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F F F F Prosa Editora Literária Prosa, .º 5 Força do Exemplo Força do Exemplo Força do Exemplo Força do Exemplo (PARTE III) Maria Galito 2001

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Prosa

Editora Literária

Prosa, �.º 5

Força do ExemploForça do ExemploForça do ExemploForça do Exemplo (PARTE III)

Maria Galito

2001

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Maria Galito 77 Força do Exemplo, 2001

VII Vamos a caminho da Turquia. Tróia, aqui vou eu! Passaram-se algumas horas. Separámo-nos enfim do grupo e estamos pela nossa conta,

no bar do nosso hotel. O check-in das malas foi feito hoje de manhã, porque só tínhamos direito aos quartos até ao meio dia. E agora aproveitamos para fazer tempo, antes da partida para o aeroporto, rumo a Istambul.

- A que horas é o avião? – pergunta a mãe, sentada num sofá muito fofo, junto ao bar, com a Joana ao colo.

- Ás 20h10m, hora de Atenas. – responde-lhe o pai, antes de o confirmar nos bilhetes. - Tens a certeza, João Pedro? – insiste a mãe, espreitando para as datas nos bilhetes. - Não to estou a dizer? – responde-lhe, estranhando a desconfiança. - Sim mas às vezes és um bocadinho despistado. – acrescenta a nossa mãe, sorrindo.

E já para todos – Temos de chegar ao aeroporto pelas 18h. Que horas são? – sim, porque a mãe nunca usa relógio. É incrível como, hoje em dia, alguém consegue passar sem ele. – 16h50m? Bom, mas não tem porque ser cedo demais. É melhor fazer as coisas com tempo. – e levantando-se, enquanto termina de fazer a trança à Joana – Vamos a despachar. João Pedro, vai chamar um táxi.

O avião prepara-se para descolar. A mãe guarda os nossos casacos sobre a maleta no porta bagagens, e o pai parece absorto com o jornal. Isto enquanto a Joana se apodera dos auscultadores que as hospedeiras de bordo emprestaram aos passageiros. Ouve rádio, escapando, assim, a qualquer tipo de conversa.

Em compensação, a Leonor ainda não se calou desde que deixámos o hotel: - Não cheguei a despedir-me do Rámon. – lembra-se agora. Sorrio. Esta rapariga não tem emenda. - Despediste-te dele pelo menos duas vezes, se a memória não me falha. Vira-se para a pequena janela que espreita uma paisagem de caixotes e um carro que

leva as escadas do avião, com um homem de rabo de cavalo e barriga e meia a conduzi-lo. - Coitado. Para o Rámon, amanhã acabam-se as férias. A mãe vai buscá-lo, a ele e às

irmãs, a Barcelona no próximo fim-de-semana. Eles estudam em Madrid. Sabes que os pais são divorciados? – e cruzando os braços – Deve ser muito aborrecido dançar assim de uma casa para outra. Ele tem um irmão mais pequeno, filho da mãe com outro homem.

- As pessoas habituam-se. Ela encolhe os ombros: - Pois, suponho... Prossigo, folheando a revista do avião de trás para a frente, para ver primeiro os mapas

com as rotas de voo: - São muitas as famílias que, hoje em dia, vivem sistemas parecidos. Aliás, o caso

dos nossos pais, que nunca se divorciaram e se mantêm fieis ao primeiro matrimónio, partilhando a casa com os filhos, é cada vez mais a excepção. – comento, antes de mudar a página – Mas ás vezes, o divórcio é a única solução. É preferível a uma vida de acomodação e de sofrimento.

Leonor faz cara de caso:

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Maria Galito 78 Força do Exemplo, 2001

- Olha quem fala. Sancha, tu acreditas na instituição do casamento. - Eu acredito. – reafirmo, sem problemas – Mas a vida não é teoria. Leonor insiste, num riso mordaz: - Vê o exemplo dos nossos pais. Andam sempre à briga mas estão sempre juntos. É

porque se adoram, não achas? Folheio as páginas mais depressa: - Estamos em férias. Não quero falar sobre nenhum desses assuntos. Encosta-se muito direita na cadeira, voltando-se para a janela. E o avião, que já ameaçava com os seus motores, começa a andar pela imensa estrada

de asfalto. Até iniciar o seu movimento ascendente, depois de um arranque vertiginoso, rasgado por muito barulho.

- E agora, terra de mouros! – exclama Leonor, de braço no ar. Pondero sobre o programa de viagem que nos espera: - Hoje já não teremos tempo de ir ao centro histórico mas amanhã não podemos

esquecer de visitar, pelo menos, três coisas: o palácio de Topkapi, a Mesquita Azul e Santa. Sofia.

Apresenta-me uma cara cheia de dentes. Tal como fazia quando era pequena: - E no dia seguinte, Tróia! Fantástico... – e bate as palmas. Encolho os ombros, disfarçando o interesse pelo recinto arqueológico: - Quando lá chegarmos depois falamos. Dramatiza, gesticulando muito com as mãos: - Credo, não te corre o sangue pelas veias? Querias muito visitar essas ruínas, que eu

sei. Por isso é que o pai prolongou a viagem. – e dançando com os ombros – Não que eu me queixe. Não é por Tróia que venho mas por Istambul, a capital da Turquia.

Escondo o riso entre as páginas da revista, fingindo indiferença: - Istambul não é a capital da Turquia. – corrijo-a – Ancara é que é. Faz cara de espanto: - A sério? Estava mesmo convencida do contrário. Decido-me por um pouco de História: - Istambul, que antes se chamava Bizâncio e, antes ainda, Constantinopla em honra

do imperador Constantino foi capital durante muitos séculos. Primeiro do Império Romano do Oriente, depois do Império Otomano. Mas já em tempos da actual Turquia, Ancara passou a ser o centro político e administrativo do país. Enfim, não é caso único. Os EUA, por exemplo, transferiram a sua capital de Nova York para Washington. No Brasil, o Rio de Janeiro foi substituído por Brasília.

Encolhe os ombros, de cara colada no vidro: - Pois cá para mim, capital ou não, Istambul é para ver. - Ah, mas em relação a isso não restam dúvidas. Istambul, a cidade dividida entre

dois continentes (Europa e Ásia) deve valer a fama que tem. Leonor parece despertar para outros interesses: - Tróia é junto a Istambul? - Tanto quanto sei, é mais a sul. Mas ela divaga, decidida a fazer paralelos meio estranhos: - Em Micenas reinava Agamémnon, em Tróia reinava... Não esqueceu o nome do chefe da armada aqueia? Estou impressionada.

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Maria Galito 79 Força do Exemplo, 2001

Reparo que me olha fixamente. Reclama a minha participação na conversa. Neste caso, para completar a sua frase. Faço-lhe enfim a vontade:

- Em Tróia reinava Príamo, rei poderoso, pai de cinquenta filhos; e umas quantas filhas, também.

- Cinquenta? – surpreende-se, de olhar arregalado – Mas o homem não fazia mais nada na vida?

Não me impressiono com facilidade: - “Cinquenta” pode corresponder a um número simbólico. Seja como for, o que a

lenda pretende explicar é que Príamo era um rei viril como poucos. - Calculo. – troça a Leonor, estendendo as pernas ao comprido. Acabo por acrescentar: - O faraó Ramsés II, mais ou menos contemporâneo de Príamo, tinha mais de uma

centena de filhos. Mas é uma ilusão pensar que eram todos seus. Alguns eram adoptados.

- Mas isso é batota! – exclama, de semblante cerrado – Estou a começar a gostar de Tróia. – ao que, virando-se para mim – Qual é o teu herói favorito?

- Da Guerra de Tróia? A pergunta é desnecessária, atendendo ao contexto. Mas numa conversa com a Leonor,

as confirmações são bem-vindas. Ela muda de interesse e de tema com a rapidez de um relâmpago.

Ainda não respondi. Ela pensa que hesito: - Então, não respondes? Folheio a revista. A página mostra o mapa das rotas que este avião realiza sobre a

Europa; incluindo a que atravessa o Mar Egeu com destino a Istambul. Respiro fundo. - O meu preferido é Heitor. A mana continua a leste: - E esse é quem? - Segundo Homero, é o primogénito do rei Príamo. Comandava o exército constituído

pelos troianos e pelos seus aliados. Enfim, liderava as forças adversárias dos gregos. - Ele é dos bons ou dos maus? - A Ilíada não é a Bíblia. – ouço-me responder. - Então deixa-me reformular a perguntar. Ele é dos vencedores ou dos perdedores? Assim se traduz, enfim, a sua verdadeira curiosidade. - Fizeste-me duas questões muito diferentes, é preciso que saibas. – aviso-a. Ela

encolhe os ombros. Abano a cabeça e prossigo. – Na Lenda de Tróia, um herói que, supostamente, reúna mais virtudes não é necessariamente aquele que sobrevive ao duelo, à batalha, ou mesmo à guerra. Por exemplo, a Ilíada termina com o enterro de Heitor.

- Cruzes, mas isso não tem graça nenhuma! – exclama, aturdida com as revelações. Continuo a passar as páginas da revista: - Nem é para ter. Uma das curiosidades da Ilíada, é reconhecer o mérito ao inimigo.

Homero, o autor da epopeia, é grego e canta as glórias do seu povo. Ainda assim, é sensível às qualidades intrínsecas de homens como Príamo e Heitor, respectivamente, o rei e o príncipe de Tróia.

Leonor agarra-me na revista e tira-ma das mãos: - Mas ainda não percebi. O que tem esse Heitor de especial?

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- Devolve-me a revista. - Só quando me falares de Heitor. – arqueia as sobrancelhas. Parece resoluta. - Heitor é personagem de um livro! – reclamo, contrafeita. - Se fosse só isso não estávamos aqui. - A cidade de Tróia era considerada um mito até ao século XIX. – insisto,

continuando a cortar caminho. - Mana, vai directamente à questão. Não sejas chata. – interrompe-me. Faço um sorriso de troça. Antes de declarar na firmeza das resoluções tomadas com

antecedência: - Desiste. Só te conto a Lenda de Tróia quando estivermos no recinto arqueológico. –

e indicando a revista – Queres ler? – aquiesce, tentando tirar-me a revista das mãos. – Nesse caso, deixa-me sentar à janela, para eu ir vendo a paisagem. – proponho.

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VIII Chegamos ao hotel. Creio que nenhum de nós se aguenta nas pernas. Istambul, para mim, ainda se resume a um jogo de luzes. - Estou exausta. – confessa a mãe, passando a mão pelos cabelos, enquanto reúne no

caderno todos os rascunhos e pequenos desenhos que fez durante a viagem. - Talvez seja melhor comermos no hotel, ao invés de procurar um restaurante na

cidade. O que vos parece? E se ficássemos por aqui esta noite? – propõe o pai, também ele manifestamente cansado – Amanhã temos autocarro às 8h30m.

Aquiescemos, sem oferecer resistência. Depois de um belo duche, descemos ao restaurante do hotel para uma refeição frugal. Ao que seguimos para o salão, em cujo pequeno palco actuam três homens

absolutamente ocidentalizados. A música, por seu lado, tem aquele som árabe, que um leigo tanto poderia dizer de inspiração marroquina como turca.

- É música tradicional? – questiono em inglês, ao empregado de mesa. Ao que ele sorri, como quem troça da ignorância alheia; antes de responder que não à

minha pergunta e de nos explicar que o grupo, muito embora recente, tem vindo a conquistar alguma popularidade nos últimos dois ou três anos, sobretudo na zona sul da Turquia.

Um brasileiro, sentado sozinho a nosso lado, aproveita para meter conversa; sobre a música e a cara que o empregado nos fez quando fizemos a pergunta mas logo passamos a discutir um pouco de tudo.

- Não é toda a hora que se vê alguém falando português nesta terra. Há que aproveitar, pessoau! – diz ele, mantendo aquele riso largo e divertido.

Leonor faz-lhe um interrogatório cerrado, enrolando os dedos: - Gosta da Turquia? Já cá está há muito tempo? Chegámos hoje. Não vamos ver tudo.

Foi à Capadócia? Nós não temos tempo para isso e tenho pena. Foi ver algum espectáculo de danças tradicionais? Em Atenas dancei com os gregos! – como se isso fosse uma façanha.

Ao que ele se prontifica a responder a todas as perguntas, da forma mais engraçada! E como começa a cruzar experiências, tanto turcas como passadas noutras partes do mundo, a mãe resolve rematar:

- Viaja muito, portanto. A Leonor, que parece deslumbrada com o senhor, aproveita logo para dizer das suas: - Já vi que não pára um segundo. O brasileiro, de cara rechonchuda e sorriso largo, abre logo os braços: - Ué, Jacaré parado vira bolsa!

