a mudar de sobrenome. A nossa literatura ramo da portuguesa; pode-se consider-la independente desde Gregrio de Matos ou s aps Gonalves Dias e Jos de Alencar, segundo a perspectiva adotada. No presente liv ro, a ateno se volta para o incio de uma literatura propriamente dita, como fenmeno de civilizao, no algo necessariamente diverso da portuguesa. Elas se un em to intimamente em todo o caso at meados do sculo XIX, que utilizo em mais de um passo, para indicar este fato, a expresso literatura comum" (brasileir a e portuguesa). Acho porisso legtimo que os historiadores e crticos da me-ptria incorporem Cludio ou Sousa Caldas, e acho legtimo inclu-los aqui; acho que o portue nse Gonzaga de ambos os lados, porm mais daqui do que de l; e acho que o paulista Matias Aires s de l. Tudo depende do papel dos escritores na formao do si stema. Mas o nacionalismo crtico, herdado dos romnticos, implicava tambm, como ficou dito, que o valor da obra dependia do seu carter representativo. Dum ponto de vista histrico, sobretudo, evidente que o contedo brasileiro foi algo positivo, mesmo co mo fator de eficcia esttica, dando pontos de apoio imaginao e msculos forma. Deve-se, pois, consider-lo subsdio de avaliao, nos momentos estudados, lembra ndo que, aps ter sido recurso ideolgico, numa fase de construo e auto-definio, atualmente invivel como critrio, constituindo neste sentido um calamitoso erro de viso. O presente livro tentou evit-lo, evitando, ao mesmo tempo, estudar nas obras apen as o aspecto empenhado. Elas s podem ser compreendidas e explicadas na sua integr

idade artstica, em funo da qual permitido ressaltar este ou aquele aspecto. 3. Pressupostos. O fato de ser este um livro de histria literria implica a convico de que o ponto de vista histrico um dos modos legtimos de estudar literatura, pressupondo que as obras se articulam 22 #no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinao na maneira por que so produzidas, e incorporadas ao patrimnio de uma civilizao. Um esteticismo mal compreendido procurou, nos ltimos decnios, negar validade a est a proposio, - o que em parte se explica como rplica aos exageros do velho mtodo histrico, que reduziu a literatura a episdio de uma investigao sobre a sociedad e, ao tomar indevidamente as obras como meros documentos, sintomas da realidade social. Por outro lado, deve-se confuso entre formalismo e esttica; enquanto aquel e se fecha na viso dos elementos de fatura como universo autnomo e suficiente, esta no prescinde o conhecimento da realidade humana, psquica e social, que anima as obras e recebe do escritor a forma adequada. Nem um ponto de vista histrico desejaria, em nossos dias, reduzir a obra aos fatores elementares. Deste modo, sendo um livro de histria, mas sobretudo de literatura, este procura apreender o fenmeno literrio da maneira mais significativa e completa possvel, no s averiguando o sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada au tor na sua integridade esttica. Nem doutra maneira agem os crticos mais consciente s, num tempo, como o nosso, em que a coexistncia e rpida emergncia dos mais variados c ritrios de valor e experimentos tcnicos; em que o desejo de compreender todos os produtos do esprito, em todos os tempos e lugares, leva, fatalmente, a conside rar o papel da obra num contexto histrico, utilizando este conhecimento como elem ento de interpretao e, em certos casos, avaliao. A tentativa de focalizar simultaneamente a obra como realidade prpria, e o contex to como sistema de obras, parecer ambiciosa a alguns, dada a fora com que se arraigou o preconceito do divrcio entre histria e esttica, forma e contedo, erudio e osto, objetividade e apreciao. Uma crtica equilibrada no pode, todavia, aceitar estas falsas incompatibilidades, procurando, ao contrrio, mostrar que so p artes de uma explicao tanto quanto possvel total, que o ideal do crtico, embora nunca atingido em virtude das limitaes individuais e metodolgicas. Para chegar o mais perto possvel do desgnio exposto, necessrio um movimento amplo e constante entre o geral e o particular, a sntese e a anlise, a erudio e o gosto. necessrio um pendor para integrar contradies, inevitveis quando se atenta , ao mesmo tempo, para o significado histrico do conjunto e o carter singular dos autores. preciso sentir, por vezes, que um autor e uma obra podem s er e no ser alguma coisa, sendo duas coisas opostas simultaneamente, - porque as obras vivas constituem uma 23 #tenso incessante entre os contrastes do esprito e da sensibilidade. A forma, atra vs da qual se manifesta o contedo, perfazendo com ele a expresso, uma tentativa mais ou menos feliz e duradora de equilbrio entre estes contrastes. Mas, mesmo qu ando relativamente perfeita, deixa vislumbrar a contradio e revela a fragilidade do equilbrio. Por isso, quem quiser ver em profundidade, tem de aceitar o contrad itrio, nos perodos e nos autores, porque, segundo uma frase justa, ele " o prprio nervo da vida". Por outro lado, se aceitarmos a realidade na mincia completa das suas discordncias e singularidades, sem querer mutilar a impresso vigorosa que deixa, temos de renunciar ordem, indispensvel em toda investigao intelectual. Esta s se efetua por m eio de simplificaes, redues ao elementar, dominante, em prejuzo da riqueza infinita dos pormenores. preciso, ento, ver simples onde complexo, ten tando demonstrar que o contraditrio harmnico. O esprito de esquema intervm, como frma, para traduzir a multiplicidade do real; seja a frma da arte aplicada s i nspiraes da vida, seja a da cincia, aos dados da realidade, seja a da crtica, diversidade das obras. E se quisermos reter o mximo de vida com o mximo de ordem m

ental, s resta a viso acima referida, vendo na realidade um universo de fatos que se propem e logo se contradizem, resolvendo-se na coerncia transitria de uma unidade, que sublima as duas etapas, em equilbrio transitrio. Procurando sobretudo interpretar, este no um livro de erudio, e o aspecto informati vo apenas serve de plataforma s operaes do gosto. Acho valiosos e necessrios os trabalhos de pura investigao, sem qualquer propsito esttico e a eles se abre no B rasil um campo vasto. Acho igualmente valiosas as elucubraes gratuitas, de base intuitiva, que manifestam essa paixo de leitor, sem a qual no vive uma lit eratura. Aqui, no se visa todavia um polo nem outro, mas um lugar eqidistante e, a meu ver, mais favorvel, no presente momento, interpretao do nosso passado lite rrio. 4. O terreno e as atitudes crticas. * Toda crtica viva - isto , que empenha a personalidade do crtico e intervm na sensibi lidade do leitor - parte de uma impresso para chegar a um juzo, e a histrica no foge a esta contigncia. Isto no significa, porm, impressionismo nem dogmatismo, p ois entre as duas pontas se interpe algo que constitui a seara prpria do crtico, dando validade ao seu esforo e seriedade ao seu propsito: o trabalho constr utivo de pesquisa, informao, exegese. 24 #Em face do texto, surgem no nosso esprito certos estados de prazer, tristeza, co nstatao, serenidade, reprovao, simples interesse. Estas impresses so preliminares importantes; o crtico tem de experiment-las e deve manifest-las, pois elas represen tam a dose necessria de arbtrio, que define a sua viso pessoal. O leitor ser tanto mais crtico, sob este aspecto, quanto mais for capaz de ver, num escrito r, o seu escritor, que v como ningum mais e ope, com mais ou menos discrepncia, ao que os outros vem. Porisso, a crtica viva usa largamente a intuio, aceitando e pr ocurando exprimir as sugestes trazidas pela leitura. Delas sair afinal o juzo, que no julgamento puro e simples, mas avaliao, - reconhecimento e definio d alor. Entre impresso e juzo, o trabalho paciente da elaborao, como uma espcie de moinho, tr itura a impresso, subdividindo, filiando, analisando, comparando, a fim de que o arbtrio se reduza, em benefcio da objetividade, e o juzo resulte aceitvel p elos leitores. A impresso, como timbre individual, permanece essencialmente, transferindo-se ao leitor pela elaborao que lhe deu generalidade; e o orgulho inic ial do crtico, como leitor insubstituvel, termina pela humildade de uma verificao objetiva, a que outros poderiam ter chegado, e o irmana aos lugares comuns do se u tempo. A crtica propriamente dita consiste nesse trabalho analtico intermedirio, pois os d ois outros momentos so de natureza esttica e ocorrem necessariamente, embora nem sempre conscientemente, em qualquer leitura. O crtico feito pelo esforo de com preender, para interpretar e explicar; mas aquelas etapas se integram no seu roteiro, que pressupe, quando completo, um elemento perceptivo inicial, um elemen to intelectual mdio, um elemento voluntrio final. Perceber, compreender, julgar. Nesse livro, o aparelho analtico da investigao posto em movimento a servio da recept ividade individual, que busca na obra uma fonte de emoo e termina avaliando o seu significado. As teorias e atitudes crticas se distinguem segundo a natureza deste trabalho ana ltico; dos recursos e pontos de vista utilizados. No h, porm, uma crtica nica, mas vrios caminhos, conforme o objeto em foco; ora com maior recurso anlise formal , ora com ateno mais aturada aos fatores. Querer reduzi-la ao estudo de uma destas componentes, ou qualquer outra, erro que compromete a sua autonomia e tende, no limite, a destru-la em benefcio de disciplinas afins. Nos nossos dias, parece transposto o perigo de submisso ao estudo dos fatores bsic os, sociais e psquicos. Houve tempo, com efeito, em que o crtico cedeu lugar ao socilogo, o poltico, o mdico, 25 #o psicanalista. Hoje, o perigo vem do lado oposto; das pretenses excessivas do f ormalismo, que importam, nos casos extremos, em reduzir a obra a problemas de li nguagem, seja no sentido amplo da comunicao simblica, seja no estrito sentido da lngua.

