fome, ira, amor e paz o discurso negro em las estrelas son negras, de arnoldo palacios (1)

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Fome, ira, amor e paz: o discurso negro em Las estrellas son negras, de Arnoldo Palacios Bruna Fernandes Cunha (UFPR) 1 A partir do século XX é perceptível na produção literária América Latina uma maior preocupação na representação dos negros e também em recuperar o passado por meio da memória negra, buscando deste modo, entender as complexas relações que formaram as sociedades americanas. (GONÇALVES, 2007, p.05) A partir de então, o negro passa a ser representado como sujeito ativo, com pensamentos e vontades próprias, substituindo a imagem de indivíduo inferior e submisso que até então predominava em grande parte da literatura canônica. Segundo BERND: Os descendentes de escravos iniciaram uma irreversível caminhada em busca de sua identidade afro-latino-americana que, multifacetada pelas variantes geográficas e linguísticas, será determinante de um novo discurso voltado para o combate à alienação e o consequente resgate de seus referentes culturais (1987, p.67). Ainda segundo BERND, o negro começa a ganhar voz nas literaturas de língua francesa na África e do Caribe, principalmente através da poesia, (BERND, 1987,p.21). A estudiosa indica que a expressão negra em romances surge mais tarde, quando há maior definição de qual seria a cultura negra, suas tradições e seus heróis. O romance seria uma maneira de “recuperar um passado, de modificar o presente para acreditar no futuro” (BERND, 1987, p. 22). Bernd, em seu estudo, reflete sobre o modo como a negritude, que é a “tomada de consciência de uma situação de dominação e de discriminação e a consequente reação pela busca de uma identidade negra” (BERND, 1987,p.27), existe desde que os primeiros escravos se rebelaram e vem se construindo até hoje. Em 1934, no entanto surge na França, em torno da criação da revista L’Etudiant noir, o movimento Negritude, tendo como mentores Aimé Césaire, Léon Dama e Léopold Senghor. Tal movimento se estruturou na construção de uma identidade negra, na rejeição da arte enquanto cópia dos modelos europeus e na revolta contra a política europeia da época. Tal movimento de resistência teve um caráter global, repercutindo em meios intelectuais de todo o mundo, inclusive na América Latina, sendo fonte de inspiração para vários autores latino-americanos. Um desses autores foi o afro-colombiano Arnoldo Palacios, integrante de uma geração que buscava desenvolver uma literatura que apresentasse as questões nacionais colombianas, a qual pertenceram Gabriel García Márquez, Álvaro Mutis e Manuel Zapata 1 Mestranda do programa de Estudos Literários da UFPR

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Artigo que observa o desenvolvimento do protagonista negro na novela "Las estrellas son negras", de Arnoldo Palacios

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Fome, ira, amor e paz: o discurso negro em Las estrellas son negras, de Arnoldo PalaciosBruna Fernandes Cunha (UFPR)[footnoteRef:1] [1: Mestranda do programa de Estudos Literrios da UFPR]

A partir do sculo XX perceptvel na produo literria Amrica Latina uma maior preocupao na representao dos negros e tambm em recuperar o passado por meio da memria negra, buscando deste modo, entender as complexas relaes que formaram as sociedades americanas. (GONALVES, 2007, p.05) A partir de ento, o negro passa a ser representado como sujeito ativo, com pensamentos e vontades prprias, substituindo a imagem de indivduo inferior e submisso que at ento predominava em grande parte da literatura cannica. Segundo BERND: Os descendentes de escravos iniciaram uma irreversvel caminhada em busca de sua identidade afro-latino-americana que, multifacetada pelas variantes geogrficas e lingusticas, ser determinante de um novo discurso voltado para o combate alienao e o consequente resgate de seus referentes culturais (1987, p.67).Ainda segundo BERND, o negro comea a ganhar voz nas literaturas de lngua francesa na frica e do Caribe, principalmente atravs da poesia, (BERND, 1987,p.21). A estudiosa indica que a expresso negra em romances surge mais tarde, quando h maior definio de qual seria a cultura negra, suas tradies e seus heris. O romance seria uma maneira de recuperar um passado, de modificar o presente para acreditar no futuro (BERND, 1987, p. 22).Bernd, em seu estudo, reflete sobre o modo como a negritude, que a tomada de conscincia de uma situao de dominao e de discriminao e a consequente reao pela busca de uma identidade negra (BERND, 1987,p.27), existe desde que os primeiros escravos se rebelaram e vem se construindo at hoje. Em 1934, no entanto surge na Frana, em torno da criao da revista LEtudiant noir, o movimento Negritude, tendo como mentores Aim Csaire, Lon Dama e Lopold Senghor. Tal movimento se estruturou na construo de uma identidade negra, na rejeio da arte enquanto cpia dos modelos europeus e na revolta contra a poltica europeia da poca. Tal movimento de resistncia teve um carter global, repercutindo em meios intelectuais de todo o mundo, inclusive na Amrica Latina, sendo fonte de inspirao para vrios autores latino-americanos.Um desses autores foi o afro-colombiano Arnoldo Palacios, integrante de uma gerao que buscava desenvolver uma literatura que apresentasse as questes nacionais colombianas, a qual pertenceram Gabriel Garca Mrquez, lvaro Mutis e Manuel Zapata Olivella. Negro e de uma famlia sem grandes recursos econmicos, Palacios nasceu em Certgui, departamento de Choc, regio pobre e de difcil acesso. Dependeu de bolsas de estudo e ajuda de amigos para adquirir instruo formal. Foi para a Frana estudar e l acabou entrando em contato com as ideias do movimento Negritude. Ao retornar Colmbia escreve a novela Las estrellas son negras, onde notvel a expresso de uma conscincia negra. Na novela em questo, Arnoldo Palacios busca mostrar a realidade da regio onde nasceu e cresceu, a partir da perspectiva de um garoto negro e pobre. Em entrevista a Biblioteca Luis ngel Arango, Palacios fala sobre suas intenes ao escrever a novela:Una cosa que yo creo que aport fue la presencia del negro en la novela. El hroe negro. No es que no haya habido negros en la novela, los haba en la literatura de los Estados Unidos, en La Cabaa del To Tom, y otros muchos. Aqu figuraban siempre como sirvientes, en Mara, por ejemplo, en ese captulo tan bello, porque Isaacs era un gran escritor. Pero el problema es que siempre aparecan los negros como un adorno. (...) Entonces, yo quera que el personaje principal fuera un negro, un chocoano[footnoteRef:2] [2: 2 Uma coisa que eu creio que abordei foi a presena do negro na novela. O heri negro. No que no tenha existo negros na novela, apareciam na literatura dos Estados Unidos, em A cabana do Tio Tom e muitos outros. Aqui figuravam sempre como criados, em Maria, por exemplo, em um captulo to bonito, porque Isaacs era um grande escritor. Mas o grande problema que os negros apareciam sempre como um adorno. Ento eu queria que o personagem principal fosse um negro, um chocoano. ]

