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Rosângela Ruas Chelotti * Educação tem importância capital na formação de um povo que sabe pensar, para poder conduzir com autonomia possível seu destino. Não se faz nada só com educação, mas sem ela se faz menos ainda. (Pedro Demo, 2005). Introdução No momento em que a sociedade identifica a educação como condição das transformações por ela reclamadas, descortina-se um panorama que denuncia as incoerências e omissões dos projetos educacionais propostos por órgãos e instituições. Tais lacunas perpassam tanto as leis maiores quanto os processos educativos que ocorrem na formação dos educadores e, conseqüentemente, se estendem as práticas pedagógicas realizadas nas salas de aula. Nesse contexto, pesquisar a educação surge como possibilidade de, transcendendo o conhecimento já estruturado, conduzir a uma melhor compreensão da realidade educativa, num processo de construção e reconstrução dos conhecimentos na área de educação. Urge, entretanto, que pesquisas e projetos educativos, entendidos como busca de novos caminhos e perspectivas educacionais, não assumam como objeto de estudo apenas o diagnóstico de uma realidade posta, mas que adotem uma metodologia caracterizada por uma postura crítica e organizadora da dialética entre a teoria e a prática educativa. A educação necessita ser percebida com um novo olhar tanto na avaliação de todos os seus agentes como, sobretudo, nas formas de intervenção possíveis e necessárias à sua transformação para atender novos paradigmas do mundo contemporâneo. O ponto crucial desse olhar parece centrar-se na formação de professores, agentes multiplicadores de um novo conceito de educação alicerçada em processos de convivência e de realização humana. A valorização e a formação de professores são hoje privilegiadas pela política nacional de educação visando à consolidação da escola pública de qualidade para todos, que combata as desigualdades e contribua para a construção de uma sociedade justa, democrática e solidária. Essa política decorre da aceitação de que a educação de qualidade é a condição mais decisiva para enfrentar o desafio de promover o desenvolvimento do país. A idéia de desenvolvimento, como crescimento econômico, ficou superada a partir da noção de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD, com a publicação do primeiro “Índice de Desenvolvimento Humano”, IDH, em 1990, que considera três indicadores interligados: alfabetização, expectativa de vida e poder de compra. Neles a alfabetização indica, sobretudo, a capacidade de compreender e definir oportunidades, sob a perspectiva de formar sujeitos históricos competentes; a expectativa de vida indica a necessidade de longa vida para o usufruto das oportunidades; o poder de compra representa a base econômica traduzida pela renda per capita da população. Desenvolvimento associa-se, então, com oportunidade e realça a cidadania como competência historicamente construída. Disso resulta que educação de qualidade e o desenvolvimento conjugam a face social e a econômica no planejamento estratégico de projetos modernos e próprios do * Professora e Chefe do Centro de Formação de Formadores (CEFOR), da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande,MS. FORMAÇÃO CONTINUADA: UMA EXPERIÊNCIA NO SISTEMA MUNICIPAL DE ENSINO DE CAMPO GRANDE, MS

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Page 1: FORMAÇÃO CONTINUADA: UMA EXPERIÊNCIA NO SISTEMA … · ao redimensionamento de uma educação de qualidade definida por Demo ... Com essa perspectiva sócio-política da educação,

Rosângela Ruas Chelotti* Educação tem importância capital na formação de um povo que sabe pensar, para poder conduzir com autonomia possível seu destino. Não se faz nada só com educação, mas sem ela se faz menos ainda. (Pedro Demo, 2005).

Introdução

No momento em que a sociedade identifica a educação como condição das transformações por ela reclamadas, descortina-se um panorama que denuncia as incoerências e omissões dos projetos educacionais propostos por órgãos e instituições. Tais lacunas perpassam tanto as leis maiores quanto os processos educativos que ocorrem na formação dos educadores e, conseqüentemente, se estendem as práticas pedagógicas realizadas nas salas de aula.

Nesse contexto, pesquisar a educação surge como possibilidade de, transcendendo o conhecimento já estruturado, conduzir a uma melhor compreensão da realidade educativa, num processo de construção e reconstrução dos conhecimentos na área de educação.

Urge, entretanto, que pesquisas e projetos educativos, entendidos como busca de novos caminhos e perspectivas educacionais, não assumam como objeto de estudo apenas o diagnóstico de uma realidade posta, mas que adotem uma metodologia caracterizada por uma postura crítica e organizadora da dialética entre a teoria e a prática educativa.

A educação necessita ser percebida com um novo olhar tanto na avaliação de todos os seus agentes como, sobretudo, nas formas de intervenção possíveis e necessárias à sua transformação para atender novos paradigmas do mundo contemporâneo. O ponto crucial desse olhar parece centrar-se na formação de professores, agentes multiplicadores de um novo conceito de educação alicerçada em processos de convivência e de realização humana.

A valorização e a formação de professores são hoje privilegiadas pela política nacional de educação visando à consolidação da escola pública de qualidade para todos, que combata as desigualdades e contribua para a construção de uma sociedade justa, democrática e solidária. Essa política decorre da aceitação de que a educação de qualidade é a condição mais decisiva para enfrentar o desafio de promover o desenvolvimento do país.

A idéia de desenvolvimento, como crescimento econômico, ficou superada a partir da noção de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD, com a publicação do primeiro “Índice de Desenvolvimento Humano”, IDH, em 1990, que considera três indicadores interligados: alfabetização, expectativa de vida e poder de compra. Neles a alfabetização indica, sobretudo, a capacidade de compreender e definir oportunidades, sob a perspectiva de formar sujeitos históricos competentes; a expectativa de vida indica a necessidade de longa vida para o usufruto das oportunidades; o poder de compra representa a base econômica traduzida pela renda per capita da população. Desenvolvimento associa-se, então, com oportunidade e realça a cidadania como competência historicamente construída. Disso resulta que educação de qualidade e o desenvolvimento conjugam a face social e a econômica no planejamento estratégico de projetos modernos e próprios do

* Professora e Chefe do Centro de Formação de Formadores (CEFOR), da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande,MS.

FORMAÇÃO CONTINUADA: UMA EXPERIÊNCIA NO SISTEMA MUNICIPAL DE ENSINO DE CAMPO GRANDE, MS

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desenvolvimento. Esses projetos assumem, dentre outros, o compromisso de garantir os fins essenciais da qualidade de vida humana, tendo a educação e o conhecimento como eixos da transformação produtiva para um desenvolvimento igualitário das condições sócio-econômicas do país.

A perspectiva sociológica da educação faz-se presente nas políticas educacionais, apontando possibilidades e condições de novos enfoques para a análise de realidades, para a discussão de contradições, rupturas e premissas de avanço no campo do conhecimento e da formação humana. A interligação da sociologia e da educação, como ciências humanas, conduz ao redimensionamento de uma educação de qualidade definida por Demo (1995, p. 13)como “aquela que forma as bases da competência humana frente à oportunidade de desenvolvimento, agindo tanto na direção da cidadania quanto na da transformação produtiva”. Essa definição pode ser compreendida a partir da conceituação que Demo (2001) faz de “qualidade formal” e “qualidade política” da educação, em contraponto ao que considera “pobreza política”.

A pobreza política é uma tragédia histórica, da mesma dimensão da pobreza sócio-econômica, e se retrata, entre outras coisas, na dificuldade de formação de um povo capaz de gerir seu próprio destino e na dificuldade de institucionalização da democracia. (Demo, 2001, p. 9).

Superar a pobreza política é lutar pelo direito de informação, de expressão, de comunicação vinculada à ética, à transparência e à ciência geradora do conhecimento, o que significa elevar a qualidade formal e política da educação. Segundo Demo (2001), qualidade formal é a educação instrumentalizada científica e tecnologicamente para a solução de problemas nos diversos contextos. Esta qualidade formal está relacionada a métodos e conteúdos determinados que serão mobilizados para melhor compreender e intervir de forma competente e transformadora em realidades complexas. Poder-se-ia dizer, portanto, que a qualidade formal da educação exige o conhecimento das ciências, para iluminar as práticas pedagógicas e sustentar a análise dos contextos educativos, a pesquisa e a inovação.

