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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO? Religião e Infância no semi-árido nordestino Flávia Ferreira Pires Rio de Janeiro 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?

Religião e Infância no semi-árido nordestino

Flávia Ferreira Pires

Rio de Janeiro 2007

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QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?

Religião e Infância no semi-árido nordestino

Flávia Ferreira Pires

Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Doutorado em Antropologia Social

Orientador: Prof. Dr. Otávio Guilherme Alves Velho Co-orientadora: Profa. Dra. Christina Toren

Rio de Janeiro 2007

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III

QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?

Religião e Infância no semi-árido nordestino

Flávia Ferreira Pires

Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do

Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do grau de Doutor.

Aprovada por:

Prof. Emérito Otávio Velho (UFRJ - MN) – Orientador

Prof. Dr. Moacir Palmeira (UFRJ - MN)

Profa. Dra. Renata Menezes (UFRJ - MN)

Prof. Emérito Pierre Sanchis (UFMG)

Profa. Dra. Regina Novaes (UFRJ - IFCHS)

Profa. Dra. Clara Mafra (UERJ) – suplente

Prof. Dr. Márcio Goldman (UFRJ - MN) - suplente

Rio de Janeiro

2007

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IV

FICHA CATALOGRÁFICA PIRES, Flávia Ferreira Quem tem medo de mal-assombro? Religião e Infância no semi-árido nordestinao/ Flávia Ferreira Pires. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. XI, 227, cclxxxiii f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2007. Orientador: Otavio Guilherme Cardoso Alves Velho. 1. Antropologia da Religião. 2. Antropologia da Criança e da Infância 3. Mal-assombros. I. Velho, Otavio Guilherme Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

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V

RESUMO

QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?

Religião e Infância no semi-árido nordestino

Flávia Ferreira Pires

Esta é uma tese etnográfica que versa sobre o processo de tornar-se adulto em uma cidadezinha

chamada Catingueira, no semi-árido nordestino, interior da Paraíba. Ali, tornar-se adulto implica, em

grande medida, tornar-se uma pessoa religiosa. O principal objetivo da tese é acompanhar e analisar

como esse processo acontece, tendo em vista as crianças, os adultos e os idosos. Detectamos, nesse

processo, a presença dos mal-assombros – entendidos, pelos adultos, como a alma dos mortos e,

pelas crianças, como tudo aquilo que faz medo. Tornar-se adulto, portanto, implica em restringir

toda uma gama de possíveis mal-assombros a apenas as almas dos mortos. Essas almas serão tidas

como entidades religiosas, na medida em que são reconhecidas como enviadas de Deus ou do

Demônio. Demonstramos, através de diversas técnicas de pesquisa − dentre elas, desenhos e

redações −, que são os adultos, e não tanto as crianças, que mais temem os mal-assombros.

Trabalhamos com a hipótese de que crescer implica em desbastamento religioso, conversão religiosa

e cristianização. Além disso, exploramos uma realidade na qual o cristianismo aparenta ser mais

importante que as distinções entre as religiões.

Palavras-chave:

Cristianismo; criança; infância; mal-assombro; semi-árido nordestino; desenhos.

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VI

ABSTRACT

WHO IS AFRAID OF “MAL-ASSOMBRO”?

Religion and Childhood in the Northeast semi-arid region of Brazil

Flávia Ferreira Pires

This ethnographic doctoral thesis discusses the process of becoming an adult in Catingueira, a

village located in the Northeast semi-arid, countryside region in the State of Paraíba - Brazil. In this

village, the process of becoming an adult entails the simultaneous process of becoming religious.

The principal objective of this thesis is to illustrate and analyse how this process occurs by taking

into account the perspectives of children, adults and the elderly. The presence of “mal-assombros”

was found to be integral in the process of becoming religious. For adults “mal-assombros” are

understood to be the souls of the dead, yet for children these “mal-assombros” can take the form of

anything that causes them fear. The process of becoming an adult involves a narrowing of the

perception of “mal-assombros”. When a person fully becomes an adult, that person is only able to

view these “mal-assombros” as the souls of the dead. Moreover, these souls are interpreted as

religious entities, recognised as being sent by God or the devil. In this thesis, I demonstrate through

various research techniques, including drawings and writings, that adults fear these “mal-assombros”

more than children. I attempt to explore the hypothesis that to become an adult simultaneously

involves religious conversion, Christianisation and the gradual restriction of some religious

experiences. Moreover, this thesis is framed within and explores a reality in which the influence of

Christianity as a whole is prevalent and predominates over the varied influences of the individual

Christian churches.

Key words:

Christianity, child, childhood, “mal assombros” (ghosts/spirits), semi-arid Northeast Brazil,

drawings.

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VII

“Deixai vir a mim os pequenos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes

assemelham”.

Marcos 10, 14.

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VIII

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Otavio Velho, pelo direcionamento e paciência durante estes seis anos de

formação intelectual. À minha co-orientadora Christina Toren, pelo estímulo e diálogo. Aos

professores Moacir Palmeira e Luiz Fernando Dias Duarte, pela leitura atenta do meu trabalho nas

duas qualificações. Sinto-me grata e honrada por poder contar com os professores Moacir Palmeira,

Pierre Sanchis, Regina Novaes e Renata Menezes na banca final, assim como Clara Mafra e Márcio

Goldman, como professores suplentes.

Ressalto a minha gratidão à CAPES pela bolsa de doutorado, nos dois primeiros anos do

curso, e pela bolsa PDEE (Programa de Pós-Graduação no País com Estágio no Exterior), de

novembro de 2005 a maio de 2006. À Wenner Gren Foundation pela concessão da bolsa Library

Residency Scholarship de setembro a dezembro de 2004. À FAPERJ pela bolsa de doutorado Nota

Dez, nos últimos dois anos do curso.

Ao PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) na figura dos seus vários

coordenadores ao longo do meu percurso no Museu Nacional, assim como às secretárias e às

bibliotecárias. À Brunel University por ter revogado a taxas escolares, o que possibilitou o meu

intercâmbio.

Aos colaboradores, amigos e amores: João Ricardo Ferreira Pires, Maria Ana Dias de

Alvarenga Baptista, Alessandra Tsallis, Eloísa Martin, Tamás Papp, Luciana Oliveira, Luciana

Patrícia de Morais, Rogério Lopes, Léa Perez, Andréa Detmer, Letícia dos Santos Martins, Tânia

Freitas, Francisco Ferreira Filho, Cecília Ferreira Eufrázio, Julianne Bezerra, Sônia Pires (Sônia

da Padaria) e Alexandre Ayoub.

À minha família – principalmente ao meu pai, à minha mãe, ao meu irmão João Ricardo, ao

meu irmão Bruno, à minha irmã Luana e a minha prima-irmã Viviane.

E especialmente ao povo de Catingueira, principalmente aos que se tornaram meus amigos e

às crianças, minha gratidão e meu amor.

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IX

Para o meu pai,

João Bosco Lustosa Pires

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X

ÍNDICE

PREFÁCIO...................................................................................................................................12

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................14

PARTE 1: COMENTÁRIOS INICIAIS...............................................................................................14 PARTE 2: ABORDAGENS TEÓRICAS PARA O ESTUDO DAS (E COM AS) CRIANÇAS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL........................................................................................................................................21

1. Introdução ..........................................................................................................................21 2. Uma cultura ou sociedade das crianças? ............................................................................26 3. Teorias da teoria.................................................................................................................32 4. Conclusões..........................................................................................................................38

CAPÍTULO 1: SER ADULTA E PESQUISAR CRIANÇAS: EXPLORANDO POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS NA PESQUISA ANTROPOLÓGICA....................39

1. INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................39 2. SER ADULTA E PESQUISAR CRIANÇAS ........................................................................................39 3. DESENHOS E REDAÇÕES: CONDUÇÃO, CONSIDERAÇÕES E RESULTADOS......................................46 4. DELIMITANDO A REALIDADE SOCIAL DAS CRIANÇAS: OUTRAS TÉCNICAS DE PESQUISA UTILIZADAS...................................................................................................................................................55 5. CONCLUSÕES ...........................................................................................................................59 6. ANEXO: SELEÇÃO DE ELEMENTOS DESENHADOS .......................................................................62

CAPÍTULO 2: CIDADE, CASA E IGREJA: SOBRE CATINGUEIRA, SEUS ADULTOS E SUAS CRIANÇAS........................................................................................................................66

1. INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................66 2. A CIDADE DE CATINGUEIRA .....................................................................................................66 3. O QUE É SER CRIANÇA EM CATINGUEIRA? .................................................................................77

3. 1. A criança pequena ..........................................................................................................77 3. 2. Organização doméstica...................................................................................................80 3. 3. A família e a criança .......................................................................................................85

4. CONCLUSÕES ...........................................................................................................................94

CAPÍTULO 3: QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO? .................................................96

1. INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................96 2. SOBRE A DEFINIÇÃO DO MAL-ASSOMBRO ..................................................................................96 3. CRISTIANIZAÇÃO DAS CRIANÇAS E DOS MAL-ASSOMBROS........................................................107 4. QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?...................................................................................112 5. CONCLUSÕES .........................................................................................................................123 6. APÊNDICE..............................................................................................................................127

CAPÍTULO 4: O QUE AS CRIANÇAS PENSAM SOBRE RELIGIÃO? ..............................129

1. INTRODUÇÃO .........................................................................................................................129 2. RELIGIÃO E O PAPEL DA FAMÍLIA: OS PRIMEIROS ANOS ............................................................129 3. SOBRE A IRRELEVÂNCIA DO SIGNIFICADO: UMA RELIGIÃO DA PRÁTICA?...................................139 4. CONCLUSÕES .........................................................................................................................148 5. APÊNDICE..............................................................................................................................153

CAPÍTULO 5: COMO SE FAZ UMA PESSOA RELIGIOSA − OU, SIMPLESMENTE, COMO SE TORNAR UM CATINGUEIRENSE......................................................................154

1. INTRODUÇÃO .........................................................................................................................154 2. TORNAR-SE RELIGIOSO...........................................................................................................155 3. RELIGIÃO E MAL-ASSOMBRO: DOIS PROCESSOS ANALISADOS EM PARALELO .............................168

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XI

4. SOBRE A DÚVIDA: FANTASIA OU REALIDADE?.........................................................................175 5. CONCLUSÕES .........................................................................................................................178 6. APÊNDICE..............................................................................................................................184

CONCLUSÕES ..........................................................................................................................185

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ............................................................................................192

ANEXOS.....................................................................................................................................224

ANEXO 1 ...................................................................................................................................224 ANEXO 2: ............................................................................................................................CCXXIX 1) MAPAS:..........................................................................................................................CCXXX 2) FOTOS...........................................................................................................................CCXXXI 3) DESENHOS..................................................................................................................CCXXXV

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12

PREFÁCIO

Em todas as salas de aula na escola onde eu cursei todo o então chamado primeiro grau, em

Divinópolis (MG), havia um crucifixo em cima do quadro negro. Inúmeras vezes, em momentos de

apuros, eu olhava Jesus naquela triste figura e pedia por socorro. Naquele tempo, a aula não

começava sem que as crianças todas em fila indiana rezassem acompanhadas da diretora da Escola

Estadual São Francisco de Assis. No mês de maio, tínhamos até coroação de Nossa Senhora no

recreio. Falando em recreio, lembrei-me de que o sinal do início ou final das aulas não era o

tradicional apito de fábrica, mas o hino de São Francisco. Na escola, havia uma capelinha com a

imagem do santo, cujos fundos para sua construção eu, orgulhosamente, ajudei a arrecadar. Foram

incontáveis as vezes que eu passei por ali para conversar com o santo. Para mim, São Francisco era

tão bonito...

Eu fui formalmente educada no catolicismo. Fiz primeira comunhão e crisma. Missas

semanais, catecismo e confissão faziam parte da minha vida. Além do ensinamento formal da

religião, meus pais eram católicos praticantes e faziam questão de ter os filhos educados no mesmo

regime. A pequena canção “Ao Senhor agradecemos, Aleluia, o alimento que teremos, Alelu-u-ia”,

cantada na voz grave e desafinada de meu pai, antes das refeições, reverberava em mim uma espécie

de euforia interior. De duas, uma: ou era dia de festa ou ele estava muito feliz.

Nos anos da minha infância, eu sempre rezava antes de dormir − e, por mais que meus

desejos não fossem atendidos, o poder da oração era incontestável. Eu acreditava piamente que os

olhos de Deus estavam por toda parte, o que, às vezes, amedrontava e, às vezes, confortava. Lembro-

me, também, que na pré-adolescência, senti vontade de morrer para ir ter com Deus. Devia ser

maravilhoso viver no céu ao lado de Deus e dos anjos. Eu ia ao catecismo para encontrar meus

coleguinhas e ganhar um bombom da professora, mas também porque eu queria conhecer Aquele

para quem “nada é impossível”. Muitas vezes, senti meu coraçãozinho queimando de alegria de ter

sido uma das escolhidas de Deus ou Jesus… não sei bem. Tanto que, na primeira infância, eu tinha

medo de me encontrar com Deus porque achava que ele poderia aparecer para mim a qualquer

momento. E como sabia que Ele não era dado a visitas freqüentes, assustava-me com a possibilidade

dele querer aparecer justamente para mim. O meu medo vinha do fato de que eu acreditava ser

especial aos olhos de Deus, o que o levaria a querer se encontrar comigo. Na verdade, no meu

íntimo, eu não queria vê-lo, porque O temia − mas isso Deus desconhecia.

Pensava eu que, lá acima das nuvens, no céu, havia uma tábua de madeira muito, muito

grande; quiçá, infinita. Nessa tábua, eram pregados de braços abertos, a la crucificação de Jesus

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(mas sem o sofrimento), todos os que morriam. Com seu próprio corpo, cada um dos defuntos

acabava por desenhar uma cruz. O primeiro homem a ser pregado naquela grande tábua havia sido

Jesus. Ele ficava exatamente no centro desta madeira horizontal, enrolado com aquele trapo de pano

na cintura. Segundo minha metafísica pós-morte, Jesus havia de compartilhar a mesma tábua com

todos os mortos. O primeiro homem que morreu depois de Jesus tomou lugar “à direita do Pai”, e o

segundo foi pregado do lado esquerdo. O terceiro já foi colocado a uma posição distante de Jesus – e

assim sucessivamente. O lugar onde cada um seria pregado no céu seguiria a ordem cronológica da

sua morte. Se alguém quisesse conversar com outras pessoas, que mesmo mortas engatavam em

animadas conversações, era só esticar o pescoço, identificar o interlocutor e mandar ver no bate-

papo. Muitas vezes, pensava eu, seria preciso gritar para ser ouvido. Assim, se, por exemplo, quando

eu morresse, quisesse conversar com o meu avô que já morreu há alguns anos, eu possivelmente

teria que gritar, porque ele estaria ‘pregado’ distante de mim.

A primeira vez que eu fui a Catingueira, cidade natal de meu pai, eu tinha oito anos de idade.

Era janeiro, tempo da Festa de São Sebastião. Meus pais tinham saído para aproveitar a festa e nós,

as crianças, ficamos em casa, dormindo na companhia da minha avó paterna. Naquela ocasião, algo

misterioso me aconteceu, mas é difícil descrevê-lo só com palavras. Eu me lembro que era noite e eu

tinha medo. Medo do quê? Medo da morte. Lembro-me de ter dormido e acordado no escuro, sem

saber bem ao certo onde estava. Tive medo de que aquela escuridão não tivesse um fim. Da mesma

forma com que tive medo de ser, para sempre, sozinha. Outras crianças dormiam comigo, isso é fato,

mas eu não as via. Eu via o medo e via a solidão. Chamei pelos meus pais, mas eles não estavam por

perto. Minha avó, por sua vez, se recusava a chamá-los – ou os chamou e eu não percebi. Eu lembro

que me senti arrebatada por uma força muito poderosa, frente à qual eu nada podia. Foram

momentos de total imersão num mundo que eu ainda não sabia que existia, mas do qual logo tomei

total conhecimento. Lembro que minha mãe chegou e, enfim, prestou atenção ao que eu dizia. Eu

predizia a morte. De ninguém precisamente. Apenas a Morte, o substantivo, infalível, diluída em

todos nós.

Quando criança, eu experimentei o mistério. Foi algo extraordinário para a menina que fui.

Em grande medida, os ecos daquela experiência ainda ressoam dentro de mim − a ponto de, por

caminhos não tão evidentes, ter escolhido estudar o tema das experiências e idéias religiosas das

crianças.

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INTRODUÇÃO

- “Dito, você sabe que quando a gente reza, reza, reza, mesmo no fogo do medo, o medo vai s’ embora, se a gente rezar sem esbarrar?!”

Miguilim em Campo Geral, Guimarães Rosa.

PARTE 1: Comentários Iniciais

Desde que pus os pés pela primeira vez em Catingueira1, sempre me causou estranheza o fato

de que os mal-assombros são tema de conversa freqüente. Basta que haja um corte de energia, que

uma porta bata ou que um pássaro venha a piar em cima da casa onde mora algum doente, para

começarem as previsões de mau agouro e morte baseadas na interferência das almas de outro

mundo. O que mais me chamava a atenção, no entanto, era que os adultos eram sempre os primeiros

a manifestar medo e comentar sobre estes fatos. Um vizinho meu, viúvo e pai de filhos adultos, dizia

que sozinho não dormiria na casa onde eu dormia nem que lhe pagassem muito dinheiro. Ele tinha

medo de mal-assombros. Medo das almas. E o dizia sem o mínimo constrangimento, porque este

medo não é coisa de criança; é, ao contrário, medo de gente crescida.

Como será visto, não são as crianças que propriamente temem os mal-assombros em

Catingueira, senão os adultos e os idosos. Mas isso é assunto que será discutido no decorrer de toda

a tese. Casos de aparições de mal-assombros são numerosos. A experiência de ter visto um mal-

assombro é de natureza intensa e será resignificada com o passar dos anos. De acordo com o

material de pesquisa que produzi, a experiência de ter visto uma alma é comprovada por parentes

próximos, sugerindo o lugar primordial dos laços familiares na vida religiosa. Além disso, a

afirmação de Keesing (1982) a respeito dos ancestrais Kwaio pode ser atualizada para Catingueira:

“This is not a world where ancestral shades are remote presences, creations of theological

imagination. They are part of the daily social life of Kwaio communities” (1982: 113). Contra os

mal-assombros, a solução mais eficaz são as soluções consideradas religiosas. Por exemplo, uma

missa na intenção da alma daquele parente morto que de vez em quando aparece em sonho pedindo

1 Minha primeira experiência de campo em Catingueira foi no ano de 2000, para a elaboração da monografia de conclusão do curso de graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais. Na oportunidade, passei dez dias na cidade. A segunda oportunidade de pesquisa de campo ocorreu durante o mestrado em Antropologia Social no Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro. A pesquisa de campo durou três meses, de janeiro a março de 2002. Por ocasião do doutorado, um primeiro período de trabalho de campo aconteceu em 2004, quando passei seis meses na cidade, de março a agosto. O segundo período de trabalho de campo teve início em meados de março, logo após a aprovação da primeira qualificação da tese, e terminou em outubro. Ao final, foram feitos treze meses e dez dias de trabalho de campo. Todavia, é útil lembrar que já havia visitado a cidade, por motivos pessoais, pelo menos três vezes. Gostaria também de mencionar que o meu pai nasceu na cidade de Catingueira em 1947, tendo emigrado para a cidade do Rio de Janeiro aos doze anos de idade. Assim como os seus irmãos e irmãs, ele é considerado um “Filho-ausente” (PIRES 2000, 2003, 2005a). Apesar do fato de hoje em dia não se encontrar na cidade nenhum parente direto da minha família, alguns catingueirenses se referiam a mim carinhosamente como prima, porque contávamos com algum ascendente em comum.

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ajuda. Um terço rezado com fé ou acender uma vela para as almas do purgatório podem iluminar o

“bom caminho” para aquelas almas que se encontram perdidas. Foi a partir desta constatação que

tive a idéia de perguntar às crianças, por meio dos desenhos, sobre os mal-assombros e sobre a

“religião”.

Durante o trabalho de campo, juntei-me a duas mães que faziam caminhadas ao nascer do

sol. Nestas ocasiões, suas respectivas filhas, às vezes, as acompanhavam. Nós formávamos grupos

segundo a classificação etária: as crianças por volta dos onze anos de idade, as moças entre os

dezesseis e os vinte anos de idade e, por fim, as mães por volta dos quarenta anos de idade. Eu

circulava entre os grupos etários de acordo com a conveniência, mas privilegiava o convívio com as

mães, já que a convivência com as crianças era mais espontânea. Uma vez, o grupo das crianças

afastou-se muito do grupo das mães e das adolescentes. Paramos para esperá-las em uma pequena

ponte de cujo rio restava apenas um escasso fio d´água. Neste momento, uma das mães teceu um

comentário: “só Deus sabe o que elas tanto conversam!…” Estas palavras retornaram ao meu

pensamento toda vez que a possibilidade de realização deste projeto de pesquisa foi colocada em

xeque: “só Deus sabe o que elas tanto conversam!…” O mundo infantil é entendido em Catingueira

como inacessível ao adulto. Quanto mais nova é a criança, mais alteridade lhe é concedida – embora

algumas conversas das crianças com onze anos de idade ainda possam ser entendidas como

inescrutáveis pelos adultos. Durante estes quatro anos de pesquisa e dedicação ao tema que aqui será

tratado, as seguintes perguntas constantemente vinham à baila: será mesmo possível entender o que

se passa naquelas cabecinhas? São as experiências infantis plausíveis de compartilhamento? Se a

resposta for positiva, como será possível acessá-las? Será pelo caminho da oralidade, através de seus

desenhos?

Este estudo é uma tentativa de lançar luzes sobre a religiosidade infantil e adulta. Como será

visto, compreender a religiosidade infantil pode levar-nos a melhor compreender a religiosidade nos

moldes adultos. De acordo com a minha perspectiva, é impossível empreender o projeto de estudar

as crianças deixando de lado os adultos. Os adultos estão presentes nesta tese do princípio ao fim,

foram incluídos na observação participante, nas entrevistas, nas comparações. Os adultos foram

crianças, as crianças serão adultos e, além disso, toda criança é filha de dois adultos e vive cercada

por eles. Além disso, como argumentarei, a família tem papel primordial na vida das crianças.

Adultos e crianças precisam ser estudados em relação, na medida em que, para entender como

chegamos a ser o que somos em termos religiosos, é necessário levar em conta todo o processo de

introspecção corporal e mental dos “dados” daquela comunidade estudada. Não estou dizendo, no

entanto, que o estudo das crianças só possa ser levado a cabo em função de uma melhor

compreensão dos adultos. Acredito que o estudo das crianças pode iluminar o mundo dos adultos, da

mesma forma que o estudo dos adultos tem o potencial de iluminar o mundo das crianças. Isto

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porque o que opera são as relações entre as pessoas de diferentes idades. Apesar de serem vistos, em

grande medida, como ontologicamente distintos, não existe em Catingueira um ambiente

exclusivamente infantil ou adulto e, por isso, não faria sentido congelar os dois grupos para estudá-

los como se existissem em função de si mesmos.

Gostaria de esclarecer que esta tese não se filia unitariamente aos estudos da antropologia da

criança ou da infância. O projeto empreendido pode ser entendido como um esforço intelectual da

área antropologia social, mas com o diferencial de que as idéias das crianças aqui são levadas a

sério. Neste sentido, acredito, como Toren que “[…] one can gain better acess to big ideas such as

family, caste, individual, democracy, class, God, hierarchy, and so on by studying how children

bring these ideas into being for themselves in a way that at once maintains and transforms them”

(2002: 113). Foram as crianças que sugeriram a Toren um aspecto da hierarquia que era, até então,

desconsiderado pelas análises. A insinuação das crianças à pesquisadora, de que a posição

geográfica interfere no reconhecimento de hierarquia, possibilitou-lhe reelaborar a teoria sobre a

hierarquia tida, até então, apenas como o resultado de uma conjução de senioridade, gênero e

ranking. Para Toren, além destes, o eixo espacial, acima e abaixo, ultrapassa todas as distinções

sociais fijianas. É importante ressaltar que foram as crianças, através dos desenhos, que a levaram a

esta afirmação. Com isso, não estamos aprisionados no reino da antropologia da criança ou infância.

Estamos falando de antropologia apenas, com a diferença de que aqui as crianças são incluídas. A

sua visão do mundo é reconhecida como uma interpretação plausível, que ilumina aspectos do real

que talvez estivessem obscuros a um adulto − como o caso citado, no qual o eixo espacial não era

levado em consideração nas teorias de hierarquia fijianas. O fato sugere a legitimidade da linguagem

infantil como discurso elucidativo e analítico.

Os dados da vida social não são dados desde sempre; ao contrário, eles são elaborados com o

passar dos anos à medida que a pessoa cresce. O dado, ou os dados, poderiam ser definidos como

tudo aquilo para o qual as mães não têm explicação racional para oferecer aos filhos na idade dos

porquês e, perdendo a paciência, dizem: é assim porque é. Os adultos tendem a naturalizar os dados

porque tomam-nos como a realidade. Eles não se dão conta de que as crianças estão vendo o mundo

pela primeira vez e que, para elas, o dado não é evidente. Nem sempre os adultos dão-se conta de

que a criança precisa elaborar seu próprio juízo do mundo e que o que lhe apresentam como se fosse

a vida tal como ela é − isto é, tal como os adultos a concebem –, não é óbvio. Por isso, muitas vezes

as perguntas das crianças soam tão engraçadas. Elas indagam sobre o óbvio. E este, por sua vez,

parece ser realmente engraçado se refletirmos sobre a arbitrariedade das categorias com as quais

lidamos cotidianamente.

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Para o antropólogo, assim como para a criança, os dados, todavia, não estão disponíveis na

superfície. Para decodificá-los é preciso pesquisa de campo. Observação participante atenta, mas não

direcionada, é mais útil nesta etapa que as entrevistas ou outros métodos mais focados. Uma vez que

os dados são decodificados é preciso ainda tentar compreender como é que se dá seu processo de

compreensão e que particularidades eles apresentam. Ao fim deste processo, uma criança estará

pronta para assumir determinadas tarefas consideradas “de gente grande”, e dela não rirão mais os

adultos, como fazem também dos loucos ou dos antropólogos. Os adultos riem das crianças quando

estas ainda estão elaborando o aprendizado social, quando estão no processo de “fazer sentido”

sobre a realidade. Enquanto estão tentando compreender e fazer seu próprio julgamento do mundo

social em que estão inseridas, as crianças são alvos das risadas dos adultos, para quem o dado já é

absolutamente evidente. Mas para as crianças − eles se esquecem − não há nada de inequívoco no

modo como a sociedade está organizada socialmente, tudo lhes é novo. Os antropólogos também

poderiam ser comparados às crianças na medida em que eles também fazem perguntas sobre o óbvio

e que acabam soando engraçadas. E, muitas vezes, mesmo sem estudar especificamente as crianças,

são elas que primeiro “ensinam” o antropólogo sobre a comunidade em estudo2.

Compartilho com Christina Toren (1999) a afirmação de que “How do we become who we

are?” é uma pergunta crucial da pesquisa antropológica. Morton (1996) parece encaminhar-se na

mesma direção quando indaga: “How does a Tongan become a Tongan, and how does being Tongan

change over time?” (1996: 18). Similarmente, uma das principais perguntas desta tese é: como um

catingueirense se torna um catingueirense? O objetivo central desta tese é discutir como os

catingueirenses chegam a ser o que são. Como será visto, os catingueirenses têm orgulho ao se

definirem como gente “religiosa”. Parece-me possível afirmar que a religiosidade cristã é um “dado”

em Catingueira. A partir desta constatação, a pergunta inicial restringe-se aos termos religiosos:

como os catingueirenses se tornam religiosos? Para tanto, será necessário acompanhar detalhamente,

do ponto de vista individual e diacrônico, todo o processo que pode culminar na auto-identificação

pessoal como crente ou católico ou espírita. Como os católicos chegam a ver a igreja como coisa

sagrada mesmo se não a freqüentam? Como atingem a certeza da existência da vida após a morte e

da atuação das almas dos mortos no mundo dos vivos? Como as pessoas chegam a afirmar a

existência de Deus, a ponto de terem as suas vidas pautadas, em grande medida, nesta certeza? – é

uma das muitas questões que a análise dos dados aqui apresentados propiciará discutir.

No entanto, pedir às crianças para desenhar e escrever sobre a sua religião trouxe limitações

incontornáveis à análise do material coletado. Parece que a sugestão do tema acabou estabelecendo

2 Os loucos, os antropólogos e as crianças são criaturas risíveis na medida em que não entendem ou não se submetem às normas sociais. Lembro-me de ter lido, em certa ocasião, uma crônica de jornal na qual José Saramago tecia considerações sobre as similaridades entre os loucos e as crianças (SARAMAGO: 1996).

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um recorte em direção à religião enquanto instituição, sendo ineficiente para abranger também

aspectos da espiritualidade ou as experiências místicas. Algumas crianças ficaram perdidas com o

pedido de desenho, sem saberem o que desenhar. Minha escolha temática vinha do desejo de eleger

um tema o mais amplo possível que permitisse às crianças discorrer sobre religião do seu ponto de

vista. Mas veja a dificuldade que me foi colocada: que outro termo usar? Deus? Jesus? Igreja? Qual

termo seria o mais abrangente possível para fazer as crianças ponderarem amplamente sobre a sua

vida espiritual? Acabei optando pelo termo “a minha religião”. Ao acrescentar “minha” [religião]

tinha por objetivo incentivar as crianças a escrever e desenhar sobre a sua própria relação com o

mundo religioso, preocupada que estava com a possibilidade, que se fez real, das crianças

descreverem a religião segundo termos adultos. Estou ciente de que a definição do tema do desenho

tenha direcionado em alguma medida a aproximação das crianças ao tema. Porém, em todos os

casos, acredito que haja legimitidade na pergunta sobre a religião da criança se pensarmos que os

desenhos não foram usados como único método de pesquisa. Essa legitimidade será testada no curso

da tese e só poderá ser avaliada pelo leitor. É preciso, por fim, acrescentar que outros temas de

pesquisa foram testados, como Deus, Jesus, a Igreja, mas não com a mesma abrangência que os

temas da religião e do mal-assombro.

No decorrer da tese, observar-se-á um certo privilégio das semelhanças, em detrimento das

diferenças, entre as várias religiões da cidade. Isto não implica, no entanto, um negligenciamento das

diferenças entre as religiões. O que me parece importante ressaltar é que, mais que diferenças, há

importantes similaridades entre as religiões representadas, atribuídas ao fato de todas as religiões

representadas serem cristãs. O cristianismo, como vou sugerir nesta tese, parece ser o terreno onde a

criança aprende a ser um catingueirense. Tudo se passa como comenta o menino de doze anos de

idade: “[...] Tem vários tipos de religião. Tem a religião católica, a religião evangélica. Mas todas

são iguais porque não é importante as religiões serem iguais, o que importa é o Amor por Deus, e a

fé por ele e por todos os Santos da religião.[...]” (RJ. 12. M. 18). Observamos em outras

oportunidades (PIRES 2003, 2005a) a preponderância do santo padroeiro enquanto mediador entre

as religiões representadas, papel este potencializado na festa a ele consagrada em janeiro de cada

ano. Mas até os santos católicos, a maior causa das discordâncias entre os crentes e os católicos,

parecem ser desconsiderados por este menino citado há pouco. Neste trabalho, no entanto,

destacaremos algumas práticas religiosas que associam todos os catingueirenses independentemente

da sua religião, como o “pedir a bênção” mas, principalmente, o medo dos mal-assombros.

Em uma entrevista à revista Ciência Hoje, Pierucci (2005) argumenta que a suposta

diversidade religiosa brasileira não corresponde à realidade: não pode haver diversidade religiosa

quando nove em cada dez brasileiros se definem como cristãos, segundo os dados do último censo.

Segundo o autor, a auto-imagem enquanto país etnoracialmente diverso levou os brasileiros a se

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acostumarem a se definirem igualmente como religiosamente diversos, quando, na verdade, apenas

3,5% da população pertence a religiões não-cristãs: “Que bela diversidade religiosa é essa nossa, na

qual as religiões não-cristãs não somam mais do que 3,5% da população? É uma auto-ilusão que

alimentamos” (:7). Ele ainda pontua o cenário de descréscimo do número dos praticantes de

religiões afro-brasileiras e o aumento dos pentencostais, que em algumas áreas já são tão numerosos

quanto os católicos. É interessante constatar que a indagação quanto à existência de cultos de origem

afro-brasileira é altamente recorrente quando começo a expor o painel religioso de Catingueira.

Ressalto ainda a decepção e, às vezes, a incredulidade do meu interlocutor quando aponto a

inexistência destas manifestações religiosas. Mas como? Talvez não tenha se dado conta? Talvez

não tenha tido tempo suficiente para perceber estas manifestações religiosas? Tudo se passa como

se os cultos afro-brasileiros estivessem presentes em todas as cidades brasileiras, como parte

imprescindível do contexto religioso nacional. Acredito que a sugestão de Pierucci (2005), que alerta

para a massiva presença dos cristãos, pode ser útil para pensar o contexto onde fiz pesquisa, e quiçá

muitas outras cidadezinhas do interior do Brasil; afinal, como o autor salienta: “Somos realmente o

país do Cristo redentor” (:7)3.

Gostaria, neste momento, de apresentar brevemente cada um dos capítulos da tese. Todos os

capítulos contêm uma introdução, onde anuncio os temas a serem tratados, e uma conclusão, onde

aponto algumas observações conclusivas. Apesar dos capítulos pretenderem ser auto-explicativos,

muitas vezes, para uma melhor compreensão, o leitor poderá recorrer aos outros capítulos,

principalmente quando referidos.

A Introdução tem como objetivo apresentar rapidamente as motivações e o tema da pesquisa,

tecer alguns comentários importantes para a leitura da tese, além de apresentar um panorama teórico

dos estudos sobre (e com) crianças nas ciências sociais. No Capítulo Um, apresento e discuto os

vários métodos e técnicas de pesquisa utilizados na confecção da tese. O Capítulo Dois se dedica a

apresentar a cidade de Catingueira e os seus habitantes, dando destaque às crianças. O Capítulo Três

volta-se a compreender o que são os mal-assombros e a sua relação com os catingueirenses adultos e

crianças. O Capítulo Quatro destina-se a entender o que as crianças pensam sobre religião,

observando como os seus conceitos religiosos mudam ao longo dos anos até a idade adulta. No

Capítulo Cinco, apresento detalhadamente o resultado dos desenhos, principalmente aqueles cujos

temas eram “a minha religião” e “o mal-assombro”, a fim de tecer um panorama do processo de

crescimento etário, que relacione a religião aos mal-assombros. Na Conclusão, coloco em diálogo

3 Robbins (2003) argumenta em favor de uma antropologia do Cristianismo, parcialmente inspirada em um esforço bem sucedido em direção a uma antropologia do Islamismo. Este projeto comparativo deveria estar atento para não se filiar unitariamente a nenhum ramo do cristianismo, mas tentar compreender as similaridades e diferenças entre as várias expressões do cristianismo espalhadas pelo mundo.

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todos os capítulos apresentados, tecendo algumas considerações etnográficas e teóricas. Por fim, no

Anexo 1 estão descritos alguns dos mal-assombros. No CD – Anexo 2, constam todos os desenhos e

as fotos citados no texto da tese, assim como outras fotografias e desenhos complementares e, por

fim, os mapas.

Para finalizar esta primeira parte da Introdução, algumas rápidas considerações adicionais

são necessárias.

Embora a cidade de Catingueira conte com três igrejas Evangélicas e um Centro Espírita

Kardecista, a grande maioria dos seus habitantes é católica. Desta forma, no decorrer da tese, o leitor

poderá notar um privilégio na descrição e na análise de eventos católicos. Isso não se justifica por

uma preferência analítica da pesquisadora, senão por uma realidade da área pesquisada que não

poderia deixar de ser levada em consideração. Outra observação é que muitas vezes utilizo o termo

“crente” no lugar de “evangélico”, uma vez que é assim que as pessoas referem-se aos que

freqüentam as igrejas protestantes naquela localidade, ao mesmo tempo em que é um termo auto-

identificador. Vale ressaltar, no entanto, que recentemente tenho ouvido alguns fiéis da Assembléia

de Deus auto-referindo-se como “evangélicos”. A palavra parece menos dada a brincadeiras jocosas

e, por isso, preferível. Um exemplo destas brincadeiras é dizer que alguém é “quente” no lugar de

“crente”, brincadeira muito popular entre as crianças.

Gostaria de alertar o leitor quanto ao uso das palavras, principalmente no caso de palavras

como igreja e religião. Estas palavras podem apresentar diferentes sentidos de acordo com o

momento em que são empregadas, como, por exemplo, quando pedi para as crianças desenharem

sobre a sua religião e elas desenharam a religião enquanto igreja, tanto como templo, quanto como

ecclesia. Embora possa causar uma confusão aparente, ao apresentar os diferentes sentidos dados

pelos informantes a uma mesma palavra, a pesquisadora está acompanhando os significados

diferenciados empregados pelas pessoas em situações distintas. Além disso, é importante afirmar

que essas mudanças nos significados das palavras empregadas é justamente um dos objetos da tese.

Acredito que os significados de cada uma das palavras vá se elucidando no decorrer da tese.

Os desenhos das crianças foram classificados e aparecem no texto da tese da seguinte forma:

Iniciais do nome da criança, idade, sexo, número do desenho dentre aquela faixa etária. Um

exemplo: EF. 16. M. 3. Donde, EF. são as iniciais do nome da criança; dezesseis anos é a sua idade;

M indica masculino; e, por fim, três é o número do desenho na faixa etária dos dezesseis anos.

Alguns desenhos não contam com o último recurso de classificação, ou seja, não foram classificados

segundo o número do desenho dentre aquela faixa etária. Um exemplo: L. 5. F. L é a inicial do nome

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da criança, que tem cinco anos e é menina. Outra forma de classificar os desenhos é a seguinte: J. 8.

M. (pastor), que por sua vez indicam o nome, idade e sexo da criança, assim como “pastor”, que está

entre parênteses, indica o tema sobre o qual a criança estava desenhando.

A redação das crianças só foi modificada quando me parecia dificultar a compreensão do

texto.

A fim de não expor demasiadamente as crianças e os adultos citados na tese, apenas a(s)

inicial(is) de seus nomes foi mantida. Mas os nomes dos candidatos da campanha eleitoral de 2005,

na medida em que se tornaram públicos, foram mantidos.

Algumas crianças cresceram a olho nu durante a realização da pesquisa. Às vezes, observo as

primeiras fotografias do ano de 2000 e chego a me espantar com o fato irremediável da passagem do

tempo. Gostaria de esclarecer que, quando me refiro à fala ou ao desenho de uma criança, cito a

idade que ela tinha na época do ocorrido. Com isso, algumas crianças foram registradas com idades

diferentes, apesar de se tratar da mesma pessoa.

Para concluir, gostaria apenas de informar que todas as traduções de língua estrangeira

apresentadas são de minha autoria e foram devidamente destacadas no texto.

PARTE 2: Abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças em Antropologia Social

1. Introdução

O campo de estudos sobre a infância a partir de uma perspectiva sociológica ou

antropológica é relativamente recente. Em conseqüência disso, a literatura sobre o tema não é

extensa. Ademais, os pesquisadores não estão de acordo em vários pontos, inclusive sobre a própria

história dos estudos sobre criança. Neste texto, apresentarei uma seleção de algumas idéias e

algun(ma)s pesquisadore(a)s da infância e da criança, com o intuito de realizar um breve (e não

completo) histórico do tema, concentrando-me não apenas na literatura produzida no Brasil. No

entanto, o levantamento não se pretende exaustivo.

Observa-se, tanto no Brasil quanto no exterior (Reino Unido, Estados Unidos da América,

Portugal, França, países nórdicos) um crescimento do interesse dos antropólogos e sociólogos na

criação de um campo de estudos específico para o estudo do tema4. Na França, os estudos sobre

4 Há espaço para variadas formas de se conceber a infância. Uma delas, por exemplo, é a teoria que proclama o fim da infância (BUCKINGHAM 2000, POSTMAN 1994). Neste terreno, os meios de comunicação, como a televisão e a internet, são considerados os culpados pela indistinção da fronteira entre idade adulta e idade infantil. Na contracorrente

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criança estão vivendo uma fase de crescimento quantitativo e de abertura de novas frentes teóricas,

tendo sido reconhecidos pela Associação Internacional dos Sociólogos de Língua Francesa (AISLF)

− apesar de, como afirma Eric Plaisance (2004), ainda ser “um campo de pesquisa disperso, mal

circunscrito, trabalhado por pesquisadores que mal se conhecem e têm poucas interações” (: 222).

Do mesmo modo, no Brasil, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) incluiu em 2006, pela

primeira vez na sua reunião bianual, um grupo de estudos voltados para a temática (GT 41: Por uma

antropologia da Infância).

As abordagens que relacionam religião e infância são ainda mais raras. Consegui localizar

alguns poucos estudos que se concentram numa interface entre religião e infância, embora não se

restrinjam à antropologia (ASTUTI in press 1; COLES 1990; BOVET 1928; ELKIND 1978;

GARBARINO 1996; HARDMAN 1999; HELLER 1986; NESBITT 1993, 2000a, 2000b;

ROBINSON 1977). Segundo Nesbitt (2000a), autora que vem trabalhando com crianças de origem

Sikh na Inglaterra, a literatura sobre criança e religião concentra-se em uma abordagem quantitativa

e altamente psicológica. Os exemplos citados por ela são Bushnell (1967), Anthony (1971), Gates

(1976, 1982), O´Keeffe (1986), Bullivant (1987), Francis (1987), Hyde (1990), Lall (1999), Davies

(1997) – sendo os dois últimos direcionados à comunidade Sikh. Há, no entanto, um campo de

estudos sobre educação religiosa ou espiritual que conta inclusive com alguns periódicos como

Religious Education, British Journal of Religious Education, The international Journal of

Children´s Spirituality5.

Alguns pesquisadores discorreram sobre uma impossibilidade de empreender tal projeto de

pesquisa com crianças pequenas. “O trabalho descrito por Edward Robinson em The Original

Vision (1977: 11) sugere que as pessoas que se lembram de terem tido alguma consciência

espiritual da sua infância, eram geralmente incapazes de falar sobre o fato. Além disso, muitas

dessas pessoas também disseram que foi apenas quando elas se tornam adultas que reconheceram a

importância desses eventos. Isso parece sugerir que qualquer tentativa de discutir assuntos

destes estudos, outros pesquisadores afirmam que as novas mídias eletrônicas são responsáveis pela tomada de poder pelas crianças em relação aos adultos, já que os primeiros as dominam com mais facilidade que os seus pais. 5 Hay & Nye (2006 [1998]), preocupados em estudar a educação espiritual, afirmam que as crianças têm experiências religiosas mais intensas que os adultos porque naturalmente os seres humanos são equipados com uma consciência religiosa que vai sendo esquecida com o passar dos anos. Os autores afirmam sua filiação a Alister Hardy (1965, 1966, 1979), um zoólogo darwinista da Universidade de Oxford que trabalhou com a “[…] hypothesis that what he called ‘religious experience’ has evolved through the process of natural selection because it has survival value to the individual” (HAY & NYE 2006 [1998]: 22). Para eles, “By locating spirituality in the human organism it places a focus on childhood and on spirituality is intrinsic rather than taught”. (HAY & NYE 1996: 13). Eles ainda afirmam que “We will thus be able to move beyond an understanding of children´s spirituality based on ‘knowledge’ towards a more general psychological domain of spirituality as a basic form of knowing, available to us all as part of our biological inheritance”. (HAY & NYE 1996: 10) E concluem dizendo que “Spirituality is characterized here as a natural form of human awareness” (HAY & NYE 1996: 6). Espiritualidade, em seus termos, é algo mais abrangente que a religiosidade, e é encontrada em ambientes seculares. A minha pesquisa distingue-se da pesquisa ora citada na medida em que não estou interessada em pesquisar as origens da religião ou da experiência religiosa.

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“espirituais” com crianças muito pequenas é infrutífero” (McCREERY 1996: 197 tradução minha).

Ronald Goldman vai mais longe e descreve: “Percepções e conceitos religiosos não são baseados

em dados sensoriais diretos, mas são formados a partir de outras percepções e conceitos de

experiência. Os místicos, que afirmam terem sensações divinas diretas, são exceções, mas como eles

são casos extremamente raros, ainda mais raros na adolescência e praticamente desconhecidos na

infância, nós não precisamos explorar a sua significância” (1964: 14 tradução minha). Goldman

não acredita possível realizar tal empreendimento de pesquisa porque, segundo ele, as crianças

pequenas não teriam conceitos ou percepções religiosas ainda: “o insight religioso geralmente

começa a aparecer entre os doze e treze anos de idade” (1964: 226 tradução minha).

Além disso, estudar infância, como afirmam Robinson (1977) e James, Jenks e Prout (1998:

183), apresenta, dentre outros, o problema de que muitos sentem-se autorizados a expressar sua

opinião, como se o fato de já terem sido crianças os autorizasse a teorizar sobre a infância. Como se

pode observar em outro texto de James, “Eu não simplesmente estudei crianças, mas fui criança e

tive crianças!” (1993: 14 tradução minha), ser mãe ou ter sido criança é inexplicavelmente afirmado

como garantia de uma boa pesquisa. Outro problema recorrente da literatura sobre o tema é

considerar a memória, através dos relatos sobre infância, como a própria expressão da voz das

crianças, como fez Robinson (1977) 6. A memória, como se sabe, é um exercício reflexivo que dota

ao passado valores de acordo com o momento presente. Para se estudar as idéias e experiências

infantis, é preciso estudar as crianças propriamente ditas, e não o que os adultos têm a dizer sobre a

sua infância ou a dos seus filhos. Não estou dizendo, no entanto, que se devam excluir os adultos das

pesquisas sobre infância (ponto a ser discutido em outros vários momentos).

Gostaria de esclarecer, antes de mais nada, o que se acredita ser a diferença entre os estudos

das crianças e da infância. De maneira geral, a antropologia da infância visa a estudá-la como uma

instituição social, como uma representação cultural, como um discurso ou como uma prática. Por

sua vez, a antropologia da criança atém-se a estudar o crescimento, o aprendizado, o trabalho e as

brincadeiras das crianças (WOODHEAD 2003a: 08). Tentei trabalhar na presente tese tanto na

perspectiva da antropologia da criança, que se concentra nas próprias crianças em ação, como

também na perspectiva de uma antropologia da infância, na qual os constrangimentos e

especificidades de uma geração em uma determinada sociedade ou cultura é que estão em jogo.

Acredito que seja mais profícuo tentar pensar, ao mesmo tempo, as duas perspectivas, ou seja, as

crianças inseridas em um contexto de infância específica, que varia historicamente e culturalmente.

6 Para este autor (ROBINSON 1977) a experiência religiosa é uma experiência ordinária que ocorre de primeira mão e, por isso, de maneira mais completa, na infância. A esta experiência, ele denomina “a visão original”. Como na experiência mística, o sujeito sente que foi abalado por um poder maior que ele próprio. Para o autor, essa experiência é essencial para o desenvolvimento do entendimento maduro, não se tratando de fantasia mas, sim, de conhecimento. “I believe that what I have called “the original vision” of childhood is no mere imaginative fantasy but a form of knowledge and one that is essential to the development of any mature understanding” (:16).

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Segundo Prout (2005), os estudos sobre a infância têm início na modernidade, justamente

porque somente neste momento foi concebida a separação entre a infância e a idade adulta. Philippe

Ariès (1962) é o grande representante da teoria moderna nos estudos da infância. Como se sabe, ele

argumenta pelo “nascimento” da infância na época moderna. Seu trabalho é reconhecido por ter

introduzido definitivamente as crianças nas pesquisas acadêmicas e por ter afirmado a condição da

infância como uma construção social. No entanto, a crítica mais corrente ao seu trabalho é que ele

padece de um viés etnocêntrico, na medida em que não reconhece outras formas históricas de

infância, a não ser aquela da modernidade. Sempre houve criança em todas as épocas históricas; o

que não havia era criança tal como a concebemos na modernidade (POLLOCK 1983). Outra crítica

corrente a Ariès é o seu viés evolucionista, na medida em que traça as mudanças nas idéias sobre

organização familiar e sobre a criança desde a idade média até o final do século XVIII. Apesar de

nunca ter afirmado que estes estágios de transformação das idéias sobre família e criança eram

inevitáveis, a teoria foi lida desta forma por alguns pesquisadores.

A psicologia tem uma grande tradição nos estudos infantis. Freud, Piaget e Vygotsky gozam

de reputação ainda hoje e podem ser atualizados pela antropologia. Experiências de pesquisa atuais

tentam conciliar a herança psicológica com o olhar sociológico e/ou antropológico, na tentativa de

não repetir erros do passado. Um desses erros fundamentais está expresso na seguinte frase: “[...] a

antropologia tem ignorado as crianças na cultura, enquanto os psicólogos do desenvolvimento têm

ignorado a cultura na infância” (SCHWARTZ 1981: 4 tradução minha). Christina Toren (1999),

por exemplo, usa o conceito de esquema de Piaget em paralelo ao conceito de autopoiesis cunhado

por Maturana e Varela. Segundo ela, estes conceitos são similares, na medida em que autopoiesis é

uma estrutura dinâmica que permite o relacionamento com o mundo, em um processo

microhistórico. Por sua vez, o esquema permite esse mesmo processo de “tornar-se” na história

cotidiana no nível cognitivo, que para a autora diz respeito à pessoa como um todo em relação aos

outros e no decorrer da história7.

De acordo com James e Prout (1990) até o final dos anos 70, os estudos sobre crianças

padeciam de um viés evolucionista altamente influenciado por Piaget, autor que estudou os vários

estágios de desenvolvimento ou evolução da criança até chegar a ser adulto. As crianças eram

tratadas em termos de simplicidade, irracionalidade e mundo natural, em contraposição ao mundo

adulto, complexo, racional e cultural. Segundo James, Jenks e Prout, Piaget “nega a agência na

criança e o caráter socialmente construído da infância” (JAMES, JENKS, PROUT 1998: 173

tradução minha). Porém, concordo com Gates (1996: 135 tradução minha) “[...] apesar do

desenvolvimento psicogenético criar certos constrangimentos à capacidade de entendimento da

7 A partir disso, a autora chega á sua definição de mind. “Mind is a function of the whole person constituted over time in intersubjective relations with others in the environing world” (TOREN 1999: 12).

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criança, é evidente que a razão está dada, desde os primeiros anos de vida, no entendimento da fé,

fato e fantasia”. Sem dispensar a obra de Piaget, sua teoria ainda pode ser utilizada, se olhada de

uma perspectiva mais generosa − como o fez Toren (1990). Além disso, Woodhead (2003a: 25/28)

argumenta a favor de Piaget dizendo que ele foi um ouvinte atencioso das crianças e que seus erros

foram o de tratá-las como seres ainda em constituição (como potencialidades), além de enfatizar por

demais o que era natural no processo cultural8.

Na sociologia, podemos afirmar que Durkheim (1922, 1925, 1979 [1911]) foi um dos

primeiros a estudar as crianças, a quem ele chamou “o adulto a ser” (1979 [1911]: 149 tradução

minha). Preocupado com as questões da educação, trabalhou o tema da socialização, vista através de

um modelo vertical, em que a ação da geração mais velha sobre a geração mais nova é um traço

recorrente em todas as sociedades e épocas históricas. A educação, como todo fato social, é então

percebida como uma força de imposição e coerção. A socialização culmina, segundo seu argumento,

com a interiorização de normas e valores.

No Brasil, parece que a primeira9 contribuição da sociologia e antropologia, no sentido de

reconhecer a criança como um sujeito humano de pouca idade e um agente de socialização

considerável, vem de um trabalho realizado na década de 1940 por Florestan Fernandes, mostrando a

rua, além da família e da escola, como lugares privilegiados da infância. Escrito originalmente em

1944 para o concurso Temas Brasileiros, instituído pelo Departamento de Cultura do Grêmio da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, este trabalho foi publicado

em 1947 sob o título As "Trocinhas” do Bom Retiro. Trata-se do registro inédito de elementos 8 Segundo Piaget, dos três a seis anos predomina na criança o estágio pré-operacional: nele, a criança vê o mundo segundo termos antropomorfos. Aos seis ou sete anos, a criança adquire as operações concretas que lhe proporcionarão no futuro a possibilidade de uma relação pragmática com o mundo. Aos onze ou doze anos, tornam-se possíveis as operações formais, com novos modos de pensamento e aquisição de concepções abstratas a respeito do espaço, tempo e causalidade. 9 No Brasil, o fenômeno da pauperização infantil emergiu como um problema social e objeto de discussão política, num contexto marcado pelo advento da República, pelo crescimento acelerado de suas metrópoles, pela Abolição da Escravatura e a conseqüente criação de uma força de trabalho livre urbana constituída, significativamente, por contingentes de imigrantes estrangeiros. Mas somente na década de 1920 os problemas relacionados à criança tornam-se objeto de alçada jurídica, surgindo, assim, a categoria social denominada menor. É interessante observar como a palavra menor ganha as ruas enquanto uma categoria classificatória da infância pobre. Tal categoria foi criada em 1921, quando a justiça modificou "o código civil determinando que se considere abandonado o menor sem habitação certa ou meios de subsistência, órfão ou com o responsável julgado incapaz de sua guarda" (ALVIM & VALLADARES 1988: 5-9). Embora, no Brasil, a "criança pobre” tenha sido motivo de preocupação por parte do Estado desde meados do século XIX, a produção brasileira na perspectiva de uma sociologia da infância só efetiva-se em 1939, com o primeiro relatório, elaborado por Sabóia Lima, sob o título A infância desamparada. Na década de 70, mais um relatório de pesquisa é realizado com o objetivo de subsidiar a definição de políticas e programas sociais, mediante diagnóstico da criança em situação de risco. Encomendada pelo Tribunal de Justiça da cidade de São Paulo e realizada pelo Cebrap, e publicada em 1972, sob o título A criança, o adolescente, a cidade, esta pesquisa tinha por objetivo contribuir para a ação dos juizados de menores, num período em que a questão do menor colocava-se como um problema social grave. É interessante observar que, na cidade do Rio de Janeiro, também empreende-se, no mesmo período, uma pesquisa semelhante, publicada em 1973, com o título Delinqüência Juvenil na Guanabara. Estas pesquisas marcam o esforço das ciências sociais em direção à elaboração de diagnósticos referentes à condição social da criança, reunindo, deste modo, os interesses do Estado aos dos assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, antropólogos e sociólogos. Ressalto o caráter não exaustivo da minha leitura. Outros tentivas de compreender a infância e a criança podem ser tido lugar em outras áreas, como na sociologia da educação, na psicologia e na educação, bem como em outras épocas.

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intrínsecos à vida das crianças, captadas a partir de observações sobre grupos de crianças residentes

nos bairros operários da cidade de São Paulo que, depois do período da escola, juntavam-se nas ruas

para brincar. Entendendo a criança como participante ativo da vida social, o jovem Florestan

observa, registra e analisa o modo como se realiza o processo de socialização das crianças, como

constroem seus espaços de sociabilidades e quais as características destas práticas sociais.

O caráter original das "Trocinhas" do Bom Retiro está no fato de F. Fernandes anunciar a

linguagem que posteriormente trataria as crianças como atores sociais completos, reconhecendo

agência no mundo infantil. Ele chega a utilizar o termo culturas infantis, e afirma que as crianças

quando estão brincando não estão imitando os adultos, mas estão envolvidas nas elaboradas culturas

infantis: “[...] há entre as crianças (até 7 ou 8 anos entre os meninos e até mais entre as meninas)

brinquedos cujos motivos são aspectos da vida do indivíduo adulto, tais como "fazer comidinhas",

"brincar de casinha" etc. (...) nos brinquedos, a criança não imita seu pai ou sua mãe. Pai e mãe

são entes gerais, representam uma função social. As crianças abstraem da pessoa A, B ou C, para

falar de "pai" e "mãe" de modo genérico, desempenhando nas brincadeiras as suas funções”

(FERNANDES 1979: 387) 10.

Ao prefaciar o texto em pauta, Roger Bastide (1979) observa o quanto o estudo da vida

infantil era negligenciado e o quanto era necessário reconhecê-lo. Constata o autor: "[...] há entre o

mundo dos adultos e o das crianças como que um mar tenebroso, impedindo a comunicação. Que

somos nós, para as crianças que brincam ao nosso redor, senão sombras?". Contrariando Durkheim

(1922), Bastide defende a necessidade de se multiplicarem as pesquisas deste tipo, ressaltando a

importância de se estudar as representações infantis, de conhecer o mundo dos brinquedos, das

brincadeiras e jogos11.

2. Uma cultura ou sociedade das crianças?

Na antropologia, por sua vez, a infância sempre foi contemplada nas monografias de modelo

clássico, porém sempre como tema adjacente, raramente como tema principal (salvo raras exceções

como Kidd, D. 1906. Savage Childhood: a study of Kafir children. London: Black. Mead, M. 1930.

Growing up in New Guinea. New York: Morrow). O mais comum era introduzir uma sessão no

capítulo sobre família, descrevendo o nascimento e a socialização infantis. Porém, na década de 30,

10 Posteriormente, em outras palavras e por uma feminista norte-americana, chegamos a formulações deste tipo: “As interações das crianças não são preparações para a vida, já são a própria vida” (THORNE 1993: 3 tradução minha)”. 11 Para Bastide, "para poder estudar a criança é preciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo" (BASTIDE 1979: 154 tradução minha).

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Margaret Mead desponta efetuando um grande salto nos estudos sobre criança na antropologia.

Apesar de muito criticada, a autora teve um papel crucial na descoberta da infância pelos

antropólogos. Embora disponha de uma obra etnográfica bastante avantajada e, portanto, ainda

aberta a interpretações, foi largamente criticada por utilizar uma noção de cultura constrangedora da

agência infantil. Sua idéia básica de socialização, como via de mão única, na qual o adulto ensina à

criança como se tornar social em determinada sociedade, deslanchou uma forte crítica por parte dos

chamados new social studies of childhood, a partir da década de 80 do século XX. O principal

objetivo destes estudos era estabelecer a compreensão dos fenômenos da infância a partir do social,

inaugurando, então, a era do construcionismo social nos estudos infantis. As crianças deixariam de

ser vistas como passivas e dependentes do mundo adulto, para serem pensadas como sujeitos plenos,

rompendo a relação necessária entre família-socialização-criança a fim de conceber a infância como

um objeto de estudos válido em si mesmo. A ênfase voltava-se para a fenomenologia com Merleau-

Ponty, para os estudos literários, e privilegiam-se o trabalho de campo e as descrições como métodos

mais adequados para o estudo da diversidade das experiências e formas de infância.

A partir dos new social studies, na psicologia, criticou-se a noção de desenvolvimento

(infantil) tido como excessivamente individual e biológico. Na sociologia e na antropologia,

fortaleceu-se a crítica da noção de socialização, como ação de sujeitos plenos (adultos) sobre

sujeitos incompletos (crianças): “Na abordagem sociológica da infância o conceito central é

socialização. Um sinônimo para este processo poderia ser aculturação, na medida em que este

termo implica que na aquisição cultural as crianças não são vistas como indivíduos completamente

equipados para participar em um mundo adulto complexo, mas como seres que têm o potencial para

serem trazidos lentamente para o contato com os seres humanos” (RITCHIE 1964 tradução minha).

Deste modo, como conseqüência “de um membro adulto ser considerado naturalmente maduro,

racional e competente a criança é vista, em justaposição, como não completamente humano, não

acabado e incompleto” (JENKS 1982: 19 tradução minha). Os new social studies questionaram estes

conceitos de criança e adulto, propondo alternativas que enfatizassem a agência infantil.

Alan Prout e Allison James, grandes representantes deste paradigma, também chamado new

paradigm in the sociology of childhood, elaboraram uma síntese bastante elucidativa deste período

da disciplina, que gostaria de apresentar, apesar da extensa citação.

1. “A infância deve ser entendida como uma construção social. Como tal, ela provê um

quadro interpretativo para contextualizar os primeiros anos da vida. Infância, como

distinta da imaturidade biológica, não é uma característica natural e nem universal

dos grupos humanos, mas aparece como um componente estrutural e cultural

específico em muitas sociedades.

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2. A infância é uma variável da análise social. Ela não pode nunca ser separada das

outras variáveis, como classe, gênero ou etnicidade. Análises comparativas e

interculturais revelam uma variedade de infâncias e não um fenômeno único e

universal.

3. As relações sociais das crianças são válidas como objeto de estudo em si mesmas,

independentemente da perspectiva e das preocupações dos adultos.

4. As crianças devem ser vistas como ativas na construção e determinação de suas

próprias vidas, na vida daqueles que as cercam e das sociedades onde elas vivem. As

crianças não são simplesmente sujeitos passivos frente às estruturas e processos

sociais.

5. A etnografia é uma metodologia particularmente útil para o estudo da infância. Ela

permite que a criança participe mais e tenha uma voz mais direta na produção do

dado social em comparação ao que normalmente é possível usando estilos de

pesquisa experimentais ou surveys.

6. A infância é um fenômeno em relação ao qual a dupla hermenêutica das ciências

sociais se apresenta (veja Giddens 1976). Proclamar um novo paradigma para a

sociologia da infância é também se engajar no e responder ao processo de

reconstrução da infância na sociedade” (PROUT e JAMES, 1990: 08 tradução

minha).

Woodhead (2003a) prefere usar, no lugar de criança socialmente construída ou estruturada,

termo consagrado pelos new social studies of childhood, o termo criança sócio-cultural ou criança

na sociedade, já que os primeiros enfatizam por demais a abordagem sociológica. Segundo ele,

Prout (2005) e outros autores, o campo de estudos da infância é um campo necessariamente

interdisciplinar. O autor condensa os seis tópicos propostos acima em apenas dois princípios. Quais

sejam: “O primeiro é sobre infância: a infância é socialmente construída em todos os níveis e isso

tem implicações em como ela é estudada e teorizada. A segunda é sobre criança: deve-se

reconhecer seu status e os seus direitos como o ponto de partida para a pesquisa, política e prática”

(WOODHEAD 2003a: 16-17 tradução minha). Ele afirma, além disso, que não adianta apenas ouvir

as crianças e transcrever suas falas. É preciso que a análise do pesquisador esteja em sintonia com os

interesses das crianças e não com os do pesquisador e da sociedade adulta (2003a: 32).

A idéia de socialização, criticada pelos new social studies, pressupõe um indivíduo adulto

que impõe sua visão de mundo a uma criança. Hoje em dia esta idéia de socialização é considerada

ultrapassada. Ao contrário disso, aceita-se que as crianças são agentes da sua própria socialização,

paralelamente ao adulto. O problema nesse caso é que os new social studies tenderam a inverter a

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balança, colocando a criança como sujeito pleno da sua própria socialização. Sem, no entanto, 1)

reconhecer o papel do adulto neste processo, e 2) criticar a própria noção de socialização enquanto

aprendizado estático e previsível. Como afirmou Mayer (1970) “a socialização tem lugar durante

toda vida, ela não termina na infância (1970: 82 tradução minha)”. Toren (1993a: 461 tradução

minha) vai mais longe e afirma “[…] antropologia tende ainda a assumir que o ponto de chegada

da socialização é sabido. Esta suposição está na raiz no desinteresse da antropologia pelas

crianças”. A autora não apenas sugere que a socialização não tem fim no adulto, como também

afirma que o desinteresse da antropologia pelas crianças pode estar ligado a este mau entendimento

do processo de aprendizagem.

Por sua vez, a socialização tal como foi tratada pelos antropólogos e sociólogos que tentaram

entender a infância de uma perspectiva social não dá conta do processo que culmina com uma

pessoa que crê, por exemplo, na aparição de espíritos. Em 1970, J. Briggs lançou o livro Never in

Anger, no qual ela mostra como a sociedade Inuit e a infância Inuit são criadas simultaneamente. Ela

afirma posteriormente (1992) que os adultos, assim como as crianças, nunca cessam de reelaborar

sua cultura e identidade. Daí a afirmação de que também a cognição adulta deve ser tratada como

fluida, em processo e contextualizada, já que os adultos também estão reelaborando sua cultura

constantemente. Desta forma, estudar crianças pode levar não apenas a repensar o processo de

aprendizado, mas os conceitos de cultura e o seu correlato, de sociedade, incluindo dinâmica na

análise de processos culturais e societais.

Parece-me que os new social studies of childhood enfatizaram sobremaneira a agência

infantil – o que criou um descompasso entre as relações crianças-adultos, esvaziando o poder destes

sobre aquelas de maneira incoerente. Veja esta citação de Corsaro & Molinari (2000: 197/8 tradução

minha): “a socialização não é alguma coisa que acontece com as crianças, é um processo pelo qual

as crianças em interação com os outros, produzem a sua própria cultura e eventualmente

reproduzem, estendem ou compartilham o mundo adulto”. Ou aindar: “[…] as crianças são agentes

sociais ativos e criativos, que produzem a sua própria e única cultura das crianças, enquanto

simultaneamente contribuem para a produção de sociedades adultas” (CORSARO 2005[1997]: 4-5

tradução minha). De acordo com a pesquisa por mim realizada, se crê nos mal-assombros ou em

alguma das entidades porque se teve algum tipo de experiência com eles12. Ninguém é ensinado de

maneira formal a temer os mal-assombros. Como, da mesma forma, a crença não nasce da própria

criança, mas desenvolve-se à medida que ela estabelece relações sociais ─ mas não apenas com

crianças e, sim, com toda a comunidade que a cerca 13. Sugiro que se teme um mal-assombro porque

12 “Tudo aquilo que eu sei do mundo [...] eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência no mundo [...]” (MERLEAU-PONTY 1999 [1945]: 03). 13 Isto fica claro quando constatei que os mal-assombros não fazem sentido para as crianças de dois anos de idade. Porém, por volta dos cinco anos de idade, nenhuma criança recusou-se a desenhar os mal-assombros. Disso, concluo que

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se tem certeza da influência dos mesmos na vida corrente, porque de alguma forma o sujeito

experienciou sua existência; mas isso não significa uma experiência essencialmente individual. Pelo

contrário, como será visto no decorrer da tese: é em interação social que a criança aprende sobre

religião e sobre os mal-assombros.

A infância, como afirma Toren (1999), é um espaço de intersubjetividades. Uma criança

aprende sobre o mundo que lhe cerca e toma conhecimento dele nas relações sociais que estabelece

com os outros membros da sua comunidade, sejam eles adultos ou crianças. O material de pesquisa

que coletei está repleto de histórias contadas pelas crianças relatando experiências de parentes

próximos, mãe, pai, avó, etc., com os mal-assombros. Com isso, parece que a ênfase deve estar

colocada nas relações sociais, nas palavras de Strathern (1996) e Toren (1999), na rede de

attachement como quer Latour (2000) ou ainda no rizoma, segundo Deleuze (1997 [1980]). Essas

idéias, embora guardem suas discordâncias, concordam que o lócus da vida social está nas relações

que essas pessoas, adultas ou crianças, estabelecem entre si e entre os outros elementos da rede. E

Latour deixa claro que estes elementos não são apenas humanos, deixando uma brecha para incluir

os mal-assombros ─ no caso do campo de pesquisa específico dentro do qual trabalho.

Baseada nos dados de campo que produzi, sugiro que quando estudamos as crianças é

preciso incluir os adultos. Alguns autores, como Wartofsky (1983), Tammivaara e Enright (1986), e

W. Corsaro (1992, 2003, 2005 [1997]), Thorne (1993), Sarmento e Pinto (1997) e Corsaro &

Molinari (2000) pensam o contrário, argumentando nos termos de uma cultura das crianças, uma

sociedade das crianças que existe concretamente em oposição à sociedade dos adultos14. Como toda

cultura, a cultura infantil teria suas representações, regras, conceitos, formas adequadas de ação

social, símbolos, linguagem15. Tendo, no entanto, a concordar com James, Jenks e Prout (1998) no

sentido de que as “[...] abordagens sobre a cultura das crianças são problemáticas porque de

diferentes maneiras eles retiram o contexto social da vida das crianças que não concerne à relação

com as outras crianças” (JAMES, JENKS, PROUT 1998: 82 tradução minha). Do mesmo modo,

Mayall (1995) argumenta que tratar as crianças em separado do mundo adulto é ir em sentido

contrário à realidade da criança, que vive em um mundo cercado também de adultos.

Falar sobre a cultura das crianças ou as culturas das crianças traz alguns outros problemas.

Primeiro porque a cultura é um conceito chave para antropologia, mas passou a ser a causa e o

efeito, e não ponto de partida para as pesquisas. Em segundo lugar, na pesquisa que realizei, percebi

que não há como tomar as crianças como um mundo à parte (vide página 120, Capítulo Três, na qual

apresento a insistência de uma criança de doze anos, para que eu fosse fazer pesquisa com os seus as crianças de dois anos ainda não tinham conhecimento dos mal-assombros, a ponto de expressar uma imagem no papel, mas não teriam nenhuma dúvida da sua existência e sua aparência quando alcançassem os cinco anos de idade. 14 Sylvia Anthony (1971: 78) fala de uma “sub-cultura” de crianças. 15 Para Corsaro, a cultura simbólica infantil alimenta-se da mídia e da literatura dirigida às crianças e das figuras míticas e lendas (1997: 100). Vide Capítulo Um, no qual discorro sobre os usos da língua do “Pê”.