Partimo-nos a rir. A manhã nasceu com um belo dia de sol e Istambul fervilha de vida. Mas sou chamada

à terra pela Joana, que me puxa pela camisa: - Vamos ver os dervixes que rodopiam. – pede, debruçada sobre o panfleto. Procuro as informações no verso mas: - Diz aqui que o espectáculo é no último domingo de cada mês. Estamos com azar. Os dervixes do Mosteiro de Mevlevi são internacionalmente conhecidos por se

entregarem a uma manifestação de fé, que consiste numa dança hipnótica sobre o próprio

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corpo com os braços abertos, de chapéu vermelho escuro e manto branco que rodopia, em grandes ondas, ao som de uma música chamada sema.

Através desta dança e de muita meditação, os dervixes ingressam num transe profundo, que os ajuda a entrar em comunhão com Alá.

- Terá que ficar para uma outra vez. – reconheço, para muita pena minha. São dez horas locais e já estamos bem no centro da cidade de Istambul. Aqui e ali

vendem-se colares e instrumentos musicais; e uns miúdos tentam convencer-nos a comprar bugigangas a um euro. A agitação é grande. Mas, pelo menos nesta parte da cidade, parecem circular mais turistas que residentes. Onde andam os turcos?

Hoje não temos companhia nem guia. Viemos sozinhos, sem rede. Amanhã, quando formos a Tróia, é que iremos inseridos numa pequena viagem programada.

E aqui estamos nós, frente a Santa Sofia (ou Divina Sabedoria). Trata-se de um imenso edifício que começou por ser uma igreja cristã mas acabou

convertida numa mesquita. Dizem que tem quase mil e quinhentos anos de devoção a esta terra, e que reflecte o auge e a magnificência da cidade.

Toda ela se pinta de ocre vermelho e a cúpula é talvez a sua maior riqueza. Quem entra, deslumbra-se com o tamanho da cúpula; uma imensa abóbada celeste de

janelinhas, pelas quais rebentam infinitos raios de sol. - Divina! – deslumbra-se a mãe, puxando de uma folha solta meio rascunhada da

mala, onde logo começa a desenhar. Deixo-me estar, expectante. Curiosamente, após o impacto inicial, começo a sentir uma sensação estranha de vazio.

O edifício parece cada vez maior e desproporcionado. Não sei, é tudo muito grande. Sinto-me uma formiga. E um tanto perdida aqui dentro.

- Parece que o edifício foi... despido. – comento, rodopiando o corpo com o calcanhar direito na terra, mantendo um olhar panorâmico.

Observo os pormenores que o ângulo de visão me permite enxergar. Todas as imagens foram retiradas, à excepção talvez do xadrez de pedrinhas, em estilo bizantino, da mãe e do próprio imperador Constantino. Tudo o resto são palavras árabes em superfícies redondas, aqui e ali, a invocar os versos do Alcorão, como é mais costume nas mesquitas.

- O curioso da questão, é que tudo quanto foi escondido nas paredes, acabou por ser preservado. – explica a mãe, dando luz aos seus conhecimentos.

Espreito os recantos e os espaços de oração, mas não demoro a sair. Tanto que recupero as minhas sandálias e devolvo o véu – pois esqueci-me de trazer lenço e não pude entrar sem cobrir a cabeça, em sinal de respeito pela tradição islâmica.

- Qual é a próxima paragem? – pergunta a Joana, enrolada num lindo lenço azul-turquesa acabado de comprar.

- É a Mesquita Azul. Á qual não demoramos a chegar. Podia talvez pensar-se que o seu exterior fosse azul tanto quanto o de Santa Sofia é ocre

avermelhado. Mas não. É trabalhada e extraordinariamente proporcionada. Mas, pelo menos por fora, nada lembra a bela cor do oceano: - Esta cor é azul? – a pobre Joana contorce-se toda, de nariz colado às paredes

exteriores do edifício, tentando encontrar justificação para o nome da mesquita. Deixo-me rir, levando-a comigo pelo braço – pois ela insiste em olhar para a parede.

Leonor está junto a mim, roendo uma unha.

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- A mesquita azul tem seis minaretes, e não quatro como é costume. – lembro-me de dizer – Ao que parece, é exemplo único no mundo.

- Verdade? – pergunta a Leonor fingindo-se interessada. Ou melhor, apercebendo-se em dificuldades, vira a sua cabecinha na minha direcção – O que é um minarete?

Viro-me para o céu – apontando tudo menos discretamente – na direcção de umas torres estreitas, cónicas e pontiagudas. Esclarecido este ponto, entramos.

Por uma questão de respeito, retiramos as sandálias. Partilho o lenço com a Joana, para não me obrigarem a levar um destes que se amontoam sobre a mesa da entrada – sabe-se lá quantas vezes usado, e por quantas pessoas.

A mãe e o pai fazem-nos companhia. - Não é maravilhosamente azul? – pergunta a nossa mãe. Abro enfim os olhos a uma imensidão de céu. De todos os cantos resplandece um brilho

tão intenso como o de uma pedra preciosa atravessada pelos raios de um sol de Agosto. - Uau! – exclama Leonor, dando finalmente atenção a algo mais do que as suas mãos. Imperam infinitos tons de azul em milhares de azulejos espalhados pelas paredes. Mas

não faltam os dourados. E nos tapetes, que cobrem o chão de visitantes e peregrinos, domina, por seu lado, o vermelho.

A mesquita lembra um bordado. Transmite-nos harmonia. E paz de alma. Mas o nosso pai já saiu e manifesta impaciência junto à porta: - Calçar, descalçar, calçar outra vez... mas que maçada! Se não tivesse trazido meias,

como é que era? A nossa mãe tenta apaziguar-lhe o espírito: - Vá lá meu querido. Faz tudo parte da festa. – passando-lhe a mão pelos ombros. Mas é a Joana quem, num abraço, lhe dá um beijo na testa. Precisamente o que o pai

estava a precisar, pelos vistos: - Ó minha querida, isto é remédio para todos os males. Um momento de descanso, para recuperar forças e redefinir estratégias. - E agora, onde vamos? – pergunta a Leonor, colocando os seus óculos de sol super

modernos. - Não passas despercebida, está visto. – gozo, enquanto ela tira a língua de fora. - Eu proponho um saltinho ao Grande Bazar. O que vos parece? – pergunta a nossa

mãe, curiosa desde cedo com a ideia de o visitar. A ideia é bem aceite. Mas ainda levamos meia hora até entrarmos no Grande Bazar, um

imenso mercado coberto, onde uma pessoa se pode perder no meio deste labirinto de postos de venda de todo o tipo de produtos que se possa imaginar.

Ao que parece, neste mesmo espaço há, para além das lojas de roupa e de artesanato, restaurantes e cafés que se podem ver à vista desarmada, mas igualmente umas quantas mesquitas e sítios onde se pode optar por uma sauna turca.

Eu diria que o Grande Bazar é um tapete de gente e de cores garridas, onde se confundem sons e, sobretudo, cheiros almiscarados. Aqui e ali irrompe o incenso, a canela e o alçarão, a pimenta… cheira a carne! E este perfume, qual é? Aventuro-me no seu encalço. Espreito por entre uma loja. Mas é a mãe quem pergunta sobre a sua proveniência. Ficamos a saber que é hena natural, para pôr no cabelo.

Bem dito bem feito, estamos todos com fome. Acabamos por almoçar por ali mesmo. Uma comida simples, tão ocidental quanto

possível e sem molhos, para evitar complicações de estômago. Mas ninguém evita os doces

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turcos, até porque seria impossível. As suas formas seduzem os mais reticentes. E aqueles biscoitos, cortados em múltiplos quadradinhos e rectângulos, que se avizinham da montra?

Nem tenho apetite para os comer, bem vistas as coisas. Acabei de almoçar e estou mais que satisfeita. Os olhos, porém, comem mais que a barriga.

- Querem experimentar? – pergunta o pai, a bater uma perninha. Recebe em resposta um sim que não se presta para dúvidas. São-nos, então, apresentados umas massas folhadas recheadas com nozes, a que a

senhora pasteleira chama de baklavas. Ainda ouvi falar num lokum, mas sinceramente não sei identificá-lo no meio daqueles quadradinhos todos da travessa.

- Querem chá ou café, meninas? – pergunta o pai, virando-se para nós as quatro. - Eu bebo chá e tu pedes café turco. – propõe a nossa mãe, para assim termos a

oportunidade de provar as várias especialidades da casa. Continuamos pelas ruas do mercado, sempre juntos para não nos perdermos no labirinto

de cores – que a uma certa altura, tudo parece igual. A mãe e as manas vão-se entretendo a fazer as últimas compras, enquanto eu mostro ao

pai a pulseira colorida que consegui arrebatar por metade do preço que me pediram. Provavelmente um pouco mais do que devia ter pago, mas eu também não tenho jeito para negociar. As peritas no assunto são a mãe e a mana Leonor.

Vencem os vendedores, nem que pelo cansaço! - Ainda estão na mesma loja? – pergunta o pai, farto de estar encostado à parede,

passando o pequeno lenço castanho pela testa coberta de suor. Cá dentro está muito calor! - Já conseguiram baixar 70% do preço. – apresso-me a explicar, risonha. E o mais curioso, é que o vendedor também lhes está a achar piada. Mais dez minutos – aliás, doze – e regressam para junto de nós com um xadrez em

pedra e três grandes olhos azuis que espreitam de um pequeno saco de plástico branco: - São contra o mau-olhado. – explica a Leonor – Não são prendas giras? - Por quanto vos vendeu, afinal? – pergunto, curiosa. - Nem queiras saber? Foi uma compra fantástica! O senhor até nos deu os parabéns.

Disse que tínhamos muito jeito. – exclama a nossa mãe, orgulhosa. Mas o pai queixa-se com a demora: - Nunca mais vinham, Matilde. Não precisavam ficar o tempo todo na primeira loja. - Negociar é uma arte, que precisa que lhe devotemos tempo, para dar frutos. – e

picando-o, continua caminho de sorriso retorcido – Quem não percebe do assunto, deve deixar trabalhar quem sabe.

O pai encolhe os ombros. São três e dez da tarde, hora local. Estamos de saída do bazar. - Se ainda quisermos ir hoje ao palácio de Topkapi, o melhor é despacharmo-nos. Olho em volta. - A Joana? – pergunto, desconfiada. - Mesmo agora estava aqui. – diz Leonor, ao desbarato. Começo a ficar inquieta. Ao mesmo tempo, a mãe manifesta pânico: - João Pedro, a menina deve estar perdida lá dentro! Faz qualquer coisa. – e abana-

lhe o braço, de rosto transtornado. Ao que se vira para mim, batendo-me com a mão no braço – Devias estar a tomar atenção à tua irmã, Sancha. Ela estava ao teu cuidado! – acusa-me. A meu cuidado? Ora essa! Mas que podia ter eu feito? Todos

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lhe perdemos o rasto, não fui só eu. A mãe insiste comigo. – Vai ver dela, despacha-te – e empurra-me. E agarra no braço do nosso pai – Temos de ir, João Pedro. Não sabemos da menina, mexe-te!

O nosso pai está tão preocupado como nós, mas tenta organizar um plano de acção antes de agir:

- Acalma-te, que a criança não pode estar longe. Primeiro que tudo, quando foi a última vez que a viram? Agora mesmo, há um minuto?

- Sei lá, João Pedro. Que raio de pergunta. Nem uso relógio! – num tom irritado, mais do que irónico. A mãe está francamente em pânico – Eu quero a minha menina.

Damos meia volta. Combinamos reencontrar-nos à entrada. A mãe vai com a Leonor pela esquerda, eu e o pai pela frente. As palavras da mãe mantêm-se coladas ao meu ouvido. Recordam-me aquele maldito

dia em que eu perdi a Joana na Feira de Santarém. Ela só tinha três anos. Eu pouco mais de oito. Foi numa semana em que tínhamos ido visitar os avós. Enfim, a experiência mais horrível de toda a minha vida! Sempre que recordo a aflição porque passámos – eu mais que todos! – até às 19h48m em que, do alto-falante, o senhor anunciou que tinham recebido uma menina no posto de segurança da Feira, que se dizia chamar Oana (Joana), humedecem-me os olhos. Até porque a mãe, muito embora o não faça de propósito, ainda me culpa pelo acontecido.

Preciso descobrir o paradeiro da mana, o mais rapidamente possível. Não me pode acontecer o mesmo duas vezes, não pode! - Sancha, vai mais devagar. – pede-me o pai. Como continuo a correr, ele agarra-me

no braço, repetindo o apelo com veemência – Não vale a pena perdemo-nos todos. Assim não ajudamos ninguém. – e olhando em volta – Preciso de pontos de referência, para depois saber reencontrar a saída.