Demo considera a qualidade formal apenas como meio de se alcançar uma educação de qualidade. Por outro lado, situa a qualidade política como fim, como substância e não forma, por perceber que,

Qualidade política é aquela que trata dos conteúdos da vida humana e sua perfeição é a arte de viver. Refere-se ao relacionamento do homem com a natureza, através, sobretudo, do trabalho e da tecnologia, que são formas humanas de intervenção, onde assoma o horizonte ideológico e prático inevitavelmente. Refere-se igualmente ao relacionamento do homem com o homem, no interior do fenômeno do poder: o que ele faz de si mesmo, dadas as circunstâncias objetivas. (2001, p. 40,41).

Essa é a qualidade que retira o ser humano da condição de objeto manipulável para torná-lo sujeito de sua própria história, autor e criador de si mesmo, capaz de romper os obstáculos da desigualdade, construir futuro e realizar conquistas. Assim, a qualidade política da educação diz respeito à sua finalidade por abranger o horizonte da potencialidade humana na arte do possível, na perspectiva da criatividade e, sobretudo, na intencionalidade e determinação das transformações ideológicas e político-sociais a favor do desenvolvimento humano.

Educar com qualidade formal implica favorecer aos educandos o acesso a informações para a construção de conhecimentos que serão mobilizados com propriedade científica e intencionalidade em benefício da coletividade; educar com qualidade política implica mobilizar conhecimentos construídos com qualidade formal para o exercício da plena cidadania. Dessa forma, qualidade formal e qualidade política se inter-relacionam, uma não prescindindo a outra e juntas caracterizando o ideal educativo do futuro.

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Com essa perspectiva sócio-política da educação, Pedro Demo comparece como pesquisador e estudioso contemporâneo dos mais contundentes na análise crítica e reflexiva da educação brasileira em relação ao seu processo sócio-histórico. Ao propor caminhos para a superação da visão empirista de educação, Demo a redimensiona na compreensão de seu significado enquanto ciência e existência. Pesquisador e escritor sagaz, Demo vem produzindo incontáveis obras cujos teores revelam princípios teóricos que fundamentam metodologias de processo de formação e desenvolvimento humano. Consultor de órgãos e instituições, seu ideário permeia políticas públicas de educação e repercute nos planos e projetos que objetivam mudanças significativas na educação e, em especial, nos programas de formação continuada de professores, que integram as ações de políticas estaduais e municipais de educação.

O presente texto apresentará os propósitos, a metodologia e as contribuições da implantação e implementação do programa de formação continuada de profissionais da educação da Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de Campo Grande, MS, desenvolvido com a consultoria do Professor Dr. Pedro Demo.

Com a finalidade de documentar esse programa de formação continuada, o texto aborda o cenário em que se verificou a necessidade de implantação do programa, a estrutura administrativa criada para sua execução, a consultoria técnica envolvida, os fundamentos teórico-metodológicos da formação dos formadores e as parcerias estabelecidas com instituições de ensino superior para a realização de cursos de pós-graduação Lato Sensu como investimento na formação e valorização do profissional da Rede Municipal de Ensino, REME. Pretende, ainda, trazer contribuições às concepções de programas de desenvolvimento profissional de educadores, tendo em vista a melhoria na qualidade do ensino público municipal.

Política pública de educação: projeto “aposta no professor”

A Secretaria Municipal de Educação, (SEMED), de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, empenha-se de forma significativa na formação continuada de educadores da REME. Sua Secretária, Professora Ms. Maria Cecilia Amendola da Motta, considera essa formação como fato basilar às transformações que projeta para a educação em sua gestão e encontra na administração municipal do Senhor Prefeito Dr. Nelson Trad Filho o apoio e a sustentação financeira para estabelecer a formação continuada dos profissionais da REME como uma das ações prioritárias de investimento e valorização do profissional do ensino no cumprimento da missão da SEMED de “assegurar uma educação de qualidade, garantindo o acesso, a apropriação do conhecimento e a formação da cidadania”.

A ação de valorização do profissional do ensino está enfatizada no corpo da Política de Educação para a Rede Municipal de Ensino de Campo Grande1, MS e em consonância com os princípios e fundamentos expressos nessa Política. Nesse documento a SEMED de Campo Grande, MS ressalta seu propósito de inovação da administração pública no âmbito educacional ao apontar princípios, concepções e diretrizes que configuram um compromisso ético-político com a educação do município. A Política de Educação para a REME apresenta a concepção de educação como um ato próprio do ser humano que, sendo dinâmico, é definido por sua produção e trabalho coletivos, na interação com a sociedade em que está inserido.

A educação concebida nesse documento como atividade humana oriunda da organização social de um determinado momento histórico, sistematiza-se no ato educativo desenvolvido na escola, que assume a função de

[...] realizar a mediação entre o conhecimento da prática social dos alunos e o conhecimento formal, sistematizado, possibilitando formas de acesso ao

1 Documento oficial que apresenta a Política de Educação para a Rede Municipal de Ensino de Campo Grande, MS, publicado e divulgado em 28 de agosto de 2006.

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conhecimento científico. (Política de Educação para a REME de Campo Grande, 2006, p. 19).

Sendo prática intencional, sistemática e planejada, o ato educativo que se realiza na escola objetiva, conforme essa Política de Educação, contribuir para que os alunos construam conhecimentos sociais e culturais de maneira crítica e elaborada. Nesse sentido, a prática pedagógica se torna meio e condição de promoção da educação de qualidade pretendida pela SEMED de Campo Grande, MS. Para alcançar esse objetivo, a SEMED estabelece, entre outros princípios de sua Política de Educação, a valorização do educador, os estudos e a pesquisa como fundamentos do projeto educativo. Pretende, dessa forma, que a prática pedagógica assuma uma dimensão investigativa do saber e fazer educativo, a partir de uma reflexão teórica que possibilite a construção e a reconstrução dos conhecimentos que fundamentam o processo de ensino e de aprendizagem.

A dimensão investigativa da prática pedagógica pressupõe que o professor esteja em permanente processo de pesquisa dos condicionantes de sua prática no entorno de sua atuação e dos sujeitos que interagem no ambiente de aprendizagem. Tal investigação, por parte do professor, objetiva a ruptura de conceitos cristalizados e a pesquisa para a construção dos conhecimentos facilitadores da análise e compreensão das realidades do seu contexto, visando a autônoma e necessária intervenção nas situações do seu cotidiano.

A participação na gestão democrática do processo educativo exige que o professor esteja preparado para enfrentar as contradições da vida coletiva e se empenhe num projeto de sociedade democrática e igualitária. No sentido de fomentar as condições e recursos para essa participação competente e responsável, a promoção da formação continuada dos educadores da REME constitui-se uma estratégia de aprimoramento intelectual para valorizar as ações docentes. O aprimoramento intelectual dos educadores contribui para que eles estabeleçam as relações entre o conhecimento e a realidade social, a fim de construir práticas pedagógicas que colaborem com a qualidade do ensinar e do aprender.

Compreende-se a formação continuada, promovida pela SEMED de Campo Grande, MS, como um conjunto de atividades formativas de educadores em serviço, que visa à construção e reconstrução de seus saberes, aptidões e atitudes profissionais para a melhoria da qualidade da educação proporcionada aos educandos. Essa formação, portanto, é sustentada por dois paradigmas que se articulam: o do crescimento ou desenvolvimento de novas potencialidades do professor e o da mudança em função da necessidade de reorientar os saberes e competências dos professores, assim como reorientar os contextos escolares.

O Programa de Formação Continuada proposto como ação para efetivar as diretrizes globais da Política de Educação para a Rede Municipal de Ensino baseia-se nos princípios educativos e nos pressupostos metodológicos idealizados pelo Professor Dr. Pedro Demo, expressos em seu projeto “Aposta no Professor” e encaminhado à SEMED de Campo Grande, MS, em março de 2005, atendendo a solicitação da Secretária Professora Ms. Maria Cecilia Amendola da Motta.