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pais). Não há criança sem adulto, e não faz sentido estudar somente as crianças como um mundo à

parte e fechado em si mesmo, simplesmente porque isso não corresponde à realidade. Sabemos

muito bem, depois de ler Robert Redfield e Levi Strauss, só para citar grandes mestres, que nenhuma

sociedade sobrevive de portas fechadas. Que a "cidade" e o "campo" enquanto conceitos são partes

de uma mesma realidade e foram formados exatamente no mesmo instante, através de uma relação

de interdependência. As crianças são parte da sociedade e, quando digo isso, não retiro a agência

infantil; pelo contrário, afirmo-a. As crianças têm suas particularidades na forma de conceber e

experimentar o mundo: é sábio não negligenciá-las. Mas no mundo, o que opera são as relações

entre as pessoas, sejam adultos ou crianças. Ambos são parte da sociedade, com inserções

diversificadas e, portanto, com pontos de vista diferentes que devem ser explorados para se chegar a

um retrato mais fiel de uma comunidade. Não acredito que a opção teórica que fiz retire o poder das

crianças. A agência, me parece, é uma condição do indivíduo em sociedade, não importa que

categoria de indivíduo. Com isso, espero ter deixado clara a opção feita por mim de estudar as

crianças inseridas no contexto social, ou seja, em relação ao mundo dos adultos. Não acredito que

seja útil, pelo menos para a antropologia, estudar as crianças em si mesmas, como ambiciona o

quarto tópico de Prout e James (1990) citado anteriormente. Ainda voltarei a este ponto no decorrer

da tese.

Muito esforço foi dispensado no começo da descoberta da infância enquanto fenômeno social

pela antropologia e sociologia, nas últimas duas décadas do século passado e, no meu ponto de vista,

ocorreu um certo exagero. Talvez na tentativa de estabelecer esta área de pesquisa dentro do jogo

das políticas acadêmicas, tendeu-se a enfatizar em demasiado a chamada agência infantil e, com

isso, caiu-se em um outro extremo, em que as crianças eram vistas como um mundo à parte da

sociedade adulta, com regras, linguagem, rituais próprios e independentes. Para quê? Entre outras

coisas, para corrigir uma injustiça praticada desde sempre na história da antropologia e da

sociologia, para dar vozes àqueles que mais intensamente que as mulheres foram silenciados

enquanto sujeitos nas pesquisas. Também para denunciar as políticas de proteção às crianças, como

o Estatuto da criança e do adolescente, que perpetuam um viés considerado ultrapassado por estes

teóricos, no qual as crianças eram invariavelmente vistas como excessivamente passivas e

dependentes do adulto e à mercê de proteção e tutela. No entanto, para além das políticas públicas e

da política acadêmica, parece haver incutido no diálogo uma lógica científica muitas vezes pendular

entre pensamentos que se sucedem no tempo.

Nesta direção, vemos ocorrer recentemente uma crítica interna aos new social studies of

childhood nos livros de Alan Prout (2000, 2005), como mostra a citação: “[...] nós precisamos

descentralizar a agência, perguntando-nos como é que as crianças algumas vezes a exercitam [...].

A observação de que as crianças podem exercitar a agência deveria ser um ponto de análise inicial

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e não um ponto de chegada” (2000: 1616). Allison James também parece rever suas próprias

afirmações quando menciona que a ausência dos adultos ─ no caso, os pais ─ nos estudos sobre

infância é similar à operação de exclusão das crianças dos estudos sobre família (JAMES 1999: 184) 17. De um lado, a agência não deve ser levada ao extremo, como também não deve deixar de ser

contemplada. É preciso, como sugere Prout (2005), pesquisar até que ponto ela opera. O exemplo de

Palmer e Hardman (1999) pode ser interessante. Elas organizaram um livro sobre as crianças nas

novas religiões. Dividiram-no em duas partes. Na primeira parte enfatiza-se a agência infantil, no

sentido de como as crianças modificam estes movimentos religiosos. A segunda parte trata de como

estes movimentos moldam as crianças. É preciso não partir do pressuposto da agência (ou da

construção social), mas averiguar até que ponto ela está presente (PIRES 2005b).

3. Teorias da teoria

Outra maneira de compreender os estudos sobre infância é classificá-los como estudos que

concebem as crianças como índices18 do mundo adulto e estudos que trataram as crianças como

agentes. Como afirmei, os estudos de crianças como agentes tratam de analisar a infância de uma

16 Citação completa: “[...] we need to decentre agency, asking how it is that children sometimes exercise it, that is bring about some effect in the relationships in which they are embedded, [whilst on other occasions they do not]. The observation that children can exercise agency should be a point of analytical embarkation not a terminus”. 17 “[...] somewhat ironically, therefore, this new exclusion of parents from childhood studies mirrors the somewhat longer exclusion of children from studies of family where, traditionally, children’s interests were assumed to be congruent with those of the family represented, in turn, as being the interest of their parents” (JAMES 1999: 184). 18 Segundo a classificação de N. Rapport e J. Overing (2000: 29/32) as crianças foram estudadas enquanto índices do mundo adulto por diversas correntes:

a) Relativismo cultural: a infância e a juventude foram usados como argumento para provar o privilégio da influência da cultura sobre a biologia. Mead e Benedict são apresentadas como exemplos neste tipo de abordagem.

b) Neo-freudianismo: diversas práticas e cuidados infantis foram analisados em várias sociedades e estudadas em termos freudianos, esclarecendo que as características adultas são reflexões de conflitos na infância. Erikson, Du Bois, Spiro, são tidos como teóricos importantes deste tipo de análise.

c) Neodarwinismo: as práticas de educação infantil foram estudadas em relação às pressões do ambiente, cujo representante teórico é Le Vine.

d) Psicologia do desenvolvimento:: a partir da teoria dos estágios universais de desenvolvimento cognitivo desenvolvido por Piaget, observou-se como as crianças desenvolviam o entendimento do mundo, desde a manipulação de objetos concretos até o raciocínio lógico-moral e abstrato. A partir de Vygotsky, pesquisou-se como os universais da biologia do desenvolvimento eram mediados por contextos históricos culturais e pelos processos sociais cotidianos. Alguns teóricos: Dasen, Shildkrout, Levy, Goodman.

e) Papéis (role play): explorando a natureza relacional da vida social, teríamos a natureza relacional do papel do adulto e do papel da criança, que só fazem sentido se remetidos um ao outro. Harkness, Super, Goody, Carsten são pesquisadores tidos como representantes desta abordagem.

f) Autoconsciência: como as crianças movem-se de uma inconsciência primitiva a uma reflexividade adulta, paralelamente a humanidade, com a sucessão de gerações, tem maiores condições de controlar a consciência em relação ao cosmos e a si. Ong é a representante desta abordagem.

g) Política social: foca-se as vidas das crianças como marcas dos níveis de bem-estar social de uma sociedade com privações ou desvantagens na contemporaneidade. Alguns teóricos que desenvolveram essa abordagem são Ennew, Lacey, Heath, Weisner, Qvortrup.

h) Crítica social: as crianças são peças-chave na reprodução dos discursos hegemônicos sobre desigualdade social e cultural, na mesma linha dos trabalhos de Gramsci e Bourdieu. Jenkins, Hebdige, Scheper-Hughes, Willis são exemplos de pesquisadores que abordaram a infância a partir deste paradigma.

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perspectiva mais interpretativa, fenomenológica e literária. O objetivo é compreender as crianças

segundo elas mesmas, como seres ativos e participativos na sociedade envolvente e mais, com

particularidades que requerem métodos e teorias apropriadas. Nesta perspectiva há uma ênfase em

como as crianças enquanto agentes criam, interpretam, adquirem e recriam a cultura juntamente com

os adultos e com outras crianças. Um bom exemplo a ser citado é o livro de Bluebond-Langner, The

private world of dying children, de 1978. Ela demonstra, através de uma pesquisa com crianças

portadoras de câncer, como elas são capazes de elaborar seu próprio entendimento sobre o mundo

em que foram inseridas, sobre o funcionamento do hospital, drogas, morte, estágios da doença e

nomes médicos, ainda que não tenham sido ensinadas formalmente. Além disso, a autora assinala

como as crianças sabem que vão morrer com certa precisão temporal. Mesmo que haja todo tipo de

tentativas de esconder a possibilidade da morte das crianças por parte da equipe médica e da família

como, por exemplo, não responder às perguntas sobre o tema ou mentir, dizendo que uma criança

que estava muito doente foi para casa quando, na verdade, havia morrido.

Por sua vez, James (1995) elaborou a sua classificação de como as ciências sociais vêm

trabalhando as crianças, na qual afirma que elas foram tratadas das seguintes formas:

• Criança em desenvolvimento. Tratada como incompleta, sem status e relativamente

incompetente.

• Criança tribal. Tratada como competente por ser parte de uma cultura que deve ser estudada

em si mesma, a cultura infantil, mas não pertencendo ao mesmo mundo comunicativo do

pesquisador. Em parte, desenvolveu-se como resposta às abordagens da criança em

desenvolvimento (JAMES, JENKS, PROUT 1998: 180).

• Criança adulta. Vista como socialmente competente da mesma forma que o adulto.

• Criança social. É vista de maneira diferente em relação ao adulto, mas não necessariamente

com competências sociais inferiores.

Em livro posterior, juntamente com Jenks e Prout, James (1998) apresenta uma classificação

dos estudos das crianças de maneira ampliada. Exponho aqui uma elaboração pessoal a partir das

idéias deste livro paralelamente às idéias do livro de Smart, Neale e Wade (2001). De tal modo,

estudos que incluíram a infância poderiam ser divididos entre aqueles que trataram a criança como

1) ser pré - social e, posteriormente, como 2) ser social.

1) os estudos da criança pré-sociológica dividem-se em:

• A criança má. A corrupção e a maldade são os elementos primários da constituição da

criança, de acordo com Hobbes, o Antigo testamento, a criminologia, a prática pedagógica e

a moral pública. As crianças eram vistas como pequenos demônios marcados com o pecado

original. Como resposta a isso, métodos severos de educação foram desenvolvidos na Europa

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Puritana nos séculos XVI e XVII. Uma variação do modelo é a criança como um pequeno

selvagem ou bárbaro, em que ela é vista como incivilizada, mas não necessariamente má.

• A criança inocente. Em Rousseau temos o maior exemplar da concepção da criança

naturalmente boa, pura, inocente e gentil. A bondade da criança é um dado da natureza, e não

social. Ele propunha ao invés da punição, a proteção e a celebração da sua bondade19.

• A criança em desenvolvimento natural ou modelo embrionário. Na psicologia de Jean Piaget,

tido como um modelo evolucionista, a criança inicia a vida como um simples organismo

biológico, e termina por alcançar os variados estágios de desenvolvimento através do

progresso físico e intelectual. “A criança” segundo Piaget, representa todas as crianças, um

conceito a - histórico, generalizado e hipotético. Além disso, ela era vista como um ser em

potencial, não um ser completo; por isso, o nome modelo embrionário.

2) No modelo da criança sociológica, ela foi tratada em si mesma como lócus de pesquisa e

não como intermediária para as questões da família ou da escola. Subdivide-se em:

• A criança socialmente construída. A abordagem nasce contra o positivismo da sociologia

britânica nos anos 1970, com inspiração em Husserl e Heidegger. Acredita que não há uma

criança universal, mas uma pluralidade de formas de infância. Comprometida com o

relativismo e com o construtivismo social, estuda as formas das identidades infantis.

• A criança socialmente estruturada. Infância é uma constante e um reconhecido componente

de todas as estruturas sociais através do tempo e do espaço. Qvortrup é o grande

representante deste tipo de abordagem mais comprometido com um conceito global de

infância. A infância, segundo ele, sempre existiu, não concordando, desta forma, com a tese

da invenção da infância na época moderna.

• A criança tribal. Concentra-se em estudar o mundo infantil, as brincadeiras, a escola, a

literatura. Teve grande repercussão nos anos 1950 e 1960 com o casal Iona e Peter Opie,

principalmente na antropologia. A ação social da criança é estruturada, mas através de um

sistema não conhecido pelos adultos; portanto, são necessárias as etnografias. Pode ser vista

como uma versão potencialmente politizada e empírica da criança socialmente construída.

Parte de uma visão particularista que vê a criança localizada no espaço e no tempo e imbuída

de agência.

• A criança enquanto um grupo minoritário. A infância é socialmente estruturada. Há uma

relação de poder entre crianças e adultos que necessita ser mudada. A sociologia ou

antropologia devem existir ‘para as crianças’ e não apenas ‘sobre as crianças’. Em relação

aos seus direitos, a infância é uma categoria universal. É uma abordagem universalista e

19 Apesar de incorrer no sentimentalismo, a abordagem de Rousseau foi importante na medida em que concebeu características positivas aos pequenos, abrindo espaço para outras abordagens mais generosas para com as crianças.

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global, que vê a criança como ativa e consciente. Como se vê, pode ser pensado como uma

modificação mais empírica e politizada da criança socialmente estruturada.

De acordo com a figura abaixo (JAMES, JENKS, PROUT 1998: 206), as abordagens da criança

socialmente construída e criança como minoria social têm tantas relações entre si, quanto a criança

socialmente estruturada e a criança tribal.

William Corsaro, sociólogo norte americano, vê a infância como uma forma estrutural e as

crianças, por sua vez, como agentes sociais que contribuem para a reprodução da infância e da

sociedade através da negociação com adultos mas, principalmente, através da produção criativa de

culturas de crianças com seus pares. O autor desenvolveu o conceito de reprodução interpretativa,

segundo o qual as crianças ativamente contribuem para a preservação ou reprodução e modificação

da sociedade. Este conceito representa sua tentativa de conciliar o que ele denominou os modelos

deterministas e os modelos construtivistas.

O modelo determinista compreende os modelos funcionalistas dos anos 50 e 60 que se

concentraram nos aspectos superficiais da internalização das normas sociais requerida pelo processo

de socialização. Para T. Parsons, um dos representantes deste modelo, as crianças são uma ameaça à

sociedade e devem ser enquadradas nela. Os modelos reprodutivos, incluídos entre os deterministas,

foram desenvolvidos por Bourdieu, Bernstein, Passeron. Segundo Corsaro, Bourdieu oferece uma

visão um pouco menos determinista reconhecendo, apesar de sutilmente, a agência infantil ─ sem,

no entanto, conceber a criança como agente de nenhum papel ativo na mudança cultural. A criança

apenas participa e reproduz a cultura. O modelo determinista concebe a criança como um ser passivo

que pode contribuir para a manutenção da sociedade e que deve ser controlada pela educação.

Voluntarismo

Agência Diferença

Universalismo Global

Continuidade

Identidade Estrutura

Determinismo

Particularismo Local

Mudança

Criança Tribal

Criança enqto. grupo Minoritário

Criança Socialmente Estruturada

Criança Socialmente Construída

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Segundo Corsaro, a fraqueza do modelo reside na simplificação demasiada de processos complexos

e à falta de atenção à importância da criança e da infância na sociedade.

Por sua vez, os modelos construtivistas concebem a criança como agente ativo e como jovem

aprendiz, argumentando que ela ativamente constrói seu mundo social e seu lugar dentro dele. Este

modelo tem como ícones Piaget e Vygotsky. O segundo elaborou a teoria do desenvolvimento

intelectual como uma progressão através de séries de estágios de habilidade: desde os primeiros dias

de vida, a criança interpreta, organiza e usa as informações do ambiente para construir as

concepções conhecidas como as estruturas mentais. Ao contrário de Piaget, para quem o

desenvolvimento humano é primariamente individual, dado em processos cognitivos e estruturais.

Segundo Corsaro, a debilidade do modelo construtivista reside no seu foco central no

desenvolvimento individual, com pouca consideração em relação às experiências interpessoais no

desenvolvimento individual. Vygotsky, de outro lado, com uma visão sociocultural do

desenvolvimento humano concebe a criança como tendo um papel ativo do desenvolvimento

humano, sendo este entendido como primariamente coletivo, dado na história e no contexto.

A proposta de Corsaro de reprodução interpretativa vê a criança como participante ativo na

sociedade e reconhece a importância da coletividade, da relação com os adultos e com os pares. Para

ele, o termo socialização é por demais equivocado e deveria ser abandonado. A sua noção captura a

idéia de inovação e criatividade na participação em sociedade (interpretativa) e, ao mesmo tempo, a

sua contribuição para a reprodução cultural (reprodução) 20. O autor concebe um diagrama do “the

orb web model” (2005 [1997]: 25) como metáfora da reprodução interpretativa. No centro do

diagrama em forma de espiral, vemos a família de origem. À medida que a espiral vai se

expandindo, a idade vai aumentando, de idade pré-escolar, pré-adolescência, adolescência, até a

idade adulta. Todo o diagrama é atravessado por diversos campos. São eles: educacional, familiar,

comunitário, econômico, cultural, religioso, político e ocupacional. Para o autor, o desenvolvimento

individual está envolvido na produção coletiva de uma série de culturas infantis que, por sua vez,

contribuem para a reprodução e a mudança no mundo adulto. O diagrama espiral torna possível a

visualização da participação constante das crianças em uma rede onde estão envolvidos os adultos e

as crianças e, conseqüentemente, a visualização do fato de que as duas culturas, adultas e infantis,

estão necessariamente implicadas. Apesar de não concordar com os termos ‘cultura infantil’ e

‘cultura adulta’ tendo a concordar com Corsaro quanto à participação necessária das crianças e dos

adultos na análise do mundo social. Resulta disso a implicação de que a pesquisa deve ser realizada

tanto com crianças quanto com adultos. Implicação com a qual Corsaro, curiosamente, não

20 “[...] as crianças e suas infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas das quais elas são membros. Estas sociedades e culturas, em contrapartida, têm sido moldadas e afetadas pelo processo de mudança histórica” (1997: 18 tradução minha) do qual as crianças são parte ativa.

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compartilha, já que concebe as crianças como constituindo um mundo autônomo em relação aos

adultos e que, por isso, deve ser estudado em si mesmo21.

Por sua vez, Jens Qvortrup (1990, 1993a, 1993b) do Norwegian Centre for Child Research,

na Noruega, trabalha com uma perspectiva diferente da de Corsaro. A infância, nos seus termos, é

um fenômeno social construído socialmente, mas é também uma categoria estrutural que deve ser

explicada através da relação entre as outras estruturas sociais. Infância não é uma fase transitória, é

sim uma estrutura que se encontra em todas as sociedades. “A concepção [de infância] vincula a

idéia que infância é uma estrutura permanente em qualquer sociedade, mesmo se os seus membros

são continuamente substituídos” (1990: 08 tradução minha). Portanto, sua pesquisa concentra-se na

infância, e não nas crianças em particular. Ele argumenta ainda sobre a ausência das crianças nas

estatísticas oficiais sobre política, macroeconomia, bem-estar social. Avançando um pouco a

discussão, eu diria que não se deve apenas desenvolver dados estatísticos sobre as crianças, mas que

a opinião das próprias crianças deve ser levada em conta para o desenvolvimento de projetos de ação

social voltados não apenas para a infância, mas para a sociedade abrangente ─ uma vez dado que a

criança também faz parte da sociedade22. Qvortrup acredita que a infância é uma parte integrante da

sociedade e afeta o mundo social e econômico. Por exemplo, as crianças, mesmo quando não

trabalham, também fazem parte da divisão social no trabalho, dado que é o seu estudo que permite

aos pais trabalharem.

Para o autor, não se deve separar infância de outras variáveis da análise social, como gênero,

classe social, etnicidade ─ ela deveria ser vista como uma variável entre tantas. As crianças, segundo

Qvortrup (1993), não são apenas recipientes da cultura dos adultos, mas também co-construtoras da

própria infância e da sociedade. Elas estão expostas às mesmas forças sociais que os adultos, como

por exemplo, a economia e as instituições, mas de uma maneira específica. Como pertencentes a um

grupo minoritário, em relação ao status e aos privilégios do grupo dominante (os adultos), as

crianças estão sujeitas a tendências de marginalização e paternalismo. A autora afirma que não há

diferença ontológica entre crianças e adultos, e é essa diferença construída que permite o uso do

poder pelos adultos (“human beings”) e não pelas crianças (“human becomings”). “Questionar o

princípio das diferenças ontológicas entre os adultos e as crianças é uma objeção ao argumento

ideológico de que os adultos têm o direito “natural” de exercer poder sobre as crianças”

(QVORTRUP et al. 1994: 03 tradução minha). Finalmente, a ideologia da família, que prega que a

21 “[...] children’s peer cultures have an autonomy that makes them worthy of documentation and study in their won right” (1997: 41). 22 Como exemplo vide Vogel (1995).

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criança é sua propriedade e sua responsabilidade, constitui uma barreira que impede o bem-estar

social e os interesses das crianças de serem alcançados23.

Podemos dizer que Qvortrup e os outros pesquisadores que seguem a linha da infância como

um fenômeno social, como ele mesmo intitula, abordam o tema de uma perspectiva diversa dos new

social studies of childhood na medida em que: 1) não concebem o estudo das crianças enquanto

válido em si mesmo, além de 2) não conceberem diferença ontológica entre crianças e adultos. Por

fim, estes pesquisadores tecem uma crítica à antropologia e sociologia da criança, entendida em

contraponto à antropologia e sociologia da infância.

4. Conclusões

Como vimos, há uma variedade de interpretações sobre a história do campo de estudos das

crianças. De outro lado, não há ainda um corpus teórico hegemônico ao qual os neófitos possam se

reportar. Em contrapartida, há um conjunto de teorias de ciências afins que podem ser utilizados

para a elaboração de pesquisas com as crianças. Ao mesmo tempo, como mostrei, há diferentes

maneiras de pesquisar as crianças, já testadas ou em desenvolvimento, no seio da antropologia, o que

atesta a vitalidade e a pertinência do tema.

23 É interessante lembrar que a velhice e a juventude têm se colocado como temas centrais de pesquisas acadêmicas e políticas públicas com as modificações que a pirâmide etária vem sofrendo em diversas sociedades, principalmente com o aumento do número de idosos e a diminuição do número de jovens e de crianças.

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CAPÍTULO 1: Ser adulta e pesquisar crianças24: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica

"Les grandes personnes ne comprennent jamais rien toutes seules, et c'est fatigant, pour les enfants,

de toujours leur donner des explications." Le petit prince. Saint Exupéry

1. Introdução

Este capítulo tem como um dos objetivos discutir a questão dos métodos e das técnicas de

pesquisa utilizados no estudo de crianças pela antropologia. Pergunto-me em que medida estudar

crianças requer métodos e técnicas especiais ou se devemos continuar aplicando os mesmos

instrumentos empregados no estudo dos adultos. Além de mapear os métodos e as técnicas

utilizados, discuto sobre o lugar do pesquisador adulto na pesquisa com crianças, os esforços para

sair desta posição e os problemas disto resultantes.

Um capítulo metodológico em uma tese de doutorado em antropologia social se justifica na

medida em que o presente trabalho se valeu do uso de materiais de pesquisa não convencionais na

tradição de estudos antropológicos, a saber, desenhos, redações, filmagem, diários, fotografias,

cartas, entrevistas com crianças, programas de rádio. Apesar de não serem inéditas, as técnicas de

pesquisa trabalhadas a partir destes materiais citados foram pouco utilizadas na pesquisa

antropológica. Embora tenha sido largamente utilizada, a metodologia de pesquisa não se restringiu

à observação participante. Como será visto, o conjunto dos métodos e técnicas aqui descritos e

discutidos foi essencial para a elaboração da tese. No entanto, é necessário desde já advertir o leitor

do fato de que, exceto a observação participante e os desenhos conjugados com as redações, as

outras técnicas utilizadas têm um caráter complementar e não foram trabalhados exaustivamente.

2. Ser adulta e pesquisar crianças

Como já aludi, a confecção desta tese de doutorado contou com a aplicação de vários

métodos e técnicas de pesquisa. A observação participante foi largamente utilizada, embora não

tenha sido o único método de pesquisa a apresentar resultado positivo. Foi feita observação

sistemática e regular das missas, cultos e reuniões espíritas, assim como também dos serviços

religiosos especialmente destinados às crianças. No caso do catolicismo, trata-se do “catecismo” e

24 Allison James e Pia Christensen (2000) advogam contra a pesquisa sobre crianças em favor de uma research with children que, inclusive, dá título ao livro organizado pelas autoras. A tentativa é envolver as crianças como co-construtores da pesquisa, como informantes ativos ou como sujeito de ação social. De minha parte, tenho simpatia pelo projeto, mas não considero que apenas o uso ou não de uma palavra possa determinar os rumos de uma pesquisa; por isso, continuo utilizando construções consideradas ultrapassados, como pesquisar crianças...

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da reunião da “Infância Missionária”. No caso da Assembléia de Deus, trata-se da “escola

dominical”. E, por fim, da “reunião das crianças” no caso do Centro Espírita. Foram observados

também eventos como funerais, enterros, novenas do mês de Maria (maio), procissões, a festa do

padroeiro e a gincana da Infância Missionária.

A relação com as crianças que participaram mais intensamente da pesquisa foi construída ao

longo dos anos. Comecei a fazer pesquisa na cidade de Catingueira no ano de 2000, quando a

pesquisa não necessariamente focava as crianças. Desde aquele ano, tenho ido à cidade em

intervalos variados, computando ao todo quase catorze meses de trabalho de campo. No entanto, a

estadia na cidade foi intensificada nos últimos dois anos, 2004 e 2005. De modo geral, meu primeiro

mecanismo de inserção social foram visitas aleatórias. Assim que chegava a uma casa, me

apresentava. Muitas vezes, me convidavam para entrar. Outras vezes ficávamos na varanda ou, na

pior das hipóteses, em pé do lado de fora da porta. Conversávamos sobre amenidades e, depois, eu ia

embora. Ao final de alguns meses fazendo visitas diárias, muita gente já me conhecia pelo nome25.

Com o tempo e as repetidas “palestras” (conversa, bate-papo) passei a ser conhecida íntima de

algumas famílias. Estas famílias, que por sua vez tinham crianças, facilitaram as primeiras interações

com o mundo infantil.

Em 2004, quando a pesquisa passou a se concentrar também nas crianças, foi preciso

inventar pretextos para que elas se aproximassem da minha casa (sobre as atividades na minha casa

vide fotos de 1 a 11 no CD anexo). Um dia, ensinei um grupinho de meninas a fazer papel reciclado.

A notícia espalhou-se rápido e, por fim, a procura por aprender a fazer papel reciclado demandou

alguns dias de oficinas. Às vezes, lia uma estória; às vezes, inventava estórias; às vezes, pedia que as

crianças contassem estórias. Um dia, fiz um bolo para cantar parabéns para um aniversariante.

Também inventava brincadeiras, dinâmicas e temas de conversa em grupo. Assim feito, logo a casa

estava sempre “cheia de menino”, como se costuma dizer em Catingueira. Concomitantemente, fui

muitas vezes nas casas das crianças, mas a opção por convidá-las para a minha casa tem como

justificativa o fato de que queria observá-las também longe das suas famílias.

Talvez seja necessário discorrer um pouco sobre a minha opção de chamar as crianças para

desenhar na minha casa. O leitor pode se perguntar o motivo pelo qual eu não priorizei a casa das

crianças, o seu ambiente “natural”, a fim de levar a cabo a pesquisa. Quero esclarecer que freqüentei

as casas das crianças e as observei em interação familiar. No entanto, apostei também na pesquisa

com as crianças entre si, longe do olhar disciplinador do adulto. Com isso, resolvi convidá-las para a

minha casa, o que se mostrou produtivo. Todavia, Latour (2005) faz considerações interessantes

25 Desde os primeiros contatos em Catingueira, pedi que me chamassem apenas pelo meu primeiro nome. Os que se tornaram mais íntimos acabaram por chamar-me apenas de “Flavinha”, tanto crianças quanto adultos – embora outros continuassem me chamando de senhora ou doutora. Sobre a minha relação pessoal com a cidade de Catingueira, refira-se à Introdução.

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sobre a elaboração do fato científico nas ciências sociais, especialmente a sociologia. Ele afirma que

a artificialidade faz parte de qualquer experimento científico, inclusive na antropologia: “De-

scribing, inscribing, narrating, and writing a final reports are as unnatural, complex, and

painstaking as dissecting fruit flies or sending a telescope into space. If you find Faraday´s

experiments oddly artificial, what about Pitt-Rivers´s ethonographic expeditions? If you believe

Lord Kelvin´s laboratory contrived, what about Marx compiling footnotes in the British Library,

Freud asking people to free-associate on his Viennese couch, or Howard Becker learning how to

play jazz in order to take notes on jazz playing?” (LATOUR 2005: 136)26. A presença do

pesquisador introduz artificialidade ao contexto pesquisado mas, embora não seja possível evitá-lo, o

fato deve ser sinalizado.

As crianças pareciam gostar de ir para a minha casa e alternavam-se em função do horário da

escola e das atividades domésticas pelas quais são responsáveis. Se quisesse ficar sozinha, a única

solução era não abrir a porta ou as janelas da casa, fingindo que não estava ou que estava

dormindo27. Lá em casa, as atividades funcionavam assim: em cada período do dia, seja manhã ou

tarde, pedia que as crianças fizessem, pelo menos, um desenho ou redação. Isto era considerado o

“trabalho”. Depois disto, as crianças eram liberadas para brincar conforme quisessem, no quintal,

chamado de “muro” ou dentro de casa28. Dentro de casa, dentre outras brincadeiras, a preferida era

abrir um velho jogo de sofá-cama que ficava na sala e pular em cima dele, como se fosse um pula-

pula. Todas as crianças, das pequeninas (de dois e três anos) até as de catorze e quinze anos de

idade, adoravam pular em cima do sofá. No entanto, as crianças nunca o fizeram sem pedir a minha

permissão. Nos momentos em que eu perdia a paciência com a barulheira dentro de casa, minha

estratégia era simplesmente pedir para fechar o sofá, o que equivalia a pedir que elas fossem embora. 26 Citação completa. “What is so wrong with ‘mere descriptions’? A good text is never an unmediated portrait of what it describes – nor for that matter is a portrait. It is always part of an artificial experiment to replicate and emphasize the traces generated by trials in which actors become mediators or mediators are turned into faithful intermediaries. There is nothing less natural than to go into fieldwork and remain a fly on the wall, pass out questionnaires, draw maps, dig up archives, record interviews, play role of a participant-observer, compile statistics, and ‘Google’ one’s way around the Internet. De-scribing, inscribing, narrating, and writing a final report are as unnatural, complex, and painstaking as dissecting fruit flies or sending a telescope into space. If you find Faraday’s experiments oddly artificial, what about Pitt-Rivers´s ethonographic expeditions? If you believe Lord Kelvin’s laboratory contrived, what about Marx compiling footnotes in the British Library, Freud asking people to free-associate on his Viennese couch, or Howard Becker learning how to play jazz in order to take notes on jazz playing? The simple act of recording anything on paper is already an immense transformation that requires as much skill and just as much artifice as painting a landscape or setting up some elaborate biochemical reaction. No scholar should find humiliating the task of sticking to description. This is, on the contrary, the highest and rarest achievement” (LATOUR 2005: 136/7). 27 Mesmo assim, um dia, de manhãzinha, um menino pulou o muro pela casa da vizinha, vindo ter comigo na janela do quarto dos fundos, onde eu dormia. Outro dia, ainda, quando eu estava começando a organizar os desenhos, resolvi fechar a porta e as janelas da frente, para evitar visitas. Estava bem concentrada trabalhando, quando escutei chamarem meu nome insistentemente na porta. Pensava comigo: ‘mas como eles sabem que estou em casa?’. Como não foi possível disfarçar, fui abrir a porta. A senhora que me esperava disse que quando viu a casa fechada pensou que eu não estava. Mas mudou de idéia, quando, atenta, observou que a chave estava do lado de dentro da fechadura. 28 Apesar da semelhança com o ambiente escolar, onde os professores dão as tarefas e depois liberam as crianças para brincar, parece que as crianças associavam as atividades na minha casa muito mais com diversão que com trabalho escolar, já que até o que eu considerava o trabalho era para elas uma atividade de lazer (o desenho). Sem falar que a atividade na minha casa não tinha caráter obrigatório, e nem resultava em avaliação.

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Quando isto acontecia, todos rapidamente paravam de pular e de gritar, fechavam o sofá e ficavam

sentados, quietinhos, calados, tristonhos. Então, uma criança chamava a outra: “Lulu, vamos

embora”. Lulu levantava-se na hora e então uma avalanche de “vamos embora” levava toda a

algazarra, deixando para trás o silêncio (e, é claro, alguma sujeira para ser limpa).

Hoje, retrospectivamente, tenho a impressão de que foi este sofá a minha maior moeda de

troca com as crianças. Elas me davam companhia e desenhos, e recebiam de volta um sofá para

pular! O fato é que as crianças não são autorizadas a pular no sofá em suas próprias casas29, e até as

brincadeiras, principalmente dentro de casa, têm certa disciplina a ser seguida. Aos poucos, percebi

que as crianças iam para a minha casa, sob a desculpa bastante digna de que estavam estudando

comigo ─ o que justificava até negligenciar os afazeres domésticos para brincar livremente, pulando,

gritando, correndo e também brigando uns com os outros. Entretanto, não me tinha dado conta de

que, talvez, as crianças estivessem extrapolando na gritaria a ponto de incomodar os vizinhos, até

que uma das minhas vizinhas comentou com outra vizinha que, por fim, comentou com a cidade

inteira, que ia denunciar-me para a proprietária do imóvel onde eu morava, sob a acusação de que

estava “deixando as crianças destruírem a casa”!

Afora minha chateação com a intolerância da vizinha, o incidente iluminou alguns aspectos

sobre o estatuto da criança naquela cidadezinha. Como, por exemplo, que se deve impor limites às

crianças. Que os adultos devem estabelecer uma certa distância em relação a elas se querem ser

respeitados. Que o respeito aos mais velhos deve ser ensinado e exigido desde cedo. Que a criança

deve ficar em silêncio na presença de adultos, principalmente quando os adultos estão conversando.

Que, enfim, elas devem servir os adultos porque “o direito” do adulto ultrapassa o da criança30. O

atrito com a vizinha rabugenta vem do fato de que, segundo ela, eu não estava comportando-me de

acordo com o que é esperado de uma pessoa adulta. De um adulto, espera-se que ele não deixe as

crianças fazerem muita algazarra ou que, pelo menos, coloque ordem na bagunça quando for

preciso. Agindo daquele modo, eu só podia ser considerada uma irresponsável. Conseqüentemente,

isso colocava a própria possibilidade de realização da pesquisa em jogo. Precisava contar com a

aprovação dos pais das crianças para que eles as deixassem na minha companhia. Para levar a cabo o 29 Muitas casas em Catingueira não têm sofá, que é tido como móvel de luxo. Nas casas tipicamente sertanejas, a sala, primeiro ambiente de uma casa depois da porta da rua, é lugar onde geralmente os filhos rapazes ou eventuais visitas masculinas dormem. Durante a noite, as redes são armadas e, durante o dia, elas são dobradas e penduradas em cima do próprio armador de redes, deixando o chão da sala vazio de móveis. Algumas casas possuem tamboretes ou bancos de madeira que serão dispostos para o uso das visitas. A sala é também usada para armazenar os produtos da lavoura, quando não se dispõe de um cômodo para este fim. A cozinha, por sua vez, está localizada em direção oposta à sala, como o cômodo mais distante da rua. Poderíamos sugerir que a cozinha é o lugar por excelência da mulher, assim como o muro (quintal), enquanto a sala seria o lugar por excelência da esfera do masculino ─ dentre outras coisas, porque os produtos do roçado, cultivado geralmente pelo pai de família, ali estão colocados. Vide Heredia (1979: 89-97) para considerações sobre a casa na área da zona da mata pernambucana. Vide também Bourdieu (1970) para uma análise sócio-antropológica da casa kabila. Vide Da Matta (1991) para reflexões sobre a casa e a rua. Para fotografias do sofá aberto e das crianças, vide fotos 10 e 11 no CD anexo. 30 Recorra ao Capítulo Dois, parte três, “O que é ser criança em Catingueira?”, onde discorro sobre as relações entre os adultos e as crianças.

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meu trabalho, de um lado, era preciso aproximar-me das crianças e, até certo ponto, “fazer-me um”

com elas; de outro lado, não poderia comportar-me excessivamente como criança, por correr o risco

de perder a confiança de seus pais, comprometendo a própria pesquisa. De fato, três meninas, muito

assíduas às atividades na minha casa, repentinamente deixaram de comparecer. Vim a saber mais

tarde, através delas mesmas, que a tal vizinha tinha comentado com as suas mães sobre as bagunças

que elas vinham fazendo na minha casa, o que resultou na proibição de freqüentá-la.

Do ponto de vista das crianças, eu também não podia ser considerada uma adulta nos termos

correntes. Afinal, que tipo de mulher deixa as crianças “destruírem” a casa? Pular no sofá ou gritar

dentro de casa não é certo. E as crianças sabem disso porque insistiam, com a expectativa estampada

no rosto, em sempre me perguntar se podiam mesmo abrir o sofá. De fato, quando pulavam no sofá,

as crianças não poupavam entusiasmo, gritavam a plenos pulmões, dançavam e cantavam

extravagantemente. Era como se soubessem que aquela alegria era daquele tipo proibida, que só

pode durar muito pouco. De outro lado, aos olhares infantis, eu também não podia ser considerada

uma criança plena, principalmente por dois motivos: 1) eu morava sozinha e, 2) os meus pais não

estavam por perto. Meu objetivo durante o trabalho de campo era aproximar-me das crianças e, se

permitia certas extravagâncias na minha casa, era com vistas a distinguir-me dos outros adultos aos

olhos infantis31.

Como de costume, aos domingos eu ia para o catecismo. O mesmo acontece em uma sala de

aula onde se amontoam crianças de três a quinze anos de idade32. Minha estratégia era de sempre

tentar estabelecer certa distância em relação às professoras de religião: as catequistas, a chamada

“professorinha” da reunião dominical e em relação às “meninas” que ajudavam na reunião infantil

do Centro Espírita. Na prática, isso se dava, por exemplo, quando, no caminho para o catecismo,

preferia a companhia das crianças à das professoras. Da mesma forma, eu tomava partido nas

brincadeiras promovidas pelas professoras filiando-me ao grupo das crianças. Minha intenção era

que as crianças soubessem que eu não era como as professoras; que, apesar de ser adulta, estava ali

para aprender, e não para ensinar-lhes sobre religião. Para as professoras, por sua vez, ter por perto

um adulto que não age como tal ─ dado que elas estavam acostumadas a estarem sozinhas com as

crianças ─ é uma situação, no mínimo, embaraçante. Por isso, elas constantemente tentavam

envolver-me na direção da reunião. Às vezes, não era fácil recusar certos pedidos das professoras.

31 Margaret Mead (1932) também afirma que nunca orientava ou repreendia um comportamento (ou um desenho) das crianças, a não ser quando elas corriam perigo e que, do mesmo modo, mantinha a sua casa sempre aberta para as mesmas. Mary Catherine Bateson (1994 [1984]), no livro em que trata das suas memórias infantis em relação aos seus pais (Margaret Mead e Gregory Bateson), descreve como a sua própria infância serviu de teste para as idéias de uma pedagogia libertária associadas ao Dr. Spock, amigo do casal. Desta forma, o espontaneísmo com o qual Mead conduzia as suas pesquisas parece ser apenas aparente: deixar as crianças “livres” era parte do projeto de pesquisa empreendido pela pesquisadora. 32 O catecismo tem lugar em um prédio de escola desativado utilizado pela igreja Católica para o catecismo e para outras atividades. Embora crianças com variadas idades compareçam, predominam as crianças que pretendem fazer a primeira eucaristia ao fim do ano, que têm por volta dos onze anos de idade.

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Elas pediam-me para fazer a oração, pediam para ler a historinha ou a Bíblia e, às vezes, pediam por

socorro no quesito disciplina. Eu recusava, sempre recusava, mas, uma vez ou outra, elas acabavam

por passar-me a palavra com inquisições do tipo: “O que tu acha disso, Flávia?”. Normalmente, não

sabia o que responder, provavelmente gaguejava e, por fim, conseguia escapar, dizendo algo não

muito consistente. Às vezes ─ o que era ainda pior ─ a professora me passava o controle de uma

classe; por exemplo, no caso da ausência de uma das professoras. Essas situações não eram

produtivas do ponto de vista da pesquisa, na medida em que me colocavam em situação de

autoridade em relação às crianças, demolindo meu objetivo de aproximar-me delas. Se as crianças

me vissem como um aprendiz e não como uma professora que sabe todas as respostas e ensina, seria

mais fácil desencadear uma relação de cumplicidade e confiança, o que tornaria possível a pesquisa.

Uma vez, no catecismo, depois de lerem uma história bíblica, as professoras iam começar a

ditar as perguntas que deveriam ser respondidas, a fim de avaliar o nível de compreensão da

passagem bíblica lida. Todas as crianças abriram seus cadernos e ficaram a postos, com o lápis na

mão, para escrever as questões. Uma criança, percebendo que não trouxera caderno nem lápis para

anotar as questões, perguntou-me se eu queria emprestados uma folha do seu caderninho e um lápis

para fazer o meu exercício. Neste momento, para aquela criança, eu era apenas mais uma estudante

que tinha por obrigação copiar o ditado e que estava em apuros, por ter esquecido de trazer os

materiais. Neste mesmo dia, as professoras pediram que as crianças se dividissem em grupos para

uma tarefa que fariam em casa. Um menino e uma menina saíram dos seus assentos e vieram

correndo perguntar-me se eu já tinha grupo; caso contrário, eles convidavam-me para entrar no seu

grupo. Neste dia, voltei para casa satisfeita com o resultado da minha inserção, pelo menos no

catecismo.

É imprescindível ressaltar que o meu intento não era “tornar-me nativo” 33 mas, sim, ser

assimilada pelas crianças como uma adulta diferente. Uma adulta que interage com elas, seja

brincando, seja conversando, seja discutindo. Como já foi enfatizado, em Catingueira, o estatuto das

crianças e o dos adultos são tidos como inteiramente distintos. Os adultos não interagem

demasiadamente com as crianças. As crianças não escutam conversa de adulto, não participam em

ambientes de adultos. Seria considerado desrespeitoso se uma criança ousasse discutir a opinião de

seus pais ou responsáveis. Parece que as crianças e os adultos, em grande medida, são vistos como

33 Para uma análise crítica da noção de tornar-se nativo, vide Marcio Goldman (2003): “Melhor seria ouvir a advertência levistraussiana: “não é jamais ele mesmo nem o outro que ele [o etnógrafo] encontra ao final de sua pesquisa” (Lévi-Strauss, 1960, p. 17). De toda forma, penso que a perspectiva de Lévi-Strauss sobre o trabalho de campo e da etnografia articula-se estreitamente com a idéia estruturalista de que cada sociedade atualiza virtualidades humanas universais e, portanto, potencialmente presentes em outras sociedades: o nativo não é mais simplesmente aquele que eu fui (como ocorre no evolucionismo) ou aquele que eu não sou (como ocorre no funcionalismo), ou mesmo aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalismo); ele é o que eu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, é claro)” (2003: 462-3). Marcio Goldman sugere pensar a noção de “devir nativo” que implica em ser “afetado” (FAVRET-SAADA 1990, DELEUZE & GATARRI 1997 [1980]) pelas mesmas forças que afetam os nativos (GOLDMAN 2003: 463-5).

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ontologicamente diferentes, habitantes de mundos que não devem correr o risco de misturar-se.

Acredita-se que criança que convive excessivamente com adultos aprende o que não deve. De outro

lado, um adulto que interage demasiadamente com as crianças só é tolerado em situações já

previstas, como, por exemplo, na escola, no consultório médico ou no cuidado infantil cotidiano que

as meninas mais velhas dispensam ás crianças. Todavia, para a realização da pesquisa, era preciso ir

contra este modo de interação local entre crianças e adultos. Precisava me aproximar das crianças, a

fim de trocar experiências de vida. Precisava ouvir as crianças, suas opiniões sobre o mundo, sobre

religião, sobre os fatos do cotidiano.

É preciso esclarecer que o meu interesse pelas crianças parece não ter levantado suspeita − o

que poderia ter sido diferente em outras cidades. Isso se deve parcialmente ao fato de que é

considerado normal que as mulheres solteiras passem tempo com as crianças, cuidando delas,

ensinando os deveres escolares ou simplesmente “matando o tempo”. No entanto, às vezes, causava

impressão o fato de que eu nunca me cansava delas e que estava sempre disposta a recebê-las em

minha casa, uma vez que o cuidado dispensado as crianças é visto, algumas vezes, como um serviço

penoso porque exaustivo. Algumas mães disseram-me que não deixavam a sua criança na rua ou na

casa dos outros, mas que a única casa que sua filha (o) freqüentava era a minha, enfatizando a sua

confiança na minha pessoa. Em Catingueira, a criança não deve ficar na casa dos outros ou na rua

por muito tempo por estar sujeita a aprender o que não deve. Uma mãe, cujo filho fica muito tempo

nas casas alheias ou na rua, pode ser taxada de displicente e culpada caso esta criança incorra em

erro34.

A solução para este impasse, de ser adulto e pesquisar criança de uma perspectiva

antropológica, deve ser buscada no campo, de acordo com cada caso estudado. Corsaro (2003), por

exemplo, descreve que sua imperícia no domínio da língua italiana facilitou a interação com as

crianças em uma escola na Itália. Ele era visto, pelos alunos, como uma criancinha, que ainda estava

balbuciando as primeiras palavras. Isso acabou por inverter a relação costumeira: as crianças

empenharam-se em ensinar (o idioma) o adulto. Eu, de certa forma, realizei meu intento, na medida

em que falhei como mulher adulta − deixando as crianças “destruírem a casa” onde morava − e que,

ao mesmo tempo, expus-me às atividades tipicamente infantis, como as brincadeiras. Não acredito

que as crianças tenham me visto como uma criança. Mas acredito que o fato de eu ser adulta e elas

serem crianças deixou de ser um imperativo negativo para a relação. Mais do que uma adulta, eu

34 Vide Desenhos Temas Variados número 4 (desenho 4 Y. 12. F [Livre] Ela, amiga e pesquisadora) no CD anexo, no qual a menina desenhou-se deitada na rede ao lado da pesquisadora e de uma amiga.

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estava sentada na carteira ao lado, ouvindo e prestando atenção ao catecismo. Enfim, a atividade em

que estávamos imersas suplantou o fato da nossa diferença de idade35.

Apesar de ter sido quase sempre bem-vinda nas rodas infantis, lembro-me de que as crianças,

ás vezes, não permitiam a minha participação nas suas atividades e conversas. Quando eu era

criança, algumas meninas no meu colégio interagiam entre si usando a língua do “Pê”36 − língua na

qual eu, sofregamente, nunca consegui ser fluente. Em Catingueira, curiosamente, as crianças

utilizavam o mesmo recurso da língua do “Pê” para excluir-me de certas conversações. O

interessante é que elas o faziam deliberadamente, na minha vista, como se quisessem tornar explícito

o abismo que nos distinguia. Desta forma, temos mais um motivo para acreditar que elas não me

viam como criança. Parece-me plausível afirmar que os mundos do pesquisador enquanto um adulto

e o do nativo enquanto criança são comunicáveis. Mas nem sempre é o caso.

3. Desenhos e Redações: condução, considerações e resultados

Como afirmei, os desenhos já foram usados em outras pesquisas antropológicas. Mead e

Bateson (1942) coletaram em Bali mais de mil e duzentos desenhos, entre os anos de 1937 a 1939,

feitos por adultos sua maioria e são acrescidos de um relato sobre os mesmos (GEERTZ 199537). Na

35 Talvez o leitor faça uma objeção ao argumento, afirmando que a maneira como a pesquisadora aproximou-se das crianças, como um “adulto diferente”, não passe de um estereótipo de um adulto liberal das classes médias dos estados do sul e sudeste brasileiros. Assim, ao invés de aproximar-se das crianças, a pesquisadora teria afirmado seu etnocentrismo em relação àquela comunidade. No entanto, tendo tido contato com outros adultos do sul e sudeste, os chamados “filhos-ausentes”, que vêem visitar a cidade durante a Festa do Padroeiro, foi possível constatar que nenhum deles comportava-se como a pesquisadora em relação às crianças. As suas atitudes para com as crianças diferiam das dos catingueirenses, mas não eram, de maneira alguma, da mesma natureza das da pesquisadora. Destarte, mesmo fazendo pesquisa nos estados do sul e sudeste, seria necessário descobrir um modo de interação com as crianças que as deixasse confortáveis o bastante na frente do pesquisador. Acredito que, neste outro contexto fictício, agindo apenas como um adulto liberal do sul e sudeste, a pesquisa não poderia ser levada a cabo a contento. 36 “A língua do “pê” consiste em acrescentar-se no final de cada sílaba da palavra, uma sílaba formada com a letra P mais o fim da sílaba original. Veja os exemplos: Você = vo+po+cê+pê. Gato=ga+pa+to+pó. Menino= me+pe+ni+pi+no+pó”. (Jangada Brasil, no. 4, dez. 1998 (http://jangadabrasil.com.br/dezembro/ca41200b.htm , acessado em 11 de junho de 2006). A língua do “Pê” também pode ser vista como a língua das crianças, bem ao gosto dos pesquisadores que advogam uma “cultura infantil” ou “sociedade infantil”, com regras, dinâmicas, rituais e, até língua próprias e, por princípio, distintos daqueles dos adultos (Wartofsky (1983), Tammivaara e Enright (1986), e W. Corsaro (1992, 2003, 2005 [1997]), Thorne (1993), Sarmento e Pinto (1997) e Corsaro & Molinari (2000). Por exemplo, Corsaro afirma: “In attempting to make sense of the adult world, children come to collectively produce their own peer worlds and cultures” (CORSARO 2005 [1997]: 24). Poderíamos fazer duas objeções à afirmação de que as crianças inventam uma língua própria independente dos adultos. Primeiro, os adultos que aprenderam a língua do “Pê” quando crianças não a esquecem quando se tornam adultos. No entanto, o uso da língua do “Pê” por parte dos adultos leva a um sentimento de inadequação, o que contribui para o seu desuso. Assim, podemos reafirmar a sua particularidade como língua infantil. A segunda objeção é o fato de que os adultos também conversam entre si de maneira cifrada quando querem que a criança não entenda. O fato é que, geralmente, a criança sabe que os adultos estão tratando de algum assunto importante, que segundo os últimos não lhes diz respeito − embora talvez não possa precisar o conteúdo da conversa. 37 Hildred Geertz faz algumas reflexões interessantes sobre o uso dos desenhos para a análise antropológica em virtude dos desenhos coletados por Mead e Bateson em Bali (GEERTZ 1995: 3): “We uneasily ask ourselves questions: What in them comes from the desire of their makers to please foreigners? What derives from their own cultural preoccupations,

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pesquisa por mim empreendida, os desenhos foram largamente utilizados como material de pesquisa

complementar à observação participante. Ao desenhar sobre um tema proposto, as crianças colocam

no papel o que lhe é mais evidente. Neste sentido, o desenho é um material de pesquisa interessante

para captar justamente aquilo que primeiro vem à cabeça, aquilo que é mais óbvio para a criança.

Porém, quando combinado com a observação participante é que os dois instrumentos potencializam

a sua utilidade. Os desenhos podem funcionar como um guia para a observação participante. Com os

desenhos à mão, é possível direcionar o olhar para a realidade, de acordo com os tópicos levantados

pela população estudada. De outro lado, a observação participante dá corpo ou refuta as sugestões

que os desenhos engendram38.

Foram feitos três tipos de desenhos: 1) livres, 2) temáticos e 3) temáticos controlados.

Chamo de desenho livre os desenhos sem tema definido a priori, onde as crianças decidiam por elas

mesmas, às vezes individualmente, às vezes coletivamente, o que desenhariam. Muitas vezes, elas

mesmas tomavam a iniciativa de pedir para desenhar; outras vezes, eu sugeria39. Este tipo de

desenho é interessante principalmente em um primeiro momento da pesquisa porque, a partir dele,

pode-se melhor definir os temas que devem ser aprofundados. Fizemos um total de cento e setenta e

dois desenhos livres. Nestes, os temas mais ressaltados foram: 1) Elementos da natureza - que tanto

é o tema principal do desenho quanto coadjuvante, decorando a folha de papel. 2) As casas, que são

desenhadas sempre com portas e janelas. Abaixo, veja a lista completa dos elementos mais

desenhados nos desenhos livres:

Elementos da natureza 64 Casa 32

Gente 24

Mal-assombro 17

Religiosos 40 12

their own aesthetic values, and their own ways of seeing? How much did these painters simplify their subjects and prettify the images they confected in order to satisfy purchasers whom they saw as ignorant, godless, and tasteless? When I look at their works, am I projecting onto them my own, perhaps romantic, notions of what Bali and the Balinese are, or where at that time? I have met these concerns in the only way that I know – through a redoubling of my efforts as an anthropologist to get at implicit Balinese view of life and the world”. Ela também afirma que “(…) these paintings provide complex interpretations of the deeper meaning underlying the outer visible shell of Balinese life”. 38 Toren (2002) também é favorável ao uso do desenho conjugado com a observação participante, dentre outras razões, por incluir os adultos. Vide citação: “This sistematic study requires the use of diagnostic tasks, which maybe be quite simple in form – for example, asking children to make a drawing of a particular scene and then talking with them one by one about what they have drawn. This kind of proceeding with children is equivalent to open-ended interwiews with adults. There is no point, however, in focusing on children to the exclusion of adults. Moreover, long-term participant-observer study remains absolutely necessary, for without it the anthropologist cannot know where it will be fruitful to focus any more systematic investigations with children” (TOREN 2002: 118/9). 39 Cohn (2006) chama de desenhos espontâneos aqueles que as crianças Xikrin faziam por iniciativa própria e com temas por elas escolhidos. 40 Dentre os religiosos: São Sebastião, Maria Mãe de Jesus, cruz, Smilingüido, Anjinho, A Rainha do Céu, uma bailarina dançando com um hexágono na ponta dos dedos onde está escrito “Deus”, igreja, cemitério, terço, promessa, Jesus, São

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Outros 10

Conjugados (casa, natureza e

outros)

05

Festa de São João 03

Carro 03

A classificação dos desenhos parece-me ser uma questão a ser discutida. As categorias acima

utilizadas foram idealizadas pela pesquisadora para dar conta de um sem número de elementos

desenhados. Em última instância, o que foi considerado, por exemplo, “religioso” ou “gente”, foi

decidido pela pesquisadora. No entanto, todas as crianças descreveram os seus desenhos, o que

orientou a classificação dos mesmos. Para exemplificar mais detalhadamente, no caso em que a

criança descreveu seu desenho como “a minha irmã”, este desenho acabou sendo contabilizado na

categoria “gente”. Particularmente, a categorização os “elementos da natureza” pode levantar

algumas dúvidas. É importante ressaltar que, por exemplo, a Serra da Catingueira não é tida como

apenas “a natureza”, senão pelos forasteiros das grandes cidades, que ocasionalmente aportam em

Catingueira para desfrutar da subida da Serra. Para as pessoas que moram na cidade, a Serra não

existe apenas em função do eco-turismo. A Serra da Catingueira enfeita a cidade, hospeda os

cruzeiros onde se pagam promessas e abriga a Maria Fulorzinha e o Carneiro de Ouro. Além disso,

ela serve de pasto para o gado, contém a Furna e a Cachoeira da Mãe Luzia, serve de moradia para

famílias, dentre outros41. Por isso, não poderíamos afirmar que, para as crianças, a Serra é apenas

parte do mundo da “natureza” − embora, no caso dos desenhos livres, a Serra tenha sido

categorizada como elemento da natureza, assim como as árvores, os pássaros e as flores. O esforço

de classificação dos desenhos é útil como primeiro passo na direção de uma análise mais completa,

mas não deve ser tomado como suficiente em si mesmo.

Em uma segunda etapa da pesquisa, pode-se propor desenhos com temas específicos,

baseando-se nas dicas que as próprias crianças apresentam nos desenhos livres. Propus temas os

mais variados, como “A minha família”, “O que eu mais gosto\odeio na vida”, “A minha futura

família”, “O meu maior sonho”, “Um homem mau morreu, para onde ele foi?”, “Em quem você

votaria para prefeito?”, entre inúmeros outros, que perfazem um total de duzentos e quarenta e um

desenhos42. Tanto os desenhos livres, quanto os desenhos temáticos, foram todos feitos na minha

Antônio com bengalinha, floresta com o nome DEUS escrito. Dentre os de Mal-assombro: Maria Fumaça, Maria Fulozinha, Carneiro de ouro, o peixe de ouro, Rasga-mortalha, fantasma, casa da bruxa, Homem do Saco, ET de Marte. Sobre os mal-assombros, vide Índice de referências de mal-assombros, no final desta tese, Anexo 1. 41 No Capítulo Dois, há mais informações sobre a Serra, os cruzeiros e a Cachoeira da Mãe Luzia. 42 Todos os temas abaixo descritos foram desenhados (e classificados por idade e gênero): Questões da política: Em quem você votaria e por que? Em quem você não votaria e por que? (para prefeito e para vereador).

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casa, no ambiente descrito anteriormente. Aqui também é útil ressaltar que os temas dos desenhos,

embora discutidos com as crianças, foram propostos por mim, de acordo com os meus interesses de

pesquisa, e não podem ser confundidos com o espelho do real da vida infantil.

Depois dos desenhos livres e dos desenhos temáticos, resolvi aprofundar dois temas

específicos que iam ao encontro do tema da pesquisa por mim realizada e que, ao mesmo tempo,

eram recorrentes no imaginário infantil da Catingueira. O objetivo era recolher uma amostra

abrangente de desenhos em relação a cada faixa etária a ser pesquisada. Elaborei uma amostra que

cobre crianças dos três aos treze anos de idade em relação ao tema “A minha religião” e ao tema “O

mal-assombro”. Recolhi pelo menos vinte desenhos de cada faixa etária em relação aos dois temas

apresentados, o que perfaz um total de duzentos e cinqüenta desenhos do tema “A minha religião”, e

trezentos e quatorze desenhos do tema “O mal-assombro”. A este tipo de desenho chamei de

temático controlado. Pela maior quantidade de desenhos, já se percebe a predileção das crianças pelo

tema do mal-assombro. Quando solicitadas que desenhassem, escrevessem ou falassem sobre a

religião, as crianças tendiam a relutar diante da proposta da pesquisadora, afirmando sua inaptidão

ou o seu desgosto pela tarefa. Voltarei a este assunto posteriormente quando se fizer necessário mas,

principalmente, nos Capítulos Três e Cinco. Além disso, a escolha do tema de desenho “A minha

religião” parece ter tido repercussões importantes nos desenhos das crianças. A discussão destas

repercussões foi anunciada na Introdução e trabalhada no Capítulo Cinco.

A aplicação dos desenhos temáticos controlados deu-se nas duas escolas na cidade, durante

os meses de março a maio de 2004, sendo complementada e finalizada durante o mês de julho de

2005. A escolha por aplicar os desenhos nas escolas deu-se pela comodidade de se encontrar o

número de crianças necessário (vinte), já estrategicamente divididas em grupos etários. Como não

Questões da vida prática: Desenhar Catingueira. A Serra e o que tem nela. O que você compraria se alguém te desse um bolo de dinheiro. O que fizeram no domingo. Algo bom que aconteceu hoje. Coisas anormais, fora do normal. Do que você mais gosta de brincar. Um sítio. Um Cangaceiro. Você, no seu aniversário dos sonhos. Coisas que eu gosto e não gosto de comer. Questões da alteridade: Desenhar um índio, desenhar “o Índio” (“O Índio” era um descendente de índios, morador de Recife, que passou uns dias de férias na cidade). Questões do self: De quem eu gosto. Como serei quando eu for grande. Como será a minha vida quando eu for grande. Desenho de si mesmo. Questões sobre a família: Desenhar sua futura família. A avó. O avô. Uma mãe, um pai e um filho. Algo sobre o dia dos pais. Uma família. De quem você mais gosta e de quem menos gosta na sua família. Uma família – que não seja a sua. Um velho e uma criança. O seu pai e a sua mãe. Questões sobre as entidades: A Maria Fulozinha. O Homem do Saco. A Rasga-Mortalha. A Mulher de Branco. O Papa-Figo. A cabeça da estrada. Carneiro de ouro. A Gia Encantada. Histórias da Serra de Catingueira. Questões morais: A coisa mais bonita do mundo. A coisa mais feia do mundo. Algo que dá medo. A coisa mais triste e mais alegre do mundo. Seu maior sonho. A pior coisa que pode acontecer. A coisa mais feliz, a mais triste e o que lhe deixa com mais ódio. A coisa mais importante na minha vida. Um recado para outras crianças que você não conhece. Questões sobre religião: Desenhar Deus. O anjo da guarda. Fazer um desenho para Jesus. O que eu aprendi na igreja. O padre, o pastor, Doutor Fernando (diretor do centro Espírita). Questões sobre a morte: Alguém que morreu e de quem você gostava. Alguém que já morreu. Um homem bom. Um homem mau. Uma mulher boa. Uma mulher má. Um homem mal e um homem bom - quando morreu, para onde eles foram. Para maiores informações sobre os desenhos, recorra ao anexo deste capítulo.

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foi possível encontrar as vinte crianças na faixa etária dos três anos de idade freqüentando escolas,

fui ter com elas em suas casas, tendo o cuidado de controlar ao máximo as possíveis interferências

familiares na execução do desenho. Desta forma, apenas nesta faixa etária, os desenhos não foram

coletados na sua integralidade no ambiente escolar. A cidade conta com duas escolas, uma gerida

pela municipalidade e outra pelo Estado da Paraíba. Minha primeira providência foi procurar a

diretora da escola do Estado em sua casa. Apresentei-me, falei da pesquisa que estava conduzindo e

pedi sua autorização para aplicar os desenhos nos próximos dias. Ela consentiu prontamente. Fui ter

com a diretora da escola do município (que mora em Patos/PB43) na própria escola. Na parte da

manhã, diante da sua ausência, uma auxiliar me autorizou a começar a pesquisa. Pela tarde, pude

conversar com a diretora, que não apresentou qualquer empecilho à condução do meu trabalho.

Também não encontrei qualquer tipo de oposição à pesquisa por parte dos funcionários das escolas;

pelo contrário, geralmente todos ficaram entusiasmados em poder contribuir. O mesmo aconteceu

com as professoras e os professores. Uma única professora aproveitou o tempo em que eu estava na

sala para descansar, deixando-me sozinha com as crianças. As outras professoras, a grande maioria,

permaneceu, no entanto dentro da sala, auxiliando as crianças e dando suporte no quesito disciplina.

Algumas professoras acabaram por influenciar o que seria desenhado, ao dar dicas sobre, o que e

como desenhar dentro do tema proposto. Mas isso não resultou em grande prejuízo, na medida em

que as crianças interpretam a fala do adulto e acabam por fazer seu próprio desenho. No entanto,

algumas professoras chegaram a pegar na mão das crianças para ajudar a desenhar o que os

pequenos diziam não serem capazes. Embora sob os meus protestos, uma única vez uma professora

desenhou no lugar da criança. O tempo gasto em cada sala de aula variou entre trinta minutos e uma

hora. (Vide foto 16 no CD anexo).

Geralmente, a diretora ou a sua auxiliar iam comigo até a porta da sala de aula para

apresentar-me à professora (o) e aos alunos. Depois da breve apresentação, eu saudava a (o)

professora (o) e os alunos e explicava que estava conduzindo uma pesquisa para o meu doutorado,

acentuando que precisava da sua contribuição. Em seguida, apresentava o tema a ser desenhado e

dava as instruções. Às crianças não alfabetizadas, era pedido que desenhassem e, depois, a sua

interpretação do desenho seria registrada. Quando se tratava de crianças em fase de alfabetização, a 43 Na dissertação de mestrado defendida por mim (PIRES 2003), trabalhei sobre a relação entre os “de dentro” e os “de fora” enquanto categorias êmicas que designam aqueles que moram e aqueles que não moram em Catingueira, através de qualidades morais intrínsecas. Os “de dentro” são pensados sempre como inferiores aos “de fora”. É na festa do padroeiro da cidade que estas categorias são atualizadas e potencializadas como referentes sociais. Causa impressão, no entanto, que a grande maioria das autoridades da cidade não resida ali. O médico, o prefeito, os vereadores, os maiores proprietários de terras e, como destaquei acima, também a diretora do colégio, não residem em Catingueira. Isso afirma a hipótese sugerida. Um lugar hierarquicamente inferior é reservado aos que moram ali, mas que uma vez sendo autoridades, ou seja, hierarquicamente superiores, não poderiam compartilhar a inferioridade com o resto dos habitantes, vivendo na cidade. É interessante que um ex-prefeito da cidade ali tenha residido durante o seu mandato. Dentre os outros prefeitos, este, em especial, goza de status diferenciado, sendo considerado “gente pobre como a gente”, “gente do povo”, não escolarizado e, por alguns, ignorante. Mísia Reesink (2006) expandiu em abrangência os conceitos “de dentro” e “de fora” enquanto categorias definidoras nas festas religiosas.

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instrução era que desenhassem e escrevessem alguma coisa sobre o seu desenho (uma frase, pelo

menos). Já no caso de crianças alfabetizadas, a instrução era que fizessem um desenho e uma

redação sobre o tema. E, no caso de crianças acima de treze anos, a instrução era que fizessem uma

redação e, se quisessem, complementarmente podiam desenhar (geralmente as meninas o fizeram; os

meninos, não). Desta forma, os materiais de pesquisa produzidos são desenhos, redações e desenhos

conjugados com redações44.

Na sétima e na oitava séries do ensino fundamental, devido às altas taxas de repetência,

deparei-me com muitos alunos adultos. Somente neste momento observei resistência deliberada à

pesquisa − geralmente por parte dos adolescentes do sexo masculino. Atitudes ‘engraçadinhas’

foram observadas, como um dos rapazinhos que deveria escrever sobre religião, que me perguntou:

se eu fizer a redação, eu ganho uma passagem para o céu?, provocando uma gargalhada geral na

classe. Alguns outros entregaram a folha em branco, e outros copiaram literalmente o que um colega

tinha escrito. Não sei se de brincadeira ou não, mas um menino de dezesseis anos (E.F. 16. M. 3)

escreveu um estória de mal-assombro na qual, segundo ele, o monstrengo parecia-se comigo!45 No

entanto, este viés da pesquisa acabou sendo útil, na medida em que acumulei alguns desenhos que

podem favorecer uma comparação entre a visão dos adultos, a dos adolescentes e a das crianças,

através do uso da mesma técnica de pesquisa. Todavia, geralmente as crianças responderam com

prazer à minha proposta de pesquisa. Algumas delas ressentiram-se do fato de eu não ter “passado”

por suas salas. Mesmo depois de alguns meses de concluída essa etapa da pesquisa, algumas

crianças ainda paravam-me na rua para pedir a minha presença na sua sala de aula.

Todos os materiais necessários para desenhar e fazer a redação foram providos. Os lápis de

colorir e os de cera, folhas de papel em branco e o apontador de lápis (chamado localmente de

lapiseira) acabaram por desempenhar um papel importante de incentivo à participação na pesquisa,

uma vez que estes elementos tinham bastante apelo entre as crianças46. Pergunto-me se o entusiasmo

das crianças com os materiais escolares pode ser entendido como uma particularidade do campo de

44 Para facilitar a leitura, optei por mencionar apenas “desenhos” quando, na verdade, posso estar referindo-me também a uma redação ou a um desenho conjugado com uma redação. 45 “Fantasma. Era um lindo dia de lua quando uma pessoa de branco veio em minha direção. Quando eu olhei era uma pessoa do sexo feminino, ou seja, era uma mulher morena, de cabelo longo e era também muito bonita parecida com essa mulher de óculos. Ela quis me dá alguma [coisa] ou me dizer, só que eu não estava só e aí ela só aparecia para mim. Não sei nem porque, só sei que o outro não via nada nem ninguém. Isso aconteceu umas quatro vezes e depois que ela veio pela última vez, eu perguntei o que era que ela queria comigo. Ela respondeu que queria me dá alguma coisa chamada de botija. Só que eu não tive coragem de responder se eu queria ou não e ela foi embora para sempre, e depois desse dia eu não a vi mais. Eu acho que ela deu para outra pessoa que teve coragem de arrancar”. 46 Além disso, no caso dos desenhos livres e temáticos, feitos na minha casa, a fim de incentivar a feitura dos desenhos, algumas vezes foram fornecidas revistas semanais antigas para a realização de recortes e colagens. Em uma dessas colagens, C. 7. F selecionou de uma revista a figura de um homem de terno e gravata segurando um guarda-chuva sob a chuva que caía abundante. A menina recortou a figura, mas deixou de fora a chuva. Colou a figura do homem no papel e escreveu: “Que sol quente!” O exemplo nos alerta para as particularidades do uso e interpretação dos objetos. Para uma criança que raramente vê chuva, o guarda-chuva é antes associado aos dias quentes nos quais é necessário proteger-se do sol usando este tipo de utensílio. Além disso, em dias muito quentes, quem vai ao sol usa roupa de manga comprida para se proteger, como o terno do homem da revista.

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estudos no qual atuo, uma vez que grande parcela das crianças não tem acesso a eles − a não ser

esporadicamente, na própria escola. No entanto, Mead (1932) relata que as crianças Manus estavam

sempre dispostas a desenhar, apesar de não possuírem tradição pictográfica e, conseqüentemente, do

desenho não ser uma atividade à qual as crianças dedicam-se espontaneamente nas horas de lazer ou

de estudo. Além disso, Cohn (2006) também afirma que as crianças Xikrin gostavam bastante de

desenhar.

Como afirmei, quando finalizado um desenho, a criança sempre era incentivada a colocar um

título no mesmo e escrever sobre ele, elaborando o que eu denominei a “estória do desenho”. No

caso de crianças iletradas, elas eram incentivadas a falar sobre o desenho − de preferência para a

pesquisadora, mas na impossibilidade desta, também para uma criança maior ou para a professora.