Nesta fala do autor j perceptvel a inteno de mudar a posio do negro na literatura, de dar um lugar central a esta figura. Inteno esta que converge com as ideias do movimento Negritude e que expressam negritude. Algumas linhas adiante na mesma entrevista, no entanto, Palacios fala da seguinte forma sobre planos futuros:Ahora quiero pensar en escribir sobre estos discursos raciales. Hacer una especie de reflexin para los colombianos, en la que se diga que siempre se tiene que decir Afrocolombiano. Es que no somos blancos, somos aqu mulatos, aunque no todos lo seamos. Blanco y negro, mulato. Indio y blanco, mestizo. Y tenemos hoy indios, blancos, negros, mezclados ya con todos los europeos que vinieron aqu[footnoteRef:3] [3: Agora quero pensar em escrever sobre esses discursos raciais. Fazer uma espcie de reflexo para os colombianos em que se diga que sempre se tem de dizer Afro colombiano. Pois no somos brancos, aqui somos mulatos, ainda que nem todos. Branco e negro, mulato. ndio e branco, mestio. E hoje temos ndios, brancos, negros j mesclados com todos os europeus que vieram para c...]

Nas palavras de Palacios nota-se como so complexas as questes raciais colombianas, talvez no muito diferente do que ocorre no Brasil, por exemplo. Percebe-se que no caso afro-colombiano tambm se destaca a questo da mestiagem, como apresenta o estudo (A)cercamiento al concepto de la negritud en la literatura afro-colombiana, de Alain Lawo-Sukan, que busca mostrar que a negritude na literatura afro-colombiana aparece do seguinte modo:En la literatura afro-colombiana, el concepto de la negritud responde a una contextualizacin de los fenmenos socio-histricos y culturales de la hibridez y no a una mera africanizacin de la cultura como articulan Len Damas y Aim Csaire.La negritud se adapta al contexto del mestizaje tnico-cultural y no a un retorno sistemtico a frica (LAWO-SUKAN, 2011, p. 42)[footnoteRef:4]. [4: Na literatura afro-colombiana o conceito de negritude responde uma contextualizao dos fenmenos scio-histricos e culturais da hibridez e no a uma mera africanizao da cultura, como articulam Lon Damas e Aim Csaire. A negritude se adapta ao contexto de mestiagem tnico-cultural e no a um retorno sistemtico a frica.]

Manuel Zapata Olivella outro intelectual que destaca a mestiagem como fator essencial na identidade hispano-americana e, consequentemente, na identidade colombiana, para ele el mestizaje surge como un elemento aglutinante que perfila las nacionalidades hispanoamericanas[footnoteRef:5]" (OLIVELLA, 2010, p.121). No conjunto de ensaios reunidos no livro Los senderos de sus ancestros, Zapata no s enfatiza o carter mestio da identidade hispano-americana como defende que esta dimenso fator essencial na criao literria local. O escritor colombiano percebe a identidade como algo mutvel e multifacetado, compreendendo a dimenso colombiana, ou seja, mestia, hispano-americana e por fim universal: [5: A mestiagem surge como elemento aglutinante que perfila as nacionalidades hispano-americanas.]

Yo y mis personajes somos determinantes histricos, generacionales, que no solo son eco de la herencia, sino materia cambiante. Quirase o no, se est atado. Hasta tanto no reconoc estas ligazones, escribir fue un errabundar a caza de lo extrao. Ahora entiendo las dimensiones de mi prisin, todo lo estrecha que se quiera: yo. Inmediata: Colombia. Compartida: Hispanoamrica. Proyectada: el mundo (OLIVELLA, 2010, p. 214).[footnoteRef:6] [6: Eu e meus personagens somos determinantes histricos, geracionais, que no so apenas eco dessa herana, como matria mutvel. Queira ou no, se est atado. At reconhecer estas relaes, escrever foi um vaguear procura do desconhecido. Agora entendo as dimenses da minha priso, to estreita como se quiser: eu. Imediata: Colmbia. Compartilhada: Hispano-americana. Projetada: o mundo. ]

Mesmo que enfatize a questo da mestiagem, Zapata no deixa de reconhecer a particularidade da negritude na identidade colombiana, sendo um autor que valorizou e promoveu a literatura afro-colombiana, para ele el problema para el mestizo americano es vital; la identificacin negra es imprescindible para su plena autenticidad"[footnoteRef:7] (OLIVELLA, 2011, p.296). Zapata tambm no esquece a explorao sofrida pelos afrodescendentes, lembrando que assim como o ndio, o negro tem sido explorado, exposto a todo tipo de opresso desde o perodo colonial at hoje, quando a mo de obra mais barata. Alm disso, o escritor denuncia o ocultamento do aporte africano na cultura colombiana, a negao desta herana to grande (OLIVELLA, 2011, p.351). Por isso, Zapata v como necessrio e urgente o reconhecimento da condio histrica do negro na literatura colombiana: [7: O problema para o mestio americano vital, a identificao negra imprescindvel para sua plena autenticidade. ]

Para hacer an ms grande y ms dolorosa y ms humana esta literatura nuestra, a la que hemos despreciado por mengua del sentido histrico y nacional, se incorpora a ella la tragedia negra de la esclavitud. Llega como un ariete extrao cargado de vitalismo rebelde. Jams antes ni despus volver la humanidad a repetir un trasiego continental de tanta magnitud. Millonadas de hombres que se desculturan de sus fuentes para ser lanzados como polen fecundante a construir un nuevo ciclo civilizador en el momento en que una nacin, tambin originaria de otro continente, se mezcla a la nativa. (OLIVELLA, 2011, p. 192)[footnoteRef:8] [8: Para fazer com que seja ainda maior, mais dolorosa e mais humana a essa nossa literatura, que temos depreciado por falta de sentido histrico e nacional, se incorpora a ela a tragdia negra da escravido. Chega como um estranho arete carregado de vitalismo rebelde. Jamais antes nem depois a humanidade voltar a repetir um deslocamento continental de tamanha magnitude. Milhes de homens que se desligaram de suas fontes culturais para serem lanados como plen fecundante para construir um novo ciclo civilizador, no momento em que uma nao, tambm originria de um outro continente, se mesclasse ao povo nativo. ]