As orientaes formalistas no passam, todavia, do ponto de vista duma crtica compreens iva, de tcnicas parciais de investigao; constitu-las em mtodo explicativo perigoso e desvirtua os servios que prestam, quando limitadas ao seu mbito. Nada m elhor que o aprofundamento, que presenciamos, do estudo da metfora, das constante s estilsticas, do significado profundo da forma. Mas erigi-lo em critrio bsico sintom a da incapacidade de ver o homem e as suas obras de maneira una e total. A crtica dos sculos XIX e XX constitui uma grande aventura do esprito, e isto foi p ossvel graas interveno da filosofia e da histria, que a libertaram dos gramticos e retores. Se esta operao de salvamento teve aspectos excessivos e acabou por lhe comprometer a autonomia, foi ela que a erigiu em disciplina viva. O imperialismo formalista significaria, em perspectiva ampla, perigo de regresso , acorrentando-a de novo a preocupaes superadas, que a tornariam especialidade restrita, desligada dos interesses fundamentais do homem. 5. Os elementos de compreenso. Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucesso de obras, temos vrios nveis possv eis de compreenso, segundo o ngulo em que nos situamos. Em primeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designao de soc iais; em segundo lugar o fator individual, isto , o autor, o homem que a intentou

e realizou, e est presente no resultado; finalmente, este resultado, o texto, con tendo os elementos anteriores e outros, especficos, que os transcendem e no se deixam reduzir a eles. Se resistirmos ao fascnio da moda e adotarmos uma posio de born senso, veremos que, num livro de histria literria que no quiser ser parcial nem fragmentrio, o crtico precisa referir-se a estas trs ordens de realidade, ao mesmo tempo. lcito estudar apenas as condies sociais, ou as biografias, ou a estrutura interna, separadamente; nestes casos, porm, arriscamos fazer tarefa menos de crtico, do que de socilogo, psiclogo, bigrafo, esteta, lingista. A crtica se interessa atualmente pela carga extra-literria, ou pelo idioma, na med ida em que contribuem para o seu escopo, que o estudo da formao, desenvolvimento e atuao dos processos 26 #literrios. Uma obra uma realidade autnoma, cujo valor est na frmula que obteve para plasmar elementos no-literrios: impresses, paixes, idias, fatos, acontecimentos, que so a matriaprima do ato criador. A sua importncia quase nunca d evida circunstncia de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, mas maneira por que o faz. No limite, o elemento decisivo o que permite compreen d-la e apreci-la, mesmo que no soubssemos onde, quando, por quem foi escrita. Esta autonomia depende, antes de tudo, da eloqncia do sentimento, penetrao analtica, fora de observao, disposio das palavras, seleo e inveno das imagens; do jogo de elementos expressivos, cuja sntese constitui a sua fisionomia, deixand o longe os pontos de partida no-literrios. Tomemos o exemplo de trs pais que, lacerados pela morte dum filho pequeno, recorr em ao verso para exprimir a sua dor: Borges de Barros, Vicente de Carvalho, Fagu ndes Varela. Pelo que sabemos, o sofrimento do primeiro foi o mais duradouro; admitam os que fossem iguais os trs. Se lermos todavia os poemas resultantes, ficaremos insensveis e mesmo aborrecidos com "Os Tmulos", medianamente comovidos com o "Pequ enino morto", enquanto o "Cntico do Calvrio" nos faz estremecer a cada leitura, arrastados pela sua fora mgica. que, sendo obras literrias, no documentos biogrficos a emoo, neles, elemento essencial apenas como ponto de partida; o ponto de chegada a reao do leitor, e esta, tratando-se de leitor culto, s movida pela eficcia da expresso. Os trs pais so igualmente dignos de piedade, do ponto de vista afetivo; literriamente, o poema do primeiro nulo; o do segundo, mediano no seu pattico algo declamatrio; o do terceiro, admirvel pela soluo formal. Este exemplo serve para esclarecer o critrio adotado no presente livro, isto : a l iteratura um conjunto de obras, no de fatores nem de autores. Como, porm, o texto integrao de elementos sociais e psquicos, estes devem ser levados em conta

para interpret-lo, o que apenas na aparncia contesta o que acaba de ser dito. corn efeito, ao contrrio do que pressupem os formalistas, a compreenso da obra no pr escinde a considerao dos elementos inicialmente no-literrios. O texto no os anula, ao transfigurlos, e sendo um resultado, s pode ganhar pelo conheciment o da realidade que serviu de base sua realidade prpria. Porisso, se o entendiment o dos fatores desnecessrio para a emoo esttica, sem o seu estudo no h crtica, opera do vimos, essencialmente de anlise, sempre que pretendemos superar o impressionismo. 27 "fesftssa*#Entende-se agora porque, embora concentrando o trabalho na leitura do texto, e utilizando tudo mais como auxlio de interpretao, no penso que esta se limite a indicar a ordenao das partes, o ritmo da composio, as constantes do estilo, as ima gens, fontes, influncias. Consiste nisso e mais em analisar a viso que a obra exprime do homem, a posio em face dos temas, atravs dos quais se manifestam os esprito ou a sociedade. Um poema revela sentimentos, idias, experincias; um romance revela isto mesmo, com mais amplitude e menos densidade. Um e outro v alem, todavia, no por copiar a vida, como pensaria, no limite, um crtico no-literrio ; nem por criar uma expresso sem contedo, como pensaria, tambm no limite, um formalis ta radical. Valem porque inventam uma vida nova, segundo a organizao formal, tanto quanto possvel nova, que a imaginao imprime ao seu objeto. Se quisermos ver na obra o reflexo dos fatores iniciais, achando que ela vale na medida em que os representa, estaremos errados. O que interessa averiguar at que ponto interferiram na elaborao do contedo humano da obra, dotado da realidade p rpria que acabamos de apontar. Na tarefa crtica h, portanto, uma delicada operao, consistente em distinguir o elemento humano anterior obra e o que, transfi gurado pela tcnica, representa nela o contedo, propriamente dito. Dada esta complexidade de tipo especial, ridculo despojar o vocabulrio crtico das e xpresses indicativas da vida emocional ou social, contanto que, ao utiliz-las, no pensemos na matria prima, mas em sentimentos, idias, objetos de natureza diferen te, que podem ser mais ou menos parecidos com os da vida, mas em todo caso foram redefinidos a partir deles, ao se integrarem na atmosfera prpria do texto. Quando falamos na ternura de Casimiro de Abreu, ou no naturismo de Bernardo Guim ares, no queremos, em princpio, dizer que o homem Casimiro fosse terno, nem amente da na tureza o homem Bernardo, pois isso importa secundariamente. Queremos dizer que na obra deles h uma ternura e um naturismo construdos a partir da experincia e da i maginao, comunicados pelos meios expressivos, e que podero ou no corresponder a sentimentos individuais. Para o crtico, so forjados, desde que existem literriame nte, ao mesmo ttulo que a coragem de Feri ou as astcias do Sargento de milcias. Interessando definir, na obra, os elementos humanos formalmente elaborados, no im portam a veracidade e a sinceridade, no sentido comum, ao contrrio do que pensa o leitor desprevenido, que se desilude muitas vezes ao descobrir que um escritor avarento celebrou a cariae, que certo poema ex&Y&aemec&fi, "stsa ^ovvn. dum homem casto, que determinado poeta, delicado e suave, es28 #pancava a me. Como disse Proust, o problema tico se coloca melhor nas naturezas d epravadas, que avaliam no drama da sua conscincia a terrvel realidade do bem e do mal. Em suma, importa no estudo da literatura o que o texto exprime. A pesquisa da vi da e do momento vale menos para estabelecer uma verdade documentria freqentemente intil, do que para ver se nas condies do meio e na biografia h elementos que esclarea m a realidade superior do texto, por vezes uma gloriosa mentira, segundo os padres usuais. J se v que, ao lado das consideraes formais, so usadas aqui livremente as tcnicas de nterpretao social e psicolgica, quando julgadas necessrias ao entendimento