Essas últimas, por sua vez, redigiriam a sua reflexão sobre aquele desenho na parte de trás da folha.

Os desenhos úteis para a pesquisa antropológica são, sem dúvida, aqueles nos quais as crianças se

esmeraram nos comentários. Diferentemente dos psicólogos, os antropólogos não são treinados para

inferir qualquer conclusão a partir de um desenho47. No meu caso específico, precisava das crianças

para dizer-me se uma árvore desenhada era um “mal-assombro” ou a “mangueira do sítio do meu

avô”48. Para esclarecer este ponto, cito um exemplo. Três crianças diferentes desenharam uma cópia

de uma imagem de um livro. O interessante é que cada uma delas interpretou a imagem de maneira

diferente, quais sejam: “Santa com o anjinho” (D. 6. M. 6), “Mãe de Deus” (M. 6. F. 5) e “Maria e

Jesus” (J. 8. F. 1). Enquanto para mim, a imagem correspondia a uma quarta interpretação: uma

santa da tradição católica, que não sou capaz de identificar. Desta forma, a reflexão da própria

criança sobre aquilo que ela mesma desenhou, assim como a reação aos desenhos das outras

crianças, devem ser incentivados porque são matéria prima para a pesquisa49. Por outro lado, os

desenhos sem título ou sem a “estória do desenho” não puderam ser aproveitados para a análise que

se seguiu.

James, Jenks e Prout (1998) concordam que a eficácia da técnica do desenho é potencializada

na medida em que eles são motivos de discussões posteriores: “Conversar com as crianças sobre os

significados que elas atribuem para seus desenhos ou pedir a elas que escrevam uma estória,

permite que as crianças se engajem mais produtivamente com as nossas questões de pesquisa, 47 Talvez uma análise que não se restringisse apenas ao que as crianças dizem sobre os desenhos, mas se ativesse também ao próprio desenho fosse interessante e revelasse aspectos que a técnica aqui utilizado não permite. No entanto, como não tenho formação em psicologia, iconografia ou artes, não poderia trabalhar os desenhos senão como uma antropóloga. Entretanto, parece-me claro que o desenho, quando utilizado como técnica complementar à observação participante, pode ser um instrumento rico de pesquisa para a antropologia. 48 Vide um exemplo de árvore mal-assombrada. Desenho Livre (P. 10. F) “A árvore Mal-assombrada. Era uma vez uma árvore mal-assombrada. Ela tinha dois olhos e era muito malvada. O nome dessa árvore era árvore mal-assombrada. As crianças e os adultos quando passavam perto daquela árvore, ela comia as crianças e os adultos. Um dia as polícias se vestiram de árvore para matar a árvore”. 49 Como descrevo no Capítulo Dois, quando Y. 10. F. discorria sobre o seu futuro de mulher casada, acentuando que o marido e ela iam trabalhar fora o dia todo, A.J., de seis anos de idade, que acompanhava a elaboração do desenho, imediatamente perguntou: “E quem vai fazer a comida?”.

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usando os talentos que elas possuem” (JAMES, JENKS, PROUT 1998:189 tradução minha). Além

disso, o desenho mostra-se uma técnica adequado para trabalhar com as crianças, dentre outras

coisas, porque, como mostram Christensen e Allison (2000), desenhar é um ato que não requer

nenhum skill especial, uma vez que constantemente as crianças desenham por lazer50. Além disso, o

desenho está menos sujeito à crítica, se comparado ao texto escrito (em relação, por exemplo, à

correção gramatical e ortográfica) e, portanto, menos associado às atividades desenvolvidas no

ambiente escolar.

No entanto, algumas considerações sobre a aplicação dessa técnica merecem ser elaboradas.

As crianças, muito constantemente, copiam o que alguma delas está desenhando. Geralmente,

copiam do mais velho, do considerado mais inteligente ou daquele que sabe desenhar melhor. Nunca

interferi no momento em que uma criança estava deliberadamente copiando um desenho da outra

criança. O que eu sempre fazia, no entanto, quando distribuía os papéis e comentava sobre o tema a

ser trabalhado naquele dia, era alertar para que as crianças tentassem não olhar para o que o colega

estava desenhando. E, se por acaso olhasse, tentasse inventar algo diferente. Ressaltava também que

não existia desenho errado, que todos estavam certos e que eles podiam desenhar o que quisessem.

Como incentivo, eu geralmente acrescentava um elogio aos desenhos assim que me fossem

entregues. Mead (1932) afirma que, da mesma forma, não interferia na elaboração dos desenhos, a

não ser para incentivar as crianças com palavras de encorajamento51.

Acredito que eu seria facilmente assimilada ao papel de professora se coibisse a circulação

das possíveis abordagens do tema proposto (a chamada “cola”). Ser comparada à professora pode

trazer dificuldades para a pesquisa, como já discuti anteriormente, na medida em que a relação

professor-aluno baseia-se, em alguma medida, no pressuposto de que o primeiro sabe e o outro

ignora. Se as crianças vêem a pesquisadora como aquela que sabe de tudo, pode ser difícil

estabelecer uma relação direta e franca, em que eles sintam-se à vontade para expressar seus

sentimentos e pensamentos. Apesar de alerta, no entanto, não pude deixar de ser assimilada como

professora em alguns momentos. Com raras exceções, as crianças requeriam a minha aprovação para

os desenhos. Muito comumente elas perguntavam-me se estava “certo” o desenho que elas estavam

começando a fazer, ou se era assim mesmo que eu esperava que elas fizessem. Além disso, o modo

como as mães, não as crianças, me inquiriam a fim de saber se podiam mandar seus filhos para a

minha casa, remete-me claramente ao universo pedagógico: “Flávia, tu vais ensinar hoje?” Outras

50 As autoras esqueceram-se de acrescentar que isso se dá apenas quando se trata de sociedades com tradição pictográfica. 51 Como Cohn (2006) afirma, Mead não interferia sequer promovendo temas de desenho. Os desenhos com os quais a autora trabalhou foram desenhos aos quais eu chamaria de livres. Sobre o espontaneísmo da pesquisa de Mead, recorra à nota 31.

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vezes trocavam o verbo “ensinar” por “atender”. As crianças que já conheciam o esquema de “ir

para a casa de Flávia” sabiam que o que acontecia lá era pouco estudo e muita diversão.

Além disso, na análise dos desenhos e redações sistematicamente recolhidos segundo o corte

de faixas etárias, há que se estar atento para o fato de que alguns desenhos não seguem a lógica

padrão esperada52 para aquela faixa etária em questão. São desenhos estranhos ao conjunto dos

dados que, no entanto, são interessantes na medida em que mostram as idiossincrasias individuais e

alertam para o fato de que uma abordagem desenvolvimental baseada em faixas etárias pode ser

falaciosa − já que suprime as diferenças individuais. Esse viés pode ser minimizado se os desenhos

são trabalhados em paralelo à observação participante. O antropólogo que conhece o seu campo de

estudos saberá distinguir um desenho que faz sentido no conjunto dos dados − por exemplo,

antecipando uma tendência que está por vir na próxima faixa etária. De outro lado, parece-me

possível tecer algumas considerações baseadas em faixas etárias distintas, se estas não forem

tomadas muito fixamente. Descobri que há importantes semelhanças na maneira de conceber a

religião segundo uma determinada faixa etária − embora ao mesmo tempo haja idiossincrasias

pessoais.

O desenho de uma criança aos cinco anos de idade, por exemplo, autoriza uma análise em um

nível individual e pontual, que diz respeito apenas àquela criança naquele momento específico. No

entanto, vinte desenhos de crianças aos cinco anos de idade conduzem a uma abordagem que já não

é apenas individual, mas aponta para observações coletivas, em harmonia com a faixa etária em

questão. O que eu fiz foi, além disso, observar, em um único momento, como as crianças de variadas

faixas etárias compreendiam um determinado assunto. Esta técnica nos permite observar

diacronicamente como se dá o processo de tomada de conhecimento53 da religião e dos mal-

assombros com o passar dos anos. Como resultado da pesquisa, temos um panorama geral que

contém as diferenças na percepção do tema proposto em relação a todas as idades em questão. Os

dados podem ser analisados de dois pontos de vistas diferentes. Temos um olhar datado e específico,

que diz respeito a uma faixa etária ou a um indivíduo. Ao mesmo tempo, temos um olhar na

perspectiva diacrônica, que diz respeito às mudanças na concepção do tema para as crianças com o

passar dos anos, mas a partir de observações coletivas. Em outras palavras, ao observar um único

momento histórico, percebemos as mudanças, através das faixas etárias, que ocorreram no nível

individual. Simultaneamente, essas mudanças devem ocorrer com todas as crianças naquela faixa

etária. A abordagem é, assim, a um só tempo, individual e coletiva, histórica e etnográfica.

52 Por lógica padrão esperada considero o que foi mais desenhado naquela faixa etária sobre um determinado tema. 53 Visto que, como explico nos Capítulos Três, Quatro e Cinco, religião e mal-assombro não fazem sentido para as crianças desde sempre.

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4. Delimitando a realidade social das crianças: outras técnicas de pesquisa utilizadas

Durante o trabalho de campo, foi feito um treinamento para o uso da minha máquina

fotográfica com sete crianças, além de uma introdução às técnicas básicas de fotografia. Isso

resultou em trinta e duas fotografias feitas pelas próprias crianças. Depois de reveladas, as

fotografias foram discutidas; além disso, cada uma das crianças escreveu sobre as suas fotos. Para

um exemplo destas fotografias, vide Foto 19 no CD anexo. De modo geral, nas fotografias

destacam-se: 1) ênfase na família, incluindo pai e mãe, mas, sobretudo, nas crianças; 2) ênfase nos

elementos da natureza, particularmente no Açude do Prefeito e na Serra de Catingueira, com

destaque para o pôr e o nascer do sol; 3) ênfase nos amigos. Destacam-se também alguns elementos

religiosos − porém em menor quantidade se comparado aos três temas anteriormente mencionados54.

54 Fotos (julho de 2004). O olhar infantil sobre o mundo: o que é considerado digno de uma foto, o que é bonito ou importante o bastante para ser fotografado. F. 11. F.

1) Mãe e amigas voltando da caminhada com as montanhas refletindo a água do açude. 2) Nascer do sol. 3) Amigas na paisagem (“aniversário de uma delas, quebraram ovos na sua cabeça, foi muito engraçado”). 4) Centro espírita, de dentro. 5) Bonecas (“simbolizam a minha infância”).

A. 11. F. 1) Amigos que ensaiavam uma quadrilha, na sua casa. 2) Rocinha do pai. 3) Centro espírita, de fora. “Idéia das irmãs mais velhas, ia tirar do primo M., mas ele viajou”. 4) Gatinho, na cozinha da sua casa. 5) Família dentro de casa, mãe, pai e irmã (os outros irmãos recusaram-se).

L. 12. F. 1) Amiga e irmã na Serra. 2) Pai ralhando milho. 3) Pôr do sol. A sua casa com mãe, pai e outros na porta (difícil visualização). 4) Açude, “pegando” a Serra. “Quando a água brilha parece os olhos da minha mãe”. 5) Irmã caçula.

S. 12. F. 1) Pesquisadora. 2) Rangel, namorado, sem camisa, andando pela rua principal, com Catingueira (centro) aos fundos. 3) O pôr do sol no açude. 4) Açude. 5) Gato na porta da cozinha.

R. 12. F. 1) Irmão, afilhada de consagração, amigas e a Serra ao fundo, onde ela morou três anos. 2) Filha da madrinha. “V. (amiga que foi criada bem dizer junta) está segurando a menina”. 3) Serra com o paredão/ barragem. 4) Pai e tio trabalhando na Serra.

J. 14. M. 1) A televisão na tela do Super Mário/ Vídeo game. 2) Duas primas. 3) “Primo de 1 ano e 4 meses mais as duas primas (ele não quis tirar sozinho)”. 4) Nossa Senhora de Fátima (“Eu tenho uma santa”). (Foto não revelada). 5) Amigas.

R. 13. M. 1) Amigo. 2) Ensaio religioso no salão paroquial, meninas/ amigas. 3) Amigos (só meninas).

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Cabe, mais uma vez, ressaltar que a classificação elementos da natureza e família é, em

última instância, apesar de discutida com as crianças, da própria pesquisadora55. As fotografias

tiradas sugerem o que as crianças concebem como importante. Além disso, não é qualquer coisa

importante que merece ser fotografada. Há que ser belo. Beleza e importância são os critérios

escolhidos pelas crianças para se fotografar em Catingueira. As fotografias mostram que as crianças

pinçam no seu cotidiano os elementos que elas consideram mais bonitos e dignos de serem

eternizados. O fato de as crianças terem enfatizado a família pode ser entendido, se lembrarmos que

o mundo da criança é construído no cotidiano da família e em contato com os amigos e vizinhos

próximos. Essas relações são o âmago da vida da criança. É principalmente no contato com a família

que a criança vai aprender a comportar-se como um catingueirense. Além disso, a família parece ser

uma das instituições sociais mais importantes, segundo os catingueirenses. Este processo − de

tornar-se gente adulta através da família –, e o lugar central reservado à família naquela sociedade

serão detalhadamente trabalhados ao longo da tese.

A natureza, por sua vez, é tida como bela, e é a sua presença que torna a Catingueira uma

cidade bonita. Os elementos da natureza são usados, em muitos casos, como adorno. Mesmo não

sendo o tema principal, eles estão presentes como ornamentação, por exemplo, em vaso de planta ou

em uma flor. Interessante relembrar que os desenhos livres mais populares foram justamente os de

elementos da natureza. Em segundo lugar, a casa foi o elemento mais destacado. Ela pode ser

entendida como referência à família, na medida em que é a casa o lugar por excelência da mesma.

Com tudo isso, verificamos que diferentes técnicas de pesquisa podem apresentar resultados

complementares. Pouco pode ser dito sobre as crianças de Catingueira unicamente através das

fotografias que elas tiraram. Entretanto, quando analisamos um conjunto de técnicas de pesquisa em

contraste e relação, podemos melhor apurar a validade dos dados recolhidos.

Anderson (2000) alude à possibilidade de envolver as crianças como co-produtoras da

pesquisa através das fotografias. Nesbitt (2000a) também utilizou a técnica, e aponta como ponto

positivo o fato de que a criança se esquece que está sendo pesquisada quando está tirando ou

analisando suas fotos. Da mesma forma, Punch (2001b) utilizou o recurso metodológico com

sucesso na zona rural da Bolívia. Segundo a minha experiência, o recurso das fotografias permite um

acesso ao mundo infantil, na medida em que é possível tomar conhecimento daquilo que, dentre tudo

o que está à sua volta, é considerado pela criança como o mais importante, de um lado, e bonito, de

outro. Além disso, tirar fotos é como uma brincadeira especial. As crianças tomam contato com um

equipamento alheio ao seu cotidiano, o que torna a atividade bastante atrativa. O único

Ocorrências: Natureza 9. Família 6. Amigos 3. Brinquedos 2. Religião 2. Pesquisadora 1. Namorado 1. Natureza/ família e amigos: 1. Natureza e família: 1. Religião e amigos: 1. Família e amigos: 2. 55 Sobre o uso do termo “elementos da natureza” enquanto categoria da pesquisadora recorra às considerações elaboradas no início do tópico três.

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inconveniente da técnica é o custo elevado das revelações, ampliações, filmes fotográficos e,

principalmente das câmaras fotográficas, que correm o risco de serem danificadas.

Complementarmente, sete meninas entre dez e treze anos de idade mantiveram um diário por

três meses que, ao final, me foram entregues. Esta técnica também foi utilizado por Punch (2001b)

enquanto um meio de conhecer o dia-a-dia das crianças alfabetizadas56. As meninas responderam

com muito entusiasmo a esta técnica e elaboraram caprichados diários, repletos de gravuras,

desenhos, colagens e fotos. Em princípio, os diários são um prato cheio para a pesquisa sobre a vida

interior das crianças, já que contêm momentos de reflexão pessoal quanto aos assuntos suscitados

pelo cotidiano. A auto-reflexão que o ato de escrever um diário estimula é de grande valor para a

pesquisa antropológica, na medida em que estão em jogo as experiências e pensamentos próprios das

crianças. Através do diário, é possível, por exemplo, ter acesso a realidades normalmente restritas ao

antropólogo, como as refeições em família. No entanto, o diário feito com o propósito de ser

entregue para a pesquisadora quando concluído, parece ir em sentido oposto ao de sua definição

enquanto algo pessoal e íntimo57. No meu caso, observei que, na maioria dos casos, as crianças

fizeram do diário uma coletânea de cartas e recados endereçados à pesquisadora. Ao aplicar a

técnica, é preciso ter em mente que as crianças são espertas o suficiente para escreverem no diário

apenas o que elas autorizam o pesquisador a tomar conhecimento.

Prosseguindo no mapeamento das técnicas utilizadas, também foi feita a gravação de um

suposto programa de rádio por cada uma das religiões representadas na cidade. Primeiro, conversei

com as professoras de religião, e elas incumbiram-se de repassar a idéia para as crianças. Essas

professoras deveriam elaborar um pequeno programa de rádio explicando para as crianças das outras

religiões como é pertencer àquela denominação. A solicitação foi atendida pela Igreja Católica, pela

Assembléia de Deus e pelo Centro Espírita. Quanto à Igreja Congregacional, apesar de terem

concordado com a proposta, não chegaram a efetivá-la. Na Igreja Seguidores de Cristo, foi-me

alegado que não havia crianças entre os participantes. Todos os programas de rádio foram feitos com

o auxílio e direcionamento de jovens mulheres que são encarregadas do ensino da religião para as

crianças. De maneira enviesada, o que podemos perceber nas fitas-cassete é, sobretudo, a visão de

mundo das professoras de religião, e não tanto das próprias crianças. É interessante ressaltar que

todas estas professoras de religião são, elas mesmas, adolescentes. Muitas vezes, ouve-se claramente

sussurros ao fundo da gravação, com o conteúdo a ser repetido pela criança. Além disso, a

linguagem e conteúdo da gravação são claramente não-infantis. O viés está presente em todas as

religiões representadas. De modo geral, todas as gravações contêm orações, cânticos e perguntas e 56 Vide também Sinats et al. (2005) para um estudo da espiritualidade de meninas adolescentes através de diários e poesias. 57 “A tradição do diarismo só se tornará predominantemente íntima (a ponto de se hoje pensar um diário sempre como um objeto da intimidade) a partir da segunda metade do século XIX na Europa e, mesmo assim, só no século XX é que podemos falar de uma ampla prática de diarismo íntimo” (PIRES: em preparação).

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respostas no estilo de entrevista. A Assembléia de Deus elaborou um programa de rádio de sessenta

minutos (!) – quando o solicitado foi em torno de cinco a dez minutos – e requereu a aprovação e

colaboração do pastor e de toda a “comunidade dos irmãos”, enquanto na igreja Católica e no Centro

Espírita a atividade não precisou da aprovação do padre ou diretor do Centro, estando nas mãos das

“professoras” a decisão de colaborar com a pesquisadora e com a execução do projeto58.

Foram feitas também entrevistas abertas com crianças. De acordo com a minha experiência,

esta técnica limita a espontaneidade infantil. No caso estudado, as conversações informais foram

usadas como substitutos das entrevistas com resultados mais positivos. As entrevistas exigem um

aparato especial, como lugar reservado, hora marcada, gravador, estar sentado. As conversações, por

sua vez, podem ter lugar a qualquer hora e em qualquer lugar. De outro lado, foram feitas

entrevistas, com roteiro estruturado, com adultos, a fim de compreender o que eles pensam sobre os

mesmos temas desenhados pelas crianças e sobre a infância de modo geral. Mayall (2000: 129)

também aposta nas entrevistas com adultos na pesquisa sobre criança. Ele afirma que, da mesma

forma que o conceito de gênero é fundamental para se estudar as mulheres, o conceito de geração é

essencial para se estudar crianças, já que vivemos em um mundo composto por pessoas com idades

diferentes59. Esta escolha teórico-metodológica conflita com a de Wartofsky (1983), Tammivaara e

Enright (1986), e W. Corsaro (1992, 2003, 2005 [1997]), Thorne (1993), Sarmento e Pinto (1997) e

Corsaro & Molinari (2000), para os quais as crianças constituem uma “cultura” ou “sociedade”

específica e, portanto, devem ser estudadas em si mesmas. No entanto, incluir os adultos na pesquisa

sobre criança tem a aprovação de outros pesquisadores, como Christina Toren (1999), Morton

(1996) e Mayall (1995). Faço minhas as palavras de Morton quando concorda com Toren: “Eu

compartilho a visão de Toren de que estudar crianças como se seu mundo social fosse, de alguma

maneira, separado dos adultos, é fornecer uma análise inadequada” (MORTON 1996: 05 tradução

minha) 60.

Elaborei também um roteiro de filmagem tratando da vida religiosa das crianças, e de como

elas interpretam os acontecimentos inexplicáveis ou misteriosos. As gravações foram efetuadas em

maio de 2005. Escolhi oito crianças para participarem do filme. Contei com um roteiro semi-

direcionado de perguntas, que fui seguindo à medida da conveniência. As crianças escolhiam o lugar

onde queriam que a gravação tivesse lugar. Dar às crianças a possibilidade da escolha do lugar da

filmagem foi uma tentativa de distribuir o poder de decisão e fazer do filme algo construído com as

58 A idéia inicial era divulgar as fitas cassete no rádio falante da igreja Católica, que funciona como a rádio na cidade, divulgando notícias e anúncios, com vistas a estimular a discussão ecumênica. No entanto, a divulgação dos programas de rádio ainda não foi realizada. 59 Os catingueirenses, por sua vez, pensam o mundo das crianças, como já anunciei, como separado do mundo dos adultos. Vide mais detalhes sobre a concepção de infância em Catingueira no Capítulo Dois. 60 Vide nota 38 neste capítulo. A situação criada na minha casa poderia ser, desta forma, considerada imprópria para a pesquisa, já que as crianças não estariam ali em contato com os adultos. No entanto, parece-me que o experimento é válido, na medida em que também analisei as crianças em interação cotidiana com os adultos.

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crianças. Muitas delas escolheram gravar na Serra da Catingueira − o que mais uma vez destaca o

papel especial reservado pelas crianças aos elementos chamados da natureza, já constatado nos

desenhos livres e nas fotografias. Algumas filmagens foram feitas em duplas − nos casos nos quais

as crianças eram grandes amigos ou muito tímidas −, mas a maioria das crianças foi filmada

individualmente. O esforço resultou em quatro fitas de sessenta minutos cada, a serem editadas em

momento oportuno. A técnica mostrou-se interessante. Além de ser muito bem-vindo pelas crianças,

elas esmeram-se para parecerem inteligentes diante da câmara. Com isso, deixam-nos antever o que

elas acreditam que os adultos querem ouvir, mostrando-se bastantes conscientes sobre o mundo

adulto. No entanto, há que se estar atento para o fato de que a câmera pode, às vezes, inibir a

criança. Isso pode ser amenizado se a gravação das imagens é feita depois de um tempo considerável

de trabalho de campo. Se as crianças confiam no pesquisador, provavelmente vão confiar nos

instrumentos de pesquisa que ele propuser. Uma das meninas que participou do filme, ao contrário

de se mostrar tímida ou arredia, tomou a oportunidade de estar sendo filmada para mencionar um

fato bastante delicado da sua vida pessoal. Embora esta menina fosse uma das informantes mais

próximas que tive, a ponto de nos tornarmos amigas, ela nunca tinha tocado naquele assunto

previamente. Às vezes, a câmera inibe; às vezes, pode ser veículo de comunicação mais efetiva61.

Por fim, foi feito também um total de quinze cartas. Às crianças eram dados o papel e o

lápis. A decisão do destinatário era definida pelo critério infantil. As cartas foram endereçadas a

Jesus (seis), Pesquisadora (três), Membros da família (dois), Papai Noel (um), Papai do céu (um),

Deus (um), Anjinho (um). A técnica mostrou-se com pouco apelo entre as crianças e, portanto,

pouco eficiente. Heller (1986) e Weisz (1980) pediram que as crianças escrevessem cartas para Deus

e, no caso das suas pesquisas, a técnica mostrou-se válido. Talvez eu devesse ter insistido um pouco

mais na aplicação das cartas, já que, pelos poucos exemplares que coletei, vislumbra-se um

horizonte onde as crianças mostram-se bastante religiosas. Elas escolheram, na sua maioria, Jesus

como o destinatário das suas cartas; aliás, das quinze cartas elaboradas, nove delas eram endereçadas

a entidades do mundo espiritual. O fato é que os desenhos eram tão mais populares que as crianças

mesmo decidiram sobre a técnica mais aplicada.

5. Conclusões

61 Há uma considerável bibliografia brasileira sobre o uso da câmera e a produção de vídeos em antropologia, assim como sobre o uso da câmera fotográfica. Vide, por exemplo, o projeto Vídeo nas Aldeias (http://www.videonasaldeias.org.br), Sylvia Caiuby Novaes (1993) e Rose Satiko Gitirana Hikiji (1998) ambas do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI-USP) e Ruben Caixeta de Queiroz (2004). Para uma abordagem clássica, vide Jean Rouch, cuja vasta bibliografia pode ser contemplada em http://www.jeanrouch.com/.

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Minha estratégia foi expandir ao máximo o espectro de possibilidades metodológicas na

primeira etapa do trabalho de campo no ano de 2004, tentando cobrir todas as alternativas com as

quais deparei-me na literatura (ALDERSON 2000, BERENTZEN 1989, FINE & SANDSTROM

1988, HELLER 1986, JAMES & CHRISTENSEN 2000, MAYALL 2000, NESBITT 2000b,

PUNCH 2001b, WEISZ 1980). Na seqüência, fiz um apuramento das técnicas que se mostraram

mais férteis e os desenvolvi mais intensamente na segunda etapa do trabalho de campo, no ano de

2005.

Christensen and James (2000), em um livro sobre a questão metodológica no estudo com as

crianças, afirmam que estudar crianças não requer métodos especiais. De acordo com eles, de

modo geral, os métodos de pesquisa devem ser adaptados para o contexto pesquisado. O mesmo

vale para o contexto infantil. Não justificaria, assim, segundo os autores, desenvolver novos

métodos de pesquisa destinados especialmente ao público infantil. No caso da entrevista, por

exemplo, Alderson (1993) afirma que as diferenças entre crianças e adultos são de grau, e não de

tipo. Os adultos tendem a responder elaborando mais conexões, e mais detalhadamente que as

crianças. Mas isso se deve à inexperiência infantil, e não à imaturidade − já que, quando dominam

o assunto, as crianças expressam-se com grande desenvoltura. Da mesma forma, continua

Alderson, que o pesquisador pode encontrar uma criança tímida, pode deparar-se também com um

adulto tímido (:71), o que dificultará a entrevista. Concordo com os autores citados quanto à

validade de se usar os mesmos métodos e técnicas que utilizamos para os adultos com as crianças,

como entrevistas e questionários. E concordo também que algumas adaptações são essenciais para

o sucesso dos mesmos. Contudo, não tenho nada contra a criação e discussão de métodos e técnicas

que atendam às especificidades infantis. Com isso, não quero dizer que os métodos e técnicas

usados para pesquisar os adultos sejam muito complexos para o nível de entendimento infantil.

Mas, sim, que as crianças e os adultos comportam-se de maneiras diferentes e respondem de

maneiras igualmente diferentes aos diversos métodos e técnicas.

Dentre os métodos e técnicas utilizados nesta pesquisa, acredito que os que se mostraram

mais eficazes para ela foram a boa e velha observação participante, junto aos desenhos e redações.

Há que se ressaltar, mais uma vez, que os desenhos só são realmente interessantes para a pesquisa

antropológica quando elaborados naquele contexto onde a criança é levada a refletir e a elaborar

oralmente ou textualmente sobre o que ela desenhou62. A pesquisa em antropologia não pode se

valer apenas dos desenhos em si mesmos. Mas se são conjugados com a observação participante,

parece-me que as duas técnicas reforçam-se mutuamente: os desenhos indicam a direção que a

observação deve tomar.

62 Afirmação com a qual Christina Toren concordaria (1999, 2002).

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Além disso, dada a relativa novidade do estudo antropológico das crianças, parece-me útil a

experimentação de técnicas pouco usuais, como o diário, a fotografia, o filme, o programa de rádio

e a carta. Além disso, quanto mais variados as técnicas aplicadas, melhor a compreensão da

realidade a ser estudada. Até mesmo para se chegar à conclusão de quais as técnicas são os mais

adequados a um objeto específico na área da infância, é positivo extrapolar o cânone antropológico

da observação participante. Embora no meu caso a observação participante e os desenhos/redações

tenham sido mais utilizados, as outras técnicas em conjunto foram essenciais para a delimitação da

realidade social infantil na Catingueira.

Uma nota de esclarecimento faz-se necessária. A observação participante é o método por

excelência da antropologia − o que eu estou de completo acordo. Longe de mim querer contestar

sua eficácia. O que ressalto, todavia, é que, apesar desta pesquisa ter sido construída, em grande

medida, através do recurso da observação participante intensiva e prolongada, o mesmo não

impediu a aplicação de outras técnicas de pesquisa, necessárias pelas particularidades do objeto

trabalhado. As crianças foram pesquisadas tendo como suporte metodológico os desenhos e todas

as outras técnicas descritas acima. Com os adultos, utilizei as entrevistas como técnica

complementar, embora destaco novamente, é da observação participante que tirei os melhores

frutos. No entanto, não fiz desenhos com os adultos e, assim, em relação a estes, não posso

fornecer dados quantitativos, como é o caso das crianças. A opção por não fazer desenhos com

adultos vem do fato de que são raros os que cotidianamente têm por hábito desenhar. Os adultos

que desenham em Catingueira são aqueles aos quais é reconhecido um dom especial para as artes -

ao contrário das crianças, que são facilmente envolvidas na atividade seja por prazer, seja por

obrigação escolar63.

Para finalizar, quanto ao fato de ser adulta e pesquisar crianças, parece-me que a

especificidade do objeto exigiu que a pesquisadora estabelecesse uma relação que difere daquela

relação corrente entre as crianças e os adultos na cidade pesquisada. Isso criou problemas. Uma

vizinha espalhou a fofoca sobre a minha suposta imperícia como adulta responsável, o que, por sua

vez, levou à proibição de algumas crianças de freqüentarem minha casa. De uma perspectiva

antropológica, o pesquisador deve ser capaz de observar a comunidade de uma perspectiva interna.

Isso não quer dizer que ele deva transformar-se em nativo, mas, sim, que as suas dessemelhanças

em relação aos nativos não sejam um impeditivo para a relação. Um dos desafios do pesquisador é

conseguir manipular a sua presença no campo, de modo que respeite as normas de interação social

reinantes e as especificidades daquela comunidade, ao mesmo tempo em que consiga inserir-se de

maneira efetiva, a fim realizar sua pesquisa satisfatoriamente. 63 Como já foi citado, Mead and Bateson coletaram mais de mil e duzentos desenhos (e relatos sobre eles) na ilha de Bali, durante os anos de 1937 a 1939, na sua grande maioria feitos por adultos considerados artistas, o que difere em natureza dos desenhos aqui apresentados (GEERTZ 1995).

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6. Anexo: Seleção de elementos desenhados

Apresento aqui alguns dos temas desenhados pelas crianças. Embora importantes, eles não

foram detalhadamente estudados para esta ocasião. Os mesmos estão subdivididos em questões

morais, da morte e da religião.

• Questões morais

A coisa mais feia do mundo/ total: 17 (Vulcão: 5 (cópias do desenho de L. 12. F). Mal-assombro: 4.

Barata: 1. Cobra: 1).

A coisa mais bonita do mundo/ total: 17 (Natureza: 6. Pesquisadora: 2. Rezar: 2. Amigas: 2. Castelo:

1. Estudar: 1. Mãe e pai: 1. Anjinhos: 1. Saber escrever: 1. Mãe: 1. Cachoeira da Mãe Luzia: 1.

Coração: 1.

Algo que dá medo/ total: 11 (Alma: 3. Cobra: 2. Casa mal-assombrada: 2. Mula sem cabeça: 1.

Fantasminha: 1. Onça: 1. Leão: 1. Morte: 1. Da Ana Doida: 3 (cópias uns dos outros). Cair de um

prédio: 1. Morrer afogado: 1. Ladrões me pegarem: 1. Tiroteio: 1. (obs.: A soma não confere porque

alguns desenharam mais de um objeto. Uma criança escreveu: Deus. Jesus. Deus. Jesus. No meio do

desenho.)

A coisa mais triste do mundo/ total: 7 (Chorar: 2. Seca: 2. Tristeza: 1. Morte: 2. Diabo: 1. Poluição:

1.)

A coisa mais alegre do mundo/ total: 7 (Natureza: 3. Sorrir: 2. Consolar quem chora: 1. Coisas de

Deus: 1. Brincar: 1.)

Seu maior sonho/ total: 19 (Ser médica: 3. Casa: 2. Jardim do Éden: 1. Ser juíza: 1. Ser desenhista:

1. Computador com o show do milhão: 1. Casar, ter uma filha e morar no sítio: 1. Casar, 3 filhos: 1.

Ter uma família feliz: 1. A família: 1. Amigas: 1. Subir a Serra: 1. Ser feliz: 1. Ir embora: 1).

A pior coisa que pode acontecer/ total: 19 (Morrer: 2. Ver o Demônio/cão: 3. Homem do saco: 1. Ir

para o inferno: 1. O fim do mundo: 1. A morte da família: 1. Ter alguém que não goste de você: 1.)

O que te deixa mais feliz/ total: 18 (Meu gatinho: 2. Amor: 2. Amigos: 3. Brincar: 1. Comer: 1.

Rezar: 1. Viver: 1. Deus: 1. Outros: Natureza, casa, mato: 1). Obs. Frases religiosas: Cristo ama

todos.

O que te deixa com mais ódio/ total: 18 (Arengas/ brigas: 5. Tomar o namorado da outra: 2. Inveja:

1. Chamá-la e não esperar por ela: 1. Doença: 1. Morte (própria, em geral, dos pais): 3. Violência: 1.

Droga: 1. Vandalismo: 1. Crianças abandonadas: 1. Outros: casa, mato: 1).

A coisa mais importante na minha vida/ total 7 (Mãe e Pai: 1. Jesus: 2. Mãe: 2. Estudar: 2. Vó: 1.

Brincar: 1. Ter saúde: 1.

A melhor coisa do mundo/ total: 4 (Rosa: 1. Jesus: 1. Família feliz: 1. Deus: 1).

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A pior coisa do mundo/ total: 4 (O cão: 2. Cobra: 1. Morte: 1).

Recado para crianças de outras cidades/ total: 10 (Religiosos: 2. Encorajadores: 2. Descritivos de

Catingueira: 2. Descritivos destas outras crianças: 3. Sem legenda: 1. Sobre si mesmo: 1).

• Questões sobre a morte

Alguém que já morreu/ total: 13 (Viva e feliz: 5. No céu: 1. Na porta do céu com asas (e auréola: 1):

3 (feliz). Enterrado: 1 (feliz). No caixão: 4. Outros: 10).

Quem? avó/avô: 6, (Desconhecido: 2, moradora da cidade: 2, tio: 4.

Mulheres: 8, homem: 4, não identificado: 1.)

Obs.: Frases religiosas: “Deus”. “Jesus te ama, Vovó”. Uma criança de 7 desenhou a vó no caixão

no céu. Para ela, quando se morre as pessoas ficam no caixão, deitadas: assim é o céu.

Um homem mau que morreu: para onde ele foi?/ total: 14 (texto lido: “José era muito mau, ele batia

nos animais, na mulher e nos filhos. Bebia e tomava drogas, não ia ao trabalho e maltratava as

crianças nas ruas”). Céu: 5 (imagens felizes, na porta do céu (3) mas com certeza da entrada).

Hospital: 3. Cemitério: 3. Hospital espírita onde se cuida dos desencarnados: 2. Outros

desenhos/temas: 2. Obs. um dos desenhos tem o cemitério e a porta do céu, e o próprio céu (nuvens)

(F/12anos).

• Questões sobre religião

Deus/ total: 21

Escreveram frases, às vezes religiosas, às vezes, não, para mim e para Deus: 10 (“Deus é fiel”.

“Flávia nunca estamos sós sempre há um amigo por nós”. “Jesus te ama e eu também”. “Jesus vai te

iluminar”. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Essas são as palavras que Deus e o Seu filho nos

ensinou até agora acredite nele e ele fará muitas e muitas coisas”. F/13anos).

Estilo da igreja: barba, cabelo grande, vestido: 7.

Jesus na natureza (como um menino): 1.

Maria (sem roupa, cabelo grande, uma luz em volta do corpo) e o Anjo Gabriel (sem roupa, com

auréola, asas e luz em volta do corpo): 1.

Natureza (Serra e céu: “onde Deus vive”): 1

Casa + menino: 1 (Perguntei: “é Jesus ou Deus”? Ele disse: “tanto faz”).

Não sei desenhar: 1 (castelo)

Meu anjo da guarda/ total: 7. Com asas: 5. Coração com asas: 1. Com auréola: 1. A irmã morta:

1.“Ninguém não vê o anjo. Quando fico doente eu ele me ajuda”. (F 7 anos).

Desenhar o padre, o pastor e o Doutor Fernando (na ordem desenhada pela criança) / total: 26.

Pe: 11. Pastor: 9. Doutor Fernando: 6

Pela ordem:

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1°. lugar 2o lugar 3°. lugar

Padre 6 1 1

Pastor 1 4 3

Doutor Fernando 3 2 1

TOTAL 7 7 4

Obs.: Carol (crente, 7 anos) desenhou 2 pastores diferentes e recusou-se a desenhar o padre e o

D.Fernando. Dos representantes do protestantismo, foram desenhados: Pastor Jonito

(Congregacional), João Neto, da Assembléia, Pastor Djaci, pastores de Patos que um dia vieram de

caminhão fazer um culto aqui e foram expulsos pelo prefeito. (a menina que os desenhou nunca vira

os pastores de Catingueira).

Sobre o pastor: “Tira demônios/ espíritos das pessoas”. “Faz culto nas ruas”. Características físicas:

gordo (baleia) em particular foi muito citado, p/ Djaci e João Neto. Os filhos e a mulher também.

Cantos. Homem bêbado ele disse “glória Jesus” e ele se foi. “Não gosto de ir lá porque eles chamam

os santos de cão, prefiro o catecismo”. ‘Gosto mais ou menos de ir lá, aqui (na minha casa) é

melhor, porque você dá folha pra gente desenhar”. “Não gosto porque não pode vestir short, brinco,

batom, e nem assistir TV”. “O pastor gosta de ir para o culto e pregar a palavra de Deus. Falam “Pai

Senhor (paz do senhor)” e respondem: Amém”. “Muito bom com as crianças”. “Briga com as

crianças quando elas fazem coisa errada no culto”.

Desenhos: Pastor e Bíblia: 4. Pastor sozinho: 3. Pastor tirando os espíritos: 1. Pastor e os bancos da

igreja: 1. Terno e gravata: 4. Roupa social (botões):1. Roupa normal: 4.

Sobre Doutor Fernando: “Me receitando”: 1. Dentro do centro: 1. Fora do centro: 2. Com

estetoscópio, livro “caridade e vida” e camiseta “paz” (com a pomba): 1. Com dinheiro na mão para

dar ao menino: 1. Sobre suas habilidades médicas ao curá-la da asma, mas a doença persiste.

Características físicas. Sobre Seu Agenor (“dá feira”) e suas filhas (reunião de domingo). “Humilde

e caridoso, bom e exigente” (‘manda parar de tomar café, comer açúcar”). Títulos: “D. Fernando é

bastante rico” � por que dá feira ao povo: “Eu acho que ele tem poder. Poder de dar, de doar as

coisas” (M/8). “Centro de desenvolvimento espiritual Jesus de Nazaré”.

Médico exigente (manda para de comer carne, etc). Inteligente � dá palestras no centro. Homem de

muita fé. Sobre Padre: “Muito legal, trata bem as pessoas, bom, alegre”. Inácio, 9. M, conta como é

a festa de SS com a pegada no mastro e descida, só homens. Rosana, 12, gosta mais de ir para o

centro. “Celebra missas, novenas, terços e quando a pessoa está morrendo ele vai lá.” “Sabe fazer

um bom batizado”. “Ajuda os pobres, é caridoso”. “Lê a Bíblia e canta na igreja”. Características

físicas (“é vaidoso: cabelo enrolado e faz escova no cabelo”). “A minha tia trabalha com ele,

cantando nas missas”. “Denúncias ao bispo que ele bebe e está metido com política”. “Fala mal dos

outros”. Joel, 8 anos, não sabe o que falar porque só foi uma vez, ele sabe mais de crente. Pergunto

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se ele é crente e ele diz: “Eu mesmo não, mas meu pai é”. Inventou que padre não gosta de música

nem de bebida alcoólica. Sobre a sua saída da cidade, disse o padre que se saísse de Catingueira iria

tirar a batina. “O povo não gosta quando ele fala da vida alheia e dos crentes também”.

Desenhos: Na igreja celebrando missa: 2. Com batina: 6. Sem batina: 2. Sem batina + igreja: 1. Com

batina + estrelas ao fundo e cortinas (paisagem abstrata): 1. Com batina + Bíblia: 1.

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CAPÍTULO 2: Cidade, casa e igreja: sobre Catingueira, seus adultos e suas crianças

Tenho pena de deixar

A Serra da Catingueira, A fazenda Bela Vista,

A maior desta Ribeira, O riacho do Poção,

As quebradas do Teixeira. Inácio da Catingueira

1. Introdução

Este capítulo tem como objetivo situar a cidade de Catingueira e os catingueirenses,

abrangendo breves aspectos econômicos, políticos, geográficos, religiosos, estatísticos e sociais. O

intuito é apresentar um panorama geral da cidade para que se possa imaginar quem são os “nativos

em carne e osso”. Além disso, discuto como as crianças estão presentes neste contexto, dando

destaque, principalmente, às idéias infantis sobre a vida cotidiana e a família.

2. A cidade de Catingueira

Conta-se que, em finais do século XIX, o vilarejo que se constituía às margens de um pé de

catingueira64, dando repouso aos viajantes e comerciantes de passagem entre as cidades de Piancó e

Patos (PB), foi salvo de uma peste de cólera, através de uma promessa, pelas graças de São

Sebastião. Ao santo, é atribuído o dom de exterminar a fome, a peste e a guerra. São Sebastião

cumpriu a sua parte na promessa: ninguém adoeceu no vilarejo65. O pagamento da promessa

64 Caesalpinia pyramidalis Tul. “É uma arvoreta com até 4 m de altura. Folhas bipinadas com 5-11 folíolos, sésseis, alternos, obtusos, oblongos. Flores amarelas dispostas em racemos pouco maiores ou tão longos quanto as folhas. Vagem achatada de cor escura. Madeira para lenha, carvão e estacas. É uma das plantas sertanejas cujas gemas brotam às primeiras manifestações de umidade anunciadoras do período das chuvas. Então o gado procura as suas folhinhas com avidez, para pouco depois desprezá-las devido ao cheiro desagradável que adquirem ao crescer. As folhas, as flores e a casca são usadas no tratamento das infecções catarrais e nas diarréias e disenterias. É uma planta característica das catingas”. (http://www.esam.br/zoobotanico/vegetais/catingueira.htm acessado em vinte e um de julho de 2005). 65 São Sebastiãozinho é o nome dado à imagem pequena adquirida como primeira imagem do santo padroeiro na época da promessa inicial. Ela ainda hoje permanece na igreja. Durante a festa do padroeiro, esta imagem peregrina pelas casas dos fiéis, pernoitando a cada noite na casa de um devoto. Durante as celebrações das missas, ela fica em um lugar privilegiado. Além disso, nas procissões é ela que trafega pelas ruas, sustentada pelo povo. Esta imagem, por estar tão presente na vida daqueles que participam da festa religiosa, adquiriu uma conotação humana − mesmo tendo sido feita de um material perecível, ela é tida como um ente poderoso, capaz de realizar milagres. Por isso, ao se referir a ela, não se diz a imagem de São Sebastião, se diz o próprio São Sebastião. E em se tratando da primeira imagem adquirida, “São Sebastiãozinho”, não se trata da encarnação no barro de uma entidade exterior a ele, mas de um barro tornado santo. O hino de São Sebastião, cantado nas missas e novenas durante a festa de janeiro, revela a esperança no santo, já testada e comprovada na promessa inicial: Livrai-nos da peste, São Sebastião” (PIRES 2003: 24). A imagem do santo pode ser entendida como um “feitiche”, no termos de Latour (LATOUR 2002b [1996], 2000; vide também VELHO 2005).

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compreendia a construção de uma capela e a doação ao santo de todo o lugarejo − que, hoje,

compreende parte da Serra, da cidade e da área rural. Para saldar a dívida da promessa, foi preciso

unir quatro famílias distintas que doaram parte de suas propriedades ao santo, o que posteriormente

constituiria a cidade66. Assim, juridicamente, todos os terrenos da cidade tornaram-se propriedade do

santo. Ainda hoje, a maioria dos terrenos na cidade pertence ao “Patrimônio de São Sebastião”.

Quem mora nos terrenos do santo, paga uma quantia anual à igreja, chamada foro, uma espécie de

aluguel pelo uso da terra. O pagamento do foro é calculado a partir da extensão frontal do terreno. A

cada metro, paga-se R$ 1,00 por ano (pelo menos desde o ano 2000 até 2005). Os moradores que

desejam ser donos do terreno onde construíram as suas casas podem negociá-lo, dependendo da

política do bispo em vigor67.

Além da igreja Católica, na cidade há também um Centro espírita de linha Kardecista e três

igrejas evangélicas, dentre as quais a Assembléia de Deus é a mais antiga e com maior número de

fiéis. Para completar o quadro religioso evangélico temos, por fim, as igrejas Seguidores de Cristo e

Pentecostal do Evangelho Amor de Deus68. Na cidade de Catingueira, apesar da presença do

66 A cidade mudou de nome várias vezes. Este processo parece ter sido seguido também por outras cidades, como analisa Otavio Velho (VELHO 1981 [1972]). Pela lei n.º 836, de 9 setembro de 1887, o lugarejo que se constituía recebeu o nome de São Sebastião da Catingueira, em virtude do milagre alcançado. Pelo decreto n.º 27, de 23 de julho de 1890, o lugarejo transformou-se em Jucá. Em 1933, pelo decreto n.º 400, o povoado transformou-se em distrito, sob o nome de Jucá. Em 15 de novembro de 1938, o distrito teve sua mais antiga denominação reimplantada. A cidade tornou-se município pela lei n.º 2144, de 15 de julho de 1959. 67 Veja extrato de entrevista com uma moradora no ano de 2002 (PIRES 2003: 26) sobre a promessa inicial. “F.P.: Aqui eles falam que a cidade nasceu de uma promessa, a senhora sabe contar?[...] Sebastiana: ...conta assim, né, que foi uma doença que houve na Catingueira aqui, né, parece que o nome era cólera... É, eu sei que deu essa doença, e inventaram de fazer essa promessa, que São Sebastião protegesse pra num chegar até a Catingueira e diz-se que trocava São Sebastião e fazia uma capela, e de fato, fizeram mesmo. E num chegou aqui não, veio até a Mina do Ouro, e o povo contava, né”. Veja também extrato de entrevista com dois senhores no ano de 2002 (PIRES 2003: 25) sobre o proprietário dos terrenos da cidade. “Sebastião: Quer dizer que é o seguinte, a cidade, toda a cidade tem um padroeiro dela, né? Aí quem manda é o padroeiro, aí a festa é do Padroeiro. F.P. (Flavia Pires): Mas o padroeiro manda em que? Sebastião: Em tudo, nos terrenos.... José: Essa Serra toda é dele. Aqui, até acolá no açude... Sebastião: Se você quer comprar um chão aí você tem que falar com o padre. José: Com o bispo. Sebastião: Fala com o padre aí o padre vai ver e o bispo libera. Senão.... José: Não compra não. F.P.: Nada com a prefeitura não? Sebastião: Não, a prefeitura num tem nada. Nada, nada. José: Nada com a prefeitura não. A prefeitura só tem o local dela”. 68 Além destes templos religiosos, existem na cidade algumas capelas. Uma delas, a Capela do Vaqueiro é conhecida como mal-assombrada. Nos anos anteriores a 2005, no lugar onde hoje funciona a Igreja Pentecostal do Evangelho Amor de Deus, funcionava a Igreja Congregacional. Infelizmente, não observei detalhadamente o processo que culminou com o fim de uma igreja e o estabelecimento da outra. No entanto, chama a atenção o fato de que o pastor e basicamente toda a comunidade de fiéis tenha permanecido praticamente a mesma. A impressão que se tem, de uma perspectiva exterior à comunidade, é de que a mudança limitou-se ao nome pintado do lado de fora da igreja. Assim dito, já esclareço futuras dúvidas que possa vir a despertar o fato de que o universo evangélico, durante todo o meu trabalho de campo, foi sempre composto por três igrejas distintas entre si, mesmo que as igrejas às quais me refira não sejam as mesmas de acordo com o ano em que a pesquisa de campo foi realizada.

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protestantismo e do espiritismo kardecista, o catolicismo é a religião predominante. Como se vê, a

própria constituição da cidade está ligada ao catolicismo e à fé em um santo. Neste contexto,

descrevi alhures (PIRES 2005a) que o santo padroeiro é um mediador entre as religiões

representadas. Nesta tese, pretendo discutir em que medida os mal-assombros também

desempenham este papel, sendo atualizados, embora com particularidades, por todas as religiões

presentes na cidade. Neste sentido, gostaria de enfatizar mais as mediações entre as religiões que me

concentrar unilateralmente nas especificidades de cada uma delas. Como anunciei na Introdução, o

cristianismo parece fornecer as bases sobre as quais uma pessoa vai constituir-se enquanto um

catingueirense (maiores detalhes serão fornecidos no decorrer da tese).

Quanto à localização geográfica, a cidade de Catingueira situa-se na região do semi-árido

nordestino, no chamado Vale do Piancó, na parte oeste do Estado da Paraíba (vide mapa político do

Brasil – Figura 3, e mapa do estado da Paraíba - Figuras 1 e 2 no CD anexo, no arquivo nomeado

Mapas).

Catingueira é um município onde estima-se que metade da população viva na área rural. Essa

população dos “sítios” (zona rural) vive basicamente do plantio em pequena escala do milho e do

feijão, ambos para a subsistência e para o comércio de excedentes, embora muitas famílias que

vivam na cidade também contem com a colheita do seu roçado para garantir a sobrevivência.

Dependendo da localização do sítio, pode-se plantar também arroz, que “gosta” de terrenos

alagáveis, chamados de “baixios”. Além disso, algumas famílias cultivam também a batata doce, a

macaxeira e o maxixe em menor escala. O cultivo de frutas não é tradicionalmente popular. O

plantio e a colheita seguem o calendário das chuvas, o chamado inverno − que normalmente tem

início em janeiro, com as celebrações em honra de São Sebastião, e finda em junho, com as

celebrações de São João, São Pedro e Santo Antônio. Em Catingueira, não se utiliza irrigação na

agricultura, apesar de não faltar água na cidade desde a construção do Açude dos Cegos, na década

de 1990. As famílias que vivem em propriedades de terceiros plantam no sistema de terça – parte ou

meia. Quando o “ano é bom”, isto é, quando há excedentes − geralmente o milho e o feijão − eles

são vendidos (ou trocados) ao longo do ano para a compra de outros gêneros alimentícios. As

famílias geralmente criam animais, como galinhas, bode, porco e jumento. Criam também gado,

porém em escala bem reduzida, já que, na estação da seca, falta-lhe alimento, devido aos pastos

ficarem ressequidos. É considerado um bom negócio criar o gado no inverno (estação das chuvas) e

vendê-lo ainda gordo quando estas começam a escassear, no início do verão (estação da seca). Na

seca, o preço do gado cai drasticamente, assim como seu peso.

Na cidade, as famílias vivem basicamente dos benefícios do governo federal (bolsas e

aposentadorias), de alguma plantação ou criação de seu roçado ou muro (terreiro, quintal) ou,

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quando possuem, de um emprego na prefeitura. Comenta-se na cidade que hoje em dia ninguém

mais quer trabalhar nas roças, porque o serviço é pesado e difícil. Com isso, cada dia mais famílias

vão morar na cidade, criando um problema econômico e social, dado o enorme déficit de empregos.

O raciocínio é o seguinte: ‘Bem ou mal, no sítio a pessoa pode plantar um feijãozinho e a

alimentação da família fica garantida. Na cidade, a pessoa não encontra trabalho e não tem nem

como alimentar os filhos’. Infelizmente, não posso confirmar com dados estatísticos este êxodo

rural. Porém, “conseguir” um emprego na prefeitura é uma grande aspiração da maior parte da

população. O emprego na prefeitura é altamente valorizado pela estabilidade que implica.

Estabilidade é entendida como a certeza de receber aquele salário no final do mês, o que possibilita,

por exemplo, o planejamento da compra de bens duráveis. Mas é interessante constatar que esta

reconhecida estabilidade é compatível com o fato de que a cada novo prefeito ocorrem mudanças

drásticas no quadro de funcionários, os quais são substituídos em função dos laços de amizade ou

parentesco com o candidato a prefeito vitorioso. A necessidade de trabalhar na prefeitura, já que não

há na cidade outros empregadores − senão as vendas e os bares (que geralmente utilizam mão de

obra familiar) − cria relações de co-dependência entre os políticos e a população. A prefeitura, por

sua vez, sustenta-se financeiramente através do dinheiro do ‘Fundo de Participação dos Municípios’

e do ‘Imposto Territorial Rural’. Na cidade, não há fábricas ou indústrias.

Alguns meninos complementam o orçamento familiar fazendo pequenos serviços, como

capinagem de terrenos, venda de picolé (conhecido alhures como sacolé ou chup-chup), ou

costurando bolas (para uma fábrica em Patos que paga R$ 1,50 por unidade costurada - julho de

2004). As meninas geralmente não são pagas pelos serviços que executam, uma vez que estes estão

inseridos nas atividades domésticas cotidianas.

Quanto aos benefícios do governo federal, a Bolsa Família compreende o Fome Zero, no

valor de R$ 50,00; a Bolsa Escola, no valor de R$ 15,00 por criança cadastrada e o Vale Gás, de R$

15,00. Além destes benefícios, Catingueira conta com o PETI (Programa de Erradicação do

Trabalho Infantil), com duzentas crianças cadastradas recebendo mensalmente R$ 25,00, e com o

Agente jovem, com vinte e cinco jovens cadastrados, recebendo mensalmente R$ 65,00. Há ainda o

Programa leite da Paraíba, com cento e cinqüenta famílias cadastradas, que recebem diariamente

um litro de leite. E, por fim, o Auxílio à natalidade no valor de R$ 1.400,00 por nascituro. Já em

2002, os benefícios do governo federal geravam discussões substanciais na comunidade, como

observei em Pires 2003 (:99/100). As aposentadorias como trabalhador rural levantam uma questão

sociológica interessante, na medida em que se entende que o indivíduo que não possui sua própria

terra depende de um “patrão” para assinar os papéis da sua aposentadoria. Entre o proprietário de

terras que assinam a papelada e o trabalhador será estabelecido um vínculo, que pode ser reavivado,

por exemplo, em momentos de eleições, ou quando o proprietário de terras precisa de uma “ajuda”

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de qualquer natureza (capinar um terreno, limpar a casa etc.), ficando aquele trabalhador e a sua

família para sempre “endividados”. O ato de assinar os papéis é tido como prova da bondade do

proprietário de terras − à qual o trabalhador responde com gratidão. No entanto, ultimamente

algumas pessoas têm conseguido a aposentadoria através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais

sediado na cidade de Catingueira.

Segundo dados do Censo do ano de 2000, Catingueira conta com 4.748 habitantes em uma

área da unidade territorial de 529,46 Km². Na zona urbana, residem 2.413 habitantes, enquanto na

zona rural habitam 2.539 pessoas. A faixa etária com o maior número de habitante está concentrada

dos dez aos catorze anos, com 667 habitantes. Dentre as pessoas residentes com dez anos ou mais de

idade, 2.222 habitantes não contam com nenhum rendimento (- rendimento nominal mensal -), sendo

o rendimento nominal médio mensal R$ 220,85 entre as pessoas residentes com dez anos ou mais de

idade, com rendimento. O PIB a preço de mercado corrente no ano de 2001 foi de R$ 8.743,00,

enquanto em 2002 foi de R$ 11.066,00. Sobre as finanças públicas, em 2003, as receitas

orçamentárias realizadas computavam R$ 2.611.909,84. Destes R$ 2.012.508,34 eram oriundos do

Valor do Fundo de Participação dos Municípios – FPM, e R$ 4.159,56 oriundos do Imposto

Territorial Rural - ITR. Em 2004, houve 1.180 matrículas no ensino fundamental, e em 2004 havia

56 docentes no ensino fundamental. Em 2000, na eleição municipal, Catingueira contava com 3.719

eleitores69. Os dados estatísticos podem auxiliar o leitor a imaginar a realidade social da Catingueira;

no entanto, é preciso ressaltar que os dados aqui expostos só podem ser completamente entendidos

quando referidos às especificidades locais como, por exemplo, o alto poder de compra do salário

mínimo. Em outra oportunidade, escrevi que as famílias que contam com dois salários mínimos são

consideradas ricas, o que se evidencia, por exemplo, no fato de que podem se dar ao luxo de comer

carne (ou a “mistura”, ou seja, ovos e carne) todos os dias, no almoço e no jantar (PIRES 2003: 99).

Para descrever como a vida em Catingueira se move no tempo e no espaço, não poderia

deixar de incluir o calendário das festas e de descrever os horários seguidos pela população. A festa

do Padroeiro em janeiro e a festa de João Pedro (São João e São Pedro comemorados

simultaneamente), em junho, são eventos muito significativos. Em grande medida, a cidade vive da

69 “Uma revisão eleitoral feita pelo TRE no município de Catingueira, no sertão paraibano, resultou no cancelamento de 706 títulos de eleitores fantasmas. No universo de 3.566 eleitores, 2.860 participaram do recadastramento e tiveram os domicílios eleitorais homologados. A população de Catingueira é de 4.465 habitantes. (LKA)” Fonte: http://jornaldaparaiba.globo.com/poli-4-180606.html, em 18 de junho de 2006.

Em maio do ano de 2006, o ex-prefeito de Catingueira, João Felix de Souza, teve a sua prestação de contas do ano de 2004 reprovada pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, sendo intimado a devolver o valor de R$ 47.800,00 para os cofres públicos. O valor, na sua maioria, é referente a despesas não comprovados do INSS (Fonte: http://www.jornalonorte.com.br/noticias/?63304, acessado em maio de 2006). O mesmo ex-prefeito está sendo investigado pela sua participação na chamada Máfia dos Sanguessugas, no que se refere ao escândalo das ambulâncias, considerado uma dos maiores esquemas de corrupção já planejados pelos parlamentares do país. (http://wscom.digivox.com.br/noticias.jsp?pagina=noticia&id=75810&categoria=29, site acessado em 26 de julho de 2006).

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memória destas festas. Os comentários das festas passadas duram até que chegue a próxima. A festa

é o momento de criar ou reavivar os laços sociais, entre eles o de parentesco e o de amizade.

Também é o tempo das alianças políticas e econômicas. As festas são, em princípio, religiosas, mas

ultrapassam as comemorações estritamente religiosas, apesar de nunca prescindirem delas70. Há,

geralmente, bandas de forró que tocam em praça pública ou bailes na quadra de esportes, onde se

cobra um ingresso na entrada71. Freqüentam as festas tanto a população local e das cidades vizinhas,

quanto os chamados “filhos ausentes”, isto é, pessoas que nasceram na cidade, por razões

econômicas emigraram e, segundo os catingueirenses, acabaram por “enricar” (PIRES 2003, 2004a).

Catingueira acorda cedo, ao raiar do sol, entre as quatro e seis horas da manhã. Quem levanta

tarde (depois das sete horas) é considerado preguiçoso. A partir das cinco horas, as pessoas que vão

fazer compras em Patos ou viajar aparecem na praça para conseguir lugar nas primeiras viagens das

caminhonetas - que fazem o transporte de passageiros pelas cidades vizinhas72. Das cinco até as sete

horas da manhã, pequenos grupos de três ou quatro homens sentam-se na praça, batendo papo,

enquanto suas mulheres varrem a calçada ou preparam o café. A cidade vive uma espécie de

efervescência às oito horas da manhã, quando a agência dos Correios e a casa Lotérica abrem suas

portas. Entretanto, entre as onze e quinze horas, a cidade é quase deserta. Só se movem os grupos de

estudantes indo e voltando dos colégios. O restante da população está dentro de casa, almoçando,

descansando, tirando uma soneca ou vendo TV. Só depois das dezesseis horas, quando o sol abranda

seu calor, a cidade movimenta-se novamente. Ao cair da noite, salpicam cadeiras de balanço nas

calçadas. A praça movimenta-se outra vez com grupos de jovens conversando e casais namorando.

Por volta das vinte e uma horas, a praça começa a esvaziar, mas perto das vinte e duas horas e trinta

minutos se movimenta novamente, com os estudantes que deixam o colégio. Exceto por alguns bares

que ainda estão abertos, à meia noite parece que toda a cidade dorme.

70 Vide Pierre Sanchis (1983), assim como Lea Perez (1994, 1996, 2002), para belas análises sobre as festas. 71 Existem em funcionamento duas quadras de esportes na cidade. Uma quadra coberta, que fica dentro do colégio municipal, e outra recentemente construída pela prefeitura, que fica na chamada “pista”, ou seja, na estrada que faz a ligação de Catingueira com Patos (BR 361). Além disso, há também o campo de futebol (não coberto, não gramado) que faz a diversão da cidade quando há campeonatos nas tardes de domingo. O futebol é o esporte mais popular na cidade. Com os torneios organizados pela prefeitura, incentivou-se a organização dos moradores em times, dentre os quais dois são femininos. 72 O transporte, feito de maneira ilegal, utiliza caminhonetas, geralmente compradas com o benefício de isenção de impostos para o proprietário rural. Na carroceria, são improvisados bancos de madeira para os viajantes. As caminhonetas são, na minha opinião, uma versão atual do “pau de arara” − afirmação com a qual meus informantes não concordariam, porque vêem neste transporte algo de moderno e eficiente. Na parte da frente da caminhoneta, − onde se viaja com mais conforto − viajam, em princípio, as pessoas que têm acesso à caminhoneta em primeiro lugar. No entanto, as mulheres e os idosos têm certa preferência. Parece-me que, entretanto, a possibilidade de viajar nos bancos da frente depende mais da relação que se estabelece com o motorista ou dono da caminhoneta (que nem sempre coincidem) e, principalmente, do status social daquela pessoa. Entre uma jovem professora da cidade e um idoso do sítio, a professora sentar-se-ia na frente e o(a) idoso(a) subiria na parte de trás. É preciso acrescentar que mesmo os que viajam na parte da frente não usam cinto de segurança. Algumas vezes vi as caminhonetas pararem de rodar por algumas horas em função do conhecimento de uma blitz da Polícia Rodoviária. Para a população, por sua vez, a proliferação das caminhonetas representa conforto, uma vez que o ônibus (transporte legal) só passa pela cidade de duas a três vezes por dia, em horários inconvenientes.

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Faz parte dos ritmos sociais catingueirenses o localmente chamado “tempo da política”,

sobre o qual Moacir Palmeira (1996, 2001) e Palmeira & Heredia (1995, 1997) discorreram

demoradamente. “A política está chegando” é frase que remete ao tempo social em que todas as

conversas começam ou terminam falando dos candidatos, em que não há silêncio possível devido

aos carros de propaganda, em que, enfim, todas as pessoas estão envolvidas no reavivamento,

destruição ou construção de novas alianças políticas. Gostaria de assinalar que as crianças também

estão incluídas no “tempo da política” de maneira ativa e efetiva.

Em 2005, subi a Serra da Catingueira, com mais ou menos umas quinze crianças. A subida

da Serra pode ser levada a cabo basicamente com o intuito de pagar promessa ou por diversão (sobre

a Serra serão fornecidas mais informações adiante). Naquele dia, na descida da Serra, não me senti

bem. As crianças perceberam que algo estava errado, mas não sabiam o quê. De minha parte, não

queria compartilhar a causa da minha “fraqueza” porque, naquele momento, eu era a responsável por

elas. Coincidiu que, na descida da Serra, elas vinham cantando as músicas dos seus candidatos

prediletos. Havia ‘eleitor’ para todos os candidatos, o que incentivava a competição entre as crianças

na forma de brincadeiras jocosas. Aconteceu que, um dia depois da subida da Serra, um grupo de

crianças − as que cantavam mais exaltadas as músicas da “política” − veio até a minha casa pedir-me

desculpas. Meu mau-humor, pensavam elas, era devido à cantoria entusiasmada da música de um

determinado candidato a prefeito que, por sua vez, não correspondia, segundo elas, à minha opção

de voto! Com isso, vê-se que as crianças também estão fazendo suas escolhas políticas e, ao mesmo

tempo, têm um aguçado faro para as opções alheias (A fotografia 13 CD anexo foi tirada nesta

ocasião, aos pés do cruzeiro de São Sebastião). Para mais um exemplo de como as crianças

envolvem-se na política, R. de treze anos, cujo padrinho “Zé Pelado” era candidato a vereador,

inventou o seguinte lema para incentivar na sua campanha: “Rim por rim vote no meu padim”!

“Rim” é a expressão oral de “ruim”, assim como “padim” corresponde a “padrinho”. O lema da

menina, para além de seu sentido humorístico, tece uma crítica social aos políticos de modo geral.

Para ela, todos os políticos são ruins. Ela adverte: se é assim, opte por alguém que você conheça.

Sua mensagem é clara: dada a atual conjuntura, em que nenhum político é confiável, vote no meu

padrinho, porque este, eu conheço.

De todas as crianças que desenharam em quem elas votariam, apenas uma delas, de seis anos

de idade, relutou entre dois candidatos a prefeito. Todas as outras crianças tinham feito previamente

as suas opções entre os candidatos daquele ano e as sustentavam com energia. Estas opções

geralmente coincidem com a dos seus pais, mas nem sempre. Quando perguntadas as razões para

votar em determinado candidato, as crianças enfatizavam, em primeiro lugar, algum grau de

parentesco. Se não há nenhum grau de parentesco, um bom candidato é aquele que “dá as coisas ao

povo”; em outras palavras, aquele que não nega ajuda. A ajuda pode ser endereçada à comunidade

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de modo geral, como na redação de L. 12. F: “Eu gosto da dona Zuila porque ela dá muitas coisas

aos pobres, dá ajuda a quem precisa (...) Ela dá feira de material escolar, dá material de

construção de casa.” Mas muito constantemente, a ajuda é pessoal e especificamente direcionada à

família daquela criança. R. 12. F escreve: “Se eu fosse votar, eu votaria em Edivan. Porque ele vai

fazer a casa da minha mãe. Se eu fosse votar para vereador, eu votaria em Dr. Humberto, porque

ele conseguiu a aposentadoria da minha mãe”. A. 11. F sintetiza bem as duas grandes razões para se

votar em um candidato, quais sejam, ligação de parentesco e generosidade por parte do candidato:

“Para prefeito (...) eu voto em Edivan porque, a primeira coisa (...) ele é nosso primo e já ajudou

muito a nossa família”.

Razões para não votar em um candidato vão de uma simples antipatia pessoal a promessas

não cumpridas, mas a principal razão é a falta de “generosidade” para com o povo. S. 12. F,

escreveu: “Eu não gosto dela [uma candidata a prefeito] porque um dia, vó foi pedir não sei o que,

aí ela disse que não dava. Aí vó e mãe não votam nela. Ela é muito falsa. Como ela quer que alguém

vote nela? Ela não fez nada para ninguém. Eu acho que quando ela era do lado do Dão [ex

prefeito], não dava nada para ninguém, nem um centavo”. Esclareço que os bens que os candidatos

distribuem através de critérios seletivos são, na verdade, bens de natureza pública – dentre os quais

podem estar incluídos uma viagem da ambulância da prefeitura para levar uma criança doente até o

hospital em Patos, a inscrição em um programa de benefício do governo federal como o Bolsa-

Escola ou, inclusive, a facilitação da aposentadoria como trabalhador da agricultura. G. 7. F

escreveu “Eu voto nele porque foi ele que deu óculos de mãe, e porque ele deu a chapa de mãe”

(chapa é o mesmo que dentadura). Ou ainda T. 9. F “Eu não gosto do Edivan porque ele, em vez de

dá o dinheiro aos pobres, ele faz festa”. Parece-me que o político bom é político da família e, além

disso, é aquele que distribui dinheiro ao povo. Isso até uma criança de seis anos de idade já sabe. C.

6. F., ainda elaborando que tipo de bem participa neste “jogo da generosidade”, escreveu: “Eu

votaria nele porque ele é meu pai. E também quando ele recebe dinheiro, ele me dá um real.

Quando ele promete que dá qualquer coisa a mim, ele cumpre”. Interessante ressaltar, por último,

que as razões para a escolha de um determinado candidato político, segundo as crianças, parecem

não diferir daquelas dos adultos.