O pai mostra-se preocupado com o intrincado labirinto de gente, ruas e cores. Meu Deus, isto é quase tão confuso como Veneza à noite! - Para onde terá ido, pai? – mais sabendo que ele não me saberá responder. O pai insiste na mesma ideia: - A Joana tem de estar por perto. Pode-se ter entretido com uma bijutaria qualquer, e

tal ter sido o suficiente para nos perder de vista. É só uma questão de descobrir onde ela ficou. O pior é se ela, na ânsia de nos procurar, se afastou mais ainda.

- E se perguntássemos por ela? - Não nos entendem. Perdíamos tempo precioso. Levo a mão à cabeça. O coração bombeia-me o peito. Estou bem mais aflita do que

quero reconhecer, na tentativa de manter os cinco sentidos em bom funcionamento. Onde? Onde? - Filha, já estamos muito longe. A Joana não pode ter vindo tão longe. Vamos

regressar. Pode ser que a mãe e a mana tenham tido mais sorte que nós. Ainda tento apelar-lhe para que continuemos a procura, mas nada o demove. Avistamo-las uns minutos depois. Pelos vistos, os seus esforços foram tão infrutíferos

quanto os nossos. - E agora? – é o grito, o lamento que se separa da minha garganta atada em nó. Entro em pânico. Tremem-me as pernas. O pai passa, rapidamente, a mão pelos meus cabelos; num gesto que se quer tranquilo

mas que é tudo menos isso:

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- Sossega, minha querida. Nós vamos encontrá-la. – mas acrescenta – Suponho que quanto mais tempo passar, pior. Vai ter com a tua mãe. – pede, sem que eu perceba muito bem porquê – Eu fico aqui, não vá a Joaninha aparecer.

Ir ter com a mãe? Como, se os seus olhos me acusam? Aproximo-me, contorcida, envergonhada, cabisbaixa. A Leonor é uma tempestade que

atinge todos os portos: - Eu não tenho a culpa. Não me podem acusar. Ela é que se afastou. Deviam estar a

culpá-la a ela e não a mim. – atira-me os fardos para cima, como é normal. E prossegue, no desplante que a caracteriza – Mas que raios? Não é justo.

Atitude que não minora a nossa situação, antes a incendeia. - Não estás a ajudar, Leonor. - Olha quem fala! Tu é que devias estar a tomar atenção à mana! - Eu? - Sim, és a mais velha. – atira-me, de olhos esbugalhados. - É preciso ter lata! Tu só pensas nas tuas mãos, nas tuas compras e nas tuas coisas.

Não queres saber de mais nada! – grito-lhe, perdendo o controlo sobre mim própria. – Estamos a perder tempo. Preciso ir procurar...

Mas as minhas palavras são interrompidas por uma voz familiar que nos chama: - Eu estou aqui! Viramo-nos abruptamente na direcção da Joana que vem de mão dada com o pai.

Mal a vejo, lanço-me a ela, quase a abafando num abraço nervoso. As lágrimas ameaçam rebentar e só a muito custo escondo duas que rolaram pelo rosto.

- Onde te meteste? – rebento. E nessa frase vai toda a frustração de não ter sido eu a encontrá-la. Novamente.

Ela e o pai tentam explicar-nos. Os dois ao mesmo tempo, numa confusão de alívio, ternura e agitação.

Resumindo e concluindo, a Joana tinha-se sentado à nossa espera, à saída. Quando nós demos pela sua falta, ela estava a poucos metros à nossa frente. Foi quando optámos por a procurar dentro do Bazar, e não nas imediações da saída – onde ela estava, preocupada com a nossa demora – que nos afastámos dela.

Felizmente, a Joana tinha decidido manter-se no lugar onde estava, ao invés de nos ir procurar. Assim, quando o nosso pai enfim se lembrou dessa possibilidade, não demorou a encontrá-la.

- Fiz o que a mãe me ensinou. – diz, encolhendo os ombros, sem saber o que fazer com o nosso pânico aliviado mas ainda em fase de arrefecimento.

- Que susto me deste! – suspiro, engolindo em seco. A Leonor é a única que ataca a irmã, acusando-a de negligência: - Não tens vergonha! A mãe ia tendo um ataque de coração por tua causa! –

apontando para o rosto lívido da minha mãe, colado ao da Joana. - Também não é preciso tanto. – irrito-me. O pai vem em nosso auxílio. - Passou, isso é que interessa. – e resoluto, envolve-me a mim e à Leonor num

abraço, deixando a Joana com a nossa mãe – Preparem-se, minhas lindas, que vamos todos para o palácio de Topkapi!

De facto, viemos para Topkapi, um complexo de casas e mais casas na dependência directa do grande sultão. No tempo em que os havia.

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Maria Galito 87 Força do Exemplo, 2001

Foi neste imenso palácio que viveu o famoso Solimão, senhor do império otomano, que governou, entre 1520 e 1566, terras imensas que se estendiam da actual Hungria ao sul da península arábica. Ou seja, enquanto os portugueses eram senhores dos mares, Solimão e os turcos reinavam sobre as terras do próximo oriente.

Os sucessores de Solimão não souberam estar à altura do seu exemplo, para grande sorte da Europa (Selim I, filho de Solimão, ficou conhecido como o “bêbado”). Seja como for, hoje em dia é possível ter um vislumbre da áurea desses tempos, e enriquecer com o seu legado cultural.

- Mas a cozinha é toda em ouro? Falava eu de cultura... Rebolo os olhos, levada pela Leonor que parece transtornada na presença do recheio da

cozinha, sem contar com as baixelas que eram servidas directamente à mesa do sultão. Atrás de nós uma fila imensa de turistas, tão encantados quanto ela, e que espreitam com a cabeça pelas janelas, tal como as tartarugas ao sair do ninho, antes de se aventurarem na praia.

A beleza é imensa. E tão intensa, que cansa. Depois de ver dezenas de travessas infinitamente trabalhadas, centenas de copos e

pratos em prata e ouro, e os mais variados serviços na mais fina e pura porcelana, incluindo terrinas, taças e jarras do mais maravilhoso que pode haver – aliás, para que queria o califa um tacho em ouro? – chega a ser penoso arranjar paciência para apreciar o resto.

E que resto! As demais salas estão divididas em categorias. Algumas são tão espectaculares que o

visitante ou sai em estado de choque ou indiferente a tanta beleza. A riqueza rejubila em Topkapi. Veja-se o exemplo, na minha opinião, mais espectacular. Há expositores em que se

vêem pilhas de pedras preciosas. Aqui uma montanha de esmeraldas. Ali uma cordilheira de rubis. Todas empilhadas umas em cima das outras, atabalhoadamente qual grãos de areia. Mas enfim, até se compreende. Eram tantas, que mais valia pô-las em montão.

- Cruzes, credo! Já não saio daqui. – abisma-se Leonor, senhora de sua justiça. - Esta gente não podia ter a mínima noção da realidade. É impossível. – comenta a

mãe, pegando nos óculos para atender ao pormenor de um punhal que, pelo que dizem, é o ex-líbris da exposição.

O pai parece tão intrigado com a riqueza do palácio real como nós. Se não mais ainda. Deixou-se ficar para atrás, a passo lento. Nem parece coisa sua. - Pai, venha. Então? – peço-lhe suavemente quase ao ouvido, intrigada por o ver tão

absorto com o nariz pregado na vitrina. Ao que a mãe se vira para nós, recolhendo os óculos na carteira. Ela detesta reconhecer

que precisa deles. É uma batalha que ninguém ganha lá em casa. - Vocês conhecem a história de Roxelana? – pergunta, com olhar maroto. Aproximo-me, trazendo o pai pelo braço. Quero dizer, ele voltou à vitrina dos rubis. Volto-me para a mãe, com a pergunta que seria de esperar: - Não. Porquê, era alguém importante? Faz cara de caso. E com um sinal, chama-nos ao pátio: - É uma pena que hoje o harém esteja fechado. Seria uma ala interessante de se ver. –

sentamo-nos junto a ela. – Mas não interessa, falemos de Roxelana.

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Maria Galito 88 Força do Exemplo, 2001

O pai saiu para o pátio. Mas apenas para entrar noutra sala do palácio. E lá se avista, deambulante de uma vitrina para a outra, remexendo barba e bigode.

Conta a nossa mãe, que Roxelana foi uma grande mulher do seu tempo. Terá nascido na actual Ucrânia, mas foi raptada ainda muito nova e vendida como

escrava, antes de ser comprada pelos homens de Solimão que andavam sempre à procura das raparigas mais belas para o harém de Topkapi, que na altura devia ter talvez umas trezentas concubinas do sultão. Obrigada a sobreviver num ambiente muito competitivo e hostil, Roxelana conseguiu agradar a Solimão, que passou a chamar-lhe “Rossa”; ou ainda, “Khourrem”, por sorrir muito e parecer ter um espírito sempre jovial e divertido, enquanto contava histórias.

Para não se perder no meio do harém, onde ninguém tem poder e as rivalidades podem ser fatais, resolveu apostar tudo na tentativa de manter poder através da confiança conquistada a Solimão que, com o tempo, começou a atender aos seus conselhos em matérias de Estado. Já com um bebé seu nos braços, foi afastando obstáculos aos seus propósitos, que passavam por transmitir o trono ao filho que ela tinha de Solimão. O que incluía afastar Mustafa, o legítimo herdeiro. Mas outros homens também, como Grande Vizir Ibrahim, que foi acusado de traição contra Solimão. O tempo, a sua argúcia e perseverança, conceder-lhe-iam igualmente o objectivo mais cobiçado: casar com Solimão. E segundo a lei islâmica, um sultão podia possuir até quatro vezes e tantas concubinas quantas pudesse manter. Um estatuto que lhe garantiu um poder incontestável até á sua morte, oito anos antes de Solimão. E, de facto, foi um dos filhos de Roxelana que sucedeu ao sultão: Selim I, em 1566.

- Já me estou a imaginar qual Roxelana; com aqueles fatos coloridos, debruados a ouro e pedras preciosas, coberta de jóias...

- Leonor, não delires. – peço-lhe, puxando-a pela camisa para que se sente. Mas era preciso que ela me ouvisse. A dançar nas pontinhas dos ténis, com os braços

em leque, seria um tanto difícil. - E depois era dona deste palácio e tinha imensas coisas... - E tachos em ouro. – remato, já farta de tanta parvoíce – Não ouviste uma palavra do

que a mãe disse? – respiro com força – Roxelana começou por ser raptada. Foi escrava. Passou todo o tipo de horrores antes de chegar ao harém, onde foi forçada a entrar, tanto quanto obrigada a ter relações sexuais com o sultão. – e insistindo no ponto, que creio importante – Roxelana sofreu absurdos antes de ser primeira esposa e mãe de sultões. A sua grande vitória foi ter conseguido dar a volta por cima e atingir um estatuto a que jamais poderia aspirar se tivesse tido uma vida normal na sua terra.

- Ela toureou o destino que a vida lhe traçou. – ousa responder-me. – A mãe resolve intervir, numa expressão mais firme, quase gelada: - Ainda não percebeste a questão, filha. – diz, virando-se para Leonor. - Percebi sim. – responde ela, resoluta – Roxelana foi uma vencedora. Curiosamente, a mãe abre os braços à pujança da filha: - Agora gosto mais. – ouço-a dizer, na sua expressão de triunfo – Era precisamente a

essa conclusão que eu queria que chegassem. Mas a Leonor acaba por trocar-lhe as voltas: - Dos vencidos não reza a História! A imortalidade tem um preço. – acrescenta, como

ferreiro a falar de beterrabas.

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Maria Galito 89 Força do Exemplo, 2001

Tenho um ataque. Mas como a mãe está presente, não me sossego enquanto o não controlo. Enfim, a muito custo. Só depois, deixo sair vislumbre mínimo do que me cruza o espírito:

- Tem juízo! Nem sabes o que dizes. – a mãe nada diz, cruzando os braços enquanto nos observa. Mantenho a minha linha de raciocínio, fiel aos meus princípios – Há coisas que não têm preço. Prefiro ser feliz em vida, a viver uma vida inteira com a corda ao pescoço.

- Ela era uma sultana. – interrompe-me, de punhos cerrados. É minha irmã mas às vezes pergunto-me como. Preciso explicar-lhe a verdade: - Não há sultanas, mas sultões. Roxelana chegou ao estatuto de esposa preferida. Ou

seja, ela nem sequer era a única. O que é muito menos que ser rainha. – e porque ainda há muito para dizer a estes ouvidos mudos – Ela podia ter acabado assassinada, ou abandonada e sozinha numa rua. Ela teve de lutar até ao dia em que morreu para não perder o seu lugar no harém.

