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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI
24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR
Nossa guerra revelada pela Cia de Foto1
Flávio Pinto Valle2
Resumo: Quando vemos um texto visual, o sentido que produzimos não depende
somente daquilo que é visto, mas também de um conjunto de interações com aquilo que
não é visto e, no entanto, conforma o que vemos. À relação visual entre sujeito e mundo
mediada por um conjunto de discursos e de redes significantes, denominamos
visualidade (ABRIL). Neste artigo, nos dedicaremos a compreender a maneira como
uma série fotográfica promove uma visualidade. Em específico, nos interessa observar o
modo como a Cia de Foto revela uma visão socializada da guerra por meio da
elaboração de um ensaio mediante a produção de novos textos visuais baseados em
fotografias do arquivo do coletivo.
Palavras-chave: Cultura Visual; Visualidade; Fotografia de Guerra; Cia de Foto
Abstract: When we see a visual text, the meaning we produce depends not only on
what is seen, but also of a set of interactions with what is not seen and, however,
conform what we see. To the visual relationship between subject and world mediated by
a set of discourses and a significant networking, we call visuality (ABRIL). In this
article, we will dedicate to understand the way a photographic series promotes one
visuality. In particular, we are interested in observing how the Cia de Foto reveals a
socialized view of the war through the preparation of an essay by producing new visual
texts based on photographs of the collective file.
Keywords: Visual Culture; visuality; War Photography; Cia de Foto.
Introdução
Durante a primeira década do século XXI intensas mudanças ocorreram
no campo das fotografias. A otimização e a popularização das câmeras digitais, dos
softwares de edição, da internet, das redes sociais online e da telefonia móvel
aumentaram exponencialmente a produção, a circulação e a reprodução de imagens
técnicas. Após o deslumbramento que marcou o final do século XX, os usuários
alcançaram um primeiro estágio de maturação no domínio dessas tecnologias que
alterou radicalmente a prática fotográfica. Este cenário contribuiu para revelar, ou
ostentar, aos usuários aquilo que desde 1840, quando Hippolyte Bayard publicou a
1 Trabalho apresentado no GT 7- Fotografia, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e
Imagem - ENCOI. 2 Doutorando no PPGCOM/UFMG. Email: [email protected]
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fotografia “Autorretrato como afogado”, é conhecido por alguns críticos, fotógrafos e
pesquisadores: a dualidade do jogo fotográfico que pelo mesmo movimento que registra
o mundo visível à câmera também cria mundos fotográficos. Eder Chiodetto (2013: 11)
destaca que
Tal percepção fornece nova e ampla liberdade aos profissionais da imagem e
aos artistas, que agora podem atuar em uma transição mais espontânea e
menos dogmática em meio a conceitos de difícil demarcação territorial, como
realidade e ficção, sobretudo nas práticas fotojornalísticas e documental.
A crise promovida pela desconstrução do estatuto realista da fotografia
deu lugar a um conjunto de experimentações que acabaram por expandir suas fronteiras,
como mostram as obras dos 52 artistas e coletivos reunidas na exposição Geração 00: a
nova fotografia brasileira (CHIODETTO, 2011), resultado do mapeamento da
produção fotográfica brasileira contemporânea realizado por Chiodetto. O objetivo
dessa pesquisa curatorial era observar como o desenvolvimento tecnológico contribuiu
para ampliar o repertório de possibilidades expressivas dos fotógrafos brasileiros.