Quanto à geografia interna, a Rua da Cerâmica é o lado escuro e, podemos assim dizer,

criminoso da cidade. Curiosamente, é a rua tida como a mais pobre, com o maior número de casas

de taipa. Ali não há iluminação pública, calçamento ou rede de esgoto. Em geral, as pessoas têm

vergonha ao dizer que moram naquela rua. Como as casas são distantes uma das outras, na escuridão

da noite, a Rua da Cerâmica torna-se “perigosa”. Certa noite, passei naquela rua com um jovem

amigo e vimos um carro com o porta-malas aberto estacionado um pouco além da estrada de terra,

dentro do “mato”. Meu amigo ficou muito preocupado e pediu que acelerasse o carro, com medo de

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que se tratasse de assaltantes ou vendedores/ consumidores de drogas. Quando chegamos à cidade,

ele foi direto para a delegacia avisar aos policiais do fato. Os policiais checaram o que estava

acontecendo, reportando ao meu amigo, com um sorriso malicioso nos lábios, se tratar de um

morador da Rua da Cerâmica com a sua namorada. O porta-malas aberto tinha como objetivo

simular uma pane mecânica do carro73.

A Rua do Açude é também tida como pobre, mas goza de reputação festeira − talvez por sua

proximidade com o açude, ponto de lazer para rapazes e moças mais “atiradas”. Ali, beber é uma

constante, e namorar, também. A Rua do Olho d´água já foi considerada o “fim do mundo”, mas

hoje, com a construção de várias “casas boas” (julgamento êmico que se refere, dentre outras coisas,

ao fato de ter sido usado tijolo na sua construção), é tida como um lugar bom de se morar. Apesar de

não ser central, é perto do Olho d´água. Uma rua silenciosa não é uma rua considerada boa de se

morar, porque ela seria uma rua “esquisita”. Em Catingueira, quando a cidade está parada, isto é,

quando não há nenhum tipo de som ligado, diz-se que a cidade ou o dia está “esquisita(o)”. Estar

esquisito significa estar silencioso, o que não é considerado agradável. Muitas pessoas reclamam de

morar no sítio justamente porque “no sítio é muito esquisito” 74.

O Alto é um conjunto de ruas sem urbanização, iluminação ou rede de esgoto. Como a Rua

da Cerâmica, é tido como lugar de gente pobre, mas sua particularidade é ser lugar de muita

confusão e brigas. No entanto, é preferível morar no Alto que na Rua da Cerâmica – considerada

erma e, por isso, como já afirmei, perigosa. Ali, ao contrário da Rua da Cerâmica, há uma grande

concentração de casas, o que desestimula as atividades ilícitas, ao mesmo tempo em que estimula as

brigas familiares e entre os vizinhos. A Pista é o lugar onde está a prefeitura, os postos de saúde, a

padaria e os maiores bares. É por onde passam o ônibus e as caminhonetas que fazem o transporte de

73 Veja o que D. C., uma senhora de aproximadamente sessenta anos, moradora da Rua da Cerâmica disse: “Às vezes eu num vou pra igreja por que aí num tem luz, é no escuro, mas o menino botou lâmpada. Tava jogando umas pedras... [Quem?] Quem sabe? Um malfazejo ruim. Num tá vendo, minha fia, como essa rua aqui como é. Aqui é esquisito, tu num tá vendo não, que é esquisito? É mesmo que um sítio, menina! Olhe, de primeiro eu falava os povo: ‘vocês vende tanta as coisas aqui na rua. Na rua da Cerâmica que a gente é pobre, mas às vezes a gente compra umas coisa. Às vezes passa uma pessoa, tá com precisão a gente compra’. Pense, menina, aqui num andava ninguém. Aí, agora eles passa” (PIRES 2003: 16). Sobre o conceito “esquisito” vide a seguir. 74 Com isso, podemos começar a entender o que sempre me causou muita estranheza durante os meses em que vivi na cidade. O volume da música que se ouve em Catingueira, seja nos bares, casas ou alto-falantes dos carros é altíssimo, especialmente nas festas. No entanto, as pessoas não parecem se incomodar em absoluto. É natural que os jovens gostem do barulho, mas nunca consegui encontrar ninguém da cidade, por mais idoso que fosse, que preferisse o som desligado. As pessoas parecem simplesmente não se incomodar ou, eu diria, parecem até mesmo gostar do som alto. Isso só pode ser entendido, mesmo que parcialmente, se pensarmos na categoria nativa “esquisito”, que foi apresentada acima. O silêncio é esquisito e indica alguma coisa que está parada no tempo e no espaço. Não desenvolve, não cresce, não gera dinheiro. Parece que a música – e quanto mais alta melhor − é um signo do progresso, que vem em forma de alegria e conseqüente bebedeira, festa, dança. Posso dar um exemplo: O Coreto, um bar na região central, geralmente fica com as portas fechadas em dias de semana. Mas quando a prefeitura faz o pagamento, ou quando os rapazes que vendem sapatos pelas cidades voltam a Catingueira, o Coreto sempre abre suas portas. Não importa qual seja o dia da semana. E de Coreto aberto, subentende-se música tocando. A título de informação, a música que se escuta em Catingueira é, basicamente, o chamado “forró brega”, com o qual as bandas Calcinha Preta, Cheiro de Menina, Kalipso, Gaviões do Forró, Magníficos, Limão com Mel etc. fazem grande sucesso. Resta dizer que os carros de som dos candidatos, na época da política, não fugiam à regra do volume excessivo.

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passageiros e cargas. Pela Pista, a cidade recebe os visitantes − entre eles, os “filhos-ausentes”. O

Coreto é um bar na região central. É perto dali que acontecem as festas públicas (a casa onde eu

morei fica de frente para o mesmo). No centro da cidade (também chamado “a rua” - vide nota 73 -

ou “a cidade”) está a igreja Católica e, à sua volta, uma praça. O prestígio da localização das

residências é medido, em parte, pela sua distância em relação à igreja Católica. O Centro Espírita

está localizado em uma rua periférica próxima ao centro. A igreja Assembléia de Deus está

localizada no caminho para o Açude do Prefeito, distante do centro, enquanto a igreja

Congregacional fica na mesma rua da igreja Católica. E, finalmente, a igreja Seguidores de Cristo

fica localizada na Rua da Cerâmica.

O Açude dos Cegos abastece a cidade de Catingueira e todas as cidades vizinhas. Além disso,

é usado para lazer, pescaria e irrigação das terras próximas. O açude do Prefeito, por sua

proximidade com a cidade, é usado para lavar roupa, cavalos, jegues, carros e para o lazer

masculino, especialmente infantil. Catingueira conta com quatrocentas e vinte propriedades rurais

chamados de “sítios” (informação do Incra com base em Catingueira referente ao ano de 2005). “Ser

do sítio” – não importa qual –, em oposição a morar na cidade, é tido como marca indelével e

justificativa para o fracasso ou estupidez. Se um menino do sítio tem dificuldades em aprender a ler,

sua professora dirá: “ah, é do sítio”, lavando suas mãos.

A Serra da Catingueira também faz parte do painel geográfico da cidade. Ela é cantada nos

versões de Inácio da Catingueira, nas músicas do grupo O Cordel do Fogo Encantado75 e na

saudade dos catingueirenses. Inácio da Catingueira é considerado um dos maiores repentistas de

toda a história. Ele nasceu em uma fazenda na região onde hoje fica Catingueira. Era negro, escravo

e analfabeto mas, com sua astúcia e inteligência, foi capaz de derrotar Romano do Teixeira,

repentista também afamado, porém branco, livre e formalmente educado. A peleja entre os dois

cantadores teria durado oito dias e oito noites sem intervalos (NUNES 1979: 19; SÁTYRO 1979:

129). O “gênio negro do sertão” morreu no ano de 1879 (NUNES 1979: 15). Os catingueirenses

exaltam o nome de Inácio e a sua ligação com aquela terra sempre que é preciso afirmar as

particularidades da sua gente. Na praça da cidade, há uma estátua de Inácio em tamanho natural com

o seu pandeiro na mão − instrumento pouco usual nos repentes naqueles tempos.

Na Serra, foram instalados dois cruzeiros. Um em homenagem a São Sebastião, no alto da

Serra e, outro, no meio, em homenagem a Santo Antônio. No Cruzeiro de São Sebastião, há uma

“casinha” de tijolos, onde são deixados ex-votos e acendem-se velas. Subir a Serra é um

divertimento para a população jovem, principalmente na época da festa do padroeiro. Os grupos

geralmente sobem a Serra ao nascer do dia, por volta das quatro ou cinco horas, para não se expor ao

75 Sobre a música, vide como exemplo, Cordel Estradeiro do já referido grupo Cordel do Fogo Encantado.

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sol muito forte. Geralmente, vão munidos de bebida alcoólica e comida, onde a farofa/ cuzcuz com

galinha é altamente apreciada. Os rapazes e as moças, muitas vezes, depois de passarem a noite no

baile, sobem a Serra quando a “barra do dia” começa a aparecer. Cansados, descansam tirando uma

soneca no alto da Serra, onde é sempre “frio”, em virtude do vento. Existe até uma comunidade no

site “orkut” chamada “Já subi a Serra de Catingueira”, atestando a popularidade do passeio. Nos

meses de chuva, a chamada Cachoeira da Mãe Luzia fica cheia de água, propiciando deliciosos

banhos em dias quentes. A Mãe Luzia é um poço de pedras que fica desoladamente vazio em tempo

de seca. Mas quando chove, todos os pocinhos se enchem, fazendo a festa de quem sobe a Serra.

Quando o poço da Mãe Luzia está muito cheio, ele “sangra”, ou transborda, donde o nome de

cachoeira. Diz-se que Mãe Luzia era uma mulher que morava no alto da Serra e, um dia, estava

lavando roupa naquele poço quando foi comida por uma onça. (Para uma fotografia do Poço da Mãe

Luzia cheio, vide Fotografia 14 no CD anexo).

Os locais, muito constantemente, quando sobem a Serra, levam fogos de artifício para soltar

quando alcançam o seu cume. Os fogos de artifício atestam o grande feito e, ao mesmo tempo, dão

graças a São Sebastião. Se as pessoas escutam fogos de artifício pela manhã, elas dirigem o olhar

para o alto da Serra, tentando identificar quem está a soltar aqueles “foquetões” para santo. Muitas

vezes, elas sabem quem está lá em cima porque a notícia de que um grupo vai subir a Serra na

manhã seguinte corre ligeira. Também sobem constantemente a Serra, com seus cachorros bravios,

os caçadores. Nela, encontram alimento para o consumo familiar ou para o comércio76. Há ainda

famílias que moram na Serra, vivendo da extração e venda de pedras e, durante o inverno, da

agricultura. Os membros destas famílias são acostumados a subir a Serra com rapidez e, mesmo com

a dificuldade, as crianças não deixam de freqüentar a escola. Demora-se em média uma hora e trinta

minutos para a subida e uma hora para a descida, em ritmo moderado. Subir a Serra, enfim, é tido

como um grande feito, recordação para a vida toda, atividade para jovens ou para quem se endividou

com o santo e precisa pagar promessa. (Sobre a Serra vide: fotografias números 12, 13, 14 e

Desenho Temas Variados números 1, 3, 6, 8, 10 no CD anexo. Vide também um mapa da cidade

feito por uma criança no CD anexo, desenho 9 J. 8. M. Cidade de Catingueira, no arquivo de nome

Desenhos Temas Variados). Na Serra, também está localizada a Furna, uma caverna na qual nunca

ninguém conseguiu alcançar o fim. Sobre a Furna e seus mistérios, reporte-se ao Índice de

referências de mal-assombros (Carneiro de Ouro) no Anexo 1.

76 Das minhas primeiras memórias de Catingueira, lembro-me da negociação de um tatu morto, entre um caçador e meu pai. Na época, eu tinha oito anos de idade.

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3. O que é ser criança em Catingueira?

3. 1. A criança pequena Certa vez, no ano de 2005, durante a missa de sétimo dia do vice-prefeito, uma criança de

aproximadamente três anos de idade ligou um daqueles brinquedos que imitam os diferentes toques

de um celular. A atmosfera da missa era solene e pesarosa, já que o defunto era o jovem vice-

prefeito que morrera tragicamente num acidente automobilístico. Ao contrário da minha expectativa,

ao invés de repreender a criança, seus pais, especialmente a mãe, começaram a sorrir, como se

estivessem orgulhosos do filho. Ela olhava para os lados convidando toda a gente, que se comprimia

dentro da igreja cheia, a apreciar o momento, como se se tratasse de um espetáculo. E, de fato, as

pessoas ao redor começaram a sorrir entreolhando-se, balançando afirmativamente a cabeça,

aprovando a atitude do pequeno. Não percebi nenhum sinal de desconforto frente ao barulho que a

criança fazia, exceto por minha parte! Em Catingueira, as crianças pequenas não são consideradas

capazes de compreensão do mundo. Ninguém realmente entende o que se passa pelas suas

cabecinhas. Da mesma forma, não se espera que elas comportem-se bem. E, talvez por isso, toda a

gente reconheça graça e pureza nos gestos e palavras das crianças pequenas. Não é à toa que, se uma

criança pequena morre, acredita-se que ela vá diretamente para o céu – exceto quando não foi

batizada, segundo os católicos. Porém, o batismo também pode ser realizado pós-morte, restaurando

o equilíbrio necessário para a aceitação daquela alma no céu. Ela “é um inocente”, como se diz em

Catingueira, daquele que não possui pecados.

Há, de modo geral, uma grande condescendência em relação às birras e choros infantis,

principalmente em relação às meninas. Isso dura até mais ou menos os cinco anos de idade, quando

atitudes como estas são desencorajadas. Em geral, os meninos são tratados com mais rigor que as

meninas, e espera-se que sejam mais fortes e demonstrem menos as suas fragilidades (como chorar).

Por diversas vezes, observei as reuniões religiosas infantis77 serem interrompidas para se dar atenção

àquela criança pequena que caíra, chorara, ou, simplesmente, fizera algo considerado “mimoso”. Da

mesma forma, observei que o cuidado com a criança é tanto mais carinhoso quanto mais nova ela é –

assim como é mais observado, aceito e requerido por crianças do sexo feminino em detrimento das

crianças do sexo masculino. Demonstrações de carinho para com meninos só são observadas

enquanto o menino ainda é muito pequeno; no máximo, até por volta dos cinco anos de idade.

77 Que são o catecismo e a reunião da Infância Missionária para os católicos, a reunião dominical para os evangélicos e a reunião das crianças, no caso do espiritismo. A Infância Missionária é, junto ao catecismo, uma das atividades especificamente criadas para as crianças dentro do catolicismo. Em Catingueira, a Infância Missionária é particularmente bem sucedida, chegando a ultrapassar o número de crianças do catecismo. Um dos motivos é a popular “gincana” organizada anualmente pela Infância Missionária (vide fotografia 17 no CD, Anexo 2).

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Como a sociedade pensa a criança de três e quatro anos de idade? Muitas vezes, a criança

pequena faz as vezes de “brinquedo” para as outras crianças e de objeto de diversão para os adultos.

Para além do exemplo citado anteriormente da criança com o brinquedo na igreja, outro é o das

meninas que vão pelas casas “mostrando” os bebês da vizinha, da prima ou da irmã. Muitas vezes

estava na minha casa, quando aparecia uma menina (algumas vezes acompanhada de uma amiga)

carregando um bebê nos braços. A menina vinha “mostrar” a mim a criança. É muito comum ver os

bebês circulando pela cidade nos colos de meninas. Ao ver um bebê no colo de uma menina,

geralmente esboça-se um elogio − mas não muito entusiasmado, porque o elogio é uma maneira

comum de se colocar mal-olhado78. Depois, pergunta-se de quem é aquele bebê. Com esta pergunta,

quer-se, de fato, saber quem é a mãe. Se a pessoa não identifica os pais do bebê logo de imediato, a

menina vai dar mais informações sobre eles: por exemplo, quem são os seus vizinhos, de quem são

filhos, onde ou com que trabalham. Identificados os pais do bebê, a conversa mirra. A menina, por

sua vez, vai à outra casa “mostrar” o bebê, até que ela se canse ou o bebê apresente comportamento

muito inadequado como, por exemplo, se ele começar a chorar ininterruptamente. Parece que as

crianças em Catingueira são igualmente tidas como propriedade da comunidade e dos seus próprios

pais. (Adiante, serão fornecidas mais informações sobre a residência infantil – que parecem, em

alguma medida, confirmar esta hipótese). Em Catingueira, um bebê vai com facilidade para os

braços de outras pessoas que não são da própria família ou responsáveis diretos pelo seu cuidado.

No entanto, um bebê não é visto nos braços de qualquer um. São, geralmente, meninas na faixa

etária dos nove aos treze anos de idade, que circulam pelas casas mostrando os bebês, ou seja,

meninas novas demais para serem mães, e velhas demais para brincarem de bonecas. Esta menina −

é importante ressaltar− é uma conhecida da família. Ela pode ser uma parenta, mesmo que distante,

como uma prima de terceiro grau, ou mesmo uma vizinha. Ou seja, ela é “de confiança”. O fato é

que os bebês mesmo bem pequenos (com um mês) já passeiam pela cidade sem a companhia de seus

respectivos pais. Outro fato interessante é que o bebê é acordado sem dó para que possa ser

apreciado − principalmente se tem os olhos claros. A menina que carrega o bebê vai fazer de tudo

para que ele acorde quando o está mostrando, como bater de leve na sua bochecha, sacudi-lo,

chamar seu nome em voz alta perto do seu ouvido. A vontade dos bebês parece estar submetida à

vontade dessas meninas e dos adultos.

78 Ignorante desta regra, sempre elogiava sobremaneira os dons culinários da cozinheira e o sabor da comida, quando era convidada para o almoço ou o jantar. Comecei a perceber aos poucos um certo constrangimento quando o fazia, e só fui entender completamente que não se deve elogiar por demais uma comida muito posteriormente. Da mesma forma, uma mãe não espera ouvir elogios quanto à beleza ou inteligência de um filho. Curiosamente, até mesmo uma mãe pode colocar mau-olhado no seu próprio bebê. Ouvi uma mãe dizer, sorrindo, que tinha medo de colocar mau-olhado no seu próprio filho pelo fato de amá-lo e mimá-lo demasiadamente. Sobre o mau-olhado, o olho mau ou ruim vide Otavio Velho (1995a: 23).

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79

Mostrar os bebês implica em divertimento para as meninas envolvidas na atividade. Às

vezes, elas são chamadas a tomar café ou comer um doce na casa por onde passam79. Mas o simples

fato de entrar em outra casa já é diversão suficiente para a menina pré-adolescente ou adolescente. O

bebê em suas mãos é como um brinquedo e, por isso, digo que as crianças pequenas são objeto de

diversão para os adultos (que se riem deles, como no exemplo da igreja) e de brinquedo para as

crianças. Não posso deixar de mencionar uma antiga recordação do trabalho de campo do ano de

2000, quando seguia o cortejo fúnebre de um anjinho. As pessoas, de suas janelas, paravam o

pequeno séqüito e pediam que levassem o caixãozinho até elas. Queriam “olhar” o bebê morto. Era o

próprio pai do anjinho quem o fazia. As pessoas olhavam o pequeno com dó e curiosidade e, às

vezes, perguntavam: “morreu de que?”. Note que ter um anjinho no céu é tradicionalmente tolerado

pelas famílias, como forma de ter acesso privilegiado aos bens espirituais. As mães consolam-se

com a morte de um bebê pela certeza de ter alguém no céu a olhar por ela e pela família que fica na

terra. Talvez chamem este bebê de anjinho justamente porque ele ignora o mal. Para descrição do

funeral de um anjinho na cidade de Catingueira vide Flávia Pires (2003: 13/14). Quando pedi a S.

12. F que desenhasse o seu anjo da guarda, ela desenhou a sua irmã, que morreu ainda bebê. Ela

expressa carinhosamente o pesar de não tê-la conhecido e, ao mesmo tempo, a alegria de ter como

anjo da guarda a sua própria irmã. “O meu anjinho ela é a minha irmã. Ela morreu, mas ela vai ser

sempre a minha irmã e o meu anjo. Ela morreu quando ela era criança, deu uma disenteria, ai ela

morreu. Eu era muito pequena, gostaria de ter conhecido ela. Adoraria muito de conhecer ela, por

isso escolhi ela. Eu adorei ela mesmo que eu não conheci, ela é o meu anjo”80.

Contudo, se de um lado é permitido “usar” o irmãozinho como brinquedo, de outro lado, a

tarefa de “pajear” as crianças pequenas é geralmente destinada à irmã mais velha. A função pode ser

exercida pelo irmão mais velho, no caso da falta de uma irmã em idade adequada para a tarefa. No

entanto, é mais provável que ela vá ser exercida por uma criança do sexo feminino: uma prima ou

uma vizinha. Muitas vezes, é a presença dessas meninas que permite que a mãe do bebê trabalhe

fora de casa. O caso descrito acima, em que as meninas vão mostrar os bebês, pode ter lugar, por

exemplo, na volta de uma visita regular ao posto de saúde. É importante lembrar que o cuidado das

crianças pequenas geralmente está sob a tutela das crianças mais velhas − geralmente, meninas81. As

crianças pequenas sempre acompanham os irmãos mais velhos – ou, mais constantemente um deles, 79 Às visitas importantes são oferecidos doce e/ou café. O doce é sempre acompanhado de um copo de água − de preferência, gelada. É comum ouvir: “vou comer um doce para tomar água” ou “come um doce para tomar água”. Os doces muito apreciados na região são o doce de leite, de gergelim e de frutas como manga ou mamão verde, que podem ser cozidos com açúcar ou rapadura. 80 Para outra análise sobre a morte dos anjinhos vide Scheper-Hughes 1992. 81 Mead e Bateson (1942) descrevem atitudes similares em Bali entre as crianças menores e as meninas maiores. “Child nurse. The major which small girls play in social life is as nurses. Chiefly they carry around their own younger siblings, but if there is no other baby in the town where a girl lives, she will borrow other babies to carry. There is a great deal of interchange of babies so that, though a baby may leave home in the hands of one girl, it will pass through the hands of many others before one of them brings it back to the mother”. (MEAD & BATESON 1942: 212).

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aquele responsável pelas crianças. Assim, espera-se evitar que o irmão mais velho faça alguma coisa

da qual esteja proibido e, ao mesmo tempo, espera-se que ele tome conta do menor ou dos irmãos

menores. Muitas vezes, essas crianças pequenas vão, por exemplo, para o catecismo, porque o irmão

ou a irmã mais velho (a), responsável por tomar-lhe conta, está se preparando para a primeira

eucaristia. Neste caso, a família acha bom que a criança pequena já vá aprendendo alguma coisa

sobre religião. No entanto, nem os pais, nem as outras crianças, nem as professoras esperam que eles

entendam o que se está tratando no catecismo. Destas crianças pequenas não se exige que falem,

rezem ou mesmo comportem-se bem nas reuniões de religião.

3. 2. Organização doméstica Aos cinco ou seis anos de idade, uma criança é chamada a assumir certas tarefas domésticas.

No caso de meninas, muito constantemente elas são responsáveis por lavar “os troços”, ou seja, a

louça do almoço ou da janta − por vezes, ambas. Também são responsáveis por lavar a sua própria

roupa e, às vezes, ajudar a mãe ou a irmã mais velha a lavar a roupa da família (isto é, dos membros

familiares do sexo masculino e dos bebês, já que elas são responsáveis por lavar a sua própria roupa

desde pequenas). Quando se trata de uma família pobre e numerosa, a roupa é lavada no açude,

geralmente pela mãe da família. Exceção ocorre quando ela se encontra enferma: neste caso, lavar a

roupa da família passa a ser obrigação da irmã mais velha. No caso de uma família pobre, mas pouco

numerosa, a roupa pode ser lavada na própria casa, desde que se conte com água encanada e os

meios de pagar a conta do fornecimento da água, ao fim do mês. No caso de famílias consideradas

ricas, a roupa também pode ser lavada no açude, mas o serviço será contratado de outra mulher fora

do círculo familiar. Outra tarefa das meninas é varrer a casa e passar o pano. A última tarefa aplica-

se apenas quando a casa não possui piso de barro. Ainda, as meninas são chamadas a buscar água na

nascente, no olho d´água ou no açude, com o auxílio de latas de metal. No caso de crianças nesta

idade (cinco ou seis anos), a lata utilizada para carregar a água é de proporções reduzidas. As mães

geralmente carregam a água nas latas de tinta reutilizadas cuja capacidade é de vinte litros, enquanto

as crianças transportam a água nas mesmas latas reutilizadas − mas menores, as de cinco litros82.

82 As meninas de variadas idades muito constantemente pediam para arrumar a minha casa e lavar as minhas vasilhas. Algumas delas disseram-me que gostavam mais de fazer o serviço da casa que de desenhar ou ir para o colégio. Sentia-me incomodada de vê-las trabalhando na minha casa, mas elas insistiam para que as deixasse fazer as tarefas. Algumas vezes, deixei. Muitas vezes, quando fazíamos alguma refeição juntas, tão logo acabávamos elas levantavam-se da mesa e iam direto para a pia lavar as vasilhas. Faziam como que automaticamente e sem o mínimo constrangimento, como se não houvesse nada a fazer naquele momento senão aquilo. Às vezes, dizia “não”, e elas vinham com uma ladainha de por quês. Pedindo que as deixassem fazer, que elas gostavam, que elas queriam… Argumentava que já as tinha ouvido reclamando do serviço da casa. Elas replicavam, dizendo que queriam fazer porque era na minha casa e para mim. O fato pode ser parcialmente entendido se pensarmos que, em relação a uma parenta por volta dos vinte anos, o dever de lavar as vasilhas será da menina mais nova que more na mesma residência − porque a atividade é tida como fácil dentre os outros serviços domésticos. E, neste caso, fui colocada no papel de mulher mais velha. Mas há outras considerações a fazer. Um fato é que a casa desarrumada e as louças por lavar depositadas na pia depõem contra a dona da casa – e,

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O serviço doméstico é sempre feito o quanto antes possível, sempre na parte da manhã.

Geralmente, a primeira de todas as tarefas é acender o fogo. A maioria das casas usa a lenha ou o

carvão pra cozinhar. Muitas casas têm fogão a gás, mas o preço do gás em botijão é tido como

empecilho para o seu uso cotidiano. Em muitas casas, o fogão a gás funciona como peça decorativa,

muitas vezes colocado na sala, outras vezes na cozinha que fica dentro da casa − a qual não é usada.

Geralmente, o fogão a gás não fica perto do fogão a lenha ou carvão para evitar que a fumaça o torne

inapelavelmente preto. Ter um fogão a gás, mesmo que não sendo utilizado, é sinal de status social.

A verdadeira cozinha, isto é, onde se faz a comida, fica geralmente do lado de fora da casa, num

“puxadinho” ou numa espécie de tenda especialmente feita para comportar o fogão a lenha ou

carvão. É nele que a comida é preparada, e geralmente é lá mesmo onde as pessoas comem no dia-a-

dia. Acredita-se que a comida preparada no fogão à lenha é mais saborosa e mais nutritiva. Por fim,

muitas casas usam uma espécie de estrutura de metal sustentada por um tripé, chamado de

“fogareiro”, para cozinhar. No fundo do tripé, depositam o carvão. O fogareiro comporta apenas

uma panela. O uso difundido do fogareiro justifica-se na medida em que não é incomum as famílias

alimentarem-se apenas de feijão com farinha. O fogareiro é a maneira mais econômica de cozinhar,

dado que utiliza o combustível necessário para apenas uma panela. Como ele fica no chão, para ser

capaz de manuseá-lo a cozinheira adulta precisa abaixar-se de cócoras, mas no caso de uma

cozinheira criança (na faixa dos dez anos de idade), a panela alcança a altura das mãos. Embora a

altura da brasa seja fixa, em alguns destes fogareiros a altura da panela pode ser regulada, mantendo

a comida quente − mas sem cozinhá-la por demais. Pode-se colocar a panela mais ou menos perto da

brasa. Ainda, em algumas casas usa-se para cozinhar apenas uma pilha de tijolos ou pedras no chão,

em algum cantinho ao ar livre, mas preservado do vento. Neste, igualmente faz-se o fogo com

carvão ou lenha.

Por volta das nove horas da manhã a arrumação da casa já deve estar concluída para se

começar a preparar o almoço, que ficará pronto entre as dez e onze horas. Se há duas crianças do

talvez, elas zelassem pela minha imagem social. Outra razão é que na minha casa os serviços domésticos eram feitos de maneira diferente da maioria das casas da cidade e, com isso, talvez para elas, o serviço soasse divertido. Eu lavava os “troços” na pia, ao invés de utilizar a torneira perto do chão do lado de fora da casa. E usava detergente líquido, e não sabão. As meninas sempre se mostram prestativas quando era hora de varrer a casa e passar o pano. Em muitas casas, no entanto, não se passa o pano molhado, porque o chão é de barro. É interessante citar que essas meninas varrem o chão de barro da sua casa de cócoras com o auxílio de ramos de massambê que, juntos, dão a forma de uma vassoura, mas sem o cabo. Na minha casa, o chão de cerâmica era limpo com um rodo e um pano molhado. Não foram apenas as crianças que me ofertaram ajuda doméstica. As mocinhas e as moças também se ofereciam para ajudar-me na lida, ou “luta”, da casa. Uma delas, de quinze anos, sempre me dizia que mandasse chamá-la quando fosse lavar a casa. As moças da minha idade também tinham atitudes parecidas e uma, em especial, oferecia-se para lavar minhas peças de roupa grandes no açude. (Por exemplo, redes, toalhas de mesa e banho, lençol. Peças pequenas e delicadas são lavadas preferencialmente com água encanada, porque correm o risco de ser manchadas com água do açude). Por outro lado, há certa dose de diversão envolvida na arrumação da casa, principalmente se a atividade é feita com a ajuda das amigas. Não é incomum estar entre amigas a arrumar a casa umas das outras. Neste momento, as meninas se divertem. Conversam, riem muito, escutam música e dançam. As mães, no entanto, geralmente reclamam da arrumação coletiva, dizendo que elas demoram muito tempo, e que o serviço fica mal feito.

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sexo feminino em uma família e crianças pequenas para se “pajear”, a mãe encarregar-se-há do

almoço, e as meninas encarregar-se-hão de cuidar dos irmãozinhos e do serviço da casa. De todas as

atividades domésticas, a preparação da comida parece ser a última a ser estendida às crianças,

permanecendo como atividade destinada à mulher casada. Por exemplo, numa família onde há

apenas a mãe idosa, uma filha por volta dos vinte e cinco anos e um filho por volta dos trinta anos, a

mãe será a cozinheira. A filha sabe muito bem como cozinhar, mas esta tarefa ficará a cargo da mãe

– até que ela se torne inválida ou faleça. Expus anteriormente (nota 82) que as meninas sempre se

mostravam ansiosas por ajudar-me na “luta”83 da casa; no entanto, nenhuma menina nunca ofereceu-

se para cozinhar. Fazer a comida parece ser o serviço reservado para as mães ou, pelo menos,

derradeiramente passado para as filhas. Avançando um pouco, diria que comer é uma atividade

reservada, feita no íntimo da família, no ambiente de casa mais distante da porta da rua. Não se

come nas ruas, assim como não se oferece comida para os visitantes assim que eles chegam à sua

casa. Há que ser visita íntima ou importante para ser convidado a tomar parte na mesa das refeições.

As crianças do sexo masculino começam a trabalhar mais tarde que as meninas, porque seu

trabalho é, geralmente, feito fora da casa. No entanto, na falta de uma menina, eles podem ajudar a

mãe ou a irmã mais velha nas tarefas domésticas consideradas femininas, como cozinhar, lavar e

passar a roupa e lavar as louças. No entanto, nunca vi um garoto buscando água com os latões na

cabeça. Mas se a família possui um jumento ou uma carroça, a atividade de buscar água passa a ser

essencialmente masculina, pela qual os meninos são geralmente responsáveis. No entanto, exercer

cotidianamente atividades domésticas femininas pode gerar prejuízos para a imagem social do

menino. Ele pode ser vítima de troça pelos colegas e de preocupação com o seu futuro papel social

enquanto homem pela sociedade em geral. Em compensação, embora raro, um rapaz que saiba “se

virar” no caso de uma necessidade, isto é, que saiba cozinhar e tomar conta de uma casa, é apreciado

como um futuro bom marido.

Em contrapartida, um menino acompanha seu pai ou irmão mais velho em atividades

consideradas masculinas. Se o pai da família sai para pescar, é esperado que o garotinho lhe

acompanhe, ajudando a carregar os instrumentos, observando o pai e aprendendo a atividade.

Acompanhar o pai ou os irmãos mais velhos é uma atividade prazerosa da qual o garoto se orgulha.

Da mesma forma, um pai pode levar os filhos para ajudá-lo quando sai para trabalhar na roça. Os

filhos maiores são pagos, pelo empregador, de acordo com o salário corrente; as crianças são pagas

tendo em vista sua menor capacidade de produção. Crianças de cinco ou seis anos não são

contratadas, mas já podem substituir o pai se ele estiver cansado, propiciando-lhe algum tempo de

83 Muitas vezes ouvi donas de casa desculpando-se por não poderem ficar de bate-papo com as vizinhas porque tinha “muita luta lá dentro!”.

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descanso. Ainda, é sempre uma criança do sexo masculino que leva o almoço e a água do pai e dos

irmãos mais velhos quando estão trabalhando na lavoura84.

Em Catingueira, as crianças de ambos os sexos também são consideradas muito úteis para

levar recados e informações ─ papel igualmente destacado por Cohn (2000) no seu estudo sobre as

crianças Xikrin. Naquele contexto, as crianças têm acesso às unidades familiares com muito mais

facilidade que os adultos, e por esta vantagem, diz-se que “as crianças tudo sabem”. Onde fiz a

pesquisa de campo, além de levar recados, as crianças são mandadas para realizar compras quando a

família está em dia com a venda. Geralmente, as compras nos mercadinhos não são feitas em

espécie, independentemente de o comprador ser um adulto ou uma criança. O dono do mercadinho

anota o valor gasto em uma caderneta ─ o qual deverá ser pago assim que a família receba o salário

ou benefício do governo federal a que tem direito. No caso de atraso do pagamento da conta do

mercadinho, o chefe da família, a mãe ou o pai, de acordo com a capital social que dispõe,

comparece para negociar o crédito e possibilitar a nova compra. Uma criança, em princípio, não

poderia negociar crédito. Se, por exemplo, o pai da família é tido como um alcoólatra, a mãe irá à

venda. Da mesma forma, pagamentos de benefícios governamentais, como a Bolsa-família,

destinados à família ou às crianças, não são entregues ao pai ou mãe tidos como irresponsáveis. Os

pagamentos dos referidos benefícios são feitos através dos Correios, sendo a funcionária do mesmo

a detentora deste poder de decisão.

Desde a idade de cinco ou seis anos de idade, as crianças podem assumir as atividades

descritas acima. As tarefas reservadas para a criança variam de acordo com a família. Famílias

maiores promovem maior distribuição das tarefas. Famílias mais ricas podem postergar, reduzir ou

extinguir o trabalho infantil doméstico. Entretanto, há a crença geral de que as crianças devem

começar a trabalhar desde cedo, uma vez que o trabalho tem um caráter educativo. Nos primeiros

anos, não se espera maestria no cumprimento das tarefas, já que a atividade é tida mais em termos de

aprendizado. Acredita-se que a criança que não ajuda os pais desde cedo tem grandes chances de

transformar-se em um adulto preguiçoso e pouco qualificado para a vida adulta ─ um adulto que, em

outras palavras, não sabe fazer nada. Uma moça que não saiba cozinhar ou um rapaz sem disposição

para o trabalho poderiam ser enquadrados nesta descrição (de quem não sabe fazer nada). Para além

disso, acredita-se que o trabalho, desde pequena idade, ajuda a formar uma pessoa de bom caráter,

que sabe dar valor ao que tem. Embora grande parte da literatura sobre infância enfatize a

contribuição material do trabalho infantil para o orçamento familiar como uma adequação às

condições adversas da pobreza, o trabalho infantil também tem como objetivo educar a criança em 84 Guimarães Rosa (2006 [1956]: 62-79) descreve literariamente a atividade em Campo Geral, quando Miguilim leva o almoço para o pai na roça e tem uma série de surpresas pelo caminho. Sobre o prazer que as crianças têm em ajudar seus pais, em uma passagem do mesmo livro, Miguilim se dirige ao “Pai”: “-Pai, quando o senhor achar que eu posso, eu venho também, ajudar o senhor capinar roça... Pai não respondia nada. Miguiliam tinha medo ter falado bobagem faltando ao respeito” (:64).

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um sistema de educação moral, como lembra Maya Mayblin (2005: 220, 226). A pesquisadora

destaca o papel educativo do trabalho infantil, como forma de desenvolver a “coragem”,

característica moralmente apreciada em Santa Rita, no agreste pernambucano85. O trabalho como

forma de educação moral perpassa os diferentes segmentos sociais, embora sua aplicação varie de

acordo com a família. Por sua vez, uma família que valorize a educação formal ou uma criança cuja

família reconheça talento para os estudos pode reduzir as tarefas pelas quais ela é responsável, a fim

de incentivar as horas de dedicação à vida escolar.

Em Catingueira, entende-se que o trabalho doméstico tem como objetivo educar a criança

para exercer atividades que lhe serão essenciais quando adulta. No caso de uma menina, a

capacidade de gerência familiar e de organização doméstica podem, em muitos casos, ser qualidades

mais apreciadas que a educação formal. No entanto, o programa Bolsa-escola parece ser bem

sucedido porque, no caso estudado, incentiva a freqüência escolar ao garantir o “salário” da criança

no final do mês. Quando não dependem daquele benefício para comprar os gêneros de primeira

necessidade, as famílias endereçam parte do montante recebido ─ muito constantemente, R$ 5,00,

diretamente para a criança, que decide como gastar o dinheiro. As meninas geralmente investem o

dinheiro em roupas, sapatos e materiais escolares. Os meninos também investem em sapatos

(principalmente tênis), brinquedos ou materiais escolares. Entretanto, a não ser no caso do PETI,

onde as crianças ficam na escola durante os dois turnos, as crianças que recebem o Bolsa-escola não

parecem ser dispensadas das atividades domésticas. A criança que freqüenta o PETI, no entanto,

pode ser mais facilmente dispensada de todo trabalho doméstico, porque o estudo, nestas condições,

é considerado por demais estafante. O seu tempo livre é dedicado à diversão, no qual brincar com os

colegas e vizinhos e “assistir” [televisão] parecem ser as atividades preferidas.

Por volta dos cinco anos de idade, a criança deve começar a ir ao colégio, a fim de se

preparar para a primeira série do ensino fundamental ─ que começa por volta dos seis anos de

idade86. Se a família não valoriza a educação formal, a adaptação no colégio não é forçada,

postergando o início da vida escolar para o próximo ano. Acredita-se que não compensa forçar a

criança pequena a fazer o que ela não quer. A primeira infância é tida como a melhor fase da vida e,

no entanto, a mais curta. Seu contraponto é a idade adulta, repleta de sofrimento e obrigações. Maya

Mayblin (2005), especialmente nos capítulos dois e três da sua tese, descreve muito bem este

sentimento de que a vida de adultos casados (no caso dos habitantes de Santa Rita - agreste

pernambucano) é pensada em termos de sofrimento e responsabilidades, que se contrapõem à idade

infantil e à adolescência. De modo geral, as famílias consideradas ricas, no entanto, fazem questão

85 “If a person does not start performing work activities by fourteen years of age at the latest, they will never develop the “coragem” necessary to confront such tasks when older” (MAYBLIN 2005: 223). 86 A idade para começar a freqüentar a escola pode variar entre cinco até os sete anos de idade, de acordo com o nível de conhecimento formal que a criança apresente.

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de mandar os filhos o quanto antes para o colégio. É necessário ter, no mínimo, três anos de idade

para ser aceito na escolinha chamada de Sossego da Mamãe. A mesma funciona como reforço

escolar, pré-primário e creche, todos os dias úteis com uma duração de uma hora e trinta minutos. A

classe é multi-seriada, assim como os interesses variados. Por exemplo, algumas crianças estão ali

para fazer os deveres do colégio; outras, para aprender a ler; outras, porque estão atrasadas em

relação ao conteúdo didático do colégio; outras, ainda, para começar a pegar o gosto pelo lápis. A

“creche” é particular, mas funciona nas dependências do colégio municipal. Paga-se R$ 15,00 por

aluno (dado do ano de 2005). O município de Catingueira e o estado da Paraíba provêem ensino

fundamental e secundário completos; mesmo assim, algumas famílias optam por mandar os filhos

para escolas particulares em Patos, com vistas a uma educação de melhor qualidade.

Uma criança aos cinco e seis anos de idade ainda é objeto de apreciação, carinhos e motivo

de risadas – embora comparativamente menos que aos três ou quatro anos de idade, como descrevi

acima. A redução deste tipo de tratamento vem junto com a constatação de que a criança começa a

entender o mundo que a cerca. Em outras palavras, começa a ser gente. Ela deixa o estatuto de peça

de entretenimento para começar a ser vista como um pequeno aprendiz. Este aprendizado é

pensando a longo prazo e, por isso, não se exige demasiadamente de uma criança nesta idade. De

acordo com o entendimento geral, ela está aprendendo. No entanto, a atividade que a criança executa

é sempre levada a sério. Ela não está brincando de lavar a roupa; ela realmente lava a sua roupinha.

Se não fizer a atividade a ela reservada, certo desequilíbrio na organização doméstica vai ser criado.

Por fim, parece que o trabalho das crianças faz diferença na organização e no orçamento familiar,

uma vez que existem atividades consideradas exclusivamente infantis. Da mesma forma, o trabalho

infantil está incluído em um sistema de educação moral, em que a disposição para o trabalho parece

ser uma das principais características a ser aprendida.

3. 3. A família e a criança As crianças elaboraram variados desenhos em que o tema da família foi contemplado ─ seja

por sugestão da pesquisadora, seja por iniciativa própria. Gostaria de discutir alguns destes

desenhos. Além disso, apesar de concentrar o olhar em uma perspectiva infantil, as idéias dos

adultos sobre família também serão endereçadas.

Nestes desenhos, os idosos são quase sempre vistos pelas crianças como pessoas boas ─ isto

porque “dão às coisas às crianças”. Em um dos desenhos, um idoso rico dá uma nota de R$ 50,00

para o menino, o qual sai correndo para comprar sorvete. No outro desenho, a criança que um dia

ajudou o idoso é convidada a ir morar na sua casa, em virtude da perda de seus pais, demonstrando a

bondade e compaixão dele para com a menina. Em outro desenho, o idoso dá esmola para as

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crianças pobres que vêem pedir na sua porta: “o velho sempre dá esmolas, mesmo que as crianças

estejam mentindo”. Apenas em um momento o idoso é considerado mau; isto acontece quando ele

bate no menino, seu neto. Mas o idoso logo se arrepende e vai desculpar-se (O velho e a criança – J.

8. M, L. 12. F, Y.10. F, C.7. F).

A avó em Catingueira é boa quando “dá as coisas” para os netos ─ geralmente, coisas de

comer – e quando os livra das “pisas” (o mesmo que agressão física) dos pais. J. M. 13. M (quem

você gosta e quem você não gosta) descreveu sintetizando o que é uma boa avó: “Eu gosto muito da

minha avó, ela é muito legal comigo igualmente a minha mãe, ela é muito boa para mim. Minha avó

nunca briga comigo. Sempre me dá as coisas”. C. 7. F (a vó) escreveu sobre a sua avó: “(...) eu

gosto muito dela porque quando ela recebe o dinheiro e faz a feira em Patos, mais o meu irmão,

compra uma bolacha para mim, recheada de chocolate (...)”. Y. 10. F (a avó) escreveu: “A minha vó

é bonita, eu adoro ela porque ela não briga comigo”. E, por fim, S. 12. F (quem você gosta e quem

você não gosta) escreveu: “Eu gosto muito da minha vó, ela me salva das pisas e de muitas outras

coisas. Ela é como se fosse a minha mãe. Mas é a mãe da minha mãe. Mas eu sempre vou gostar

dela como gosto da minha mãe, mas eu gosto das duas do mesmo jeito. Do jeito que eu gosto de

uma, eu gosto da outra”. Podemos dizer que as características que fazem uma boa avó assemelham-

se as de uma boa mãe, que serão trabalhadas posteriormente. Quais sejam: generosidade e paciência

para não brigar ou bater nas crianças. No entanto, diferentemente das mães, uma boa avó protege as

crianças dos desmandos maternos ou paternos. Além disso, as crianças também disseram que uma

boa avó sempre leva os netos “para onde quer que ela vá” ─ o que, para a criança é nada menos que

um passeio87.

A bondade de uma mãe e de uma avó assemelham-se, como vimos já anunciado acima. Por

exemplo, J. 8. M (o pai e a mãe) escreveu uma redação intitulada “Minha mãe é boa”, na qual ele

descreve a sua mãe: “(...) Essa é a minha mãe. Minha mãe é boa porque ela faz a feira e compra

coisa para eu e Sara [sua irmã]. Antes ela estudava de noite, mas quando foi para São Paulo, ela

parou de estudar. Ela foi para a casa do meu tio e da minha tia. Ela foi passar uns tempos lá e ficou

muito tempo. Quando ela veio chegando estava muito de noite, estava de noite que só, estava perto

de amanhecer, ela estava dentro de um camburão, é o corujão, da Ganabanara. Estava tudinho

esperando, eu, minha tia e minha avó. Meu pai já tinha ido dormir. Estava muito de noite quando

ela chegou. Cada um ganhou um presente, uma roupa, menos eu. Eu não ganhei nada. Ela arruma a

casa, passa pano, lava louça, lava pano, ela se veste bem, água os pés de pau [o mesmo que árvore]

dela. Tem um pé de coqueiro lá, tem dia que ela pega coco, pega a água”. J. deixa-nos antever que

uma boa mãe é uma pessoa que dá as coisas para os filhos, por isso ele se chateou e ainda se lembra

87 Infelizmente, dentre as crianças que participaram desta etapa da pesquisa, nenhuma delas tinha avô vivo, mas todas tinham pelo menos uma avó.

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87

que, quando ela foi para São Paulo, não lhe trouxe nada de presente. Ele também enfatiza que uma

boa mãe é aquela que cuida da casa. A boa mãe difere da boa avó neste ponto ─ no fato de que ela

gosta, faz com prazer e bem feito, o serviço da casa ─ sem se esquecer do cuidado com os filhos.

No retrato de uma família muito feliz e unida, a mãe, invariavelmente, gosta de fazer os

serviços de casa, como lavar roupa, lavar as louças, estender as camas, passar pano e dar banho nas

crianças. L. 12. F (uma família) escreveu, [a mulher] “gosta muito de fazer seus serviços de casa,

como lavar roupa, arrumar, lavar louças, gosta muito do seu marido e dos seus filhos maravilhosos

que eles têm”. Ao mesmo tempo, vemos que outro elemento mencionado pelas crianças é o amor

entre o casal e deste para com os filhos ─ principalmente, o amor de mãe. As mães boas

amam/gostam dos seus filhos assim como dos seus maridos. É interessante ressaltar que a maioria

das crianças que citou o amor enquanto sentimento, como algo importante na família, são meninas

pré-adolescentes.

Nos desenhos das famílias que as crianças desejam construir no futuro há, invariavelmente,

um marido, uma esposa e os filhos. Todos os desenhos ressaltam a profissão do marido ─ necessária

para comprar uma casa, mas, principalmente, para bem criar os filhos. Ressaltam que serão bons

pais porque não vão beber bebida alcoólica e boas mães porque vão cuidar bem dos filhos e da casa.

Cuidar dos filhos é dar-lhes o que eles precisam: comida, roupa e material escolar. Nos desenhos das

futuras famílias, isto é, quando estas crianças mesma tiverem filhos, maridos e esposas, algumas

meninas ressaltam a sua profissão fora de casa. Em um dos casos, a menina de dez anos (Y. 10. F)

vai trabalhar em um shopping, e o marido, em uma empresa de celular. Segundo ela, eles vão ser

muito ricos: sua casa vai ter piscina, helicóptero, trampolim, e os seus dois filhos terão um triciclo.

Os filhos serão mandados para a creche desde cedo, porque a mãe tem que trabalhar! “E quem vai

fazer a comida?” −, perguntou, surpresa, A.J., de seis anos de idade, que acompanhava a elaboração

do desenho. “A empregada!” Y. ainda emendou: “E quem vai limpar o jardim é o jardineiro”!

Trabalhar fora parece estar associado, para estas crianças, a um alto poder aquisitivo. O raciocínio

implicado aqui é que ser rico permite que a pessoa trabalhe fora, ao contrário do que geralmente

pensam os adultos: eu trabalho, logo existe a possibilidade de tornar-me rico.

Outras meninas também querem trabalhar fora do ambiente doméstico. Uma delas vai

“trabalhar em uma empresa de carros” (R. 12. F) e as outras duas não especificaram o serviço, mas

escreveram: “Quero trabalhar para dar as coisas para os meus filhos, dar o que eles precisam.

Quero que eles sejam nutridos, bem gordos (L. 1. F) 88”. A outra menina (S.12. F) escreveu, “Eu vou

trabalhar para dar o comer para os meus filhos e o meu marido vai ter que trabalhar também”. J.

11. F (como será o meu futuro) também quer trabalhar, mas titubeia entre dois destinos diferentes:

88 Dizer para alguém: “como tu está gordo!” é um elogio em Catingueira. “Olha, como ele ficou gordo!” poderia ser um comentário sobre uma criança que apareceu bonita em uma fotografia.

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88

“Eu penso que eu vou trabalhar na roça e vou ser muito feliz. E eu pretendo estudar bastante para

me formar em veterinária e não trabalhar na roça. Esse homem do meu lado é o meu marido”. A

mãe e a avó desta menina trabalham como agricultoras. Parece que ela acredita que seu destino deve

ser parecido com o das mulheres da sua família, embora sonhe em ser diferente.

Apesar de algumas meninas aludirem à possibilidade de proverem financeiramente a família,

na maioria dos desenhos sobre a futura família, o dever de sustentar a casa é do marido, enquanto à

mulher cabe cuidar dos filhos e das atividades domésticas. Um menino (J. 13. M) escreveu: “Quero

ser professor de Educação Artística e minha mulher vai trabalhar em casa com meus filhos”. Uma

menina (R. 13. F) escreveu sobre a sua vida familiar futura: “Ele é motorista e ela cuida da casa e

dos filhos”. J. 8. M escreveu “Minha mulher trabalha lavando roupa e passando pano, e eu

trabalho em carro, moto, trabalho tirando as peças ruins e botando as novas”. Mas esta menina, T.

9. F., de nove anos, sintetizou o papel masculino no fogo familiar: “Nós vamos morar no Rio de

Janeiro, ele vai ter que trabalhar para me sustentar e também meus filhos”. Interessante observar

que a lida doméstica feminina é descrita por esses dois meninos em termos de “trabalho”. Mas não

em termos de profissão. Profissão e trabalho são pensados como atividades distintas. Entre as

profissões, estão as de médico, professora, dentista, enfermeira. Todas as outras atividades são vistas

como trabalho: gari, motorista, agricultor, operário. Beatriz Heredia (1979: 77-104) discute a

categoria “trabalho” em um contexto em que o trabalho está largamente associado ao serviço no

roçado, em contraponto ao serviço na casa. Segundo a autora, na zona da mata pernambucana, o pai

da família é sempre quem “trabalha” e, os seus filhos e a esposa “ajudam”, mesmo fazendo

exatamente o mesmo serviço. Isso se dá porque o trabalho é associado ao roçado − tanto o

gerenciamento quanto o serviço ele mesmo − enquanto lugar do masculino, por excelência. Maya

Mayblin (2005), por sua vez, discorre sobre as variadas formas de trabalho, a moralidade envolvida

nos mesmos e a sua relação com a religião, no agreste nordestino.

Em relação ao futuro, elas e eles querem se casar. As crianças querem ter quase sempre

apenas dois filhos, um menino e uma menina89. Mas não tão cedo. Duas meninas (J. 14. F, T. 9. F)

expressaram desejo de ter filhos tardiamente, aos trinta e oito anos de idade, enquanto este não

parece ser o padrão seguido pelas mulheres da cidade. Acredito correto afirmar que a idade da

primeira natalidade entre as mulheres de Catingueira é anterior à média nacional. Vamos ver o que

esta menina de catorze anos escreveu: “Sou J. e quero me casar com Rafael. Gosto dele, mas não

pretendo me casar agora, vou deixar passar mais tempo para nós se casar. Não pretendo ter filhos

logo, só quando tiver 38 anos. _ E se eu tiver filhos, quero ter dois, não é? Porque passando de dois

já é demais! E seus nomes vão ser RETENNEN se for mulher, e, se for homem, vai ser RENYTEN.

89 Apesar de que J., menino, de oito anos de idade, assegurou-me que não queria ter mulher, não, porque elas dão muito trabalho!

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Os nomes dos meus filhos é com a inicial do meu marido RAFAEL. E queria que esse sonho se

realizasse de verdade, e sei que ele gosta de mim e eu também dele. Fim”. J. resume um desejo de

muitas crianças de Catingueira: casar e ter um casal de filhos.

Interessante observar que, se as famílias do futuro foram ilustradas nuclearmente, destacando

o pai, a mãe e os dois filhos, atualmente a maioria destas crianças não vive em famílias nucleares.

Parece haver um hiato entre a realidade familiar destas crianças e a família que elas representam

como ideal, para o seu futuro. Cotidianamente, nas suas vidas, as crianças deparam-se com uma

grande variação na configuração familiar, na qual a família nuclear parece distante. Durante a

pesquisa, me deparei com famílias configuradas das seguintes maneiras: ego, irmãos, pai, a avó

paterna. Ego, irmãos (ãs), primos (as), tios (as), mãe, avó materna, avô materno. Ego, irmãos (ãs)

primos (as), sobrinhos, tia-avó, tio-avô, tios, tias, mãe. Ego e madrinha (não aparentada). Ego, mãe,

marido da mãe. Ego, irmãs, tio, pai, avó paterna. Ego e avó paterna − sem deixar de mencionar a

configuração tradicional ego, irmãos (ãs), pai, mãe. Entretanto, nos desenhos da “família atual”,

nenhuma família tem menos de três filhos − apesar de uma menina de nove anos de idade, P., que

mora com avó paterna, ter se desenhado apenas com sua mãe e seu pai. Tanto sua mãe, quanto seu

pai, já constituíram novas famílias e moram com seus atuais cônjuges e os filhos destes casamentos.

Mesmo assim, quando pedi que ela desenhasse a sua família, P. desenhou seu pai e sua mãe. Parece

que família, para ela, extrapola as regras da co-residência. Em uma situação na qual o modelo ideal

parece ser uma família nuclear, as pessoas que dividem a mesma casa, mesmo sendo aparentadas,

podem não ser consideradas família, segundo os critérios infantis.

Ainda em relação ao momento presente e a família atual, os filhos ficam chateados quando os

pais brigam com eles ou neles batem. S. 12. F (atual família), escreveu: “Não gosto quando minha

mãe briga comigo, nem meu pai, mas eles têm o direito. Também não gosto quando eles batem em

nós, dói demais, chega a ficar vermelho. Eles batem na gente de cipó, mangueira, fio, cinto, chinelo

e de mão. Mas não vou parar de gostar deles” 90. Mesmo apanhando, a menina acima deixa claro

que, ainda assim, nunca vai deixar de gostar da sua mãe, porque uma mãe, quando bate no filho, não

está extrapolando o seu direito. Jamais uma criança mencionou que não gostava da sua mãe ou do

seu pai. Y. 10. F (o pai e a mãe) pondera sobre o porquê deste amor incondicional: “(...) [os] pais

são capazes de sentir frio para dar os filhos [sic], sentir fome para dar comida aos filhos, são

capazes até de morrer pelos filhos, por isso que não tem nenhum filho que não goste de seus pais”.

Parece plausível afirmar que a família em Catingueira carrega em si um valor positivo. Arriscaria

afirmar que a família é uma das instituições sociais mais importantes para os catingueirenses. 90 A mesma menina escreveu (S. 12. F o pai e a mãe) “Essa é a minha mãe. Gosto muito da minha mãe. Eu adoro, ela é um tesouro para mim. Gosto muito dela, ela é tudo para mim, só não gosto quando ela só exagera. Ela já deu pisa na gente de corda, cipó, tem vezes que ela pega a gente de pedra corre atrás da gente, mas mesmo assim eu gosto dela (...). Ela cuida da casa e quando a gente esta precisando de alguma coisa ela compra ou arruma. Ela é trabalhadora, mais do que o meu pai”.

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Interessante observar que, nos desenhos livres e nas fotografias que as crianças tiraram, conforme

foram analisados no Capítulo Um, a família é um dos temas mais destacado pelas crianças. Isso está

expresso nos inúmeros desenhos de casas e no fotografar os membros da família, principalmente os

pais e as crianças. (Para um exemplo vide fotografia 19 no CD anexo). Mas, talvez por isso mesmo,

manter o equilíbrio familiar é tarefa complicada, como diz D. 13. M (futura família): A família é

algo muito especial para quem sabe lidar com ela! Quem não sabe, padece!

A família pode ser origem dos mais graves infortúnios. Ser traído pela esposa ou “ter um

marido bêbado dentro de casa” são apontados como as maiores desgraças que podem acontecer a

uma pessoa. O menino de treze anos atesta esta constatação: “A família boa e a má. A família é algo

muito especial para quem sabe lidar com ela. A família é, às vezes, complicada porque tem uma

pessoa que faz destruí-la, mas se tem pessoas que ajudam os seus familiares, tem exemplos de

família boa e família má. [sic] 1º. Exemplo: A família boa é aquela que faz tudo para ter a paz no

lar da sua família, os pais não bebem e nem brigam, eles se amam muito. 2º. Exemplo: a família má

é aquela que destrói outras famílias e traem seus maridos ou esposas” (D. 13. M Futura família).

Uma família destruída é aquela na qual há traição entre os cônjuges, muita bebedeira e, por fim,

aquela na qual os filhos não respeitam os pais.

Como discorri acima, parece que o ideal de mulher dessas meninas é aquele da dona de casa

dedicada ao lar e à família. Ao que parece, o bom pai é aquele que provê para o sustento da família,

colocando a comida na mesa. A boa mãe, por sua vez, dá as coisas aos filhos quando eles pedem.

Inclusive “besteiras”, como balas, pelotas (pirulitos), pipocas. Em situação de dificuldade

econômica, a perícia materna em prover as necessidades dos filhos é altamente apreciada. S. 12. F (o

pai e a mãe) escreveu sobre a sua mãe: “Ela cuida da casa e quando a gente esta precisando de

alguma coisa ela compra ou arruma”. Ao pai, geralmente não se pede “besteiras”. O bom pai é

aquele que tem coragem de lutar pela felicidade dos seus filhos e da sua mulher, isto é, não deixando

faltar nada de essencial. L. 12. F (uma família) descreve um pai exemplar como “(...) uma pessoa

[...] com coragem de lutar pela felicidade dos seus filhos”. Um pai assim é aquele que não é

preguiçoso, que, na necessidade, “pega qualquer serviço” e, principalmente, não desperdiça o

dinheiro com bebida. L. 12. F (futura família) escreveu sobre a sua futura família: “Essa é a família

que eu queria ter. Gosto que meu marido seja bom para os meus filhos. Gostaria que ele não

bebesse cana, porque se tem uma coisa que eu não gosto é que o meu marido seja cachaceiro”.

Quando as crianças dizem que não vão beber quando crescerem ou que bons pais não bebem,

elas se mostram sensíveis a uma realidade cotidiana, principalmente masculina. De fato, a

quantidade de bares na cidade é motivo de piadas elaboradas pelos visitantes e pelos moradores

locais. Como opina esta menina (J. 11. F redação sobre Catingueira): “Catingueira é uma cidade

pequena e tem 26 ruas e 285 árvores. (...) Catingueira é uma cidade simples, mas é muito boa de se

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viver. Aqui de ruim tem os bêbados se não, não teria nada de ruim, só coisas boas”. Como em toda

cidade, existem pessoas que abandonam a vida social em virtude da bebida. Chegam a dormir na

rua, tomam cachaça no lugar do café com leite pela manhã e acabam sendo objeto de troça pela

cidade. Em Catingueira, há algo em torno de oito personagens como esses. Digo personagens

porque, com o tempo, esses homens passam a exercer certo fascínio na população. Se, por um lado,

eles são considerados uns sem-vergonha, de outro são também tido como engraçados, dignos de

pena, inocentes e, por fim, vítimas da cachaça. Um destes personagens era muito querido por toda a

gente. Veio a falecer afogado no Açude do Prefeito, o que colaborou para o aumento da sua fama.

Quando se fala no seu nome, há sempre pesar por sua morte, e contrição na voz. Ele era tido como

uma boa pessoa, mas que se deixou levar pelo vício. No entanto, se há um julgamento moral contra a

fraqueza dos bêbados, há também uma crença difundida de que a cachaça é sempre mais poderosa

que o homem e, talvez por isso, os bêbados são, no fundo, perdoados. A potência da bebida alcoólica

está parcialmente associada ao demônio − tanto que os crentes abstêm-se por este motivo. L. 12. F

(A pior coisa do mundo) escreveu, “ele [o cão] é muito mau, ele faz com que o povo beba”. A

menina em questão não é crente. Ela assiste as reuniões no Centro espírita e, às vezes, vai à igreja

católica. Interessante observar que não parece haver diferença entre as crianças evangélicas,

católicas ou espíritas, quanto ao repúdio à bebida alcoólica. As crianças, independentemente da sua

religião, parecem condenar o consumo de bebida alcoólica.

No entanto, para o homem adulto não-crente que beba depois do trabalho e nos fins de

semana, a bebida é vista como instrumento de diversão e relaxamento. Não há mal algum em beber,

desde que a bebida não o impeça de trabalhar e respeitar a moral e os bons costumes − apesar de um

rapaz que evite a companhia de bebedores renomados ser elogiado principalmente pelas senhoras na

idade de serem sua sogra. Avançando um pouco, é verdade que um homem que não beba e não seja

crente, é tido como um ser um tanto deslocado. Beber faz parte do status masculino. Mulheres

também bebem, mas encontram alguns preconceitos por parte da sociedade. Por isso, muitas

mulheres, principalmente as solteiras, não bebem nos bares pela cidade, mas convidam as amigas

para beber em sua casa. Nestas ocasiões, elas pedem a um irmão ou amigo, a alguém de confiança

do sexo masculino, que faça a compra das bebidas na venda − sem, é claro, mencionar o seu nome.

Ouvi mais de uma vez mulheres solteiras dizendo: “Eu lá sou mulher de beber em bar?”, negando o

convite de algum rapaz para ir para um bar. Isso não quer dizer que esta mulher nunca beba em

bares, mas a exortação funciona como uma boa desculpa quando ela não quer a companhia daquele

rapaz.

Entretanto, é importante ressaltar, há algo a que se orgulhar nas bebedeiras. A memória de

bebedeiras passadas é sempre reavivada, relembrando os laços sociais criados na ocasião (quem

estava presente, quem namorou quem, quem bebeu mais, quem dormiu primeiro, quem perdeu o

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controle etc.). De um lado, a bebida mais popular, a cachaça, é também a mais perigosa e

socialmente reprovável. Bebe-se também rum com refrigerante, vista como uma bebida mais

sofisticada que a primeira. Bebe-se pouca cerveja porque ela é considerada cara e pouco efetiva para

o embebedamento. A cerveja é, em grande medida, uma bebida que as mulheres podem beber sem

correr o risco de macular sua fama − ao passo que o uísque, apesar de ser a bebida mais apreciada e

o seu bebedor ser considerado um sujeito de prestígio e bens, é, impeditivamente, caro. As crianças,

por sua vez, podem experimentar bebidas alcoólicas por volta dos oito anos de idade. Aos treze ou

catorze anos de idade, um menino pode ser um bebedor assíduo, principalmente se já provê seu

próprio sustento.

Como já adiantei acima, quando pedi que desenhassem a família atual, algumas crianças

ficaram na dúvida entre desenhar as pessoas que moram na sua casa ou desenhar aqueles que elas

consideram como a sua família. Na maioria dos casos, as crianças desenharam as pessoas que

moram na sua casa, incluindo tios (as), avós (os), primos (as), irmãos (ã), tia-avó (vô), sobrinho (a)

etc. Alguns insistiram em perguntar: “é para desenhar quem mora na minha casa?” 91. A pergunta

evidencia a diferença entre morar na mesma casa e ser da família. Um menino de treze anos de idade

(D. 13. M) mora com uma madrinha, mas desenhou a sua mãe e seus irmãos biológicos, enquanto

outra menina (Y. 10. F) desenhou quem mora na sua casa. Parece que as crianças elegem, do seu

cotidiano, as pessoas que são consideradas como parte da família. A família, desta forma, não é uma

categoria rígida; ao contrário, ela muda circunstancialmente. J. 11. F incluiu a mãe em um desenho

de família, e em outro a excluiu, “porque [ela] tinha fugido de casa com outro homem”. A realidade

familiar parece ser retratada de acordo com as preferências afetivas circunstanciais da criança. No

caso de duas crianças, irmãs entre si, uma delas incluiu o atual marido da mãe no que ela denomina

família, enquanto que a outra, não. Ser considerado como parte da família depende da relação que a

criança estabeleça com aquelas pessoas naquele determinado estágio da vida. Por exemplo, uma

criança (menino de treze anos de idade, J. 13. M) desenhou o seu pai já falecido. Ao passo que outro

menino da mesma idade (D. 13. M), e que também tem o pai falecido, não o desenhou. De forma

parecida, uma menina de sete anos de idade incluiu no desenho dois tios já falecidos.

A configuração familiar, ou melhor, os membros de uma casa, extrapolam a família nuclear,

entre outros motivos, porque parece existir uma circulação intensa de pessoas entre residências. Em

Catingueira, por exemplo, é comum “pegar” uma menina para criar, a fim de que ela ajude nas

atividades domésticas. Pensando a longo prazo, espera-se que ela cuide dos seus pais adotivos

quando estes tornarem-se idosos. Esta menina vai freqüentar a escola, mas nunca como prioridade na

sua vida. Este tipo de “adoção” não é visto como exploração infantil, nem como caridade. É, como

deve ser, parte do equilíbrio doméstico das famílias da cidade. Uma família com muitos filhos, ou

91 Respondi que elas podiam desenhar o que quisessem.

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em situação financeira precária, ficaria feliz em ceder uma das crianças para morar com uma outra

família, se esta última precisasse de mais uma criança para ajudar na lida da casa. Ceder uma menina

não implica na chamada adoção plena, na qual o adotado passa a ser efetivamente filho dos

adotantes, em caráter irrevogável e de forma plena. A criança em Catingueira, nesta situação que

estou descrevendo, nunca será adotada formalmente: continuará a chamar a sua mãe biológica de

“mãinha” e o pai biológico de “painho”, e os visitará freqüentemente − podendo até, eventualmente,

passar a noite na casa dos pais biológicos. Dependendo da relação que vá estabelecer na casa onde

passará a morar, esta menina pode passar a chamar a mãe adotiva de “mãe” e o pai adotivo de “pai”.

A família que “pega” a menina para “ir morar” na sua casa pode ter ou não filhos na mesma idade da

que é “adotada”, mas esta menina será tratada de maneira diferente em relação aos filhos naturais do

casal. Quando pedi que as crianças vivendo nesta situação desenhassem a sua família, elas

desenharam invariavelmente a sua família biológica, e não a família com a qual elas residem.

Da mesma forma, há uma grande circulação de crianças dentro da própria família. Quase

todas as avós e avôs têm um ou mais netos que moram com eles e que passam a lhes chamar de mãe

ou “mãinha”, pai ou “painho”. Destarte, parece que as crianças vão morar com outras famílias

quando os adultos necessitam dos seus serviços ou, simplesmente, da sua companhia. Cito como

exemplo o fato de que acredita-se, em Catingueira, que ninguém deve dormir sozinho: uma vez um

mal-estar repentino pode advir durante a madrugada, deixando o sujeito à mercê de ajuda alheia.

Estar abandonado ao próprio destino, sem ter a quem pedir ajuda, parece habitar os medos dos

catingueirenses. Conta-se que uma senhora com a saúde debilitada havia pedido que a filha da

vizinha dormisse com ela, mas esta lhe negou o pedido. Na manhã seguinte, a senhora foi

encontrada morta. Os moradores asseguram que ela poderia ter sido salva se tivesse alguém perto,

para lhe socorrer. Dessa forma, quando uma pessoa está provisoriamente sozinha – no caso de

viagem dos membros da casa −, ou quando mora sozinha (caso raríssimo), ela vai sempre contar

com a companhia de uma criança que vem à noite simplesmente para dormir na sua casa92. Assim

que a criança acorda, ela vai para a sua casa (ela não janta, nem toma café da manhã na casa onde

está dormindo − o que poderia ser motivo de alegria para a mesma). Para os habitantes de

Catingueira, era inadmissível que eu dormisse sozinha. Muitas mães ofereceram as suas crianças, e

até mesmo as próprias crianças ofereceram-se para me fazer companhia à noite, dormindo na minha

casa. Muitas vezes, eu aceitei.

92 Conheci um senhor idoso, SJG., cujo único filho (adotivo) já havia falecido e cujos netos não moravam na cidade. Como não tinha “família” e, conseqüentemente, não tinha ninguém a quem pedir tal favor, ele pagava um menino para dormir com ele. Se não me engano, eram R$ 20,00 mensais (em 2005). Este senhor é um dos casos raros de pessoa que mora sozinha. Mas ele não se cansava de reclamar da sua situação, a qual é vista com piedade por toda a população. Ele sempre dizia a quem fosse lhe visitar: “Morreu tudo, não tenho pai, mãe, irmão, irmã, mulher, filho. Morreu tudo”. Rebhun (1999:57-59) acentua o fato de que os brasileiros, principalmente os nordestinos, raramente apreciam a solidão: “People consider an experience not shared an experience not fully savored” (1999: 57).

