flávio pinto valle guerra... · 2015. 5. 19. · arlindo machado (2011) ressalta que a...

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1 Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI 24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR Nossa guerra revelada pela Cia de Foto 1 Flávio Pinto Valle 2 Resumo: Quando vemos um texto visual, o sentido que produzimos não depende somente daquilo que é visto, mas também de um conjunto de interações com aquilo que não é visto e, no entanto, conforma o que vemos. À relação visual entre sujeito e mundo mediada por um conjunto de discursos e de redes significantes, denominamos visualidade (ABRIL). Neste artigo, nos dedicaremos a compreender a maneira como uma série fotográfica promove uma visualidade. Em específico, nos interessa observar o modo como a Cia de Foto revela uma visão socializada da guerra por meio da elaboração de um ensaio mediante a produção de novos textos visuais baseados em fotografias do arquivo do coletivo. Palavras-chave: Cultura Visual; Visualidade; Fotografia de Guerra; Cia de Foto Abstract: When we see a visual text, the meaning we produce depends not only on what is seen, but also of a set of interactions with what is not seen and, however, conform what we see. To the visual relationship between subject and world mediated by a set of discourses and a significant networking, we call visuality (ABRIL). In this article, we will dedicate to understand the way a photographic series promotes one visuality. In particular, we are interested in observing how the Cia de Foto reveals a socialized view of the war through the preparation of an essay by producing new visual texts based on photographs of the collective file. Keywords: Visual Culture; visuality; War Photography; Cia de Foto. Introdução Durante a primeira década do século XXI intensas mudanças ocorreram no campo das fotografias. A otimização e a popularização das câmeras digitais, dos softwares de edição, da internet, das redes sociais online e da telefonia móvel aumentaram exponencialmente a produção, a circulação e a reprodução de imagens técnicas. Após o deslumbramento que marcou o final do século XX, os usuários alcançaram um primeiro estágio de maturação no domínio dessas tecnologias que alterou radicalmente a prática fotográfica. Este cenário contribuiu para revelar, ou ostentar, aos usuários aquilo que desde 1840, quando Hippolyte Bayard publicou a 1 Trabalho apresentado no GT 7- Fotografia, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2 Doutorando no PPGCOM/UFMG. Email: [email protected]

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    Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

    24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

    Nossa guerra revelada pela Cia de Foto1

    Flávio Pinto Valle2

    Resumo: Quando vemos um texto visual, o sentido que produzimos não depende

    somente daquilo que é visto, mas também de um conjunto de interações com aquilo que

    não é visto e, no entanto, conforma o que vemos. À relação visual entre sujeito e mundo

    mediada por um conjunto de discursos e de redes significantes, denominamos

    visualidade (ABRIL). Neste artigo, nos dedicaremos a compreender a maneira como

    uma série fotográfica promove uma visualidade. Em específico, nos interessa observar o

    modo como a Cia de Foto revela uma visão socializada da guerra por meio da

    elaboração de um ensaio mediante a produção de novos textos visuais baseados em

    fotografias do arquivo do coletivo.

    Palavras-chave: Cultura Visual; Visualidade; Fotografia de Guerra; Cia de Foto

    Abstract: When we see a visual text, the meaning we produce depends not only on

    what is seen, but also of a set of interactions with what is not seen and, however,

    conform what we see. To the visual relationship between subject and world mediated by

    a set of discourses and a significant networking, we call visuality (ABRIL). In this

    article, we will dedicate to understand the way a photographic series promotes one

    visuality. In particular, we are interested in observing how the Cia de Foto reveals a

    socialized view of the war through the preparation of an essay by producing new visual

    texts based on photographs of the collective file.

    Keywords: Visual Culture; visuality; War Photography; Cia de Foto.