As evoluções tecnológicas, portanto, rondam toda a produção dessa Geração
00 nunca como um fim em si mesmo, mas oferecendo uma plataforma a
partir da qual seus agentes vão buscar, com um leque mais amplo de
possibilidades, esboçar a expressão mais genuína para representar seus temas
e conceitos. É dessa forma que atestamos, nesse período, uma súbita
ampliação de repertório nas estratégias que cada produtor de imagens utilizou
para construir narrativas e poéticas originais. (CHIODETTO, 2013: 11)
Dentre as obras que integram a exposição, está o ensaio fotográfico
Guerra (Ver fotografias 1 a 8) elaborado pela Cia de Foto entre 2008 e 2011. Nesta
série, a companhia mostra um mundo em guerra. Mediante a releitura de fotografias
depositadas nos aquivos de seus integrantes, o coletivo nos conta uma história de guerra
com base naquilo que imagina acerca dela. No Brasil, conhecemos a guerra apenas por
meio das imagens dela que nos são mostradas. Todos nós a temos imaginada e para
cada um de nós ela se apresenta de uma maneira diferente. Os fotógrafos da Cia
reconhecem essas imagens nas fotografias tomadas em suas rotinas diárias. Por meio do
processamento digital e da articulação delas em um conjunto, eles fazem aparecer o
conflito que se esconde sob as camadas de rotinas sociais que constituem o cotidiano
em uma grande metrópole como São Paulo. Os textos visuais que eles produzem
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revelam imagens de uma guerra que ainda não existia nas fotografias no instante da
tomada porque ainda não haviam sido imaginadas. Sobre a elaboração dessa série, os
integrantes do coletivo contam que
Definimos os códigos de uma guerra que está aqui, exatamente em nós, e se
forma ao abrirmos o arquivo fotográfico da Cia de Foto, O mundo íntimo,
imaginado, termina por protagonizar um conflito. Nossa casa, nossos filhos,
nossas viagens e paisagens, nosso bairro, as janelas de nossos vizinhos, são
os lugares de onde essa guerra emana e se pauta não por fatos mas pelo andar
fictício de nossas imagens. E, nessa maneira de contar uma história, um
evento em nossas vidas aparece, mas só depois de tornar-se fotografia, e o
mesmo tem efeito sobre nós. (CIA DE FOTO, 2014a)
Fotografia 1: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 2: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)
Fotografia 3: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 4: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)
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Fotografia 5: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 6: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)
Fotografia 7: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 8: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)
Pós-fotografia
O rápido desenvolvimento das tecnologias digitais de comunicação e
informação vêm promovendo profundas transformações no campo das imagens
técnicas, que encontram na fotografia seu modelo conceitual. O registro indicial
fotográfico não apenas se tornou traduzível em informação numérica, como passou a ser
processado como tal. Além disso, também se tornou possível a síntese de “imagens
fotográficas” com base em algoritmos. Monique Sicard (2006), destaca que essas
imagens sintéticas por vezes são apresentadas como fotografias: como se elas
conservassem um vestígio de algo que tivesse efetivamente ocorrido e tivesse sido
visível a uma câmera fotográfica. Arlindo Machado (2011) ressalta que a computação
gráfica é capaz de traduzir os postulados estéticos e matemáticos do Renascimento em
textos visuais capazes de emular a aparência de fotografias.
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A partir do computador, o “realismo” resulta visivelmente desencarnado, sem
qualquer vinculação direta com a paisagem registrada. O realismo praticado
na era da informática é um realismo essencialmente conceitual, elaborado
com base em modelos matemáticos e não em dados físicos arrancados da
realidade visível. (MACHADO, 2011: 210, grifo do autor)
A situação criada pelo desenvolvimento da computação gráfica impactou
sobretudo a concepção tradicional da fotografia. A digitalização colocou em crise o
realismo da fotografia que perdeu sua capacidade de atestar a preexistência da coisa
fotografada, como afirma uma teoria da fotografia fortemente marcada pela noção de
índice (BARTHES, 1984; BAZIN, 2013; DUBOIS, 2008; SCHAEFFER, 1996). Em
outro artigo, em que trata do impacto da eletrônica na fotografia, Machado afirma:
A crença mais ou menos generalizada de que a câmara não mente e de que a
fotografia é, antes de qualquer outra coisa, o resultado imaculado de um
registro dos raios de luz refletidos pelos seres e objetos do mundo, enfim,
toda essa mitologia a que a fotografia tem sido associada desde as suas
origens, tudo isso está fadado a desaparecer rapidamente. (MACHADO,
2005: 312)
Processos de manipulação da imagem técnica são conhecidos desde a
invenção da fotografia. Entretanto, as alterações físico-químicas feitas em laboratório
eram possíveis de serem descobertas sem grande dificuldade através de exames
microscópicos. Com o processamento digital, tornou-se extremamente difícil, talvez
impossível, a descoberta destas alterações do registro fotográfico, pois a operação
digital permite o apagamento das marcas de sua intervenção. Nesse sentido, Machado
ressalta que
Uma vez que agora se pode fazer qualquer tipo de alteração do registro
fotográfico e com um grau de realismo que torna a manipulação impossível
de ser verificada, a conclusão lógica é que, no limite, todas as fotos são
suspeitas e, também no limite, nenhuma foto pode legal ou jornalisticamente
provar coisa alguma. (MACHADO, 2005: 312)
Devido à popularização dos recursos de processamento digital, que hoje
vem integrados a própria câmera, a fotografia já não se apresenta ao observador como
um atestado da existência prévia do objeto fotografado. Nesse cenário, o papel do
fotógrafo vem se reduzindo ao de um coletor de fotografias que servirão de matéria-
prima para a produção de diversos textos visuais por meio do processamento digital.