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Além de companhia noturna, as crianças também, muitas vezes, são pensadas como reservas

para o futuro, para quando os pais tornarem-se velhos. Espera-se que os filhos tomem conta dos pais

e os supra materialmente tão logo possível. Por tudo isso, observa-se que, constantemente, as

crianças são concebidas como propriedade dos adultos, habitando o mundo para servi-los. Parece-me

plausível afirmar que as crianças existem, em grande medida, para tornar o fardo dos adultos mais

leve – de variadas maneiras.

4. Conclusões

Catingueira é uma cidadezinha do interior do Brasil que, como muitas outras, não possui

autonomia financeira e depende do governo federal para saldar despesas cotidianas, como a folha de

pagamento dos funcionários. A cidade sofre com a estiagem, como todas as cidades do semi-árido

brasileiro. Luta contra altas taxas de analfabetismo. Luta contra a desnutrição e subnutrição, e toda

sorte de problemas decorrentes destas. A cidade não oferece perspectivas de crescimento econômico

aos seus habitantes, que muitas vezes optam por emigrar para conseguirem melhorar de vida. Como

se não bastasse, Catingueira tem os seus políticos envolvidos em escândalos de corrupção de nível

nacional.

Na sua grande maioria, a configuração familiar ideal, ressaltada pelas crianças − isto é, a

família nuclear −, não corresponde à realidade atual. No que diz respeito às aspirações infantis

quanto ao futuro, seus sonhos e desejos pessoais, todas as crianças que desenharam sobre o futuro

colocaram-se numa posição de adultos casados com filhos. Algumas meninas acentuaram a

necessidade de trabalhar para prover todas as necessidades dos filhos. No entanto, a maioria das

meninas se imagina no futuro como donas de casa zelosas. Aos meninos, futuros maridos, cabe o

dever de sustentar a família: em outras palavras, de colocar a comida na mesa.

A existência das crianças, em grande medida, é pensada como meio de suprir as necessidades

e desejos dos adultos. Isso foi constatado quando elas são objeto de divertimento por parte das

crianças maiores e dos adultos. Vimos também que os bebês estão à mercê dos caprichos das

meninas pré-adolescentes que, apesar de serem responsáveis por pajeá-los, também se divertem à

custa deste trabalho. Além disso, vimos que as crianças servem aos adultos até na sua morte, já que

um anjinho no céu resulta em proteção divina. Da mesma forma, as crianças tornam-se

imprescindíveis na organização doméstica familiar sob as variadas formas destacadas anteriormente

(companhia durante a noite, residência fora da família biológica, suprimento material e afetivo assim

que se tornam adultos). De outro lado, parece-me inútil centrar a análise na “exploração” das

crianças pelos adultos, como o faz certa parte da literatura especializada − dado que essa mesma

“exploração” acaba por proporcionar uma tomada de poder pelas crianças, na medida em que elas se

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tornam ferramentas imprescindíveis para o bom funcionamento da unidade familiar e, de modo mais

geral, de toda a comunidade.

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CAPÍTULO 3: Quem tem medo de mal-assombro?

“This is not a world where ancestral shades are remote presences, creations of theological imagination. They are part of the daily social life of Kwaio communities”

Keesing 1982: 113.

1. Introdução

Este capítulo tem como objeto analisar o que são os mal-assombros do ponto de vista dos

adultos e das crianças. Além disso, pretendo analisar como o conceito de mal-assombro transforma-

se ao longo dos anos, discorrendo sobre o processo que culmina com a cristianização das crianças

paripassu a cristianização dos mal-assombros. Discuto, a partir disso, em que medida crescer em

Catingueira implicaria em conversão religiosa. Por fim, investigo em que idade verificam-se as

maiores taxas de medo de mal-assombro para, dentre outras, discutir a hipótese de um crescimento

etário em termos de desbastamento religioso.

2. Sobre a definição do mal-assombro

Para discutir os mal-assombros, é preciso, primeiramente, defini-los. Para um indivíduo

adulto, mal-assombro, em poucas palavras é a alma de uma pessoa que faleceu e que, por algum

motivo, estabelece contato com os vivos. Grande parte dos mal-assombros são almas que não

encontraram seu rumo depois da morte. Algumas foram vítimas de mortes trágicas e, dado o caráter

surpresa do seu falecimento, ainda não tiveram tempo para se acostumarem com a sua nova

condição. Estão perdidas no mundo dos mortos93. Neste caso, as almas estão em situação de risco.

Estas almas são consideradas presas fáceis para o Cão94. O mal pode facilmente apoderar-se delas e

93 Segundo Jean Delumeau (1996) “[...] tinham particular vocação para a vagueação post mortem todos aqueles que não se haviam beneficiado de um falecimento natural e, portanto, tinham efetuado em condições anormais a passagem da vida ‘a morte – logo, defuntos mal integrados a seu novo universo [...]. A essa acrescenta-se uma outra categoria de candidatos-fantasmas: aqueles que haviam morrido no momento ou na proximidade de um rito de passagem que, por essa razão, não se realizara (fetos mortos, casados falecidos no dia das bodas etc.).” (: 95). Em outro contexto, Eloísa Martin (2006), na sua tese de doutorado, explica, para o caso dos mortos transformados em santos, como não apenas as almas vítimas de mortes trágicas podem ser acionadas pelos vivos: “Mas, como vimos, não é apenas a morte anômala o que permite a ação de quem transpôs a fronteira da vida, pois para os nativos, para qualquer morto podem ser pedidos favores e, dentro de acordos similares de etiqueta e possibilidade, eles vão atender esses pedidos” (: 241). 94 Ou também chamado de Demônio, Diabo, Maligno, Encardido, Satanás, O das Trevas, Inimigo, Medonho, Bicho. Algumas crianças relutavam em proferir estes nomes, com medo de que o referido lhes aparecesse. Quando as instigava a dizê-lo, fazendo-me de desentendida, elas muitas vezes diziam: “Aquele”, “O que anda pela noite”, “O malvado”... Veja os exemplos a seguir, tirados da série de livros infanto-juvenis “Harry Potter” (ROWLING 2000a, 2000b). Os professores Dumbledore e Minerva discutem sobre o mal e Dumbledore diz a ela: "Minha cara professora, com certeza uma pessoa sensata como a senhora pode chamá-lo pelo nome. Toda essa bobagem de Você-Sabe-Quem, há onze anos venho tentando convencer as pessoas a chamá-lo pelo nome que recebeu: Voldemort.- A professora franziu a cara, mas Dumbledore, que estava separando dois sorvetes de limão, pareceu não reparar. - Tudo fica tão confuso quando todos

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fazê-las sua companheira nas suas artimanhas. Embora as almas com tendência para a maldade

sejam as primeiras a ser recrutadas pelo Cão para agirem como mal-assombro, almas boas também

podem ser usadas pelo Mal como mal-assombro, principalmente quando se encontram perdidas95.

O que parece estar em jogo é um processo de diabolização ou divinização dos mal-assombros

– que seguem padrões diferentes se compararmos cada ramo do cristianismo presente na cidade.

Para os crentes, indubitavelmente, os mal-assombros são obra do Diabo. Se a alma de um familiar

falecido lhe aparece, o crente deve duvidar da aparição. Se a alma lhe pede qualquer favor, o crente

não lhe deve obedecer. Para o crente, a aparição de uma alma é um Demônio transfigurado naquela

pessoa querida, com o objetivo de fazer crer aos seus familiares, para enganá-los, para dissuadi-los a

fazer o que a alma pede. Ou seja, obedecer ao Demônio. Interessante notar que, dentre os pedidos

das almas, os mais comuns são missas e “rezas” 96 ─ curiosamente, práticas católicas. O fato das

almas pedirem tais oferendas é uma prova de que a aparição não é do bem, porque tais práticas “não

são de Deus”, diriam eles. Outro motivo refuta a possibilidade da vinda da alma de um morto à terra:

segundo os evangélicos da Assembléia de Deus sediada em Catingueira, uma pessoa que morre fica

dormindo esperando o julgamento final. Isto prova que a aparição da alma do familiar não é o

próprio, porque este deveria estar dormindo mas, sim, o Diabo – que usa sua aparência física para

fins obscuros. Além disso, muitos crentes apóiam-se na parábola bíblica do livro de Lucas, capítulo

16, versículos 19 a 31, para contraporem-se à possibilidade de visitas do além–túmulo. Na parábola,

o mau rico, depois de morto, pede ao Pai Abraão que mande Lázaro avisar aos seus irmãos dos

males do inferno, enquanto eles ainda estão vivos. Pai Abraão nega, dizendo que os que estão vivos

têm os profetas para os orientarem. Com isso, segundo os crentes, fica provado que os mortos não

podem se comunicar com os vivos97.

não param de dizer "Você-Sabe-Quem". Nunca vi nenhuma razão para ter medo de dizer o nome de Voldemort. -Sei que não vê -disse a professora parecendo meio exasperada, meio admirada - Mas você é diferente. Todo mundo sabe que é o único de quem Você-Sabe... ah, está bem, de quem Voldemort tem medo” (ROWLING 2000a: 15). Ou ainda, depois de escapar de Voldemort, Harry no hospital conversa com Dumbledore: “ - Professor? - disse Harry. - Estive pensando... professor. Mesmo que a Pedra tenha sido destruída, Vol...quero dizer, o Senhor-Sabe-Quem... - Chame-o de Voldemort. Sempre chame as coisas pelo nome que têm. O medo de um nome aumenta o medo da coisa em si” (ROWLING 2000a: 254). Além disso, no segundo livro da série “Harry Potter”, a autora refere-se ao mal como “Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado” (2000b: 20, 82). 95 O fato aponta para a importância de noções vindas do espiritismo, principalmente kardecista. Bernado Lewgoy (2001) aponta a importância da síntese entre o catolicismo e o espiritismo kardecista na constituição de uma “cultura brasileira”. Ele afirma: “[...] a dominante cultura católica brasileira impregnou os diferentes espaços sociais, tradições e atores que vivenciam o espiritismo no cotidiano das grandes cidades brasileiras, operando-se de uma síntese original de catolicismo e de kardecismo, que ganha uma definitiva referência nacional na vida e na obra do médium mineiro [Chico Xavier]”. 96 Ao contrário de “rezar” ─ associado ao catolicismo ─ os crentes “oram”. 97 Os espíritas kardecistas rebatem a interpretação da parábola, dizendo que o que impede a comunicação entre Lázaro e os parentes vivos do rico mau é a disparidade no que diz respeito à sua evolução moral. Lázaro é bom e, morto, foi para um bom lugar. Segundo eles, após a morte, cada alma se encaminha para um lugar condizente com o seu grau de desenvolvimento espiritual. O rico era mau e quando faleceu foi parar em um lugar de sofrimento. Estes dois mundos não são comunicáveis. O rico mau faz a primeira tentativa de comunicação quando pede a Lázaro para molhar a sua língua com um pouco de água. Mas Pai Abraão não permite, dizendo que na vida ele teve do bom e do melhor, e não dava a Lázaro nem as migalhas do seu pão. Ele tenta comunicar os mundos do bem e do mal novamente, pedindo que o

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Reconhece-se imediatamente, o seu pacto com o Demônio, quando as almas não têm outro

objetivo senão assombrar98. Este estaria elaborando uma armadilha para desestabilizar

emocionalmente o crente que tem a visão do mal-assombro. Em uma entrevista, uma fiel da

Assembléia de Deus, de quarenta anos de idade, casada, mãe de três filhos, referiu-se ao fato como

uma tentativa do Demônio de fazer-lhe cair em depressão.

NP.: “Uma vez… eu… (conversa paralela) uma vez tinha uma festa aí ao lado do coreto. Se fosse uma pessoa humana andando dentro de casa você num ouvia. Uma pessoa humana andando… num ouvia não. Eu tava naquele sono, quando a pessoa quer abrir o olho e não consegue. Aí eu ouvi aquele arrastado pro meu lado, aquele arrastado, pro meu lado, eu digo, ‘oxente’. (F: E tinha festa no coreto?) Era um barulho dentro de casa se uma pessoa fosse andando dentro de casa você não conseguia ouvir uma pessoa pisando dentro de casa. Inclusive, o arrastado, se você vê, o arrastado era P.. Mas porque ele [o Diabo] se aproveitou que eu estava muito assim... eu cuidei muito dela [quando P. estava para morrer], eu fiquei muito assim… a gente sempre fica, né, com... Mas o jeito que ele veio foi pra me assustar, o jeito que ele veio. Pra eu me impressionar que eu tava vendo P. e depois eu caí numa depressão, num é? E ele aproveitar! E ele achar uma brechinha, aí ele entra mesmo. Aquele arrastado atrás. Eu naquele sono assim, eu queria abrir o olho e não conseguia. Aí ela foi chegando perto de mim assim me deu um assopro tão grande no meu ouvido! Naquele sono assim eu disse: ‘oxente, P. já veio pra gente fazer caminhada?’ Mas isso era bem 12 horas da noite. Ela deu aquele assopro no meio ouvido, eu me assustei. F: E ela já tinha morrido? NP.: Já. Aí eu olhei assim e não vi nada. ‘Oxente, o que foi isso?’ Eu disse: ‘tá repreendido, tá repreendido, Satanás’. Aí eu me levantei, fui na cozinha, tomei água, só foi me deitar eu adormeci. Só foi repreender… você tá pensando que eu tenho medo? Meu Deus é poderoso e não me deixa temer”.

Para os católicos, por sua vez, o mal-assombro pode ser realmente a alma de uma pessoa

falecida ─ muitas vezes, um parente. Neste caso, a alma do parente morto interfere – para o bem ou

para o mal – na vida cotidiana da família que permanece viva. Quando uma alma interfere

positivamente no dia-a-dia dos vivos, reconhece-se que ela já se encontrou no mundo dos mortos.

Sua ação, neste caso, é intencional. Quando a alma de um parente interfere negativamente na vida

dos familiares ela é tida como um espírito ignorante das regras do além-túmulo. Considera-se que

esta alma encontra-se perdida. Suas ações têm conseqüências nefastas, mas ela não tem controle

sobre as mesmas porque ignora como se relacionar de maneira saudável com os vivos. Reconhece-se

que este tipo de alma está em sofrimento e necessita de ajuda. A ajuda pode vir dos vivos. Eles

devem parar de chorar pelo morto para que ele possa seguir seu caminho e, ao mesmo tempo,

oferecer-lhe missas e orações. Os espíritas também mandam celebrar missa na intenção da alma de

Pai mande Lázaro avisar seus irmãos ricos (e maus) que estão na terra das agruras do além túmulo. Pai Abraão novamente não consente, dizendo que se os vivos não ouvem os profetas, não hão de ouvir os mortos. Segundo os espíritas kardecistas, a impossibilidade de comunicação, que vem desde o tempo em que eram vivos, é dada pela diferença na evolução moral de ambos e não, como pensam os crentes, pela impossibilidade de comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos. 98 Seria interessante explorar a relação entre os vocábulos “assombramento” e “mal-assombro” com “sombra”, enquanto ausência da luz, escuridão; em algum sentido, ausência de Deus.

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parentes falecidos. O mesmo não ocorre com os crentes, que concebem os mal-assombros de modo

bastante díspar em relação aos católicos e espíritas.

Para os católicos e os espíritas, ao contrário dos evangélicos, os mal-assombros podem ser

obra de Deus quando, por exemplo, uma alma aparece em sonho para indicar o lugar onde enterrou

uma botija de ouro. Entende-se que Deus permitiu que ela viesse em sonho para dar a botija a algum

familiar. Neste caso, trata-se de uma concessão divina, uma vez que a botija enterrada pode impedir

que o seu dono entre no céu, atormentado com o desperdiço da fortuna de toda a sua vida. Deus, na

sua infinita bondade, concede que a alma venha à terra fazer o que deveria ter feito em vida: dar o

dinheiro a alguém ─ que, de outra maneira, ficaria para sempre perdido. Assim, neste caso, a alma

que aparece em sonho é um enviado de Deus, que trará o bem para quem sonha com ela (ficará rico

se seguir seu conselho) e, ao mesmo tempo, para ela própria (livrar-se-á do que o impede de entrar

no reino dos céus).

Conta-se que as botijas de ouro remontam ao tempo em que os cangaceiros andavam pela

região de Catingueira. Os mais ricos, temendo um assalto às suas fortunas, escondiam as moedas de

ouro e outros bens preciosos dentro de um caixote de madeira ou metal, chamado de botija, e o

escondia em um buraco no chão ou na parede da casa onde moravam. Na ausência de bancos nas

pequenas cidades no interior do nordeste, as botijas funcionavam como alternativa para manter as

economias seguras. Geralmente, o patriarca da família era quem “enterrava” secretamente a botija.

Podia acontecer da morte ou outra adversidade levar este senhor desta casa sem que ele tenha tido

tempo suficiente para desenterrar ou “dar” a botija para alguém. Por isso, são comuns estórias de

sonhos, nos quais a alma de quem enterrou a botija vem “dá-la” para seu escolhido. Neste sonho, ele

indica com precisão onde ela está enterrada e descreve as exigências que o escolhido deve cumprir

para conseguir desenterrá-la e gozar de vida rica a partir de então. As exigências são como um teste

de coragem, no qual muitos falham. Entre as exigências, muito geralmente, o escolhido deveria ir

sozinho ao local determinado e exatamente à meia noite “cavar” a botija. Diz-se que se o medo

impedir o sujeito de ir sozinho à meia noite ao local devido, a botija não seria encontrada, mesmo

que procurada no lugar exato onde teria sido enterrada. Da mesma forma, a botija não pode ser

encontrada por pessoa a quem ela não tenha sido dada (em sonho pela alma). Mas isto não impede

que as casas antigas abandonadas sejam constantemente vítimas de caçadores de botijas, que cavam

buracos em todos os cantos da casa e derrubam paredes em busca do tesouro. Além disso, há casos

de desaparecimento de moradores da cidade que são explicados a partir de botijas. Uma pessoa que

encontra uma botija tende a ir embora da cidade a fim de evitar a cobrança dos espólios pelos

herdeiros. Na região, acredita-se que todas as casas antigas de famílias remediadas ou ricas têm ou

tinham uma ou mais botijas. Alguém deve ter se beneficiado das botijas, pensam os catingueirenses.

Á parte, as botijas de ouro são um tema muito interessante de pesquisa e podem render contribuições

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para o estudo da economia, do cangaço, da religião, do parentesco e família na região do semi-árido

nordestino, além de ter análogos em outras regiões do mundo (CAPABLANCA: s/d).

Adicionalmente, as botijas são temas freqüentes na literatura de cordel. Vide o exemplo a seguir:

“Certa noite ele dormia Embalado por Morfeu Na beira da sua rede Uma alma apareceu Dizendo não tenha medo Contou-lhe todo o segredo Grande fortuna lhe deu” (KLÉVISSON & VIANA 1999: 08).

Também se entende como uma permissão divina se a alma de uma pessoa querida aparece

para dar uma notícia. Há relatos de pessoas que tomam conhecimento da morte de um familiar

próximo através da alma deste mesmo que vem lhe avisar. Muitas vezes, a alma não avisa sobre a

sua morte, mas apenas profere palavras de conforto a fim de preparar seu ente querido para a triste

notícia que está por vir. O vidente, sem entender o que se passa, indaga ao familiar morto quanto à

sua repentina aparição, sem dar-se conta de que se trata apenas da sua alma. Uma mulher me contou

que a alma da sua mãe veio lhe avisar da sua morte. Era bem de manhãzinha, e quando ela foi lá ao

fundo do “muro” (quintal) “buscar não sei o que”, viu a sua mãe sentada em um tamboretinho. Ela

se espantou e disse: “Oxê mãinha, tão cedo a senhora aqui na minha casa! Por onde foi que a

senhora entrou que eu não vi?”. Outra pessoa contou-me que chegou até a oferecer comida para a

alma – que, por sua vez, não aceitou, dizendo que estava com pressa e não podia demorar-se muito.

Muitas vezes, o vidente só se dá conta da morte do familiar quando chega a notícia do seu

falecimento por outras vias. Há, também, outras almas que aparecem para dar conselhos aos vivos

ou trazer conforto em situações difíceis. Além disso, se há alguma pendência que impeça aquela

alma de purificar-se o necessário para entrar no reino de céus ─ por exemplo, uma mágoa não

resolvida ─, Deus pode permitir que ela venha à terra a fim de resolver a questão. Em um momento

de necessidade, uma alma também pode ajudar a um vivo espiritualmente, dando um conselho ou

sugestão e, até mesmo, materialmente. Pode acontecer também de Deus permitir que a alma venha à

terra somente para consolar a sua família querida e pedir que parem de chorar por ela, assegurando

que se encontra em um bom lugar. Para os católicos e espíritas, em todos esses casos as almas são

associadas ao bem. Parece-me que a aparição dos mal-assombros pode ser pensada como uma

concessão divina em função dos vivos ou dos mortos pelos católicos e espíritas. Mas para os crentes,

diferentemente, não há alma que venha fazer o bem, porque todas elas são enviadas pelo Demônio.

Mesmo que ela venha anunciando uma boa notícia, o bem vai reverter-se em mal posteriormente.

Por exemplo, no caso de uma botija de ouro, a riqueza vai ser amaldiçoada, trará discórdia na

família, será causa de brigas e desentendimentos.

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De outro lado, há, ainda, almas que vêem buscar auxílio indireto entre os vivos. Por não

conhecerem outro caminho senão aquele, elas acabam tomando o caminho da casa onde moravam

quando vivos. Neste caso, elas são comumente vistas executando tarefas cotidianas, como se ainda

vivessem naquela casa. Por exemplo, tomando café no seu lugar preferido da mesa ou costurando na

sua máquina de costura. Muitas vezes, as almas não têm interesse em assombrar. Apenas querem

viver ali, como viviam no passado99. O problema é que não tarda a algum vivo percebê-las de

alguma maneira ─ mais comumente pela visão ou por sonho. Veja a estória de uma adolescente de

quinze anos de idade: “Um certo dia minha vó me contou que ela estava vindo do Rio para

Catingueira e que na metade da viagem ela passou pensando em fantasma. Ao chegar de viagem ela

foi se deitar para descansar e passou parte do sono sonhando com fantasmas. Às três horas ela se

levanta e diz: “ainda bem que foi um sonho”. Quando ela ouve o chamado “Zumira, Zumira”! Era

a voz do falecido marido. Um ano depois se levantou para fazer café quando terminou, foi buscar a

caneca e quando voltou viu com seus próprios olhos o seu marido falecido tomando café. Na hora

ela desmaiou.[...].”(FFF. 14. M. 5) 100. Muitas vezes, no intuito de se divertir à custa do medo que

provocam nos vivos, algumas almas gostam de fazer barulhos, chamar pelo nome das pessoas, ou

mover as coisas de lugar. Este tipo de mal-assombro peralta é geralmente reconhecido como a alma

de uma criança que faleceu crescida o bastante para não poder ser considerada um “anjinho” e, ao

mesmo tempo, pequena o bastante para não poder ser corrompida pelo mal101. (Para maiores

detalhes sobre o estatuto das crianças pequenas, refira-se ao Capítulo Dois).

Se, no entanto, a intenção da alma é fazer o mal através do assombramento, reconhecem-se,

neste caso, segundo todas as religiões em questão, que este mal-assombro não é um enviado de

Deus. Vale enfatizar que, em alguns casos, também os católicos e os espíritas reconhecem que as

suas ações estão associadas ao Demônio. Isso ocorre, por exemplo, quando os habitantes de uma

casa são repetidamente acordados com barulhos estranhos, quando objetos mudam de lugar sem

explicação, ou quando a TV ou o rádio ligam sozinhos, causando medo demasiado. Igualmente,

quando uma pessoa tem pesadelos perturbadores e visões ameaçadoras, ou quando, sem outros

99 O leitor poderá estar se perguntando se não haveria, neste contexto, almas consideradas “bem-assombros”. Argumento que o referido não existe porque, em princípio, a aparição de almas causa medo (o que é considerado intrinsecamente ruim). No entanto, como ficará claro a seguir, o assombramento de um familiar morto não deve perdurar, sendo possível estabelecer outras relações que ultrapassam o medo inicial. 100 Vide mais um exemplo: O mal-assombro: “O mal-assombro. Era uma vez uma estória muito engraçada. Minha avó Celeste ela tinha morrido. E ela gostava muito de costurar as roupinhas dela na máquina. Aí meu pai, tinha ficado lá, e os meus tios tinham vindo para Catingueira. E o meu pai estava em Campina onde a minha avó que tinha morrido. Ele ficou lá, aí ele escutou a zoada da máquina. Ele estava dormindo ele se acordou e foi olhar e a máquina estava do mesmo jeito. Quando meu pai estava contando a eu, eu não estava acreditando, mas várias pessoas dizem que é real”. (LSB. 11. F. 23). Seria interessante citar o artigo de Marcio Goldman (2003), no qual o antropólogo, ele mesmo, afirma ter ouvido os tambores dos mortos, que só poderiam ser ouvidos pelos iniciados. A partir do fato, Goldman tece interessantes considerações sobre o trabalho de campo. 101 Jean Delumeau (1996: 95), citando o etnólogo polonês L. Stomma, que trabalhou em seu país com documentos da segunda metade do século XIX, afirma que 38,6% dos casos de mortos transformados em “demônios” ou fantasmas são de crianças mortas antes do batismo.

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motivos aparentes, torna-se agressiva, doente, cai em depressão ou, ainda, quando em sua vida tudo

parece dar errado, mesmo quando ela está levando uma vida de acordo com o padrão socialmente

aceitável. Entende-se que lugar de morto não é em casa de vivos ─ apesar disso muitos deles

parecem gostar de viver junto da família, no lugar onde moravam antes da sua morte. No caso em

que um parente morto esteja inoportunamente freqüentando a sua casa, os vivos devem, geralmente,

rezar por ele, acender velas, mandar celebrar missas, visitar e cuidar do seu túmulo, ou deixar de

pensar excessivamente nele. Em casos mais extremos, pode-se pedir ao padre, pastor ou presidente

do Centro espírita para ir àquela casa a fim de benzê-la ou fazer uma oração. Pode-se também

recorrer ao exorcismo, em casos extremos. No entanto, esta é uma possibilidade remota, que parece

não ter precedentes na cidade. É interessante constatar que, como será visto adiante, algumas

pessoas pedem a Deus a oportunidade de encontrar-se com determinadas almas. Assim, parece-me

que os mal-assombros podem ora ser tidos como bons, ora como maus; ora associados a Deus, ora

associados ao Demônio. O mal-assombro é, então, uma entidade ambígua, que vai ser definida de

acordo com as suas relações ─ que, por sua vez, definem a sua atuação no mundo.

Como afirmei, muito comumente os mal-assombros “aparecem” para os vivos através dos

sonhos e dos sentidos. Pode-se ver, sentir, cheirar e ouvir os mal-assombros. Todavia, parece ser a

visão o mais importante dos sentidos no contato entre os vivos e os mortos. Os mal-assombros se

dão a ver principalmente em três lugares diferentes, cujos primeiros dois chamarei de “não-cidade”

─ dado que, em muitas estórias ouvidas, os fantasmas são vistos “indo para a cidade”, “assombrando

a cidade”, “invadindo a cidade”. São eles: 1) No cemitério, onde há as mais altas taxas de aparição

de mal-assombro constatadas na pesquisa. 2) Na natureza: em lugares ermos, afastados das cidades,

como os sítios e as florestas/matas. 3) Os mal-assombros podem aparecer também nas casas mal-

assombradas. As casas mal-assombradas podem ser divididas em: a) casas velhas abandonadas,

algumas vezes afastadas das cidades e, b) casas onde moram pessoas vivas. Os mal-assombros

podem fazer parte da família que ali habita ou habitava ─ mas não necessariamente. Em princípio, é

possível afirmar que o habitat dos mal-assombros é o longe, o campo, o sítio, o cemitério (que

também é geralmente distante da cidade), e as casas abandonadas pelos vivos. Quando permanecem

distante dos vivos, estão em paz. Eles e os vivos. O problema todo instaura-se quando eles vêem

habitar o mundo dos vivos e adentram as suas casas, tomando posse do que não mais lhes diz

respeito, mas que eles parecem ter dificuldade em compreender. Da mesma forma, quando os mal-

assombros habitam as casas abandonadas, parecem não incomodar demasiadamente os vivos;

todavia, começam a causar problema quando vêem habitar as casas onde os vivos moram102. Assim,

102 A Maria Fulozinha, por exemplo, reina na Serra da Catingueira, o mato é sua casa. Mas se os caçadores querem adentrar sua casa e caçar um dos seus animais, devem em troca lhe fazer um agrado na forma de fumo, para mostrar que são bons convidados. Questão de cortesia. Se, ao contrário, adentram sua casa sem reconhecer a dona, podem esperar receber uma surra muito bem dada e merecida. É apenas quando a Chapeuzinho Vermelho vai pelo caminho da floresta

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parece haver uma forma de organizar o espaço dos vivos e dos mortos: os vivos ocupam o espaço

que pode ser nomeado: a casa, a cidade, o dia, enquanto os mortos ocupam os espaços opostos aos

dos vivos, como: a não-cidade, o distante, a noite enquanto ausência de luz e claridade. A sugestão é

a de que, através dos mal-assombros, os catingueirenses parecem elaborar uma etiqueta que regula

os modos de relação entre os vivos e os mortos103.

Entretanto, aos mal-assombros parece ser sempre reconhecido algum grau de humanidade.

Apesar de habitarem preferencialmente lugares distantes ou desabitados por humanos, o que

chamei de não-cidade (cemitérios, natureza e algumas casas abandonadas), ao mesmo tempo, os

mal-assombros também habitam as casas onde moram os vivos, preferencialmente membros da sua

própria família. Junte-se a este fato a evidência de que os mal-assombros são freqüentemente

representados com alguma característica humana. Note que todos os mal-assombros desenhados

pelas crianças têm pelo menos os olhos – sendo que a maioria tem, além dos olhos, a boca. Muitos

outros têm o rosto humano completo, inclusive o nariz. Outros também têm os membros superiores

e inferiores. Alguns têm as mãos, que usam para segurar armas contra os vivos ou para assustar.

Mas há um detalhe nos desenhos que me chamou a atenção: muitos mal-assombros também têm

umbigos. Ademais, alguns mal-assombros são desenhados exatamente como seres humanos, com a

mesma forma corporal de quando eram vivos. Sem falar que aos próprios mal-assombros são

imputados traços de personalidade, entre eles legais, amigos, alegres, malvados, “prezepeiros”

(travessos), horríveis, horripilantes, feios... Observe o Gráfico Um ao final deste capítulo. Nele,

estão ressaltadas as características físicas dos mal-assombros segundo as pessoas de três aos quinze

anos de idade, além de outros elementos destacados ao lado dos mal-assombros. Para um exemplo

de mal-assombro com umbigo, vide no CD Desenhos O mal-assombro: Desenho 11 O mal-

assombro B. 7. F. 6 e Desenho 17 O mal-assombro LR. 7. F. 9. Para um exemplo de mal-assombro

desenhado na forma de ser humano, vide no CD Desenhos O mal-assombro: Desenho 4 O mal-

assombro GF. 8. F. 11.

Analisando o Gráfico Um, percebe-se que os mal-assombros são largamente desenhados com

características humanas. O que considerei antropomorfo foram mal-assombros desenhados segundo

a forma do corpo humano ou com alguma característica humana, como cabelo, umbigo ou, por

exemplo, usando chapéu. Chamo de “Gaspar” aqueles mal-assombros desenhados a la Gasparzinho,

onde mora o Lobo Mau que sua integridade física é ameaçada. Se escondido no mato, a presença do Lobo não amedronta; aliás, nem é notada. (Para maiores informações sobre a Maria Fulozinha, recorra ao Índice de referências de mal-assombros – Anexo 1). 103 Astuti (in press 2) argumenta que existe uma tensão, largamente estudada pela literatura sobre Madagascar, entre os pedidos e os desejos dos ancestrais, e as aspirações e ambições dos vivos. A fonte da tensão reside no fato inexorável de que o passado é diferente do presente e que as pessoas que viviam no passado não podem mais viver no presente. “The source of the tension is one simple, inexorable fact: that the present is different from the past and that therefore the people who live in the present cannot be the same as the people who lived in the past” (: 9). Além disso, as necessidades, assim como o tempo, mudam.

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o Fantasminha Camarada, o que também poderíamos chamar de “mal-assombro-lençol”. A sua

forma física corporal é desconhecida, uma vez que um lençol cobre o seu corpo ─ embora se saiba

que o lençol é pensado como um artefato usado pelos mal-assombros para esconder os seus corpos

deformados ou putrefatos. Há uma variedade grande de desenhos dentro do rótulo mal-assombro-

lençol. Os mais simples deles têm apenas os olhos. Outros têm o rosto completo e, assim, variando

com ou sem mãos, braços, pernas, pés, umbigo e cabelo. Constantemente, os mal-assombros têm os

cabelos em pé ou arrepiados, resultado de um susto ou, quem sabe, para enfatizar a sua feiúra.

Alguns mal-assombros são pensados na forma de animais: lobos, cavalos, coelhos, cachorro, ou

apenas com características animalescas, como rabos ou orelhas avantajadas. As casas, por sua vez,

são casas mal-assombradas habitadas ou não por gente, de onde, geralmente, correm as pessoas

desesperadas, com medo dos mal-assombros que lá habitam ou assombram. Os mal-assombros

muitas vezes estão flutuando acima das casas ou, às vezes, são pictografados dentro delas. Algumas

vezes, os mal-assombros são desenhados com chifres ou dentes de vampiro, por onde escorre o

sangue da última vítima indefesa do bicho perverso. Note que a terminologia “bicho” é usada tanto

para o Demônio quanto para os mal-assombros. Também foram desenhados muitas catacumbas,

cemitérios, defuntos e enterros. Estes foram incluídos na categoria cemitério/ morte/ cruz. Por fim, a

noite, desenhada com o auxílio da lua e das estrelas, é o lugar preferido dos mal-assombros – que,

muitas vezes, voltam para seu mundo (o outro mundo) quando a manhã vem chegando. Observe o

desenho 7 O mal-assombro LM. 7. F. 18, em que a criança escreveu: “Amanheceu o dia e o

fantasma foi embora”. Para ter uma idéia mais precisa de como os mal-assombros são desenhados,

sugiro que o leitor se debruce sobre os arquivos da pasta Desenhos O mal-assombro no CD anexo.

Detivemo-nos até o presente momento a tentar compreender etnograficamente a ontologia

dos mal-assombros e a sua relação com os vivos. É preciso deixar claro o que até então parece ter

sido apenas levemente sugerido: os vivos e os mortos parecem estabelecer entre si uma relação

ambígua. Em parte, os mal-assombros poderiam ser pensados como o ‘outro’ dos vivos. Eles

habitam preferencialmente a natureza em oposição às cidades, e quando querem assustar, vão para as

cidades, onde moram as pessoas. Além de habitar os sítios ou a natureza, eles habitam os cemitérios.

Da mesma forma, são quase sempre feios e, algumas vezes, têm características animalescas que os

distinguem dos humanos vivos. Mas, por outro lado, os mal-assombros são representados como

próximos dos vivos ou seu ‘igual’. Curiosamente, mesmo que “horríveis”, todos os mal-assombros

têm traços humanos. Como observei acima, todos os mal-assombros têm, pelo menos, um traço do

rosto humano, além das outras características já elencadas previamente. Da mesma forma, a moradia

preferencial dos mal-assombros é, além dos campos e do cemitério, as casas. Estas casas podem ser

abandonadas, mas também podem ser casas onde moram os vivos. Observe os Gráficos Dois e Três

no final deste capítulo, para dar-se conta da popularidade das casas. É preciso mencionar que essas

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são populares em todos os temas de desenho propostos, e também nos desenhos livres. Contudo, o

elevado número de casas não se explica apenas pelo fato de que são simples de se desenhar, sendo

um dos primeiros desenhos que se aprende a fazer. Ao contrário, aposto que as casas desenhadas

podem ser analisadas como parte importante da ontologia dos assombramentos, enfatizando o papel

do parentesco. É interessante constatar que, recorrentemente, essas almas aparecem nas cozinhas das

casas. A cozinha é considerada, como vimos no Capítulo Dois, um dos ambientes mais íntimos e

intrinsecamente ‘familiares’ de uma residência.

O que estou querendo chamar a atenção é que, além de serem desenhados com características

humanas, os mal-assombros também residem em casas, como os humanos vivos. Destarte, os mal-

assombros têm agência humana: eles comem, dormem, conversam, vivem entre si em famílias de

mal-assombros. Existem estórias de mal-assombros, nas quais o marido morto ciumento vem tomar

satisfações com o novo companheiro da viúva. Ao mesmo tempo, ouvi estórias de almas de esposas

que ajudaram o marido viúvo a encontrar uma nova parceira para a vida conjugal. Isso parece

alertar-nos para a relação dos mal-assombros com os laços de parentesco. Observe o desenho 12 O

mal-assombro D. 9. M. 7, em que “Gasparzinho e seus filhos” passeiam pela noite. Keesing (1982:

40) parece concordar comigo, quando afirma a relação próxima entre os desejos dos vivos e dos

mortos no caso dos Kwaio: “Ancestors, as spirits, value what humans value in life” (por exemplo,

carne de porco e coco, alimentos utilizados nos sacrifícios em honra dos ancestrais e altamente

apreciados pelos vivos). Parece que o que torna os mal-assombros distintos dos humanos é (apenas)

o fato de estarem mortos. Poderíamos, então, indagar-nos até que ponto a morte cessa a humanidade

ou apenas a transforma, sendo os mal-assombros, assim, reconhecidamente tão humanos quanto os

vivos. O problema é que o mundo onde os mal-assombros moravam (e ainda teimam em habitar),

não lhes reconhece mais humanidade da forma por eles requerida. Se os vivos reconhecessem

humanidade aos mortos, nenhuma destas visões seria alardeada como anormal, coisa de outro

mundo, medonha, terrível. Para os vivos, os mortos são os outros; ao contrário, para os mortos, os

vivos são seus iguais. Para os mortos, a linha que os separa dos vivos é tênue, uma vez que todos os

vivos serão mortos e que eles há pouco ainda eram vivos; no entanto, para os vivos, a morte é um

mistério, o grande “outro” 104.

104 Bering (2002: 288) afirma que “In terms of the cognitive underpinnings of religion, contrary to previous accounts (cf., Boyer, 2001), most afterlife believers do not represent ghosts and spirits simply as invisible human beings, but rather as invisible human beings with a narrower range of subjective experience than living agents – experience that is delimited by the inactivation of specific psychological systems at death”. Os dados de Catingueira parecem sugerir a mim que, ao contrário, os mal-assombros são tão humanos quanto os humanos vivos, e diria até que as suas experiências são de natureza mais abrangente que a dos vivos, uma vez que eles não estão submetidos às leis da física. Há uma abundante, embora recente, literatura sobre os conceitos infantis sobre a vida após a morte a partir de uma perspectiva interdisciplinar da ciência cognitiva da religião (psicologia, lingüística, antropologia, biologia). Em um destes textos, Bering (2003: 246) se pergunta: “[…] what is a ghost but an invisible dead person with a mind?” Segundo o mesmo, a teoria de Pascal Boyer “[...] holds unequivocally that ghosts should be no different than living people when it comes to basic psychological functioning, at least as they are represented in human minds” (BERING 2002: 267). Boyer discorre

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A categoria “outro mundo” só faz sentido enquanto categoria inventada e acionada pelos

vivos. O “outro mundo” é um termo nativo e adulto que expressa a distinção operada pelos vivos

entre o mundo onde estes habitam e aquele onde habitam os mortos. Para os vivos, há dois mundos

que, embora percebidos como separados, comunicam-se em momentos muito específicos, e sob uma

etiqueta. Segundo os adultos, parece haver uma distinção ontológica entre estes mundos, como

parece haver também entre os mundos do profano e do sagrado, conforme trabalhado no Capítulo

Quatro ─ da mesma forma como parecer haver uma distinção ontológica entre idade adulta e

infância segundo os adultos, como foi trabalhado no Capítulo Dois. De outro lado, parece que os

habitantes do chamado “outro mundo” não se contentam com o seu lugar atribuído e querem passear

e, às vezes, até mesmo morar, no mundo dos vivos. É aí que a situação se complica. No entanto, em

alguns casos, os mortos, por sua vez, têm consciência da distinção entre os mundos dos vivos e dos

mortos, uma vez que eles, recorrentemente, afirmam a necessidade de serem breves no contato com

os vivos, a fim de voltarem de onde vieram o mais brevemente possível105.

A título de conclusão provisória, parece verdadeiro afirmar que os mal-assombros que

habitam as casas onde moravam quando vivos são almas cujos corpos faleceram há pouco tempo.

Em outras palavras, são almas que ainda não foram esquecidas ─ ao passo que as almas que habitam

a não-cidade são as almas indistintas, às quais ninguém reclama parentesco, para as quais ninguém

reza ou acende velas. Estas almas estariam esquecidas se não fossem as orações das senhoras

católicas em intenção das “almas” ou das “almas do purgatório” 106. (Em algumas das igrejas

católicas, encontramos o chamado “cofre das almas”, cujo dinheiro doado deve ser usado na

intenção das almas, para que elas iluminem-se e encontrem o caminho do céu, através da celebração

sobre os fantasmas “The concept [ghost] is that of a person who has counterintuitive physical properties. Unlike other persons, ghosts can go through solid objetcs likes walls. But notice that apart from this ability, ghosts follow very stricly the ordinary intuitive concept of PERSON. Imagine a ghost suddenly materializes in your home as you are having dinner. Starled by this sudden appearance, you drop your spoon in your plate of soup. In a situation like that, your mind creates a whole lot of assumptions of which you are not necessarily conscious. For instance, you assume that the ghosts saw you were having dinner, so she now knows that you are eating. Also, the ghost probably heard the sound of your spoon landing in the soup and can now remember that you dropped it. You assume that the ghost knows you are here, since she can see you... In other words, you assume that this ghost has a mind” (2001a: 73-4). 105 Um rapaz de 18 anos, EFL. 18. M. 7, contesta a associação dos mal-assombros com o “outro mundo”: “Muitas pessoas velhas falam de coisas que aparecem ser do outro mundo, mas eu acho que existem em algum lugar qualquer porque mal-assombros são invisíveis que pode aparecer a gente em matas, quer dizer florestas ou também em nossa casa”. Para ele, os mal-assombros estão em qualquer lugar. Leach (1976: 81-82) afirma que o “outro mundo” é gerado através de uma inversão direta das características da experiência ordinária. Neste mundo, as pessoas envelhecem e morrem. Os seres são mortais, os homens, impotentes, e a vida segue seu curso na seqüência dos acontecimentos, um após o outro. No outro mundo, todavia, os homens são imortais, seres onipotentes que vivem simultaneamente no presente, passado e futuro. O poder enquanto fonte de saúde, vida, fertilidade, riqueza e influência política, está localizado no outro mundo. Os rituais religiosos, segundo ele, têm como objetivo estabelecer uma ponte entre os dois mundos a fim de disponibilizar poder para os homens impotentes. Por outro lado, em uma pesquisa sobre as práticas de sacralização de uma cantora argentina chamada Gilda, Eloísa Martin (2006: 48) afirma: “Como os santos do século VI, que descreve Brown (1981), Gilda está, simultaneamente, “no céu” e presente em sua sepultura. Por um lado, estar “no céu” não significa que esteja em “outro mundo”: o céu dos devotos é “o mundo de cima” (id: 2) e, nesse sentido, faz parte “deste” mundo”. 106 “Morada das almas que ainda não atingiram seu destino definitivo, o purgatório tornou-se o grande reservatório de fantasmas” (DELUMEAU 1996: 96).

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dos serviços religiosos). Entre a não-cidade e as casas onde moram os vivos, no meio termo, existem

as casas abandonadas (pelos vivos). As almas que habitam este espaço estão em processo de

esquecimento, mas podem ter seu passado rastreado quando se rememora a estória da família que ali

outrora habitava. De acordo com esta classificação, pode-se ter uma idéia de quão temível é o mal-

assombro em questão. Os mais horríveis e maldosos são os mal-assombros dos cemitérios e da

natureza, ou seja, da não-cidade. Depois, figuram os mal-assombros que habitam as casas

abandonadas e, por fim, temos os mal-assombros que habitam as casas dos vivos e fazem parte da

família. Aos últimos, não se deve temer e, sim, auxiliar ou receber auxílio. Alternativamente,

algumas pessoas expressam desejo de se encontrar com estes mal-assombros, como anunciei

anteriormente. Muitas pessoas almejam ter uma visão ou um sonho com um ente querido falecido, e

sentem-se frustradas porque não “têm o merecimento” de ver aquela alma. Acredita-se que não é a

qualquer pessoa que as almas podem aparecer ─ especialmente as almas queridas. Neste caso, ter a

visão de uma alma querida é tido como uma concessão divina que segue as regras do merecimento

pessoal, a respeito da qual a pessoa não pode fazer muito, a não ser seguir sendo uma pessoa boa e

aguardar resignadamente a vontade de Deus. Ver uma alma constantemente torna-se assunto para a

vida toda, principalmente se a alma faz parte da família. A visão é, muitas vezes, resignificada com

os passar dos anos, fazendo parte do rol de estórias dignas de se contar para as próximas gerações.

3. Cristianização das crianças e dos mal-assombros

Até o momento, concentramo-nos especialmente no ponto de vista adulto para entender os

mal-assombros; gostaria, agora, de discutir um pouco a perspectiva infantil. As crianças concebem

um número muito mais variado de mal-assombros comparativamente aos adultos. Para as crianças, o

Vampiro, a Bruxa, o Homem do Saco, o Papa-figo, a Rasga-mortalha, a Maria Fulozinha e outros

seres são mal-assombros. Além destes, podemos citar ainda o Gasparzinho (o Fantasminha

Camarada), a Cabeça; diversos personagens da TV, como a bruxa Keka, os robôs, o Supapo, assim

como acontecimentos inexplicáveis como uma zoada estranha, um vulto, uma bandeira branca, um

pano branco, um peso na garupa da bicicleta, um clarão, uma sombra fria, uma gargalhada, a TV

mudando de canal e volume, uma tocha de fogo, um assovio, uma voz estranha, uma réstia na

parede, uma mão branca cheia de pêlos. Sem falar no Bicho Papão, no Lobisomem, na Mulher de

Branco, no Espírito de Luz107, no Zumbi, na Cuca, no Esqueleto, na Mula sem cabeça, no Diabo, na

107 As almas dos mortos também podem ser conhecidas como “espíritos de luz”. Espíritos de Luz são, segundo os espíritas kardecistas, os espíritos desencarnados que atingiram um alto grau de evolução e, portanto, podem interferir positivamente no cotidiano dos humanos. Segundo o Kardecismo, os Espíritos de Luz são, de certo modo, como os anjos da guarda da tradição católica; isto é, seres que ajudam e protegem os humanos quando em necessidade. De outro lado, a concepção de anjo dos católicos difere dos espíritas porque, para os primeiros, os anjos da guarda não são almas

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Morte e nos animais como aranha caranguejeira, morcego, barata, cobra, cobra de cinco cabeças,

rasga-mortalha, jacaré. Mal-assombro para uma criança também pode ser uma casa, um castelo, a

casa da bruxa e até mesmo um pé de juá ou de oiticica. E, por último, temos também os animais

encantados, que podem ser considerados como mal-assombros pelas crianças, como o Carneiro de

Ouro, a Gia Encantada do Olho D´água, a Rasga-mortalha108. Como escreveu um menino de onze

anos de idade em uma redação sobre mal-assombro: “O malassombro é uma coisa que envolve

muitas coisas, fantasmas, bruxas, vampiros, etc.” (J.P.F. 11. M. 6). O mesmo não ocorre com os

adultos que, como vimos anteriormente, apenas reconhecem a possibilidade da existência de mal-

assombro nas almas dos mortos. (Refira-se ao Índice de referências de mal-assombros, no final desta

tese, para uma definição de alguns dos mal-assombros citados).

Os adultos descartam a possibilidade da existência de todos os mal-assombros acima citados

e riem daqueles que acreditam nestas coisas, que eles consideram absurdas e infantis. Para os

adultos, ao contrário das crianças, esses seres são estórias para fazer medo às crianças. Segundo eles,

apenas os mal-assombros-almas parecem ser passíveis de existência. Na entrevista com NP., citada

anteriormente, o tom da conversa era respeitoso e sério enquanto conversávamos sobre as almas dos

mortos e a possibilidade de assombramentos. Mas quando perguntei sobre a Maria Fulozinha e

outros seres como o Vampiro e o Zumbi, NP. assumiu um tom jocoso. Ela ria das minhas perguntas,

refutava os fenômenos a eles relacionados e negava insistentemente qualquer possibilidade de

realidade àqueles seres. De modo geral, essa é atitude dos adultos quando o tema da conversa são os

mal-assombros ─ digo, os mal-assombros que não sejam as almas. Para os adultos apenas as almas

são de verdade. Quanto aos outros mal-assombros, NP. afirma: “Isso não existe! Eu acho que isso é

tudo pra fazer medo as crianças” 109. Observa-se, com o passar dos anos, do ponto de vista do

indivíduo, que aquilo que poderia ser considerado um mal-assombro vai se restringindo. O que

parece ocorrer é a redução do número das entidades plausíveis de serem consideradas mal-assombro.

Ou seja, à medida que a criança cresce, os mal-assombros vão sendo reduzidos à alma dos mortos.

desencarnadas. São espíritos elevados enviados por Deus, mas não foram pessoas em outras vidas e, portanto, não se apresentam fisicamente na forma de humanos e, sim, na forma barroca clássica de anjos, com traços infantis e asas. Os crentes concordam com os católicos neste ponto: para eles, os anjos são uma categoria especial de seres, e não almas desencarnadas – embora uma menina aos dez anos de idade (9. 10. F. O mal-assombro) tenha desenhado um “Espírito de Luz” quando lhe pedi que desenhasse um mal-assombro, deixando claro que, para ela, o espírito de luz era um mal-assombro. 108 Segundo Pacheco (2004), “(...) o termo encantado também se refere a uma categoria específica de seres espirituais: humanos que desapareceram misteriosamente ou tornaram-se invisíveis, “encantando-se” e indo morar em determinados sítios naturais tais como praias, lagoas ou o fundo dos rios (M. Ferretti 2000b)”. Os encantados são muito interessantes, na medida em que podem ser vistos pelos adultos e pelas crianças. Neste sentido, esta categoria de ser problematiza a distinção entre criança e adulto e, conseqüentemente, a restrição dos mal-assombros às almas dos mortos. A questão colocada pelos encantados será retomada adiante. 109 É interessante chamar a atenção para a diversidade de opiniões, mas é importante ressaltar como pano de fundo uma cognição comum, como explora Otavio Velho no texto O Cativeiro da Besta-Fera (1995a: 13-43).

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Todos aqueles mal-assombros que faziam sentido quando se era criança são destituídos do

imaginário adulto. Mas é essencial notar que os mal-assombros nunca deixam de existir110.

Assim, em se tratando dos mal-assombros, o processo de tornar-se adulto implica em tornar

religiosos elementos antes tidos como ordinários. Implica em tornar religioso o que antes não o era;

em explicar, segundo a religião, por exemplo, acontecimentos inexplicáveis ─ como a existência de

mal-assombro. Os adultos lançam mão de explicações religiosas para entender o aparecimento dos

mal-assombros ─ o que não o fazem as crianças. Que tipo de explicação religiosa é essa? Os adultos

explicam os mal-assombros através de: 1) da sobrevida da alma após a morte do corpo, 2) através da

conceitualização do mal e do bem e, finalmente, 3) através das figuras de Deus e do Diabo.

Uma das hipóteses deste trabalho é que, com o passar dos anos, as crianças cristianizam os

próprios mal-assombros através da restrição dos mesmos á alma dos mortos. Nos desenhos

produzidos, vimos que, até por volta dos sete anos de idade, mal-assombro não é necessariamente

alma, nem fantasma111. Por volta desta idade, a criança ainda não parece dialogar com o conceito de

alma versus corpo. Em um desenho de uma criança com nove anos de idade, observamos uma alma

saindo de um corpo defunto quando colocado dentro da sua catacumba, donde parece possível

afirmar a diferenciação da alma e do corpo, segundo esta criança. Vide no CD Desenhos O Mal-

assombro: desenho 9 O mal-assombro R. 9. M. 19. A idéia da existência da alma e da sua sobrevida

após a morte do corpo é um conceito que leva algum tempo para ser assimilado112 ─ assim como os

conceitos de bem e mal, Demônio e Deus. Interessante notar que o Diabo foi desenhado como mal-

assombro pelas crianças, mas apenas a partir dos dez anos de idade113. Os adultos associam os mal-

assombros ao mal ou ao bem, como agentes do Demônio ou de Deus. Para fazer essas associações, é

necessário primeiro reconhecer a Deus e ao Demônio e aos princípios do bem e do mal a eles 110 O fato não parece ser uma particularidade do campo de estudos com que trabalho. Como afirma Bering (2002: 269) “[…] counterintuitive concept categories such as those dealing with afterlife beliefs would spontaneously happen to appear in nearly all societies […]”. Neste caso, por “counterintuitive concept categories” o autor refere-se ao fato da atribuição de funções mentais mesmo depois da morte. Bering & Bjorklund (2004) lembram que os adolescentes e adultos lotam os cinemas quando o tema dos filmes é espíritos ou fantasmas (2004: 218). Além disso, estudando as crenças do pós-morte, Bering chega a afirmar que elas são quase universais, sendo encontradas em quase todas as sociedades “[…] counterintuitive concept categories such as those dealing with afterlife beliefs would spontaneously happen to appear in nearly all societies […]” (BERING 2002: 269). 111 Observe quantas crianças identificaram mal-assombro como almas (fantasmas) - o primeiro número refere-se à quantidade de crianças que desenhou o tema, e o segundo número é o total de desenhos para cada faixa etária. Três anos: 5/25, quatro anos: 1/23, cinco anos: 0/26, seis anos: 3/25, sete anos: 12/22, oito anos: 13/20, nove anos: 18/20, dez anos: 23/25, onze anos: 28/28, doze anos: 36/36, treze anos: 22/22, quatorze anos: 5/5, quinze anos: 11/11, dezesseis anos: 2/4, dezessete anos: 2/2. 112 Apesar de não trabalharem com o conceito de alma, Bering (2002, 2003, 2005), Bering & Bjorklund (2004), Harris & Giménez (2005), Astuti (in press 1), Astuti & Harris (in preparation), pesquisam como as crianças concebem a continuidade ou a cessação das atividades biológicas, psicológicas e perceptuais das pessoas após a morte a partir da perspectiva da ciência cognitiva da religião. 113 Recorra ao Capítulo Cinco, onde espero ter deixado claro que, por volta dos dez anos de idade, dá-se a cristianização das crianças através do fato de que elas deixam de desenhar as igrejas como elemento síntese da religião. Isso confirma a tese de que estas entidades só começam a fazer sentido posteriormente, através do processo de cristianização da criança. De um ponto de vista, os mal-assombros existem antes da cristianização, e permanecem mesmo depois de cristianizados. Parece, então, possível afirmar que eles existem independentemente da moral cristã ─ mas apenas se pensamos no caso das crianças pequenas.

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110

relacionados. O bem e o mal, Deus e o Demônio fazem parte do espírito cristão que predomina no

universo religioso da Catingueira. Desta forma, é necessário introjetar o espírito cristão para se

esquecer de todos os outros mal-assombros infantis, restringir os mal-assombros às almas e associá-

las ao Demônio ou a Deus. Se o processo de tornar-se adulto conduz a cristianização, poderíamos

nos indagar em que medida o crescimento das crianças coincide com uma conversão religiosa, na

qual a pessoa passa a interpretar o mundo a partir de conceitos cristãos. Em Catingueira, nenhuma

pessoa “falha” ao restringir os mal-assombros às entidades religiosas cristãs quando se torna um

adulto. Nesse sentido, crescer em Catingueira implicaria em converter-se ao cristianismo. O

processo de tornar-se adulto parece implicar em conversão, na medida em que os mal-assombros,

antes entidades não-religiosas, passam a ser definidas em relação a conceitos cristãos. É necessário

atentar para a diferenciação entre a conversão de que estou falando e o seu sentido mais usual, de

conversão de adultos − seja de uma religião a outra, seja de religião nenhuma para alguma. Bateson,

em "Culture contact and schismogenesis” (2000 [1972]: 64) propõe ampliar a noção de “contato

cultural” para incluir "processes whereby a child is molded and

trained to fit the culture into which he was born”. O exemplo acima serve como analogia para a

extensão da noção de conversão que proponho fazer. Aqui eu utilizo o conceito de conversão para

tratar de um fenômeno que, em princípio, foge da sua definição original.

Em se tratando dos mal-assombros, este seria o limiar entre as crianças e os adultos: as

primeiras tornam-se adultas no momento em que passam a cristianizar os mal-assombros. A

cristianização dos mal-assombros coincide com a constatação de que os outros mal-assombros

(citados anteriormente) não são de fato reais e, por isso, não apresentam perigo. Eles são

reconhecidos como estória inventada pelos adultos para assustar as crianças, cuja existência só pode

ser afirmada na mente fantasiosa das crianças. Somente as crianças, porque são inocentes − isto é,

não conhecem o mal −, acreditam nesse tipo de mal-assombro, como o Esqueleto. Para acreditar que

ele existe e atua no mundo dos vivos, é necessário não ter ainda bem distinto o que é o mal e o que é

o bem. É necessário, em outras palavras, ainda não ser cristão. Além disso, pensam os adultos que

para acreditar, por exemplo, na Bruxa Keka, é preciso não ser capaz de distinguir entre fantasia e

realidade. A indistinção entre os mundos da realidade e da imaginação é característica atribuída

pelos adultos às crianças.

A primeira conclusão que podemos aventar é que o processo de crescimento parece não

culminar em secularismo. Ao contrário, culmina em conversão ao cristianismo. As crianças são

consideradas adultas quando deixam de acreditar em certos mal-assombros como a Cuca e o

Lobisomem, e restringem o mundo dos mal-assombros a apenas as almas. Para que ocorra esta

mudança é preciso que a cristianização da própria criança já esteja em andamento. Ao mesmo

tempo, quando os mal-assombros são restritos às almas, eles também são cristianizados, porque

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111

passam a ser concebidos como enviados do Demônio ou de Deus – ou como o próprio Demônio.

Nos dois casos, em que os mal-assombros são associados às entidades, o processo aparentemente

culmina com a cristianização dos mal-assombros ─ seja para o bem, seja para o mal. Quando a idade

adulta chega, os mal-assombros passam a ser lidos segundo a tradição cristã. Quando o que pode ser

reconhecível como mal-assombro passa a restringir-se à alma dos mortos, eles não são reconhecidos

senão com referência à moral cristã.

Além disso, parece que para as crianças pequenas, os mal-assombros são concretos, feitos de

carne e osso como os humanos vivos. Só mais tarde é que sua matéria transforma-se em não-matéria.

Quando as crianças crescem, elas acreditam que os mal-assombros são fantasmas; isto é, atravessam

paredes, flutuam, são invisíveis. Como ocorre este processo de transformar o mal-assombro em algo

impalpável? Este processo parece estar ligado à assimilação de conceitos cristãos, na medida em que

o mal-assombro passa a ser tido como não-matéria somente quando ele passa a ser alma (etérea) em

contraposição ao corpo (concreto). Ao mesmo tempo, só no momento em que concebem a

possibilidade de alguém ou alguma coisa estar assombrado é que o mal-assombro deixa de ser

concreto para se transformar em um ser cuja principal característica é sua não materialidade. Assim,

se, hipoteticamente, uma criança pequena atribuiria propriedades físicas a uma mão cheia de cabelos

(MRF. 14. M. 2 O mal-assombro) ou a um Zumbi, um adulto que tivesse a mesma visão considerá-

la-ia uma presepada do Maligno que, ardilosamente, fez que com ele visse algo que não existe de

verdade como se fosse real, com o objetivo de assustá-lo. Ao contrário de pensar que, com o passar

dos anos, o conceito de Deus vai se tornando paulatinamente mais abstrato, como parece ser

unanimemente aceito na literatura sobre o desenvolvimento cognitivo (BARRETT & KEIL 1996:

244), os dados apresentados por Barrett & Keil (1996) sugerem, alternativamente, que as crianças

vão se tornando mais aptas a fazer julgamentos teológicos corretos. A respeito dos mal-assombros, o

leitor poderia, da mesma forma, argumentar que eles se tornam paulatinamente mais abstratos à

medida do crescimento da criança. A afirmação parece fazer jus aos dados apresentados. Mas há

algumas objeções a serem feitas. Os animais encantados, por exemplo, são, simultaneamente,

concretos e abstratos, e podem ser vistos tanto pelas crianças quanto pelos adultos. No entanto, para

a criança pequena os mal-assombros alma são tão concretos quanto a Maria Fulozinha ou o Homem

do Saco. Mas poderia também afirmar que eles são, da mesma forma, tão abstratos quanto. A

afirmação de que as crianças vão se tornando cada dia mais propensas ao pensamento abstrato não

me parece uma boa chave para compreender os dados de Catingueira. O que está em jogo não é a

concretude material dos mal-assombros, senão a sua atuação no mundo dos vivos ─ esta, sim, tida

como absolutamente palpável. Embora: 1) alguns mal-assombros possam materializar-se, como no

exemplo da Mulher de Branco e, 2) o fato de que, para os adultos, a imaterialidade é uma das

principais características das almas.

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Mas há um porém. Para os adultos, se uma árvore não pode ser um mal-assombro, ela pode,

no entanto, estar assombrada. Assim como uma casa, uma sombra ou, até mesmo, uma pessoa. Para

a criança, diferentemente, a árvore pode ser, ela mesma, o mal-assombro. É a árvore em si mesma ou

a casa que tem agência assombradora e, portanto, o poder de assombrar. Mas isto não impede a

existência de mal-assombros que assombram casas ou árvores. Parece que, para a criança pequena, a

casa ou a árvore são o próprio mal-assombro mas, quando cresce, ela vai imputar a esses objetos

uma força que está alhures. A diferença entre a concepção dos adultos e das crianças é que, para os

primeiros, os mal-assombros enumerados previamente não são mal-assombro em si mesmos, mas

acredita-se que estejam sob a ação de um mal-assombro. Em outras palavras, para os adultos a

árvore em si mesma não assombra, mas serve de intermédio para outro mal-assombro ─ um mal-

assombro-alma. Diz-se que ela está e/ou é “assombrada” ou “mal-assombrada”; isto é, ela mesma é

assombrada por um mal-assombro. Da mesma maneira, uma pessoa pode estar “assombrada” se leva

um susto grande, vê algo do “outro mundo” ou tem um pesadelo. Quando um adulto aconselha:

“Não passe por aquele caminho porque aquela árvore é mal-assombrada”, ele quer dizer que um

mal-assombro vem agindo naquela árvore ou através daquela árvore. Não é a árvore mesma que atira

pedras em quem passa debaixo dela, como pensam as crianças pequenas. Segundo os adultos, a

árvore não tem agência. Quem atira pedras ou faz chover apenas debaixo daquela árvore é uma alma

que ali fez sua morada preferida. Estamos diante de uma cosmologia dos adultos na qual casas,

árvores e sombras são assediadas pela atuação de forças vindas do mundo dos mortos. O que torna

algo ou alguém mal-assombrado é a atuação das almas dos mortos. Na pequena cidade de

Catingueira, segundo os adultos, as almas dos mortos podem agir por meio das casas, caminhos,

árvores e animais.

4. Quem tem medo de mal-assombro?

Para o adulto, como vimos até agora, até mesmo o mal-assombro enviado por Deus assombra

─ com a diferença que esse assombramento não deve perdurar. Quando um mal-assombro é enviado

por Deus, ele deve assustar somente até o momento em que se apresentar e tornar explícitas as suas

intenções. Depois disso, o mal-assombro pode até tornar-se uma companhia que presta auxílio e

proteção. Parcialmente, o medo de alma pode ser entendido pela sua ligação com o desconhecido.

Neste sentido, seria o desconhecido que amedrontaria. Quando existe alteridade, o medo está

presente, mas quando identificamos a alma mal-assombrada e, por conseqüência, os seus objetivos,

o medo tende a se dissipar. No caso dos católicos, os mal-assombros podem ser associados ao bem

se revelam-se almas de pessoas que foram conhecidas em vida. Se conhecidas em vida, as almas

serão associadas primordialmente ao bem. Se, ao contrário, não foram pessoas conhecidas, serão

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associadas ao mal. Assim, a alma de um familiar será mais facilmente assimilada a Deus que ao

Diabo. Se esta alma conhecida começar inexplicavelmente a fazer maldades, ficará subentendido

que ela está sob as garras do demônio. Este é quem a induz a tomar certas atitudes inapropriadas.

Estar submetida ao Demônio sugere estar em apuros, à mercê de ajuda. Nestas condições, a ação

maléfica que a alma venha a cometer não é considerada intencional. Ao contrário de fugir da

companhia dessa alma, seus familiares vão tentar se comunicar mais eficazmente com a mesma a

fim de ajudá-la ─ por exemplo, recorrendo ao Centro espírita. Dessa forma, o medo parece ser

sempre a primeira reação frente à aparição de um mal-assombro. Mas esse medo pode ser convertido

em cumplicidade se a alma revela-se uma pessoa conhecida, com boas intenções, ou em apuros.

Como afirmei, tudo isso não é válido no caso dos crentes porque, para estes, mesmo que a alma

apresente-se sob o aspecto de uma pessoa conhecida, isso não corresponde à sua verdadeira

identidade ─ dado que o demônio pode se apoderar da aparência física de uma pessoa querida. Para

os espíritas, diferentemente, as almas vêm do outro mundo para serem doutrinadas ou para transmitir

ensinamentos; dessa forma, não se deve temê-las.

Uma constatação etnográfica interessante em Catingueira é a constância da atitude de

assombrar. A alma que assombra é associada ao mal. Estar assombrado é considerado ruim. Mas o

adulto, deliberadamente, assombra a criança quando quer que ela lhe obedeça. Quando um adulto

não quer que uma criança vá a determinado lugar, a solução mais recorrente é inventar um mal-

assombro que lá habita. Curiosamente, o mesmo artifício que o Demônio usa contra os adultos, estes

usam contra as crianças: assombrar para ser obedecido - o Diabo, alertam os crentes, assombra a fim

de fazer os humanos lhe obedecerem. A criança mais nova é assombrada pela mais velha, o adulto

assombra ambas, enquanto o mal-assombro assombra os três. Em linhas gerais, o temor é o modo de

relação que se estabelece entre os vivos e os mal-assombros. A partir dos desenhos, das conversas e

das entrevistas, percebi que, dos sentimentos despertados pelos mal-assombros, o medo ganha em

disparada. Alguns sentem-se atraídos pelos mal-assombros, mas o número dos que os temem é

incomparavelmente maior. Vide desenho 20 O mal-assombro CM. 9. F. 9 e desenho 22 O mal-

assombro FF. 7. M. 14 para observar outras atitudes em relação ao mal-assombro, para além do

medo. No primeiro desenho, o fantasma se assusta com a mulher que pretendia assustar. O medo que

ela sentiu foi tão grande, que os seus cabelos ficaram em pé, assustando até mesmo o mal-assombro.

No segundo desenho, o mal-assombro é nomeado com o nome de um dos colegas, e serve de

diversão para toda a classe. Entretanto, o temor vai apresentar-se de maneira diferente em cada faixa

etária. Observe no Gráfico Dois como o Temor foi um dos elementos mais destacados (entre três e

vinte e dois anos de idade114) nos desenhos e redações sobre os mal-assombros.

114 Como já foi constatado no Capítulo Um, estes desenhos foram coletados de maneira não intencional. Fiz essa parte da coleta dos dados nas escolas da cidade. Devido às altas taxas de repetência escolar, na turma de oitava série encontrei um

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É preciso ressaltar que os mal-assombros fazem parte do cotidiano da cidade. Desde bebês as

crianças escutam falar neles. Aos dois anos de idade, parece que os mal-assombros não são

reconhecidos pelas crianças – ou, pelo menos, não são temidos. No decorrer do trabalho de campo

no ano de 2005, em certa tarde de domingo, deparei-me com a seguinte cena: pessoas de todas as

idades assistem a uma partida de futebol. O time da casa enfrenta o time da cidade vizinha. F., um

menino de dois anos de idade, é impelido a ficar quieto por uma irmã mais velha, com a seguinte

exortação: “Olha o Homem do Saco!” A criança pára a sua brincadeira, olha para quem lhe dirigia a

palavra e fica em silêncio. A mocinha de catorze anos de idade, responsável por lhe “pajear”, diz

novamente: “Olha o Homem do Saco!”. F. repete-a com sua voz balbuciante: “Homem do Saco”, e

continua sua aventura pelo terreno de terra batida, sem compreender o que diabos é esse tal Homem

do Saco e, muito menos, porque ele deveria ficar quieto diante da ameaça da sua iminente

presença115.

Com isso, parece que os mal-assombros não afetam as crianças desde sempre. Mas, se aos

dois anos de idade as crianças não sabem o que é um mal-assombro, aos três anos de idade o quadro

já parece ser diferente. Presenciei situações que revelam a familiaridade das crianças com a palavra

mal-assombro aos três anos de idade. No entanto, os mal-assombros não são tidos como almas,

muito menos como enviados de Deus ou do Diabo. Em outras palavras, isso sugere que os mal-

assombros não são concebidos a partir do cristianismo. No entanto, desde o momento em que o

conceito de mal-assombro é formado, ele é tido como algo a se temer. Mas as crianças pequenas,

menores de sete anos de idade, temem os mal-assombros segundo uma lógica própria, que difere da

dos adultos e das crianças maiores. As crianças assustam-se com os mal-assombros, mas não

poderiam afirmar que eles sejam o mal ou uma armadilha dele. O medo não vem do fato do pacto do

mal-assombro com o Maligno. Para a criança, o mal-assombro assombra – e isso é ruim. As crianças

pequenas não demandam razões para temer os mal-assombros, diferentemente dos adultos. Temem

porque temem, porque o mal-assombro é terrível – e não porque o mal-assombro vem do Demônio.