    Introdução

    Durante a primeira década do século XXI intensas mudanças ocorreram

    no campo das fotografias. A otimização e a popularização das câmeras digitais, dos

    softwares de edição, da internet, das redes sociais online e da telefonia móvel

    aumentaram exponencialmente a produção, a circulação e a reprodução de imagens

    técnicas. Após o deslumbramento que marcou o final do século XX, os usuários

    alcançaram um primeiro estágio de maturação no domínio dessas tecnologias que

    alterou radicalmente a prática fotográfica. Este cenário contribuiu para revelar, ou

    ostentar, aos usuários aquilo que desde 1840, quando Hippolyte Bayard publicou a

    1 Trabalho apresentado no GT 7- Fotografia, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e

    Imagem - ENCOI. 2 Doutorando no PPGCOM/UFMG. Email: [email protected]

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    fotografia “Autorretrato como afogado”, é conhecido por alguns críticos, fotógrafos e

    pesquisadores: a dualidade do jogo fotográfico que pelo mesmo movimento que registra

    o mundo visível à câmera também cria mundos fotográficos. Eder Chiodetto (2013: 11)

    destaca que

    Tal percepção fornece nova e ampla liberdade aos profissionais da imagem e

    aos artistas, que agora podem atuar em uma transição mais espontânea e

    menos dogmática em meio a conceitos de difícil demarcação territorial, como

    realidade e ficção, sobretudo nas práticas fotojornalísticas e documental.

    A crise promovida pela desconstrução do estatuto realista da fotografia

    deu lugar a um conjunto de experimentações que acabaram por expandir suas fronteiras,

    como mostram as obras dos 52 artistas e coletivos reunidas na exposição Geração 00: a

    nova fotografia brasileira (CHIODETTO, 2011), resultado do mapeamento da

    produção fotográfica brasileira contemporânea realizado por Chiodetto. O objetivo

    dessa pesquisa curatorial era observar como o desenvolvimento tecnológico contribuiu

    para ampliar o repertório de possibilidades expressivas dos fotógrafos brasileiros.

    As evoluções tecnológicas, portanto, rondam toda a produção dessa Geração

    00 nunca como um fim em si mesmo, mas oferecendo uma plataforma a

    partir da qual seus agentes vão buscar, com um leque mais amplo de

    possibilidades, esboçar a expressão mais genuína para representar seus temas

    e conceitos. É dessa forma que atestamos, nesse período, uma súbita

    ampliação de repertório nas estratégias que cada produtor de imagens utilizou

    para construir narrativas e poéticas originais. (CHIODETTO, 2013: 11)

    Dentre as obras que integram a exposição, está o ensaio fotográfico

    Guerra (Ver fotografias 1 a 8) elaborado pela Cia de Foto entre 2008 e 2011. Nesta

    série, a companhia mostra um mundo em guerra. Mediante a releitura de fotografias

    depositadas nos aquivos de seus integrantes, o coletivo nos conta uma história de guerra

    com base naquilo que imagina acerca dela. No Brasil, conhecemos a guerra apenas por

    meio das imagens dela que nos são mostradas. Todos nós a temos imaginada e para

    cada um de nós ela se apresenta de uma maneira diferente. Os fotógrafos da Cia

    reconhecem essas imagens nas fotografias tomadas em suas rotinas diárias. Por meio do

    processamento digital e da articulação delas em um conjunto, eles fazem aparecer o

    conflito que se esconde sob as camadas de rotinas sociais que constituem o cotidiano

    em uma grande metrópole como São Paulo. Os textos visuais que eles produzem

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    revelam imagens de uma guerra que ainda não existia nas fotografias no instante da

    tomada porque ainda não haviam sido imaginadas. Sobre a elaboração dessa série, os

    integrantes do coletivo contam que

    Definimos os códigos de uma guerra que está aqui, exatamente em nós, e se

    forma ao abrirmos o arquivo fotográfico da Cia de Foto, O mundo íntimo,

    imaginado, termina por protagonizar um conflito. Nossa casa, nossos filhos,

    nossas viagens e paisagens, nosso bairro, as janelas de nossos vizinhos, são

    os lugares de onde essa guerra emana e se pauta não por fatos mas pelo andar

    fictício de nossas imagens. E, nessa maneira de contar uma história, um

    evento em nossas vidas aparece, mas só depois de tornar-se fotografia, e o

    mesmo tem efeito sobre nós. (CIA DE FOTO, 2014a)