O projeto “Aposta no Professor” (2005) apresenta em sua justificativa o drama da aprendizagem no Brasil a partir de dados divulgados pelo SAEB 2003-INEP/MEC, que avaliou a proficiência em Língua Portuguesa e Matemática dos alunos da 4ª série do ensino fundamental, com destaque no desempenho dos alunos da região Centro-Oeste.

Com base nas tabelas apresentadas, Demo (2005) demonstra a queda constante nos níveis de proficiência ocorrida na aprendizagem dos alunos, no período de 1995 a 2001, com alguma recuperação em 2003, porém, ainda distante das médias alcançadas em 1995, conforme pode ser observado na tabela seguinte.

Tabela 1. Proficiência em Língua Portuguesa e Matemática: Centro-Oeste

Centro Oeste 1995 1997 1999 2001 2003

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Língua Portuguesa 193,4 183,1 170,5 164,4 172,5

Matemática 193,9 189,2 183,2 175,7 180,3

Fonte: SAEB/INEP, 2003

Essas pontuações, na escala de proficiência do SAEB/INEP, indicam que os alunos estão em nível crítico de aprendizagem e não desenvolveram as habilidades básicas e necessárias a essa etapa da escolaridade, do que resulta o comprometimento da progressão nos estudos.

Os dados da tabela 2 indicam que Mato Grosso de Sul tinha a segunda pior média na Língua Portuguesa e Matemática.

Tabela 2. Proficiência em Língua Portuguesa e Matemática: Centro-Oeste , 2003

Região Língua Portuguesa Matemática

Centro-Oeste 172,5 180,2

Mato Grosso do Sul 165,4 173,0

Mato Grosso 159,4 170,3

Goiás 175,3 171,7

Distrito Federal 193,0 199,8

Fonte: SAEB/INEP, 2003

Pelos dados da tabela 3, referentes à 4ª série do ensino fundamental, com relação à Língua Portuguesa, percebe-se que ainda não foi resolvida a problemática da alfabetização dos alunos na 1ª série; quase 20% dos alunos no país, mesmo estando já na 4ª série, apresentam-se num estágio “muito crítico” de desempenho.

Tabela 3. Estágio de desempenho em Língua Portuguesa: 4ª série do ensino fundamental/2003.

Estágios Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Muito crítico 21,2 29,3 12,3 11,6 14,9

Crítico 45,2 41,9 31,0 35,7 37,6

Intermediário 31,9 26,8 48,3 47,7 43,6

Adequado 1,7 2,1 7,7 5,1 4,2

Fonte: SAEB 2003/INEP/MEC

Demo (2005) considerou que estes simples dados sugerem a necessidade de mudanças extraordinárias na política educacional, com o compromisso de alfabetizar as crianças já na 1ª série, para evitar rendimento escolar deficitário nos anos subseqüentes.

Comentando a complexidade do problema e suas possíveis causas, Demo argumenta que não sendo possível mudar o sistema educacional brasileiro em curto prazo, é preciso favorecer condições de aprendizagem mais adequadas e passíveis de mudanças, ou seja a aposta na formação permanente dos formadores é a grande possibilidade de intervenção da SEMED de Campo Grande, MS.

Embora considere prioritária a idéia de focar esforços e recursos na alfabetização, um dos pontos mais fracos do sistema, Demo (2005) amplia a abrangência do projeto a outros segmentos da educação, como educação infantil, demais séries do ensino fundamental,

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alfabetização de jovens e adultos, educação especial, etc. Todos esses componentes devem ser abrangidos pela via de formação permanente de formadores, à medida que todos os professores e outros atores do sistema possam receber oportunidade de aprimoramento continuo.

O projeto de consolidação da alfabetização apresentado por Demo previu estratégias, tais como: a inclusão de todos os professores alfabetizadores em programas de formação permanente, por meio de cursos intensivos semestrais e acompanhamento constante da aprendizagem e da prática dos professores; a exigência de alfabetizar os alunos na 1ª. série; a definição do que se entende por alfabetização e a reorganização curricular, da 1ª e demais séries iniciais do ensino fundamental e o ordenamento do fluxo escolar, uma vez que o aluno que sabe ler, entender, produzir, interpretar textos e contextos com habilidade crítica tem a chance de fazer as séries seguintes à 1ª, nos oito anos previstos por lei.

Demo apresenta como justificativa maior do projeto “Aposta no Professor” (2005) a importância da 1ª série para a aprendizagem nas séries seguintes, o que torna estratégico apostar no professor alfabetizador para o bom desempenho escolar dos alunos e para a consolidação da cidadania. Defendendo o “direito de estudar” do professor durante os 200 dias letivos, como parte indispensável de seu desempenho, Demo esclarece que estudar não significa apenas participar de eventos, mas, substancialmente, desconstruir e reconstruir sistematicamente sua trajetória formativa e profissional, por meio de cursos que utilizem metodologias e estratégias mais atualizadas de aprendizagem, como a pesquisa, a elaboração própria, a produção de textos e recursos didáticos, o exercício de argumentação e de contra-argumentação, a leitura sistemática verticalizada, etc.

Para gerar as condições que possibilitam ao professor o “direito de estudar”, Demo (2005) propõe ações estratégicas que incluem:

a) a formação de um “grupo-base”, constituído por docentes e técnicos da SEMED de Campo Grande, MS. Ao aprender a reconstruir conhecimento e utilizar habilmente teorias e práticas atualizadas, o grupo-base pode oferecer a mesma oportunidade de crescimento profissional aos colegas da escola, por meio de cursos e grupos de estudos. A formação do grupo-base implica a idéia de autonomia da SEMED de Campo Grande, MS, para cumprir sua função de pesquisar os conhecimentos que se constituem bases teóricas facilitadoras da interpretação das realidades educativas e dos contextos escolares e que favoreçam as mudanças que as escolas necessitam;

b) a formação posterior de outros grupos-bases , de acordo com a necessidade de oferecer cursos semestrais a todos os professores da Rede Municipal de Ensino, num processo de educação permanente;

c) a oferta semestral de cursos de seis dias intensivos para o aprofundamento de saberes e fazeres da prática alfabetizadora com o objetivo de possibilitar o exercício do direito de estudar dos professores, de atualização constante na reconstrução dos conhecimentos que fomentem as mudanças didáticas favorecedoras da aprendizagem dos alunos;

d) o acompanhamento sistemático às atividades de todos os professores cursistas visando identificar mudanças metodológicas decorrentes da formação continuada;

e) a avaliação da qualidade da alfabetização, a partir do segundo ano de cursos intensivos, para diagnosticar resultados na aprendizagem dos professores e dos alunos;

f) a coordenação e avaliação da produção mínima e permanente dos alfabetizadores: materiais didáticos e projetos pedagógicos próprios, com bases teóricas que sustentem uma prática transformadora do processo de ensino e de aprendizagem;

g) a oferta de cursos diferenciados para atender outras demandas de professores e colaboradores nas escolas, com o objetivo de vencer os desafios da tecnologia educacional , da inclusão de alunos com necessidades educativas especiais , da educação de jovens e adultos, da educação infantil, entre outros;

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h) a coordenação e avaliação do projeto político pedagógico da escola na integração dos projetos individuais de alfabetização;

i) a publicação constante de materiais de interesse da Rede Municipal de Ensino de Campo Grande, MS, além de intercâmbio com outras iniciativas similares no país e no exterior;

j) a instituição da “Casa do Professor” como espaço destinado a oferecer aos educadores apoio bibliográfico e tecnológico favoráveis à sua formação permanente.