Para o adulto, ele é um afiliado do mal e, por isso, assombra. Aqui o processo em jogo é que as

crianças primeiro aprendem a temer para depois aprenderem por qual motivo devem temer ─

processo parecido com aquele que será analisado posteriormente no Capítulo Quatro, sobre a

irrelevância do significado de ir à igreja para as crianças pequenas.

Para as crianças, por sua vez, os mal-assombros não dizem respeito à religião e, portanto, não

podem ser explicados em relação a conceitos religiosos. Mal-assombro e religião não são, em

absoluto, dois assuntos cambiáveis, de acordo com as meninas e os meninos de Catingueira. Observe número elevado de pessoas acima de treze anos de idade. Apesar dos dados não completarem os vinte desenhos de cada idade, eles foram úteis como termo de comparação. 115 Em direção oposta aos meus dados, Turiel (1983) afirma que a mente das crianças de dois-três anos de idade é moralmente orientada, o que o leva a discutir em que medida a moralidade é uma herança natural e biológica, ao invés de construída ao longo dos anos.

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que o número de crianças que citou elementos religiosos no tema de desenho do mal-assombro só

vai aparecer definitivamente depois dos oito anos de idade (Vide Gráfico Quatro no final deste

capítulo). Antes dessa idade, os elementos religiosos praticamente não são desenhados. Isso mostra

que para a criança pequena, mal-assombro não necessariamente relaciona-se com Diabo ou com o

mal ─ muito menos com Deus ou com o conceito de espírito que sobrevive após a morte. Enquanto

para os adultos não existe mal-assombro neutro (ou ele é do mal ou é do bem), para as crianças

pequenas é diferente; esta questão não se coloca. Elas não se perguntam sobre as intenções de um

mal-assombro. Sua ontologia está toda definida no seu próprio nome: ele assombra e assombrar é

ruim. Mas ele não é ruim porque é obra do Demônio, ele é ruim porque é. Sua ruindade está definida

na sua ontologia assustadora, está toda dada em si mesmo e não pela sua relação com outro ser. Os

adultos precisam de causas, mas não as crianças pequenas.

Este processo de buscar razões para as atividades que fazemos sem nos dar conta quando

crianças, coincide com o processo de tornar-se adulto. À medida que se cresce, uma

conceitualização do cotidiano faz-se necessária. O que para as crianças é a realidade incontestável

porque vivida no dia-a-dia, para o adulto é apenas a conseqüência de uma razão maior que rege os

comportamentos. Como, por exemplo, para os adultos, o assombramento do mal-assombro existe em

função das regras do mundo religioso que regem a etiqueta de relação entre os vivos e os mortos.

Essas razões maiores são assimiladas no processo de crescimento. Esse processo de intelectualização

da realidade vivida não se restringe à crença nos mal-assombros, mas toma lugar em todas as áreas

da vida social. Algo similar ocorre a respeito da religiosidade. Primeiramente, as crianças vão à

igreja. Depois, aprendem que vão à igreja por uma razão alheia ao atendimento à igreja

propriamente dito, como se encontrar com Deus ou consigo mesmo ou porque são católicos, como

será explicado no próximo capítulo.

Mas é preciso se indagar como as crianças aprendem que o mal-assombro é algo a que se

deve temer. Como mostrei no exemplo do jogo de futebol, o menino com dois anos de idade não se

abalou com a ameaça da presença do Homem do Saco. O Homem do Saco pouco quer dizer para

aquela criança e, portanto, não amedronta. Podemos tecer um paralelo entre o aprendizado dos mal-

assombros enquanto algo que representa perigo e deve ser temido, e a conversão na Igreja Universal

do Reino de Deus (IURD). A IURD não nega a existência das entidades dos cultos afro-brasileiros,

mas, pelo contrário, “mostra” como elas são malignas e atuantes no mundo. Em um certo sentido,

pode-se afirmar que a IURD depende da existência dessas entidades para levar a cabo o seu projeto

de conversão. Tanto que em países onde as entidades das religiões afro-brasileiras não são

conhecidas, como na Europa (onde a IURD têm expandido seus templos), os pastores devem

primeiro ser capazes de provar a existência de tais entidades para, depois, em um segundo momento,

combatê-las. Como no exemplo citado, primeiro os adultos “ensinam” às crianças que os mal-

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assombros devem ser temidos. Além disso, vê-se que é através das relações sociais estabelecidas no

seio mais íntimo que a criança vai tomando conhecimento dos mal-assombros. Não é apenas na

igreja, nem no colégio, nem muito menos por meio da TV ou da literatura mas, principalmente, no

cotidiano familiar e nas atividades do dia-a-dia ─ o que inclui as brincadeiras e o tempo de lazer que

a criança dispõe junto aos vizinhos e amigos. A criança vai entender que o mal-assombro pode ser

um representante do Satanás, da mesma maneira que aprende sobre a sua própria existência: através

das relações sociais cotidianas. Este processo será exaustivamente explicado no Capítulo Quatro.

Rita Astuti (in press 1) afirma que as crianças não aprendem sobre os ancestrais e a vida após a

morte – como os antropólogos geralmente tendem a pensar ─ ou seja, gradualmente aprendendo

sobre deuses, mágica ou espíritos. Ela afirma que as crianças aprendem que algo da capacidade

mental sobrevive á morte do corpo apenas quando entendem que a morte biológica encerra todas as

atividades físicas e cognitivas. Dessa forma, as crianças aprendem sobre a influência dos ancestrais

no cotidiano dos Vezo quando observam seus animais de estimação morrerem, ou quando dissecam

animais. Em Catingueira, acredito que se passa algo similar: as crianças não são “ensinadas”

formalmente sobre os mal-assombros, mas não poderiam deixar de reconhecê-los, uma vez que

habitam um mundo onde eles são presentes no discurso dos seus pais e avós (ôs) e nas práticas

religiosas de evitação entre os vivos e os mortos116.

Como mencionei, os mal-assombros são reconhecidos já aos três anos de idade; isto é, nesta

idade, a maioria das crianças já teme os mal-assombros. Mas o temor, apesar de representado nos

desenhos, aparece muito incipiente dos três aos seis anos de idade. Observando os desenhos,

constatamos que até os seis anos de idade, o temor dos mal-assombros é pouco representado nos

desenhos (índice menor que 9%). Dos dez aos treze anos de idade é que o temor está mais

representado, não antes. Aos sete anos de idade, há uma taxa de 27% de desenhos onde o temor está

desenhado. E, adiante, aos oito anos: 55%; aos nove anos, 40%; aos dez anos, 72%; aos onze anos:

82%;, aos doze anos, 83%; aos treze anos, 73%; catorze anos, 80%; quinze anos, 91%; dezesseis

anos 100% e, finalmente, dezessete - vinte e dois anos: 100%. O temor dos mal-assombros é

crescente a partir dos três anos de idade, atingindo o pico dos dezesseis anos de idade em diante, mas

mantendo-se alto a partir dos dez anos de idade. O pico ocorre justamente próximo da fase dos dez

anos de idade – na qual observamos a transição para a idade adulta em termos religiosos, como

veremos nos próximos capítulos. Assim, nos desenhos, o temor dos mal-assombros só é

representativo a partir dos sete anos de idade, e atinge os maiores patamares acima dos quinze anos

de idade. Observe o Gráfico Quatro, no final deste capítulo.

116 “[…] it is hard to imagine how Vezo children could escape the conclusion that the dead are a willful and “lively” presence among the living, as they witness the monologues that elders direct at dead but clearly wanting interlocutors, or they share in the offerings of meat and rice given to them, or they suffer the illnesses, enjoy the recoveries or mourn the deaths that are caused by this or that angry angatse” (ASTUTI in press 1). Vide também Keesing (1982: 30-39).

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Entretanto, estes dados podiam conduzir-nos a dois erros. Primeiro, o de pensar que criança

pequena não sabe o que é um mal-assombro e, segundo, o de acreditar que criança pequena não teme

os mal-assombros. Criança pequena reconhece e teme os mal-assombros, mas de uma maneira

distinta da do adulto. De modo geral, o temor dos mal-assombros é um dos temas mais ressaltados

nos desenhos, o que corrobora a afirmação de que mal-assombro e gente relacionam-se através do

medo, como foi visto no Gráfico Dois ─ mas com a importante ressalva, em direção oposta ao

esperado, de que as crianças pequenas temem os mal-assombros com menor intensidade que as

crianças maiores ou os adultos. Assim, ao contrário do senso comum, a cognição dos mal-assombros

poderia ser considerada, em primeiro lugar, como parte do imaginário dos adultos – e não tanto das

crianças! Explico-me. O bem e o mal são conceitos adultos. O mal-assombro enquanto alma é tido

como um enviado de Deus ou, mais constantemente, do Demônio. Portanto, apenas os adultos

poderiam de fato temer os mal-assombros, como alma enviada pelo mal ou pelo bem. Os outros mal-

assombros considerados infantis são temíveis, mas as crianças mesmo sabem que eles também são

de brincadeirinha. As crianças, ao contrário dos adultos, sabem inventar o mal-assombro e o próprio

medo. Sabem que criaturas amedrontadoras também podem ser criadas pela imaginação. As crianças

brincam de temer, de criar o medo, de assustar-se, enquanto o adulto não brinca com essas coisas de

Demônio. No caso dos adultos, em relação aos mal-assombros, o lugar da imaginação é restrito. Eles

sabem muito bem que o mal existe e ponto final. Eles sabem que o Demônio é real e, por isso, a

alma de um morto, sendo um enviado dele, amedronta tanto quanto o próprio. Não passa pela cabeça

de um adulto brincar de inventar o medo. É divertido fazer os outros terem medo, mas sentir medo

não é nada engraçado. O medo é coisa séria para um adulto: ele não brinca de se assustar. Os adultos

inventam histórias de mal-assombro para assustar aos outros – principalmente, as crianças –, e

muitas vezes, acabam eles mesmos assustados. A diferença em relação á criança é que elas brincam

de inventar mal-assombros, ou seja, brincam de assustar-se, enquanto os adultos brincam de fazer os

outros terem medo. As crianças sabem que o Supapo existe na TV, existe nas brincadeiras, existe na

imaginação. Mas a TV, a imaginação, os sonhos que se têm dormindo e a própria imaginação

constituem para a criança parte do mundo real. As crianças sabem que podem criar um mal-

assombro com o corpo do Esqueleto, o nariz da Bruxa, os olhos da Cuca e os cabelos de arame da

Maria Fulozinha com o auxílio de um lápis e uma folha de papel. Depois de criar este mal-

assombro, a criança pode afirmar que ontem à noite ele correu atrás dela perto da porta do cemitério.

Provavelmente, esta criança nunca andou pelos lados do cemitério à noite. Mas, para a criança, um

simples desenho ou a palavra proferida faz realidade, como num passe de mágica. Esta brincadeira

de criar e descriar os mal-assombros pode ser chamada de jogo de evitação e aproximação dos mal-

assombros. Para a criança pequena, o desenho não representa um mal-assombro; é o mal-assombro.

Digo isso porque uma criança desenhou um monstro dizendo-me que já o tinha visto. Perguntei onde

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ela tinha visto aquele mal-assombro. Ao que ela respondeu que ali não existia monstro. Indaguei: “e

como foi que você já viu um?” E ela respondeu: “eu desenhei!” Outras crianças também me

disseram já terem visto mal-assombro. Quando pedia para explicar melhor, elas contavam-me um

sonho117. Interessante constatar que, para o adulto, alguns sonhos também comportam níveis de

realidade, como o sonho da botija ou o sonho da visita de uma alma querida.

Se esses mal-assombros são criados facilmente, eles também podem ser destruídos com a

mesma facilidade. Por isso, as crianças pequenas não demonstram tanto medo dos mal-assombros,

uma vez que, em relação a elas, os mal-assombros gozam de agência relativa. Sua agência é relativa

porque é dividida com a própria criança que tem o poder de criá-lo e destruí-lo, pelo bem da

brincadeira e da diversão. Ao contrário, para o adulto, o mal-assombro tem agência absoluta. Ele é,

em si mesmo, o total responsável pela sua aparição e pelos seus assombramentos. Aos adultos não

cabe mais que “se pegar com Deus” para que eles não lhes apareçam. Se eles quiserem aparecer, não

há muito mais o que se fazer a fim de evitar a “visita”. Por isso, parece ser possível afirmar que se

teme mais os mal-assombros quando se é adulto, porque ele é visto como ser com agência total ─ ao

passo que, para as crianças, os mal-assombros, em grande medida, dependem da sua imaginação

para existirem.

De toda forma, não estou afirmando que a criança não tema o mal-assombro. Afirmo apenas

que ela e o adulto temem os mal-assombros de maneiras diferentes. Também não estou dizendo que

o medo que a criança cria não seja real. A imaginação infantil é capaz de criar muitos mal-

assombros e, ao mesmo tempo, é capaz de destruí-los. Alternativamente, poderíamos pensar a partir

de Gregory Bateson (BATESON 2000 [1972]: 271-78), que a criança estabelece uma perspectiva

mais positiva em relação aos “duplos vínculos” (para uma análise do conceito de “duplo vínculo”

vide VELHO, em preparação). Para ela, o medo pode ser, ao mesmo tempo, inventado e real. A

figura do mal-assombro pode ser, simultaneamente, fascinante e terrível. Percebe-se que, de maneira

geral, as crianças têm uma atitude subversiva em relação a algumas antinomias da sociedade adulta.

117 Alguns desenhos de mal-assombro são interessantes misturas de mal-assombros reconhecidos, categorizados como mal-assombro não identificado. O leitor pode estar se perguntando o que são os mal-assombros não identificados. Nas primeiras faixas etárias pesquisadas, quando pedia para as crianças desenharem um mal-assombro, muitas vezes elas me apresentavam desenhos que não podiam ser classificados em nenhuma categoria reconhecida de mal-assombro. Porém, segundo elas, o desenho era um mal-assombro. Identifiquei estes mal-assombros como mal-assombro não identificado, isto é, os quais as crianças nomearam “mal-assombro”, mas que nos quais não distinguiam nenhum traço evidente de algum mal-assombro reconhecido. O mal-assombro é auto-explicativo na idéia de uma criança pequena: é o que é, sem necessidade de outros substantivos como mal-assombro Vampiro, mal-assombro Bruxa, mal-assombro Maria Fulozinha. Dizer que um ser é um mal-assombro basta para especificar um desenho, designa algo que tem começo e fim em si mesmo. Mais tarde, as crianças começam a distinguir que o mal-assombro pode ser, por exemplo, a Rasga-mortalha ou o Zumbi. Desde cedo, aos três anos de idade, elas sabem que existe alguma coisa que é chamado mal-assombro, embora elas não saibam exatamente que forma ele tem e, por isso, os desenhos não eram classificáveis nas categorias reconhecidas. As crianças pequenas estão formando a imagem do mal-assombro através dos relatos que ouvem. Uma vez formada a imagem dos mal-assombros reconhecíveis é que vai fazer sentido vê-los. Até o momento, o número das crianças que já viu mal-assombro não é substantivo. Isso porque o mal-assombro já existe enquanto conceito, como algo que assombra, mas não tomou ainda uma forma física definida. Apresenta-se em várias formas, muitas vezes bricolagens de diferentes mal-assombros conhecidos.

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Para elas, a imaginação cria realidade, o desenho e o sonho são reais, o medo e o fascínio andam

juntos. É preciso afirmar, no entanto, que o jogo de evitação e aproximação em relação aos mal-

assombros é praticado com deleite pelas crianças. Um adolescente de quinze anos de idade escreveu

ao final de uma redação sobre os mal-assombros: “Vou confessar: gostaria de ver esse monstrengo!

E você?” (ELB. 15. M. 7) As crianças mais corajosas, geralmente as mais velhas, divertem-se em

chamar as entidades pelo nome a fim de fazer medo nas outras crianças. Brincar de fazer medo,

principalmente se a noite se aproxima ou se se está em lugares ermos, é uma das brincadeiras

preferidas das crianças. Nestes ambientes, as estórias sobre os mal-assombros e as entidades surgem

como que naturalmente. Entretanto, no decorrer do jogo, até a criança que o começou está com

medo. Esse tipo de jogo do medo ocorre também entre adultos, principalmente jovens. Como no

caso dos fe(i)tiches (LATOUR 2002b [1996]) apesar de terem sido inventadas, as entidades exercem

influência sobre aqueles que o inventaram.

Para o adulto, ao contrário, não passa pela sua cabeça inventar um Demônio. O Demônio é

algo que “está lá”, tem vida própria, existe. Na visão de um adulto ele existe em si mesmo, e não

depende da imaginação dos homens para agir em toda a sua potência. Em outras palavras, as

crianças operam com uma variedade incrível de mal-assombro e, ao mesmo tempo, podem destruir

todos eles. Os adultos, por sua vez, acreditam em apenas um mal-assombro, mas não o concebem

como sua criatura, sua invenção. Ao contrário, para os adultos, a alma dos mortos e o Demônio têm

agência independente da vontade dos humanos. É isso que os torna realmente assustadores. Em

outras palavras, em relação aos mal-assombros, as crianças têm agência; já os adultos são passivos.

Desse modo, entendemos que o medo dos mal-assombros seja muito mais substancial na idade

adulta e para as crianças maiores de dez anos de idade.

Os números apresentados – de que o temor dos mal-assombros é mais substancial quando

adulto – corroboram as evidências do trabalho de campo. Tentei computar o número das crianças

que tiveram contato com mal-assombro118. Os dados são os seguintes: três anos: 12%; quatro anos:

17%; cinco anos: 23%; seis anos: 32%; sete anos: 50%; oito anos: 25%; nove anos: 40%; dez anos:

72%; onze anos: 93%; doze anos: 94%; treze anos; 91%. Se conferirmos os dados das pessoas acima

de catorze anos de idade, o número de pessoas que tiveram contato com mal-assombro atinge a

marca dos 100%. Dos desenhos de todas as idades pesquisadas, a categoria “ter visto” um mal-

assombro é um dos elementos mais ressaltados, junto com o medo desses mal-assombros, como

pode ser constatado no Gráfico Dois. Interessante notar que o medo dos mal-assombros também

cresce de maneira similar ao número dos que tiveram contato com eles, em escala ascendente, à 118 Nesta categoria foram incluídas a) os desenhos ou redações nos quais as crianças dizem já terem visto mal-assombro; b) desenhos ou redações nos quais as crianças contam a estória de alguém que já viu; c) desenhos ou redações nos quais as crianças contam uma estória na terceira pessoa do singular ou plural a qual não conheciam o protagonista ou o inventaram; d) desenhos ou redações que contam uma estória de mal-assombros que viram na TV; e finalmente, e) desenhos ou redações sobre um sonho.

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medida que a criança cresce. Quanto mais velha a criança, mais contatos com os mal-assombros são

afirmados e, por sua vez, mais medo parece haver. O número de crianças que afirmam terem contato

com os mal-assombros ultrapassa os noventa por cento aos onze anos de idade, e chega a cem por

cento depois dos catorze anos de idade. É interessante notar que as crianças maiores dizem terem

visto mais mal-assombro que as crianças menores ─ ao contrário do que se poderia pensar, uma vez

que às crianças menores é imputado uma imaginação mais fértil.

Bering e seus colaboradores (BERING & BJORKLUND 2004; BERING, HERNÁNDEZ-

BLASI & BJORKLUND, 2005; BERING, in press) afirmam que as crianças pequenas possuem

uma disposição natural para atribuir aos mortos faculdades como sentimento, pensamento,

compreensão. Esta disposição torna-se menos evidente quando as crianças aprendem que a morte

constitui um processo biológico. Entretanto, os dados de pesquisa que produzi, assim como os de

Astuti (in press 1) e Paul Harris & Marta Giménez (2005), parecem caminhar em direção oposta.

Pesquisando as crenças sobre a após-morte em crianças espanholas, Harris & Giménez chegaram a

conclusão que as crianças menores vêem a morte como um fato biológico, que cessa as funções

biológicas e mentais, ao passo que as crianças maiores tendem a afirmar a continuidade de algumas

funções, mesmo após a morte biológica. Astuti (in press 1), por sua vez, analisando seus dados de

Madagascar, afirma igualmente que entre as crianças maiores houve mais afirmações de

continuidade das funções depois da morte que entre as crianças menores. Parece que os dados

produzidos por mim corroboram as sugestões dos últimos autores, na medida em que, em

Catingueira, são as crianças mais velhas que mais temem os mal-assombros, além de terem tido mais

encontros com os mesmos.

Se pensarmos no caso dos adultos, um número muito expressivo de pessoas demonstra medo

dos mal-assombros. São os adultos e, freqüentemente, os idosos, aqueles que têm mais estórias para

contar sobre os mal-assombros. Este skill lhes é reconhecido pela comunidade. Ao falar sobre as

estórias dos mal-assombros, as pessoas constantemente acrescentam que “os mais velhos” são os

maiores especialistas no assunto ─ como na redação de uma adolescente de quinze anos de idade,

cujo título era “Os fantasmas”. “Eu nunca vi mais muitas pessoas dizem que já viram. Claro que eu

não acredito, mais o povo mais velho conta muita história que deixa a pessoa apavorada. [...]

Quando falta energia fica tudo batendo, eu fico imaginando que pode ser fantasma. Eu nunca quero

ver, por que não tenho coragem suficiente” (MCNC. 15. F. 1). Além disso, são “os mais velhos”

que sabem como melhor proceder no caso da aparição de um mal-assombro. L. 12. F. uma vez

indagou-me por que não ir à sua casa conversar com a sua mãe sobre os mal-assombros. Ela não

entendia o motivo de eu priorizar a sua versão dos fatos, já que, na sua opinião, a sua mãe e o seu pai

entendiam muito mais do assunto que ela própria.

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121

Desta forma, fica claro que os mal-assombros não são assunto apenas de crianças ou dos

adultos, mas são assunto no qual toda a comunidade está implicada. Mas como sugeri anteriormente,

os mal-assombros enquanto almas dizem respeito principalmente aos adultos, na medida em que são

estes que distinguem o bem e o mal. Margaret Mead (1932) afirma que, entre os Manu, a crença dos

fantasmas era uma característica da sociedade adulta – a qual as crianças não apresentavam. A

antropóloga pediu às crianças que desenhassem livremente, e constatou que pouquíssimas

desenharam fantasmas ─ o que parecia ir contra a sociedade adulta, na qual os fantasmas

constituíam parte significativa das conversas. Naquele contexto, ela afirma que os fantasmas eram

uma pré-condição da sociedade adulta ─ exatamente o contrário da sociedade norte americana, a

qual servia como contraponto para a antropóloga. Semelhantemente aos Manu pesquisados por

Mead, os mal-assombros-alma são, em Catingueira, primeiro um apanágio do mundo adulto, uma

vez que apenas quando se compreende as antinomias Deus e Diabo, corpo e espírito, bem e mal, é

que é possível compreender os mal-assombros-alma na sua total ontologia. Quando digo sua total

ontologia, refiro-me ao mal-assombro como alguma coisa que existe em si mesma, independente da

vontade dos humanos. Ou seja, só se pode entender o mal-assombro na sua completa ontologia

quando se aproxima da idade adulta, porque só aí se dialoga plenamente com o cristianismo.

Entretanto não estou afirmando que os mal-assombros sejam apenas uma precondição adulta, uma

vez que eles também estão presentes na vida das crianças. A satisfação das crianças em participar da

pesquisa mostra muito bem o quanto elas interessam-se pelos mal-assombros. Em Catingueira, os

mal-assombros fazem sentido para as crianças e para os adultos. Mas existem diferenças importantes

entre as concepções de mal-assombro das crianças e dos adultos.

Resumindo o tópico, gostaria de aludir que se para temer o mal-assombro na sua total

potência assombradora é necessário reconhecer o Diabo, é compreensível que o medo não seja tão

expressivo até os sete anos de idade, uma vez que as crianças ainda não parecem dialogar com este

conceito. Elas não operam com a categorização do mal-assombro enquanto um ser do mal ou do

bem e, portanto, elas não o temem sobremaneira. No futuro, temerão muito mais. Os adultos temem

mais os mal-assombros que as próprias crianças porque, para eles o mal-assombro é, geralmente,

obra do Demônio – e este sim, é um ser terrível. As crianças pequenas, por sua vez, ainda não

conhecem o mal e o Demônio. E então, faz sentido que somente quando cristianizadas as crianças

vão realmente expressar maior temor dos mal-assombros, uma vez que só neste momento essas

entidades vão alcançar sua completa agência em relação aos humanos. Essa afirmação pode ser

corroborada pelos números que mostram o temor aumentando à medida que a criança cresce. Como

se viu, é exatamente quando aprendem porque o mal-assombro é temível, isto é, porque tem um

pacto com “O das Trevas”, que o temor vai se apresentar com mais representatividade nos desenhos.

Somente quando as crianças efetuam a passagem da vivência cotidiana em si mesma para chegar à

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necessidade de intelectualização da mesma, ou seja, quando elas perguntam-se por que o mal-

assombro é amedrontador; aí sim, parece que o medo vem a galope.

No entanto, faz-se necessário problematizar a distinção adulto x criança com a qual estamos

trabalhando aqui. Existe uma vasta literatura sobre a compreensão da morte pela criança. A grande

maioria destes estudos compara o entendimento infantil da morte a partir do pressuposto de que o

entendimento maduro e adulto passa pela afirmação da sua irreversibilidade: isto é, um morto não

pode voltar a viver. Brent & Speece (1993) indagam-se se os adultos realmente pensam assim, e

mostram que o pressuposto de que eles acreditam que a morte é irreversível é falso. De fato, o

resultado da pesquisa mostra que os adultos falharam em afirmar a irreversibilidade da morte com

níveis mais altos que as crianças: 44 % dos adultos e 69% das crianças afirmaram a irreversibilidade

da morte (BRENT & SPEECE 1993: 207). O fato leva-nos a refletir sobre os pré-conceitos que as

pesquisas podem, muitas vezes, comportar, além de indagar especificamente sobre as distinções

entre os adultos e crianças. Será preciso relativizar a distinção adulto x criança também nesta tese ─

o que deverá ser feito no final deste capítulo, assim como nos próximos capítulos e nas Conclusões.

Antes de finalizar, gostaria de mencionar rapidamente a questão da possibilidade de duvidar

da existência dos mal-assombros. Veja esta redação: “As aparências enganam. Existem vários tipos

de fantasmas. Feios, bonitos, legais, assombradores, muitos deles não fazem mal, querem dar

alguma coisa de bom para a gente. - O fantasma é muito feio e, às vezes, legal. Eles gostam de fazer

medo, os fantasmas não é coisa de Deus, é do encardido. Não acreditem em fantasmas, eles não

existem”. (J. 14. M. Do que eu tenho medo). O texto é rico e vale a pena ser analisado. Ao mesmo

tempo em que o rapazinho exorta as pessoas a não acreditarem em mal-assombros porque eles não

existem, ele discorre sobre as características físicas e de personalidade, as intenções e as origens dos

mal-assombros. Como algo que não existe pode ser caracterizado com tantos detalhes? Ele começa

por dizer que as aparências enganam, ou seja, mesmo que um fantasma seja feio, ele pode ser bem

intencionado. Depois de dizer que eles podiam fazer o bem, ele afirma que fantasma não vem de

Deus, mas do Inimigo. Destarte a frase “Mal-assombro não é coisa de Deus” é ouvida facilmente

pelas ruas de Catingueira. Parece-me que o adolescente, em fase de rever seus conceitos, ainda não

sabe muito bem o que pensar sobre os mal-assombros. Se afirmar a existência deles, pode se passar

por criancinha. Em todos os casos, apesar de discorrer sobre os mesmos, no final da redação o

adolescente prefere não correr esse risco, e acaba por afirmar a sua não-existência. Além disso, a

veracidade da aparição de um mal-assombro é pouco contestada ─ a não ser pelos adolescentes. Mas

como os mal-assombros não se dão a ver por toda a gente, é comum ouvir-se: “eu não acredito em

alma, nunca vi uma”. Neste caso, ocorre a afirmação da possibilidade de existência dos mal-

assombros, apesar de não experimentada. No entanto, é raro uma pessoa afirmar que as almas não

existem, negando-lhes toda a realidade. O comum é afirmar “nunca vi e nem quero ver” ou “Deus

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me livre de uma hora destas!”. A frase deve ser levada a sério: somente Deus é poderoso o

suficiente para livrar os vivos do assédio dos mal-assombros, como deverá estar claro,

principalmente neste capítulo. Além disso, a frase parece deixar claro que a experiência não é de

todo estrangeira. Além disso, o “nunca vi uma” lembra-nos o fato de que outras pessoas já viram. De

acordo com o material de pesquisa que produzi, a experiência de ter visto uma alma é comprovada

por parentes próximos, sugerindo o lugar primordial dos laços familiares no entendimento do que

sejam os mal-assombros.

5. Conclusões

Neste momento, gostaria de, em poucos parágrafos, resumir o capítulo e lançar algumas

sugestões conclusivas. Vimos que, para os adultos, os mal-assombros são apenas as almas dos

mortos quando habitadas por forças que vem do Demônio ou de Deus. Para as crianças, de outro

lado, podem ser mal-assombros uma vasta gama de seres, entre elementos da natureza, objetos,

pessoas, personagens de estórias e da TV e até acontecimentos. Segundo elas, o mal-assombro é

encantado em si mesmo, vem dele próprio a sua força assombradora. No decorrer do capítulo,

mostrei que as crianças brincam de ter medo e brincam de inventar mal-assombros. Como a

“menininha fingindo assustada do bicho papão”, na letra da música de Toquinho e Vinicius de

Moraes (Valsa para uma menininha). Assim, em relação às crianças, os mal-assombros gozam de

agência relativa. Entretanto, o medo infantil é real, embora possa ser fabricado e desfeito a qualquer

momento. Distintamente, os adultos acreditam que o mal-assombro e o Diabo são seres que não

dependem da vontade dos humanos para agirem, gozando assim de agência absoluta. Curiosamente,

são os adultos que apresentam as maiores taxas de medo dos mal-assombros, além da comunidade

reconhecer nos idosos os melhores contadores de estórias de mal-assombro.

Apresentei também, ao longo do capítulo, as diferenças na percepção dos mal-assombros

segundo as religiões representadas. Para os católicos e para os espíritas, os mal-assombros podem

ser enviados de Deus ou do Diabo. São enviados de Deus quando aparecem para fazer o bem, dar

conselhos ou até pedir ajuda. São enviados do Diabo quando causam medo demasiado, ou quando

suas ações são intencionalmente maléficas. Para os crentes, por outro lado, não há mal-assombro que

não seja enviado do Demônio. Uma das hipóteses deste trabalho é que os mal-assombros passam a

ser lidos segundo o cristianismo à medida que a criança torna-se adulta. Espero ter mostrado

etnograficamente como se dá o processo de restrição dos mal-assombros à alma dos mortos e

associação destes á Deus ou ao Demônio.

Analisados todos os trezentos e catorze desenhos produzidos sob o título “O mal-assombro”,

espero ter esclarecido as diferenças entre os adultos e as crianças no que diz respeito à ontologia dos

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mal-assombros e modos de relação estabelecidos com os vivos. Computando todos os desenhos que

as crianças de três a treze anos de idade produziram sobre o tema do mal-assombro, chegamos à

constatação de que gente, já vi, temor, fantasma são, nesta ordem, os elementos mais citados (vide

Gráfico Dois). A primeira observação a ser pontuada vai ao encontro da presença maciça de gente

nos desenhos. Os dados parecem fazer sentido quando os mal-assombros são pensados em paralelo

ao mundo dos vivos. A segunda observação decorre da primeira: as pessoas vêem os mal-assombros.

É primordialmente através da visão que eles se dão a conhecer pelos vivos. Além disso, constata-se

um número elevado de visões de mal-assombro, que aumenta à medida que a criança cresce. Outra

observação a ser destacada é que as pessoas relacionam-se com os mal-assombros através do temor.

O mal-assombro é algo a se temer. Por fim, a última observação é que os mal-assombros mais

citados são os fantasmas. Mal-assombros são fantasmas, fantasmas foram gente viva. Agora, eles

são almas. São desenhados, na maioria das vezes, como se fossem humanos, com pernas, braços,

cabeças, até umbigos e, freqüentemente, com um lençol que cobre todo o seu corpo. Fecha-se o ciclo

que põe em relação as almas e os vivos. A alma foi uma pessoa viva. O morto assombra o vivo, que

vai assombrar outros vivos, quando for apenas alma.

Entretanto, os animais encantados, como o Carneiro de Ouro, a Gia Encantada, a Rasga-

Mortalha não parecem se enquadrar na descrição que aqui estou tecendo. Estes seres podem, de um

lado, ser vistos por ambos ─ crianças e adultos – e, por outro lado, a sua existência independe de

uma moralidade cristã ou religiosa. Neste sentido, os encantados colocam uma questão para a análise

concebida até então, na medida em que não se encaixam no modelo da cristianização dos mal-

assombros. Parece-me que os encantados são uma categoria de ser que problematiza a

conceitualização dos mal-assombros, não permitindo a reificação das crianças, nem dos adultos e, ao

mesmo tempo, não permitindo a reificação da própria discussão aqui apresentada.

Gostaria de, finalmente, mencionar a relação dos mal-assombros com o sistema de

parentesco, problematizando o fato de que os mal-assombros também vivem em famílias e habitam

casas. Parece-me interessante ressaltar que, antes dos sete anos de idade, as casas mal-assombradas

praticamente não são desenhadas, predominando o tipo de mal-assombro que habita a “não cidade”

– e, conseqüentemente, aqueles considerados mais horripilantes. Apenas depois dos sete anos de

idade, quando temos mal-assombros habitando as casas, temos mal-assombros considerados como

parte da família. Os mal-assombros que habitam as casas são almas e, por isso, nunca são tão

horríveis ou assombradores quanto os mal-assombros desenhados por crianças pequenas119. Além

119 Aos três e quatro anos de idade, em grande medida, não foi possível categorizar os mal-assombros desenhados. Algumas crianças não desenharam: desenharam outros temas ou desenharam mal-assombro cuja forma não é conhecida ─ os chamados mal-assombros não identificados. Parece que o mal-assombro é desenhado pelas crianças de seis a oito anos de idade com as mais diversas características ─ que, por sinal, coincidem com as mais horríveis e assustadores. A partir dos oito anos de idade, temos um número crescente de mal-assombro-lençol. Apesar das crianças temerem menos os mal-assombros que os adultos, eles são desenhados como se fossem os mais terríveis e assombradores. Ao contrário,

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disso, os mal-assombros, enquanto parentes falecidos que habitam a casa onde moravam com a sua

família quando em vida, são significantemente menos assustadores. Isso parece sugerir que os laços

de parentesco humanizam os mal-assombros, ao passo que a não relação (familiar) dá lugar aos

monstros e aos perversos. É possível afirmar que os mal-assombros não relacionados por laços de

parentesco tendem a ser mais assustadores que os mal-assombros reconhecidamente membros da

família. Vale lembrar que, em diferentes aspectos, a família vem sendo tema recorrente, ao longo de

toda a tese. No caso específico dos mal-assombros, a família e os laços de parentesco parecem

desempenhar papel importantíssimo na definição da ontologia dos assombramentos.

Em título de finalização do capítulo gostaria de discutir, por fim, o que me parecem ser duas

novidades – e uma conseqüência a partir delas. Vimos que para se temer plenamente os mal-

assombros, é necessário ser adulto. Vimos também que o crescimento etário conduz à cristianização

ou conversão ao cristianismo – e não a secularização. Uma repercussão interessante destes dados é

que, ao invés de estarem associados preferencialmente a um mundo encantado, os mal-assombros

estarão associados a um relativo desencantamento. Isto acontece na medida em que os objetos

deixam de estar encantados em si mesmos. Quando o mundo se desencanta, os objetos perdem sua

capacidade intrínseca de agência. No seu lugar, concebe-se um mundo onde objetos sofrem

passivamente a ação de forças externas. Os mal-assombros deixam de estar em si mesmos

encantados, mas passam a sofrer a ação de encantamento de um outro ser ─ freqüentemente, o

Demônio. A árvore, antes completamente ativa, perde toda a sua agência, e torna-se um objeto nas

mãos do Demônio. Este desencantar do mundo ocorre paripassu ao processo de crescimento. Os

mal-assombros são associados a este mundo que concebe as coisas como objetos separados da sua

agência. Com isso, ao contrário do esperado, a crença nos mal-assombros é uma propriedade de um

mundo que foi desencantado, um mundo adulto120. Simultaneamente, os mal-assombros dizem

respeito a um mundo cristão, na medida em que o mal-assombro é restrito à alma dos mortos

enquanto enviada por Deus ou pelo Maligno. Se assim é, podemos corroborar a idéia de que crescer

implica em um desbastamento porque demanda a restrição drástica dos possíveis mal-assombros.

Restringe-se o mundo dos mal-assombros de uma variedade imensa de seres, encantados e

ocorrências a apenas um ser ─ a alma dos mortos ─ cuja ontologia (ser do mau ou ser do bem), vai

quando se aproxima a idade adulta os desenhos dos mal-assombros são pouco diversos, predominando os mal-assombros-lençol. É preciso dizer que as crianças, geralmente, usam mais a criatividade para desenhar, o que vai se restringindo com o passar dos anos. Aos seis anos de idade, temos o primeiro mal-assombro-lençol, mas aos dez anos de idade, a grande maioria dos mal-assombros desenhados são desde tipo ─ embora com variações específicas, como dentes, cabelos, olhos etc. Em compensação, se os desenhos não são tão elaborados, há uma priorização da narrativa escrita. 120 O leitor poderia indagar que se os mal-assombros deixam de ser encantados em si mesmos para sofrer a ação de encantamento de outro ser (freqüentemente o Demônio), o que se passa não é desencantamento, mas um outro tipo de encantamento. Por outro lado, a ação de um demônio talvez possa ser melhor entendida em termos de dominação, sobrepujamento ou aliciação, que de encantamento. Além disso, como argumentei anteriormente, o mal-assombro deixa de ser encantado em si mesmo, o que pode ser tido como evidência de desencantamento.

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ser compreendida, ao fim e ao cabo, pela relação de parentesco que estabeleça com o sujeito que tem

a visão.

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6. Apêndice Gráfico 1

Características físicas dos M-a desenhados - 3 a 15 anos de idade80

5854

4844

32 31 3026

20 2015 13

7

0

20

40

60

80

antropomorf o natureza Gaspar comrosto

casa cemitério/morte/ cruz

Gaspar rosto ebraço

cabelo em pé animalesco noite sangue/ f aca Gaspar c/ rosto,braço, mão

Gaspar c/ rosto,braço, pernae/ou umbigo

dente dev ampiro

chif re

características físicas

núm

ero

abso

luto

Gráfico 2

Elementos Destacados nos Desenhos de Mal-Assombro

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

FantasmaAlma

M-a TV

Não identificado

Bicho Papão

Monstro

Maria FulozinhaBruxa

LobsomemVampiro

Espírito de Luz

EsqueletoCuca

MulaZumbi

DiaboMorte

Animais

Casa Mal-assombradaNão sei

Outros temas

TemorDúvida

Atração

CoragemGente

Tema religioso

Tema noturno

Tema fúnebre

Tema naturalViu?

Elementos Desenhados

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Gráfico 3 Casas

0%

10%

20%

30%

40%

50%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

Gráfico 4

Temor

0%

20%

40%

60%

80%

100%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17-22Idade

Gráfico 5

Elementos religiosos nos desenhos dos Mal-assombros

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

3 4 5 6 7 8 9 10 11

idade

%

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CAPÍTULO 4: O que as crianças pensam sobre religião?

“Era uma vez um barco navegando no mar. Uma árvore que dá fruto, um pé de cocos que dá coco. Uma borboleta que voa pelo ar e um trem que anda pelos matos que os animais comem. Uma

árvore que dá maça, que dá fruto. O sol que brilha e clareia o mundo. O aquário que vive os peixinhos, o mar que também vive os peixinhos. A baleia que também vive no mar, a sereia, a Iara. O trem que leva passageiros. Os pássaros que voam. A nuvem que chove, o arco íris que é bonito.

Eu gosto do arco-íris e de Deus.” CFB. 7. F. Livre.

1. Introdução

Apesar de pequena, a cidade de Catingueira conta com cinco templos religiosos de diferentes

ramos do cristianismo que, por sua vez, quase sempre estão cheios. A festa do Padroeiro São

Sebastião é um espetáculo de devoção que atrai gente das cidades vizinhas e dos grandes centros

urbanos do país (PIRES 2000, 2003, 2004a, 2005a). Por isso e por outros fatos, como a maneira pela

qual a religiosidade está configurada − por exemplo, em cada pequeno gesto de cumprimento como

o “pedir a benção” −, parece-me verdadeiro afirmar que, em Catingueira, a religião é um dado, e ser

religioso é a regra moral a ser seguida. Para chegar a essa proposição, foi preciso, como discuti na

Introdução, trabalho de campo multifocado. No entanto, decodificar o dado é apenas o ponto de

partida da pesquisa antropológica. É preciso agora, no entanto, debruçar-me a compreender como

este dado apresenta-se no dia-a-dia e, no meu caso, como é formado no seio de cada indivíduo.

Na introdução, foi mencionado que uma das principais questões a serem respondidas por esta

tese é como um catingueirense se torna um catingueirense. Neste momento, no entanto, restringirei a

pergunta ao seu aspecto religioso. Desta forma, o objetivo central deste capítulo é discutir como os

catingueirenses chegam a ser o que são em termos religiosos, isto é, gente que se define como

religiosa. Ser religioso pode parecer óbvio para os catingueirenses adultos, mas será detalhamente

estudado na medida em que é um processo gestado ao longo dos anos. Será necessário acompanhar

todo o processo que pode culminar com a auto-identificação enquanto católico ou crente ou espírita.

É preciso ressaltar que os argumentos aqui apresentados foram traçados principalmente a partir da

observação participante e da análise dos desenhos feitos pelas crianças, e poderão ser melhor

compreendidos com a leitura do capítulo que se segue.

2. Religião e o papel da família: os primeiros anos

Nos primeiros anos de vida, a religião parece ser concebida de uma forma particular. Ouso

afirmar, baseada no meu estudo, que até por volta dos quatro anos de idade, a criança não nomeia

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nenhum elemento como estritamente “religioso”. De acordo com os desenhos e as reflexões das

crianças a respeito daquilo que elas desenharam, e em paralelo à observação participante, podemos

afirmar que aos três e aos quatro anos de idade a “religião”, enquanto conceito ou abstração, não faz

parte da realidade infantil. A evidência que apresento para esta afirmação é que, ao serem impelidas

a desenhar sobre religião, as crianças menores acabaram por desenhar sobre outros assuntos. O que

as crianças de três e quatro anos de idade desenharam quando impelidas a desenhar sobre a sua

religião? Aos três anos de idade, 47% das crianças desenharam outros, 32% desenharam brinquedos,

26% desenharam elementos da natureza, 16% desenharam casa e afins. Já aos quatro anos de idade,

30% das crianças desenharam brinquedos, a mesma quantidade desenhou elementos da natureza,

enquanto uma porcentagem de 11% das crianças desenhou casa e afins e a mesma quantidade

desenhou personagens da TV 121. No entanto, o número de crianças que desenhou sobre outros

assuntos quando a sugestão era desenhar sobre religião vai decaindo de maneira elucidativa com o

passar dos anos, como mostra o Gráfico Um (Soma dos elementos religiosos), em apêndice no final

deste capítulo. Neste gráfico, é possível visualizar a porcentagem de crianças que realmente

desenhou elementos religiosos quando foram pedidas que desenhassem sobre o tema: “A minha

religião”. A queda no número das crianças que desenhou sobre outros assuntos quando conduzidas a

desenhar sobre religião mostra o processo pelo qual este conceito vai sendo esboçado. Como se vê, a

partir dos cinco anos de idade em diante as crianças não se eximem em desenhar elementos

religiosos122.

O leitor poderia argumentar que a pesquisadora não levou em conta as dificuldades que a

técnica do desenho possa ter apresentado às crianças pequenas, desconsiderando, por exemplo, a

dificuldade no controle do movimento e a maestria no uso do lápis e do papel. Porém, como está

claro nos Capítulos Três e Cinco, as crianças na mesma faixa etária, três e quatro anos de idade, não

se eximiram em desenhar e retificar que haviam desenhado mal-assombros. Com isso, parece que a

121 Alguns esclarecimentos se fazem necessários:

1) O leitor poderia argumentar que, em direção oposta à minha interpretação, seria possível pensar que esses outros assuntos são outras formas de religião, ou maneiras especiais de desenhar a religião ou, ainda, a transfiguração da religião em outras instâncias. Não acredito, no entanto, que seja o caso, uma vez que, etnograficamente, nunca observei nenhuma criança nesta idade (três e quatro anos de idade) em interação “religiosa” stricto senso − excluído, por exemplo, o ato de pedir a benção, que parece mais associado à religiosidade cotidiana, como ficará claro em instantes.

2) Cheguei à porcentagem citada a partir do número total de crianças naquela idade em questão que desenhou aquele motivo. A soma das porcentagens dos motivos, no entanto, não é igual a 100% porque a grande maioria das crianças desenhou mais de um motivo em cada folha de papel. Essas categorias de desenhos foram criadas pela pesquisadora a partir dos comentários das crianças sobre os seus próprios desenhos.

3) Outros refere-se a tudo aquilo que não foi suficientementemente desenhado a ponto de exigir uma categoria definida. Casa e afins são casas, utensílios domésticos e partes da casa, como muro, mesa, fogão. Elementos da natureza são árvores, sóis, nuvens, flores, rios, chuva etc. Brinquedos são basicamente bolas e bonecas. Para maiores detalhes sobre como foram construídas essas categorias e como elas foram desenhadas pelas crianças, recorra ao Capítulo Cinco. 122 Vide também Gráfico Dois, no qual é possível observar o número de crianças que afirmou não saber desenhar o tema proposto. Observa-se que, a partir dos oito anos de idade, este número é zero. Serão extraídas as devidas conclusões deste e de outros gráficos no Capítulo Cinco, no qual analiso detalhamente o processo de crescimento a partir dos desenhos dos mal-assombros e da religião.

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perícia no uso da técnica do desenho aos três anos de idade não pode ser contestada. É preciso

esclarecer que, se de acordo com o julgamento da pesquisadora a criança tenha desenhado, por

exemplo, uma bola, se a criança nomeia o seu desenho ‘uma igreja’ e retifica a sua nomeação, é a

afirmação da criança que prevalecerá, em termos da análise do desenho. A razão pela qual as

crianças não desenharam elementos religiosos quando solicitadas, acredito, podem ser encontradas

nas possíveis especificidades infantis no trato com a religião, e não nas dificuldades que a técnica de

pesquisa utilizada possa ter imposto às crianças pequenas.

A partir dos dados apresentados, poderíamos sugerir que as crianças não parecem dialogar

com a “religião” nos primeiros anos de vida − mas não tanto porque elas estejam excluídas de

qualquer sentimento ou ação religiosa, e sim porque a maneira como elas pensam a religião impede

o seu isolamento enquanto categoria analítica. Os dados parecem indicar que, para as crianças

pequenas, não existe um reino em separado da vida cotidiana que se definiria como religioso em

contraponto ao profano ou ordinário. Como não existe esta separação, não há como se falar em

religião, muito menos em “minha religião”, com uma criança pequena, tal como foi requerido pela

pesquisadora (vide Capítulo Um e Cinco para maiores detalhes sobre a aplicação da técnica de

pesquisa em questão). Ao contrário de Durkheim (2000 [1912]), para quem uma particularidade do

religioso é justamente o seu caráter distinto do profano, para as crianças pequenas a religião não

goza de status diferenciado em relação às atividades do dia-a-dia. Divergências à parte, um fato é

incontestável: as crianças desde muito pequenas estão envolvidas na vida religiosa da comunidade

onde nasceram. E se elas não dialogam com a religião, a religião, por sua vez, dialoga com elas.

Quando afirmo que na faixa etária dos três e quatro anos de idade as crianças não

estabelecem relação com a “religião”, não estou dizendo que elas passem ao largo da mesma. Para

entender a natureza da relação que as crianças estabelecem com a religião, será preciso discutir a

inserção religiosa infantil. Desde muito cedo, as crianças são inseridas nas mais variadas atividades

religiosas. Isso se dá de maneiras distintas. Dentre outras coisas, desde que começam a falar, as

crianças são ensinadas a pedir a bênção. Por princípio, pede-se a benção às pessoas mais velhas, aos

pais e aos padrinhos. Digo por princípio porque pode-se pedir a benção a alguém mais novo, caso no

qual se reconheça neste prestígio ou honra suficientes123. Pedir a benção é prática altamente

difundida na cidade, sendo observada por todas as religiões, inclusive pelos protestantes. Aos três e

quatro anos de idade as crianças já pedem a bênção, mas não constitui falta grave a criança esquecer 123 Pedir a bênção é uma prática para toda a vida. Além disso, o sujeito a quem se pede a bênção não está determinado apenas pela senioridade. Mesmo se o sujeito é o mais idoso da comunidade, a bênção então continuará a ser pedida para alguém que concentre prestígio, honra ou liderança local. O costume de pedir a bênção foi registrado por Jean-Baptiste Debret em sua viagem ao Brasil (1834: 130) “On lui a prescrit aussi le Salut religieux, qu´il affectue em demandant préalablement la bénédiction d´un blanc qu´il rencontre isole dans un chemin, ou bien qu´il doit aborder. Dans ce cas, il incline le haut du corps, avance la main droite à demi fermée, en signe de salut, et dit humblement a bens, meu senhor (la bénédiction, mon seigneur): il en reçoit la réponse flatteuse (Dieu te fasse saint), Deos te faça santo; ou plus laconiquement, Viva”. O costume entre senhores e escravos também foi registrado por Márcio Pires (2001).

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de pedi-la. Se isso ocorre, ela será lembrada do seu dever por alguém mais velho, que tanto pode ser

um familiar, quanto uma pessoa fora deste círculo124. A maneira mais corriqueira de se pedir a

bênção é estender a mão direita com a palma virada para cima ou em posição vertical (como se fosse

receber um aperto de mão) na direção daquele a quem a bênção é pedida, e dizer: “A bênção” ou “A

sua bênção”. Em muitos casos, acrescenta-se o grau de relação ou parentesco: padim, madim,

mãinha etc. Somente quando ouve de volta “Deus te abençoe” ou “Deus te faça feliz” a mão é

recolhida. Outra maneira mais elaborada de conceder a benção é segurar a mão estendida e beijá-la,

ou dar-lhe “um cheiro” (vide adiante páginas 140/1), sempre acrescendo a exortação religiosa125.

No entanto, pedir a bênção, prática que acompanha o sujeito durante toda a vida, não parece

ser associada a uma atividade religiosa mas, sim, como parte do dia-a-dia, tanto para as crianças

como também para os adultos. Pedir a bênção é algo que as pessoas fazem sem se darem conta. É

parte do mundo como ele é, parte da vida ordinária. Para ser gente propriamente, como fomos

ensinados desde crianças pelas nossas famílias, é preciso pedir a bênção. Para os sujeitos, essa

prática pode não estar associada a parte do mundo “da minha religião” estritamente falando. Parece

que certas práticas religiosas foram incorporadas ao modo de ser cotidiano dos catingueirenses. Não

se percebe que se está fazendo algo religioso, mas faz-se como se respirasse; é um dado. Nenhum

adulto se pergunta se a bênção é uma prática religiosa por princípio, como também não se questiona

quanto à necessidade de pedi-la. Apesar de ser prática corrente (e talvez por isso mesmo), nenhuma

criança jamais mencionou o procedimento de tomar a bênção nos desenhos. Isso talvez se explique

124 Mayblin (2005: 188) exemplifica o pedir a bênção em relação a uma criança de três anos de idade no agreste pernambucano. Para a autora, a citação é utilizada como evidência da existência de “speech games” ( :187) entre as crianças pequenas e os adultos, os quais têm como objetivo educar moralmente a primeira, ao mesmo tempo em que possibilita aos adultos uma interação mais livre − sem, no entanto, resultar em desrespeito. “A: Hey, Luciano, aren’t you going to ask for your favourite uncle’s blessing?[Luciano looks shyly at Amauri and turns to bury his face in Gilberto’s lap] A: Hey, moleque (rascal), I’m talking to you: aren’t you going to ask for myblessing? G: [to Luciano] Say ‘You are not really my uncle’, say it. L: You are not really my uncle.[laughter from all present] A: [to Luciano] What sort of disrespect is this?! G: [to Luciano] Say, ‘You are not really my uncle, you are too poor to be my uncle!’,say it.. L: You are not really my uncle, you are too poor to be my uncle![hearty laughter from everyone present] G: [to Luciano] Say ‘If you were a rich man, I would call you uncle’, say it. L: If you were a rich man, I would call you uncle. A: [to Luciano] Is that so? Then you won’t find many uncles around here. [laughs]” 125 Outra forma de cumprimento que geralmente indica algum grau de reverência é beijar as mãos, como evidencia o ritual de beija-mão (do Imperador) da corte brasileira (PEDRO II 2003 [1959]). Em Catingueira, no caso de um ‘beijar de mãos’ entre pessoas de status sociais distintos, se a pessoa que teve a sua mão beijada não concordar com a reverência a ela prestada, ela vai, tão logo tenha tido sua mão beijada, segurar a mão da pessoa que antes segurava a sua, e beijá-la. O movimento é rápido. Entretanto, apesar de beijar a mão ser, em princípio, uma atitude de reverência, beijar as mãos reciprocamente é uma saudação comum em Catingueira entre pessoas de status social similar, que demonstra carinho e amizade. Entre jovens ou pessoas próximas, se uma pessoa beija a mão de outra, ela vai esperar de volta que a sua mão seja beijada. Um dia, me aconteceu de ter minha mão beijada por um jovem. Fiquei constrangida pela situação, pensando que o rapaz reconhecia em mim alguém de status superior, ou me cortejava. Entretanto, tão logo beijou a minha mão, ele virou sua mão e dirigiu-a para perto da minha boca. Vi-me em uma situação constrangedora porque não podia imaginar o que ele esperava que eu fizesse. Foi preciso que o rapaz me pedisse para beijar a sua mão, ao que obedeci ainda mais constrangida. O beijar de mãos recíproco também foi observado, por mim, em Recife e João Pessoa.

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pelo fato de que não faria sentido desenhar o pedir a bênção nos desenhos cujo título era “A minha

religião”, porque isso equivaleria a transportar uma prática cotidiana para um reino tido, por

excelência, como o avesso da vida ordinária.

Uma hipótese a ser perseguida é a de que a maneira como os adultos em Catingueira se auto-

concebem abarca traços marcadamente religiosos. Além de religiosos, cristãos. Assim, crescer em

Catingueira parece implicar em tornar-se cristão. A prática de pedir a bênção pode ser pensada

como indício dessa constatação da religiosidade cristã como terreno onde se assenta o sujeito. A

pessoa nasce e cresce inserida na religiosidade cristã e, com o tempo, aspectos desta religiosidade

tornam-se indistintos dele próprio. Apesar de ultrapassar os objetivos propostos por esta tese,

podemos nos indagar em que medida a religiosidade cristã como suporte da constituição das

subjetividades não se aplica para todo o Brasil. Como hipótese, podemos nos questionar se esta

prática e outras semelhantes, que espero deixar claras no decorrer da tese, podem ser pensadas em

paralelo aos conceitos de “cultura bíblica”, segundo Otavio Velho (1995a), ou de “cultura católico-

brasileira”, segundo Pierre Sanchis (1986, 1994). Os conceitos em questão dão conta de um

conjunto de práticas e representações que está incorporado ao cotidiano, formando uma totalidade

através das transformações constantes, e que não existe necessariamente em função de uma única

denominação religiosa.

Além do “pedir a bênção”, desde que começa a falar, a criança é ensinada a rezar. Nos

primeiros anos, a oração será acompanhada por alguém da família, geralmente a mãe ou a criança

mais velha responsável por “pajear” a menor. No entanto, nos desenhos que expressam, por sua

vez, o que é mais evidente para a criança em relação ao tema perguntado, o rezar vai aparecer pela

primeira vez apenas aos oito anos de idade. Contudo, é interessante constatar que rezar nunca vai

apresentar grande apelo para as crianças nos desenhos, a não ser aos treze anos de idade. Veja os

dados da porcentagem de crianças que desenhou “o rezar”: oito anos de idade: 5%. Nove anos:

14%. Dez anos: 36%. Onze anos: 14%. Doze anos: 29%. Treze anos: 48% (vide Gráfico Três –

Rezar, no final deste capítulo). Interessante notar que somente aos treze anos de idade, na pré-

adolescência, o rezar aparece com maior representatividade. De resto, ele é pouco citado, apesar de

praticado desde que a criança é muito pequena. Poderíamos afirmar, então, que as crianças

pequenas não rezam? De jeito algum: isso seria tomar os desenhos como reflexo imediato da

realidade. Os desenhos são, ao contrário, como ponderações infantis sobre a realidade. Já contêm,

eles mesmos, representações do real, e não deveriam nunca ser tomados como reflexos imediatos

dele. Além disso, observei etnograficamente que as crianças pequenas rezam. Mas como explicar o

fato de as crianças terem desenhado tão pouco o rezar?

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Aventuro-me a dizer que o rezar, similarmente ao pedir a bênção, pode não fazer parte, para

a criança, do que o adulto chama de “a minha religião”. Poderíamos pensar, como hipótese, que as

crianças não mencionaram o rezar nos desenhos porque não o reconhecem como uma atividade

ligada ao mundo da religião mas, sim, como atividade ligada ao mundo íntimo, privado; enfim,

familiar. A criança pequena aprende a rezar em casa. Rezar é uma atividade feita no aconchego da

rede, minutos antes de adormecer, na companhia de uma presença familiar − geralmente, feminina.

O fato de ter sugerido que as crianças desenhassem “A minha religião” talvez tenha impedido

menções a atividades cotidianas e íntimas, enraizadas no seio familiar, como pedir a bênção e a

oração antes de dormir − que, para a criança, talvez não sejam realmente consideradas “religiosas”,

mas parte da vida ordinária. O fato talvez corrobore a afirmação anterior de que, para as crianças

pequenas, não existe um reino do religioso separado da vida cotidiana. Além disso, é interessante

que, aos treze anos de idade, o rezar já seja substancialmente desenhado. Talvez isso se explique

pelo fato de que, na pré-adolescência, as crianças já estão mais próximas da maneira adulta de

definir e viver a religião.

Esse fato põe em xeque a escolha do tema de desenho “A minha religião” como instrumento

para captar a vida e as idéias religiosas infantis. A escolha do tema talvez tenha sido um tanto

infeliz. Parece-me que, além da já explicitada antipatia quanto a desenhar o tema proposto, quando

cediam à proposta, as crianças tenderam a tratar a religião com R maiúsculo, buscando comentá-la

segundo as explicações dos adultos, com palavras prontas e não com suas próprias palavras,

tampouco se baseando em experiências pessoais. De certa maneira, o resultado dessa parte da

pesquisa foi uma cópia das palavras adultas com o objetivo de atingir a resposta correta, ou seja,

aquela que a criança ouvira da boca da catequista, do padre ou do pastor, dos parentes adultos ou das

crianças mais velhas. Tenho a impressão que algumas crianças leram o meu pedido de desenho sobre

a religião de maneira conservadora e restrita ao que chamamos de religião formal ou institucional.

Lanço essa dúvida, não apenas baseada na análise dos desenhos, mas também no comportamento das

crianças ao desenhar. Elas mostraram-se, muitas vezes, desmotivadas, como se esse assunto não lhes

dissesse respeito − ao contrário do desenho dos mal-assombros. Essa dificuldade é discutida no

decorrer da tese mas, principalmente, nos Capítulos Um e Cinco.

Seria interessante perguntar quais as motivações infantis para comparecer aos serviços

religiosos. Penso que as crianças pequenas vão aos serviços religiosos por razões que alguns adultos

(mas não as crianças! – como espero esclarecer adiante) chamariam de não-religiosas. As crianças

vão às reuniões religiosas infantis, dentre outras razões; para escapar das atividades domésticas que

lhes cabem; para lanchar; porque a “mãe manda” (essa é a expressão usada pelas mães das crianças

ao conversarem com as catequistas: “ah, sim, vou mandar fulana (o) pro catecismo no sábado”) e,

finalmente, para acompanhar um colega/vizinho ou o irmão mais velho. Nas reuniões infantis de

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todas as religiões observadas, é sempre muito difícil prender a atenção das crianças, especialmente

dos menores, para os assuntos estritamente religiosos. Lembro-me de que, em uma ocasião, um

menino de quatro anos de idade constantemente interrompia as aulas de catecismo com sua

insistência em perguntar quando as crianças iam finalmente brincar. Suas perguntas pareciam uma

ladainha a interromper e irritar a professora: quando a gente vai brincar? quando é hora da

brincadeira? vamos brincar agora? é agora? (vide fotografia 16 no CD anexo – o menino está

fotografado no canto direito). Ir ao catecismo, para ele, não dispensa as brincadeiras. O que gostaria

de propor é que, para a criança a brincadeira na aula do catecismo não difere em natureza do próprio

catecismo. E se o adulto, por sua vez, chama a brincadeira de não religiosa, a criança provavelmente

não o faria126.

Por outro lado, há momentos em que as crianças são vistas participando ativamente do que os

adultos chamariam a “parte religiosa” das reuniões religiosas infantis. Observei que as crianças

mostravam-se atentas e participativas nas seguintes atividades: nas brincadeiras, no lanche que segue

algumas destas reuniões e nos momentos quando eram chamadas a participar ativamente. Neste

caso, a atuação das crianças acontece: 1. na hora da prece entre os espíritas - quando as crianças são

chamadas a “fazer a prece” espontânea em voz alta na frente de todas as outras crianças; 2. no

momento de escolher e cantar, na frente dos colegas, um hino evangélico - entre as crianças da

Assembléia de Deus; 3. no momento de apresentar algum trabalho ou exercício para a turma - no

caso dos católicos. Nesses momentos, mesmo tratando de temas basicamente religiosos, as crianças

mostravam-se participativas. Ou seja, quando são chamadas à atitude ativa, ao contrário da escuta

passiva das leituras e dos ensinamentos das professoras de religião, elas parecem mais aptas a tratar

de assuntos religiosos stricto senso. Mesmo assim, apenas crianças maiores de quatro anos de idade

foram observadas tomando a iniciativa da prece ou do canto, da mesma forma como apenas acima

desta idade foram requisitadas a apresentar para a turma o trabalho de casa, no caso do catecismo.

Outro exemplo de agência religiosa infantil dá-se no mês de maio, considerado, pelos

católicos, o mês de Maria. De modo geral, observa-se que as atividades religiosas tornam-se mais

abundantes durante este mês. É tempo de realizar novenas, comparecer à missa pelo menos nas

sextas-feiras e seguir as procissões que acontecem todos os dias do mês. Nessas procissões, as

imagens de Nossa Senhora e de São José vão da casa de um morador até a igreja, para, depois da

celebração eucarística, seguirem para a casa de outro cidadão. As crianças, por sua vez, participam

da coroação de Nossa Senhora vestidas de anjos, sob a gerência de adultos. Todavia, elas próprias se

organizam para realizar novenas nas casas dos moradores da cidade. Nestas ocasiões, elas rezam, 126 Embora não esteja afirmando que a criança chamaria a brincadeira de religiosa. Parece possível tecer uma relação entre a brincadeira no catecismo e a parte chamada de profana nas festas religiosas. As barracas, as músicas, os namoros e as danças podem ser considerados partes da festa tanto quanto as missas e as procissões (SANCHIS 1983; PEREZ 1994, 1996, 2002; PIRES 2000, 2003). Otavio Velho (em preparação) argumenta sobre a importância da antinomia como cerne da religião, o que curiosamente a aproxima da brincadeira. Discutiremos este ponto adiante.

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cantam, dançam e fazem leituras bíblicas. Às vezes, freqüentam mais de uma casa por noite. Nestas

novenas, não há nenhum adulto envolvido. A idéia e a concepção da novena, que conta com mais ou

menos vinte crianças, foram iniciativas infantis. Embora crianças pequenas e inclusive bebês127

também estejam presentes, o grupo é liderado por aquelas crianças mais envolvidas no catecismo, as

quais já tenham feito a primeira eucaristia ou estejam prestes a fazer, por volta dos onze anos de

idade. Nestes momentos as crianças assumem atitude bastante contrita, respeitosa e responsável.

Chegam na hora marcada, rezam com seriedade e, se uma criança se comporta mal durante a

novena, pode esperar olhares atravessados e ‘psius’ enérgicos por parte dos colegas. Com isso, quero

apenas enfatizar que, algumas vezes, as crianças tomam partido ativamente no que os adultos

chamariam de o mundo da religião.

É importante ressaltar que as crianças estão inseridas na vida religiosa da comunidade, e isso

produz efeito e tem conseqüência para a própria criança. A criança evangélica não sabe quem foi

Moisés ou Ismael, mas sabe que domingo é dia de culto no sítio e, por conseqüência, dia de passeio

de caminhoneta. Além disso, Ismael pode ser o nome do seu irmão mais novo128. Se for católica, ela

não sabe que a hóstia é o corpo de Cristo, mas não se esquece de que a gincana da “Infância

Missionária” está se aproximando. Ela sabe também que, à noite, a sua mãe ou a sua irmã vão lhe

mandar para a rede, porque já é hora de dormir. Uma vez deitada na sua rede, a mãe virá ter com ela,

perguntando se ela já rezou. É provável que rezem juntas. A princípio, a criança repetirá as palavras

da mãe, mas, com o passar dos meses, as duas vão rezar ao mesmo tempo a oração que ela lhe

ensinou, até chegar o dia em que, mesmo sem a mãe ao lado, a criança provavelmente vai rezar

sozinha. A criança sabe também que deve pedir a bênção aos mais velhos e sempre ouve de volta:

“Deus te abençoe”. No entanto, “o que é bênção?”, “como ela opera?”, “quais os seus efeitos?” não

parecem ser questões que a criança pequena se coloca. É fundamental ressaltar que, em todas essas

práticas elencadas, rezar antes de dormir, pedir a benção e, finalmente, ir à igreja, a família tem

papel primordial. Assim, parece que, ao mesmo tempo em que aprende a rezar e a reconhecer a

autoridade de Deus, a criança aprende a maneira correta de se relacionar com sua mãe. Deitado na

rede, rezando com ela, ele aprende o que é ser um filho e o que é ter uma mãe, ao mesmo tempo em

que aprende a rezar o Pai Nosso129.

127 Vide Capítulo Dois, onde descrevo sobre a facilidade com que as meninas pré-adolescentes são vistas carregando bebês nos braços pela cidade. 128 Dentre os evangélicos, é comum escolher nomes do antigo testamento para seus filhos nascituros. Chama a atenção o fato de que, muitas vezes, apenas os filhos mais novos de um casal são chamados com nomes bíblicos, deixando antever exatamente em que momento aconteceu a conversão religiosa daquele casal ou do pai da família (que é quem geralmente tem a última palavra na nomeação dos filhos). 129 Junto com o Pai-Nosso e a Ave-Maria (no caso das crianças católicas), as crianças muitas vezes aprendem a rezar para o seu anjo da guarda, e geralmente o fazem antes de dormir. Essa oração tem várias formas, mas geralmente é uma oração pequena, rimando diminutivos e termos carinhosos. Vide um exemplo: “Meu anjinho da guarda, meu bom amiguinho, leve-me sempre para o bom caminho”. É comum que, com o passar dos anos, as crianças parem de rezar para o anjo da guarda porque o associam a algo peculiar às crianças pequenas. O anjo da guarda passa a ser visto, assim como

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É útil constatar que as igrejas e o Centro espírita estão sempre cheios de crianças130 − mas

elas nunca comparecem sozinhas. Acompanham-nas a família − principalmente a mãe e os irmãos

ou somente os irmãos – e os vizinhos e/ou amigos. O primeiro elemento religioso a ser desenhado

por uma criança foi uma combinação de Jesus, Maria e a igreja. A ocorrência se deu com um único

menino, aos quatro anos de idade (vide no CD desenho 11 A minha religião JP. 4. M. 2). Causa

impressão o fato de que o primeiro elemento religioso reconhecido pelas crianças tenha sido uma

igreja juntamente com Jesus e Maria. O fato parece sugerir que não será por acaso que a criança

reconheça a relação materna entre Maria e o menino Jesus como a coisa mais importante da religião.

Para a criança de quatro anos de idade, a sua relação com a sua mãe também é um dos aspectos mais

importantes na sua vida. É através desta relação que a criança conhece o mundo, nomeia as coisas,

aprende o que deve ou não ser feito e também o que deve ser sentido. Algumas crianças de quatro,

cinco e seis anos de idade desenharam Jesus e Maria juntos no mesmo desenho131. Isso parece estar

indicando que, quando pequenas, as crianças concebem a figura de Jesus associada à sua mãe, como

concebem a figura de um filho associado à sua mãe. Mais tarde, as crianças passam a conceber a

existência de Jesus em separado da sua mãe e, em concordância com isso, o número de desenhos de

Jesus ultrapassa os de Maria (Vide Gráfico Quatro, Jesus x Maria, no apêndice deste capítulo). Não

é de se estranhar que tenhamos mais Jesus que Marias desenhados quando as crianças já foram

cristianizadas, já que, mais que a sua mãe, Jesus é a figura central do cristianismo.