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Os limites entre a fotografia como registro da luz e a iconografia dos meios
de comunicação tornam-se imprecisos, na medida em que o registro é tomado
e explorado no que tem de potencial gráfico, na medida em que o resultado
buscado é mais pictórico do que fotográfico e na medida ainda em que a
questão da fidelidade ao mundo visível mostra cada vez menos pertinência.
(MACHADO, 2005: 313)
Os fotógrafos contemporâneos atuam segundo um paradigma pós-
fotográfico (SANTAELLA, 2005) que postula a independência da imagem técnica em
relação a uma realidade anterior e exterior. As fotografias são traduzidas em informação
numérica que aparece na tela sob uma forma visual composta por pixels que
correspondem, cada um, a uma posição em um sistema de coordenadas e a um valor
cromático. Os pixels são elementos descontínuos, localizáveis e modificáveis. Por isso,
a fotografia digital é manipulável como uma massa de modelar: durante o
processamento digital, o registro indicial fotográfico é submetido a modelos – sistemas
conceituais que reproduzem o funcionamento de fenômenos reais ou imaginários – para,
em seguida, ser transformado em textos visuais por meio de simulações computacionais.
As fotografias são conceitos transcodificados em cenas (FLUSSER,
2011; FONTCUBERTA, 2012). Em Guerra, o principal deles é o que dá nome ao
próprio ensaio. O gesto do fotógrafo é um jogo com as categorias que constituem o
programa do aparelho que ele opera. Embora, a guerra possa parecer um conceito alheio
a fotografia, não o é. Pois, a medida que orienta o gesto do fotógrafo, torna-se uma
categoria fotográfica. É nesse sentido que podemos ler a afirmação, feita pela Cia de
Foto (2014), segundo a qual “para uma guerra existir é preciso câmeras [aparelhos] que
a transforme em imagens”: É de acordo com o conceito de guerra que os integrantes da
companhia leem as fotografias que conservam em seus arquivos, selecionam aquelas
que podem melhor traduzi-lo e processam-nas digitalmente. Dessa maneira, eles
simulam cenas de um mundo em guerra, isto é, traduzem o conceito de guerra em
imagens técnicas.
No entanto, não se trata de afirmar que as fotografias tornaram-se
indiferentes a realidade, mas sim de reconhecer o caráter mediador das imagens
técnicas. Elas não se oferecem mais como vistas para serem contempladas por um
espectador, mas sim como textos para serem lidos por um leitor. Ao registro indicial
fotográfico, o processamento digital adiciona elementos provenientes de diferentes
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contextos espaciais e temporais que se encaixam e se sobrepõem em configurações
híbridas. Flusser (2011) destaca que as cenas configuradas pelos conceitos se tornam
reais no momento em que aparecem nas fotografias. Santaella (2005), por sua vez,
ressalta que as imagens do paradigma pós-fotográfico simulam mundos semelhantes ao
em que vivemos para assegurar-nos melhores condições para agir nele. Ao passo que,
Machado (2005) alerta que a fotografia processada digitalmente não admite ser tratada
como simples referência e ser submetida a um uso naturalista e homologador da
realidade. Pelo contrário, se, de alguma maneira, ela ainda remete a realidade isso se dá
como consequência de um trabalho de escrita, isto é, de um trabalho de fixação de um
discurso em um texto.