da obra; este o alvo, e todos os caminhos so bons para alcan-lo, revelando-se a cap acidade do crtico na maneira por que os utiliza, no momento exato e na medida suficiente. H casos, por exemplo, em que a informao biogrfica ajuda a compreender o texto; porque rejeit-la, por preconceito metodolgico ou falsa pudiccia formalista? H casos em que ela nada auxilia; porque recorrer obrigatoriamente a e la? 6. Conceitos. No arsenal da histria literria, dispomos, para o nosso caso, cie conceitos como: p erodo, fase, momento; gerao, grupo, corrente; escola, teoria, tema; fonte, influncia. Embora reconhea a importncia da noo de perodo, utilizei-a aqui incidentemente e atend endo evidncia esttica e histrica, sem preocupar-me com distines rigorosas. Isso, porque o intuito foi sugerir, tanto quanto possvel, a idia de mov imento, passagem, comunicao, - entre fases, grupos e obras; sugerir uma certa labilidade que permitisse ao leitor sentir, por exemplo, que a separao evidente, d o ponto de vista esttico, entre as fases noclssica e romntica, contrabalanada, do ponto de vista histrico, pela sua unidade profunda. diferena entre estas fases, procuro somar a idia da sua continuidade, no sentido da tomada de conscincia literria e tentativa de construir uma literatura. Do mesmo modo, embora os escritores se disponham quase naturalmente por geraes, no interessou aqui utilizar este conceito com rigor nem exclusividade. Apesar de fecundo, pode facilmente levar a uma viso mecnica, impondo cortes transversais numa realidade que se quer apreender em sentido sobretudo longitudinal. Porisso, sobrepus ao conceito de gerao o de tema, procurando apon29 #tar no apenas a sua ocorrncia, num dado momento, mas a sua retomada pelas geraes su cessivas, atravs do tempo. Isso conduz ao problema das influncias, que vinculam os escritores uns aos outros , contribuindo para formar a continuidade no tempo e definir a fisionomia prpria de cada momento. Embora a tenha utilizado largamente e sem dogmatismo, como tcnic a auxiliar, preciso reconhecer que talvez seja o instrumento mais delicado, falve l e perigoso de toda a crtica, pela dificuldade em distinguir coincidncia, influncia e plgio, bem como a impossibilidade de averiguar a parte da deliberao e do inconsciente. Alm disso, nunca se sabe se as influncias apontadas so significati vas ou principais, pois h sempre as que no se manifestam visivelmente, sem contar as possveis fontes ignoradas, (autores desconhecidos, sugestes fugazes), qu e por vezes sobrelevam as mais evidentes. Ainda mais srio o caso da influncia poder assumir sentidos variveis, requerendo tra tamento igualmente diverso. Pode, por exemplo, aparecer como transposio direta mal assimilada, permanecendo na obra ao modo de um corpo estranho de inte resse crtico secundrio. Pode, doutro lado, ser de tal modo incorporada estrutura, que adquire um significado orgnico e perde o carter de emprstimo; tom-la, ento, como influncia, importa em prejuizo do seu carter atual, e mais verdadeiro, de elemento prprio de um conjunto orgnico. Estas consideraes exprimem um escrpulo e uma atitude, conduzindo a um dos conceitos bsicos do presente livro: que o eixo do trabalho interpretativo descobrir a coerncia das produes literrias, seja a interna, das obras, seja a externa, de uma fase, corrente ou grupo. Por coerncia, entende-se aqui a integrao orgnica dos diferentes elementos e fatores, (meio, vida, idias, temas, imagens, etc.), formando uma diretriz, um torn, um conjunto, cuja descoberta explica a obra como frmula, obtida pela elaborao do es critor. a adeso recproca dos elementos e fatores, dando lugar a uma xmidade superior, mas no se confunde com a simplicidade, pois uma obra pode ser contraditr ia sem ser incoerente, se as svias condies forem superadas pela organizao formal. No nvel do autor, ela se manifesta atravs da personalidade literria, que no necessar iamente o perfil psicolgico, mas o sistema de traos afetivos, intelectuais e morais que decorrem da anlise cia obra, e correspondem ou no vida, - como se viu

h pouco ao mencionar a ternura de Casimiro. No nvel do momento, ou fase, ela se manifesta pela afinidade, ou carter complementar entre as obras, conseqncia da relativa articulao entre elas, originando o estilo do tempo, que permite as generalizaes crticas. Porisso, 30 #i no interessou aqui determinar rigorosamente as condies histricas, - sociais, econmica s, polticas, - mas apenas sugerir o que poderamos chamar de situao temporal da obra, ou seja, a sntese das condies de interdependncia, que estabelecem a fisionomia comum das obras, e so realidades de ordem literria, nas quais se absorvem e sublimam os fatores do meio. A coerncia em parte descoberta pelos processos analticos, mas em parte inventada p elo crtico, ao lograr, com base na intuio e na investigao, um traado explicativo. Um, no o traado, pois pode haver vrios, se a obra rica. Todos sabem qu e cada gerao descobre e inventa o seu Gongora, o seu Stendhal, o seu Dostoievski. Por isso, h forosamente na busca da coerncia um elemento de escolha e risco, quando o crtico decide adotar os traos que isolou, embora sabendo que pode haver outros. Num perodo, comea por escolher os autores que lhe parecem representativos; nos autores, as obras que melhor se ajustam ao seu modo de ver; nas obras, os temas, imagens, traos fugidios que o justificam. Neste processo vai muito da sua coerncia, a despeito do esforo de objetividade. Sob este aspecto, a crtica um ato arbitrrio, se deseja ser criadora, no apenas regi stradora. Interpretar , em grande parte, usar a capacidade de arbtrio; sendo o texto uma pluralidade de significados virtuais, definir o que se escolhe u, entre outros. A este arbtrio o crtico junta a sua linguagem prpria, as idias e imagens que exprimem a sua viso, recobrindo com elas o esqueleto do conheciment o objetivamente estabelecido. 31 #3*. # Captulo I RAZO, NATUREZA, VERDADE 1. TRAOS GERAIS 2. RAZO E IMITAO 3. NATUREZA E RUSTICIDADE 4. VERDADE E ILUSTRAO 5. A PRESENA DO OCIDENTE #r #1. TRAOS GERAIS O momento decisivo em que as manifestaes literrias vo adquirir, no Brasil, caracterst icas orgnicas de um sistema, marcado por trs correntes principais de gosto e pensamento: o Neoclassicismo, a Ilustrao, o Arcadismo. Freqentemente elas se misturam, e embora predomine ora uma, ora outra, conforme o setor, autor ou momento considerado, a sua reunio que caracteriza o perodo, que poderia ser denominado segundo qualquer uma delas. Neste livro, as trs design aes sero usadas conforme o aspecto referido, preferindo, para o conjunto, a designao tradicional de Arcadismo, por ser menos tcnica, ficando subentendido que e ngloba as demais, sempre que no houver ressalva expressa. Neoclassicismo termo relativamente novo em nossa crtica, nesse contexto, e nos ve io dos portugueses, que por sua vez o tomaram aos espanhis. Estes e os ingleses costumam designar assim a imitao do Classicismo francs, verificada em toda a Europa no sculo XVIII. Na literatura comum (brasileira e portuguesa) o seu emprego til, se levarmos em conta que o movimento da Arcdia Lusitana, a partir da doutrinao de Verney, teve por idia-fra o combate ao Cultismo. Nessa empresa, os reformadores se inspiraram na codificao cie Boileau, procuraram redefinir a imitao d ireta dos gregos e romanos, sobretudo Tecrito, Anacreonte, Virglio, Horcio, e tentaram restabelecer vrios padres do perodo por excelncia clssico na literatura po rtuguesa, o sculo XVI, promovendo sob muitos aspectos um verdadeiro Neoquinhentis mo. E a esto trs derivaes capazes de justificar a etiqueta neoclssica, que tem a vantagem