Talvez pudéssemos afirmar que a religião, no caso estudado, se aprende no seio familiar, e

está em sintonia com as relações domésticas. Com isso, não estou dizendo, no entanto, que se

aprenda a doutrina religiosa em casa, ou que os pais são responsáveis por educar religiosamente as

crianças. Digo que as relações sociais que se estabelecem no seio da família são como o mundo da

criança e, por isso, parecem determinar as outras áreas da vida social infantil. Ao mesmo tempo em

que aprende a ser filho, a criança aprende a ser uma pessoa que ama a Deus. A criança, em família

católica, aprende sobre as verdades religiosas observando como a sua mãe paga uma promessa. Ou

quando entende que o seu próprio nascimento é dádiva de São Sebastião, a quem a sua mãe fez

promessa para que ele “vingasse”. Da mesma forma, ela aprende sobre as relações de gênero ao dar- o Papai Noel ou o Coelhinho da Páscoa, como engodos para as crianças pequenas. Assim, crianças maiores se distinguem das menores pela sua suposta sabedoria. “[…] when children discover the truth about Santa Clauss or Easter Bunny (which they really knew all along), it gives them a marker of having attained a new level of maturity and intellectual ability” (ELKIND 1994: 49). Além disso, parece-me haver uma indistinção em certo grau entre o anjo da guarda e o anjinho (nascituro falecido), como mostra o Capítulo Dois, página 79. 130 É útil esclarecer que o Centro espírita não foi desenhado como igreja. Igreja, enquanto termo nativo, pode indicar as igrejas de São Sebastião, a Assembléia de Deus, a Congregacional ou a Seguidores de Cristo. O Centro espírita não é chamado de igreja. Vide no Capítulo Cinco, páginas 158/9 e, como exemplo, vide redação de RJ. 12. M. 18, também discutida no Capítulo Cinco: “Redação de Religião. Tem vários tipos de religião. Tem a religião católica, a religião evangélica. Mas todas são iguais porque não é importante as religiões serem iguais, o que importa é o Amor por Deus, e a fé por ele e por todos os Santos da religião. A igreja é a casa do Senhor e nós vamos lá para rezar, para orar e para pedir paz e amor”(RJ. 12. M. 18). 131 Também o fizeram as crianças de oito, doze e treze anos de idade.

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se conta que seu pai ou avô, ao irem à igreja, sentam-se junto aos homens, perto do altar, ao passo

que sua mãe vai sentar-se com as outras mulheres, na nave da igreja. A criança vai para a igreja com

alguém mais velho, que define aonde ela vai se sentar. Mas, um dia, a criança terá que fazer sua

própria escolha e, provavelmente, optará por sentar-se onde se sentam as pessoas do seu próprio

gênero.

Contudo, não estou afirmando que as crianças copiam seus pais, ou que se tornaram

religiosas à maneira de seus pais. Nem muito menos quis afirmar que as crianças invariavelmente se

tornarão pessoas religiosas stricto senso. De um lado, o que quis expor neste tópico é que, para a

criança, não importa a religião, ou o estado, ou a escola, como abstrações. Essas instituições só

parecem importar na medida em que são vividas, como coisas concretas. Importa, sim, como as

pessoas com as quais ela estabelece relações próximas vivem essas abstrações no cotidiano. E, de

outro lado, sugiro que a criança vai aprendendo sobre Deus à medida que vai aprendendo sobre

como ela deve se comportar, o que esperam que ela faça ou se torne no futuro. Com isso, acontece

que as crianças vão se assemelhando aos seus pais. Mas não porque elas os imitaram simplesmente −

e sim porque eles aprenderam no cotidiano familiar como “gente como a gente” deve ser132. É útil

lembrar que uma pessoa ser religiosa é um dos atributos sociais mais valorizados em Catingueira.

Por fim, gostaria de ressaltar o papel das próprias crianças no processo de tornar-se religioso. Os

irmãos mais velhos têm sempre papel importantíssimo na vida das crianças menores. São esses os

responsáveis práticos por elas − às vezes, mais que as suas próprias mães ou pais. Por

responsabilidade de ordem prática, quero dizer certificar-se de que a criança tomou banho, se

alimentou, está pronta para ir à escola na hora certa, além de acompanhá-la nos serviços

religiosos133. A mãe é responsável geral por todas as crianças, pela organização e bom

funcionamento da casa. Ela resolve brigas infantis, decide o que vai ser preparado para o almoço

(mesmo que seja uma filha a responsável por cozinhá-lo), resolve problemas burocráticos junto ao

colégio, à prefeitura, à venda, aos Correios e à casa lotérica, enquanto que o pai é, geralmente,

responsável pelo provimento material. (Para maiores detalhes sobre a funcionalidade de uma

residência familiar, refira-se ao Capítulo Dois).

132 Gabriel Tarde trabalha com o conceito de imitação enquanto um processo criativo “Como forças plásticas e funcionais que, a partir da conexão dos múltiplos fluxos de crenças e desejos, a um só tempo constituem e movem a vida social” (MELLO 2001). Para uma análise mais demorada do pensamento e trajetória intelectual de Tarde, vide Eduardo Vargas (2000). Para uma apropriação das idéias de Tarde na direção da constituição da Teoria do Ator Rede, vide Bruno Latour (2005). 133 Há uma certa literatura dentro da antropologia da criança que ressalta como elas mesmas são agentes do seu próprio crescimento e do seu entendimento do mundo. O objetivo desta corrente é contrapor as idéias que dizem que as crianças são meras cópias dos adultos, desconsiderando-as como agentes criativos do seu desenvolvimento. O que estou destacando aqui, no entanto, é apenas o papel das crianças na boa gerência da residência familiar, no que diz respeito especificamente às crianças pequenas. Concordo, contudo, que algumas vezes as crianças são agentes criativos no seu próprio desenvolvimento, mas sempre em relação com os adultos.

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3. Sobre a irrelevância do significado: uma religião da prática?

Das ocorrências observadas nos desenhos das crianças, chama a atenção o número elevado de

igrejas (templos), como é possível observar no Gráfico Cinco (Soma das Igrejas134), ao final deste

capítulo. A fim de entender porque a maioria das crianças desenhou igrejas quando foram solicitadas

a desenhar sobre a sua religião, parece-me importante descrever as circunstâncias que intermediam o

freqüentar a igreja. Além disso, tentaremos entender porque algumas crianças desenharam, quando

impelidas a desenhar sobre a sua religião, igrejas que não freqüentam. Como será visto, o fato parece

insinuar que as crianças desconsideram o caráter simbólico da religião, concentrando-se na prática

religiosa, entendida aqui como o ato de freqüentar a igreja.

Geralmente, as crianças colocam a sua melhor roupa para irem à missa, assim como também

para irem ao culto. Não é raro ver meninas nas igrejas vestidas com trajes de damas de honra, que

embora sejam, sem dúvida, antigos, estão lavados e passados com esmero. Na reunião espírita, as

crianças não são muito assíduas, mas observa-se, de modo geral, maior simplicidade da

indumentária no Centro espírita em relação tanto à igreja católica quanto às igrejas evangélicas. Por

exemplo, tanto os adultos quanto as crianças são facilmente vistos calçando chinelos na reunião

espírita − o que é mais raro nas outras religiões. De maneira geral, nos serviços religiosos as crianças

católicas são as mais bem arrumadas, seguidas das crentes e, finalmente, das espíritas. Nos serviços

religiosos infantis, a indumentária e o cuidado pessoal parecem seguir os mesmos padrões dos

adultos135. No entanto, seria correto afirmar, no caso das três religiões, que, se muitas crianças

134 Isto é, a soma das igrejas desenhadas, entendidas como templos, sem distinguir as diferentes denominações − embora com os dados coletados seja possível fazê-lo. 135 Nesta nota, talvez demasiada longa, discorro sobre a indumentária adulta no atendimento dos serviços religiosos, a fim de tecer considerações sobre o mesmo aspecto, do ponto de vista infantil.

Os crentes são conhecidos em Catingueira pelo uso de vestimenta formal. Para eles, é crucial se vestir bem para ir ao culto – e basta observar a indumentária masculina para se certificar disto. Os homens devem, sempre que possível, usar terno e gravata. Quando “passam para crente”, os homens fazem um esforço para poupar parte do salário para tão logo adquirirem os itens enumerados. No entanto, camisa de manga longa para dentro da calça é o mínimo que se exige, no caso dos homens, para o atendimento do serviço religioso. Não importa o quão quente esteja o dia − regra muito válida também no caso dos meninos. As mulheres protestantes também escolhem com cuidado a roupa e se arrumam intencionalmente para o culto. Elas geralmente usam sandália baixa, saia abaixo do joelho, blusa com manga − todas as peças em cores sóbrias. Brincos, colares, pulseiras, batom, acessórios de cabelo ou esmalte nas unhas são geralmente desencorajados, embora certo grau de vaidade feminina seja permitido quando a menina ainda é muito jovem: por exemplo, o uso das cores vibrantes, entre as quais o rosa, é permitido (e adorado pelas meninas) e, até mesmo, o uso de alguns acessórios, como uma bolsinha ou uns óculos de sol. Acredito que a execeção se justifique porque estes itens são mais vistos como brinquedos infantis que como utensílios de vaidade feminina.

Para os católicos, por sua vez, também é crucial estar bem arrumado para freqüentar os serviços religiosos. É comum as pessoas reservarem uma roupa especial, anedoticamente chamada de “roupa de ver Deus”, para irem à missa. Os homens católicos não usam terno e gravata para ir à missa − mas, com certeza, tomam banho e colocam uma das suas melhores roupas. Ouvi, mais de uma vez, pessoas dizerem que não iam à igreja católica, principalmente durante as festividades em honra do santo padroeiro, porque não tinham roupa nova para vestir (PIRES 2003: 62). Algumas pessoas também reclamam que na igreja católica todo mundo fica reparando na roupa alheia, e esta atitude acaba por inibir o comparecimento à igreja. Na igreja de São Sebastião, qualquer pessoa que ultrapasse ou fique aquém do padrão pode ser vítima de olhares enviesados e fofocas.

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comparecem aos serviços infantis calçando chinelos, apresentar-se descalço seria considerado

inadequado. Muitas crianças vestem roupas consideradas gastas, mas nunca se apresentariam com

roupas sujas. Que a criança se suje sem querer no caminho para o serviço religioso é perdoável, mas

que não tenha tomado banho antes de sair de casa é inadmissível. Não tomar banho, usar roupa suja

ou comparecer descalço seriam consideradas atitudes inadmissíveis em qualquer das três religiões.

Para ir a todos os serviços religiosos, tanto infantis quanto adultos, é essencial ter tomado banho. É

desejável que, quando a criança chegue ao serviço religioso, o seu cabelo ainda esteja molhado,

evidenciando que ela, por assim dizer, “acabou de sair do banho”. Passar perfume, da mesma

maneira, é altamente recomendável para crianças e adultos. Assim, parece ficar claro que há um

código especial de indumentária requerido em qualquer dos serviços religiosos das três religiões em

questão. Com o tempo, a criança vai tomando ciência de que, para ir à igreja ou ao Centro, é

necessário se arrumar devidamente. Ela saberá que não se trata de uma atividade ordinária mas, sim,

de uma atividade que pára qualquer outro comprometimento. Com o tempo, ela não vai mais

precisar da ordem da mãe para parar a brincadeira e ir tomar o banho, quando a hora da missa, por

exemplo, se aproxima. Por mais que as crianças não saibam quem é o Divino Espírito Santo, elas,

aos poucos, vão tomando conhecimento de que devem se apresentar bem vestidas na igreja. Dentre

outras coisas, elas vão aprendendo que existe algo na igreja que não pode ser encontrado fora dela.

Além disso, é imprescindível mencionar que as crianças nunca vão aos serviços religiosos sozinhos:

sempre lhes acompanham a família ou os amigos.

Talvez seja útil abrir uns parênteses neste momento. De modo geral, tomam-se muitos

banhos em Catingueira. Isso independe de a pessoa ser criança ou adulta. É considerado adequado

tomar pelo menos dois banhos por dia, pela manhã e antes de se deitar − ou, em muitos casos, três:

um banho pela manhã, outro antes de almoçar e outro antes de dormir. Como afirmei, o uso de

perfume também é muito difundido, inclusive em crianças muito pequenas. Uma família, por mais

pobre que seja, terá sempre um vidro de perfume para ocasiões especiais, como a festa do padroeiro.

Interessante notar que uma forma de carinho bem comum na cidade é o “cheiro”. Segundo Câmara

Cascudo, o cheiro é uma forma de carícia nordestina, trazida pelos portugueses através do contato

com os chineses. De todos os povos, apenas estes últimos e os inuits concebem essa forma de “beijo

Se colocássemos em relação uma mulher católica, uma crente e uma espírita e analisássemos apenas a sua

indumentária no momento do serviço religioso, seríamos levados a pensar que, em escala de arrumação, a católica estaria na frente, depois viria a crente, para depois vir a espírita. O fato é que cada religião tem um conjunto de atitudes que são mais valorizadas e, de acordo com essas, valoriza-se uma vestimenta em concordância. Os espíritas consideram ostentatório o uso de decorações pessoais porque valorizam a simplicidade. Por isso, geralmente, as vestimentas que encontramos no Centro espírita são as mais simples em comparação com as outras religiões. Isso não quer dizer que as pessoas não se arrumem intencionalmente para irem ao Centro espírita: elas se arrumam, mas o código de vestimenta considerado adequado é diferente. Por exemplo, uma mesma mulher que no sábado vá ao Centro espírita de sandália baixa, calça comprida azul e blusa branca, poderia ser vista de vestido estampado até o joelho e sandália de salto alto na missa de domingo. No entanto, parece que, no caso dos serviços religiosos especialmente destinados às crianças, temos um menor controle das vestimentas.

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sem os lábios” ou, diria eu, beijo com o nariz. Ao invés do beijo ou do abraço, um avô em

Catingueira pediria para “dar um cheiro” no seu netinho. Quando o neto adentra a casa do avô, este

diria: “Venha cá, deixa o vô dar um cheiro no meu filho”. A carícia cheiro implica em dar uma

aspirada delicada, encostando levemente o nariz na pele do outro. Geralmente, faz-se perto da

orelha, mais próximo da nuca ou, ainda, no topo da cabeça. Essa forma de carinho é comum nas

relações maternas, paternas, fraternas e também nas relações de casal. Uma pessoa que acabou de

tomar banho tem mais chances de receber “cheiros”. Se no ato do cheiro esta pessoa está usando

perfume ou, simplesmente, cheira a sabonete, “o cheiro” virá acompanhado de uma observação

carinhosa sobre o fato da pessoa estar perfumada: “Pense num cheiro bom!”, ou qualquer

comentário do gênero. Rebhun (1999) faz constatação parecida em relação ao seu trabalho de campo

em Caruaru/PE: “People nuzzle children with affectionate cheirinhos or little sniffs, and most people

use perfume in the expectation of being sniffed” (1999: 57) 136.

Tendo discorrido sobre como as crianças vão às igrejas, vamos agora debruçar-nos a

entender as suas intenções. Pelo menos seis crianças, nas idades de nove, dez e treze anos de idade,

desenharam igrejas às quais elas não freqüentam: alguns católicos desenharam igrejas crentes e

alguns crentes desenharam igrejas católicas. Quando lhes perguntei o porquê do desenho, eles

disseram que tinham vontade de ir àquelas igrejas e que tinham feito pensando nas outras crianças

que as freqüentam. Mas para que ir àquela igreja específica? Insisti. No caso dos que desenharam

igrejas crentes, as crianças afirmaram que gostariam de ir para ouvir e cantar os hinos. E para ver as

imagens dos santos e “como é a missa”, no caso dos crentes que desenharam igrejas católicas.

Perguntei por que elas não iam e elas me disseram unaninamente que suas mães as proibiam.

Uma das hipóteses deste trabalho é que, pela quantidade massiva de desenhos de igrejas,

podemos dizer que a religião, para as crianças, está, em alguma medida, relacionada com a igreja

entendida enquanto templo/ prédio. No entanto, com que conceito de igreja estas crianças estão

dialogando? Seria ir longe demais dizer que as crianças não reconhecem a natureza do

comparecimento à igreja como distinta do cotidiano? Como se fossem ouvir música na casa dos

amigos, elas querem ir à igreja para “cantar e ouvir os hinos”. Para as crianças pequenas, como já

sugeri acima, não haveria distinção entre o religioso e o não religioso. Desta forma, ouvir música

fora ou dentro da igreja, assim como assistir a um filme na TV ou assistir à missa constituiriam

atividades da mesma natureza. Isto justamente porque, no mundo da criança pequena, não parece

haver lugar para a distinção religioso e não religioso. Na mesma direção, J. 8. M. (pastor) escreveu:

“Eu gosto mais ou menos de ir à igreja. Vim aqui é muito legal. Você dá folha para a gente

desenhar”. A frase de J. parece corroborar a afirmação de que não há diferença ontológica entre ir à

igreja e ir à casa de alguém ao sugerir a não singularidade do atendimento à igreja e a indistinção

136 Cascudo. Superstições e costumes. pp. 65-69. http://jangadabrasil.com.br/agosto48/pa48080a.htm.

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entre os mundos do cotidiano e do religioso. Interessante constatar que, no caso específico dos

evangélicos, o mesmo ocorreria também com os adultos, já que a idéia de igreja enquanto um espaço

sagrado distinto parecer ser predominantemente católica. Gostaria de sugerir a hipótese de que o que

mais importa para as crianças é a atividade em si mesma. Elas não estariam nem um pouco

preocupadas com o que há por trás, por exemplo, de uma missa, senão com o ato em si. Com isso,

não estou afirmando que a prática religiosa não tenha conseqüências para a criança ou que a religião

da criança seja apenas exterior, como deve ficar claro adiante e no capítulo a seguir137.

Christina Toren (1999) parece fornecer-nos algumas pistas sobre como trabalhar

teoricamente o material de pesquisa apresentado acima. Ao analisar como as crianças e os adultos

concebem a hierarquia, conceito central para se entender os fijianos, Toren (1999) chegou a

conclusões muito interessantes. A autora utilizou desenhos pré-elaborados nos quais as crianças

deveriam indicar o chefe, as mulheres, as crianças, os homens, os idosos, e assim por diante. As suas

conclusões apontam que, para os adultos, a hierarquia define a posição geográfica de uma pessoa nas

variadas situações de interação social. Para as crianças, por sua vez, é a posição geográfica que

define o status hierárquico. Em outras palavras, para os pequenos o chefe é chefe porque se senta

acima e para os adultos o chefe é chefe logo se senta acima. Com isso, pode-se afirmar que as

crianças baseiam as suas primeiras cognições do mundo de maneira diretamente material −

afirmação com a qual Piaget e Pierre Bourdieu concordariam. Algo parecido poderia ser pensado

com relação aos dados coletados por mim. As crianças em Catingueira diriam: ‘eu vou à igreja

porque meu irmão vai ou porque minha mãe manda’, enquanto seria possível ouvir de um

adolescente ou adulto, ‘eu vou à igreja porque sou uma pessoa religiosa’. Em poucas palavras,

quando criança, a religião (ser religioso) não era sequer mencionada entre as razões para o

comparecimento à igreja. Mais tarde, entretanto, quando adulto, a religião parece tornar-se a grande

razão do comparecimento à igreja. Existem, com certeza, outras razões que levam uma pessoa a

comparecer à igreja − como, por exemplo, a sociabilidade como menciono a seguir. No entanto,

estou destacando que o elemento mais importante a ser elencado pelo sujeito adulto parece ser uma

razão religiosa. Não que outras razões não se coloquem, mas o que estou ressaltando é a mudança no

137 Tudo isso não impede que desde muito pequenas elas tenham noção de que a igreja, Jesus e Maria se relacionam de alguma forma, como desenhou o garoto de quatro anos de idade (JP. M. 4. 2). No entanto, elas ainda não sabem como estes elementos estão relacionados. Vou dar um exemplo para deixar claro o que quero dizer com o fato de que as crianças têm uma vaga idéia sobre os elementos religiosos e de como eles se relacionam entre si. Estava conversando com um grupo de crianças sobre o Divino Espírito Santo. A maioria das crianças diz que nunca ouviu falar sobre o Divino Espírito Santo. Para algumas poucas crianças, trata-se de um “passarinho”. Como todo passarinho, ele voa, bota ovo e canta; no entanto, ele é diferente. Sua distinção se dá pela sua associação ao mundo religioso. Logo depois que a conversa sobre o Divino Espírito Santo minguou, J., de oito anos de idade, começou a falar sobre Nossa Senhora. Isso parece indicar que, para esta criança, o “passarinho” e Nossa Senhora são, de alguma forma, conciliáveis, fazendo parte do mesmo universo de sentidos pelo fato de poderem ser emendados na mesma conversa. Mas J. não sabe explicar muito bem como o “passarinho” e Nossa Senhora estão relacionados…

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discurso da criança para o adulto. Quando criança, “religião” não faz sentido senão como referente a

igreja (prédio) − que, por sua vez, independe dos diferentes credos.

Seguindo as sugestões de Toren (1999), poderíamos argumentar que, para os adultos, ir à

igreja ‘simboliza’ algo que, por sua vez, parece mais importante que o aspecto prático do ato. Em

outras palavras, para uma mãe ir à igreja “significa” ou “simboliza” algo que ultrapassa esta ida. Ao

contrário do seu filho, ela vai a igreja por algum motivo, seja rezar, se encontrar com Deus ou

consigo mesma, pedir perdão pelos pecados, pagar promessa ou, até mesmo, observar as roupas das

outras mulheres138. Para as crianças, é completamente diferente − diria, mesmo, o oposto: freqüentar

a igreja parece vir antes da sua cognição de significado. Quando criança, freqüenta-se a igreja;

depois é que se pergunta pelas questões teológicas, morais e propriamente religiosas, implicadas

neste movimento e pela conseqüência do ato. Para transformar-se em um adulto, a criança deve fazer

essa passagem: o ato perde forças em si mesmo e cede lugar para o significado do ato. Em um

primeiro momento, a religião só pode ser entendida como uma prática. Entretanto, é preciso não se

esquecer de que a prática está imbuída de sentidos na medida em que ir à igreja, mesmo sendo algo

da ordem do mundo prático, implica em relações sociais − ponto a ser mais discutido adiante. Mais

tarde, no caso dos adultos e dos adolescentes, o significado torna-se massivo, sobrepondo a própria

prática. À medida que a criança cresce, a prática vai se tornando subordinada ao seu significado.

Como na pesquisa de Toren: “So the adult conception of above/below inverts the child’s concept;

what was initially understood as material and concrete comes to be seen as an expression of the

explicit adult notion of hierarchy as a kind of moral imperative: the principle of hierarchy as

derived from an interaction between rank, seniority and gender” (1990: 228).

Por que os adultos não permitem que as crianças freqüentem outras religiões que não sejam

aquelas que a sua família professa? Os adultos não deixam as crianças circularem entre as igrejas

porque, para eles, religião e igreja relacionam-se com um conjunto de ensinamentos, com uma

teologia específica; enfim, com uma maneira de relacionar-se com o sagrado. Além disso, para os

pais não se vai à igreja só para ir-se à igreja. O ato de ir à igreja implica, em grande medida, em

aprender um conjunto de ensinamentos teológicos daquela igreja em particular. Por isso, importa,

sim, qual igreja se freqüente, uma vez que a definição de uma denominação religiosa importa na

medida em que as religiões divergem sobre as abordagens do fenômeno religioso139. Para as crianças

138 Note que nem sempre as razões para comparecer à igreja por parte dos adultos são de natureza abstrata. Gostaria de alertar o leitor que não estou sugerindo apenas a distinção abstrato x concreto como eixo para entender como os adultos e as crianças relacionam-se com a religião. Como espero deixar claro, a religião infantil é vivida na concretude do atendimento à igreja, mas isso implica em uma rede de relações sociais que acabam por ultrapassar o simples aspecto concreto do ato. 139 Alguns autores têm argumentado sobre o que é chamado de religião cósmica ou realismo mágico ou perspectiva cosmológica. Duarte (1986: 243) denominou “mentalidade cosmológica”, Sanchis (1997), “lógica pré-moderna”, Oliveira (1997: 49), “religião cósmica” e, mais recentemente, Semán (2000, 2001), “visão cosmológica popular”. Donde na adesão a uma igreja e não a outra, importam menos os motivos teológicos que os motivos de outras naturezas, como a

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pequenas, religião parece relacionar-se com o fato de ir a um edifício chamado igreja, nada mais. E,

por isso, não há distinção entre as religiões: tanto faz ir aqui ou ali, todas as igrejas são igrejas.

Assim, quando começam as distinções e as afirmações de pertencimento religioso, por volta dos

nove anos de idade, como será visto no capítulo a seguir, aí sim, podemos dizer que as crianças

começam a pensar razões pelas quais ir à igreja, como por exemplo, “Eu sou católico”, então

freqüento a Igreja de São Sebastião. Nesse momento, em relação à religião, elas estão mais próximas

dos adultos que das crianças pequenas140.

Por outro lado, por que as crianças querem ir às igrejas às quais os seus pais não freqüentam?

Para as crianças, como já afirmei, uma razão simbólica para ir à igreja não se coloca: ir é o ato em si

que preenche todas as perguntas. Não se freqüenta a igreja por uma razão simbólica mas, sim,

porque a mãe manda, porque os amiguinhos freqüentam, porque o irmão mais velho freqüenta.

Trata-se, apenas, de fazer o que deve ser feito, o que todo mundo faz. Para as crianças, o que está

por trás, ou seja, o conteúdo simbólico das religiões, não está em jogo. Ao contrário, o que está em

jogo é o conjunto de atividades envolvidas no atendimento à igreja. Por fim, não importa qual das

igrejas se freqüente. O que importa e tem conseqüências é ir à igreja com os amiguinhos ou a

família. Seguindo a sugestão de Toren (1999), para a criança, ir à igreja parece ser um ‘signo’ das

relações que ela estabelece no ato de comparecer à igreja. “In other words, above/below for younger

children is what is called a 'sign', that is, a 'signifier' whose 'signified' is certain relations between

people in space; for adolescents and for adults, above/below has become what is called a 'symbol',

one that contains the sign through a process of cognitive construction so that it comes to stand for

status differentiation” (TOREN 1999: 94-100).

Os antropólogos, como adultos, pensam como os seus próprios paradigmas. Segundo Toren

(1999), os antropólogos não incluem as crianças nas suas pesquisas justamente porque vêem o

mundo de uma perspectiva própria – e como não podia deixar de ser, adulta. Desta forma, quando os

antropólogos dizem que o ritual simboliza algo, eles estão partindo de um pressuposto

adultocêntrico, na medida em que a experiência das crianças no ritual é totalmente diferente da

experiência dos adultos. Para as crianças, Toren argumenta que o ritual está ligado à concretude dos

elementos ali envolvidos, enquanto que, para os adultos, a materialidade do ritual existe em função

trajetória individual ou familiar, motivos étnicos ou políticos etc. Isto permitiria às pessoas transitar entre igrejas sem maiores conflitos “religiosos”. Neste momento, estou apenas querendo entender o porquê das crianças desenharem igrejas que os seus pais não freqüentam e por que os pais não deixam as crianças circularem entre as igrejas. Os pais não deixam as crianças circularem entre as igrejas porque não consideram o ato “correto”. Uma pessoa, por exemplo, que começa a freqüentar uma igreja evangélica vai ser vítima de comentários e fofocas até que ela se converta e se estabeleça enquanto crente. Todo mundo sabe quem pertence a que igreja e a freqüência com que lá comparecem. Deste modo, apesar de existirem pessoas que circulam com certa liberdade entre as igrejas, este não parece ser o acento local. Talvez o trânsito entre religiões possa ser observado com maior relevância nas cidades de grande porte. 140 Como escreve (Toren 1999: 94-100): “To find in kava-drinking what adults find there, children have to realize what they see as concrete to be also figurative in a specific way: they have to realize kava-drinking as being 'about' status differentiation as well as 'about' drinking”.

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do seu aspecto simbólico. “It is because we, as adults and anthropologists, have privileged our own

notions over those of children that we have taken it for granted that for everyone ritual must stand

for something other than itself and that this something is carried by the material symbols, the

behavior (including the language used, etc.).” ( :94-100).

Mesmo no caso de uma mãe que não vá à missa, ela manda os filhos irem; e mais,

determina que o filho mais velho leve o mais novo. Os adultos pensam que é sempre melhor para a

criança estar na igreja aprendendo sobre Deus que estar na rua aprendendo “coisa que não presta” 141. Para os pais, interessa que a criança vá à igreja e, com isso, vá aprendendo coisas boas. A mãe

manda seu filho com o objetivo de que ele vá aprendendo a como ser religioso, fazer o bem, ser boa

gente. Porém, o adulto pensa com seus próprios paradigmas: para ele, ir à igreja, em grande medida,

implica em comungar com aquela interpretação do religioso ali oferecida e, no limite, em ser ou

tornar-se uma pessoa religiosa segundo aquela determinada religião − o que distingue radicalmente

da motivação da criança ao comparecer à igreja. No entanto, é preciso não se esquecer de que

existem adultos que freqüentam diferentes igrejas sem se filiarem exclusivamente a uma delas. Os

adultos acham “bonito” ir à igreja e se orgulham quando os seus filhos são religiosamente ativos. A

primeira coisa que o pequeno aprende ao freqüentar a igreja todo domingo, acompanhado do seu

irmão mais velho, não é nada religioso stricto senso. O pequeno aprende que o irmão mais novo

deve seguir o mais velho, onde quer que ele vá. Aprende, em contrapartida, que o irmão mais velho

tem como dever cuidar do mais novo. Desta maneira, o pequeno vai aprendendo sobre as relações

familiares e o seu lugar no mundo, ao mesmo tempo em que aprende sobre Deus, Jesus e os Santos.

Então, aqui parece, finalmente, possível responder por que os adultos mandam seus filhos para a

igreja enquanto eles mesmos não vão. Para os adultos, mais importante que o comparecimento à

igreja é ser uma pessoa boa. Para eles, o ato de ir à igreja, em si mesmo, não tem valor se não se

pratica o bem fora da mesma. Para os adultos em Catingueira, parece que amar a Deus e ao próximo

torna-se mais importante que freqüentar a igreja. Como se aprende que a religião ultrapassa o

atendimento à igreja? Curiosamente, é justamente indo à igreja que se aprende que, para ser uma

pessoa religiosa, não é essencial comparecer à igreja! Para chegar a este raciocínio, os adultos

também foram mandados para a igreja quando eram crianças e, como seus filhos, não entendiam

quase nada do que o padre ou pastor falava. Mas, de fato, ao fim aprenderam tudo!142

141 Note que a igreja parecer ser mais pública que a casa, porém menos pública que a rua. Até mesmo em Catingueira parece que a rua é o lugar do perigo, enquanto a igreja é lugar de proteção − nesse sentido, próxima da casa, lugar primordial da família. 142 Sobre a insistência dos adultos em mandar as crianças para observer o ritual, Toren escreveu: “Adults insist on children observing the explicit rules of ritualized behavior because they hold these rules to express a metaphysical principle whereby differential status is given by God. So, to behave appropriately as adults children have to make the material fact of ritual merely the symbol of its significance, rather than its own justification” (TOREN: 1999: 100).

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Mas como se deu esse aprendizado? Como já aludi anteriormente, as crianças aprendem

sobre religião através das redes sociais, nas quais a família e as pessoas mais próximas têm papel

primordial. Além disso, as crianças aprendem fazendo, na concretude do ato. Para os adultos, ir à

igreja parece implicar em um modo específico de se relacionar com as entidades, com a comunidade

de fé e com as forças do sagrado. Para as crianças, ir à igreja é somente ir à igreja – e nada mais.

Como afirma Toren (1999: 94-100), para as crianças “'kava-drinking is about drinking kava' and

'eating a meal is about eating'” 143. Mas gostaria de chamar a atenção do leitor para o fato de que

isso não é pouco. Apesar da vida da criança estar limitada por este constrangimento material, é

necessário lembrar que esta materialidade implica e se dá a partir de relações sociais que ela

estabelece no atendimento da igreja144. Um dos objetivos desta tese é estudar as redes de

sociabilidade nas quais as crianças estão inseridas e através das quais aprendem a ser gente, segundo

os padrões da sua comunidade. Quando criança, as redes de sociabilidade parecem estar restritas à

família, aos vizinhos e aos amigos. Por isso, foi importante observar como se dá a inserção das

crianças no mundo religioso, isto é, que preparativos envolve o atendimento à igreja, com quem e

como elas vão à igreja, com quem elas aprendem a rezar etc. Como vimos, as crianças participam

das reuniões religiosas infantis, isto é, dos serviços religiosos endereçados especialmente às

crianças, e também dos serviços destinados aos adultos. Entretanto, o mais importante aspecto a ser

mais uma vez destacado é que as crianças sempre vão aos serviços religiosos acompanhadas − seja

por parte da família, seja pelos colegas, seja pelos vizinhos. O fato é que elas nunca vão sozinhas. É

preciso mencionar que elas também assistem a casamentos, participam da festa de São Sebastião,

aprendem a rezar antes de dormir e a pedir a bênção aos mais velhos.

Os exemplos que vou citar neste momento foram todos coletados dos desenhos cujo título

era “a minha religião”, e parecem evidenciar a relação íntima que as crianças estabelecem entre as

relações sociais e o freqüentar a igreja. A.G., de dez anos de idade (AG. 10. F. 19), pontua: “A

minha religião é católica e eu freqüento a igreja todos os dias com minhas amigas e meus pais”. M.

(MJ. 11. F. 10), de onze anos de idade, escreveu: “Eu vou à igreja com minhas amigas”. EF., onze

anos de idade, conclui (F. 11. F. 11), “A igreja é bonita, tem o padre para celebrar a missa, tem

muita gente. Eu vou à igreja com minhas colegas”. Isso parece insinuar que, do ponto de vista da

criança − muito mais que rezar ou aprender o catecismo − ir á igreja implica em se encontrar com as

143 Citação completa: “For, where we anthropologists, along with Fijian adults, take above/below in reference to a single plane to be symbolic and so implicitly metaphorical, the youngest Fijian children take it to be propositional. In the simplest possible terms this means that, for children, ritual refers to nothing other than itself: 'kava-drinking is about drinking kava' and 'eating a meal is about eating'. The activities are not symbolic in the conventional anthropological sense (which is not to deny that for any given child they have specific significant associations, etc.)” (TOREN 1999: 94-100). 144 Como afirma Toren: “The learning process is one of gradual construction and it is initially tied to certain material objects such as the tanoa, the cloth at meals or the house itself, but these material objects are cultural artifacts; they refer not simply to themselves but to relations between people” (TOREN 1999: 94-100).

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pessoas. Além disso, quando pedi que desenhasse sobre a sua religião, C., de dez anos de idade

(CFC. 10. M. 8), desenhou um castelo com duas bandeiras, várias torres e oito pessoas em pé perto

das torres. Quando lhe perguntei o que ele havia desenhado, ele registrou: “É um castelo de pessoas

carinhosas, carentes [sic]...” Indaguei a ele o que de religião havia nisso, quando ele simplesmente

respondeu: “Tem gente. E porque é bonito” (vide desenho 9 A minha religião CF. 10. M. 8, no CD

anexo). Complementariamente, uma menina de dez anos de idade (TB. 10. F. 23) dizia-se

insatisfeita com o novo padre da cidade porque ele deixava a paz de Cristo para o final da missa, o

que desestimulava as saudações entre as pessoas.

Interessante constatar que, para alguns adultos, a mesma afirmação pode ser verdadeira.

Podemos nos questionar em que medida encontrar-se com os irmãos não é o que também estimula os

adultos a comparecer à igreja. Acredito que este possa ser pensando como um fator importante para

o comparecimento à igreja por parte dos adultos − embora pesquisar como este processo se dá

ultrapasse as pretensões desta tese. No entanto, não posso deixar de mencionar que um amigo, cujo

pai é mulçumano e a mãe católica, certa vez disse a mim que ele e seus amigos viviam “a religião

mulçumana no nível da cultura”. Eles se dizem “muslims by culture”. Com isso, ele queria dizer que

apreciava e seguia, em algum grau, a prática religiosa, mas que não se interessava pelos

ensinamentos morais da religião. Ele gostava de celebrar o Eid, de se reunir em família para comer

depois do pôr do sol. Gostava de matar o carneiro para celebrar o fim do Hamadam. Disso, ele não

abria mão! Mas o jejum ele não seguia, muito menos rezava o Corão. É interessante que possamos

tecer, em algum nível, um paralelo entre este meu amigo, que me parece representativo de parcela da

população jovem mulçumana − principalmente dos que moram em países seculares − e as crianças

em Catingueira. Elas também vivem a religião na prática, interessam-se pelos hinos, pelas

procissões, pela gincana da Infância Missionária. Em alguma medida, não será também assim que

alguns adultos de Catingueira praticam a religião? Muitos não perdem a missa da festa do padroeiro,

mas raramente se confessam ou pagam o dízimo. Não estou afirmando que as pessoas freqüentam os

serviços religiosos por razões utilitárias ou por conveniência, como mostra a literatura especializada,

ao afirmar que as pessoas selecionam os momentos dos quais participar em uma festa de padroeiro,

por exemplo (STEIL 1996, FERNANDES 1982, MARTIN 2001).

Para além das inter-relações sociais que a criança estabelece no momento do serviço

religioso, as relações do dia-a-dia com as pessoas próximas constituem a vida das crianças, a sua

relação com o mundo. Elas sabem que domingo é dia de missa e sábado é dia de catecismo, é isso

que faz do sábado sábado e do domingo, domingo. Além disso, é ir à missa no domingo, entre outras

coisas, que faz-nos ser quem nós somos. Em poucas palavras, o que parece ser importante para as

crianças é ir à igreja − não o que se faz lá ou o que supostamente se aprende. Ir à igreja é alguma

coisa que a gente faz, parte do cotidiano, de ser como a gente é. Que tipo de relações são

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estabelecidas no ato de ir à igreja, vestir roupa nova, ir com os irmãos e os vizinhos, isto importa

muito mais que ir se encontrar com Deus ou aprender sobre a Bíblia. Quais os preparativos

envolvidos no ato e como ele é praticado é mais importante que o que lá vai ser ouvido. A criança

escolhe uma roupa bonita, toma banho, passa o perfume, passa pela casa do vizinho e sai fazendo

bagunça pelas ruas. É isso o que importa para ela.

O que quis sugerir neste tópico é que as crianças não entendem o ‘porquê’ de ir à igreja. Não

que esse entendimento esteja acima das suas capacidades intelectuais. O fato é que elas parecem não

se perguntar o ‘porquê’ de ir à igreja, já que o significado das coisas não é uma questão colocada

pelas crianças. Não estou dizendo, no entanto, que as crianças não reflitam sobre a sua vida

cotidiana. O que estou sugerindo é que, para elas, os serviços religiosos importam em si mesmos.

Elas não se demandam um significado oculto ou simbólico nas práticas cotidianas. O ato encerra em

si toda a sua complexidade. De fato, ir à missa, ao culto ou ao Centro espírita é algo que na prática

envolve um conjunto de pessoas e diversas ações. Para a criança, o que parece importar é este

conjunto de relações sociais que a inserção religiosa propicia. Essas relações sociais estão enraizadas

principalmente na família, mas também nas relações com vizinhos próximos e amigos. É

principalmente através das relações com os membros da rede familiar que a criança aprende a ser

gente como toda a gente em Catingueira, gente religiosa, gente cristã. Para a criança, ir à igreja é

algo que ela faz sem que se dê conta, sem refletir. Ela faz porque é assim que deve ser. É a ordem

natural das coisas. Como afirmei, domingo é dia de missa e catecismo; sábado é dia de Infância

Missionária. Desde tenra idade ela já vai à igreja, mas ainda não sabe como igreja e religião estão

relacionadas. Ela também não sabe que os adultos geralmente vão à igreja por algum motivo ligado

a um conjunto de crença e práticas específicas naquela igreja em questão. O ato, muito antes do seu

significado, é o que está mais evidente para a criança. Em si mesmo, o ato é o que importa e não o

que o motiva, porque nesta idade o que o motiva não é uma razão apenas religiosa − é, sim,

circunstancial, como, por exemplo, seguir o irmão mais velho, ou porque a mãe “manda” 145.

4. Conclusões

Na religiosidade infantil, a religião é algo que pode ser pensado como parte do mundo e não

como reino, por excelência, separado do cotidiano − sem esquecer que existem momentos nos quais

esta distinção também não se coloca para os adultos, como nas festas religiosas: voltarei a este

145 Como discorre Toren: “…for these youngest children, ritualized behavior does not stand for anything;it is simply another facet of children´s material existence, part of the way the world is, and they do not seek to interrogate its meaning in the way implied by symbolic analyses. This is not to say that given children do not form specific associations with respect to certain practices. They do, but it is not until around 9 years of age that they hold explicitly that the meaning of these practices goes beyond the simple doing of them”. (TOREN 2002: 119/20).

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assunto em instantes. As crianças habitam um mundo encantado, onde as árvores são seres em

potencial, assim como os animais e até os objetos, como vimos no capítulo precedente. Crescer,

então, em certo sentido, implica em desencantar o mundo, tornar as coisas coisas, os animais

animais e, por último, endereçar o sagrado à igreja − sem, no entanto, restringir-se a ela. É

importante também não esquecer que os mal-assombros encantados também fazem sentido para os

adultos assim como para as crianças, como vimos no Capítulo Três146. Além disso, é importante

lembrar do pedir a bênção, observada como prática por toda a gente, independemente da idade e da

religião. Afirmei, igualmente, que quando se é criança, a religião, porque não é ainda concebida em

si mesma, é pensada como expandida a diferentes ambientes. Para o adulto, a religião pode exigir

uma atitude adequada (etiqueta), implicar um “sistema de crença”, se relacionar com as

especificidades teológicas de cada religião e, principalmente, pautar seu existir na separação em

relação à vida profana. Ao contrário, para a criança ir ao culto ou à missa parece ser parte da vida

como ela é, do cotidiano, do que toda a gente que mora na nossa cidade faz − não guardando em si

nenhum caráter extraordinário. Desta forma, as atividades que os adultos chamariam de religiosas

para as crianças seriam tidas como parte do dia-a-dia. J. 13. M escreveu “O que me deixa mais feliz é

poder estar aqui hoje nesse lugar com todos vocês amigos, também posso estudar, brincar, rezar,

comer e se divertir e poder viver” (grifo meu). Mais uma vez, a atividade religiosa, rezar, não está

excluída do que é o cotidiano. É preciso não confundir o cotidiano com uma realidade sem graça,

apagada, rotineira. O cotidiano de que falo, como sendo parte da religião para a criança, é um

cotidiano que poderíamos dizer colorido, exaltado, cheio de surpresas, mas que apenas não poderia

ser chamado de extraordinário porque não há um ordinário a que se contrapor. Tornar-se adulto

implicaria, entre outras coisas, em definir a esfera do religioso em oposição à do profano − o que, de

certa forma, implica em uma restrição de possibilidades de relação com o sagrado. Esta hipótese está

contemplada em toda a tese e será discutida na Conclusão.

Elenco dois exemplos de como os reinos da religião e da não religião parecem estar em

relação íntima, segundo a percepção das crianças. O primeiro deles é um desenho livre147 feito por J.

11. F. No desenho, vemos uma imagem de uma santa com as mãos postas em oração, segurando um

terço. A menina escreveu: “A rainha dos céus. A rainha dos céus nos mostra as estrelas para nós.

As pessoas dizem que se contar as estrelas nasce berrugas, se for 10 são 5 berrugas” (vide desenho

14 J. 11. F. Livre, no CD anexo, pasta Desenhos Tema Variados). De um assunto religioso, a

criança rapidamente passa para um assunto não religioso, sem qualquer constrangimento. O

contrário também acontece. CFB. 7. F. (livre) desenhou sol, borboleta, árvores, pé de cocos, chuva,

146 Sillas (2005) mostra etnograficamente como os adultos também podem viver em um mundo encantado. 147 Observe que o tema do desenho não foi sugerido pela pesquisadora, mas que a criança mesma desenhou, por sua própria iniciativa.

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navio, peixes, trem e, por fim, poeticamente, escreveu: “Era uma vez um barco navegando no mar.

Uma árvore que dá fruto, um pé de cocos que dá coco. Uma borboleta que voa pelo ar e um trem

que anda pelos matos que os animais comem. Uma árvore que dá maçã, que dá fruto. O sol que

brilha e clareia o mundo. O aquário que vive os peixinhos, o mar que também vive os peixinhos. A

baleia que também vive no mar, a sereia, a Iara. O trem que leva passageiros. Os pássaros que

voam. A nuvem que chove, o arco íris que é bonito. Eu gosto do arco-íris e de Deus.” (O exemplar

está disponível no CD anexo, na pasta de nome Desenhos Temas Variados o desenho 13 CFB. 7. F.

[Livre]).

Indo longe na distinção adulto x criança, seria possível insinuar que a religião infantil é

uma religião da prática, na qual a simbologia estaria relegada a um plano subordinado. O modo

como a criança relaciona-se com a religião parece diferir daquele do adulto na medida em que, para

a primeira, a religião é vivida na prática, no atendimento do prédio religioso, enquanto que, para o

adulto, religião representa ou simboliza algo maior que o simples atendimento à igreja − mas o

índice e o ícone em contraste com o símbolo abstrato podem ser tidos como mais próprios à religião.

Assim, as crianças, enquanto operam com o índice e com o ícone, seriam mais “religiosas” que os

adultos que operam com o símbolo abstrato (por exemplo, o santo em contraste com Deus). Isso

parece enfatizar a tese do desbastamento religioso à medida que a criança cresce. Além disso,

quando muito pequenas, as crianças não distinguem um reino que poderíamos chamar de não-

religioso de outro que poderia ser chamado de religioso. Ao contrário, parece haver uma indistinção

entre o que os adultos chamam de profano e de religioso.

Mas, a esta altura, faz-se urgente relativizar a distinção entre adulto e criança com a qual

venho trabalhando aqui. Talvez parodiando Bruno Latour no livro Jamais fomos Modernos (1994

[1991]), fosse possível dizer que ‘jamais fomos adultos’. Assim, também os adultos continuariam a

definir e relacionar-se com a religião nos termos que venho anunciando: onde o atendimento ao

serviço religioso e o aspecto relacional deste ato estariam cotados entre os fatos mais importantes e

definidores da religiosidade. Afinal, os adultos não cessam de comparecer a igreja, de lotar as

procissões e missas do santo padroeiro, de freqüentar o Centro espírita e de compartilhar a vida ao

lado dos “irmãos”, no caso dos evangélicos. O leitor poderia corretamente argumentar que em

momentos diversos os adultos agem exatamente como as crianças vêm sendo descritas nesta tese. O

contrário não é verdadeiro, as crianças não agem como adultos − apesar de, às vezes, imitarem o seu

discurso e prática, sem, no entanto, imitar os sentidos destes discursos e práticas. Gostaria de sugerir,

então, que os adultos, excluindo os que pertencem a uma religião de maneira fundamentalista,

continuam sendo como as crianças. A idéia da separação entre sagrado e profano, tal como a

modernidade (LATOUR 1994 [1991]), de fato, nunca teria ocorrido, a não ser nas cabeças de alguns

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teóricos e teólogos148. Na prática religiosa, em que reina absoluta a antinomia (VELHO, em

preparação), o sagrado e o profano são partes de uma mesma unidade.

Em Catingueira, seria possível brincar com a paródia ‘jamais fomos adultos’, na medida em

que, em muitos momentos, não parece haver uma distinção tão aguda entre as crianças e os adultos,

como talvez tenha dado a impressão. É importante chamar a atenção para o fato de que: 1) também

os adultos operam com mal-assombros, mesmo que restritos a apenas a alma dos mortos. Indo além,

os mal-assombros encantados, como a Maria Fulozinha, continuam a fazer sentido mesmo quando a

pessoa se torna adulta, podendo ser vistos e temidos. 2) Para o adulto, ir à igreja continua sendo

importante, como parte da sua religiosidade. E, finalmente, 3) para aquele que crê, o sagrado não

estaria restrito aos ambientes genuinamente religiosos, como a igreja, mas também estaria presente

na festa do padroeiro e da diversão que ela propicia. Parece que, na tentativa de descrever as

diferenças entre crianças e adultos, posso ter exagerado ou criado esta diferença sagrado /profano

que, na realidade, não opera − ou, pelo menos, não opera com tanta abrangência. De todo modo, não

acredito ser totalmente incorreta a afirmação de que, para os adultos, existe alguma coisa que pode

ser considerada profana, que se distingue do que pode ser considerado sagrado: basta ver as

discussões que a parte não religiosa da festa do padroeiro suscita. Por parte dos protestantes adultos,

tudo que é vendido na festa é referente ao Santo, ou seja, a distinção não se coloca: tudo foi

contaminado pelo Santo (mas as crianças insistem em tomar sorvete na praça do barraqueiro que

veio para aproveitar a Festa do Santo, ao passo que algumas mães os proíbem porque estariam

tomando sorvete “do santo”!). Mas, por parte dos católicos, a parte “religiosa” (missas, procissões

etc.) é sagrado, e o restante (barracas, danças etc.) é profano − e estes dois não devem se misturar,

segundo os católicos mais conservadores.

Sem contar os fundamentalismos religiosos, que há por toda a parte, poderíamos sugerir que,

para o adulto, o que constitui o cerne da religião seria a experiência da brincadeira, quando se

aproxima do que Bateson (2000 [1972]) chama de “duplo-vínculo”, e que Otávio Velho (em

preparação) sugere ser o centro na religião. A brincadeira de inventar o medo é uma experiência de

duplo-vínculo por excelência: a criança mistura fantasia e realidade, medo e fascínio, atração e

148 “As práticas realizadas pelos nativos, no entanto, se bem não negam a especificidade diferencial do “sagrado” (mesmo quando não o denominem necessariamente desse modo), mostram-nos que aquilo que os autores precedentes diferenciam, separam e classificam como “sagrado” e “profano” coexiste e combina-se de modos bem mais flexíveis do que aqueles que eles próprios identificam: torna-se necessário, então, uma abordagem que não substitua um dualismo por outro (VELHO, 1997) e que, como coloca Velho (2005), consiga apreender dita especificidade diferencial, não como descontinuidade, ruptura ou oposição, mas nas pequenas diferenças de um mundo contínuo. “Sagrado” ao ser utilizado como adjetivo, não designa uma instituição, uma esfera ou um sistema de símbolos, mas heterogeneidades reconhecíveis em um processo social contínuo em um mundo significativo, e por isso, não “extraordinário” nem radicalmente outro. Processo que se ativa em momentos diferenciais e específicos e/ou em espaços determinados e que, longe de existir de forma abstrata ou com um conteúdo universal, é reconhecido e atuado pelos nativos em diferentes situações: nas descontinuidades geográficas, nas marcas diferenciais do calendário, nas interações cotidianas, em gestos ordinários e em performances rituais” (MARTIN 2006: 05).

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repulsa e, no fim, morta de medo, faz uma oração para se libertar das garras do monstro malvado. A

experiência da religião aproxima-se da brincadeira na medida em que ambas se valem da antinomia

e dos paradoxos. Tal como no caso da modernidade e da não-modernidade no livro de Bruno Latour

(1994 [1991]), poder-se-ia contrastar a idade infantil e os anos de adulto para melhor render o

argumento. Mas é preciso, em seguida, desfazer a distinção, na medida em que a mesma não opera

universalmente. “... It’s a matter of how to keep those different levels, rings, whatever, not separate,

because they can never be separate, and not confused, because if they get confused, then you begin

to take the metaphoric as absolute, as the schizophrenic does” (BATESON 1991 [1977]: 269). Nem

o sagrado/profano, nem igreja (templo)/ igreja (sistema de crenças), nem a criança/adulto podem ser

tomados como uma coisa só, como confusos. Ao mesmo tempo, eles não podem ser tomados como

separados, uma vez que a relação que estabelecem entre si ultrapassa as categorias que estamos

acostumados a lidar: assimilação, confusão, englobamento, dominação... Para finalizar, parece que

estamos mesmo no terreno dos paradoxos e antinomias, segundo Otavio Velho (em preparação).

Assim, uma dificuldade coloca-se para o pesquisador: desenvolver uma retórica que seja capaz de

transmiti-los. O discurso do pesquisador deve captar este real facetado, o que coloca questões graves

para o discurso científico − uma vez que estamos acostumados a tomar partido de um referente. Por

isso, se às vezes dei a impressão de estar congelando a infância ou a idade adulta, ou a distinção

profano e sagrado, é porque me faltaram ferramentas retóricas para transpor para o discurso

científico uma realidade intrinsecamente antinômica.

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5. Apêndice Gráfico 1

Soma dos elementos religiosos

-

20

40

60

80

100

120

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

mer

o d

e de

sen

hos

Gráfico 2 Não sabe

0%

5%

10%

15%

20%

25%

30%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

Gráfico 3

Rezar

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

Gráfico 4

Jesus X Maria

0%

5%

10%

15%

20%

25%

30%

35%

40%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

Jesus Maria

Gráfico 5

Soma das Igrejas

0%

20%

40%

60%

80%

100%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13Idade

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CAPÍTULO 5: Como se faz uma pessoa religiosa − ou, simplesmente, como se tornar um catingueirense

“Eu acho a religião muito importante para mim, porque é só para falar em Deus. Eu gosto muito de Deus, porque ele é o nosso Salvador. Eu não sou católica porque eu não gosto, só porque não gosto

de ser católica não é obrigado não gostar de Deus. A religião é muito importante para mim eu acho que para todos também é. Eu acho bonito aquelas pessoas que são católicas. O Senhor é o meu pastor e

nada me faltará”. PM. 13. F. 21 - Redação A minha religião.

1. Introdução

O objetivo central deste capítulo é acompanhar como a religiosidade, enquanto característica

auto-referente dos catingueirenses, é incorporada pelas crianças. Como será visto, as diferenças na

percepção e na relação com a religião segundo as diferentes faixas etárias infantis deixam antever o

processo pelo qual uma pessoa se torna adulta em termos religiosos. Assim, será possível vislumbrar

como se dá o processo de transformação das idéias religiosas no cotidiano infantil, passo a passo, em

direção à constituição de um pensamento e de uma prática religiosa cristã. Os mal-assombros serão

contemplados através das diferenciações que ocorrem ao longo do processo de crescimento e através

da análise da dúvida quanto à possibilidade da sua existência. Finalmente, o capítulo tem como um

dos objetivos colocar em diálogo os mal-assombros e a religião, ao descrever o crescimento infantil

através de dois processos centrais e que me parecem simultâneos: 1) a restrição dos mal-assombros

às almas, ou seja, o entendimento dos mal-assombros como entidades religiosas e, 2) o

descolamento da ênfase religiosa, que em princípio estava colocada na igreja, enquanto templo, em

direção às entidades religiosas (Deus/Jesus, Nossa Senhora, Santos) e a igreja entendida como

ecclesia, a comunidade de irmãos.

Com isso, espero lançar alguma luz sobre as diferenças e as similaridades entre a

religiosidade infantil e a religiosidade adulta. Minha aposta é que a religiosidade infantil é vivida de

maneira concreta ou prática (indo à igreja), relacional (principalmente com a família), difusa (não há

separação entre profano e sagrado) e, por fim, intensa. Como se viu, as crianças muito pequenas não

dialogam com nenhum elemento propriamente religioso. Mas, depois dos cinco anos de idade, de

modo geral, elas deixam claro, através dos desenhos, que a igreja (templo) é o que mais importa em

relação à religião − enquanto que, para os adultos, parece haver um acento em Deus, nas outras

entidades religiosas e nos irmãos. Assim, na religiosidade adulta também se observa um privilégio

das atividades coletivas e na prática religiosa, embora as suas especificidades devam ser analisadas

detalhadamente. Ao fim do capítulo, re-elaboro a hipótese, já anunciada, de pensar o crescimento

das crianças como um processo de desbastamento religioso. Ao mesmo tempo, resgato também a

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idéia de pensar que “jamais fomos adultos” em termos religiosos (LATOUR 1994), na tentativa de

pensar o que há de comum entre os adultos e as crianças.

Este capítulo valer-se-á da análise dos desenhos elaborados pelas crianças cujos temas foram

“A minha religião” e “O mal-assombro”. Para melhor discutir o tema do capítulo, também será

levado em conta todo o trabalho de campo com as crianças e com os adultos, assim como os outros

métodos e técnicas de pesquisa empregados. Por fim, os desenhos serão apresentados tendo em vista

as faixas etárias trabalhadas (dos três aos treze anos de idade) 149.

2. Tornar-se religioso

Como vimos no Gráfico Um, ao contrário dos três e quatro anos de idade, quando a taxa de

elementos religiosos desenhada tende a zero, aos cinco anos de idade as crianças começam a

desenhar elementos religiosos. Nesta faixa etária, um total de vinte e quatro elementos religiosos foi

desenhado, enquanto aos três anos de idade o número de elementos religiosos desenhados é de zero

unidades, e aos quatro anos de idade, é de três unidades. Isto parece informar que, ao contrário dos

anos anteriores, aos cinco anos de idade a religião está em processo de codificação. Por volta desta

faixa etária, começa um processo muito importante que se caracteriza pela assimilação da igreja

(prédio) enquanto sinônimo de religião, parcialmente demonstrada no fato da quantidade massiva de

igrejas desenhadas. Esta fase perdura por bastante tempo e vai, em certa medida, caracterizar o modo

de relação infantil com a religião. Aposto que, nesta idade, acredita-se que a religião é algo

intrinsecamente ligado à igreja – e esta, por sua vez, é um prédio no meio da praça. Porém, a religião

vai deixar de ser associada unitariamente à igreja por volta dos dez anos de idade, quando as

crianças começam a percebê-la de um ponto de vista que podemos considerar adulto, no qual o

sentido religioso ultrapassa (e transforma) a prática religiosa. Mas vamos devagar com o argumento.

Aos seis anos de idade, os números dos que realmente desenharam sobre religião e, dentre

estes, os que elegeram desenhar igrejas, não muda muito em relação aos cinco anos de idade. Um

total de vinte e sete elementos religiosos foram desenhados aos seis anos de idade. Se somarmos o

número daqueles que desenharam igreja, chegamos a um total de 38% das crianças com cinco anos

de idade, e 48% das crianças aos seis anos de idade. Mas é preciso perguntar-se com que conceito de

149 A maioria das análises que se seguirão limita-se aos dados produzidos a partir da pesquisa com as crianças de três aos treze anos de idade. No entanto, como expliquei no capítulo sobre os métodos e as técnicas de pesquisa, em algumas classes de aula, devido a repetências, deparei-me com alunos com idades acima da faixa etária privilegiada. Optei por deixá-los participar da pesquisa e, por fim, quando me pareceu interessante, os dados de pesquisa resultantes desta abordagem foram aproveitados para a análise que se seguiu. Gostaria de esclarecer que, embora o número de desenhos, ou melhor, de redações acima da faixa etária dos treze anos de idade não atinja as vinte unidades mínimas – como é o caso nas outras faixas etárias −, eles foram analisados em termos de porcentagem, e não em termos de números absolutos.

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igreja estas crianças estão trabalhando aos cinco e seis anos de idade. Nos primeiros desenhos sobre

religião, em que há igrejas, as mesmas figuram no papel sem qualquer outro elemento conjugado. Já

nos desenhos posteriores, as igrejas são ambientadas em paisagens. Nestas paisagens, o mais comum

são a praça da cidade, o banco da praça, árvores, flores, sol e nuvens. Praticamente até os seis anos

de idade, podemos dizer que não há pessoas nos desenhos de igreja, seja com ou sem ambientação.

Exceto em um desenho, não há vida humana nas igrejas desenhadas150. Com isso, talvez possa ser

lançada como hipótese a sugestão de que, se a religião quer indicar igreja, esta, por sua vez, indica

nada mais que uma construção, um prédio, um edifício, para as crianças até os cinco anos de idade.

Levanto como hipótese pensar que o fato de que a não existência de qualquer ambientação no

desenho parece indicar que a criança estabelece pouca relação pessoal com o objeto desenhado.

Quanto mais detalhado um desenho, mais próxima do item desenhado a criança provavelmente deve

se sentir, já que desenhos muito elaborados geralmente vêm associados a longas descrições, as

chamadas “histórias dos desenhos”. Nestas descrições, as crianças relatam (ou inventam) estórias de

momentos vividos por elas ou por alguém próximo, um amigo ou familiar. Assim, acredito ser

possível afirmar que há um crescimento no nível de relação entre a igreja e as crianças à medida que

os desenhos tornam-se mais detalhados, com ambientações e, por último, quando as pessoas são

incluídas nos mesmos.

O que se percebe nos desenhos das crianças de sete e oito anos de idade são ainda muitas

igrejas − mas, como já afirmei, elas não estão mais soltas no papel, como até então. Nesse caso, as

igrejas são desenhadas dentro de um contexto, que vem a ser o contexto da cidade. Estão rodeadas

por árvores e bancos, flores e nuvens, seja sob um sol sorridente, seja sob a chuva abundante. Como

afirmei, os primeiros desenhos contam apenas com igrejas; depois, aparecem as igrejas com

ambientações, para, só posteriormente, aparecer vida humana associada às igrejas. Isso parece

indicar crescimento gradativo da relação com a religião – que, nestes anos, está associado

prioritariamente à igreja. Interessante que, para que a igreja seja pensada como instituição ou

ecclesia, seja necessária a sua descontextualização, atitude que parece ser mais característica das

crianças pequenas que desenham a igreja fora do contexto. Como será visto, esta, curiosamente, será

também a atitude dos adultos. Concomitantemente ao aparecimento de gente associada à igreja,

vemos também uma variedade maior de elementos associados à religião. Por hora, é importante

dizer que a igreja é bastante desenhada, e isso parece alertar para a importância da igreja entendida

150 Um menino de seis anos de idade da Assembléia de Deus desenhou a si mesmo e a sua família indo ao culto - Vide no CD anexo, Desenhos A minha religião, desenho 3 A minha religião I. 6. M. 4. Há em todas as faixas etárias alguns desenhos que adiantam a faixa etária posterior. Estes desenhos são muito interessantes porque mostram a “confusão” pela qual está passando a criança. Muitas vezes estes desenhos contêm mensagens que poderiam ser julgadas como contraditórias. Mas que, ao contrário, estão mostrando como a criança está elaborando seu próprio juízo a respeito do tema. Estes números vistos isoladamente tendem a atrapalhar a harmonia dos processos detectados, porém em conjunto com os dados etnográficos podem adquirir inteligibilidade.

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enquanto prédio. Como foi visto no Capítulo Quatro, a igreja não está sendo desenhada porque

representa a fé cristã ou porque é o lugar sagrado por excelência. A igreja está desenhada porque é o

lugar aonde as crianças vão: ela importa enquanto lugar aonde se vai.

Apesar da grande quantidade de igrejas, aos cinco anos de idade os desenhos também

contemplam ocorrências de Deus, Maria e Jesus, a Bíblia e a cruz. Aos seis anos de idade, a

proporção dos elementos religiosos desenhados para além da igreja é bem parecida com a de cinco

anos de idade: há alguns poucos Jesus, Marias, Bíblias, cruzes e outros religiosos151. Deus não

aparece, mas aparecem os santos, bastante populares entre as crianças pequenas. Os santos são

contemplados pela primeira vez aos seis anos de idade, e em nenhuma outra faixa etária deixaram de

ser desenhados. Causa impressão o fato de que, dos seis aos dez anos de idade, a popularidade dos

santos seja maior que a de Deus, ao passo que só depois dos doze anos de idade, Deus desponta na

frente dos Santos152. Mapeando os desenhos nos quais Deus aparece, chegamos aos seguintes

números: sete anos, 5%; oito anos, 10%; nove anos, 10%; dez anos, 19%; onze anos, 28%; doze

anos, 19%; treze anos, 52%. Podemos afirmar que o número de crianças que desenhou Deus vai

aumentando com o passar dos anos. Em relação aos santos, ocorre fenômeno oposto: os números

aumentam até mais ou menos os oito anos de idade, quando começam a decair: quatro anos, 4%;

cinco anos, 4%; seis anos, 5%; sete anos, 5%; oito anos, 24%; nove anos, 19%; dez anos, 12%; onze

anos, 24%; doze anos, 24%; treze anos, 14%. Isso não quer dizer que o santo deixe de ser

importante, mas, sim, que Deus desponta como ponto central da religião. Convido o leitor a observar

os Gráficos Seis e Sete, no final deste capítulo, e atentar para a freqüência com que Deus e Jesus

foram desenhados.

De acordo com a hipótese de que religião é vivida pelas crianças na sua concretude, os dados

não parecem diferentes do esperado. As crianças vão à igreja. Pensemos no catolicismo, religião que

congrega o maior número de fiéis na cidade: que igreja é esta? A igreja de São Sebastião. Muito

raramente, as crianças afirmaram que freqüentavam a igreja católica. As respostas à pergunta “qual é

a sua igreja?” eram: “está aí”, “está aí na praça” ou “a igreja de São Sebastião”. Os adultos, por

sua vez, davam-me respostas bastante elucidativas que remetiam muito constantemente ao Santo,

como ver-se-á em instantes. Deus, enquanto ser supremo e intangível, não pode ser decodificado

pelas crianças pequenas, na medida em que, para elas, religião é algo que diz respeito às atividades

do dia-a-dia, além de estar altamente relacionada às inter-relações que elas engendram, como vimos

no Capítulo Quatro. Que imagens enfeitam a igreja? As imagens dos santos. Não há uma só

151 Os elementos desenhados foram classificados em: Igreja Genérica, Igreja Católica, Igreja Assembléia, Igreja dos crentes, Capela, Deus, Jesus, Maria, Santo (a), Pastor /padre, Bíblia, Pecado, Liturgias, Rezar, Outros religiosos, Gente + igreja, Cruzeiro/ cruz, Casa c/cruz, Escritos religiosos, Não sabe, Outros, Casa e afins, Personagens de TV, Elementos da Natureza, Brinquedos, Gente, Transporte. 152 Aos nove e aos onze anos de idade os Santos e Deus são desenhados com a mesma porcentagem.

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representação gráfica de Deus. Os santos têm representações físicas, as imagens que podem ser

vistas e tocadas. Lembre-se das crianças evangélicas, descritas no Capítulo Quatro, que desenharam

as igrejas católicas porque queriam “ver os santos”. O corpo de Jesus pregado na cruz também pode

ser visto pelas crianças e parece chamar a sua atenção. Mas e Deus? Ele é um ser obscuro,

impalpável, difícil de desenhar. Não é por acaso que Deus só vai passar a ser mais desenhado que o

Santo quando as crianças atingem os doze anos de idade − idade próxima à adolescência. Crianças

pequenas raramente citam Deus. Podem até citar Jesus, o que pode ser entendido com relação ao que

afirmei anteriormente: que Jesus pregado na cruz é uma imagem poderosa − além do próprio menino

Jesus, que, por sua vez, parece bastante apelativo para as crianças. Com isso, caminhamos na direção

da afirmação da religião infantil enquanto pautada na concretude do dia-a-dia. Os santos são mais

desenhados porque fazem parte do cotidiano infantil − ao passo que Deus, o sem representação

pictográfica, é uma incógnita153.

Em um trabalho anterior, fiz uma análise das respostas dos catingueirenses adultos à pergunta

(aliás, muito inadequada para o contexto em questão, já que não há ateus na cidade, e que todos

professam uma religião): qual a sua religião? (PIRES: 2005a). AL., de onze anos de idade (AL. 11.

M. 17), escreveu: “A religião é muito importante para nós todos. A religião nos permite ser boas

pessoas. Todos nós temos uma religião católica ou evangélica, nós todos devemos ir a igreja”. A

redação deste menino expõe com clareza facetas da religiosidade catingueirense, que já me haviam

sido expostas: 1) ter religião é um universal em Catingueira e, 2) o Centro espírita não é considerado

uma “religião” porque parece englobado pelo catolicismo (PIRES 2003). David Elkind (1978),

psicólogo piagetiano, pesquisador do desenvolvimento cognitivo das crianças, analisou como as

crianças constroem sua própria realidade através do tema da religião (dentre outros). O autor

perguntou às crianças: O que é um católico/ protestante/ judeu?, de acordo com a religião declarada

pela criança, chegando à seguinte conclusão: “The Catholic children often replied by stressing the

practices and creeds of their church. Protestant children, on the other hand, often defined

themselves in opposition to Catholic doutrine. The same was frequently true for Jewish children,

153 Além disso, é interessante observar que a possibilidade de definir Deus parece ser um dos temas importantes da discussão teológica. Durante o trabalho de campo, pedi às crianças que desenhassem Deus, o que resultou em vinte e um desenhos. Na sua maioria, elas ficaram sem saber o que desenhar. Elas me perguntaram: posso copiar do livro? Posso fazer igual o da igreja? (o crucifixo). Mas a dificuldade não as impediu de levar adiante a proposta da pesquisadora. A maioria das crianças desenhou Deus na forma clássica de Jesus. Muitas colocaram o nome “Jesus” (uma delas escreveu “Jesus na natureza” C. 11. F Deus). Interessante observar que desenhar Deus na forma de Jesus é, de certa forma, acurado em termos da teologia católica referente à Santíssima Trindade. Alguns (dez) escreveram frases religiosas para Deus ou para a pesquisadora: “Deus é fiel”. “Flávia, nunca estamos sós sempre há um amigo por nós”. “Jesus te ama e eu também”. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Essas são as palavras que Deus e o Seu filho nos ensinou até agora acredite nele e ele fará muitas e muitas coisas” (S. 13. F Deus). “Jesus vai te iluminar”. Sete crianças desenharam Deus no estilo de Jesus: com barba, cabelo grande e vestido. Uma menina desenhou Maria (sem roupa, com cabelo grande e uma luz em volta do corpo) e o Anjo Gabriel (sem roupa, com auréola, asas e luz em volta do corpo) (L. 8. F. Deus). Uma criança desenhou a natureza (“A Serra [da Catingueira] e o céu onde Deus vive”) (S. 12. F Deus). Um menino desenhou uma casa e um menino (Perguntei: “é Jesus ou Deus”? Ele disse: “Tanto faz”) (I. 9. M. Deus). E apenas uma menina recusou-se a desenhar porque não sabia fazer Deus e acabou por desenhar um castelo (L. 8. F Deus).