Mas a Leonor insiste em responder ao que ela entende por “provocações minhas”: - Quem não arrisca não petisca. Nunca ouviste dizer? Quem mais aposta, mais pode

ganhar. É como nos Casinos. Era o que me faltava! Cruzo os braços, decidida a manifestar a minha opinião: - Como queiras. Mas eu também não preciso de um lugar na História, ficas já a saber.

Muito menos se o acordo implicar riscos que não estou disposta a enfrentar ou assumir. Prefiro mil vezes uma vida calma, sem grandes problemas, com uma boa profissão, a viver entre os meus, rodeada de filhos e de netos. Se a vida me der essa graça, fico mais que satisfeita.

Joana agarra-se à mãe. Leonor abana a cabeça: - Pois eu cá não penso assim. “Antes rainha por um dia que duquesa toda a vida”.

(Luísa de Gusmão). Invoca uma das rainhas de Portugal. Beleza! A Joana faz-me sinal. De facto, a mãe ficou muito quieta, de repente. Demasiado, diria eu. Observa-nos, a mim e à Leonor, com meticulosa atenção. Parece comparar-nos. Deve

consciencializar-se do quanto somos diferentes. O seu olhar fixa-se na Leonor. A quem destina um suspiro apreensivo: - Ás vezes preocupas-me, sabes filha? A que se segue uma pausa silenciosa. A mãe não lhe tira os olhos de cima. Leonor começa a mexer-se com nervosismo. Passa a mão pelo pescoço com uma mão,

esfrega a perna com a outra. A voz até lhe sai melosa como xarope de morango: - Mãezinha, estamos só a brincar… Recebe um olhar de águia que se prolonga. Leonor fica tensa, hirta. Já nem se sabe para

onde se virar. Até que a progenitora lhe atribui uma incumbência: - Vai chamar o teu pai, são horas de irmos. A mana apressa-se a cumprir o pedido, com aparente alívio. Qualquer coisa é preferível

a ficar ali sentada, sob o olhar de fogo que lhe pesava sobre os ombros. O pai aproxima-se ignorando a nossa conversa, em estado de choque com o rico recheio

de Topkapi:

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Maria Galito 90 Força do Exemplo, 2001

- Nunca pensei, mas estou fascinado. Que belo palácio. – e entregando-se ao espectáculo oferecido pelas águas espelhadas do Bósforo – Viram esta vista? – só depois se apercebe dos olhares fugidios. – O que foi? Porque estão com essas caras?

- Está tudo bem, pai. – respondo, com um sorriso benevolente – Foi a mãe que nos contou uma história. E nós estávamos a aprender com ela.

Cruza um olhar com a mulher, nossa mãe. Insiste para que o ponham a par da conversa. A Joana conta-lhe que as manas haviam divergido nas suas opiniões.

Tudo se passa num minuto, se tanto. Mas o pai é rápido na avaliação da questão. Primeiro não se pronuncia. Deixa que a mãe nos organize e que o grupo comece a

avançar para fora do palácio. Só depois envolve um dos braços na Leonor para, discretamente, lhe dizer estas palavras:

- Cuidado com o que pedes, filha, que podes consegui-lo. E ouve bem. Há vidas que não vale a pena viver só para que o nosso nome seja repetido por bocas que a gente nem conhece.

- Sim, pai. – responde, na urgência de se desprender daquele abraço. É a vez da mãe lhe dirigir um conselho: - Enquanto pais, compete-nos abrir-te os olhos para as encruzilhadas que a vida te

pode oferecer. Mas não podemos decidir por ti. Por isso aprende a decidir em consciência, que o caminho nem sempre nos dá duas oportunidades para escolher.

Leonor sente-se rodeada por duas torres de menagem. O que lhe desassossega o espírito. Mas o pai tem um último conselho para lhe dar:

- A felicidade deve ser uma meta a almejar e não um capricho a que possas dar-te ao luxo de desbaratar. Lembra-te destas palavras, filha, que eu não vivo para sempre.

Tróia não deve demorar no horizonte. A viagem conta já algumas horas e as previsões

apontam para que antiga cidade de Príamo nos venha enfim satisfazer a curiosidade, despertada pelas epopeias de Homero.

Tahsin, o nosso guia, vai conversando para nos animar a viagem. É um homem de uns quarenta anos, muito moreno, com cabelo e olhos negros. Parece mais gordo do que é, por causa do casaco. De estatura média, possui um nariz comprido e aquilino, mãos grandes e uma pequena cicatriz no queixo. Mas mais que tudo, tem um sorriso enorme, que se estende de orelha a orelha. E fala pelos cotovelos:

- Já foram ao Kapalicarsi, ao Grande Bazar? E a Topkapi? Sim? Aqueles senhores foram? Óptimo. – e virando-se para outros quantos – Não foram ainda? Mas irão amanhã! – exclama, de braços abertos – Of course...1 – repete sempre, ao fim de cada frase.

A mãe sentou-se junto à Joana. Parece encantada em fazer desenhos num papel que desenrolou sobre a mala. A Leonor sentou-se duas filas atrás de nós, mas o pai ficou a meu lado e sorri com as graçolas do guia Tashin que continua bem-disposto:

- Querem ouvir uma piada turca? – pergunta para o seu grupo misto, em inglês. – Yes, yes? – Predispõe-se, portanto, a fazer valer as suas qualidades humorísticas – Ok., isto é uma piada que todos os turcos conhecem. Aqui vai. – e mexendo os braços com um à vontade digno de se ver – Certo dia, Hodja encontrou um homem que lhe perguntou: “Ouça lá vizinho, possui algum vinho que tenha 40 anos?”, ao que Hodja respondeu que sim. Ao que insistiu o vizinho: “Podia talvez dar-me um

1 Claro…

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Maria Galito 91 Força do Exemplo, 2001

pouco desse vinho, o que lhe parece?”. Hodja olhou para ele e disse: “Se desse um pouco a todos quantos mo pediam, o vinho não teria 40 anos.”

A anedota era mais característica que engraçada, mas contada por Tashin conseguiu despertar umas quantas gargalhadas e espalhar o bom humor pelo autocarro:

- São terríveis para o negócio, os turcos. – ainda comenta, antes de se sentar junto ao condutor.

Precisamente o que eu ouvi vários turistas comentar, em voz baixa, entre sorrisos. - Mana, Tróia. – avisa-me a Joana, apontando a tabuleta. Mas não era preciso. Eu já a tinha visto. Tenho vindo desperta. E sempre alerta. Cheguei a Tróia. Ou melhor, à colina de Hissarlik, berço de várias cidades que

nasceram umas sobre as outras, desde o neolítico até ao apogeu romano. De facto, neste fim de manhã, aguardam-me nove Tróias.

Não há grande consenso quanto às datas que as distinguem, mas é talvez possível

defender que Tróia I durou aproximadamente cinco séculos (3000 e 2500 a. C.). A sua cidade resumia-se à metade norte ocidental da colina, rodeava-a um muro de aproximadamente 90 metros de diâmetro e possuía duas portas, tendo sido destruída por um incêndio.

Tróia II ocupava uma superfície maior mas durante menos tempo – provavelmente de 2500 a 2200 a. C. – tendo também esta sido destruída por um incêndio. Na área que lhe corresponde, foi encontrado um imenso tesouro e consta, pelos achados arqueológicos, que era uma urbanização rica para a época.

A nova Tróia (III) terá talvez resistido menos de duzentos anos (2200 a 2050 a. C.), mas possui pelo menos uma novidade interessante: as casas deixaram de ser construídas predominantemente com tijolos feitos ao sol e passaram a elevar-se em pedra.

A Tróia IV ter-se-á igualmente aguentado um período de cento e cinquenta anos, mas numa área aproximada de 17000m². Menos ainda durou a Tróia V, talvez cem anos, de 1900 a 1800 a. C.

Outro estatuto possui a magnânima Tróia VI. A que começou por ser alvo de especulações, por poder ser a Tróia de Príamo, protegida que estava por uma esplêndida muralha, que resistira durante quinhentos anos (1800-1300 a.C.) de fartura e opulência, aproveitando-se da sua posição estratégica no Helesponto. O problema é que, segundo a arqueologia revelou até hoje, esta cidade teria sido destruída por um terramoto e não por abrasamento.

Qual seria então, a Ílion de Heitor e de Páris? Ao que parece, há uma segunda hipótese. A Tróia VII. Ou melhor, as três Tróias VII (a, b e b2), que espelham períodos de crescente instabilidade política e militar, pela forma como as casas foram construídas, pela quantidade de armazéns e, mais ainda, por terem sucumbido a violentos incêndios que não parecem de todo resultantes de causas naturais, mas antes humanas. Fogo posto.

Mas qual delas? A primeira, conhecida por Tróia VIIa, durou um período aproximado de cinquenta anos

(1300 a 1250 a. C.). A Tróia VIIb viria a sucumbir por volta de 1180 a. C., depois de setenta anos de construção apressada de casas e empenho na armazenagem de víveres. Por seu lado, Tróia VIIb2 resistiu uns oitenta anos (1180-1100 a. C.). Período ao qual se seguiria um imenso exílio destas paragens. De facto, durante talvez quatro séculos, até por volta de 700 a. C., nunca mais ninguém para aqui veio viver. A cidade só recuperaria o seu

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fulgor com os colonos gregos, desejosos de recuperar a glória da Tróia de Homero. Assim nasce Ílion (VII a I a. C.) e depois a Nova Ílion (I a. C.-IV d. C.).

Estas camadas de História fundem-se num recinto arqueológico, hoje dominado por

ruínas em mármore e pequenas árvores e arbustos; ou ainda umas quantas flores, incluindo roseiras – se contarmos com o jardim junto à entrada.

Também não sou guiada pelo mar de turistas. Neste momento, devo confessar, só tenho olhos para o cavalo de madeira; uma versão meio romanesca do ídolo que ludibriou os troianos e os que levou, em última instância, a perder a Guerra de Tróia.

Trata-se de um modelo que, vagamente, se baseia numa torre de combate. É preciso descontar-lhe toda a vocação ofensiva que, supostamente, uma torre de combate deve ter.

Por outro lado, aguenta com uma casa às costas, pelo que mais parece um caracol com pernas do que um cavalo. A cauda é tal e qual o cabo de uma vassoura. Tem janelas quadradas no corpo e umas orelhas cónicas. Mas guarda um certo ar da sua graça. Um ar simpático, pacífico, que é sempre agradável de ver.

Talvez se tivesse umas rodas... A Joana puxa-me pelo braço. De facto, eu estava um tanto absorta nos meus

pensamentos, a ponto de me esquecer que o grupo se afasta. A mãe preocupa-se com a Joana: - Põe o chapéu e não discutas. Queres apanhar este sol e ficar engripada? Ela abana a cabeça, com veemência. Penso, então, em atribuir importância às palavras do guia. Tahsin, bem se esforça em

explicar que o colosso foi construído em 1974 e que o seu tamanho se aproxima da altura original das fortificações da cidade de Tróia. Isto enquanto caminha para dentro do que resta da muralhas, gesticulando até à exaustão. Assim, vai cansar-se depressa.

Subo a um muro e dou uma vista de olhos geral. Pedem-me para descer, ao que obedeço. A Joana pede-me o leque que guardo na minha mochila.

- Está calor, não está? – indaga a mana, enchendo muito as bochechas de ar, enquanto o rosto lhe enrubesce violentamente, por mais que se abane – O pai disse que hoje estão quarenta e dois graus!

No meio disto tudo, do que mais gosto são das oliveiras. O guia prossegue, passando a mão pelo seu cabelo encaracolado, que lhe cai sobre os

ombros. - Imaginem estas muralhas nos seus dias de glória! – e abre muito os braços, como

que para abarcar toda a muralha – Imaginem uma cidade a fervilhar de gente. Imaginem um exército de gregos àquelas portas. – e aponta para a direita, numa expressão teatral e dúbia, com as mãos escancaradas.

Só lhe falta rematar com um... e os troianos venceram. Mas como a lenda não lho permite, rodopia sobre si mesmo e avança a trote. Parece entusiasmado.

Os turistas seguem-no. - Sancha, vem por aqui. – alerta-me a mãe, quando quase a perder-me de vista. Tahsin não leva muito tempo a encontrar um novo posto para falar aos seus: - Eis as casas do Mégaron. E o que era o Mégaron, perguntam os senhores? A sala

principal do palácio do rei Príamo. E continua a sua descrição fantástica do ambiente que um dia este espaço viveu. Arqueio as sobrancelhas.