Os pressupostos da formação continuada de professores

O projeto “Aposta no Professor” levanta a questão da formação do professor como um aperfeiçoamento profissional continuado, que deve ocorrer como parte integrante do tempo letivo de 200 dias e, portanto, deve fazer parte da carga de trabalho do professor, uma vez que a qualidade da aprendizagem do aluno vincula-se à qualidade da formação do professor. Segundo Demo (2005), professor que não estuda não tem aula para dar. Estudar, para ele, significa dedicação sistemática à reconstrução do conhecimento, na condição de sujeito capaz de interpretar (conceitos, significados, textos, realidades, etc.) com autonomia, desconstruindo e reconstruindo saberes no processo de aprender a aprender.

Demo (2005) considera que a aprendizagem do professor tem que ser profissional, porque ele é o profissional da aprendizagem; precisa, pois, estudar profissionalmente, como parte decisiva de sua profissão. Nesse sentido, identifica a aprendizagem do professor como a habilidade de autoria na elaboração de textos que evidenciam o saber pensar com autonomia, rejeitando a reprodução; a habilidade de pesquisa como atividade autopoiética de reconstrução própria do conhecimento disponível; a prática da leitura sistemática para acompanhar a evolução do conhecimento pertinente a sua atuação profissional, ampliar referências, apoios e contraposições aos procedimentos educativos utilizados na escola; a habilidade de argumentar e contra-argumentar, com base na autoridade do argumento, pelo discurso próprio com qualidade formal e política intrínsecas, por conta da reconstrução inteligente do conhecimento; a habilidade de fundamentar o que diz, sabendo que o conhecimento não é definitivo, mas se renova sempre, oferecendo algo novo a aprender. Essa última habilidade permite que a capacidade de crítica e, sobretudo, de autocrítica faça emergir o autor que continua aprendendo.

Demo afirma ser necessário oferecer ao professor oriundo de um sistema instrucionista, mantido durante sua formação na condição de objeto receptivo, condenado a escutar, tomar nota e reproduzir conhecimento a oportunidade de desenvolver a competência de (re)construir conhecimento porque

Ser profissional hoje não é apenas exercer a profissão, é principalmente saber regenerar, de modo permanente a profissão. Saber pensar é ingrediente fatal do bom profissional. Para além do trato com o conteúdo, o aluno precisa aprender a aprender, aprender a estudar sempre, saber pensar para dar conta de novos desafios profissionais. [...] manter-se sempre como capaz de aprender e de continuar em processo de formação. (2005, p. 164).

É mister, portanto, que nas práticas educativas marcadas pela mera transmissão de conhecimentos copiados, o papel do professor, como intermediário repassador, transforme-se em (re)construtor do conhecimento, numa condição ativa e dinâmica, com competência para participar, colaborar, construir e conviver.

A sociedade precisa de profissionais competentes na educação, em termos formais e políticos, que sejam e façam oportunidade histórica, capazes de manejar e produzir

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conhecimentos, de “saber pensar, aprender a aprender para melhor intervir e inovar” (Demo, 1995, p. 12), levando-se em conta que

A ignorância é a raiz mais profunda da pobreza, porque ninguém é mais pobre do que aquele que, sendo excluído, sequer sabe disso. Não tendo consciência crítica, nunca será sujeito de um projeto alternativo de confronto com a pobreza. Esperará solução dos outros, pela via da tutela e da submissão. Não ter (bens materiais) é injustiça dura, mas mais duro ainda é não ser (sujeito histórico). O cerne da pobreza não é a carência, mas exclusão baseada na ignorância. Só para enfrentar isso a escola já teria significação extraordinária e seus profissionais, missão essencialmente histórica (Demo, 1994).

Para tal missão, que pretende reverter o estado de miséria formal e política da população, torna-se fundamental propor um programa de formação continuada de profissionais da educação com princípios, fundamentos e metodologias apropriadas à promoção da educação como condição do desenvolvimento humano, num processo permanente de aprendizagem.

Dentre os princípios fundamentais do modelo pedagógico do programa de formação continuada proposto por Demo (2005) no projeto “Aposta no professor”, destacam-se:

a) A pesquisa, para poder participar do processo de (re)construção do conhecimento;

b) Elaboração própria, para chegar a fazer e sempre refazer proposta própria pedagógica;

c) Teorização das práticas, para unir conhecimento e intervenção e para vivificar as práticas por intermédio do retorno crítico e criativo à teoria;

d) Atualização permanente, para estar em dia com a história por meio do conhecimento sempre renovado e inovador. (Demo, 1995, p. 166)

Com a tarefa de sustentar a atualização permanente, mais do que refazer a formação básica, o desafio de reconstruir a competência docente requer o indispensável refazer da trajetória formativa do professor em que “um dos pontos mais cruciais a serem refeitos em tais cursos será a capacidade propedêutica2 voltada para o saber pensar e o aprender a aprender para melhor intervir.” (Demo, 1995, p. 171).

Um dos componentes mais estratégicos para a gestão da autonomia constitui-se, na visão de Demo (2005), o saber pensar aprendendo a lógica das coisas e dos fatos, fazendo e refazendo caminhos, desfazendo tramas e lendo problemas. Como algo que não se ensina, aprende-se a pensar pelo questionamento, pela construção e desconstrução do conhecimento. Para ele, saber pensar é

Saber reconhecer rapidamente as relevâncias do cenário e tirar conclusões úteis, ver longe para além das aparências, perceber as gretas das coisas, inferir texto inteiro de simples palavra, porque, a bom entendedor, uma palavra basta. (Demo, 2005, p.17)

Pensar pressupõe construir a autonomia no sentido de conquistar a cidadania emancipada, ou seja, “aquela que sabe o que quer, por que quer e como quer” (Demo, 2005, p.19). O saber pensar, não podendo ser ensinado, é fomentado pelo professor no questionamento 2 Demo descreve a capacidade propedêutica como a capacidade de reconstruir conhecimento, com qualidade formal e política.

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que motiva, chama a atenção, critica , abre possibilidades e avalia. O questionamento assume importância vital para aprender a pensar, significando a face provocativa e desconstrutiva do conhecimento e que incita à sua reconstrução. Questionamento reconstrutivo torna-se, então, a marca inicial do sujeito histórico, capaz de pensar e de “andar sempre de olhos abertos, reconstruindo-se permanentemente pelo questionamento” (Demo, 2005, p.8). Esse autor considera que o questionamento reconstrutivo deve emergir como propriedade educativa escolar na mediação do contato pedagógico em direção à competência formal da aprendizagem e, sobretudo, à competência política, na construção do sujeito histórico. Envolve, assim, a competência advinda do conhecimento reconstruído, matizado pela ética da intervenção histórica.

A essência do modelo de formação proposto por Demo pode ser compreendida a partir do seu conceito de formação:

Entendemos formação como habilidade humana de “formar-se”, (re)construir-se, gerar e gerir a autonomia histórica e naturalmente possível, no sentido socrático maiêutico. Como dinâmica autopoiética, também premida de fora, mas substancialmente plasmada de dentro, formação designa a capacidade de dar conta dos limites e desafios da vida, na condição de sujeito que conhece e aprende sem fim, tangendo o leque maior possível de potencialidades e perspectivas, dentro naturalmente da incompletude material e histórica. Formação é processo voltado para nos completar cada vez mais sem jamais ser completo. Por isso, seu sentido mais forte é o da formação permanente: há que conhecer e aprender todo dia, desde o primeiro até ao último, sempre de novo, porque, ao final, todos acabamos [...]. Ninguém, a rigor, forma ninguém, embora para formar-se adequadamente seja imprescindível a influência externa de outros. A influência formativa é aquela que encontra, no outro lado desta relação de poder, alguém que reage, se desenvolve, ocupa espaço próprio (Demo 2002) porque assim é a “pedagogia da autonomia” (Freire, 1997).

Desse conceito de formação, emerge o conceito de professor como o de um indivíduo que, por um processo socrático, busca conhecimento constante, lê, estuda, realiza pesquisa, escreve, construindo e desconstruindo sua proposta pedagógica, produz conhecimento próprio e evolui sempre, mais e mais, profissionalmente.