de marcar a ligao com o movimento afim da literatura espanhola. Por Ilustrao, entende-se o conjunto das tendncias ideolgicas prprias do sculo XVIII, e fonte inglesa e francesa na maior parte: exaltao da natureza, divulgao apaixonada do saber, crena na melhoria da sociedade por seu intermdio, confiana na ao governamental para promover a civilizao e bem-estar coletivo. Sob o aspecto filosfico, fundem-se nela racionalismo e empirismo; nas 35 #letras, pendor didtico e tico, visando empenh-las na propagao das Luzes.1 A designao Arcadismo menos rica e significativa, devendose influncia dos italianos, que reagiram contra o maneirismo nas agremiaes denominadas Arcdias, cuja teoria potica nos atingiu pela influncia de Muratori e a prtica de seu poeta mx imo, Metastsio. Ela engloba os traos ilustrados, e se tivermos a preocupao de no restringi-la conveno pastoral, que evoca imediatamente, ainda melhor que as o utras, dado o seu sentido histrico, pois, como se sabe, o movimento renovador partiu, em Portugal, da Arcdia Lusitana (1756). A sua grande vantagem que, sendo um nome convencional, permite englobar os outros dois aspectos principais do movimento, sem suprimir a idia de outros, como as sobrevivncias maneiristas, que p ersistem sobretudo graas moda buclica. Parece, com efeito, algo forado chamar noclssico a um perodo onde Marlia evolui com os seus ademanes caprichosos, on de Silva Alvarenga traa as volutas amaneiradas dos ronds, e que alis se articula com o Barroco de Minas e do Rio. Considerando, pois, que h nele forte lastro de maneirismo, e a aspirada naturalidade anti-cultista freqentemente alcanada pelo Rococ, no o Clssico, born conservar a velha etiqueta nos casos em que for preciso recorrer a uma designao geral, utilizando livremente as outras quando se tratar das componentes que elas exprimem. Neste captulo, procurar-se- analisar e caracterizar esse perodo complexo, jogando l ivremente com os trs conceitos e tentando ver a que realidades correspondem no mundo das idias e teorias literrias. A tarefa no fcil, e pode servir de exemplo da influncia que as mudanas de perspectiv a exercem sobre a conceituao dos perodos. com efeito, a situao tradicional do sculo XVIII na literatura foi desarticulada, em nosso tempo, graas a dois novos focos de interesse: de um lado, a revalorizao do Barroco, que levou a pesquisar nele as sobrevivncias de maneirismo e atenuar o aspecto clssico; de outro, este so freu nova atenuao graas ao conceito de Pr-romantismo, que localizou nele os germens da literatura do sculo XIX. Puxado dos dois lados, pouco sobraria de e specfico, sobretudo na literatura comum, onde o Romantismo inicial constitui, em parte, desenvolvimento de premissas lricas do sculo XVIII; e onde a presena abso rvente dos quinhentistas, sobretudo Cames, garante certa semelhana entre ele e o sculo XVII, ambos dependentes da imitao greco-latina, do petrarquismo, da e sttica aristotlica e horaciana. Alm do mais, a falta de genialidade dos autores (1) Prefiro Ilustrao a Iluminismo, muito usado em nossa lngua, para evitar confu so com o movimento mstico assim designado, que ocorre contemporneamente. 36 #contribui para esbater, nele, o relevo prprio, que todavia existe e se procurar s alientar aqui. Na literatura comum, a sua frmula seria mais ou menos a seguinte: Arcadismo = Cla ssicismo francs + herana greco-latina + tendncias setecentistas. Estas variam, de pas para pas, mas compreendem, em geral, como vimos, o culto da sensibilidade, a f na razo e na cincia, o interesse pelos problemas sociais, podendo-se talvez reduzi-las seguinte expresso: o verdadeiro o natural, o natural o racional . A literatura seria, conseqentemente, expresso racional da natureza, para assim manifestar a verdade, buscando, luz do esprito moderno, uma ltima encarnao da mimesis aristotlica. Foi este o padro ideal, o arqutipo a que se podem referir as vrias manifestaes partic ulares, e a cuja investigao convm proceder, tomando como ponto de reparo os trs grandes conceitoschaves mencionados: razo, natureza, verdade. 37 #P""2. RAZO E IMITAO

No esqueamos que a idia-fra do Arcadismo luso-brasileiro polmica: tratava-se de opo da ter sido um movimento eminentemente crtico, fiado de preferncia no discernimento, desconfiado em parte da inspirao, ou "furor potico", como vem nos tratadistas. "Tis hard to say if grcater want of skill Appcar in writing or in judging ill, escreveu o gro-padre do neoclassicismo ingls, ajuntando: But of the two, less dang"rous is th"offence To tire our patience than mislead our sense.Conseqentemente, prezaram-se na poesia aqueles valores atribudos de ordinrio prosa e que haviam sido, mesmo nela, obliterados por mais de um sculo de intemperana verbal: claresa, ordem lgica, simplicidade, adequao ao pensamento. Esta reconquista da naturalidade d feies de clssico ao perodo, pois se liga a uma esttica segundo a qual a palavra deve exprimir a ordem natural do mundo e do esprito. Em Portugal o Arcadismo integra um amplo movimento de renovao cultural, paralelo a certas iniciativas pombalinas. Homens como Verney e Ribeiro Sanches queriam introduzir na ptria o novo esprito filosfico, impregnado das orientaes metodolgicas d racionalismo e do pos-racionalismo anglo-francs. Em literatura, maneira, menos de Boileau, invocado pelo primeiro, quanto de Fontenelle, do seco Houdart de La Motte - modernos, seus antagonistas, - pugnavam uma poesia lgica, sem artifc ios nem surpresas marcantes: poesia envergonhada e tmida em face da prosa, qual pedia desculpas pelo que nela ainda restasse de potico. Boileau, nas Reflexes sobre Longino, d como test da imagem a sua viabilidade ante expresses como - "por assim dizer", ou "se (2) " difcil dizer onde aparece maior falta de competncia: no escrever mal ou no ju lgar errado; entretanto, entre os dois, menos perigosa a injria de cansar a nossa pacincia que a de desorientar o nosso discernimento". Pope, An Essay on C ritlcism, pag. 247. Note-se, a ttulo de curiosidade, que o Ensaio sobre a Crtica, na traduo do conde de Aguiar, foi dos primeiros livros editados no Brasil pela Imp rensa Regia (1810). 38 #assim ouso falar", mediante as quais se suprimiram ousadias indomveis pelo freio da lgica... La Motte acusara Racine de impropriedade e exagero num verso de Fedr a, onde narra o aparecimento do monstro que matou Hiplito: Li: flot qui 1"apporta reculc pouvant. Boileau retruca que a imagem legtima, como se pode ver acrescentando mentalmente - "pour ainsi dire"; e desta maneira (deveria completar) justificando-a perante a prosa.3 Por estas e outras, o que a literatura francesa precisava era um movimento exata mente oposto ao racionalismo esttico; movimento que restaurasse algo daquela fant asia irregular dos preciosos c burlescos, banida pela regularidade clssica do "sculo de Lus XIV". Noutras parte, porm, como a Itlia e Portugal, essa dieta magra vinha corrigir os excessos cie um sculo destemperado, que dera a certa altura alg uns produtos excelentes mas descara, em seguida, na orgia verbal. Assim como cent o e poucos anos depois VerlaJne exigiria, em meio s rotundidades plsticas do Parnaso , que a poesia "retomasse msica o que lhe pertencia", os rcades se empenhavam nas duas pennsulas em retomar prosa o que no menos legitimamente pertence poesia: decoro e dignidade da expresso. Tais idias constituem o ponto de referncia da teoria literria do sculo XVIII em quas e toda a Europa. Em Portugal, embora comeassem a ser conhecidas desde os fins do sculo XVII e incio do XVIII, em torno de homens como o conde da Ericeira, tradutor da Arte Potica de Boileau, s ganharam fora atuante pelos meados deste, graas ao movimento da Ilustrao, capitaneado por Verney, por intermdio de quem passar am ao grupo da Arcdia Lusitana, seja na teoria de Cndido Lusitano, seja na prtica dos poetas. No Verdadeiro Mtodo de Estudar, como se sabe, h trs cartas dedicadas aos estudos li