Desta forma, a negritude na Amrica Latina aparece como fonte originalidade e vitalidade para a literatura local, pelo carter nico do que ocorreu na histria do continente. As questes sociais, para o Manuel Zapata Olivella, so de grande importncia na literatura, e em relao literatura hispano-americana, ganham ainda mais destaque. Militante, Zapata ataca a crtica literria hispano-americana de sua poca, que em geral no valoriza a dimenso social, histrica e cultural da literatura local, ele assevera:La literatura es un fenmeno histrico y social. Aparece como una necesidad. Es el haber de las experiencias culturales que puede guardarse en la memoria o en el papel escrito. Pero en los conflictos polticos y econmicos contemporneos hay quienes, defendiendo intereses particulares, niegan la existencia de una literatura en pueblos que fueron o son oprimidos. Los tericos y crticos de los subyugadores hablan de inmadurez cultural, primitivismo, lastre racial, incapacidad, recursos incipientes y de otras necedades. Pretenden con esta jerga justificar en una u otra los viejos privilegios. A despecho de sus propias aseveraciones, se apresuran a destruir la literatura nativa tradiciones, folclor, archivos, idiomas y cuando les es imposible incinerar, empecinadamente niegan los valores objetivos (OLIVELLA, 2010, p.181)[footnoteRef:9] [9: A literatura um fenmeno histrico e social. Aparece como uma necessidade. o fazer das experincias culturais que se pode guardar na memria ou no papel. Porm, nos conflitos polticos e econmicos contemporneos existem aqueles que, defendendo interesses particulares, negam a existncia de uma literatura de povos que foram ou so oprimidos. Os tericos e crticos subjugadores falam de imaturidade cultural, primitivismo, lastre racial, incapacidade, recursos incipientes e de outras necedades. Pretendem com estes termos justificar velhos privilgios. A despeito de suas prprias afirmaes, se apressam a destruir a literatura nativa tradies, folclore, arquivos, idiomas e quando lhes impossvel incinerar, obstinadamente negam os valores objetivos]

vlido lembrar que Zapata foi um ferrenho defensor da literatura latino-americana de sua poca, vendo nela grande originalidade no uso de tcnicas que podiam at ter sido criadas na Europa, mas que eram utilizadas de maneiras inovadoras por autores latino-americanos. Ele elogia a escrita de autores como Kafka, Proust, Joyce e Faulkner, que bem utilizam os mtodos psicanalticos em suas obras ao desenvolverem as subjetividades de seus personagens e reconhece a influncia de tais escritores na literatura produzida na Amrica Latina. No entanto, acredita que por conta da multiculturalidade existente no continente, essas tcnicas psicanalticas so transformadas pelos autores daqui, que as utilizam considerando as especificidades de seus locais de enunciao: En la joven narrativa hispanoamericana Rulfo, Arreola, Amado, Carpentier, Asturias el autor se sirve de estos procedimientos con un nuevo contenido: la ubicacin psicolgica del personaje en su medio social. Tiene el afn de explicarse su actitud. Y, algo ms, pretende movilizarlo, revelarlo. Consciente del papel activo que juega el lector contemporneo en la lectura, busca la forma de solidarizarlo con sus personajes o que se pronuncie contra ellos. Mientras el autor europeo aspira a la impersonalidad que reclamaba Flaubert, el americano, al abandonar su posicin de dios-creador, propia de las novelas del siglo XIX, se asoma en la mente del personaje. Muchas veces lo sustituye. Su intencin no es la de ocultarse, sino la de habitar. Desdea fingir que los personajes le son extraos, que piensan contradictoriamente a su autor, que les animan razones inconscientes, abscnditas, desconocidas[footnoteRef:10]. (OLIVELLA, 2010, p. 164). [10: Na jovem narrativa hispano-americana Rulfo, Arreola, Amado, Carpentier, Asturias o autor se serve destes procedimentos com um novo ingrediente: a localizao psicolgica do personagem em seu meio social. Tem o interesse de explicar sua atitude. E, algo mais, pretende mov-lo, realiz-lo. Consciente do papel ativo que ocupa o leitor contemporneo na leitura, busca uma forma de solidariz-lo com os personagens ou que manifeste contra eles. Enquanto o autor europeu aspira impessoalidade que reclamava Flaubert, o americano, ao abandonar sua posio de deus-criador, prpria das novelas do sculo XIX, aparece na mente do personagem. Muitas vezes o substitui. Sua inteno no se ocultar, seno a de habitar. Desdenha fingir que os personagens lhe so estranhos, que pensam contraditoriamente ao seu autor, que os impelem razes inconscientes, desconhecidas.]