    Fotografia 1: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 2: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)

    Fotografia 3: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 4: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)

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    Fotografia 5: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 6: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)

    Fotografia 7: Guerra (CIA DE FOTO: 2011) Fotografia 8: Guerra (CIA DE FOTO: 2011)

    Pós-fotografia

    O rápido desenvolvimento das tecnologias digitais de comunicação e

    informação vêm promovendo profundas transformações no campo das imagens

    técnicas, que encontram na fotografia seu modelo conceitual. O registro indicial

    fotográfico não apenas se tornou traduzível em informação numérica, como passou a ser

    processado como tal. Além disso, também se tornou possível a síntese de “imagens

    fotográficas” com base em algoritmos. Monique Sicard (2006), destaca que essas

    imagens sintéticas por vezes são apresentadas como fotografias: como se elas

    conservassem um vestígio de algo que tivesse efetivamente ocorrido e tivesse sido

    visível a uma câmera fotográfica. Arlindo Machado (2011) ressalta que a computação

    gráfica é capaz de traduzir os postulados estéticos e matemáticos do Renascimento em

    textos visuais capazes de emular a aparência de fotografias.

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    A partir do computador, o “realismo” resulta visivelmente desencarnado, sem

    qualquer vinculação direta com a paisagem registrada. O realismo praticado

    na era da informática é um realismo essencialmente conceitual, elaborado

    com base em modelos matemáticos e não em dados físicos arrancados da

    realidade visível. (MACHADO, 2011: 210, grifo do autor)

    A situação criada pelo desenvolvimento da computação gráfica impactou

    sobretudo a concepção tradicional da fotografia. A digitalização colocou em crise o

    realismo da fotografia que perdeu sua capacidade de atestar a preexistência da coisa

    fotografada, como afirma uma teoria da fotografia fortemente marcada pela noção de

    índice (BARTHES, 1984; BAZIN, 2013; DUBOIS, 2008; SCHAEFFER, 1996). Em

    outro artigo, em que trata do impacto da eletrônica na fotografia, Machado afirma:

    A crença mais ou menos generalizada de que a câmara não mente e de que a

    fotografia é, antes de qualquer outra coisa, o resultado imaculado de um

    registro dos raios de luz refletidos pelos seres e objetos do mundo, enfim,

    toda essa mitologia a que a fotografia tem sido associada desde as suas

    origens, tudo isso está fadado a desaparecer rapidamente. (MACHADO,

    2005: 312)

    Processos de manipulação da imagem técnica são conhecidos desde a

    invenção da fotografia. Entretanto, as alterações físico-químicas feitas em laboratório

    eram possíveis de serem descobertas sem grande dificuldade através de exames

    microscópicos. Com o processamento digital, tornou-se extremamente difícil, talvez

    impossível, a descoberta destas alterações do registro fotográfico, pois a operação

    digital permite o apagamento das marcas de sua intervenção. Nesse sentido, Machado

    ressalta que

    Uma vez que agora se pode fazer qualquer tipo de alteração do registro

    fotográfico e com um grau de realismo que torna a manipulação impossível

    de ser verificada, a conclusão lógica é que, no limite, todas as fotos são

    suspeitas e, também no limite, nenhuma foto pode legal ou jornalisticamente

    provar coisa alguma. (MACHADO, 2005: 312)

    Devido à popularização dos recursos de processamento digital, que hoje

    vem integrados a própria câmera, a fotografia já não se apresenta ao observador como

    um atestado da existência prévia do objeto fotografado. Nesse cenário, o papel do

    fotógrafo vem se reduzindo ao de um coletor de fotografias que servirão de matéria-

    prima para a produção de diversos textos visuais por meio do processamento digital.