O professor, assim caracterizado, desenvolve sua ação educativa com a intencionalidade de propiciar ao aluno um processo de aprendizagem que favoreça o aprender a aprender e o aprender a pensar. Como estratégia da prática educativa, Demo (2005) propõe o desafio de educar pela pesquisa baseado em quatro pressupostos:

A convicção de que a educação pela pesquisa é a especificidade mais própria da educação escolar e acadêmica;

O reconhecimento de que o questionamento reconstrutivo com qualidade formal e política é o cerne do processo de pesquisa;

A necessidade de fazer da pesquisa atitude cotidiana no professor e no aluno;

E a definição de educação como processo de formação da competência histórica humana. (2005, p. 5).

Com esses pressupostos, entende que a base da educação escolar não é a aula em que o professor repassa conhecimento e o aluno copia e reproduz, mas, a pesquisa que emerge do questionamento sistemático da realidade, incluindo a percepção emancipatória do sujeito que aprende a aprender.

Ressalta, entretanto, que a qualidade formal, resultante do conhecimento reconstruído é apenas meio e que, para tornar-se educativo, necessita orientar-se pela ética dos fins e valores que compõem a qualidade política da educação.

Como processos coincidentes, educação e pesquisa buscam vencer a ignorância; valorizam o questionamento; dedicam-se ao processo reconstrutivo; fazem confluir a teoria e a prática; opõem-se à condição de objeto, sem finalidade formal e política, assim como a procedimentos de adestramento que impedem a construção do conhecimento, o saber pensar e o aprender a aprender.

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No processo de educar pela pesquisa, o professor e os alunos tornam-se parceiros de trabalho, em que o professor busca conhecer as motivações e os contextos culturais dos alunos para instituir um ambiente de uma obra comum e participativa e o aluno empenha-se em se comunicar, organizar seu trabalho e participar de tarefas individuais e em grupo, no exercício da cidadania coletiva e organizada em direção aos consensos possíveis.

Na parceria de trabalho entre o professor e o aluno, o foco do professor é o aprender do aluno na condição de sujeito potencial para o manejo do conhecimento disponível. Assim, o professor propõe o questionamento e a pesquisa para promover o aprender a aprender e a elaboração para a representação do conhecimento reconstrutivo.

Compreendendo a aprendizagem como dinâmica reconstrutiva, de dentro para fora, o professor entende que cuidar da aprendizagem, exige o acompanhamento qualitativo da evolução do aluno num processo constante de avaliação. “Avalia-se para garantir o direito de aprender” (Demo, 2004), para garantir que cada aluno, dentro de seu ritmo, encontre seu caminho de progresso.

A finalidade da avaliação é cuidar todo dia desse processo. Muda a posição do professor. Não é transmissor de conhecimento, porque sua função não é instruir, mas educar, formar. Seu desafio socrático emerge com toda força: é de provocação, orientação, instigação, sobretudo de “cuidado”. (Demo, 2004, p. 75).

Nessa perspectiva, a forma de avaliação consagrada por Demo (2004) coincide com a de Hoffman (2005), quando ela propõe a dinâmica da avaliação no movimento do professor de mediar a mobilização da avaliação mantendo-se atento às possibilidades e necessidades do aluno; de mediar a experiência educativa promovendo a interação efetiva entre todos os elementos do cenário da aprendizagem; de mediar a expressão do conhecimento na interpretação de representações das aprendizagens individuais dos alunos.

Essa atitude de interesse e cuidado com a aprendizagem do aluno, caracterizando a avaliação como meio de conhecer o quê e como ele aprende para o planejamento de possíveis intervenções, conduz o professor a uma pesquisa permanente de sua prática educativa e reconstrução de seu projeto pedagógico, de seus textos e materiais didáticos, da inovação da ação didática para a recuperação constante da competência de mediar a aprendizagem.

A reconstrução permanente do projeto pedagógico próprio representa a capacidade do professor de comparecer com proposta própria, advinda do saber pensar, questionar, buscar confluência entre a teoria e a prática, teorizar as práticas e fundamentar, teoricamente, os princípios metodológicos da ação didática.

O projeto pedagógico próprio será a base do projeto pedagógico da escola, já que seria uma simples impossibilidade imaginar que professores incapazes de elaborar seu próprio projeto, poderiam, juntos, elaborar um projeto coletivo. (Demo, 2005, p. 39).

É no projeto pedagógico próprio que o professor apresenta a autoridade do argumento que, acima da ciência, representa seu processo emancipatório por saber pensar, compreender as necessidades e possibilidades da escola e as dos alunos; estabelecer objetivos concretos para identificar, com clareza, a intencionalidade de suas ações; planejar formas de mediação do trabalho com o conhecimento na relação ensino-aprendizagem, da estruturação e organização da coletividade e das formas de acompanhamento, intervenção e avaliação do processo e produto da aprendizagem dos alunos.

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A elaboração do projeto pedagógico próprio, por sua significatividade, constitui sempre o empreendimento maior do processo de formação do professor.

Os cursos de formação continuada propostos no projeto “Aposta no professor” assumem como lógica central partir das práticas que dizem respeito aos cursistas, com o objetivo de ressaltar os saberes e fazeres implícitos na ação docente; provocar questionamentos sobre essas práticas procurando evidenciar as lacunas e a ausência da fundamentação; buscar na teoria os fundamentos para novas práticas com propostas diferenciadas que atendam às demandas do contexto educativo, de tal sorte que, ao voltar para a escola o professor possa, com base no conhecimento renovado, contrapor uma nova prática facilitadora do processo de aprendizagem dos alunos e a reconstrução de seu projeto pedagógico.

Para atender a essa lógica que visa propiciar a construção da competência do professor com capacidade inovadora permanente em termos formais e políticos, os cursos são organizados, conforme a concepção de Demo (2005), com formato singular e marcas características, tais como:

a) ter duração de sessenta horas contínuas ou intercaladas para permitir a pesquisa, a teorização das práticas e a leitura, promovendo a atualização de conhecimento e a elaboração própria;

b) combinar teoria e prática de forma que o conhecimento possibilite articular estratégias de intervenção;

c) aprimorar as condições do saber pensar e do aprender a aprender numa atitude construtiva e reconstrutiva do conhecimento;

d) produzir materiais próprios com elaboração fundamentada no conhecimento atualizado;

e) avaliar processos e produtos de modo a sedimentar novas ações na mediação do sujeito com o objeto do conhecimento;

f) incentivar o trabalho multidisciplinar e coletivo para facilitar projetos pedagógicos comuns e participativos, respeitando-se peculiaridades da elaboração individual e autônoma;

g) concluir o curso favorecendo a (re)construção de uma proposta própria que evidencie o crescimento profissional e a capacidade de mudanças na prática educativa.

Com as proposições e fundamentos, sucintamente sintetizados neste texto, Demo (2005) apresentou o projeto “Aposta no Professor” como referência para o Programa de Formação Continuada dos profissionais da educação da REME.

O programa de formação de formadores: O grupo-base e o primeiro curso de formação continuada

Após a aprovação do Projeto “Aposta no Professor”, a SEMED de Campo Grande,

MS implantou, em abril de 2005, o Programa de Formação Continuada de Professores com os seguintes propósitos:

- implementar a política de investimento na formação continuada dos técnicos e professores da Rede Municipal de Ensino, como medida para o desenvolvimento do processo qualitativo da aprendizagem dos alunos e da prática docente;

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- favorecer o desenvolvimento profissional do professor, por meio de estudos que propiciem o desconstruir e o reconstruir de seus saberes para a utilização de estratégias de ensino e de aprendizagem atualizadas;

- estimular a análise das práticas individuais e coletivas e a reflexão sobre o habitus, para conduzir à pesquisa dos fundamentos de ações didáticas transformadoras do processo de ensino;

-promover o envolvimento crítico do professor no trabalho em equipe e na elaboração coletiva do projeto político pedagógico de sua unidade escolar para compreender e atuar de forma responsável e cidadã no contexto de sua comunidade educativa e da sociedade;

- possibilitar o desenvolvimento das competências do professor, necessárias à elaboração de seu projeto próprio de ensino, que represente compromisso e autonomia profissionais;

- oportunizar condições de qualificação e ascensão funcional aos professores e especialistas da Rede Municipal de Ensino.