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De facto, faz-me alguma confusão olhar para nove ou dez camadas de pedras em forma de quadrado, agraciadas pela companhia de umas oliveiras mal desenhadas e mais uns quantos arbustos e reconhecer neste quadro a sala de visitas de um rei como Príamo.

Observo em volta. E sento-me. A minha disposição está péssima. Logo hoje, tinha de ter uma ataque de realismo? Que pena. Em Micenas até conseguira imaginar os sons dos cavalos a passar pela porta das leoas. Em Tróia, por incrível que possa parecer, pois a vinda aqui fora bem mais aguardada, nem consigo concentrar-me nas palavras do guia.

- Não te sentes no chão, filha. – admoesta a mãe, puxando-me pela camisa. Ainda lhe tento mostrar que me aninhava sobre uma pedra mas nenhum dos meus

argumentos a convence. Desisto, pois, de tentar fazê-lo. Endireito os ombros. O guia diverte-se a contar as travessuras de Zeus e a falar de um

grande terramoto: - ... e abriram-se brechas nas muralhas. Foi assim que a Tróia VI foi destruída. Fantástico! Ao que aproveito para tirar uma frágil flor que nasce das paredes que ainda

resistem ao tempo. Onde já se viu, lugar mais a despropósito para fazer contas à vida. Isto é um recinto arqueológico. Ponho-a na orelha.

Devo ter uma nuvem sobre a minha cabeça. Segundo os índios americanos, é sinal de chuva.

Leonor mantém-se contemplativa, de rosto fixo na expressão das muralhas. Deve estar a pensar nos heróis de Tróia.

- Repara, não é lindo? - Quem, Eneias? – troço, mais sabendo que Leonor se refere a um rapaz alto que está

de costas para nós, junto ao muro. Ele veste uma T-shirt azul escura que lhe realça os ombros largos, mas o corpo é magro

e espigado, deixando a cabeça quase suspensa. Deve ter crescido depressa nos últimos anos, enquanto o conjunto procura recriar forma harmoniosa.

Desvio o olhar de volta para o caderno de desenhos, na tentativa de terminar o cavalo de madeira que rascunho a lápis. Mas a mana insiste:

- Não tem um rabo giro? – e ri-se, tapando a boca com a mão. - Francamente, Leonor. – repreendo, abanando a cabeça. Ela dança com os dedos, bem-disposta: - É italiano. Já o ouvi falar. E veio sozinho com o pai, que é aquele da direita. Vês? –

aponta discretamente – Não te mexas tanto, que dás nas vistas. – aborrece-se, empurrando-me com o braço.

Começo a ficar desconfiada: - Como é que sabes isso tudo? - Sei tudo quanto quero. – declara, senhora do seu nariz. Mas depois prontifica-se a

esclarecer. – Ele veio connosco no autocarro. Surpreendo-me, pois não tinha dado pela dupla italiana de pai e filho. Mas como sou

muito despistada, não seria a primeira vez que me concentraria apenas e tão só na paisagem da janela. Eu estava ansiosa com a perspectiva de chegar a Tróia.

- Não reparei. – obrigo-me a reconhecer. - Tu nunca reparas em nada! – exclama, risonha. Como lhe dou uma certa razão,

encho a boca de ar sem lhe replicar resposta. Ela insiste. – Também só o vi quando saímos do autocarro mas aproximei-me para lhe ouvi a voz e pronto, percebi que era italiano. E chamou aquele senhor de pater.

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O rapaz, que não se sabe objecto de tão intenso escrutínio, volta-se e caminha para junto do pai, a quem acompanha a passos largos e firmes.

Posso enfim observá-lo em mais pormenor. Mas não são os seus olhos que me chamam a atenção – até porque são pequenos e, de

longe, não consigo certezas quanto à sua cor – mas a expressão geral do seu rosto, com covinhas de um lado e de outro de uma boca de lábios finos, com dentes grandes e brancos; rosto oval não muito longo, confiante, leve e bem-disposto, de nariz aquilino e queixo dividido.

Ainda uma cara de menino, mas com fortes potencialidades de futuro. Depois o seu cabelo, castanho-escuro, revolto e cheio de graça, com umas ondas

incertas que se pavoneiam pela cabeça, mas apenas suficientemente para lhe cobrirem as orelhas. Pescoço poderoso. Braços longos. Calções abaixo do joelho, o que lhe reforça o ar jovem do rosto, e pernas compridas com pêlos viris. Por fim, pés grandes, enfiados em ténis escuros certamente de marca.

- Quantos anos pensas que ele tem? – pergunto, enrolando os lábios junto ao lápis. - O que é que isso importa? – pergunta a Leonor, lançando os braços ao ar. Mas o

exaspero rapidamente termina, num remate peremptório – Claro que tem a minha idade.

Subo a um muro e olho em volta. Júlio César teria enxergado Tróia com igual sentimento de desilusão. Não há mesmo nada para ver. Até o mar recuou, para se afastar das memórias daquele tempo.

E o que faço eu aqui, se nem a sua história me diz respeito? Como posso imaginar a imensa frota aqueia, se nem a torres elevadas posso ascender? E o templo de Apolo, exterior às muralhas, onde seria a sua morada, no meio destes

campos agrícolas? E a cidade, seria adornada por um manto de casas em redor, espalhadas pela imensidão,

ou resumia-se a duas casas e meia, apinhadas de gente em tempo de guerra? Respiro fundo. Os tempos eram outros. Preciso conformar-me com uma ideia relativa e

não absoluta de Tróia. Por muito pequena que possa parecer aos olhos de um contemporâneo, era uma capital comercial de grande importância para a época.

Se bem que Roma existiu há dois mil anos e não era assim tão pequena. Retiro o chapéu, que me sufoca qual barrete que enfiei a despropósito. Mas enquanto a

suave brisa me embala os cabelos, relembro a figura de Heitor. E o meu espírito apazigua-se.

Que importa se foi figura histórica ou herói inventado por um poeta. Os valores que representa são o seu verdadeiro legado. Pois a epopeia humaniza o inimigo. Talvez pela primeira vez na cultura ocidental, a Ilíada enaltece ambos os lados da lenda.

Ulisses, Agamémnon e Aquiles podem ter sido os heróis máximos da guerra, segundo os gregos, mas é preciso não esquecer Heitor, Príamo, Páris e Eneias, os não menos soberbos que perderam a guerra mas que a podiam ter ganho, se outros dados tivessem sido lançados sobre a mesa. De tão bravos, mostraram-se adversários à altura. Heitor mais que todos, pois incorpora a coragem de um herói que se sacrifica em nome da sua cidade e da sua família. E que retira o seu capacete reluzente para não assustar o seu menino que chora nos braços da mãe, por o ver partir.

Sinto o casaco escorregar-me pelas costas. Vou a apanhá-lo com a mão, quando sinto um toque quente nos meus dedos. Umas mãos que escorregam.

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Outra pessoa agarrou no casaco, impedindo-o de cair ao chão. E entrega-mo com um sorriso discreto. É o italiano de que falava a Leonor.

Os olhos são azuis. Meus Deus, agora que estão tão perto, cortam-me a respiração. Calma, respira.

Pigarreio, antes de agradecer a amabilidade, primeiro em português, depois em italiano. Ele não se mexe. Pergunta-me de onde sou. Não terá reconhecido, que obrigada é uma

palavra portuguesa? - De Lisboa. Portugal. – respondo, numa voz mais melosa do que gostaria. - Di Portugallo? Benne. – e sempre em italiano. – Sou italiano. De Pádua. Já deves ter

ouvido falar de Santo António de Pádua. Mau começo de conversa. - Alto lá, Francisco de Bulhões é de Lisboa. – corrijo, ainda com um sorriso. - Santo António di Padua. – emenda. - Santo António de Lisboa. – insisto. - Di Padua. - Lisboa. E continuamos nisto até que resolvo pôr um fim na questão. Por muito divertido que

esteja a ser para ele, a mim começa a dar-me nervos. E vou a afastar-me, quando ele decide insistir, num italiano rebuscado:

- Chamo-me Mateo. Não tenho grande vontade de lhe retribuir a graça, mas lá lhe confesso o meu nome. Um tanto constrangida, começo a mexer nos cabelos junto ao pescoço. Mas ele não

parece arredar pé. E eu tão pouco, bem vistas as coisas. Já roo uma unha, quando Mateo se aventura a explicar que, depois de ter lido a Eneida

de Virgílio resolvera ser hora de visitar a casa de Eneias – o pai dos romanos. Perante isto, a curiosidade consegue ser mais forte que a timidez que me aflige. Ao que me obrigo a perguntar:

- Julgava que eras de Pádua. Ele percebe-me o pormenor histórico (romanos e italianos possuíam estatutos

diferentes, durante a república e o princípio do império). Mas Mateo evita esse caminho, quando explica:

- O meu pai é de Pádua. A minha mãe foi viver com ele, enquanto estiveram casados e eu nasci naquela cidade. Mas toda a minha família materna é originária de Roma. O meu avô Tito, costumava dizer-me, quando eu era pequeno, que descendíamos do próprio Eneias. – ao que, ainda com um sorriso, belíssimo por sinal – Os romanos adoram dizer-se descendentes de Eneias e da deusa Afrodite.

Deu para perceber, que Mateo gosta de conversar. Mas não sou ingénua ao ponto de pensar que é suficientemente extrovertido para dizer tudo quanto lhe vier à cabeça.

- E estás a gostar de Tróia? – pergunto-lhe; mas não a tempo de impedir que a língua continue solta – Contam as crónicas que Júlio César ficou muito desiludido com a pobreza da casa que atribuem ao filho da deusa Afrodite.

Ele parece tão desiludido como César. Como eu, por sinal. Já particularmente nervosa, viro o rosto noutra direcção, na tentativa de recuperar

alguma tranquilidade. Todo o meu estômago se enrolou e tenho um peso estranho sobre os ombros e sobre as têmporas. E tenho dificuldade em engolir. Devo estar doente.

- Já leste a Ilíada? – pergunta-me, provavelmente para alimentar a conversa.

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Maria Galito 96 Força do Exemplo, 2001

- Sim. – ao que, recordando as palavras da Dra. Luísa Montenegro, insisto em dar uma resposta mais exacta – Em prosa, pelo menos.

Ele sorri mais ainda. Daqui a pouco encandeia o sol. - A sério? – surpreende-se – Leste na escola? – tenta saber. Nego-o com um gesto de

cabeça. Ele prossegue. – A Eneida faz parte do currículo de italiano, mas os professores costumam ensinar um pouco de Homero também. – ao que, remexendo as sobrancelhas, conclui. – Foi por tua iniciativa, portanto. – num sorriso de troça, lembra-me – É um livro de guerra.

Respondo-lhe na mesma moeda: - No currículo de português nós damos os Lusíadas, pelo que os nossos professores

costumam aludir às epopeias de Homero e à Eneida de Virgílio. Ele parece querer saber mais: - O que são “Os Lusíadas”? Riposto numa expressão firme mas risonha: - O que é a “Eneida”? – pergunto, obtendo como resposta um novo remexer das

sobrancelhas. – O poeta Camões escreveu “Os Lusíadas” para enaltecer os feitos dos portugueses, como Homero havia invocado os dos gregos e Virgílio os dos romanos. – explico.

- Estou a ver. – e começa a caminhar, levando-me consigo pelas ruas de Tróia. – Gostaste da Ilíada? As raparigas não costumam gostar. – diz de repente. Levo as mãos à cintura, interrompendo a caminhada. Mas ele logo me procura sossegar. – Não é nada disso. Não me compreendeste. O que eu quis dizer, é que estatisticamente, as raparigas costumam gostar menos. As da minha turma, detestaram. Lembro-me perfeitamente.

Acho piada ao “estatisticamente”. Deixo-me rir. - Pedi para visitar Tróia pela boa impressão que o livro me deixou. - Verdade? – ele parece bastante surpreendido com as minhas palavras. – E estás do

lado dos gregos ou dos troianos? Não caio nessa. - Sou portuguesa. – respondo com veemência. O instinto leva-o a colocar o braço sobre os meus ombros, com o dedo indicador sobre

os lábios, prometendo-me guardar segredo. Um nervoso miudinho sobe-me apressadamente pelas pernas. Afasto o seu corpo do meu, meio atrapalhada. Olho em volta. Nem a mãe nem o pai

estão por perto. Óptimo, se não teria muitas explicações para dar. Respiro fundo. Ele ainda me observa, aguardando por uma resposta. Assim não vou conseguir aguentar a força dos seus olhos sobre os meus. Acalma-te. Está tudo bem. Controla-te! Ele aproveita para remexer as sobrancelhas. Acho que se diverte a provocar-me. Nada

respondo. A minha língua está momentaneamente colada ao meu céu-da-boca. Ele resolve-se, então, a comentar:

- Eu também não sou nem grego nem turco. Mas ninguém vem de propósito a Tróia sem tomar partido.