Percebe-se que o autor parte da ideia de unidade no s hispano-americana quanto europeia, fazendo anlises um tanto generalizadoras das produes literrias de ambos os continentes. Enfatiza o desenvolvimento dos narradores nas obras americanas, elogiando, em alguma medida, a pessoalidade presente nessas obras, em detrimento de uma suposta impessoalidade nas obras europeias. No estranho que Manuel Zapata cite Arnoldo Palacios ao tratar destas ltimas questes. Como se ver adiante, a novela Las estrellas son negras se baseia no desenvolvimento psicolgico do protagonista Israel. Alm do mais, h que se destacar que a histria se passa em Certgui, a cidade onde o prprio Palacios nasceu e cresceu, ou seja, aparecem as experincias pessoais do autor. Las estrellas son negras narra 24 horas da vida de Israel, ou Irra, um adolescente negro e pobre que na dcada de 40 do sculo XX. A obra desenvolve-se em torno das reflexes deste personagem atormentado pela fome e inconformado com a misria que o cerca, sonhando em fugir da cidade perifrica em que vive para um centro urbano onde tivesse melhores condies de vida. O romance inicialmente no teve grande visibilidade no cenrio literrio colombiano, mas em 2007 foi reeditado e aos poucos vem sendo reconhecido pela crtica literria do pas e considerado como uma obra fundamental para a literatura colombiana (COLLAZOS, 2010, p.24)Retornando questo da mestiagem antes abordada, mesmo que Arnoldo Palacio d maior destaque ao desenvolvimento do protagonista negro, tambm aparecem referncias a esta mestiagem, pois h na novela personagens mulatos, negros e brancos. No entanto, destaca-se a hierarquia existente entre estes personagens, sendo que o negro aparece como o indivduo mais sofre com a pobreza e marginalizao na sociedade chocoana.No presente estudo se buscar mostrar como isto ocorre, ou seja, como se efetiva a enunciao do discurso afro-colombiano, buscando-se observar o modo como as percepes deste protagonista negro sobre o espao e a realidade que o cercam, bem como as relaes interpessoais que mantm, contribuem para o desenvolvimento de sua subjetividade e ao mesmo tempo configuram a crtica social ao longo dos quatro captulos da novela. O romance divido em quatro partes, a saber: a primeira nomeada Hambre, onde se relata a busca de Irra por comida, a misria de sua famlia e de todo o povoado onde vive, a humilhao de pedir comida e no poder pagar, a humilhao ainda maior de pedir comida e ser assediado sexualmente (PALACIOS, 2010, p.85). Esta misria e humilhao retratada no primeiro captulo d origem ao segundo, intitulado Ira, que apresenta o dio que despertado no protagonista diante da desigualdade social que percebe em Certgui, e dos planos dele de assassinar o intendente da cidade, ainda que tal plano no passe de uma alucinao e que tenha pouqussimas chances de ser executado. Do insucesso deste plano surge a vontade de se encontrar com a personagem Nive, uma menina mulata por quem Irra tem um grande carinho, prximo ao amor e a atrao fsica. Assim, se passa ao terceiro captulo, que narra exatamente a unio carnal dos dois jovens, que aparece ao mesmo tempo como a redeno do protagonista, que consegue se afirmar como homem, e a perdio de Nive, j que neste captulo j se descreve a falta de possibilidades e a pobreza desta jovem, e tambm a futura morte desta que se concretiza no ltimo captulo, intitulado Luz Interior, que apresenta o temor de Irra em ser punido por sua relao com Nive e tambm seu grande desejo de fugir de Quibd, o que planeja fazer com o dinheiro que recebeu do mesmo turco que o havia assediado. Ali se mostra as contradies que assolam o protagonista, pois este, bastante apegado famlia, no a quer abandoar; por outro lado, h o desespero de ali ficar e morre de fome, sujeito vida miservel que a maioria leva. Por fim, Irra tem seu plano frustrado, acaba perdendo o dinheiro que havia ganhado e tambm chega atrasado ao porto, e o barco em direo a Cartagena parte antes que o protagonista embarque.Fome, ira, amor e paz: o discurso afro-colombiano.Las estrellas son negras se desenvolve em torno da realidade de Israel, de suas percepes e sensaes ao longo de um dia normal de sua vida. No h uma descrio de quem o protagonista, de onde vem, o que faz e para onde vai, todas essas informaes o leitor descobre ao longo da narrativa atravs dos dilogos e pensamentos que o protagonista tem. A voz do narrador muitas vezes se mistura com os fluxos de conscincia de Israel, pois no h um narrador em primeira pessoa no romance, mas que o terico Friedman definiu como ONISCINCIA MLTIPLA, onde a histria vem diretamente, atravs da mente das personagens, das impresses que fatos e pessoas deixam nelas. (LEITE, 1997, p. 48). A narrativa se desenvolve predominantemente em um discurso direto livre e o foco narrativo encontra-se em Irra, deslocando-se apenas uma vez para Nive, aps sua relao com o protagonista. deste modo que se busca desenvolver um protagonista negro pensante e no apenas um indivduo animalizado pela pobreza que o cerca.Nas falas diretas dos personagens o autor buscou representar a linguagem tpica do afro-colombiano, como se pode observar:Vea v... le dijo, reposado. Yo no lecho n a vust... Lo que sucere que yo vo a pejc, y mi piragua m chiquita..., aluy?... y vust mi ha di hac ruiro... Yo ju m amigo der juinao tu pagre...Pu eso ju que no te met una gajnatara pol marcriaro, y te palt eta palanca en la nuca... PALACIOS, 2010, p.30)[footnoteRef:11] [11: -Veja bem...-disse a ele pausadamente Eu no fiz nada a voc...o que acontece que eu vou pescar e minha canoa muito pequena...entende? E voc vai fazer barulho...Eu fui muito amigo do seu finado pai...por isso que no te meti a mo por malcriado e te parti esse remo na nuca...]

Segundo Lawo-Sukan, a linguagem outra caracterstica representativa da identidade afro-colombiana, uma mescla de espanhol com marcas fonticas africanas. Ela se caracteriza pela elipse das slabas e fonemas [RA y S] em algumas palavras, a assimilao de fonemas(/i/ = /r/; /r/ = /d/; /r/ = /l/; /j/ = /s/); a elipse ou aspirao da consoante /d/ antes da vogal /e/ (espu = despus), o fonema /j/ em posio inicial se converte em /f/(jiejta = fiesta); o /l/ em /b/ ( lujca = busca) e a vogal tnica // substitui a terminao infinitivo -ar (va a regal = va a regalar) (LAWO-SUKAN, 2011, p. 45). A representao dessa linguagem em toda a novela mostra a inteno de aproximar-se o mximo da realidade dessa populao.Inicialmente, a informao mais concreta que se tem a fome de Israel, que no se alimenta h quase 24 horas e, alm disso, pela descrio de suas roupas, j se sabe que ele um garoto pobre. O jovem est buscando o que comer e entra no barco de um velho pescador sem o consentimento do mesmo, o que em um primeiro momento gera certa tenso entre os dois personagens, mas que amenizada quando o mais velho, ao reparar bem em Irra, lembra-se que conheceu o pai do garoto, segundo ele, um bom homem. Os dois esto tentando pescar no rio Atrato, espao importante para a cidade e tambm para a narrativa, j que onde se inicia e termina a histria. Neste ambiente, j nas cenas iniciais, se delineia as desigualdades sociais e raciais da cidade em que Irra vive. Durante a pescaria o jovem observa uma lancha luxuosa onde jovens brancos e mulatos se divertem, contrastando assim com a situao do protagonista, que est pescando para no morrer de fome:Ya se oa el rugido de los motores de pequeas lanchas repletas de baistas, lanchas rojas recorriendo el ro, agitando las aguas. Sabroso deba de ser baarse as, y que cuando le disminuyeran la velocidad uno se lanzara a nadar y que luego volvieran a recogerlo a uno... Eran lanchas del Gobierno y se las prestaban a los blancos. El intendente era blanco tambin, tena roce social, era de primera, por eso el intendente facilitaba tales vehculos a los empleados blancos (PALACIOS, 2010, p. 31).[footnoteRef:12] [12: J se ouvia o barulho dos motores das pequenas lanchas repletas de banhistas, lanchas vermelhas percorrendo o rio, agitando as guas. Devia ser gostoso se banhar assim, se joga ao mar e nadar quando diminussem a velocidade e esperar que depois viessem a busc-lo...eram lanchas do Governo e se emprestavam aos brancos. O intendente tambm era branco, tinha prestgio social, era de primeira, por isso facilitava aqueles veculos para os empregados brancos.]

Israel s pode imaginar e desejar aquela diverso, e ele faz isso a todo o momento. No deixa de desejar as belas jovens que se divertem na lancha, mas intu que nada daquela realidade lhe pertence pois negro e pobre. A desigualdade se ressalta ainda mais logo em seguida, quando o protagonista comea a passar mal dentro do pequeno barco, no conseguindo nem mesmo vomitar, porque no tinha nada no estmago. A pescaria malsucedida e Israel continua faminto. O protagonista vai para casa, um barraco imundo, sem nenhuma estrutura, onde mais uma vez se ressalta a existncia de recursos, mas a restrio que pobres e negros sofriam dos mesmos:La lmpara elctrica estaba pegada a la casa, pero no para ellos; sus destellos solo se esparcan hacia la playa arenosa, hacia la calle, hacia el espacio. Ellos se alumbraban con lmpara de kerosene... Ah, vida!...(PALACIOS, 2010, p. 38).[footnoteRef:13] [13: A lmpada eltrica estava junto a casa, mas no para eles, sua luz s iluminava at a praia, at a rua, at o espao. Eles s tinham a lmpada de querosene...ah, vida!]