A ação inicial desse Programa centrou-se na formação do grupo-base, constituído por professores multidisciplinares, técnicos representantes de departamentos e das divisões que compõem a estrutura organizacional da Secretaria Municipal de Ensino de Campo Grande, MS.

Sob a orientação do professor Dr. Pedro Demo, o grupo-base teve sua formação iniciada com estudos e elaborações de textos visando o aprofundamento teórico e a reconstrução dos conhecimentos necessários ao desenvolvimento do Programa de Formação Continuada de professores da REME. Conhecimentos e elaborações de textos foram socializados nos encontros mensais com o referido professor em Campo Grande, cujos temas para estudos foram os conceitos e fundamentos da educação, processos de aprendizagem, alfabetização e letramento, assim como os pressupostos da formação e da metodologia específica do curso.

Além dos encontros mensais com o professor Dr. Demo, o grupo-base se reuniu, semanalmente, para estudos e preparação do primeiro curso de formação continuada de professores da REME.

O Curso de Formação Continuada “Aprender: Prática Reconstrutiva” promovido como curso experimental para a sucessão de cursos programados para o ano de 2006, realizou-se no período de 24 a 29 de outubro de 2005, no Centro de Convenções Günter Hans do Hospital São Julião, com carga horária de sessenta horas. Participaram noventa e seis profissionais das escolas da REME, incluindo professores alfabetizadores, supervisores escolares e técnicos da SEMED de Campo Grande, MS.

A metodologia do curso, com marcante diferencial, elimina a aula expositiva e situa o professor como protagonista de sua própria formação, tendo como eixos estratégicos o estudo, o questionamento, a reflexão, a socialização, a pesquisa, a elaboração e a avaliação que ocorrem em momentos específicos da programação de cada dia do curso nas atividades de:

- estudos de textos realizados por meio de leitura individual e em grupo;

- socialização das idéias principais do texto a partir de questionamentos que visam estabelecer a relação teoria e prática;

- elaboração de texto, individual e em grupo, atendendo proposições que possibilitam a expressão de conceitos e conhecimentos reconstruídos aplicados à prática pedagógica;

- avaliação das atividades do dia e do desempenho do grupo-base registrada pelos cursistas;

- avaliação da elaboração de textos dos cursistas, realizada pelo grupo-base, visando a verificação da eficácia do curso para a aprendizagem dos professores na reconstrução de conhecimentos e reflexão sobre suas práticas.

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Uma coletânea de textos, de autores reconhecidos no campo científico, serviu de suporte para os estudos propostos, abordando os temas: Educar pela pesquisa; Aprendizagem: leitura e escrita; Aprendizagem Matemática; Arte, dramatização e situações didáticas; Avaliação da aprendizagem e Elaboração de projeto de ensino.

A leitura e análise das impressões dos professores cursistas expressas no “Caderno de registros diários” forneceu ao grupo-base, subsídios para o planejamento e organização de novos cursos, assim como a percepção da diversidade de reações à metodologia utilizada. A seguir, alguns depoimentos dos cursistas que foram significativos em relação ao curso:

- auto-avaliação: “Cada dia foi um esforço muito grande para ler e produzir textos coerentes. Hoje (5º dia), tive mais segurança ao ler e produzir.” “Pela primeira vez (3º dia) tive insegurança em falar de algo que já faço em minha prática”. “Sinto que preciso estudar mais. (1º dia)” “Trabalho em grupo (2º dia) é muito difícil, embora acredite que seja um grande momento de aprendizagem e interação.” “Estou aprendendo muito (5º dia). Esta deveria ser nossa prática diária: ler e refletir.” “Ótimo dia! (3º dia) Ambiente alegre e descontraído. Assistimos a um filme que nos remete à garra de tantos mestres que venceram, apesar das dificuldades.” “No decorrer das apresentações fui me encantando, fui me envolvendo com cada tema trabalhado e, neste final de dia (4º dia) saio daqui revigorado, encontrando resposta para uma pergunta que, às vezes me faço: será que vale a pena?” “Vejo que o curso está nos proporcionando ricos momentos de reflexão, grande contato com a leitura e a construção de conhecimentos. Mesmo sendo cansativo e, às vezes, doloroso, e muito importante”;

-encaminhamento do grupo-base: “O carinho, o jeito especial com que fomos tratados. Estávamos precisando desta valorização.” “Embora as atividades devam ser do cursista, os orientadores poderiam ter falado mais.” “Os encaminhamentos feitos pelo grupo-base foram muito claros.” “Os orientadores tiveram uma participação positiva na condução dos trabalhos”;

- textos e temas de estudo: “Sinto que a cada dia incorporo algo mais substancial, seja através dos textos, das discussões, das elaborações.” “Os textos lidos e debatidos são claros, ricos e de ótima contribuição para a prática em sala de aula.” “Projeto pedagógico próprio! Não estamos habituados a esse tipo de trabalho, foi muito complicado.” “O foco no estudo não é novidade, a novidade esteve na forma de “obrigar” ou induzir à participação, porque o professor não gosta realmente de estudar.” “O tema avaliação terá que ser muito discutido ainda, pois nele está o sucesso e o fracasso do aluno.” “Se o professor levar a pesquisa como mola mestra do saber, terá condições de refletir e reelaborar sua prática pedagógica.” “... os temas são extremamente relevantes para nosso momento histórico”;

- espaço e organização do curso: “Ontem, eu imaginei que estivesse fazendo parte de um laboratório. O silêncio do professor Pedro Demo me intrigava, mas fui tentando entender o motivo. Ufa! Hoje constatei que o silêncio faz parte do processo, da dinâmica.” “O local e a organização do curso atenderam a todas as necessidades, propiciando um trabalho enriquecedor.” “Como vocês falaram, este curso é uma experiência e toda experiência é passível de erros. Eles fazem parte do engrandecimento. Mas, se houve o grupo-base soube muito bem trabalhar com eles, pois, para nós, cursistas, tudo correu muito bem. Só tenho que parabenizar e agradecer, pois a capacitação foi excelente. Há muito não participava de uma capacitação que me prendesse a atenção e que eu tivesse comprometimento do começo ao fim, feliz e sem estar cansada. O mais importante: retomei o gosto pela pesquisa, voltei a produzir”.

Pela extensa programação do curso, o grupo-base esperava que os professores cursistas manifestassem cansaço e pouca disponibilidade interna para a realização das atividades programadas. Embora alguns cursistas tenham considerado curto o tempo previsto para as leituras dos textos e para as elaborações, pôde ser observado um crescente empenho desses professores para dar conta das atividades, assim como o interesse em participar das socializações de conhecimentos e falar das suas experiências. O grupo-base considerou como aspectos facilitadores desse processo: a distribuição das atividades na programação diária; as dinâmicas de integração dos cursistas em sala, quebrando a rotina do trabalho; a distribuição, sempre renovada, dos cursistas nos grupos formados nas salas; as formas de intervenção e

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questionamentos dos professores orientadores durante as socializações das leituras; o clima de confiança na acolhida das dificuldades de aprendizagem dos cursistas; o reconhecimento, por parte dos cursistas, da necessidade de reconstrução de seus saberes, por meio de uma metodologia inovadora que não ocorrera em outros cursos.

Foi identificada a inexperiência dos cursistas no trabalho em grupo e a necessidade de melhor organizar a atuação dos componentes dos grupos nas elaborações. Evidenciou-se, também, o desconhecimento, por parte de alguns cursistas, do processo de elaboração de projetos de ensino e aprendizagem com uma visão interdisciplinar, além de se observar que poucos professores fundamentaram seus projetos nas leituras realizadas.

A participação dos supervisores escolares nos grupos de trabalho oportunizou a troca de experiências e a percepção do enriquecimento que um grupo pode gerar ao outro.