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    Os limites entre a fotografia como registro da luz e a iconografia dos meios

    de comunicação tornam-se imprecisos, na medida em que o registro é tomado

    e explorado no que tem de potencial gráfico, na medida em que o resultado

    buscado é mais pictórico do que fotográfico e na medida ainda em que a

    questão da fidelidade ao mundo visível mostra cada vez menos pertinência.

    (MACHADO, 2005: 313)

    Os fotógrafos contemporâneos atuam segundo um paradigma pós-

    fotográfico (SANTAELLA, 2005) que postula a independência da imagem técnica em

    relação a uma realidade anterior e exterior. As fotografias são traduzidas em informação

    numérica que aparece na tela sob uma forma visual composta por pixels que

    correspondem, cada um, a uma posição em um sistema de coordenadas e a um valor

    cromático. Os pixels são elementos descontínuos, localizáveis e modificáveis. Por isso,

    a fotografia digital é manipulável como uma massa de modelar: durante o

    processamento digital, o registro indicial fotográfico é submetido a modelos – sistemas

    conceituais que reproduzem o funcionamento de fenômenos reais ou imaginários – para,

    em seguida, ser transformado em textos visuais por meio de simulações computacionais.

    As fotografias são conceitos transcodificados em cenas (FLUSSER,

    2011; FONTCUBERTA, 2012). Em Guerra, o principal deles é o que dá nome ao

    próprio ensaio. O gesto do fotógrafo é um jogo com as categorias que constituem o

    programa do aparelho que ele opera. Embora, a guerra possa parecer um conceito alheio

    a fotografia, não o é. Pois, a medida que orienta o gesto do fotógrafo, torna-se uma

    categoria fotográfica. É nesse sentido que podemos ler a afirmação, feita pela Cia de

    Foto (2014), segundo a qual “para uma guerra existir é preciso câmeras [aparelhos] que

    a transforme em imagens”: É de acordo com o conceito de guerra que os integrantes da

    companhia leem as fotografias que conservam em seus arquivos, selecionam aquelas

    que podem melhor traduzi-lo e processam-nas digitalmente. Dessa maneira, eles

    simulam cenas de um mundo em guerra, isto é, traduzem o conceito de guerra em

    imagens técnicas.

    No entanto, não se trata de afirmar que as fotografias tornaram-se

    indiferentes a realidade, mas sim de reconhecer o caráter mediador das imagens

    técnicas. Elas não se oferecem mais como vistas para serem contempladas por um

    espectador, mas sim como textos para serem lidos por um leitor. Ao registro indicial

    fotográfico, o processamento digital adiciona elementos provenientes de diferentes

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    contextos espaciais e temporais que se encaixam e se sobrepõem em configurações

    híbridas. Flusser (2011) destaca que as cenas configuradas pelos conceitos se tornam

    reais no momento em que aparecem nas fotografias. Santaella (2005), por sua vez,

    ressalta que as imagens do paradigma pós-fotográfico simulam mundos semelhantes ao

    em que vivemos para assegurar-nos melhores condições para agir nele. Ao passo que,

    Machado (2005) alerta que a fotografia processada digitalmente não admite ser tratada

    como simples referência e ser submetida a um uso naturalista e homologador da

    realidade. Pelo contrário, se, de alguma maneira, ela ainda remete a realidade isso se dá

    como consequência de um trabalho de escrita, isto é, de um trabalho de fixação de um

    discurso em um texto.

    Cultura Visual

    O determinismo técnico que marcou o pensamento acerca da fotografia

    durante grande parte do século XX resultou em uma concepção de “realismo” baseada

    no conceito de índice que se restringia apenas a afirmar a existência do objeto

    fotografado no momento da tomada. Essa supervalorização do “instante decisivo”

    (CARTIER-BRESSON, 2004) resultou na redução das possibilidades criativas do meio

    e limitou seu uso a práticas documentais. O privilégio que o ato fotográfico teria na

    significação das fotografias negligencia os processos culturais que o antecedem e o

    sucedem e que são responsáveis por transformá-las em textos visuais cuja interpretação

    depende da cultura que emerge junto com eles. Flusser (2011) destaca que o gesto do

    fotógrafo se assemelha ao de um caçador. No entanto, enquanto o caçador age na

    natureza, o fotógrafo age na cultura. Disso decorre que para decifrar fotografias é

    preciso revelar as condições culturais que estruturam o gesto do fotógrafo. Nesse

    sentido, Gonzalo Abril (2013) acrescenta que para interpretar os textos visuais é preciso

    recorrer tanto ao domínio da semiótica quanto ao da cultura.