Assim, h energia eltrica, mas esta, mesmo to perto da casa de Irra, no est ali para ele e sua famlia. Os benefcios so sempre para os estrangeiros, enquanto os negros devem contentar-se com a misria e lutar muito para sobreviver. Aos negros e pobres nem os menores e mais simples prazeres so permitidos: Daba gusto ponerse una camisa limpia, almidonada, bien soleada; era agradable el olor de la ropa limpia. Pero cun pocas veces l senta sobre su cuerpo el crujido de la ropa almidonada([footnoteRef:14]PALACIOS, 2010, p. 38). Israel tem pouca instruo, mas no difcil para ele perceber as desigualdades latentes entre negros e brancos, pobres e ricos, dentro do ambiente em que vive. Essa marginalizao aparece todo o tempo na narrativa, j que atinge diretamente o jovem Israel. O jovem no logra compreender o porqu de tanta injustia social e no incio do primeiro captulo, Hambre, que comea a se revoltar contra esta realidade, questionando os motivos divinos para tanta misria e sofrimento: [14: Dava gosto vestir uma camisa limpa, engomada e bem seca; era agradvel o cheiro de roupa limpa. Mas quo poucas vezes ele sentia sobre seu corpo o roce de uma roupa engomada! ]

Unos s tenan para desayunarse, almorzar, merendar. Los sirios y los antioqueos eran propietarios de grandes almacenes... Los blancos estaban empleados en el gobierno. Esos vestan bien y fumaban cigarrillos finos. Pero los negros nada. Maldita nada! La mam se mataba trabajando da y noche. Lavaba ropa, planchaba, cocinaba, haca vendajes... Sin embargo, siempre lo mismo. Dios no se acordaba de ellos? Acaso ellos no rezaban bastante? No le encendan muchas velas a la Santsima Virgen? Irra pens que tal vez era mejor morir (PALACIOS, 2010, p. 45). [footnoteRef:15] [15: Uns sim podiam tomar caf, almoar e lanchar. Os srios e os antioquenhos eram proprietrios de grandes armazns...os brancos estavam empregados no governo. Esses se vestiam bem e fumavam finos cigarros. Mas para os negros nada. Maldito nada! Mame se matava trabalhando dia e noite. Lavava e passava roupa, cozinhava e vendia...ainda sim, sempre o mesmo. Deus no se lembrava deles? Por acaso eles no rezavam o bastante? No acendiam muitas velas Santssima Virgem? Irra pensou que talvez era melhor morrer.]

A conscincia da prpria misria lentamente consome o protagonista, que pouca sada v para a sua desgraa. O jovem recm terminou o ensino bsico e necessitava de uma bolsa de estudos para continuar estudando, mas por sua origem social, no teve acesso a tal benefcio. Ao final da novela essa informao que se passa no incio da narrativa ganha mais importncia, pois quando est conversando com seu amigo Ivan, os dois jovens se recordam o quanto estudavam e se esforavam: Me acuerdo cuando pasaba por aqu, todo asustado, a las dos de la maana... Ejtudeaban bastante, eh?... Aquel corredor, con el tablero, nos sentirn ms tarde... ramos muchos... Unos ocho nos metamos all para preparar los exmenes... Un da nos amanecimos... Nos pill la maestra... (PALACIOS, 2010, p.135)[footnoteRef:16] [16: - Me lembro que passava por aqui todo assustado s duas da madrugada...-Estudavam bastante, n?- Aquele corredor, com o tablado, nos sentiro no futuro...ramos muitos...uns oito que se metiam ali para estudar para as provas...um dia amanhecemos...a professora nos pegou...]

Tal fato desconstri qualquer ideia de meritocracia, pois mesmo se esforando os garotos dali no conseguiam seguir muito adiante, as bolsas de estudos foram distribudas entre os brancos e para eles no havia nem emprego, apenas humilhao e desprezo: Toda la maana estuvo buscando trabajo: no solamente lo indignaba el no hallar colocacin, sino que le provocaba pisotear al ingeniero de la carretera por haber tratado a Irra en semejante forma humillante [footnoteRef:17](PALACIOS, 2010, p. 87). No apenas a pobreza que atormenta o protagonista, mas tambm as humilhaes que ele e sua famlia sofrem cotidianamente. Em determinado momento, sem ter o que comer, nem dinheiro para comprar alimentos, a me de Israel pede para que ele v at o armazm de um conhecido e lhe pea para vender comida fiada. Israel sai de casa com tal objetivo, mas durante o caminho se lembra que a famlia j deve para o comerciante e, conhecendo a personalidade de tal homem, teme ser humilhado publicamente ao pedir comida. Chegando ao armazm, o encontra cheio de clientes conversando com o proprietrio, e temendo ainda mais a negativa diante de seu pedido, pensa em roubar a comida, mas no consegue seguir com este plano. Naquele ambiente, todos so hostis, descritos de maneira negativa, fisicamente desagradveis. Esto lendo coletivamente um artigo de jornal depreciativo sobre um candidato, aparentemente socialista, e ali demonstram suas convices polticas conservadoras. Em tal cena perceptvel certo posicionamento poltico do prprio autor da novela, j que os personagens leitores que apoiam tal artigo e defendem o governo liberal so homens sujos, ignorantes e brutos (PALACIOS, 2010, p. 69). [17: Esteve toda a manh procurando trabalho...no se indignava apenas de no conseguir colocao, mas tinha vontade de pisotear o engenheiro da construtora por ter tratado Irra de forma to humilhante.]