Continuo a achar que me põe à prova. Afinal, o que quer ele que eu responda? Que sou a favor dos romanos?

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Maria Galito 97 Força do Exemplo, 2001

Pigarreio. E giro em torno de mim própria. Atabalhoada, deixo que o meu mecanismo de defesa entre no automático. Que é como quem diz, passo ao ataque:

- Eneias fundou Alba Longa, a futura Roma. Ulisses, ou Odisseu, pode ter fundado Olissipo, a cidade de Lisboa. – ou seja, faço alusão à hipótese da palavra Olissipo provir do nome Odisseu, conforme à lenda que existia na Lusitânia por alturas da chegada dos romanos. Odisseu, ou Ulisses, herói da Odisseia de Homero, teria por ali passado alguns anos depois de conquistar Tróia e aquando se entregava nos braços da ninfa Calipso. Mateo mostra surpresa. Cruzo os braços, para enfim completar a frase. – Eu sou de Lisboa. Portanto... – e abro as mãos, em jeito de desafio.

Solta uma gargalhada maravilhosa: - Quem diria. Não fazia ideia. – mas logo transforma aquela hilaridade num desafio

desconcertante – Portanto, na guerra de Tróia estaríamos em lados opostos. Para ser sincera, era exactamente no que eu estava a pensar. Mas logo me ouço a inverter o discurso, como se assim não fosse: - Seja como for, se Odisseu alguma vez existiu nunca chegou às praias lusitanas. –

declaro, com firmeza; para diminuir o impacto das palavras. E acaricio as mãos, uma na outra, ainda sem encarar a esbelta figura de Mateo. Mas o hiato confunde-me, e acabo por investir novamente a toda a velocidade. – Não descendo de Odisseu mas de Viriato, o caudilho lusitano.

Faz cara alusiva à pergunta seguinte: - Quem é esse Viriato? A investida é indirecta mas incisiva: - Quem foi Cincinato?

Utilizei a mesma táctica de antes mas talvez não a devesse ter repetido. A reacção de Mateo mostra-se mais contida. Uma chama atravessa-lhe o olhar. Uma

chama que o sorriso esconde consideravelmente: - Estou a perceber. Ele é um dos vossos heróis. – e cruzando os braços – Deixa-me

adivinhar, combateu os romanos. – as suas sobrancelhas voltam a dançar. Enfim revela a razão do seu aborrecimento. Devo ter corado, mas consigo resistir: - Na realidade, a nossa História fala-nos de dois Viriatos, ambos resistentes corajosos

às invasões romanas. Mas o homem que inspirou as lendas que, pelo menos todos os portugueses conhecem, foi o segundo. – e com um sorriso modesto, gabando-o sem arrogância, como certamente gostaria que falassem dele – Era um líder nato, que conseguiu reunir sob a sua égide grande parte dos povos da Península Ibérica. Mas mais do que isso, talvez, era um espírito muito livre e íntegro. Um herói que inspirou todos quantos o conheceram, ou dele ouviram falar.

Mateo enfim demonstra alguma impaciência: - Um Vercingetorix. Correspondo com um sorriso malicioso: - Tecnicamente, Vercingetorix é que é um segundo Viriato. Atendendo a que o nosso

herói nasceu muitos anos mais cedo. Para mais, não sofreu a vergonha de desfilar num triunfo romano.

Mateo reage emotivamente, sentando o corpo sobre pernas bem abertas. Postura de uma defesa/atacante:

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Maria Galito 98 Força do Exemplo, 2001

- Mas foi morto pelos romanos. – declara, já farto. Consegui desconcertá-lo. Ainda não percebi muito bem porque razão não faço outra coisa se não picá-lo. – É isso que me queres dizer, não é? – remata, antes de eu encolher os ombros e lhe responder com um simples e redondo não. A declaração foi suficientemente breve e neutra para o surpreender. – Como assim, não?

Mateo parece um moscardo de roda de uma lâmpada, confundido com o poder da luz. Mas a que tipo de jogo me entrego? Estarei a brincar com as suas emoções? A testá-lo?

A ver como reage? Essa parece ser, tanto a sua dúvida, quanto a minha. Aventuro algumas explicações: - Viriato foi morto à traição, por três chefes béticos que, supostamente, se diziam seus

amigos e aliados. – respondo-lhe, com alguma emoção na voz. – Eles tinham acesso directo à sua tenda, para o poderem avisar sobre qualquer emergência. Aproveitando-se desse privilégio, foram ter com Viriato, à noite, sem levantar suspeitas e mataram-no enquanto dormia, com um golpe na garganta, o único sítio não coberto pela armadura. Viriato não pôde sequer defender-se. Os lusitanos choraram-no amargamente. – respiro fundo – Mas os béticos também não se ficaram a rir. Não receberam o pagamento estipulado pela captura do herói lusitano. Quando chegaram a Roma, receberam como resposta que não agradava aos romanos recompensar homens que tinham morto o seu próprio chefe. Foi a partir daí que a lenda de Viriato nasceu. Aliás, é aos escritores romanos que devemos a perpetuação da sua memória. Se não fosse por eles, nunca saberíamos sobre a virtude, a bondade e a bravura de Viriato. Sim, ele deve ter sido um homem extraordinário, para chegar a ser admirado pelos seus próprios inimigos.

Endireito o porte, virada para os terrenos de Tróia e para o mar ao fundo. Mateo ainda escuta. Faz-se o silêncio. - Um Heitor. – ouço enfim, dos seus lábios. Os seus olhos cruzam-se com os meus. O sangue corre-me veloz pelas veias. Pestanejo. E o orgulho não compromete: - Não compares Viriato a ninguém. Para mais, nunca foi vencido. Mataram-no à

traição, que é diferente. – mas logo baixo os olhos, para os levantar de novo. Começo a achar que exagero. Falamos do que aconteceu há mais de dois mil anos, ora bolas. – Quero dizer, eu também gosto dos romanos. Sem eles, não tínhamos tido tantas estradas e pontes. – declaro, tornando a dar a volta ao texto.

Mateo fica silencioso. Mas logo solta uma gargalhada nervosa, acabando por passar as mãos pelos cabelos:

- Lá isso estradas e pontes... – ri-se, abanando a cabeça. Mas no que raio é que ele

está a pensar? Curiosamente, ele di-lo em voz alta. – És imprevisível, está visto... - Vou tomar isso como um elogio. – respondo num segundo. Remexo as pernas e

começo a entortar o pé. E ouço-me dizer. – Escuta Mateo, eu estou só a brincar. – tento explicar-me. Ele encosta-se ao muro, fixando-se na minha terceira ou quarta mudança de expressão. Ele parece não estar a levar-me a sério. Acabo por ser um pouco piegas. – Eu até sou simpática.

Ele aquiesce imediatamente: - E eu, então, sou todo paz e amor. Eu mereci esta. És mesmo parva! Ele está a gozar contigo. Rebolo os olhos, soprando os cabelos que me caem sobre a testa.

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- Bom, eu vou andando... – caminhando apressadamente. Não sei se por isso, afasta o corpo do muro e começa a andar a meu lado, encurvando-

se para ver se consegue manter contacto visual comigo: - Não, espera. Eu estava só a fazer um trocadilho. – e querendo que o escute com

atenção, passa a mão pelo meu braço – Roma também é Amor, se lermos a palavra ao contrário. Marte e Afrodite.

Estou tão atrapalhada, que horror! - Eu sei. – brinco, com um sorriso idiota. – Mas eu tenho mesmo de ir. – desculpo-

me. – As minhas irmãs chamam por mim. Ele quer demover-me mas parece não saber como. Até que desiste, encolhendo os ombros. - Está bem. Até já.

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IX Leonor belisca-me. Sou apanhada de surpresa: - O que foi? Leonor está fula comigo. E, ainda por cima, obriga-me a um relatório pormenorizado

sobre o que se passou junto ao muro. - Ora essa! E por que razão devo contar-te seja o que for da minha conversa com o

Mateo, posso saber? – resisto, indignada. Leonor explode fumo pelas orelhas: - Com que então, chama-se Mateo. O pai foi com a Joana comprar qualquer coisa para comer. A mãe avista-se a rabiscar

sobre um bloco de notas que comprou em Istambul. Adora esboçar imagens e ideias que lhe cruzam o pensamento, mesmo quando rodeada de ruínas.

Aproveita qualquer oportunidade para se debruçar sobre a sua paixão: o desenho. E sempre que o faz, ausenta-se deste mundo. Entra num universo à parte, onde nem o ruído de centenas de turistas a perturbam.

Leonor interrompe-me os pensamentos, levando-me abruptamente pelo braço: - Deixa-me ver se eu percebi. – pergunta, intolerante – Tinhas um deus à tua frente e

resolveste brigar com ele? – esbugalha os olhos. Encolho os ombros. Mateo não é assim tão bonito! Quero dizer, é possível que seja. A mana não me ouve mas talvez me leia, porque se exaspera – Vê lá se ele falou comigo? Ah, mas é bem feito. Quem lhe mandou meter-se com a irmã errada?

Devia porventura responder-lhe com mais calma. Devia. - O que tu não aguentas é que ele me tenha preferido a mim e não a ti. Pois olha,

aguenta. Cruzo os braços. Ela vai aos arames: - Eu viu-o primeiro. Tira-lhe as mãos de cima, que ele é meu! – explode, tossindo

fogo. Viro-lhe as costas, como se nada fosse. – Hás-de pagar-mas, Sancha. – ainda exclama, nas minhas costas.

Enfim, talvez a culpa seja um pouco minha. Não devia ter contribuído para uma discussão mais acesa. Mas mostro-me incapaz de resistir ao confronto:

- És a pessoa mais egoísta que eu conheço, é incrível. - Nunca mais te falo. – responde, na sua postura mais pueril, afastando-se a todo o

gás. Bonito serviço. Abano a cabeça. Por estranho que pareça, porém, mantenho o bom humor. Estou eléctrica e

divertidíssima depois que tive a minha estranha conversa com Mateo. Sinto-me leve. Pujante. Diferente.

Sento-me. A Joana senta-se a meu lado. Mas não traz nenhuma sanduíche. - Então, não foste com o pai? – pergunto-lhe, com um sorriso de orelha a orelha. - Fiquei a ouvi-las. Sempre é mais engraçado. Engraçado foi ver a cara de Mateo quando lhe disse que Ulisses tinha fundado Lisboa. - Mas os pais também nos ouviram? – desassossego-me por momentos. - Que eu saiba não. – e num sorriso discreto, desenrolando os fios ao leitor de CDs –

Mas vocês passam o tempo a brigar. Os pais já não vos ligam.

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Maria Galito 101 Força do Exemplo, 2001

É capaz de ter razão. Deixo-me rir a gosto: - Bom, uma vez que ouviste, o que é que achaste? - Que és uma pateta. – declara, para minha surpresa. Tenho um ataque epiléptico: - Como é que é!? - Já vais perceber. – avisa-me, sem mais ondas. Joana considera a questão rematada. Torna a colocar os auscultadores nos ouvidos e

aponta para a mãe que se aproxima de mim a passo rápido. Pelo ar que defende, a mãe vem acossada pelas feras da fúria.

Ainda conservo alguma serenidade, quando sou agarrada pelo cotovelo e soerguida do local onde me sentava:

- Sancha Rodrigues Lobo. – a mãe chama-me pelo meu nome completo. Isto é mau sinal. – Partiste algum dos copos da bisavó Teles?

O copo? Levo a mão ao peito. A memória precipita-me para o passado. Mais precisamente para a semana passada, na

véspera da partida para a Grécia. O dia em que eu, inadvertidamente, deixei cair ao chão uma peça do século XIX, que fazia parte da decoração da sala. Um dos maravilhosos copos altos, debruados a ouro, que faziam parte do recheio da casa da bisavó Josefina e que a mãe adora e sempre costuma elogiar.

Pois eu deixei cair um ao chão. Uma desgraça que logo partilhei com a Leonor, a única que estava em casa, e que me

aconselhou a pedir à Dra. Clara, uma das nossas vizinhas – que é muito nossa amiga e que é decoradora – para nos ajudar a concertar o prejuízo. Com sorte, só diria à mãe quando regressássemos da viagem e o copo tivesse sido restaurado. Para que o impacto da notícia fosse minorado e o castigo reduzido.

Mas agora, a Leonor tinha contado. Na pior altura. Quando me encontro num posição indefensável, apanhada em falta por ter partido o copo e omitido a verdade. A mãe nunca me vai perdoar.