    A semiótica não tem outro remédio além de se interessar pela cultura e, por

    sua vez, não há teoria da cultura, sobretudo se essa baseia-se em uma

    concepção “simbólica”, que possa prescindir da semiótica, isto é, da

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    indagação acerca dos processos de semiose, da produção de sentido. (ABRIL,

    2013: 11, no original em espanhol3).

    A semiose – o processo de produção de sentido por meio do qual um

    signo, em sua relação com um objeto, produz um interpretante – é constitutiva da

    cultura. Com base na semiótica peirciana, Abril (2013) ressalta que o interpretante

    traduz o signo de que trata e produz um segundo signo que, por sua vez, dá lugar a um

    novo interpretante. Nesse sentido, um signo não é uma coisa suscetível de interpretação,

    mas a interpretação de um outro signo. Por isso, a semiose é infinita. Ela promove

    inumeráveis traduções entre significações inscritas em práticas sociais e discursivas.

    A cultura é um conjunto aberto de redes de ação, de materialidades, de

    técnicas, discursos e textos, todos eles inconclusos, multiformes e interatuantes: é as

    transformações de materiais em signos, e seu contrário; as conexões e desconexões

    produzidas pela circulação de textos entre contextos de vida e de sentido diferentes.

    Abril (2013) destaca que a cultura é um ir e vir semiótico e material em que os textos

    são mediadores imprescindíveis. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que considera o

    texto algo peculiar e específico, não o separa do seu contexto cultural, considerando que

    há uma maior porosidade entre esses dois elementos. Ele busca unir essas duas

    perspectivas: a cultura não é anterior nem posterior aos textos, mas emerge junto a eles.

    A cultura só faz sentido textualmente, na produção dos textos.

    Por cultura, entende-se a dimensão constitutiva de uma sociedade

    composta como um conjunto de práticas sociais e discursivas. Trata-se de uma matriz de

    significação em relação a qual os indivíduos se comunicam entre si e compartilham suas

    experiências e seus saberes. Nessa perspectiva, Abril (2013) sublinha que a semiose

    aparece como um processo que atravessa todo fenômeno cultural e no limite se

    identifica com a própria cultura. Pois, nela o sentido é produzido como efeito de uma

    práxis. A ação práxica não produz objetos externos ao próprio agente ou a sua

    atividade. Um agente que produz um texto é, ao mesmo tempo, o sujeito de uma

    atividade poética que acrescenta um novo objeto ao mundo e o sujeito de uma atividade

    3 “la semiótica no tiene más remedio que interesarse por la cultura; y a la vez: no hay teoría de la cultura,

    sobre todo si parte de una concepción , que pueda prescindir de la semiótica, es decir, de la

    indagación de los procesos de semiosis, de la producción de sentido” (ABRIL, 2013: 11).

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    práxica cuja produção afeta as próprias formas de representação. Nesse sentido, a

    performatividade dos textos sublinha o caráter antecipativo da práxis.

    A representação, inclusive a de épocas passadas, sempre versa sobre o futuro

    e possui, por isso, uma significação política. As convenções representativas

    desconhecem a inocência, sempre são produto de uma intenção de naturalizar

    ou de evitar a problematização da hegemonia de certas formas de ação ou de

    comportamento e, portanto, de certos grupos ou classes. São, em outras

    palavras, procedimentos normativos e normalizadores. (ABRIL, 2013: 30, no

    original em espanhol4)

    Qualquer que seja a prática sociodiscursiva, ela é mediada por sistemas

    de representação, que se sustentam em processos de comunicação e que por sua vez são

    condições de sua possibilidade. Como grande parte das práticas sociodiscursivas

    contemporâneas transcorrem por meio de textos visuais, é possível utilizar a expressão

    cultura visual para remeter à cultura. No entanto, é preciso ressaltar que a cultura visual

    não deve ser confundida com a cultura das imagens. Pois, nem as imagens são

    necessariamente fenômenos da experiência visual, nem a cultura visual se restringe ao

    domínio das imagens.