Em seguida, excludo dos demais que esto na loja, Israel l em um jornal algo que no compreende bem, mas que o assusta muito e que fica em sua mente, a notcia sobre o linchamento de um negro nos Estados Unidos, remetendo assim ao racismo do pas norte-americano, situao de descriminao contra os negros que era gritante na poca da escrita do romance de Arnoldo Palacios. A leitura daquela notcia e toda a situao dentro do armazm s aumenta sua indignao e angstia:Pase una mirada sobre el grupo. Se destacaba Ramn, el hombre-lector (as lo vea Irra), saboreando un vaso de avena. Por qu aquella turba de miserables gozaba leyendo el peridico?... Por qu fincaban tanta fe y esperanza en esas palabras?... Qu significaba linchar?... Palabra de honor que Irra no saba exactamente el significado de linchar, pero por el contexto se lo imaginaba... Aquella noticia le infunda terror. S... linchado un negro!... Deba de ser que tambin all el negro era mal mirado por los blancos... La sangre le herva y el cuerpo le temblaba... Maldito sea!... Cmo diablos le deca a Pastor lo del arroz, los pltanos, la manteca?... Mucha gente all para exponerse a la vergenza (PALACIOS, 2010, p. 77).[footnoteRef:18] [18: Observou o grupo. Se destacava Ramn, o homem-leitor (assim o via Irra), saboreando um copo de aveia. Por que aquele monte de miserveis gozava lendo o jornal? Por que tinham tanta f e esperana naquelas palavras? O que significava linchar? Palavra de honra que Irra no sabia exatamente o significado de linchar, mas pelo contexto imaginava...aquela notcia lhe dava horror....sim...linchado um negro! Provavelmente l o negro tambm era mal visto pelo branco...seu sangue fervia e seu corpo tremia...maldio! Como falar com Pastor sobre o arroz, as bananas e a manteiga? Muita gente ali para se expor vergonha]

A referncia situao de discriminao de negros em outro pas ressalta a preocupao do autor em tratar da questo racial como um todo em seu romance, mostrando que no apenas na Colmbia existia desigualdade racial. Interessante notar que na mente de Israel se mistura o horror pelo linchamento de um negro, a raiva em relao ao conforto dos brancos e tambm a preocupao por no conseguir pedir comida fiada para o dono do armazm, de certa maneira so fatos que esto relacionados. Por fim, o protagonista deixa o armazm sem nada para comer e ainda com mais fome, pela segunda vez malsucedido ao tentar se alimentar. Na rua a misria ainda maior, est cheia de mendigos e pessoas miserveis, doentes, o que s aumenta a indignao de Israel:Existir mendigos all... Esto le pareca incomprensible. Pero... acaso Irra mismo no era uno de tantos mendigos? Y no eran parias los que estaban leyendo el peridico, y la parranda de infelices que atestaban da y noche la calle? (PALACIOS, 2010, p.79)[footnoteRef:19] [19: Existir mendigos ali...isto era incompreensvel para ele. Mas...acaso Irra tambm no era um de tantos mendigos? E no eram prias os que estavam lendo jornal e aquele monte de infelizes que vagavam dia e noite pela rua? ]

O protagonista chega a sentir dio daquelas pessoas miserveis, condena a inrcia de todos, num momento de desespero, quando se sente parecido com aqueles que considera dignos de desprezo. Por fim, chega concluso que a culpa de toda aquela situao do governo. Influenciado pela notcia de protestos e confuses populares em uma cidade prxima, comea a pensar, de certo modo delirar, em matar o intendente da cidade, como um ato redentor. Ele mantm essa ideia por pouco tempo, at ver uma mulher negra rastejando pela rua, sendo motivo de riso para outros negros, recebendo um pedao de queijo podre de um comerciante pobre, que para ela se torna um bom homem. Ali aparentemente Israel desacredita de qualquer tipo de coletividade e volta a sua ateno para jovens que esto nadando no rio:Irra cruz la va, saturado de tales visiones. La playa colmada de baistas. El ro sereno... Agradable navegar. S. Deba irse a Cartagena. En Cartagena cambiara su vida. Calor sofocante. Se palp la cara sudorosa; en la espalda senta la camisa sudada, pegajosa. Iba a baarse l tambin. Deba estar muy confortable el agua. Racimos de muchachas (PALACIOS, 2010, p. 81).[footnoteRef:20] [20: Irra cruzou a rua saturado de tais vises. A praia estava cheia de banhistas. O rio sereno...agradvel navegar. Sim, devia ir embora para Cartagena. Em Cartagena mudaria de vida. Calor sufocante. Passou a mo pelo rosto suado; sentia a camisa molhada, empapada de suor nas costas. Tambm ia se banhar. A gua devia estar muito agradvel. Muitas garotas.]

Assim, o jovem demonstra mudar de ideia rapidamente e ser bastante instvel em relao aos seus sentimentos. No tendo grandes perspectivas para o futuro, Irra se deixa levar por emoes e sensaes momentneas, no ficando claro o que sonho, alienao e o que real e o leitor continuar com esta sensao por toda a novela. Israel resolve ento ir a um outro estabelecimento, pedir dinheiro emprestado a um comerciante aparentemente amigvel, para ento poder ir embora de Certgui. Chegando em tal armazm, sofre uma humilhao que no esperava, o que lhe infunde o dio que sentira outrora. Na loja de roupas de um comerciante turco, Israel assediado sexualmente pelo proprietrio, que o beija ao lhe dar dinheiro. O jovem sente que mais uma vez lhe tiram algo que era seu por direito, sua masculinidade, se revoltando novamente contra toda aquela injustia:Irra se morda los labios y quera arrancrselos para arrancar el beso malnacido del turco, beso vivo an en su boca... Maldita sea!, exclam abofetendose la mejilla... Se estruj la cabeza entre las manos ardientes, y tirndose los motosos cabellos, motas enmaraadas, Irra empez a llorar de rabia; lloraba de desesperacin; lloraba de ansiedad; lloraba al sentirse tan miserable, tan empequeecido, estropeado por la vida a cada paso. Qu haba hecho l para sufrir tanto? Irra se iba haciendo hombre. Cunto haba deseado l, impaciente, por llegar a ser hombre! (PALACIOS, 2010, p. 86)[footnoteRef:21] [21: Irra mordia os lbios, querendo arranc-los para arrancar o maldito beijo do turco, vivo ainda em sua boca...maldio! , exclamou se esbofeteando...apertou a cabea entre as mos ardentes e arrancou os cabelos, montes de cabelos emaranhados. Irra comeou a chorar de raiva, chorava de desespero, chorava de ansiedade, por sentir-se to miservel, to pequeno, estropeado pela vida a cada passo. O que havia feito para sofrer tanto? Irra estava se tornando um homem. Quanto havia ansiado, impaciente, para chegar a ser um homem! ]

A partir do segundo captulo o leitor acompanha as alucinaes de Israel planejando assassinar o intendente da cidade. Tal plano motivado pelas situaes humilhantes e injustas que o rapaz passa, logicamente no parece que ter xito, mas a forma que o protagonista, atormentado pela fome, encontra para resolver a situao que considera injusta. Essa revolta cresce gradativamente e junto com ela o plano de assassinar o intendente, influenciando todo o ser de Israel. A realidade externa afeta tanto o nimo do protagonista que o impulso assassino que ele momentaneamente tem descrito deste modo:La vida lo llamaba a gritos. Las paredes le recordaban una misin. Las tablas le hablaban impulsndolo a cumplir el deber impuesto por los latidos de su corazn y el calor de su sangre. Y l, Irra, iba a responder a la voz de su ser. Si le peda muerte, contestara matando. (PALACIOS, 2010, p.53)[footnoteRef:22] [22: A vida o chamava a gritos. As paredes o lembravam de uma misso. As tabuas lhe falavam, impulsionando-o a cumprir o dever imposto pelos batimentos de seu corao e o calor de seu sangue. Ele, Irra, ia responder a voz de seu ser. Se lhe pedia morte, contestaria matando. ]