terrios: a 5.a e 6.a oratria, a 7.a, que nos interessa, poesia. Nela, Verney se encontra muito prximo dos tericos franceses posteriores a Boileau, que p or um lado despoetizaram ao mximo a teoria potica, mas insistiram por outro, alguns deles, no gosto como critrio de apreciao, possibilitando desta forma a intro duo de um ponto cie vista mais pessoal, em contrapeso aplicao estrita das normas. Como era todavia um consumado pedante, d predomnio absoluto a estas, reduzindo aqu ele elemento mais vivo a mera garantia da sua aplicao. Extremado racionalista neste terreno, poetar dependia para ele de conhecer as normas da poesia; quando algum (3) V. Boileau. Reflexions critiques sur quelques passages u rhteur Long in, etc; Oeuvres, Tomo in, pgs. 116 a 121. 39 #as abandona e confia na inspirao, desanda: "(---) ainda no vi livro portugus, que e nsinasse um hornem, a inventar e julgar bem; e formar um poema como deve ser. De que nasce, que os que querem poetar, o fazem segundo a fora da sua imagin ao: e no produzem coisa, digna de se ver."4 O poeta deve ter duas qualidades: engenho e juzo; aquele, subordinado imaginao, este, seu guia, muito mais importante , decorrente da reflexo. Da no haver beleza sem obedincia razo, que aponta o objetivo da arte: a verdade. Porisso, "um conceito que no justo, nem fun dado sobre a natureza das coisas, no pode ser belo: porque o fundamento de todo conceito engenhoso, a verdade: nem se deve estimar algum, quando no se reconhea ne le, vestgio de born juzo. E como os Antigos observam muito isto, por isso neles se observa, certa maneira natural de escrever e certa simplicidade nobre, que os faz tanto admirveis." (pgs. 178-179). Entretanto, como no possuam o mesmo senso crtico dos modernos, devem ser estudados, respeitados, mas no erigidos em mo delo absoluto. Homem do seu tempo, Verney aceita o progresso na literatura e entende que os contemporneos estavam mais aparelhados para escrever bem, graas sup erao dos antecessores pela assimilao do sevi exemplo. Nesse sentido, considera Longino superior aos tratadistas que o precederam; assim participa da simpatia p elo velho retrico, cuja obra ajudou, no sculo XVIII, a infundir maior liberdade crtica no esqueleto rgido do racionalismo. (pgs. 188-189). Todavia, no vai alm de um tributo formal. Como pedagogo, que era essencialmente, a poesia lhe interessa enquanto instrumento e exerccio mental; repudiava nela, por conseguinte, os aspec tos mais livres e pessoais, para guardar os que se enquadrassem no preceito didti co. Para ser poeta preciso ser retrico, ou seja, ter a "arte de persuadir", "a qual s upe Juzo, e Critrio". "Chamo critrio, a uma boa Lgica natural", (pgs. 192) Os culteranos foram maxis poetas porque pensavam mal e assim sacrificavam a natu ralidade em benefcio da sutileza. Percebe-se o reformador nessa averso profunda ao conceito, agudeza, ao jogo de palavras, que lhe traziam certamente a imagem a borrecida do raciocnio escolstico, perdido no puro jogo mental. Da criticar acerbamente o prprio Cames, culpado de preciosismo nos sonetos e nos Lusadas, onde sente lacunas de instruo que enfraquecem a poesia, (pg. 214) Aqui tocamos no supremo pedantismo deste homem e, atravs dele, o do sculo que exprime, cujo rac ionalismo tendia, no limite, a um utilitarismo didtico que a prpria negao da arte. Mas como no h idia unvoca, de modo absoluto, as reflexes de Verney, no fuu(4) (Lula Antnio Verney), Verdadeiro Mtodo de Estudar, etc.. To mo 1." pag. 177. 40 #do antipoticas, traziam um elemento justo e fecundo. "A Poesia no coisa necessria, na Repblica: faculdade arbitrria, e de divertimento. E assim no havendo necessidade de fazer versos, ou faz-los bem, ou no faz-los." (pg. 225) Repudiava, po is, a mania versejante, uma das taras do tempo, reservando o exerccio do verso s vocaes verdadeiras, dos que fossem capazes de escrever com lgica, naturalida de e modernidade. Se no aceitamos os requisitos que formulou como essenciais ao poeta, no podemos rejeitar o princpio geral de que a poesia deve depender de vo cao. Este ponto de vista - coerente at o extremo com as idis do tempo - suscitava todav ia um grave problema: ou a poesia mesmo algo secundrio e no convm mant-la;

ou , pelo contrrio, algo importante, e merece considerao. Esta perplexidade desnudav a a contradio da esttica neoclssica, que submetia a poesia a uma capits diminutio, mas no obstante a cultivava com abundncia. Seria preciso reequilibrar a situao; foi o que procurou fazer Francisco Jos Freire, analisando a sua finalidade e concluindo que no visava o puro deleite; mas que, como as demais pro dues do esprito, era til ao progresso moral. A sua Arte Potica, embora partindo da doutrina, e mesmo do apelo do Verdadeiro Mtodo, empreender uma conceituao mais am pla que redignifica a poesia, inserindo-a, simultaneamente, nas aspiraes do tempo e na tradio clssica. "(...) li uns livros Portugueses, impressos fora, intitulados: Verdadeiro Mtodo d e Estudar, etc. Vi que nesta obra se queixava justissimamente o seu Autor, de qu e aos Portugueses, para serem bons Poetas, lhes faltava uma Arte, a que verdadeira mente se pudesse chamar Potica."5 Pondo mos obra imediatamente (o seu livro de 1748, um ano aps o de Verney) escreve o tratado que se poderia considerar como pedra fundamental da poesia arcdica portuguesa, no seu carter de superao do Cultismo, imitao da potica franco-italiana e intelectualismo mitigado pela fantasia . Para ele a poesia no era puro deleite (e, portanto, coisa somenos), como para Ver ney; nem dependia da alternativa horaciana, segundo a qual deve instruir ou dele itar. Devia fazer as duas coisas ao mesmo tempo, e neste conceito segue de perto Murat ori, que dos modernos, com Luzan, o guia de que nunca se afasta.6 Alm de ter muito mais compreenso e sensibilidade potica, Freire pde contrabalanar a s ecura dos tericos franceses, modelos imediatos de Verney, graas influncia italiana, cujo arcadismo, (5) Francisco Joseph Freire, Arte Potica, etc., vol. I, "Prlogo". (O nome aredic o de Freire foi Cndido Lusitano). (6) Idem, Cap. IV, "Do fim da Poesia", pgs. 26-30. Ver pg. 55; "Seguir emos os passos do celebradssimo Muratori, que magistralmente tratou desta ignorada matria, escrevendo os livros Delia perfeita Poesia Italiana; no que f aremos aos Poetas Portugueses um particular servio para o born gosto das poesias" . 41 #se no trouxe grandeza, difundiu pela Europa uma doura e musicalidade que esbatera m algumas arestas mais didaticamente racionalistas da Ilustrao. Neste sentido trabalharam a influncia avassaladora de Metastasio e a teoria de Muratori, na qua l a importncia atribuda inspirao compensa em parte a rigides das normas. Para Cndido Lusitano, h na poesia um elemento arrebatador e irracional; o "furor p otico", ou "entusiasmo". Ele nada tem de sobrenatural, todavia; antes algo que o poeta suscita pela vontade e amplia com o trabalho ("este Estro se pode ad quirir com Arte"), (pg. 43) Entra a em cena um intelectualismo que confia a criao da beleza ao esforo do poeta enquanto artfice - pois ela reside precisamente no "a rtifcio" com que este acrescenta algo de seu "matria"; esta tem em geral as caractersticas do lugar-comum e s poder deleitar se apresentar a "novidade", o " maravilhoso", que ferem a imaginao do leitor, (pgs. 58, 91, 140, 144). Para isto preciso que a obra tenha beleza e doura. A beleza o elemento racional da for ma, que reala a verdade com a sua luz, que "no outra coisa seno a brevidade, ou clareza, a energia, a utilidade, e outras circunstncias"; a doura, elemento afe tivo, consiste nas "qualidades (que) podem mover os aspectos do nosso nimo." (pgs. 54-55) Imediatamente, porm, comeam a entrar em jogo as peias da conveno, conduzindo o poeta a um enquadramento bastante rigoroso, mais prximo concepo de Verney. Nota-se da parte do tratadista um duplo movimento de dar e tirar, concedendo sen sibilidade e fantasia apenas para cerce-las, logo depois, com o preceito racional ; mas conseguindo enfim elaborar, como seu mestre Muratori, uma teoria relativamen te compreensiva. A poesia, tanto para ser til quanto para ser agradvel, deve basear-se na verdade que no a verdade objetiva e unvoca da cincia, mas a verossimilhana. Na