    A cultura visual é uma forma de organização sociohistórica da percepção

    visual, da regulação das funções da visão e de seus usos epistêmicos,

    estéticos, políticos e morais. Também é um modo socialmente organizado de

    criar, distribuir e inscrever textos visuais, processo que implica sempre umas

    determinadas tecnologias de fazer visível, técnicas de produção, reprodução e

    de arquivo. (ABRIL, 2013: 35, no original em espanhol5)

    Nesse sentido, a cultura visual se refere a gestão da visualidade, isto é, da

    visão socializada, e da visibilidade, que se refere à relação entre aquilo que é visto e não

    visto no espaço público. A cultura visual transborda o marco puramente perceptivo da

    visão, pois o não visto atua constantemente sobre o visto e é a causa de muitas de suas

    4 “La representación, incluso la de épocas pasadas, siempre versa sobre el futuro, y posee por ello una

    significación política. Las convenciones representativas desconocen la inocencia, siempre son producto

    de un intento de naturalizar o de sustraer a la problematización la hegemonía de ciertas formas de acción

    o de comportamiento, y por tanto de ciertos grupos o clases. Son, en otras palabras, procedimientos

    normativos y normalizadores” (ABRIL, 2013: 30).

    5 “La cultura visual es una forma de organización sociohistórica de la percepción visual, de la regulación

    de las funciones de la visión, y de sus usos epistémicos, estéticos, políticos y morales. Es también un

    modo socialmente organizado de crear, distribuir e inscribir textos visuales, proceso que implica siempre

    unas determinadas tecnologías del hacer-visible, técnicas de producción, de reproducción y de archivo”

    (ABRIL, 2013: 35).

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    formas. Mitchell (2006) destaca que a cultura visual é tanto a construção social da visão,

    quanto a construção visual do social: “Não é somente o fato de nós vermos do modo

    que vemos, por sermos animais sociais, mas também o de nossos arranjos sociais

    tomarem a forma que têm, por sermos animais que vêem” afirma (MITCHELL, 2006:

    09). Enquanto o termo visão sugere que a percepção visual é uma operação fisiológica,

    o conceito visualidade indica que a percepção visual é uma operação interpretativa

    fundada no social: “a relação visual entre o sujeito e o mundo é mediada por um

    conjunto de discursos, redes significantes, de interesses, desejos e relações sociais”

    (ABRIL, 2013: 48, no original em espanhol6). Quando vemos um texto visual, nossa

    percepção não se detém apenas em suas qualidades sensíveis, ela também avança em

    direção às qualidades icônicas de sua representação figurativa. Isso nos permite ver o

    objeto, a princípio exterior ao texto visual, ao qual associamos seu conteúdo visual em

    razão de uma experiência de semelhança. Ao associarmos o conteúdo do texto visual a

    uma imagem mental do objeto, que temos graças à nossa experiência como leitores de

    textos visuais, nós o reconhecemos e, imediatamente mobilizamos o símbolo deste

    objeto. Por isso, podemos assegurar de maneira culturalmente compartilhada que se

    trata de um determinado objeto e não de outro.

    Considerações finais

    Mas que guerra é essa que a Cia de Foto nos mostra? As fotografias que

    compõem este ensaio não exibem cenas de combate como as que vemos nos filmes ou

    nos jornais. Elas nos apresentam os restos de um conflito: áreas abandonadas,

    edificações e automóveis destruídos, escombros e cicatrizes, pessoas refugiadas, feridas,

    mortas. No entanto, essas imagens técnicas não foram produzidas em cenários de

    batalha, mas sim mediante a releitura de fotografias tomadas no cotidiano dos

    integrantes da companhia e depositadas em seus arquivos. Nesse sentido, a guerra se

    constitui como o modo como a Cia de Foto lê essas fotografias e tensiona as relações

    6 “la relación visual entre el sujeto y el mundo está mediada por un conjunto de discursos, de redes

    significantes, de intereses, deseos y relaciones sociales” (ABRIL, 2013: 48).