A narrativa mostra, reiteradamente, o quanto a realidade social atormenta e degrada o indivduo. A desigualdade social, a fome em si, acabam por degradar e mudar completamente o protagonista, que chega a ser agressivo at mesmo com a prpria famlia. Israel chega a ir at a intendncia, mas a narrativa deixa em aberto se ele chega a entrar ou no dentro do prdio, mostrando apenas que em algum momento o protagonista cai de alguma escadaria, podendo ser perto da prpria casa ou da intendncia. Mais uma vez, no entanto, Israel tem um plano, um objetivo seu, frustrado. Em toda a sua trajetria Israel sofre com essas frustraes: no consegue emprego, no ganha bolsa de estudo, no consegue pescar, no tem coragem para pedir comida fiada, no consegue de forma digna dinheiro emprestado. A vida s lhe nega aquilo que ele necessita. Isso acontece at o fim da narrativa, pois ao tendo como plano ir para Cartagena com o dinheiro que recebe do comerciante turco, Israel no alcana pegar o barco, que parte sem ele. Se em algum momento o protagonista pensa em ficar e se casar com a jovem Nive, uma mulata com quem Irra cresceu e com quem mantm uma relao sexual, esse plano tambm no se desenvolve, pois pouco antes de ver o barco partindo, Israel descobre que moa morreu naquela mesma noite, pouco antes de ele deixa-la. Israel permanece em Certgui, sem nenhum outro plano em vista, a no ser sobreviver.A relao com Nive um ponto importante da novela, um dos nicos momentos em que o protagonista est com algum que lhe faz bem, e que tem um desejo seu realizado. Aps o assdio que sofre do comerciante turco, quando sua masculinidade ultrajada, e tambm outras situaes, com prostitutas, com as quais Irra no consegue concretizar seus desejos sexuais, Israel finalmente se relaciona com quem quer e se sente realmente homem. Assim como o plano de matar o intendente da cidade, a ideia de ir procurar Nive vem mente de Israel desde o incio da novela, mas apenas no terceiro captulo que ele realmente se locomove at a casa da moa, cuja famlia muito querida por Israel. Ele vai at l com a inteno de se despedir de todos, mas ao chegar encontra apenas Nive com outra criana que est dormindo. Israel comea ento a reparar que a jovem j no mais uma criana e que est se tornando uma mulher, deixando ento de v-la como espcie de irm e desejando-a. Nive, por sua vez, numa mescla de inocncia, confiana e carinho em relao ao protagonista, se entrega a ele. Logo aps, no entanto, Israel se arrepende do ato, por temer alguma represlia por parte da famlia da jovem. Ele a deixa, mesmo diante de seus pedidos para que fique. Nesse momento o foco da narrativa se centra na moa, que tambm de uma famlia pobre, sendo rf de pai: He aqu la primera sensacin de soledad dentro de Nive. Ahora empez a comprender cmo jams haba ella pensado en la realidad de su existencia, diferente de la de muchos otros, hijos de padres como los padres de Nive. Ah, la muerte! La muerte haba privado a Nive de una vida mejor (PALACIOS, 2010, p. 127)[footnoteRef:23] [23: Aqui est a primeira sensao de solido dentro de Nive. Agora ela comeou a compreender como jamais havia pensado na realidade de sua existncia, diferente da muitos outros, filhos de pais como os pais de Nive. Ah, a morte! A morte havia privado Nive de uma vida melhor.]

Impelido por suas preocupaes o protagonista nem chega a pensar na situao de Nive, que ali est abandonada a sua solido, mais uma entre muitas outras jovens mulatas e pobres da regio. Tambm a j se anuncia que a jovem morrer ao fim da trama, que no poder seguir em frente, ainda que a vida que provavelmente teria no seria nada especial, pobre como a de seus pais. Tambm interessante notar aqui como se do as relaes inter-raciais naquela sociedade, ao pensar na possibilidade de se casar com Israel:No era el deber de Irra casarse con ella?... irra!... irra!... no! Imposible todo! Mi madre misma me va a cortar la cabeza... S... Es capaz... Ha dicho que para verme casada con un negro preferira verme tendida en una mesa, con cuatro velas encendidas... (PALACIOS, 2010, p. 128)[footnoteRef:24] [24: No era o dever de Irra de casar-se com ela? Irra! Irra...no! Impossvel! Minha me mesma vai cortar minha cabea...sim... capaz...disse que preferia me ver em cima de uma mesa, com quatro velas acesas a me ver casada com um negro...]

perceptvel aqui como mesmo entre outros afro-colombianos, sendo que o tom da sua pele, que provavelmente tambm j carrega a marca da pobreza, faz com que seja visto como inferior por mulatos, ainda que estes tambm estejam em situao de marginalizao na sociedade. Ser negro, naquela sociedade colombiana, significa carregar um passado de opresso, bem como discriminao. Nascer baixo uma estrela negra nascer com um destino de dificuldades.No entanto, a novela tambm mostra como ali todos estavam sendo subjugados pela pobreza, em uma sociedade onde o estrangeiro tinha mais acesso aos bens materiais do que qualquer chocoano: Iba Irra caminando por la carrera primera. Casas de blancos. Viejos caserones derruidos, paredes desvencijadas. Por qu eso, si los blancos eran ricos y ganaban sueldo como empleados del gobierno? Lo asalt la idea de que los blancos eran pobres tambin. Quiz no tan miserables como los negros. No sera ms bien una miseria general? (PALACIOS, 2010, p. 151)[footnoteRef:25] [25: Irra ia andando pela primeira avenida. Casas de brancos. Velhos casares deteriorados, paredes desmanteladas. Por que isso, se os brancos eram ricos e ganhavam dinheiro como empregados do governo? Lhe assaltou a ideia de que os brancos tambm eram pobres. Talvez no to miserveis quanto os negros. No seria uma misria geral?]