Cultura Visual
O determinismo técnico que marcou o pensamento acerca da fotografia
durante grande parte do século XX resultou em uma concepção de “realismo” baseada
no conceito de índice que se restringia apenas a afirmar a existência do objeto
fotografado no momento da tomada. Essa supervalorização do “instante decisivo”
(CARTIER-BRESSON, 2004) resultou na redução das possibilidades criativas do meio
e limitou seu uso a práticas documentais. O privilégio que o ato fotográfico teria na
significação das fotografias negligencia os processos culturais que o antecedem e o
sucedem e que são responsáveis por transformá-las em textos visuais cuja interpretação
depende da cultura que emerge junto com eles. Flusser (2011) destaca que o gesto do
fotógrafo se assemelha ao de um caçador. No entanto, enquanto o caçador age na
natureza, o fotógrafo age na cultura. Disso decorre que para decifrar fotografias é
preciso revelar as condições culturais que estruturam o gesto do fotógrafo. Nesse
sentido, Gonzalo Abril (2013) acrescenta que para interpretar os textos visuais é preciso
recorrer tanto ao domínio da semiótica quanto ao da cultura.
A semiótica não tem outro remédio além de se interessar pela cultura e, por
sua vez, não há teoria da cultura, sobretudo se essa baseia-se em uma
concepção “simbólica”, que possa prescindir da semiótica, isto é, da
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indagação acerca dos processos de semiose, da produção de sentido. (ABRIL,
2013: 11, no original em espanhol3).
A semiose – o processo de produção de sentido por meio do qual um
signo, em sua relação com um objeto, produz um interpretante – é constitutiva da
cultura. Com base na semiótica peirciana, Abril (2013) ressalta que o interpretante
traduz o signo de que trata e produz um segundo signo que, por sua vez, dá lugar a um
novo interpretante. Nesse sentido, um signo não é uma coisa suscetível de interpretação,
mas a interpretação de um outro signo. Por isso, a semiose é infinita. Ela promove
inumeráveis traduções entre significações inscritas em práticas sociais e discursivas.
A cultura é um conjunto aberto de redes de ação, de materialidades, de
técnicas, discursos e textos, todos eles inconclusos, multiformes e interatuantes: é as
transformações de materiais em signos, e seu contrário; as conexões e desconexões
produzidas pela circulação de textos entre contextos de vida e de sentido diferentes.
Abril (2013) destaca que a cultura é um ir e vir semiótico e material em que os textos
são mediadores imprescindíveis. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que considera o
texto algo peculiar e específico, não o separa do seu contexto cultural, considerando que
há uma maior porosidade entre esses dois elementos. Ele busca unir essas duas
perspectivas: a cultura não é anterior nem posterior aos textos, mas emerge junto a eles.
A cultura só faz sentido textualmente, na produção dos textos.
Por cultura, entende-se a dimensão constitutiva de uma sociedade
composta como um conjunto de práticas sociais e discursivas. Trata-se de uma matriz de
significação em relação a qual os indivíduos se comunicam entre si e compartilham suas
experiências e seus saberes. Nessa perspectiva, Abril (2013) sublinha que a semiose
aparece como um processo que atravessa todo fenômeno cultural e no limite se
identifica com a própria cultura. Pois, nela o sentido é produzido como efeito de uma
práxis. A ação práxica não produz objetos externos ao próprio agente ou a sua
atividade. Um agente que produz um texto é, ao mesmo tempo, o sujeito de uma
atividade poética que acrescenta um novo objeto ao mundo e o sujeito de uma atividade
3 “la semiótica no tiene más remedio que interesarse por la cultura; y a la vez: no hay teoría de la cultura,
sobre todo si parte de una concepción , que pueda prescindir de la semiótica, es decir, de la
indagación de los procesos de semiosis, de la producción de sentido” (ABRIL, 2013: 11).
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práxica cuja produção afeta as próprias formas de representação. Nesse sentido, a
performatividade dos textos sublinha o caráter antecipativo da práxis.