conceituao desta encontrase geralmente a pedra de toque das teorias poticas de insp irao aristotlica e horaciana: para o nosso tratadista, ela (como para os seus contemporneos) uma verdade possvel, presa, por um lado, analogia com as ve rdades objetivamente constatveis; por outro, imaginao criadora, (pgs. 66-67-71) E assim camos de novo no referido "por assim dizer", de Boileau. preciso acentuar que, nesse conceito de "verdade provvel", tomado a Muratori. o e lemento fundamental para Cndido Lusitano no a fantasia, mas a analogia com o verdadeiro, de que uma espcie de aspecto imperfeito. "Estas coisas pois, que so crveis, e possveis, e provveis, chamamos-lhes verossmeis; porque so semelhantes ao verdadeiro certo, evidente e real; e tambm so certas na razo, e no gnero (digamos ) de possibilidade, probabilidade, c credibilida42 #de." (pgs. 72-73 e 74) Tanto assim que s "prprio do Poeta" a fantasia unida ao ent endimento, (pg. 88) No se poderia realmente esperar que um neoclssico aceitasse a criao como arbtrio, poi s j vimos qual foi a caracterstica do seu tempo: um esforo de recuperar o equilbrio expressivo, que nunca se obtm sem realar o elemento racional e voluntrio do trabalho artstico. compreensvel, assim, o acmulo de limitaes tericas e barreiras prticas a qualquer deslize da fantasia fora do decoro, da inteligibil idade, da racionalidade. Reconhecendo, por exemplo, que o poeta nem sempre animado por uma "paixo violenta ", nem deve abandonar-se com freqncia aos "xtases da fantasia", indica uma espcie de exacerbao desta, o vo, o rapto potico que permite compor segundo uma certa desordem e ousadia de imagens, "sem observar ordem nem unio, que ordinariamente costuma haver, quando a fantasia quieta se regula pelo entendimento." (pg. 133) A ltima modalidade a que lhe agrada sobre todas e a que considera verdadeiro nervo da poesia; tanto, que o prprio vo potico deve ser usado com moderao e sem perda da tonalidade racional do poema, devendo o poeta considerar se "pode natural, e verossimilmente mover tanto a fantasia, que racionalmente se possam u sar estes vos poticos", adequando-os ao assunto, (pg. 137) Da estabelecer graus na ousadia: pode-se dizer verossimilmente que da boca de um homem saem palavras doces como o mel; j acha ousado, mas ainda dentro do possvel, dizer que so o prprio mel; mas no admite qualquer desenvolvimento dessa imagem (o que se faria a partir do Romantismo e j se fizera ao tempo do Barroco), como dizer que "as abelhas queiram chupar este mel sonhado." (pg. 124) Neste exemplo fica bem claro o jogo d os limites referido acima, por meio do qual a razo, aps haver concedido vrias liberdades, semeia armadilhas pelo caminho da poesia, pois "a beleza potica est fu ndada na verdade, e compe-se de perfeies reais, no de desconsertos, ou iluses areas." (pg. 127) Este imprio da razo decorre da busca do natural, que o seu "correlativo objetivo", sendo o limite permanente da imaginao e o critrio definitivo para se aquilatar a validade da poesia, baseada na "natureza das coisas" e necessitando verossimil hana para merecer a "aprovao do entendimento", (pg. 122) O que se desejava era uma imaginao fiel razo. O "engenho" consistia numa percepo adequada, dependendo afin l mais da lgica do que da inspirao (pgs. 138-139); e a afetao dos culteranos era considerada m, sobretudo por ir de encontro aos dois elementos ind ispensveis da forma potica, geradores da beleza: objetividade e conciso, (pgs. 51-52) Embora no transforme a poesia, como Verney, 43 #num exerccio retrico e frio, v tambm no poeta um artfice, em que a instruo e a inte cia predominam, - conseqncia inevitvel da potica dum perodo empenhado em fazer da arte uma linguagem racional, espelho do homem culto e imed iatamente acessvel a ele. Para conseguir esse ideal de inteligibilidade, no sentido mais lato, (deixamos a gora Cndido Lusitano, voltando a consideraes de ordem geral), o escritor deveria escolher situaes e emoes genricas, que transcendem a condio individual. O leitor dev a poder, desde logo, libertar-se de qualquer obedincia s condies estritamente pessoais do escritor, para receber a emoo artstica atravs de paradigmas . Da preferirem-se as grandes circunstncias da vida para exerccio do verso, - circunstncias por assim dizer impessoais, comuns a todos: nascimento, casamento

, acontecimentos, celebraes, morte. Ou as situaes que dissolviam o detalhe pessoal, como a conveno buclica. Ou, finalmente, o recurso s situaes, nomes e sentime tos da mitologia e da histria greco-latina, graas aos quais o caso particular se esbatia no significado genrico, de alcance universal. O fastio caus ado pela literatura arcdica, sobretudo nos representantes menores, vem da monoton ia das imagens, relativamente limitadas. Para o nosso gosto, parece faltar-lhes aqu ela conscincia de individuao, que leva o escritor a encarar as coisas sob o ngulo da sua posio pessoal em face do mundo. Mesmo nas poesias mais pessoais do sculo XVI II, notamos o jugo do dilogo, da presena de outrem, a evitar uma provvel solido. ou: Tu no vers, Marlia, cem cativos, Alexandre, Marlia, qual o rio. Grande parte da poesia setecentista endereada, uma conversa potica, quando no fran amente comemorativa: "ao sr. Fulano", "s bodas de D. Beltrana", etc., - revelando cunho altamente socivel. Um critrio til, embora de modo algum nico, para a anlise diferencial dos perodos e da s escolas, o que se poderia chamar a destinao pblica da literatura, pois (salvo casos raros e por vezes admirveis de solipsismo) o escritor, quando e screve, prefigura, conscientemente ou no, o seu pblico, a ele se conformando. Quase sempre o rcade prefigura um pblico de salo, um leitor a voz alta, um recitado r. Por um corolrio da prpria esttica baseada na verdade natural, a literatura se torna forosamente comunicativa; mais ainda, aspira ser instrumento de comunicao entre os homens, - geralmente os homens de um dado grupo. Da, a 44 #poesia marcada pelo que se poderia chamar de sentimento do interlocutor, que se compraz nas odes raciocinantes e, sobretudo, na epstola, forma mais caracterstica daquele sentimento. Certos autores, como Felinto Elsio, que para Garrett era supe rior a Bocage, chegam a estender o torn epistolar a tudo o mais; e mesmo quando fazem odes e sonetos, esto escrevendo epstolas. O Arcadismo , pois, conscincia de integrao: de ajustamento a uma ordem natural, soci al e literria, decorrendo disso a esttica da imitao, por meio da qual o esprito reproduz as formas naturais, no apenas como elas aparecem razo, mas como as conceberam e recriaram os bons autores da Antigidade e os que, modernamente, seguiram a sua trilha. O conceito aristotlico de mimesis, ou seja, criao artstica a partir das sugestes da natureza, assume para os neoclssicos um sentido por assim dizer prprio, estrito. "Entre as slidas mximas, com que Horcio pretende fo rmar um born poeta, no (...) menos importante a imitao. No falo da imitao da natureza, mas da imitao dos bons autores (...) Os Gregos e os Latinos, que dia e noite no devemos largar das mos, estes soberbos originais, so a nica fonte de que emanam boas odes, boas tragdias e excelentes epopias"7 Para a fig ura principal da Arcdia Lusitana, a literatura se concebia, pois, maneira de um arquivo da natureza, formado pelos antigos e funcionando, por assim dizer, como natureza de segundo grau, recriada mediante a imitao literria, que dava obra segurana e nobreza, dando-lhe genealogia esttica. "O poeta, que no seguir os a ntigos, perder de todo o norte, e no poder jamais alcanar aquela fora, energia e majestade, com que nos retratam o formoso e anglico semblante da nature za." (pg. 468) Imitar Verglio no apenas participar de certo modo na ordem de valores criados por ele, mas tambm assegurar um instrumento literrio j verificad o no trabalho da criao. A conformidade com o modelo o orgulho do escritor neoclssico, a quem pareceria estulta a pretenso de originalidade dos romnticos e po sromnticos; porque para ele "s a aprovao da posteridade capaz de estabelecer o verdadeiro mrito das obras", e porisso, se "a antigidade de um escritor no ttulo c erto de seu mrito (...) a antiga e constante admirao havida sempre por suas obras prova segura e infalvel que elas devem ser admiradas".8 Alm desta garantia de excelncia do modelo, a Antigidade oferecia outros apoios teor ia arcdica: em primeiro lugar, um excelente recurso de despersonalizao do lirismo, graas ao uso de temas e personagens antigos como veculo da emoo. O mito,