Nesta passagem evidencia-se a crtica social, que tambm permeia toda a novela, denunciando-se a pobreza em que vivia a populao de Certgui, uma regio que, por conta de seu isolamento geogrfico e falta de investimentos governamentais, pouco desenvolvida (CAPOTE-DAZ, 2014, p.82). A misria cerca a todos, ainda que se aproxime muito mais daqueles que nascem com uma estrela negra, destinados a terem menos oportunidades que todos. esse o questionamento, alis, que Israel faz em determinado momento:Algunos nacemos para morir sin tregua... Otros nacen para la alegra. Son estrellas diferentes. Las de ellos titilan eternamente y tienen el precio del diamante. Y la ma, Seor, es una estrella negra... Negra como mi cara, Seor! (PALACIOS, 2010, p. 91)[footnoteRef:26] [26: Alguns nascem para morrer sem trgua...outros nascem para a alegria. So estrelas diferentes. As deles brilham eternamente e valem o preo de um diamante. E a minha, Senhor, uma estrela negra...negra como a minha cara, Senhor! ]

Aqui a palavra negra adquire um valor negativo, mas toda a narrativa leva a refletir sobre o quanto a sina de quem negro construda socialmente, mostrando como um jovem negro dilacerado pela realidade humilhante que o cerca, por mais que se esforce para mudar o prprio destino. H a possibilidade tambm de refletir sobre o prprio ttulo do romance, Las estrellas son negras, pois no h ali uma definio de quais estrelas so negras, havendo uma abrangncia maior, o que se confirma atravs de momentos da narrativa em que se mostram que brancos tambm sofriam com a pobreza e a corrupo que existia na pequena cidade. Assim, a denncia social que se apresenta na obra de Arnoldo Palacios, que se concretiza na trajetria do jovem negro Irra, no se limita aos negros, mas todo um extrato marginalizado da populao. Diante de toda a pobreza que o cerca e da falta de expectativas de um futuro melhor, sair daquela cidade parece ser a nica alternativa para Israel. No entanto, esta tentativa tambm no bem-sucedida. Aps um dia atormentado pela fome, Israel no consegue chegar a tempo da partida do barco que iria para Cartagena, ficando aparentemente preso quela vida. No entanto, possvel inferir tambm, que o fato de Israel no conseguir sair de Crtegui esteja relacionado ao fato de que a fuga da cidade no ser efetivamente uma soluo para a misria do jovem. Como a prpria me do rapaz adverte, bem possvel que ele encontrasse bastantes dificuldades para sobreviver em uma cidade maior, tendo ainda o agravante de estar sozinho, sem ningum para lhe ajudar (PALACIOS, 2010, p. 149).Assim, o desfecho do romance, com o insucesso da viagem de Isral, aponta para a necessidade de buscar foras para se pensar num futuro ali mesmo em Certgui. Tanto que ao final, mesmo tendo seus planos frustrados e de passar por um dia atormentador, Irra consegue se sentir su alma invadida de confianza. Y si alguien hubiera observado de cerca su rostro se hubiera contagiado de una humilde alegra pursima.[footnoteRef:27] (PALACIOS, 2010, p.164). Isto ocorre depois do protagonista observar cenas significantes: a primeira a de um grupo de pescadores enfrentando o rio Atrato, com sua forte correnteza, saindo vitoriosos da luta contra as guas e conseguindo fazer seu trabalho. Em seguida, Israel observa como um velho rancho consegue permanecer firme mesmo diante da fora da correnteza do rio: [27: Irra sentiu sua alma invadida de confiana. E se algum houvesse observado de perto o seu rosto teria se contagiado de uma humilde alegria purssima. ]

Cun fuerte aquel rancho! S. Fuerte. Ms fuerte que un hombre. El ro poda con una roca y sin embargo no lograba arrastrar aquel rancho. Las olas desarraigaban los rboles gigantescos. Y este rancho paldico desafiaba su furia. Y all haba vivido una familia pobre, como la de Irra. El viejo de la casita tena cerca de noventa aos y an poda timonear su piragua, castigar las olas satnicas con su canalete rebelde. Y el hambre de hoy no lo haba doblegado maana[footnoteRef:28] (PALACIOS, 2010, p. 161). [28: Como era forte aquele rancho! Sim. Forte. Mais forte que um homem. O rio podia com uma rocha e ainda assim no conseguia arrastar aquele rancho. As ondas arrancavam as rvores gigantescas. E este rancho deteriorado desafiava sua fria. E ali vivia uma famlia pobre, como a de Irra. O velho da casinha tinha cerca de noventa anos e ainda podia pilotar sua canoa , castigar as diablicas ondas com seu canalete rebelde. E a fome de hoje no o havia subjugado o amanh.]

Assim, possvel observar a resistncia do velho e aparentemente frgil rancho como a possibilidade de resistncia daquele povo negro e sofrido de Certgui, que no se deixa vencer pela fome e por outras tantas adversidades, inclusive a fora de uma natureza to exuberante que domina o local. Ao observar a resistncia do velho rancho, Israel se recorda de Nive, mas dessa vez sem o remorso ou o medo que antes pairava em torno da garota, pensa no que fizeram e entende que os dois haviam se amado puramente e, irracionalmente, pensa na possibilidade de construir uma vida com a jovem, confundindo o leitor sobre a morte ou no da personagem, que passa a ser a fonte de esperana para um futuro melhor:Se quedara all. Luchara... Y el da de hoy sera otro da. Y como el da de maana lo sorprendera con las simientes en la mano... Nive!... De los montes, del ro, del cielo lo satur la cancin de la vida. Y toda aquella fuerza provena de las entraas de Nive (PALACIOS, 2010, p.162)[footnoteRef:29] [29: Ficaria ali. Lutaria...e o dia de hoje seria outro dia. E como o dia de amanh o surpreenderia com as sementes na mo...Nive! Dos montes, do rio, do cu o encheu a cano da vida. E toda aquela fora provinha das entranhas de Nive.]

Em seguida, Israel observa alguns garotos negros se divertindo na beira do rio, demonstrando toda a alegria da infncia, brincando e brigando sem se importar com quem os observava. Tais cenas levam Irra a se sentir bem pela primeira vez no romance, a perder toda a tenso que apresenta durante a narrativa inteira. A partir delas se entrev a possibilidade de resistir, assim como o velho rancho na beira do rio, de lutar, como os pescadores que estavam na canoa e tambm de manter a esperana e alegria de um futuro melhor. Por fim, apontam que se h algum caminho para Irra esse no longe de seus amigos e de sua famlia, mas sim buscando estar perto de seus familiares e ali mudar a realidade que o cerca.

Concluso possvel identificar na obra de Palacios aquilo que Manuel Zapata tanto destacava da narrativa hispano-americana, a denncia social, o desenvolvimento psicolgico do personagem profundamente influenciado pelo entorno social, alm do questionamento das relaes raciais colombianas, denunciando-se a marginalizao do afrodescendente. Ao buscar mostrar a realidade dos afro-colombianos, inclusive representando a linguagem caracterstica de tal populao, atravs da perspectiva de um personagem negro, tambm se percebe ali a expresso da negritude, ou seja, a busca por mostrar a opresso sofrida pela populao afrodescendente e tambm reafirmar sua identidade. Indo alm, e relacionando a condio do afrodescendente ao meio em que est inserido, a sociedade multicultural colombiana, Las estrellas son negras aparece ento como a expresso autntica de um discurso afro-colombiano.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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