O espaço utilizado para a realização do curso, Centro de Convenções Günter Hans, foi, sem dúvida, um ponto considerado favorável à convivência dos cursistas num ambiente agradável e confortável.

Reconhecendo que o “direito de estudar” é parte do trabalho do professor, a Prefeitura Municipal de Campo Grande, MS passou a assumir os custos da formação e da substituição dos professores cursistas, além de garantir-lhes o transporte e a alimentação no local do curso.

Para dar sustentação à demanda de trabalho exigido pela organização e preparação do curso, a SEMED de Campo Grande, MS, incluiu o Centro de Formação de Formadores, CFF, em sua estrutura básica, conforme Decreto nº. 9.442, de 17-11-2005, publicado no Diário Oficial de Campo Grande, MS, em 18-11-2005.

A Secretaria Municipal de Educação e de Administração de Campo Grande, MS, na Resolução Conjunta nº. 9, de 15 de março de 2006, definem as competências do Centro de Formação de Formadores, no Regimento Interno da SEMED. O regimento, posteriormente, revogado e alterado pela Resolução nº. 10, de 18 de setembro de 2006, altera a sigla do Centro de Formação de Formadores, CFF, para CEFOR, com competências, a saber:

I - participar do processo de formulação e implementação da Política Educacional da REME;

II - participar da elaboração, implementação e execução do plano estratégico da SEMED;

III - articular-se e integrar-se com os demais órgãos da SEMED, para a execução das ações relacionadas à formação continuada dos profissionais da educação;

IV - articular-se com órgãos e instituições que atuam na área visando a troca de informações, o apoio técnico-pedagógico e a execução de ações em regime de parceria na área de formação;

V - coordenar o planejamento e execução das ações de formação continuada para técnicos e professores da REME;

VI - participar do processo de formulação e implementação das diretrizes para educação da Rede Municipal de Ensino;

VII - participar da análise do resultado da avaliação do desempenho dos alunos da REME, visando identificar as necessidades de formação dos docentes;

VIII - elaborar relatórios das atividades desenvolvidas pelo CEFOR;

IX - desenvolver outras atividades que lhe forem atribuídas, na área de sua competência.

Os profissionais que atuam no Centro de Formação de Formadores da SEMED, integrantes do grupo-base são: Eliete de Souza Melo Neto, Annaldina Lucas Pelzl, Ana Brígida Borges da Rocha, Soraya Regina de Hungria Cruz, Rosângela Ruas Chelotti, Magda Simone De

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Toni, Rosângela Antunes Estrada, Sônia Fenelon Filártiga, Neuza da Silva Casado, Laurinda Silva Gonçalves Cruz, Ana Olíria Ferreira Alves, Elizabeth Guedes Alcântara, Rejane Aparecida Coutinho, Sandra Rose Rodrigues, Célia Silva Lima, Luiz Carlos Tramujas de Azevedo, Gislaine Jansen Ferreira, Magali Aparecida Lopes Nunes da Cunha, Inez Nazira Abrahão Barbosa, Maria Elisabete Martins, Bianca Cabral de Oliveira.

Os cursos de pós-graduação em parceria com instituições de ensino

superior

Os resultados do curso experimental de formação continuada “Aprender: Prática Reconstrutiva” geraram expectativas quanto à possibilidade da realização de cursos de pós-graduação para a especialização dos professores alfabetizadores, o que se tornou possível por meio da parceria da SEMED de Campo Grande, MS com o Instituto de Ensino Superior da FUNLEC. Parte dos educadores dessa instituição conhecia a metodologia de formação orientada por Demo, uma vez que já integrara um grupo-base da Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul, no ano de 1998, o que facilitou o planejamento conjunto da programação e ementa das disciplinas do curso.

O curso de pós-graduação Lato Sensu “Organização do Trabalho Pedagógico do Professor Alfabetizador na Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental”, foi programado com carga horária de 360 horas, cabendo a cada instituição o trabalho em 180 horas, no período de fevereiro de 2006 a março de 2007.

Foram inscritos 605 profissionais efetivos da Rede Municipal de Ensino, entre supervisores escolares, professores da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental.

Os quadros abaixo apresentam a quantificação de escolas, séries e população atingidas.

a) Escolas beneficiadas

ESCOLAS TOTAL

Zona Urbana 80

Zona Rural 07

CEINF’S 12

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Total Geral 99

b) Níveis /séries /funções envolvidas

Níveis/séries/funções Nº. de Profissionais cursistas

Nº. de Alunos beneficiados

Educação Infantil 85 2.258

1ª Série 211 6063

2ª Série 101 2.861

3ª Série 54 1657

4ª Série 41 1.523

Aceleração 1 e 2 02 50

Multisseriada (1ª a 4ª Séries) 04 105

Alfabetização nível III E IV 03 84

Sala de reforço 02

Sala de recursos 02

Técnicos SEMED 15

Supervisores escolares 57

Orientador educacional 01

Apoio pedagógico 02

Diretoras de CEINF’S 10

Grupo base 15

Total 605 14.601

Fonte: SEMED/CEFOR, 2006.

O curso de pós-graduação tem o propósito de oferecer ao professor alfabetizador a construção de bases teóricas, facilitadoras da reflexão sobre sua prática, à luz de princípios epistemológicos e pedagógicos que fundamentam a ação didática e a reconstrução de um projeto pedagógico comprometido com a alfabetização dos alunos na 1ª série. A construção de conhecimentos, entretanto, não garante a coerência entre concepções teóricas e práticas pedagógicas. Para as transformações didáticas pretendidas em sala de aula, torna-se necessária a formação permanente do professor alfabetizador por meio do confronto contínuo da teoria com as ações realizadas em sala de aula, ou seja, na reflexão sobre o quê, como e por quê promove situações de aprendizagem e sobre o quê e como os alunos aprendem, considerando a realidade existencial de cada um.

Para tanto, é imprescindível que o professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental apóie seu fazer em sala de aula em concepções teóricas estudadas e refletidas, em objetivos definidos e em uma prática pedagógica coerente para atender os educandos sob sua responsabilidade. Essa prática demanda um constante ir e vir do pensar ao agir, abrangendo o campo da teoria e o campo da prática cotidiana dentro da escola. (Osório, 2003, p. 220).

Para favorecer aos professores alfabetizadores a reconstrução de suas práticas a partir da pesquisa e da reflexão, a SEMED de Campo Grande, MS, complementarmente ao curso de pós-graduação, planeja executar, durante o ano de 2007, um programa de acompanhamento da prática alfabetizadora dos professores, em projetos de pesquisa-ação que objetivam a construção

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de uma expertise de alfabetização, num processo contínuo de ação-reflexão-ação. Busca-se, dessa forma, uma nova prática pedagógica, alicerçada na pesquisa do professor sobre os fundamentos de sua ação didática e sobre o aprender dos alunos, na reconstrução do conhecimento científico por meio do questionamento reconstrutivo, que gere segurança ao professor na elaboração de um projeto pedagógico adequado ao contexto escolar e às necessidades dos alunos.

Implementando a política de investimento na formação continuada dos professores da REME, a SEMED de Campo Grande, MS, em parceria com a Universidade Para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal, UNIDERP, promove, atualmente o curso de pós-graduação Lato Sensu, Organização do Trabalho Pedagógico do Professor das Séries Iniciais do Ensino Fundamental, na Educação Matemática.

O curso tem como objetivo principal proporcionar aos profissionais da educação da REME o aprimoramento intelectual, o domínio de conceitos básicos de Matemática, e o domínio das metodologias de ensino para assegurar condições de aprendizagem da Matemática aos alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Com uma programação de 360 horas, divididas igualmente entre a UNIDERP e o Centro de Formação de Formadores da SEMED para o trabalho com os professores, o curso teve seu início em agosto de 2006, devendo estender-se a dezembro de 2007, com a participação de 202 profissionais efetivos da REME.