- Calma, mãe. Eu já tratei do assunto. Eu mandei concertar... - A quem? Aqueles copos são uma preciosidade! São únicos, filha! A Leonor vingou-se de mim, está visto. Como vou eu, descalçar esta bota? A descompostura vem e dela não me posso escudar. A mãe simplesmente esqueceu-se da promessa que nos fizera, de não nos repreender em

público. A tarde mal principiara e para mim já o dia terminara. Começo a andar e afasto-me. Estou aborrecida. Mas também – valha-me a sorte! – sou sempre apanhada! A Leonor e

a Joana podem fazer mil asneiras que nunca lhes acontece nada. Eu, por sua vez, faço um erro e não tenho escapatória possível. Detesto ser a irmã mais velha!

Malvada a ideia que tive de fazer finca-pé com a Leonor. Porque raio é que lhe disse aquelas parvoíces? Por causa daquele rapaz o Mateo, que nunca mais vou ver na vida? Valeu mesmo a pena, não haja dúvida!

O meu pai faz-me sinal. Aproxima-se a passo rápido, ostentando um sorriso de orelha a orelha. Está agora a dois passos e traz na bagagem uma expressão meiga. Traz consigo um lanchinho, dentro de um saco de papel:

- Ainda temos meia hora para visitar o recinto arqueológico, minha querida. Porque não aproveitamos para ver o resto das ruínas.

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Encolho os ombros: - O pai o disse. São só ruínas. - Devem estar uns quarenta graus… – responde, sem outra consequência. – Come.

Não é boa política ficar de barriga vazia. O pai opta então por sentar-se de lado, na cadeira da frente, como ninguém quer a coisa. - Minha querida. Não podes ligar aos exageros da tua mãe. Mordo o lábio. - Vim para aqui porque... estava calor. – e dou duas dentadas à sandes. O pai abana a cabeça, concentrado nos seus pensamentos: - Maldito copo da bisavó Teles! Com tantas baixela e serviços que a casa tem!

Francamente! – e virando-se para mim – Meu anjo, eu sei que foi um acidente. Mas podias ter-nos contado. – e passando a mão pelo meu cabelo. – Querias tanto visitar Tróia… viemos cá de propósito. Vá, anda com o pai.

Encolho os ombros, arrastando as palavras: - Oh pai, eu… estou aqui tão bem… Mas uma voz de tempestade interrompe-me a melopeia: - Então o pai vem buscá-la e a menina diz-lhe que não vai? Como é isso? – viro-me.

A mãe! Começo a balbuciar. – Levante-se imediatamente e acompanhe os seus pais. – engulo em seco. Ela prossegue. – Onde já se viu? Viemos de propósito a Tróia por sua causa e agora faz-nos uma cena destas? Saiba comportar-se, que os seus pais não merecem uma desfeita destas.

O pai interpõe-se entre as duas. Eu há muito que deixei de oferecer qualquer resistência. - Chega. Acaba com isso. Deixa a menina em paz. Levanto-me. Não posso deixar que os pais briguem: - Mãe, aquilo do copo… foi um acidente. A mãe não responde. Cruza os braços, colocando o joelho sobre o assento da frente. O pai mantém-se como advogado de defesa da minha causa: - Estamos fartos de discutir essa questão lá em casa. Esta semana era para termos

todos umas férias, lembras-te? A pergunta poderá ter surtido algum efeito. Aguardamos pela sua resposta. - Estamos em férias, é verdade. O pai passa a mão novamente pelo meu cabelo. A mãe dá-me um beijinho e enrola-me com o seu abraço. Enfim… sinto-me aliviada. É com mais ânimo que procuro pelas minhas irmãs. - Voltaste? – enfrenta-me a Leonor, aproximando-se. Minutos antes ter-lhe-ia respondido com aspereza. Mas o meu estado de ânimo mudou.

Leonor é minha irmã. Preciso aprender a lidar com ela. Decido-me por um sorriso desafiante:

- Portanto, estavas com saudades minhas… Apanhada desprevenida, primeiro não rege. Depois atira para cima dos ombros, um: - Deliras, só podes... Deixo-me rir e sento-me a seu lado. Em silêncio. Leonor observa-me das suas longas pestanas. Nada diz. Até deixar de oferecer

resistência. - Pronto, está bem, já percebi… - Percebeste o quê?

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Encolhe os ombros, fixa num ponto qualquer à sua direita. Até que toma uma atitude: - Eu não devia ter dito aquilo à mãe… depois de te prometer que não o faria. Mas tu

também não devias… Interpelo-a, porque sinto necessidade de o fazer: - Ter falado com um rapaz que veio ter comigo? Ou ter brigado com ele? – o tom das

perguntas, mais sarcástico que circunspecto, desperta-lhe o riso – O que querias que eu fizesse? Por acaso viste que ele era “lindo de morrer”? – atiro-lhe, usando uma expressão por ela tanto repetida.

O riso desperta no rosto das duas. Mas é escamoteado e mais ainda engolido. Nenhuma quer entregar as pontas. Ou, pelo menos, assim pensava eu.

Leonor acaba por cruzar os braços, passando a mão nervosamente pelo nariz: - Acho que fiquei aborrecida porque ele foi ter contigo e não comigo. Já não sou

Afrodite? – pergunta aos céus, de mãos abertas – Devo estar a perder qualidades… A sua maneira de pensar, às vezes, é bastante pueril. Ao ponto de desafiar a paciência… Mas sei que, ao dizê-lo, se confessa. Lanço-lhe a asa sobre os ombros. Não posso ser condescendente, ou não me prezará as

palavras que lhe dirijo. Tento ser engraçada – porque costuma obter mais resultados: - Até a Afrodite precisa descansar de vez em quando… – e pisco-lhe o olho. Produz

efeitos imediatos. A mana ri-se, mostrando os dentes até às nuvens. Encolho os ombros. Talvez não devesse, mas acabo por ceder. – Não seja por isso. Eu não falo mais com o Mateo e acaba-se o problema.

Mas Leonor faz cara dúbia: - Deixa-te de parvoíces. – refuta, antes de apontar discretamente – O rapaz ainda não

te tirou os olhos de cima. – sigo a direcção que me propõe e apercebo-me da verdade do que diz. Enrubesço da cabeça aos pés. Leonor encavalita-se nos seus altos trunfos. – Para mais, no autocarro há um francês muito mais giro que o Mateo. Não viste? – pergunta, ante o meu pasmo – Pois claro, tu nunca reparas em nada!

Esta rapariga não tem emenda.

Lá vai o nosso guia, Tashin. Será que é hora de partir? Afinal, parou junto a uma loja. Ainda não segue para o autocarro, fazendo algum

tempo de conversa com um grupo de caras que me não são completamente estranhas. Sim, penso que são turistas do nosso autocarro.

Torno a concentrar a atenção na minha família. - Então? Estão a gostar da cidade de Tróia? – aguardo resposta. Encolhem os ombros,

abrasadas que estão pelo cabelo e pelas ruínas onde reina o pó. - Que raio de cidade! Ficou tudo em ruínas. – Leonor lança os braços ao ar,

inconformada com a ideia de percorrer tantos quilómetros para ver… “aquilo”. - Estou cheia de sede… - queixa-se a Joana. - Prefiro histórias sobre a construção de alguma coisa. Não admira, sou arquitecta.

A mãe observa as ruínas atentamente: - Eu acho interessante. A guerra, a ter existido, teve ter sido um grande

acontecimento na época. Os poetas falavam de heróis, de grande façanhas. Ou seja, haveria com certeza um fundo de verdade…

O pai descruza as pernas, antes mantidas em triângulo. Está inconformado com o calor.

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- A terem existido!? – acaba por dizer – Por amor de Deus, tenham juízo. Isso são histórias. São mitos. São tretas. – insiste o pai, abanando a cabeça.

- São lendas. Pelo que devem ter um fundo de verdade. – tento acrescentar; para que, se não uma porta, ao menos uma janela continue aberta.

O pai encolhe os ombros, indiferente: - Não têm fundo nenhum de verdade. São lendas, contos, histórias; fruto da

imaginação, se não de uma pessoa, de um colectivo. – o pai mostra-se resoluto em separar as águas – Tradição oral. Produto literário. Lendas e factos nada têm em comum, pelo que não se devem misturar. – remata, de mãos bem abertas.

- Platão detestava Homero... – ouço-me murmurar. O pai continua resoluto: - O que me importa é a vida real. É no quotidiano, nas pessoas que conheço e com

quem partilho tempo e espaço, que identifico padrões que admiro. As lendas nada me dizem. – e virando-se para nós, as suas filhas – Agarrem-se à realidade. Que é mais objectiva e verdadeira.

- Eu concordo com o pai. A cem por cento. – esclarece a Leonor, tomando partido. A mãe está pronta a defender o seu ponto de vista. Até porque ela é toda tradição,

sangue do seu sangue, herdeira de valores que lhe correm nas veias há sucessivas gerações. Razão porque as suas palavras seguem nesse sentido, ao chamar a atenção para o facto de:

- Não sei se a lenda de Tróia se reporta a eventos passados, mas e se assim for? Na antiguidade poucos escreviam. Os eventos eram transmitidos de boca em boca. Então, os heróis não têm porque ser inventados. Podem corresponder a personagens históricas. – e num olhar que desafia – Havia pessoas a viver nesta terra há três mil anos, João Pedro. Fossem eles quem fossem. – recorda, com alguma insistência. – Actualmente, há quem esqueça que quem viveu há cem, quinhentos, mil, dois mil anos, eram pessoas como nós. Todos nós temos avós e sabemos que um dia teremos netos, mas dificilmente concebemos a possibilidade dos nossos avós terem tido avós, e assim sucessivamente, sem cairmos no ridículo de os imaginar exóticos e estranhos, como se só pudessem ter comportamentos extremos e censuráveis. Mas eram pessoas como nós, que simplesmente nos precederam no tempo. E os seres humanos não são objectivos. Nem hoje, nem ontem, nem amanhã.

O pai aceita parcialmente o argumento: - Não eram exactamente iguais a nós, tem paciência! E quanto mais tempo recuares

no tempo, mais diferenças lhes acharás. Mas tudo bem, a realidade de hoje não tem porque ser objectiva. Mas eu disse mais objectiva. Porque, pelo menos, temos acesso directo a ela. Podemos interpretá-la em primeira mão. O nosso ponto de vista não tem intermediários.

A mãe prefere troçar do comentário: - Pois, exceptuando o papel dos jornais, da televisão, dos filmes, da Internet… o que

disse o colega, ou contou a mãe do tio da amiga. O pai faz pouco caso e deixa-se rir: - Não desconverses, que sabes muito bem ao que me estou a referir. – declara,

enquanto a nossa mãe encolhe os ombros. Ao que o pai resolve alumiar a ideia principal do seu primeiro argumento – Só tinha pedido para não misturarem lendas com realidade e mantenho-o. – esclarece, determinado a defender a sua causa –Quero as nossas filhas a raciocinar sobre o presente e sobre a mentalidade

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dominante nos dias de hoje. Elas não precisam perder tempo com valores mais que ultrapassados.

A mãe parece incrédula: - Era o que faltava! A Honra não está na moda!? A questão começa a seguir um outro rumo. Olho ora para um, ora para outro. Os pais discutem agora sozinhos. Eu e as manas

fomos, subitamente, delegadas para segundo plano. - O que se tem feito pelo mundo fora em nome da honra, até assusta uma pessoa. –

refuta o pai, desejoso de terminar com a conversa. - E quem te diz que essas pessoas sabem o que a honra significa? - E tu sabes? – o pai não parece disposto a conformar-se. - Claro que sei. Tanto que transmito esse conhecimento. – afirma, segura de si. Mas

não explica porquê. – Um jamais obsoleto! – exclama, vincando as sílabas, não se deixando intimidar – Insisto, portanto, que vale a pena investir na Honra Pessoal, na Valentia, na Coragem, na Excelência.

- Na Brutalidade, na Guerra, no Sacrifício... – ataca o pai. A mãe reage com muito pouca calma: - ;ão! – quase grita, mas controla-se a tempo. – Estes são perfeitamente

enquadráveis num projecto pacífico, democrático e de Estado de Direito como aquele que professamos. A honra e a valentia são virtudes. A Rectidão, a Força de Vontade e a Responsabilidade, são outras virtudes. Visam moldar o nosso carácter, para seremos Pessoas de Valor.