A representação, inclusive a de épocas passadas, sempre versa sobre o futuro
e possui, por isso, uma significação política. As convenções representativas
desconhecem a inocência, sempre são produto de uma intenção de naturalizar
ou de evitar a problematização da hegemonia de certas formas de ação ou de
comportamento e, portanto, de certos grupos ou classes. São, em outras
palavras, procedimentos normativos e normalizadores. (ABRIL, 2013: 30, no
original em espanhol4)
Qualquer que seja a prática sociodiscursiva, ela é mediada por sistemas
de representação, que se sustentam em processos de comunicação e que por sua vez são
condições de sua possibilidade. Como grande parte das práticas sociodiscursivas
contemporâneas transcorrem por meio de textos visuais, é possível utilizar a expressão
cultura visual para remeter à cultura. No entanto, é preciso ressaltar que a cultura visual
não deve ser confundida com a cultura das imagens. Pois, nem as imagens são
necessariamente fenômenos da experiência visual, nem a cultura visual se restringe ao
domínio das imagens.
A cultura visual é uma forma de organização sociohistórica da percepção
visual, da regulação das funções da visão e de seus usos epistêmicos,
estéticos, políticos e morais. Também é um modo socialmente organizado de
criar, distribuir e inscrever textos visuais, processo que implica sempre umas
determinadas tecnologias de fazer visível, técnicas de produção, reprodução e
de arquivo. (ABRIL, 2013: 35, no original em espanhol5)
Nesse sentido, a cultura visual se refere a gestão da visualidade, isto é, da
visão socializada, e da visibilidade, que se refere à relação entre aquilo que é visto e não
visto no espaço público. A cultura visual transborda o marco puramente perceptivo da
visão, pois o não visto atua constantemente sobre o visto e é a causa de muitas de suas
4 “La representación, incluso la de épocas pasadas, siempre versa sobre el futuro, y posee por ello una
significación política. Las convenciones representativas desconocen la inocencia, siempre son producto
de un intento de naturalizar o de sustraer a la problematización la hegemonía de ciertas formas de acción
o de comportamiento, y por tanto de ciertos grupos o clases. Son, en otras palabras, procedimientos
normativos y normalizadores” (ABRIL, 2013: 30).
5 “La cultura visual es una forma de organización sociohistórica de la percepción visual, de la regulación
de las funciones de la visión, y de sus usos epistémicos, estéticos, políticos y morales. Es también un
modo socialmente organizado de crear, distribuir e inscribir textos visuales, proceso que implica siempre
unas determinadas tecnologías del hacer-visible, técnicas de producción, de reproducción y de archivo”
(ABRIL, 2013: 35).
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formas. Mitchell (2006) destaca que a cultura visual é tanto a construção social da visão,
quanto a construção visual do social: “Não é somente o fato de nós vermos do modo
que vemos, por sermos animais sociais, mas também o de nossos arranjos sociais
tomarem a forma que têm, por sermos animais que vêem” afirma (MITCHELL, 2006:
09). Enquanto o termo visão sugere que a percepção visual é uma operação fisiológica,
o conceito visualidade indica que a percepção visual é uma operação interpretativa
fundada no social: “a relação visual entre o sujeito e o mundo é mediada por um
conjunto de discursos, redes significantes, de interesses, desejos e relações sociais”
(ABRIL, 2013: 48, no original em espanhol6). Quando vemos um texto visual, nossa
percepção não se detém apenas em suas qualidades sensíveis, ela também avança em
direção às qualidades icônicas de sua representação figurativa. Isso nos permite ver o
objeto, a princípio exterior ao texto visual, ao qual associamos seu conteúdo visual em
razão de uma experiência de semelhança. Ao associarmos o conteúdo do texto visual a
uma imagem mental do objeto, que temos graças à nossa experiência como leitores de
textos visuais, nós o reconhecemos e, imediatamente mobilizamos o símbolo deste
objeto. Por isso, podemos assegurar de maneira culturalmente compartilhada que se
trata de um determinado objeto e não de outro.