Os quadros que se seguem demonstram os níveis, séries e populações envolvidas.

a) Escolas beneficiadas

b) Níveis, séries e funções envolvidas:

Níveis / séries / funções Nº. de profissionais cursistas

Nº. de alunos beneficiados

Educação Infantil 12 323

1ª série 18 591

2ª série 10 317

3ª série 33 1.118

4ª série 25 1.221

5ª série 35 3.396

6ª série 12 2.610

7ª série 6 1.069

8ª série 3 753

Aceleração 1, 2, 3 e 4 7 1093

Sala de reforço 2 300

Sala de Informática 120

Técnicos da SEMED 13

ESCOLAS TOTAL

Zona Urbana 58

Zona Rural 04

Total 62

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Inspetor Escolar 1

Supervisores Escolares 5

Orientadores Educacionais 15

Apoio Pedagógico 2

Diretores Adjuntos 5

Grupo Base 1

Total 202 12.911

O curso de especialização em educação matemática, embora oferecido a um número menor de professores, beneficia grande número de alunos pela presença, entre os cursistas, de professores especialistas na área de Matemática, que atuam individualmente em diversas turmas de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental.

Os dois cursos de Pós-graduação Lato Sensu, envolvem, aproximadamente, oitocentos profissionais do ensino da REME e beneficiam mais de vinte e sete mil alunos.

Contribuição da formação continuada: a formação permanente

Uma das funções da formação continuada do professor é possibilitar o questionamento para legitimar o conhecimento profissional posto em prática, o que envolve desconstruir e reconstruir a teoria, recompondo o equilíbrio entre o conhecimento teórico e a prática educativa, num processo de formação permanente.

A legitimação do conhecimento pedagógico alcançada na relação teoria e prática sustenta-se na análise, na reflexão e na intervenção sobre as situações de ensino e aprendizagem que ocorrem no contexto da instituição escolar.

O questionamento e a reflexão sobre a problemática educativa permitem que o conhecimento profissional se transforme em conhecimento experimentado por meio da prática docente, num cenário profissional em que interagem múltiplos condicionantes, como a cultura do professor e da instituição onde ele atua as formas de comunicação e colaboração entre os professores, a complexidade das realidades da escola e da sua comunidade, as relações e a organização estabelecidas pela política educacional do sistema.

O conhecimento profissional construído a partir dos intervenientes que compõem o cenário educativo de cada instituição de ensino obriga o professor a uma atitude permanente de questionamento, pesquisa e construção coletiva de conhecimentos e de decisões para o enfrentamento das problemáticas do entorno de sua área de atuação profissional. Assim, a construção coletiva do conhecimento profissional emerge como facilitadora de capacidades reflexivas sobre a prática docente, cuja meta principal é o aprender a interpretar, compreender e refletir sobre a educação e a realidade social, evidenciando a qualidade política que permeia o processo educativo.

A formação permanente, não mais restrita à atualização científica, pedagógica e cultural próprias da qualidade formal, é entendida como revisão e reconstrução da teoria, possibilitando aos professores:

[...] avaliar a necessidade potencial e a qualidade da inovação educativa que deve ser introduzida constantemente nas instituições; desenvolver habilidades básicas no âmbito das estratégias de ensino em um contexto determinado, do planejamento do diagnóstico e da avaliação; proporcionar as competências para ser capazes de modificar as tarefas educativas

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continuamente, em uma tentativa de adaptação à diversidade e ao contexto dos alunos; comprometer-se com o meio social. (Imbernón, 2005, p. 69).

Tornam-se, portanto, características de uma formação permanente os princípios e fundamentos que favoreçam ao professor aprender continuamente num processo de colaboração e participação nas decisões do conjunto dos educadores da instituição de ensino. Esse aprender contínuo permite realizar análises, experimentar, avaliar e modificar os processos educativos visando a qualidade da aprendizagem dos alunos; socializar e reconstruir conhecimentos com informações atualizadas, pertinentes ao âmbito educacional e ao contexto educativo; questionar, refletir individual ou coletivamente, na busca de soluções para as situações problemáticas da prática; compartilhar experiências de sucesso ou fracasso, construindo no meio social e profissional um ambiente de aprendizagem coletiva; elaborar projetos de pesquisa-ação que favoreçam o aprofundamento teórico das questões que afetam a prática educativa e sua conseqüente otimização; produzir materiais e recursos metodológicos facilitadores da aprendizagem na mediação entre o aluno e o conhecimento.

Nessa perspectiva, a formação continuada como estímulo à educação permanente do professor pretende favorecer-lhe a construção de processos próprios e autônomos de intervenção que desprezam cópias ou modismos metodológicos para, a partir da análise de necessidades, expectativas e problemas, saber construir conhecimentos e mecanismos metodológicos para a resolução dos problemas que dificultam seu desenvolvimento profissional e afetam a aprendizagem da coletividade.

Conclusão Ao afirmar que “a educação do futuro depende de educadores que tenham futuro”,

Demo (2005), denuncia contradições com respeito às formas de conceber e tratar os educadores. Enquanto é esperada dos professores a redenção da sociedade e a solução dos problemas educacionais e político-sociais, não é reconhecida sua dignidade profissional, seu papel preponderante no êxito de outros profissionais, não se considera a necessidade de investimento e de condições para sua formação aprimorada e permanente, a fim de garantir as transformações pretendidas para a educação do futuro. Embora seja necessário questionar as práticas educativas dos professores, a limitação de seus conhecimentos e o adormecimento de sua consciência política, Demo considera que os educadores necessitam, hoje, “muito mais de cuidado, atenção, apoio e oportunidade” (Demo, 2005, p.102). Além de cuidar do professor, Demo afirma ser preciso cuidar da escola e de todos seus componentes fundamentais, em especial da participação dos pais e da comunidade na gestão democrática da escola para torná-la uma comunidade profissional de aprendizagem, para que tudo que nela ocorra contribua para a formação adequada de seus alunos.

Com tal pensamento, os projetos educativos idealizados por Demo, mais que diagnosticar as duras realidades do contexto educacional, orientam novos caminhos e perspectivas para a educação por meio da formação continuada de professores visando um profissionalismo, conforme conceituado nos Referenciais para a Formação de Professores, SEF/MEC, 1998:

[...] profissionalismo é o exercício da capacidade de identificar as questões envolvidas no trabalho, sabendo compreendê-las e a elas dar respostas, de agir com autonomia e assumir a responsabilidade pelas decisões tomadas e opções feitas, de avaliar criticamente a própria atuação e o contexto em que ocorre e de interagir cooperativamente com a comunidade profissional a que pertence. No caso do magistério, além disso, é a capacidade de elaborar coletivamente o projeto educativo e pedagógico da escola, colaborar com a construção e o desenvolvimento do currículo escolar e identificar diferentes opções, adotando aquelas que considerar melhores.

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Um caminho para o exercício profissional, nos termos do conceito acima citado passa, necessariamente, pela adoção de um modelo de formação inicial, continuada e permanente que reflita as competências e os saberes construídos na prática da pesquisa, do questionamento, do saber pensar e do aprender a aprender e que possibilite ao professor encontrar, de forma autônoma, respostas para os problemas complexos evidenciados nos diversos contextos educativos.

Esse é o caminho iniciado pela Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, MS ao assumir o projeto “Aposta no Professor” como ponto de partida do Programa de Formação Continuada dos Professores da Rede Municipal de Ensino.

Referências

DEMO, Pedro. ABC: Iniciação a competência reconstrutiva do professor básico. São Paulo: Papirus, 1995.

_____. A Educação do Futuro e o Futuro da educação. Campinas: Autores Associados, 2005.

_____. Educar pela Pesquisa. 7. ed. Campinas Autores Associados, 2005.

_____. Pobreza e Política na educação. In: Revista de Educação. AEC. Ano 24. Nº 94. Janeiro/Março, 1995.

_____. Projeto Aposta no Professor. Brasília, UnB, mimeo, 2005.

_____. Saber Pensar. 4. ed. São Paulo: Cortez. Instituto Paulo Freire, 2005.

_____. Ser professor é cuidar que o aluno aprenda. Porto Alegre: Editora Mediação, 2004.

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IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005

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