Aproximo-me das manas, lentamente, sem fazer o mínimo barulho. O pai persevera: - ;ão vivemos no tempo de Afonso Henriques! Francamente. Os Teles insistem em

transmitir esses valores medievais, alguns dos quais comuns aos da Ilíada. – passa a mão pelo rosto – Mas a nossa época não se compadece. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», não era Camões quem dizia? As nossas filhas precisam adaptar-se aos tempos modernos, integrar-se no mundo de hoje, ser mais permeáveis ao que se passa de facto à sua volta.

A mãe começa a aborrecer-se: - Permeáveis? Não acredito, João Pedro. – subleva-se – Há valores que são

intemporais. Só têm de ser interpretados de acordo com a mentalidade da época. - Há valores que deixaram de fazer sentido. E ainda bem! – prefere exclamar o pai. A Joana já dava sinais de inquietação mas, de repente, algo nela perde a imensa timidez

que a caracteriza, perguntando com a intensidade dos seus doze anos: - Mas ao menos o valor da família não deixou de fazer sentido, pois não? Somos apanhados de surpresa. Concentrando a nossa atenção na Joana, que não está visivelmente a brincar, cria-se um

hiato que poderia ter sido longo, mas que apenas repousa na estranheza da pergunta. O nosso guia Tashin, faz-nos um aceno. Pelos vistos, o nosso autocarro já espera pelo

seu grupo de turistas. Aquele simples gesto parece obrigar-nos a acordar. A mãe é a primeira a reagir: - Minha querida, porque perguntas isso. É claro que a família é importantíssima. A Joana contrapõe à velocidade do som. O que não é de todo a regra: - Então porque passam o tempo a brigar? – insiste, numa expressão tão

circunspecta, que transpira incerteza. Ela está mesmo preocupada.

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O que nela, é outra excepção que confirma a regra. Entreolhamo-nos. - Não sei se passamos o tempo a brigar... – diz o pai. A mãe enrosca a filha mais nova num abraço forte. A Joana treme-lhe junto ao peito

como uma cria de coelho: - Meu anjo, não estejas assim. Não são brigas, são diferenças de opinião. Arrufos

passageiros. Mas a Joana rebela-se, livrando-se do abraço, como se recusasse paninhos quentes: - ;ão é verdade. Passamos o tempo a discutir! – exclama, numa explosão de energia

– A Sancha com a Leonor. A mãe com a Sancha. A mãe com o pai. - Era suposto divertirmo-nos na viagem. Mas estamos na mesma, como a lesma! Respiro muito lentamente. - Então, filhota? – sossega a mãe, recuperando-a para debaixo do seu abraço

apaziguador – Não te preocupes, meu anjo. O pai senta-se à direita das duas. Mas as palavras mansas não se mostram suficientes. A Joana continua muito aflita: - A mana não está zangada com a mãe. – apresso-me a dizer – Estou perfeitamente

consciente de que a mãe só me está a tentar ajudar. A Leonor segue o meu exemplo: - E eu só ralho com a Sancha, porque... ela é minha irmã. – atira, numa expressão

deliciosamente divertida – Preferes que me meta contigo? – pergunta, já a rir, fazendo-lhe cócegas.

O pai aproveita para lhe afagar a mão, dizendo: - E eu e a mãe não estamos aborrecidos. Se às vezes brigamos em casa, não é porque

não gostamos um do outro, ou de vocês. De repente, o silêncio. Apercebemo-nos que, para sossegar a Joana, acabámos por,

muito naturalmente, ultrapassar barreiras que podiam, de facto, existir. É preciso constatar que o pai e a mãe discutiram bastante nas últimas semanas. Tanto

que a viagem se transformou numa necessidade. Para arrefecer a atmosfera que se respirava em casa e lhe era oferecida uma nova dinâmica.

Pensando bem, quantas vezes eu e a Joana tínhamos comentado o assunto, na presença da Joana, sem que ela esboçasse uma opinião? Ela é sempre tão calada! Pelos vistos, germinava o assunto quando a julgávamos amorfa ao que se passava à sua volta. Preciso ter mais cuidado com ela.

Com ela e com a Leonor. Mas como, se somos duas incorrigíveis? Enquanto juntas, somos uma fonte de atrito crónica. Discordamos com frequência sobre os assuntos mais banais. Enfim, também é verdade que sempre fomos assim. Nem recordo uma altura em que não houvesse picardia, esta toma lá dá cá, que, simultaneamente, não põe em causa a relação fraterna e de sangue que nos une.

Em relação à repreensão que a mãe me deu – às duas que recebi hoje! – que posso dizer? Compete aos filhos compreender os desígnios dos progenitores, quando estes são louváveis. Sendo o caso, o resto do caminho tem de ser feito por mim, para não haver mais erros futuros. Aprender é um processo que está longe de ser fácil. E eu sei que, acima de tudo, a mãe tinha boa intenção. Isso me basta para lhe perdoar as palavras menos agradáveis que me dirigiu. Não sou tão frágil que me vá abaixo às boas.

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O mais importante, é que sejamos e nos mantenhamos uma família. Tendo em mente o bem comum, visando a harmonia.

O pai, por seu lado, raciocina em voz alta: - A Joana tem toda a razão. Precisamos ser mais unidos. Uma família não é apenas a

soma das partes. É um todo que funciona em conjunto. Sento-me muito direita, com as mãos nos joelhos. Isto quando o autocarro nos espera e

devíamos estar de partida. Mas um peso maior ainda me sobrecarrega os ombros. A Leonor senta-se ao lado da mãe, agarrada ao seu braço. - É possível que tenhamos ido além da conta. Não têm sido umas semanas muito

fáceis. – confessa a mãe, no seu jeito muito digno. Respira lentamente. Insofismável, procura reunir nas suas mãos as das suas filhas e do marido, comprometendo-se. – De hoje em diante será diferente.

- A sério? – pergunta a Joana, mas mais num pedido, recheado de reticências. A mãe, pela primeira vez desde há muito tempo, começa a duvidar das suas próprias

certezas: - Oh, minhas queridas. Se eu pudesse, era um mar de rosas, mas a vida exige. – diz,

muito séria, afagando os cabelos da Leonor – É o excesso de trabalho. Mas o que querem, passo o tempo no escritório! – culpa-se, abanando a cabeça.

- E eu, quantas vezes consigo chegar a casa antes das oito da noite? – pergunta o pai, envolvendo-me no seu abraço. – Podíamos talvez fazer mais, mas temos tentado ao máximo das nossas forças, sabiam?

Corta-me o coração ouvi-los pronunciar estas palavras. Não consigo, não posso admitir que se censurem quando a experiência me diz que são

admiráveis no seu papel de pais. Então, porque é que o dia deu tantas voltas? Como chegámos a esta situação?

- Por favor. – avanço, com veemência – Mãe, pai, não estamos a pedir mais empenho – acotovelo a Joana – Chega, mana. – insistindo depois – Eu acho, nós achamos, que são os melhores pais do mundo!

Agradecem, na expressão de mil sóis. Mas é a mãe quem me dirige o maior encómio: - Foi a ti que estes últimos tempos mais exigiram, Sancha. Ainda assim, és a mais

disposta a manter a casa de pé. Isso é uma qualidade, filha. Revela nobreza de carácter.

O encómio quase me levava às lágrimas, não fosse uma igualmente repentina força de vontade para gerir os impulsos. E porque palavras não consigo pronunciar, sem embargo de voz, devoto-me a um sorriso, escondendo o rosto.

Entretanto, a mãe vira-se para a Joana, para saber se a nuvem passou: - E tu, minha linda, andaste este tempo todo preocupada. Peço-te, pois, que, para a

próxima, quando tiveres algum problema ou quiseres conversar, não te coíbas. Não passes o tempo com a música nos ouvidos ou a jogar no telemóvel. Fala comigo, com o teu pai, com as tuas irmãs, mas não te feches. Diz o que pensas e sempre que quiseres, como fizeste agora. Somos uma família. Estamos aqui para te ajudar. – ela contorce-se, já carregada de mimo. – A nossa menina. – embala a mãe – Ás vezes até nos esquecemos que és tão novinha. – e virando-se para nós – As tuas irmãs daqui a pouco são grandes e a Joaninha sê-lo-á um dia. – ao que, procurando novamente a mão do pai, que rapidamente lhe corresponde – Já viste como o tempo passa. Ainda ontem eram uns bebés e vê como cresceram.

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A Joana enrola-se nos braços da mãe. Parece mais serena. Eu e a Leonor recebemos a nossa quota de afagos. O pai e a mãe empenham-se em

reconstruir um ambiente harmonioso à nossa volta: - Vocês as três, minhas filhas, são o que temos de mais importante. – recorda o pai,

para que tal fique bem claro nas nossas cabeças. A mãe, visivelmente emocionada, pede mais, voltando a pegar-nos pelas mãos: - Prometam que seremos sempre uma frente unida e que nada o porá em causa. O pai, porém, vem em seu auxílio, reparando as pedras da muralha: - Não é preciso prometer, Matilde. Já o somos. – lembra, na sua voz calma, tão

segura que nos tranquiliza. Não que pairasse alguma dúvida, mas é necessário ouvi-lo de vez em quando, para não termos a sensação de que o que é verdade hoje, é mentira amanhã. Mas o pai ainda tinha uma surpresa; ao acrescentar, mirando nos olhos grandes da nossa mãe – Desde o dia em que te pedi em casamento que soube que era para a vida e não me arrependo. Construímos uma família muito bonita.

Palavras que encantaram a mãe, e nos envolveram aos cinco num abraço forte. Foi este o nosso adeus a Tróia. Guardo-o na memória, desde então. Um sinal de esperança, de derradeira segurança; que nos reafirmou certezas; que me

conferiu chão, para prosseguir viagem. Lembro-me que a Leonor ainda disse qualquer coisa como: - Está toda a gente a ver! Parecemos uns tontos. Ao que o pai terá exclamado, num sorriso divertido: - Pois que vejam! Uma família unida é sempre um quadro de referência. Cada vez

mais rara... – e retirando-lhe o chapéu para lhe beijar a testa – Não sejas refilona. Quero beijos e abraços. E muito mimo, que somos lobos. – concluiu, num clara alusão ao nosso sobrenome.

O que não deixa de ser interessante. A alcateia é um dos mais belos exemplos de organização familiar. E a loba, é o símbolo de Roma – quando os portugueses também são um pouco latinos.

E assim foi. Apesar dos percalços, a viagem fortaleceu os laços que nos uniam. Mais um exemplo entre muitos que me ficaram na memória. E que testemunhou a

capacidade da nossa família em recuperar dos acidentes de percurso. Não é menos certo que é agregado exigente, em compromissos e empenhamento. Ainda

assim, nunca se manteve presa a roldanas, por questões de funcionalidade; sempre foi fruto de uma serena transmissão de valores e respeito. E muito amor.

A família é isso mesmo. A base da pirâmide sobre a qual se constrói uma vida. Sem uma família mais parecemos células dispersas sem formar um corpo. A viagem terminou pouco tempo depois e regressámos todos a casa. Na segunda-feira seguinte, paguei o copo agora recuperado, mas meio desconjuntado. Curiosamente, encontrei outro parecido. Lembro-me como se fosse hoje. Encontrei a

pequena relíquia, numa loja de antiguidades de janelas pombalinas, na Rua do Ouro em Lisboa. Parece que estou a ver o senhor que me atendeu: muito direito, com umas suíças e um rosto redondo.

- Uma sorte. Um achado. – cheguei a dizer a viva voz, enquanto o senhor fazia o embrulho com rigor de mestre.

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Maria Galito

Força do Exemplo, 2001

E que foi que ele me resp- Quem procura semprSorri, encantada da vida.A mãe recebeu assim do

surpreendida com o facto dosa relativizar a importância do

Isto passou-se uns dias depois celebrado no castelofeliz, sem brigas, em que reia navegar pelas ondas do ma

A Tróia portuguesa, juntcasa. Não era Homero, era

e respondeu. Nunca mais esqueci: sempre encontra. vida. im dois copos. Ficou muito contente com a minhcto dos copos da bisavó Teles, afinal… não serem úcia dos bens materiais. dias antes do pai completar cinquenta anos. Aastelo de Setúbal, com vista sobre Tróia. Um peue reinava uma paisagem maravilhosa, debruada pdo mar. a, junto às ruínas romanas da antiga cidade, estav, era Sancha quem contava. Mas era a minha histór

Fim.

º`tÜ|tº`tÜ|tº`tÜ|tº`tÜ|t Força d

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minha façanha, embora erem únicos. Obrigou-se

os. Aniversário que foi m período que recordo uada pelo espelho de luz

estava ali bem perto de istória.

`tÜ|t `tÜ|t `tÜ|t `tÜ|t ZtÄ|àÉZtÄ|àÉZtÄ|àÉZtÄ|àÉ orça do Exemplo, 2001