a lenda e (7) P. A. Corra Garo, "Dissertao Terceira", em Obras Poticas, pag. 465. {8) Bo leau, Rflexions critiques, etc., clt., pgs. 64 e 70. 45 #a histria antiga, sedimentados em profundidade pela educao humanstica na conscincia do homem culto, formavam uma caixa de ressononcia para a literatura, bastando uma aluso para pr em movimento a receptividade do leitor. A loura Geres, o carro d e Apoio, a Sirinx melodiosa, o sacrifcio de Mucio Scevola, a morte de Cato eram centelhas que acendiam imediatamente a imaginao e iluminavam a inteno do poeta, por serem uma linguagem universal. O acervo tradicional da Antigidade era introjetado to profundamente, que dava lugar a uma espcie de espontaneidade de seg undo grau, (prpria s tendncias neoclssicas), indo os escritores prover-se nela automaticamente para corresponder aos estmulos da inspirao. Ela se tornava ass im, realmente, apoio imaginao do criador e do receptor de literatura, como sistema de formas atravs do qual dava sentido experincia humana. Tenho certeza, po r exemplo, que o soneto de Tenreiro Aranha, sobre a mameluca Maria Brbara que preferiu morrer a trair o marido, avulta tanto em meio sua obra medocre porqu e (sem citar, e talvez mesmo sem estar consciente) animado pelo que se poderia chamar a "situao de Lucrcia", cuja ressononcia fazia vibrar os contemporneos, bem ou mal nutridos de tradio greco-romana. Se acaso aqui topares, caminhante, Meu frio corpo j cadver feito. . . A Antigidade fornecia ainda a soluo do problema formal, decisivo numa tendncia literr ia que busca o efeito precisamente pela "organizao formal" da expresso.9 Ora, a adoo de gneros e espcies tradicionais, com suas leis de composio, atenua o arb io do escritor e permite alcanar um dos alvos do Arcadismo; criar pontos de referncia para o homem medianamente culto, propiciando e reforando a com unicabilidade. A autoridade da tradio garantia o emprego das regras que, uma vez descobertas pelo s antigos, deviam perdurar, desde que eram a prpria manifestao da ordem natural, e esta no muda. Those RULES of old discover"d, not dem&"d, Are N ature slill, but N ature method iz"d; Nature, like liberty, is but restraincd Dy the same laws which first herse lf ordain"d.^ (9) "Chamo clssica a obra que depende da sua organizao formal para provocar emoo". R oger Fry (Citado em Louis Untermeyer, The Forms of Poetry, pg. 6), (10) "Essas regras h muito descobertas, no achadas, so ainda a Natureza, mas a Natureza metodizada; a Natureza, como a liberadade, s contida pelas mesmas leis que ela prpria formou a principio. "Pope, An Essay on CTsticism, cit. , pag. 247. 46 #As regras da retrica e da potica limitavam de certo modo o indivduo em benefcio da norma, curvando-o razo natural, banindo as temeridades do engenho, podando na fantasia o estranho e o excntrico, que se sobrepem ordem racional da natureza e m vez de espelh-la. Firme nelas, o escritor deveria trabalhar "sem largar de mo o prumo", na expresso saborosa e sugestiva de Garo.11 Conseqncias da imitao e das regras so, no fundo, a perda da capacidade de observar di retamente a vida e uma viso algo superficial tanto da natureza exterior quanto humana. Note-se que a paisagem civilizada, racionalizada, da literatura a rcdica, principalmente um escro de paisagem da superfce da terra: rvores, prados, flores, regatos, e os animais pacficos que nela repousam. Os rcades quase no sentiram n. magia do mar, nem do ar, que o Romantismo povoaria de duendes e mistrios. Na prpria terra, a sua conscincia no teve noo, ou necessidade, do subterr o, da caverna. Sentiram as grutas, como as cascatas - ornatos prediletos dos jardins pr-romnticos, onde a paisagem epidrmica se dava o luxo de uma simulada energia, como a caverna de Tanajura ou o caramancho de Lindia, no Uraguai. O antro de Polifemo, celebrado por Gongora com esplendor barroco - "Ia caverna pr"ofunda (...) caliginoso lecho (...) (...) formidable de Ia ticrra bostezo o tenebroso antro, cantado na Odissia, no existe na cloga VIII de Cludio Manuel, nem

na Cantata amaneirada de seu mestre Metastsio, II Ciclope. A maior rudeza dessa paisagem policiada so os penedos, ali postos para servir de comparao com as a madas ingratas, ou ecoar o lamento dos pastores namorados. O mundo exterior se adapta, inteiro, aos padres requeridos pelo estoque limitado da imaginao clssica e pela suprema regra do decoro. Na imitao da vida interior, este leva ao mesmo senso de moderao, restringindo a literatura superfcie da alma e tolerando mal os desvios. Mais do que nunca, o tempo da psicologia do adulto, branco, civilizado e normal - qual se procura reduzir a do prprio primitivo, do homem em estado de natureza, que era o padro. Assim como no se desce aos subterrneos da terra, no se baixa tambm aos do esprito. A moderao e o compasso toleravam a prpria indecncia, quando medocre e amaneirada, como (11) Garao, "Dissertao segunda", etc. ot. cit., pg. 446. 47 #ur no caso de Pamy e at de algumas peas - de quem seriam! - do austero Eloi Ottoni, t radutor da Bblia: Indo ao prado colher flores, A flor que tinha perdeu. Mus rejeitava toda ousadia - mesmo decente - para alm dos limites convencionais d a psicologia natural. No pois de estranhar que esse sculo dinomico, mal contido pelo ideal horaciano da mediocridade urea, estoure, aqui e ali, na obra de Bocage , na do Marqus de Sade, na de Blake, como estourou na Revoluo Francesa e no Romantismo. Na literatura luso-brasileira, podemos avaliar este culto da mediania pelas figu ras dos escritores, que, mesmo quando revoltos, inquietos, procuravam dar impres so de equilbrio e urbanidade, no s nos escritos, como na prpria vida. Poucos teriam a r ebeldia barroca de Gregrio de Matos. Desses cidados pacatos, na maioria formados em Coimbra, funcionrios zelosos e convivas amenos, o modelo Garo, cujos po emas se desfibram na porfia de cantar o encanto da vida familiar, os piqueniques