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    cotidianas que elas apresentam, trazendo para a superfície da imagem o conflito que elas

    abrigam.

    Nesse ensaio, os fotógrafos da companhia ocupam um lugar ambíguo: ao

    invés de apontar suas câmeras para o mundo e registrar as guerras que nele são

    realizadas, eles voltam seus olhares para seus arquivos e fazem emergir deles a guerra

    que vêm em seu cotidiano. Eles são leitores dessas primeiras fotografias e, ao mesmo

    tempo, mediante sua leitura, produtores de novas imagens técnicas. Nesse sentido, cada

    fotografia que compõe a série é ela mesma uma leitura elaborada digitalmente com base

    em uma outra obtida pelo acionar da câmera diante do mundo. As imagens técnicas em

    tons de cinza bastante contrastados, a maioria delas com grandes áreas de sombra,

    algumas granuladas e outras borradas, não somente remetem à tradição da fotografia de

    guerra, como também sugere que as tomadas foram feitas em condições de pouca luz e

    muito perigo. Nessa perspectiva, a guerra não é apenas um modo de ler as fotografias

    depositadas nos arquivos da companhia, mas também de escrever novos textos visuais

    com base nelas.

    Guerra foi apresentado em diferentes formatos: na exposição Laberinto

    de Miradas (CARRERAS, 2009) a série é composta por 15 fotografias (CIA DE FOTO,

    2009), ao passo que na Geração 00 (CHIODETTO, 2011) são apenas 08 (CIA DE

    FOTO, 2011); na galeria de imagens publicada no site da companhia são 50 (CIA DE

    FOTO, 2014a), já em um dos perfis do coletivo no Flickr, uma rede social online

    dedicada ao compartilhamento de fotografias, são 25 (CIA DE FOTO, 2014b). Ao todo

    contamos 64 imagens técnicas diferentes, algumas delas apresentadas em mais de uma

    versão do ensaio. Em cada uma dessas versões, as fotografias que as compõem

    estabelecem relações uma com as outras e com o conjunto delas e dessas articulações

    emergem uma narrativa visual. Nesse sentido, a guerra apresenta-se como um modo de

    narrar. Mediante a articulação de fotografias, a Cia de Foto configura um mundo. No

    entanto, o mundo que as imagens deste ensaio nos mostram não é aquele em vive a

    pessoa que fotografa, a fotografada e a que olha as fotografias. Elas configuram um

    mundo que é próprio do ensaio Guerra e que é habitado por seu observador. A medida

    que nós ocupamos o lugar reservado a ele, também habitamos esse mundo e a ele

    precisamos responder de maneira apropriada. Nesse sentido, o texto desse ensaio

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    Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

    24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

    fotográfico constitui uma mediação por meio da qual compreendemos a nós mesmos.

    Pois, compreender o texto é compreender a nós mesmos a medida que habitamos o

    mundo que lhe é próprio.

    A guerra então parece se constituir como uma metáfora que responde

    pela promoção de uma inovação semântica em cada um dos níveis da elaboração do

    ensaio fotográfico em que atua. durante a leitura das fotografias ela tensiona as relações

    que constituem o cotidiano; na elaboração digital de novas imagens técnicas ela as

    inscreve em um gênero fotográfico; mediante a articulação dessas imagens técnicas ela

    configura um mundo. Nesse sentido, três questões complementares se colocam diante

    de nós: como a metáfora “guerra” atua em cada um dos níveis de elaboração do ensaio?

    como a guerra configura um mundo? como a observação deste mundo configura a

    compreensão de nós mesmos?

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