Considerações finais
Mas que guerra é essa que a Cia de Foto nos mostra? As fotografias que
compõem este ensaio não exibem cenas de combate como as que vemos nos filmes ou
nos jornais. Elas nos apresentam os restos de um conflito: áreas abandonadas,
edificações e automóveis destruídos, escombros e cicatrizes, pessoas refugiadas, feridas,
mortas. No entanto, essas imagens técnicas não foram produzidas em cenários de
batalha, mas sim mediante a releitura de fotografias tomadas no cotidiano dos
integrantes da companhia e depositadas em seus arquivos. Nesse sentido, a guerra se
constitui como o modo como a Cia de Foto lê essas fotografias e tensiona as relações
6 “la relación visual entre el sujeto y el mundo está mediada por un conjunto de discursos, de redes
significantes, de intereses, deseos y relaciones sociales” (ABRIL, 2013: 48).
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cotidianas que elas apresentam, trazendo para a superfície da imagem o conflito que elas
abrigam.
Nesse ensaio, os fotógrafos da companhia ocupam um lugar ambíguo: ao
invés de apontar suas câmeras para o mundo e registrar as guerras que nele são
realizadas, eles voltam seus olhares para seus arquivos e fazem emergir deles a guerra
que vêm em seu cotidiano. Eles são leitores dessas primeiras fotografias e, ao mesmo
tempo, mediante sua leitura, produtores de novas imagens técnicas. Nesse sentido, cada
fotografia que compõe a série é ela mesma uma leitura elaborada digitalmente com base
em uma outra obtida pelo acionar da câmera diante do mundo. As imagens técnicas em
tons de cinza bastante contrastados, a maioria delas com grandes áreas de sombra,
algumas granuladas e outras borradas, não somente remetem à tradição da fotografia de
guerra, como também sugere que as tomadas foram feitas em condições de pouca luz e
muito perigo. Nessa perspectiva, a guerra não é apenas um modo de ler as fotografias
depositadas nos arquivos da companhia, mas também de escrever novos textos visuais
com base nelas.
Guerra foi apresentado em diferentes formatos: na exposição Laberinto
de Miradas (CARRERAS, 2009) a série é composta por 15 fotografias (CIA DE FOTO,
2009), ao passo que na Geração 00 (CHIODETTO, 2011) são apenas 08 (CIA DE
FOTO, 2011); na galeria de imagens publicada no site da companhia são 50 (CIA DE
FOTO, 2014a), já em um dos perfis do coletivo no Flickr, uma rede social online
dedicada ao compartilhamento de fotografias, são 25 (CIA DE FOTO, 2014b). Ao todo
contamos 64 imagens técnicas diferentes, algumas delas apresentadas em mais de uma
versão do ensaio. Em cada uma dessas versões, as fotografias que as compõem
estabelecem relações uma com as outras e com o conjunto delas e dessas articulações
emergem uma narrativa visual. Nesse sentido, a guerra apresenta-se como um modo de
narrar. Mediante a articulação de fotografias, a Cia de Foto configura um mundo. No
entanto, o mundo que as imagens deste ensaio nos mostram não é aquele em vive a
pessoa que fotografa, a fotografada e a que olha as fotografias. Elas configuram um
mundo que é próprio do ensaio Guerra e que é habitado por seu observador. A medida
que nós ocupamos o lugar reservado a ele, também habitamos esse mundo e a ele
precisamos responder de maneira apropriada. Nesse sentido, o texto desse ensaio
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fotográfico constitui uma mediação por meio da qual compreendemos a nós mesmos.
Pois, compreender o texto é compreender a nós mesmos a medida que habitamos o
mundo que lhe é próprio.
A guerra então parece se constituir como uma metáfora que responde
pela promoção de uma inovação semântica em cada um dos níveis da elaboração do
ensaio fotográfico em que atua. durante a leitura das fotografias ela tensiona as relações
que constituem o cotidiano; na elaboração digital de novas imagens técnicas ela as
inscreve em um gênero fotográfico; mediante a articulação dessas imagens técnicas ela
configura um mundo. Nesse sentido, três questões complementares se colocam diante
de nós: como a metáfora “guerra” atua em cada um dos níveis de elaboração do ensaio?
como a guerra configura um mundo? como a observação deste mundo configura a
compreensão de nós mesmos?
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