e merendas entre amigos. De tal modo que o leitor no leva a srio este bebedor de c h, quando, se abalanando ao ditirambo, lana, convicto e provecto, o turbulento Evo, o Padre Lio, Sabo, Evan Bassarcii a que o obrigava o doce imprio da imitao dos antigos. Nos Arcades, encontramos pouc o daquela "divina maldade", evocada por Nietzsche, que lhes teria dado um travo mais saboroso. 48 #3. NATUREZA E RUSTICIDADE Decorrncia do conceito setecentista do belo = verdadeiro (verossmil) a busca das f ormas naturais no mundo fsico e moral. com intuito meramente ilustrativo, poderamos dizer que h em literatura trs atitudes estticas possveis. Ou a palavra con iderada algo maior que a natureza, capaz de sobrepor-lhe as suas formas prprias; ou considerada menor que a natureza, incapaz de exprimi-la, abordando-a por tentativas fragmentrias; ou finalmente, considerada equivalente natureza, capaz de criar um mundo de formas ideais que exprimam objetivamente o mundo das formas naturais. O primeiro caso o do Barroco, o segundo do Romantismo, o tercei ro do Classicismo. Neste, h portanto um esforo de equilbrio, fundado no pressuposto de que as formas elaboradas pela inteligncia se regem por leis essencialmente anlogas s do mundo natural. Porisso ser sempre mais belo (mais natural) descrever do que falar na Os seus compridos cabelos que sobre as costas ondeiam (Gonzaga) . . .crespa tempestad dei oro undoso. (Quevedo) O verbo literrio encontra finalidade na equivalncia ideal ao objeto; na plenitude duma interpenetrao em que a realidade a baliza do ato criador. Todavia, no houve apenas isto. A fidelidade Natureza traria conseqncias imprevistas pelos cultores da Razo, dando lugar a combinaes bem mais complexas entre ambas. Talvez esta complexidade seja a caracterstica fundamental do sculo XVIII, q ue, nos pases do Ocidente, e sobretudo nos dois que ento lideravam, Frana

e Inglaterra, foi por excelncia sculo de transio, no qual ainda persistiam quase int actos certos blocos do passado ao lado de alguns traos caractersticos do sculo vindouro. O racionalismo e as idias inatas misturavam-se ao empirismo e ao s ensualismo, com uma vitalidade perturbadora, cuja marca sincrtica vamos encontrar 49 #na literatura. Nesta, os esquemas mentais de Boileau e o culto da antigidade clss ica coexistiram com a divulgao cientfica pelo poema didtico e a modernidade gritante da revoluo sentimental, que ps em voga, desde meados do sculo, o estoque de imagens e sentimentos que mais tarde pareceriam inseparveis do Romantismo oitocentista. No terreno geral das idias, a chave para compreender com alguma uni dade as suas principais manifestaes literrias deve ser buscada no tipo de racionalismo que caracterizou o sculo XVIII, - pois, apesar de Locke e de Condill ac, a razo foi nele a suprema instncia. No mais, porm, a do sculo XVII, a razo matemtica que se exprimia na vida social e na vida do esprito pelo born senso, ou seja, o senso das propores, das convenincias: Que toujoitrs l bon sens s"accorde avec Ia rime. A razo setecentista, contempornea do empirismo e da fsica de Newton, a mesma que tr ansparece na ordenao do mundo natural, mostrada por Linneu ou Buffon. O mundo, que impressiona a folha branca do esprito, deixa nela um traado coerente; p ois um mundo ordenado, ao qual corresponde uma inteligncia humana igualmente ordenada, pelo fato mesmo de lhe ser coextensiva. A ordem intelectual prolonga a ordem natural, cujo mistrio Newton interpreta para os contemporneos. A atividade do esprito obedece, portanto, a uma lei geral, que a prpria razo do universo, e no s e destaca da natureza, como implicava o dualismo racionalista de Descartes. Uma nova razo, pois, unida natureza por vnculo muito mais poderoso, inelutvel na su a fora unificadora. Destas, cticos, ateus; materialistas, empiricistas, sensualistas, todos sentiam pr ofundamente essa presena da lei natural, no homem e no universo. Para D"Alembert, o instinto existencial era algo de obscuro, poderoso e infalivelmente certo, que provava ao mesmo tempo a minha existncia e a do mundo exterior. claridade seca do universo cartesiano ia sucedendo uma penumbrosa magia, mal disfarada por todo o aparato cientfico da filosofia, propiciando interesse bem mais acentuado por aquelas zonas imprecisas que a psicologia preferira banir, couraando-se na distri buio dos fatos da alma entre entendimento e vontade. No fim do Setecentos, a psicologia de Kant, dando estado ao sentimento, sancionava a revoluo implcita no em pirismo e desencadeada principalmente pela literatura, com a obra de Rousseau. Conservando, pois, o arcabouo do born senso e da simetria matemtica, as principais correntes do sculo XVIII amaciam-no de algum modo por sentimento muito mais agudo dos fenmenos na50 #turais; e aquilo que se chamava de preferncia universo, ou mundo, passa a chamar -se natureza. Enquanto os libertinos do sculo anterior se haviam distrado com a matemtica e a fsica, neste os curiosos, os filsofos, sem desdenh-la, se enamoram, cada vez mais, da botnica e da zoologia. O conceito de Natureza vai englobando o instinto, o sentimento, cujas manifestaes, subordinadas a princpio, avultam ao po nto de promoverem, em literatura, exploses emocionais que desmancham de todo a clara linha da Razo. elucidativa a este propsito a voga do famoso preceito horaciano de que para comov er preciso estar comovido; preceito sempre referido, que assume ento renovada importncia e tratado menos como indicao de um recurso tcnico, do que como verdadeiro apelo sinceridade.12 Na Epstola a Termindo Sipilio, de Silva Alvarenga, por exemplo, ela transposta num contexto que lhe d aspecto de acentuada valorizao d a emoo pessoal, rompendo o molde da conveno e abrindo caminho tumultuosa revelao dos estados peculiares alma de cada um. E a Natureza aparece como convite sinceridade, isto , expresso direta do que o poeta sente; mais um passo e estaremos na anotao especfica dos sentimentos "localizados e datados", que se ind icaro noutra parte deste volume. Alvarenga principia meditando sobre a essncia, limites e alcance da poesia, que d everia partir (como se diria hoje) de uma vivncia autntica; no de um trabalho

mais ou menos frio: Da simples natureza, guardemos sempre as leis: Para mover-mo ao pranto convm que vs choreis. At aqui, mera transcrio do preceito horaciano, obrigatoriamente retomado e glosado por todos os tratadistas e autores de artes poticas a pnrtir do Renascimento. Os versos seguintes alteram porm este significado, mostrando que para ele o senti mento era algo transcendente ao molde literrio, e dotado de maior valor: Quem estuda o que diz, na pena no se iguala Ao que de mgoa e dor geme, suspira e c ala. Reponta aqui algo menos corriqueiro na esttica neoclssica e que se expandir na romnt ica; a obra capaz de exprimir apenas uma parcela da sensibilidade; logo, na ordem das grandezas, o humano transcende a arte, ao contrrio da teoria clssica pura, que (12) V. Horclo, "Arte Potica"", versos 102-103: "...si vis me flere dolendum est prirnum ipsi tibi..." ("...se queres que eu chore, comea por sentlres tu mesmo a dor.") 51 #geralmente no reconhece problema algum alm dos que a obra encerra na sua integrid ade formal. Nestes versos, a disciplina aparece como limite riqueza afetiva, pois eles exaltam o sofrimento inexpresso, que se perdeu para a arte, mas de que o poeta deve participar no ato da criao. Manuel Incio destaca assim, da teoria da Arcdia, tendncias que avultaro na sua obra e o Romantismo levar ao mximo. Noutro setor, dizia Carl Philip Emmanuel Bach aos discpulos que "um msico s pode co mover se ele prprio estiver comovido." , j que foi invocada, lembremos que a msica ilustra bem, no sculo XVIII, a procura da emoo e da expresso individual, na p assagem das tendncias polifnicas ao "estilo galante", no respeito sensibilidade., na dignidade conferida ao instrumento e na emergncia de certas formas em que a in dividualidade deste liberada, sem prejuzo da integrao num conjunto, como o quarteto e o concerto de instrumento e orquestra. Em conseqncia, como assinala Gei ringer, "o estilo galante e a sensibilidade (Empf