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who often defined themselves in contradistinction to Christian dogma (i.e., The New Testament). Put

differently, this suggests that Protestant and Jewish children conceive their religious identity

relatively, in contrast to other religious, whereas the Catholic children conceive their identity

absolutely and within the confines of their own church” (1978: 26)154. Esta afirmação vai ao

encontro dos dados observados em Catingueira. Excluindo os judeus, ausentes na cidade, a relação

entre protestantes e católicos parece ser bastante similar. A religião católica é a religião mais

abrangente, seja em números dos fiéis, seja pela força da tradição. Nesse contexto, sugiro alhures

(PIRES 2003, 2004a, 2005a) que o santo padroeiro é importante para pensar as relações entre as

religiões, principalmente no tempo da festa de janeiro.

Outra constatação relevante é o fato da quase onipresença da cruz como símbolo religioso

nos desenhos das crianças a partir dos cinco anos de idade. Veja a porcentagem de crianças que

desenhou cruzes nos desenhos sobre “a minha religião”: cinco anos, 8%; seis anos, 24%; sete anos,

55%; oito anos, 71%; nove anos, 86%; dez anos, 68%; onze anos, 62%; doze anos, 62%; treze anos,

19%. Se as cruzes desenhadas isoladamente não são tantas, as cruzes em cima das igrejas estão em

quase todo os desenhos, porque a grande maioria deles possui igrejas. Observe que, aos dez anos de

idade, o número de crianças que desenhou cruzes começa a decair, o que parece corroborar a idéia

de que a religião deixa de ser associada majoritariamente à igreja. Além disso, não é demais lembrar

que os catingueirenses são cristãos. Segundo o cristianismo, a cruz lembra o sacrifício do filho de

Deus pelos homens. Mas o que a cruz significa para as crianças? Além de sinalizar igrejas, a cruz

muitas vezes é associada à morte ao sinalizar uma cova, principalmente nos desenhos dos mal-

assombros. Ao mesmo tempo, ao desenhar a cruz talvez as crianças se refiram àquela que elas vêem

na igreja onde pende Cristo morto de cabeça baixa. A cruz, além disso, é um símbolo muito

freqüente no cotidiano: está na porta da igreja, na torre da igreja, na capa da Bíblia, na capa do

livrinho da escola dominical ou do catecismo, dentro da igreja na imagem de Jesus crucificado, nas

mãos das imagens dos santos e até nas salas de aula. E, por fim, é preciso mencionar que, como as

casas, as cruzes são desenhos simples que não requerem muita habilidade para serem executados.

A criança, por volta dos seis anos de idade, já pode ser coroinha do padre. Pode, também

começar a participar seriamente das reuniões religiosas infantis como as outras crianças maiores − o

que implica em estar sujeita às normas de disciplina, assim como às atividades de ‘para casa’. Como

já foi mencionado, a criança de sete ou oito anos de idade geralmente reza acompanhada da mãe ou

irmão (ã) mais velho (a) antes dormir e, de acordo com a família a que pertence, pode rezar também

antes das refeições. Além disso, pedir a bênção já é uma atividade cotidiana. Aos sete e oito anos de

idade, as crianças são vistas nas igrejas e no Centro espírita. Elas vão ao catecismo, à infância

154 Como é comum nas pesquisas em psicologia, não encontrei no livro nenhuma referência ao contexto no qual a pesquisa foi realizada. Acredito que tenha sido nos Estados Unidos da América, uma vez que o livro é editado neste país.

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missionária, à reunião dominical e à reunião das crianças. São coroinhas na igreja Católica e cantam

hinos na Assembléia de Deus. (Para maiores detalhes sobre a vida religiosa das crianças, recorra ao

Capítulo Quatro). Aos oito anos de idade, surge um número considerável de escritos religiosos como

“Deus é amor”, “Deus te ama” e versículos da Bíblia como “O Senhor é meu pastor”. Interessante

notar que os oito anos de idade coincidem com a fase de alfabetização. Dessa maneira, não é de se

estranhar que as crianças comecem a expressar-se através da palavra escrita155. Aos oito anos de

idade, temos ocorrências de capela, Deus, Jesus, Maria, Santos, padre/pastor, cruz, outros

religiosos e, pela primeira vez, rezar também é destacados pelas crianças. Embora aos sete anos de

idade religião também diga respeito a Deus, Jesus, santos e a cruz, parece que a igreja ainda é o

elemento mais destacado pelas crianças. Da mesma forma, aos oito anos de idade, as crianças fazem

outras associações com o tema da religião, mas que não chegam a competir com as igrejas.

É preciso ressaltar um detalhe que passará a fazer diferença: o número de crianças que

desenhou pessoas indo para os serviços religiosos cresce consideravelmente com o passar dos anos.

Aos sete anos de idade, são 10%, e aos dez anos de idade, já são 64%, mas os números não vão parar

por aqui. Aos sete ou oito anos de idade, podemos dizer que as crianças começam a pensar a igreja

como lugar associado às pessoas; neste caso, a igreja deixa de ser apenas o prédio no meio da praça

para se tornar um lugar freqüentado. Nesses desenhos, observamos, por exemplo, pessoas rezando

dentro da igreja, celebração de missas e casamentos, a festa do santo padroeiro ou a família indo

para a igreja. Esse processo se acentua aos nove anos de idade, mas só vai atingir seu pico aos dez

anos de idade, quando a igreja é muito recorrente e, ao mesmo tempo, observamos a maior taxa de

gente e igreja juntas (o que chamei de gente + igreja, recorra ao Gráfico Oito para maiores

detalhes). Aos dez anos de idade, temos o ápice da conjugação de igreja e gente nos desenhos. Isso

parece indicar que, para a criança, a igreja é concebida como um lugar habitado, aonde as pessoas

vão. Tudo se passa como se a religião, que nos primeiros anos de vida parece não fazer sentido

algum, passasse a ser reconhecida como a igreja – e esta, por sua vez, como algo exterior aos

indivíduos, sem grandes interações com os mesmos. Posteriormente, a igreja será desenhada inserida

num contexto geográfico, e um pouco adiante, aparece gente nas igrejas. Embora a religião continue

a ser entendida como igreja, agora esta é algo que diz respeito às pessoas. O fato das pessoas serem

incluídas nos desenhos parece-me importante porque pode estar revelando o modo de relação que

estas pessoas estabelecem com a religião, no qual o freqüentar a igreja parece ser essencial. Igreja é

agora, sem dúvida, lugar de gente, e pode ser melhor entendida a partir do seu sentido de ecclesia.

Não se trata da mesma representação gráfica dos primeiros anos na qual a igreja está desenhada

155 Os números dos escritos religiosos são os seguintes: três anos: 0%. Quatro anos: 0%. Cinco anos: 0%. Seis anos: 0%. Sete anos: 0%. Oito anos: 5%. Nove anos: 14%. Dez anos: 36%. Onze anos: 14%. Doze anos: 29%. Treze anos: 48%. Gostaria de ressaltar que essa ocorrência não se limita às crianças de famílias evangélicas.

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sozinha, solta na folha de papel. Agora, temos gente indo à igreja, rezando, se casando. Observe o

Gráfico Oito, no final deste capítulo.

Se estamos no caminho correto, o número de igrejas desenhadas deveria diminuir, à medida

que as crianças crescem, para dar lugar a outros elementos que representariam a religião para os

pequenos. Curiosamente, dos sete aos treze anos de idade, o número de igrejas desenhadas

(independentemente das pessoas) permanece bastante alto, como é possível visualizar no Gráfico

Cinco, no final deste capítulo. O grande número de igrejas desenhadas põe em relevo uma questão já

parcialmente anunciada acima: com que conceito de igreja estas crianças estão trabalhando? E,

ainda, como este conceito muda ao longo dos anos?

Por volta dos dez anos de idade, tem início uma mudança importante no entendimento do que

seja a igreja. O resultado dessa mudança é similar à relação que os adultos estabelecem com a

religião. Uma das hipóteses que estou levantando aqui é que a relação dos adultos com a religião

caracteriza-se, entre outros aspectos, pela separação entre os conceitos de religião e igreja (templo).

Em outras palavras, para o adulto, religião e igreja, embora se relacionem, não podem ser igualadas.

A constatação de que religião e igreja são duas coisas diferentes parece ser uma das características da

religiosidade nos moldes adultos. A religião não remete apenas à igreja, porque surge a possibilidade

de um indivíduo ser religioso sem freqüentá-la. Enquanto quase todas as crianças pequenas

desenharam igrejas, uma criança de onze anos de idade quase se esqueceu de acrescentar a igreja nas

suas considerações sobre a religião. Observe: “A religião é muito importante para os católicos

porque a religião nos ensina a ser filho de Deus, ser generoso e educado, a religião fala de Jesus. A

religião fala da vinda e da vida de Jesus Cristo e dos povos antigos e da igreja”. (LG. 11. F. 18). Ao

mesmo tempo em que a religião extrapola a igreja, surge a idéia de que não basta apenas ir à igreja

para ser bom, há que se praticar o bem fora da mesma. Este processo talvez se inicie aos dez anos de

idade, mas vai acentuando-se com o passar do tempo.

Se de um lado talvez fosse esperado que o número das igrejas desenhadas caísse em

conseqüência do advento de uma nova maneira de lidar com a religião, na qual a igreja já não é mais

soberana e na qual é possível ser religioso sem que se vá à igreja, de outro lado, simultaneamente,

constata-se, para os católicos, uma nova maneira de pensar a própria igreja, como sagrada. Em

função disso, os números de desenhos de igrejas permanecem altos. A igreja passa a ter valor em si

mesma, sendo reconhecida como lugar importante, o que vai ao encontro das concepções adultas

católicas a respeito dela. Mesmo que não se freqüente, a igreja é tida como um lugar sagrado, que se

respeita. A igreja passa a ter valor em si mesma, o que nos primeiros anos não se verifica. Este novo

valor acrescido à igreja pode ser responsável pelas altas taxas de igrejas desenhadas, mesmo quando

ela já não é a única referência em termos religiosos.

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Interessante notar que é por volta desta faixa etária que, ao mesmo tempo, as igrejas são

habitadas e são concebidas como sagradas. Quando a igreja passa a ser lugar de gente, ela passa

também a ser um lugar sagrado. Sem as pessoas a freqüentá-la, a igreja era apenas um prédio no

meio da praça. Exatamente quando as crianças parecem se relacionar de maneira mais íntima com a

igreja (visto que esta é habitada), neste exato momento começa a ocorrer a dissociação da religião

com a igreja. Ou seja, a religião deixa de ser somente associada à igreja (prédio), quando a mesma

adquire papel significativo na religiosidade infantil. Nesse momento, outros elementos religiosos são

destacados em paralelo com a própria igreja. A afirmação faz sentido uma vez que, para os católicos,

a igreja deixa de ser simplesmente o prédio no meio da praça para tornar-se a morada de Deus. A

igreja importa não mais em si mesma, mas como templo da religião. As crianças já começam a

imaginar que vão à igreja para rezar, pedir perdão ou aprender a fazer o bem. Não se trata apenas de

freqüentar a igreja. É preciso escutar o que o padre diz, rezar, comungar e se comportar

adequadamente.

Por volta dos dez anos de idade, as ocorrências encontradas nos desenhos complexificam-se.

Observe os gráficos no final deste capítulo para notar como algumas mudanças importantes ocorrem

por volta desta faixa etária. Aos dez anos de idade, temos todos os outros elementos religiosos,

inclusive pecado, rezar, sacramentos. O peso da igreja continua grande; contudo, outros elementos

estão igualmente presentes. Não há nenhuma ocorrência de Maria aos dez anos de idade, assim como

não há aos nove anos de idade. Como afirmei no Capítulo Quatro, Maria junto com Jesus e a igreja

são os primeiros desenhos propriamente religiosos que apareceram na amostra da pesquisa. Jesus e

Maria só podem ser concebidos conjugados pela criança pequena, uma vez que, para ela, a relação

mais importante no seu cotidiano parece ser a sua relação com a sua mãe. Assim, como aos nove e

dez, aos onze anos de idade também não há nenhuma ocorrência de Maria. Aos treze anos de idade,

quanto aos outros elementos religiosos desenhados, verifica-se a presença de todos − inclusive do

pecado, que está ausente em todas as outras faixas etárias. Apenas oito desenhos citaram o pecado −

número muito pequeno se pensarmos no total de duzentos e cinqüenta desenhos, sendo o primeiro

deles aos sete anos de idade. Aos onze e doze anos de idade, quase todas as outras variáveis

religiosas estão presentes. O número de Deus é bastante alto, assim como os outros religiosos. O que

ocorre talvez seja a diversificação das associações. As igrejas permanecem, mas são acrescidas de

outros elementos considerados importantes pelas crianças − ao passo que Deus parece ser cada vez

mais citado, competindo com as igrejas.

Observa-se, por volta dos nove/ dez anos de idade, uma mudança bastante importante na

maneira como as crianças pensam a religião. A primeira criança (N. 9. F. 16) a declarar o nome da

sua igreja tem nove anos de idade. Ela escreveu: “o nome da minha igreja é São Sebastião, ir à

igreja é muito bom”. Segundo esta menina, há diferentes igrejas, e as pessoas “pertencem” – não

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apenas freqüentam – a uma delas. Ela sabe o nome da sua igreja. A meu ver, nomear a sua igreja é

uma atitude próxima do modo como alguns adultos experienciam a religião − maneira esta que não é

observada entre as crianças pequenas. A menina ainda acrescenta que é “muito bom” ir à igreja. Uma

criança pequena também poderia dizer que ir à igreja é “muito bom” porque lá, por exemplo, ela se

encontra com os seus amigos. Parece que, por volta dos nove anos de idade, as crianças começam a

dar-se conta das diferenças entre as religiões e a definirem-se por uma delas. Elas entendem que há

algo para além do simples fato de ir à igreja que implica em adesão.

Aos dez anos de idade, parece que as crianças já podem operar com a religião em termos

denominacionais, dado que algumas delas já afirmam o seu pertencimento religioso institucional.

Atente para o que MF., de dez anos de idade (MF. 10. F. 17), escreveu: “A minha religião é católica.

Meus pais me batizaram na Igreja de São Sebastião. O padre me batizou com o nome de F.. O

padroeiro da minha cidade é São Sebastião, eu gosto do meu nome. Eu sigo a minha religião”. TB.

10. F. 23, ao se referir á sua religião, afirmou: “lá ficarei até a morte”. Depois de discorrer sobre

como ela gosta de rezar pelas almas, é católica desde pequenininha e não critica a religião de

ninguém, a menina exorta o leitor a fazer o mesmo: “Faça como eu também”. F., também com dez

anos de idade (FS. 10. F. 18), escreveu algo similar: “Eu sou F., eu congrego na igreja Evangélica

Assembléia de Deus. Acho muito bom, pois lá tem brincadeiras e várias coisas boas, de lá eu não

desistirei nunca. Minha vida é assim. Tchau. Tchau”. Assim, ao mesmo tempo em que a religião

desassocia-se da igreja (e associa-se a outros elementos), as crianças que se identificam com uma

religião em particular já têm condições de distinguir a sua igreja. Repare que as crianças começam a

usar a terminologia da sua própria igreja, como nos exemplos citados acima: sigo a minha religião e

congrego na igreja. Algumas crianças expressam seu pertencimento religioso denominacional

(embora “congregar”, jargão crente, indique relação diferente de “pertencer”) exatamente quando a

religião toma uma dimensão maior que a própria igreja. Não se trata mais de apenas ir à igreja, mas

sim de ir à igreja à qual pertenço. É interessante notar que estes dois processos acontecem

simultaneamente156.

156 Contraditoriamente, quando uma outra menina de nove anos de idade (GM. 9. F. 21) entregava-me seu desenho, perguntei-lhe: Qual a sua religião? E o diálogo seguiu assim:

Criança: Como assim?

F: Você vai à igreja? C: (Balança afirmativamente a cabeça). F: Qual? C: Vou, essa aí. F: E qual o nome dela? C: E ela tem nome??! Não há dúvidas quanto ao fato desta menina freqüentar a igreja. Mas não lhe passa pela cabeça que a igreja tenha um nome e, por extensão, que existam diferentes igrejas que professem diferentes credos. Como afirmei em nota anterior, idiossincrasias pessoais no entendimento da religião são constantes. No entanto, de maneira geral, é por volta dos nove anos de idade que o processo de distinção das denominações confessionais tem início. Algumas crianças vão viver o

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Adicionalmente, é interessante observar que FS. 10. F., apesar de já operar com as

distinções do pertencimento religioso, ressalta que é muito bom ir para a igreja “pois lá tem

brincadeira...”. Ela não salienta o que os adultos chamam de religioso na religião, apesar de já

afirmar seu pertencimento religioso a um credo específico. Seus pais provavelmente afirmariam que

ela é uma menina religiosa, mas não pelo mesmo motivo que a menina o faria! Como o menino de

quatro anos de idade, citado anteriormente no Capítulo Quatro, esta menina pensa as brincadeiras

como parte indispensável da religião, ao contrário dos seus pais. O exemplo citado dá corpo à

hipótese desenvolvida no Capítulo Quatro de que as crianças vivem a religião de maneira associada

às atividades cotidianas, na qual a distinção profano/ sagrado não se aplica. O exemplo também

sugere o lugar da brincadeira na religião de acordo com a perspectiva infantil, mas à frente

voltaremos a este paralelo.

Ao mesmo tempo em que o conceito de religião se alarga − incluindo atitudes como rezar,

conceitualização do pecado e institucionalização através dos sacramentos −, parece que algumas

crianças se apegam ao pertencimento a uma igreja. Ao mesmo tempo em que passa a conceber a

possibilidade de atividade religiosa fora da igreja, a criança define o seu pertencimento religioso a

uma igreja em especial. Não se visita mais as igrejas para apenas ver os santos ou para ouvir os

hinos, como foi largamente contemplado no Capítulo Quatro, porque entende-se que há algo singular

em cada denominação religiosa. Isso as crianças nesta idade já sabem e, por isso, talvez definam uma

igreja, a sua igreja. O fato demonstra que elas estão crescendo e, conseqüentemente, a separação

entre religião e igreja é inevitável. Paradoxalmente, neste momento, é necessário optar por uma

igreja em particular para viver a religião. Esse fato parece ir ao encontro da hipótese de que crescer

normalmente implica em restringir as possibilidades de relação com o sagrado.

Aos onze e doze anos de idade, parece que o processo de conceber as diferentes igrejas e

nomear a própria − processo iniciado por volta dos nove anos de idade − já está completo. Isso

porque começam a surgir negações do pertencimento religioso e afirmações de um “sentimento

religioso”. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, contesta-se a assimilação religião = igreja; em

outras palavras, religião não se resume mais à igreja. Neste momento, começam a pipocar

declarações do tipo: "eu não tenho religião, a minha religião é servir a Deus". A afirmação parece

acentuar que a igreja já não é a única referência quando se trata de religião. No entanto, o número de

igrejas desenhadas não decai, possivelmente pela razão explicada acima: o fato da igreja ser

reconhecida como lugar sagrado, que tem valor em si mesma, sendo concebida como a casa do

Senhor. Este processo – de esvaziamento da religião enquanto o lugar físico que se freqüenta, a

igreja, e fortalecimento da religião enquanto um conjunto de práticas associados à entidade − começa

processo tardia ou precocemente. No mesmo sentido, Christina Toren (2002) afirma que não é antes dos nove anos de idade que a criança distingue o que há de simbólico nos rituais.

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aos nove anos de idade, vai se intensificando na adolescência e parece se estabelecer durante a idade

adulta. As bases sobre as quais a religião vai assentar-se na idade adulta estão incipientes nesta

declaração: "eu não tenho religião, a minha religião é servir a Deus". Para o adulto em Catingueira,

mais importante que ir à igreja é servir a Deus, assim como perdoar e ajudar os irmãos. Para MH.,

menina, de onze anos de idade, também. Sua redação é muito interessante e chama a atenção o seu

“discurso adulto”. Vale a pena conferir: “A minha religião. A minha religião é uma religião

diferente, pois eu só creio em Deus e em seu filho e freqüento a igreja, rezo e tento permanecer no

caminho dos mandamentos de Deus. Por isso digo que não tenho religião, mas se quiserem saber

mesmo digo que sou católica e se me perguntarem por que digo que é só porque fui batizada na

igreja católica. Quer saber mesmo minha religião? A minha religião é servir a Deus!” 157.

Um desenho muito elucidativo é o de uma menina de doze anos de idade (MD. 12. F. 15).

Para ela, religião é um grande coração vermelho “onde mora paz e amor”. Ela escreveu “Eu desenhei

um coração porque só no coração é que existe muito amor e muita paz e, aliás, existe muita paixão,

pois nele a gente segue o caminho certo e não errado, pois só o coração a gente pode confiar. Ele é

a luz que ilumina o nosso caminho, pois como nosso coração é tão generoso eu desenhei, pois eu

queria que todo mundo acreditasse nele, pois ele é a voz mais alta do nosso corpo”. Nada de igreja,

santos ou Jesus. Para ela, o que importa é estar em paz e amar. Este tipo de desenho seria impensável

aos sete ou oito anos de idade, quando as crianças parecem pensar a religião como algo

intrinsecamente ligado à igreja. Para esta menina, religião não se limita à igreja em si, mas está

relacionada ao bem-estar pessoal.

Um menino, também com doze anos de idade (NS. 12. M. 21), escreveu que sua religião era

“conviver bem com as pessoas, mas também ir à igreja”. Vemos, neste exemplo, um amálgama de

duas concepções de religiosidade. Uma delas é mais acionada pelos adultos, a saber, é mais

importante fazer o bem que ir à igreja, enquanto que crianças pequenas, de quatro - cinco até mais ou

menos os dez anos de idade pensam a religião como indissociável da igreja. No entanto, é preciso

ressaltar que a igreja não deixa de ser acionada – porque, como já afirmei, para os católicos, ela

continuará importante por toda a vida, na medida em que assume um caráter sagrado. Ao mesmo

tempo, uma atitude condizente com um padrão moral passa a ser requerida para se ter um

comportamento religiosamente aprovável, principalmente fora da igreja. Ir à igreja não parece bastar.

Observa-se como o crescimento em termos religiosos implica em esvaziar a importância da igreja –

que, nos primeiros anos, era largamente freqüentada. Mais importante, agora, é, dentre outras coisas,

fazer o bem (principalmente) fora da igreja. Além disso, crescer parece estar associado a uma noção 157 Essa ocorrência se trata de uma menina de Recife que se mudou para Catingueira há pouco tempo e cuja família professa o ecumenismo, conceito desconhecido pela maioria dos catingueirenses. É provável que ela escute esta frase em casa: “minha religião é servir a Deus” (MH. 11. F. 21). No seu desenho, há uma igreja com cruzes na porta e em uma das torres. Na entrada da igreja, há uma pessoa. Na porta da igreja, lê-se Bem vindo à casa de Deus. Há também dois olhos desenhados no alto da igreja, dentro de um triângulo, no canto esquerdo.

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de igreja enquanto ecclesia, no sentido do fortalecimento dos laços entre os irmãos, mesmo que não

estejam fisicamente presentes − sem mencionar o lugar de destaque de Deus e de outras entidades,

assunto do qual tratarei adiante.

Maya Mayblin (2005: 208), em um contexto de catolicismo no agreste pernambucano, afirma

que as crianças mais velhas, entendidas como aquelas que já fizeram a primeira comunhão, são mais

requisitadas a comparecer à igreja que os menores, às quais maior liberdade é concedida. Parece que

em Catingueira, em grande medida, se passa o inverso. As crianças pequenas são mais requisitadas a

comparecerem à igreja – e creio verdadeiro afirmar que elas mesmas se entusiasmam mais com o

fato do que as maiores. Talvez, isso possa ser entendido a partir da constatação de que uma criança

pequena precisa ser educada/ formada através de ensinamentos religiosos. Um pré-adolescente − ou,

nos termos usados por Mayblin (2005), uma criança que já tomou a primeira comunhão − acredita-se

já bastante sapiente ou “sabido”, a ponto de definir o que é o caminho do bem e do mal e fazer suas

próprias escolhas. De um lado, é verdade que os adolescentes geralmente são mais preguiçosos

quanto ao atendimento à igreja; de outro lado, a eles já é reconhecido um grau de conhecimento do

mundo que os libera do atendimento à igreja. Tal como os adultos, que não raro se abstêm de

freqüentar a igreja, os adolescentes também o fazem. Além disso, a idade adulta está associada à

noção de liberdade de consciência. Interessante constatar que muitos jovens participam da missa

católica, mas se posicionam do lado de fora da igreja, nos bancos da praça ou nas portas da igreja,

com o corpo pendulando entre o interior e o externo do prédio religioso. Muitos ficam em silêncio

escutando o padre, outros conversam com os amigos. Na comunhão e na “paz de Cristo”, é provável

que adentrem a igreja, para, logo em seguida, preencherem os arredores da mesma. Nunca ouvi

nenhuma mãe, por mais devota que fosse, reclamando da atitude dos seus filhos que passam parte da

missa do lado de fora da igreja. A atitude das moças e rapazes não parece estar sujeita a nenhuma

reprovação. O fato descrito parece ir ao encontro da constatação de que o comparecimento à igreja

perde importância à medida que a criança cresce, conforme as sugestões elencadas a partir dos

desenhos analisados.

Merece destaque o que escreveu uma menina de treze anos de idade (PM. 13. F. 21): “Eu

acho a religião muito importante para mim, porque é só para falar em Deus. Eu gosto muito de

Deus, porque ele é o nosso Salvador. Eu não sou católica porque eu não gosto, só porque não gosto

de ser católica não é obrigado não gostar de Deus. A religião é muito importante para mim eu acho

que para todos também é. Eu acho bonito aquelas pessoas que são católicas”. E finaliza: “O Senhor

é o meu pastor e nada me faltará”. A declaração deve ser cuidadosamente estudada. A menina

parece sugerir que Deus e igreja católica são duas coisas completamente diferentes quando afirma

gostar de Deus, mas não gostar de ser católica. Quando afirma que: “A religião é muito importante

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para mim eu acho que para todos também é”, ela parece dar a entender que religião não é o mesmo

que igreja, uma vez que religião é importante, mas ela sequer cita a igreja. Por fim, ela afirma: “Eu

acho bonito aquelas pessoas que são católicas”, terminando com uma evocação bíblica. Segundo

esta menina, religião diz respeito à comunhão com a entidade, e não ao pertencimento religioso

institucional (gostar de Deus ela gosta, mas não é católica). A garota parece decidida: a religião é

importante; a igreja, não. Mesmo assim, a igreja é valorizada porque ela acha “bonito” ser católico.

Parece-me possível afirmar que é assim, em grande medida, que os adultos em Catingueira imaginam

a relação entre a religião e a igreja: eles também acham “bonito” ir à missa e, por isso, dentre outras

razões já mencionadas, insistem para seus filhos irem. Acham bonito freqüentar a igreja, mas isto não

implica em freqüentá-la. É interessante constatar que, justamente quando freqüentar a igreja passa a

ser algo “bonito”, neste mesmo momento ela deixa de ser freqüentada com regularidade, na medida

em que a criança se torna um adolescente, assemelhando-se mais aos adultos. A transição para a

idade adulta passa por esta mudança de status da igreja. A mesma deixa de ser a peça fundamental da

prática religiosa, que permanece importante, mas parece ceder o lugar principal para Deus.

Resumidamente, o que quis sugerir foi que, aos nove anos de idade, a criança começa a

diferenciar religião e igreja. Essa diferenciação parece intensificar-se aos doze anos de idade e já

estar completa aos treze anos de idade − quando a pessoa concebe diferenças ontológicas entre

religião e igreja. Como já mostrei, aos onze anos de idade começa a contestação da religião enquanto

igreja. Há a primeira declaração tácita de que não se pertence a nenhuma religião em particular, mas

que sua religião é servir a Deus. Aos doze e treze anos de idade, surgem declarações cujo teor é

similar: religião é “conviver bem com as pessoas, mas também ir à igreja”. Ou, ainda, “Ir a igreja

rezar mas também ser solidário com as outras pessoas”. Com isso, aos doze e treze anos de idade a

religião comporta a igreja, mas não se restringe a ela como nos primeiros anos. Valoriza-se a igreja,

mas valoriza-se ao mesmo tempo um comportamento considerado adequado, guiado, em grande

medida, pela liberdade de consciência. A igreja em si não é mais suficiente. Como esta menina (SO.

13. F. 8), de treze anos de idade, bem afirma: “Religião não é só igreja. Religião é fazer o que a

Bíblia manda”.

Por outro lado, como já mencionei, com o passar dos anos o número das crianças que se

identificam com uma religião em particular cresce. Isso se torna claro na identificação dos desenhos,

nos quais as crianças colocam seu nome, a idade e, algumas vezes, a religião a que pertencem. O

número dos que se identificam religiosamente com um credo aumenta com o passar do tempo.

Porém, aos onze anos de idade, apenas 4,76%, e aos doze anos de idade, 14,3% das crianças não se

refere a nenhuma igreja em especial, mas se refere, sim, a atitudes que a identificam como uma

pessoa boa. No caso dos treze anos de idade, este número já passa para 38%. Algumas crianças

identificam-se com determinadas igrejas em particular, mas assinalo o número das crianças que

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colocam ênfase nas atitudes que as definem como boa gente – e não nas igrejas. Esta característica

não está retratada aos dez anos de idade, mas cresce dos onze anos aos treze anos de idade.

Para finalizar este sub-tópico, gostaria de ressaltar a importância da entidade para as crianças

maiores. Deus parece estar altamente associado à religião nos últimos anos pesquisados, chegando ao

mesmo nível das igrejas. Quando a religião deixa de ser apenas igreja, Deus aparece com maior

evidência. O que parece estar ocorrendo nos desenhos é a gradativa substituição das igrejas,

entendidas como templos, por Deus. Ao mesmo tempo, Deus parece ser indistinto do seu filho, Jesus.

E, nesse sentido, a igreja reaparecerá. Mas, extrapolando a simples referência ao prédio físico, a

igreja será então entendida a partir do seu sentido maior de ecclesia, como o corpo de Cristo e o

conjunto dos fiéis, uma igreja descolada do seu contexto geográfico. Observe o Gráfico Sete: a partir

dos onze anos de idade, há um crescimento significativo dos desenhos que mencionam Deus.

Concluo esta parte com a redação de R., que me parece exemplar no processo de crescimento em

termos religiosos: “Redação de Religião. Tem vários tipos de religião. Tem a religião católica, a

religião evangélica. Mas todas são iguais porque não é importante as religiões serem iguais, o que

importa é o Amor por Deus, e a fé por ele e por todos os Santos da religião. A igreja é a casa do

Senhor e nós vamos lá para rezar para orar e para pedir paz e amor”. (RJ. 12. M. 18). A criança

destaca a importância da igreja, apenas enquanto entendida como a “casa do Senhor” e recinto onde

se “ora” pela paz e pelo amor. Em outras palavras, a igreja agora importa enquanto residência de uma

entidade ou enquanto lugar onde se pode alcançar “paz e amor”. Ele ainda destaca que “todas [as

igrejas] são iguais porque (...) o que importa é o Amor por Deus, e a fé por ele e por todos os Santos

da religião”. A redação dessa criança parece levar-nos a refletir sobre uma das hipóteses trabalhadas

nesta tese. A criança, apesar de diferenciar os crentes dos católicos em um primeiro momento, em

seguida parece desconsiderar esta diferenciação. Até os santos, a grande questão de discórdia entre as

duas religiões, parece não ser tão importante, para ele: “todas as religiões são iguais”. Isso pode ser

melhor compreendido quando pensamos o cristianismo como ponto central da moralidade

catingueirense em detrimento das diferenciações entre as religiões. Para maiores detalhes, refira-se à

Introdução e às Conclusões.

3. Religião e mal-assombro: dois processos analisados em paralelo

É a religião que provê mecanismos para se livrar ou evitar o assédio dos mal-assombros.

Promessas, velas e missas estão entre os pedidos das almas dos mortos para se dirigirem para um

bom caminho, deixando de assombrar os vivos. Se há um antídoto eficaz contra os mal-assombros,

só mesmo Deus. Ele é a resposta contra os mal-assombros, principalmente aqueles associados ao

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Demônio. Para os católicos, reza, vela, missa, crucifixo e, em último caso, o exorcismo são

considerados remédios para lutar contra o assédio dos mal-assombros. Para os evangélicos, deve-se

orar e igualmente recorrer ao exorcismo em caso extremo. No caso dos espíritas, é necessário

doutrinar tais almas e ensiná-las o caminho para onde seguir, o que é feito nas reuniões do Centro

espírita158. Algumas crianças desenharam temas religiosos nos desenhos dos mal-assombros, como

cruz, água benta, igreja, capela, Bíblia, dentre outros159. A faixa etária de onze anos de idade é

crucial, na medida em que encontramos a maior taxa de elementos religiosos desenhada. O que isso

quer dizer? Se a criança associa o mal-assombro ao mundo da religião, é provável que o associe

também ao bem ou ao mal (porque, como já aludi, os mal-assombros são pensados pelos adultos e

crianças maiores como enviados pelo Demônio ou, em alguns casos, por Deus). Algumas vezes,

esses temas religiosos desenhados são antagônicos aos mal-assombros − como no caso da água benta

−, mas igualmente referentes ao cristianismo. Outras vezes, esses elementos reforçam o status dos

mal-assombros enquanto alma dos mortos. Por exemplo, muitas cruzes foram desenhadas indicando

mortes ou sepulturas160. Neste caso, no qual a morte está desenhada, parece possível extrair uma

relação próxima da moral cristã: quando uma pessoa morre, seu espírito sobrevive. É esse espírito

que tem o potencial de se transformar em mal-assombro.

Comparando a religião e os mal-assombros, a primeira começa a fazer sentido

posteriormente para as crianças. Chamou-me a atenção a precocidade com que os mal-assombros

aparecem nos desenhos. Já aos três anos de idade, houve dezessete ocorrências de mal-assombro

para um total vinte e cinco desenhos − enquanto somente aos cinco anos de idade é que aparece um

número substancial de desenhos propriamente religiosos: apenas aos cinco anos de idade, 50% das

crianças desenharam elementos religiosos nos desenhos cujo tema era “A minha religião”. Além

disso, como já afirmei, o número de desenhos acumulados com o tema “A minha religião” é

substancialmente menor que o número de desenhos com o tema “O mal-assombro”. De acordo com

158 Veja algumas práticas para evitar ou livrar-se dos fantasmas em contextos diferentes (o texto tem um quê de pitoresco): “Na Moravia, lê-se na obra de Dom Calmet, é ‘bastante comum’ ver os defuntos colocarem-se à mesa com pessoas de seu conhecimento. Sem dizer uma palavra, fazem um sinal de cabeça a um dos convivas, que ‘infalivelmente’ morre alguns dias depois. Livram-se desses espectros desenterrando-os e queimando-os. Na Boemia, por volta da mesma época, livram-se dos fantasmas que desolam certas aldeias exumando os defuntos suspeitos e passando-lhes através do corpo uma estaca que os prega ao solo. Na Silésia, lê-se ainda sob a pena de Dom Calmet, que se recusa a dar fé a esses contos macabros, encontram-se os espectros ‘à noite e de dia’; percebem-se as coisas que lhes pertencem mover-se e mudar de lugar, sem que ninguém as toque. O único remédio contra essas aparições é cortar a cabeça e queimar o corpo daqueles que voltam. Na Servia, os fantasmas são vampiros que sugam no pescoço o sangue de suas vitimas, que morrem no langor. Quando se desenterram os mortos suspeitos de ser esses espectros maléficos, eles são encontrados como vivos, com um sangue ‘vermelho’. Então, sua cabeça é cortada e recolocam-se no fosso as duas partes do corpo, cobrindo-as de cal viva”. (DELUMEAU 1996: 89-90) 159 Confira os números: cinco anos: 4%. Seis anos: 0%. Sete anos: 5%. Oito anos: 15%. Nove anos: 25%. Dez anos: 32%. Onze anos: 50%. Doze anos: 31%. Treze anos: 23%. Quatorze anos: 40%. Quinze anos: 18%. Dezesseis anos: 25%. Dezessete – Vinte e dois anos: 17%. 160 Computei o número das crianças que desenharam motivos fúnebres: três anos: 8%, quatro anos: 0%, cinco anos: 8%, seis anos: 4%, sete anos: 23%, oito anos: 35%, nove anos: 30%, dez anos: 24%, onze anos: 32%, doze anos: 66%, treze anos: 23%, quatorze anos: 40%, quinze anos: 45%. Pode-se observar também que, a partir dos seis anos de idade, os desenhos fúnebres foram mais desenhados por crianças do sexo masculino.

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as reações em sala de aula, parece que, para as crianças, desenhar sobre religião era como se fosse

uma obrigação. Curiosamente, duas crianças, ao invés de desenhar sobre a religião que professam,

desenharam justamente sobre a disciplina escolar “Religião”, que são obrigadas a cursar e tirar notas

para passar de ano (JP. 13. M. 17, RC. 13. F. 6). Os resultados dos desenhos sobre “A minha

religião” podem ser lidos como exemplos de como as crianças pensam que os adultos pensam, ou de

como as crianças pensam que deveriam pensar segundo os adultos. Tive a sensação de que, quando

desenhavam sobre “a minha religião”, as crianças se preocupavam em acertar no desenho, em não

desenhar nada errado, como se estivessem sendo avaliadas − o que não aconteceu com o tema do

mal-assombro. Acertar no desenho significa fazer o desenho que agradaria aos adultos −

especialmente à pesquisadora. Quanto a mim, estava interessada na perspectiva infantil em relação à

religião, em entender o que elas tinham a dizer sobre o que a religião enquanto instituição havia

ensinado. As crianças, por sua vez, estavam interessadas em mostrar-me como elas tinham sido boas

alunas no catecismo – e, assim, tendiam a repetir os ensinamentos ouvidos sobre a religião. Às

vezes, a repetição era inconsistente, o que resultava na sensação de que estava faltando alguma peça

para completar o argumento que a criança tecia. Por exemplo, certa vez estava conversando com L.

F. 12, e perguntei-lhe quem era Jesus. Ela respondeu nestes termos: “Ele é o nosso Salvador”.

Momentos depois, vim a constatar que a menina não sabia o significado da palavra “salvador”. Esse

é um exemplo recorrente no trabalho de campo. Em várias ocasiões, as crianças tentaram me

impressionar com o seu conhecimento de religião. Mas o que percebi foi que esse conhecimento era

baseado na repetição das palavras da professora de religião, do padre ou do pastor. Contudo, é

necessário enfatizar que, se as crianças mostraram-se um pouco resistentes quanto ao tema de

desenho proposto, ao mesmo tempo estavam aptas a colocar no papel o que elas acreditam ser a

idéia do adulto sobre religião, na medida em que esta é tida como mais correta e adequada161.

Gostaria de mencionar uma outra dificuldade. O pedido de desenho sobre “a minha religião”

para as crianças pequenas pode tê-las levado a supra valorizar as igrejas. Assim, a imensa

quantidade de igrejas desenhadas deveria ser pensada de maneira cautelosa. Talvez, as crianças

pequenas acabaram por interpretar a religião de maneira externa e objetiva (religião = igreja = um

prédio) porque ela não parece ser um conceito com o qual elas tenham intimidade − o que não

significa que ela não conheça a sua prática, ou esteja alheia a qualquer forma de religiosidade. Não é

de se estranhar que as crianças mais velhas tenham incluído no desenho da “minha religião” facetas

da sua religiosidade pessoal, uma vez que “religião”, enquanto conceito, para elas já fazia sentido.

Para as crianças pequenas, a religião não pode incluir atitudes pessoais, na medida em que esta não

161 Isto nos leva a refletir sobre a presença do pesquisador, assunto já trabalhado previamente no Capítulo Um. As crianças sabiam que eu estava interessada nos mal-assombros e nos assuntos de religião e, muitas vezes, elas mesmas puxavam esses assuntos ou vinham à minha casa especialmente para contar-me sobre algum fato acontecido, ouvido ou sonhado.

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pode ser isolada como uma categoria distinta da vida cotidiana. Daí, talvez, a dificuldade das

crianças em conceitualizar o que seja “a minha religião”. O pedido de desenho pode ter sido

considerado algo esdrúxulo, no sentido de que, quando pequenas, elas não concebem a distinção

entre religioso e não-religioso, como é mostrado no Capítulo Quatro. No mesmo sentido, desenhar

sobre “a minha religião” deve parecer ainda mais esdrúxulo para uma criança pequena. Em primeiro

lugar, porque ela não distingue o que seja religião do que não seja. Em segundo lugar, a religião não

pode ser algo pessoal ou individual, na medida em que ela ainda não conhece o conceito (de

religião). E, finalmente, o que a criança pequena conhece de religião é a sua relação cotidiana com a

sua família na performance diária de atividades religiosas. No entanto, para uma criança por volta

dos nove anos de idade, que já distingue as denominações e que já se sente como pertencente a uma

delas, desenhar sobre “a minha religião” faz algum sentido162.

Quanto à aplicação do tema do mal-assombro, o quadro foi totalmente diferente. Desenhar

sobre mal-assombro era divertido, emocionante e envolvia até certo grau de perigo, porque, de

acordo com elas, alguns mal-assombros fazem aparições quando seus nomes são proferidos. As

crianças envolveram-se intensamente no processo de pesquisa. O mal-assombro, ao contrário da

religião, pareceu-me um tema com o qual as crianças têm mais intimidade e, portanto, mais

habilidade para desenhar. Não houve tanta reclamação do tipo: ‘ah, eu não sei desenhar isso’,

quando as crianças desenhavam os mal-assombros. Os pequenos consideraram desenhar e falar dos

mal-assombros uma atividade prazerosa, como uma brincadeira, ao passo que desenhar e falar sobre

religião foi considerado chato! E por quê? Porque elas têm intimidade com os mal-assombros e os

162 Barrett (1998, 1999) e Barrett & Keil (1996) discorrem sobre algumas questões metodológicas envolvidas no estudo da religião, alertando os pesquisadores para o fato de que métodos utilizados podem determinar os resultados da investigação. Ele afirma: “Depending on the cognitive demands of a task and the cognitive resources individuals have available to deal with the demands, the concept may appear radically different” (1999: 334). Isso porque, segundo ele, vários níveis de representação dos conceitos religiosos ou relações religiosas coexistem em um mesmo indivíduo. As pessoas tendem a responder com exatidão teológica (“Theological correctness”) às perguntas sobre Deus em questionários − o que não acontece com métodos como a “re-contação” de estórias. Ele exemplifica: “The results of the narrative comprehension task suggested that when processing stories, adults tend to use a concept of God having few abstract, “god-like” properties. Rather, participants quite readily attributed to God properties such as having a limited focus of attention, having fallible perceptual systems, not knowing everything, and having a single location in space and time. In contrast, when these same participants were asked to reflect on what properties they believed God has using questionnaires, they reverted back to the theologically correct, abstract: God is all-knowing, has infallible perception, has no single physical location, has unlimited attention, and so forth. Slightly modifying the cognitive demands of the task by reminding participants of their beliefs in theologically correct properties lessened the tendency to discard the Theological Correctness properties in favor of a more anthropomorphic concept. Control experiments successfully ruled out artifacts of the narrative as the cause of the differences between self-reported concepts and concepts used to process the narratives” (199: 329). A sugestão do autor é um alerta para os pesquisadores da religião. Em antropologia, particularmente, parece-me que o problema pode ser solucionado na medida em que se imputa importância primordial à observação participante. Mesmo que algumas técnicas complementares tenham sido utilizadas, a evidência etnográfica continua valendo como prova da validade dos resultados da pesquisa, como foi visto no Capítulo Um.

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reconhecem, independente da idade, como assunto que lhes diz respeito163 − ao passo que o mesmo

não acontece com as crianças pequenas em relação à religião.

Parece-me correto afirmar que as crianças, em primeiro lugar, tomam conhecimento dos mal-

assombros para, só posteriormente, tomar conhecimento da religião. Os mal-assombros são seres

próximos das crianças desde muito pequenas − pelo menos desde os três anos de idade. Ao mesmo

tempo, as crianças são expostas ao mundo religioso desde muito cedo. Freqüentam a igreja com seus

pais, são ensinados a rezar antes de dormir e, algumas vezes, têm até que pagar promessas feitas

pelos seus familiares em seu benefício. Os mal-assombros são efetivos desde sempre, no sentido que

as crianças com três anos de idade já os reconhecem e os temem. Da mesma forma, para as crianças

pequenas, a religião é efetiva no sentido da prática, mas não foi ainda conceitualizada. Em outras

palavras, as crianças com três anos de idade vão à igreja, mas não se perguntam sobre a hóstia, os

sacramentos ou a necessidade de usar saia longa para ir ao culto.

Finalmente, podemos perguntar-nos: como se dá a relação entre os mal-assombros e a

religião? Em determinado momento do crescimento da criança, os mal-assombros são incorporados

à religião: isto se dá ao serem eles mesmos cristianizados − o que coincide com o fato de que a

principal referência religiosa passa a ser Deus, em detrimento da religião entendida enquanto o

freqüentar a igreja, característico das crianças pequenas. Os mal-assombros são geralmente

concebidos como as almas dos mortos que não encontraram seu caminho no “outro mundo”. Este

conceito de alma perdida agrega alguns outros conceitos que só são adquiridos com o passar dos

anos, como o conceito de céu, inferno e purgatório − mas, principalmente, bem e mal, ou Deus e o

Diabo. Quando a religião é vista enquanto igreja (prédio), ou seja, nos primeiros anos de vida, mal-

assombro e religião não são assuntos adjacentes porque, neste momento, mal-assombro não é ainda

visto como um enviado das entidades religiosas. Por isso, segundo as crianças pequenas, os mal-

assombros não dizem respeito à religião. O tema religioso só vai aparecer substancialmente nos

desenhos dos mal-assombros aos oito anos de idade (em 15% dos mesmos). Parece possível afirmar

que o mal-assombro é uma espécie de ser ou fenômeno que não diz respeito à religião stricto sensu

durante a infância, mas que vai passar a ser assimilado à religião posteriormente, quando os mal-

assombros são tidos como almas. As almas entram pela porta da frente da igreja porque são

relacionadas à a crença cristã na sobrevida da alma após a morte do corpo − além de passarem a ser

163 Como vimos no Capítulo Três, isso vai ao encontro do fato de que os mal-assombros são, ao mesmo tempo, referentes ao mundo infantil e ao mundo adulto. Eles não são unicamente apanágios da sociedade adulta, uma vez que as crianças se divertem tanto com eles. Os adultos e as crianças operam em um mundo povoado por mal-assombros. Enquanto relativo ao Demônio, o mal-assombro é algo relativo à sociedade de adulta, mas vimos que existem muitos outros mal-assombros que não se restringem às entidades religiosas. Além disso, não estou afirmando que as crianças não se relacionam com a religião em nenhuma instância. Conforme visto no Capítulo Quatro, elas estão envolvidas nas diversas atividades religiosas da igreja sem, no entanto, poderem ser consideradas religiosas da mesma maneira que os adultos.

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conhecidas como enviadas de Deus ou do Demônio e, em certos casos, até mesmo o próprio

Demônio.

Antes de terminar este subtítulo, há mais uma observação a ser feita. Vimos, anteriormente,

que os mal-assombros como o Bicho Papão e o Zumbi deixam de ser considerados mal-assombros

de verdade para ceder este lugar para as almas dos mortos. Observe quantos desenhos identificaram

mal-assombro como almas (fantasmas164). Três anos: 5/25; quatro anos: 1/23; cinco anos: 0/26; seis

anos: 3/25; sete anos: 12/22; oito anos: 13/20; nove anos: 18/20; dez anos: 23/25; onze anos: 28/28;

doze anos: 36/36; treze anos: 22/22; quatorze anos: 5/5; quinze anos: 11/11; dezesseis anos: 2/4;

dezessete anos: 2/2. Total: cento e oitenta e um desenhos (lembre que o número total dos desenhos é

de duzentos e noventa e sete unidades). Repare que o número é sempre crescente e, partir dos nove

anos de idade, toma proporções altíssimas. Podemos nos indagar se, aos onze e doze anos de idade,

quando constatamos altíssimas taxas de ocorrências de desenhos de almas, a cristianização da

própria criança já estaria completa. Até os seis anos de idade, parece haver certa confusão se todas

as almas são também mal-assombro. Fica claro que o número de pessoas que desenhou almas vai

crescendo com o passar dos anos. A partir dos oito anos de idade, esse número permanece alto. É

interessante lembrar que, também aos onze e doze anos de idade, ocorre a negação do pertencimento

religioso institucional e a afirmação da ligação com Deus nos desenhos do tema “A minha religião”.

O que parece estar em jogo é que a igreja perde sua importância primordial cedendo lugar para

Deus, simultaneamente ao fato de que não se acredita mais nos mal-assombros que não sejam almas.

Harris & Gimenez (2005) realizaram um estudo com crianças entre sete e onze anos de idade

sobre as concepções da vida após a morte. Elas foram entrevistadas sobre a morte de um

personagem, em dois contextos diferentes, um secular e outro religioso. Uma estória na qual o avô

do personagem morre é contada para as crianças, com a diferença de que, em uma estória, “ele [o

avô] está morto e enterrado” e, na outra, “agora ele está com Deus” (2005: 158 tradução minha). As

perguntas feitas posteriormente referiam-se ao processo corporal e mental do avô morto. A

afirmação de que as funções corporais e mentais continuam depois da morte aconteceu mais

freqüentemente entre crianças mais velhas. Essa freqüência foi também maior em relação à estória

religiosa e em relação ao processo mental que o processo corporal. “Taking these various findings

together, we find an intriguing developmental pattern. Young children adopt a secular, biological

point of view and increasingly conceive of death as the end of life. Eventually, however, older

children and many adults incorporate religious elements into their conception of death”. (HARRIS

& GIMENEZ 2005: 145-6). Os autores concluem que, entre as crianças mais velhas, parecem co-

164 O segundo número se refere ao total de desenhos coletados naquela faixa etária, enquanto o primeiro número indica a quantidade de desenhos em que o elemento é destacado. Fantasma e alma foram contabilizados juntos, na medida em que parece não haver distinção considerável entre eles.

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existir duas concepções de morte: uma que cessa o processo de vida e outra que inicia a vida após a

morte165.

Os dados apresentados parecem ir ao encontro ao argumento aqui proposto. No meu caso

específico não vejo como escapar do entrelaçamento da religião e da agência dos mortos. Já que,

como se viu, para os adultos a agência dos mortos existe na medida da sua relação com a entidade

religiosa. Meus dados sugerem que apenas quando a criança reconhece tais entidades, Deus e Diabo,

é que ela vai conceber os mal-assombros como a alma dos mortos. Esta afirmação não implica,

como parece sugerir Bering (2002, 2003), ao criticar os antropólogos, que este entendimento exista

apenas em função do aprendizado cultural. O que venho tentando mostrar é que as crianças

aprendem sobre os mal-assombros ao mesmo tempo em que vivem as suas vidas, em que crescem.

Da mesma forma, elas aprendem sobre “a religião” não apenas no catecismo, mas a cada noite,

quando sua mãe vem acompanhar a sua oração noturna. Um aprendizado social está em jogo, mas o 165 Bering (2002, 2003, in press) argumenta que a crença de que os mortos continuam a agir de alguma forma apresenta-se como característica inata, que existe em função de um estágio evolutivo. Acreditar em fantasma, desta forma, não implicaria em conhecimento religioso. O autor argumenta contra as teorias que colocam ênfase no aprendizado cultural como forma de adquirir essas crenças. Ele afirma: “[…] My results do not resolve the question of whether belief in “ghosts”, per se, requires gathering information about such agents through cultural mechanisms, but they strongly suggest that reasoning about dead agents´ minds is only superficially influenced by explicit religious beliefs (presumed to be an artifact of social learning) about what becomes of the mind at death”. (BERING 2003: 246). Ou, em outro momento, ele assevera: “[...] the implication is that the social transmission process plays somewhat less a role in spreading ghosts concepts than has been thought. Rather, implicit afterlife beliefs of the variety reported here would be characterized more or less as innate [...]” (BERING 2002: 292-3). Boyer (2001) parece opinar em favor do argumento de Bering: “So there is no clear empirical meaning to a representation being acquired “before” or “outside” cultural exposure. However, one could say – and it is clear that this is where Bering wants to go – that certain representations seem to develop regardless of what particular kind of cultural exposure one receives. That is certainly the case for imaginary companions, possible agents, and of course dead people as agents” (2001: 239).

O autor apresenta algumas evidências para provar seu argumento. Entre elas, um experimento (BERING et al. 2005) feito com crianças de quatro a doze anos de idade, freqüentando escolas públicas e religiosas – católicas, na Espanha. Após observarem uma apresentação de bonecos na qual um jacaré comia um ratinho, as crianças foram perguntadas sobre o funcionamento biológico e psicológico do rato morto. Os resultados confirmaram os dados de outro estudo anterior realizado nos Estados Unidos da América (BERING & BJORKLUND 2004): em maior número que as menores, as crianças maiores tenderam a responder que a morte cessa as funções biológicas e psicológicas. Ou seja, a afirmação de que a morte cessa essas funções aumenta com a idade. Além disso, a referida afirmação é significantemente mais recorrente entre crianças que freqüentam escolas seculares em comparação às escolas religiosas (BERING, BLASI & BJORKLUND 2005). Em outro momento, Bering (2003) ainda afirma “(…) it is striking how few children used eschatological terms (e.g., “heaven”, “ghosts”, “spirit”, “God“ and so on) in answering the experiment’s questions” (BERING 2003: 248).

Harris & Gimenez indagam-se quanto à discordância entre os seus resultados e os de Bering & Bjorklund (2004). Em primeiro lugar, explicam eles, Bering & Bjorklund (2004) mencionaram a morte de um rato, e não de uma pessoa (sabe-se que a discussão se os animais têm ou não alma é tema contraditório). Em segundo lugar, como eles focaram o aspecto biológico da morte (um jacaré que comeu um rato), era esperado que as crianças enfatizassem o aspecto natural do fim da vida. E, finalmente, a diferença entre os resultados pode ser entendida, já que as crianças pequenas são poupadas da irreversibilidade da morte, através de estórias fantásticas contadas pelos adultos. De outro lado, as crianças maiores têm mais informações sobre a morte do ponto de vista biológico. Isso tudo talvez explique por que as crianças mais novas tenham dado mais respostas que sugerem a continuidade da vida depois da morte.

Embora a questão da agência dos mortos seja muito interessante, a discussão empreendida pelos autores acima parece restringir-se, em último grau, apenas ao contexto da ciência cognitiva da religião, com implicações que fogem ao meu interesse neste trabalho − como, por exemplo, estudos sobre evolução. Tendo a concordar mais com Elkind (1978: 27) quando afirma: “They [the results] show that the child’s conceptions are constructed (neither innate or simply learned). This is true because if they were innate, they would not change; and if they were simply learned, they would not differ so radically from adult conceptions. The continuous from early childhood through adolescence. And finally, the data show that each level, mental constructions reflect the interaction of developmental constructions reflect the interaction of development and experience”.

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produto deste aprendizado não é a incorporação de “uma cultura” e, sim, uma pessoa totalmente

integrada na comunidade catingueirense − que, como não podia deixar de ser, tem medo de mal-

assombro.

Em caráter de resumo provisório, colocando os primeiros desenhos sobre religião em relação

aos desenhos sobre mal-assombro, podemos afirmar que, por volta dos onze e doze anos de idade, ao

mesmo tempo em que os mal-assombros são cristianizados, vemos, por parte das crianças, ocorrer

uma mudança na maneira de conceber a religião. A religião passa a ser assunto que diz respeito, em

primeiro lugar, às entidades religiosas e ao próximo. Em adição, o peso do comparecimento à igreja

cai. O amor a Deus e ao próximo passam a distinguir uma pessoa religiosa, e pesam mais que o

comparecimento à igreja. Resumidamente, vimos que, primeiro, a religião não se relacionava com o

credo que comportava − senão com a igreja em si mesma, como prédio. Em um segundo momento,

as crianças definem o seu pertencimento religioso a uma denominação específica. E, finalmente,

quando se aproxima a adolescência, os diferentes credos perdem sentido primordial, dando lugar a

um modo de ser religioso que prescinde do comparecimento à igreja e da filiação institucional a uma

religião. Em outras palavras, crescer em Catingueira implica em, simultaneamente, restringir os mal-

assombros às almas, e tornar a religião altamente orientada em direção ao próximo, a Deus e às

outras entidades, como a virgem, os santos e o próprio Jesus.

4. Sobre a Dúvida: fantasia ou realidade?

Gostaria de discorrer, neste momento sobre a possibilidade de duvidar dos mal-assombros. A

questão da dúvida na realidade dos mal-assombros não parece estar colocada senão a partir dos dez

anos de idade. Vamos aos números dos que expressam dúvida: nove anos, 5%; dez anos: 4%; onze

anos: 7%; doze anos: 11%; treze anos: 41%; quatorze anos: 60%; Quinze anos: 73%. Observe que a

dúvida não é contemplada em nenhum desenho antes dos nove anos de idade. Isso vai ao encontro

do que foi dito anteriormente no Capítulo Três: que, apesar de criados pela imaginação, os mal-

assombros ganham vida e, por isso, são temidos pelas crianças pequenas. O primeiro caso de dúvida

se um fenômeno estranho acontecido se tratava mesmo da atuação de um mal-assombro ocorreu aos

nove anos de idade. O menino (LL. 10. M. 4) duvida do mal-assombro porque ele lhe apareceu

apenas em sonho. Sonho e realidade são distintos para uma criança de dez anos de idade, mas não

para as crianças pequenas − como já pontuei anteriormente. Um desenho de uma criança aos onze

anos de idade (GL. 11. M. 22) é muito elucidativo: um velho duvida da criança quanto ao

aparecimento de um mal-assombro mas, ao final da estória, prova-se que a aparição do mal-

assombro era verdadeira. A estória parece sugerir que a dúvida na existência e aparição dos mal-

assombros é uma precondição adulta. Para a criança, a possibilidade de não existência do mal-

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assombro não estaria colocada. O mal-assombro existe e ninguém duvida. Para além disso, a criança

não se coloca a questão da crença. Apenas aos nove anos de idade é que a primeira criança vai

levantar a questão da crença nos mal-assombros, como já mencionei. Os mal-assombros não estão

sujeitos à crença porque fazem parte da realidade. Quero deixar claro que, apesar das crianças

criarem os mal-assombros, em momento algum elas duvidam da existência da sua criação. Como já

foi explicado, mesmo sendo criados pela sua imaginação, os mal-assombros são reais166 (LATOUR

2002b [1996]). Interessante observar que a dúvida quanto à existência dos mal-assombros mostra-se

alta na adolescência. Segundo observações etnográficas, posso afirmar o mesmo para a idade adulta.

Mas não descarto a possibilidade de que talvez as pessoas neguem a existência dos mal-assombros

como forma de combater o medo167. Em se tratando dos adolescentes, eles têm vergonha de dizer

que acreditam em mal-assombro com receio de serem tomados como crianças. As crianças mais

velhas, acima de treze anos de idade, são quase unânimes em afirmar que não acreditam em mal-

assombro porque isso é “coisa de bebê” (AMS. M. 16). Porém, no decorrer da redação, muitos

acabam por afirmar sua existência − como esta adolescente de quinze anos de idade, que termina a

sua redação com a seguinte exortação: “Fantasma só na nossa imaginação!”, mas que no decorrer

do texto escreve: “Eu nunca vi um, mas se ver um eu vou sentir medo e também chegarei até a

desmaiar” (MJ. M. 15). O assunto é delicado para os adolescentes. Se dizem ter medo dos mal-

assombros, serão chamados de criancinhas; se dizem não ter medo, terão que passar por um teste

para prová-lo − como, por exemplo, ir desacompanhado a uma casa velha abandonada, durante a

noite. R.C.D.S., de quinze anos de idade, expressa bem essa contradição: “Eu nunca vi um porque se

eu tivesse visto eu não estaria viva porque tenho medo destas coisas, eu sei que não existe mal-

assombro, mas quem é que se confia em coisas do outro mundo?” (RCDS. M. 15). Nas redações dos

adolescentes, vemos uma ambigüidade explícita em relação ao mal-assombro. Ao mesmo tempo em

que afirmam que quem acredita nisso é “bebezinho”, afirmam também que nunca querem ver ou

que, se virem, vão desmaiar de pavor. Ou seja, a possibilidade da visão de um mal-assombro parece

estar colocada. Os adolescentes estão atravessando um período delicado, no qual, às vezes, são

associados às crianças, às vezes aos adultos − apesar dos seus esforços em se distinguirem dos

primeiros. Além disso, eles estão no processo de desmerecer alguns mal-assombro e conceber

legitimidade a outros. É preciso separar o que são os mal-assombros reais dos que são os mal-

assombros inventados para fazer medo nas crianças. Na dúvida, com medo de serem tomados por

criancinhas, eles negam a existência de todos os mal-assombros. Como os adolescentes não querem

166 Para a criança pequena, o desenho não representa um mal-assombro, mas é o mal-assombro. Isso porque uma criança me disse que já tinha visto um mal-assombro. Perguntei-lhe onde ele tinha lhe aparecido e ela mostrou-me o desenho, dizendo que tinha visto o mal-assombro ali, no desenho mesmo. 167 O livro A História do Medo no Ocidente (1996), escrito por Jean Delumeau, historiciza vários tipos de medos (medo do Satã, do escuro, da morte, de fantasmas, do mar etc.), e os analisa a partir da necessidade mantê-los longe − sendo o medo conceituado como aquilo de que nós queremos afastar-nos.

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correr o risco de serem tomados como crianças, será preciso esquecer e desmerecer os outros mal-

assombros, afirmando a sua não existência ou a sua existência apenas como fruto da imaginação

fértil dos pequenos. São os adolescentes que introduzem a distinção mundo real e mundo imaginado

para entender os mal-assombros. Para as crianças, essa distinção não se coloca: os mal-assombros

existem, e não importa se é a pessoa mesmo quem os criou ou se são concretos ou abstratos. Os

adolescentes, por sua vez, afirmam que os mal-assombros podem existir, mas apenas em função de

uma invenção fantasiosa − o que não corresponde à realidade. Finalmente, para os adultos, os mal-

assombros podem existir igualmente apenas quando são associados à religião. No entanto, para os

últimos, aqueles mal-assombros que as crianças acreditam reais só existem no reino da imaginação

infantil − enquanto os mal-assombros sérios, aqueles mandados pelo Demônio ou por Deus, podem,

eventualmente, invadir o mundo dos vivos.

Dessa forma, parece que os mal-assombros são desacreditados pelos adultos e adolescentes,

ao mesmo tempo em que são temidos, evidenciando aqui uma relação antinômica − o que, segundo

Otavio Velho (em preparação), constitui o cerne da religião, e que será mais discutido adiante. Uma

constatação curiosa faz-se necessária: as crianças temem menos que os adultos os mal-assombros,

mas nunca passou pela sua cabeça desacreditar da sua existência. Nenhuma criança jamais pontuou a

questão da crença nos mal-assombros, mas elas sabem que os mesmos podem ser criados pela sua

imaginação e, uma vez criados, passam a existir. Essa existência não é contestável. Crer ou não no

mal-assombro não é uma questão que a criança se coloca. Aliás, não é através da crença que os mal-

assombros e as crianças relacionam-se. Como já afirmei anteriormente, as crianças gozam de

agência em relação aos mal-assombros, enquanto que os adultos e adolescentes parecem padecer da

agência dos mal-assombros. Isso pode ser entendido como razão para as altas taxas de medo entre os

adultos, e baixas taxas entre as crianças. Se os mal-assombros são criados por nós mesmos, eles

podem ser ‘descriados’ – e, com isso, o medo se amaina. Mas, para os adultos, o medo não pode ser

atenuado, porque eles não têm qualquer controle sobre os mal-assombros. Para os adultos, os mal-

assombros existem alhures; moram em um mundo que tem regras distintas daquelas do mundo daqui

onde nós moramos. Por exemplo, a lei da gravidade não se aplica aos mal-assombros, que podem

flutuar como plumas e voar como pássaros. Além disso, os mal-assombros não respeitam a lei de

que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo: eles atravessam paredes de

tijolo e portas de madeira. Os mal-assombros também podem tornar-se invisíveis de um segundo

para outro. Tudo isso é muito estranho para um adulto. Para ele, idealmente existe o mundo real e o

mundo das idéias. Neste último, coisas estranhas podem acontecer, mas isso não importa muito,

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dizem os adultos, porque este mundo das idéias, de fato, não existe: é só imaginação, fantasia, ‘coisa

que só existe na cabeça das pessoas’168.

O que faz, então, o adulto, quando vê alguma coisa que, segundo ele, não existe nem pode

existir? Aí é que o problema todo se instaura. Os mal-assombros são tão interessantes e sujeitos de

tantas conversas e estórias justamente porque vão contra esta separação entre mundo real e

imaginado com a qual os adultos operam − e na qual o último nunca é possível ou plausível; muito

menos, real. A operação efetuada pelos adultos é bem complicada. Ao invés de estender a realidade

a outras possibilidades de vida, como os mal-assombros ou os seres encantados, e viver em

harmonia com os “não-humanos”, os adultos os remetem a um espaço onde essas coisas estranhas

podem ter lugar, ser consideradas reais e ser seguramente explicadas. Como a existência dos mal-

assombros não pode ser negada − afinal, as pessoas os vêem −, eles passam a ser regulados por Deus

e pelo Demônio. Esse dois, agentes em si mesmos, são poderosos o bastante para corromper certas

regras do mundo cotidiano sem comprometer o bom senso, ou sem ser necessário recorrer a soluções

que remetem ao mundo da imaginação − aquele que não existe e não pode existir. Deus e o

Demônio, todo mundo sabe, existem. Para os adultos, as crianças continuam sendo consideradas

como criativas e imaginativas, enquanto eles se resguardam no seu mundo real, onde mal-assombro,

Deus e Demônio existem, mas a sua existência, não se enganem, é verdadeiramente real. Não os

confunda com o Zumbi ou a Bruxa Keka... O assunto aqui é sério, e apesar de todos eles, no fundo,

terem sido feitos da mesma matéria (ou não-matéria), apenas aos primeiros é concedida a mais

concreta realidade.

5. Conclusões

Em linhas gerais, parece possível afirmar que a criança pensa “a religião” como indissociável

da igreja (prédio). Já para o adulto, a religião parece abranger a igreja (prédio), mas não se restringir

a ela. A religião que antes era tida como a igreja = prédio no meio na praça, passa a ser a igreja

aonde as pessoas vão, para depois deixar de ser a igreja isoladamente e chegar a ser a igreja

enquanto ecclesia. Adicionalmente, a religião também diz respeito às entidades religiosas, como

168 Levi-Strauss (2003 [1952]), em um texto no qual analisa o papel do Papai Noel nas sociedades modernas, afirma que todo rito de iniciação, em que a sociedade se divide em dois grupos − de um lado, os iniciados, e de outro, os não iniciados, está se falando de uma distinção mais profunda, entre os vivos e os mortos. Os mal-assombros, assim como o Papai Noel, na medida em que distingue as crianças (não iniciadas, que acreditam nele) e os adultos (iniciados, que sabem que ele não existe) na verdade está operando uma distinção que ultrapassa esses termos e toca o mundo dos mortos e o dos vivos. Papai Noel celebra a vida, em oposição à morte: ele dá presentes a todos, é generoso, suspende o mundo das maldades, da inveja e da ganância. Ele suspende a morte. Levi-Strauss ainda diz que as crianças são a encarnação dos mortos, a partir da análise do mito do Katchina, entre os índios Pueblo. Ao fazê-las acreditar na vida (no Papai Noel) é que se suspende a morte e se instaura a vida.

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Deus e Jesus, os Santos e Nossa Senhora. Recapitulando, o modo de relação que os adultos

estabelecem com a religião passa necessariamente pela sua dissociação em relação à igreja enquanto

prédio. Essa mudança é essencial na passagem para uma concepção adulta de religião. Apesar da

equação religião (=) igual igreja não fazer mais sentido, o número de desenhos de igreja permanece

altíssimo até os treze anos de idade, com níveis acima de 70%. O que se passa? Acontece que, à

medida que a criança cresce, a igreja passa a gozar do rótulo de sagrada (para os católicos) − o que

não acontecia nos seus primeiros anos de vida. A menina citada anteriormente acha “bonito” que as

pessoas sejam católicas − embora isso não implique em sê-lo. Muitos consideram-se religiosos sem

sentirem-se obrigados a ir à igreja. Isso só é possível porque o conceito de religião tomou uma

abrangência além da própria igreja (prédio). Mas, sem dúvida, é interessante observar que, somente

a partir dos dez anos de idade, quando a igreja é habitada, ela também é concebida como sagrada

(pelos católicos).

Como se viu, somente a partir dos quatro anos de idade as crianças começam a desenhar

elementos que afirmam serem religiosos. Descrevi detalhadamente os elementos pontuados pelas

crianças em cada faixa etária estudada e observei como eles mudam no decorrer dos anos. Na

seqüência da análise dos desenhos, vimos que, por volta dos sete - oito anos de idade, as igrejas são

largamente desenhadas. Assim, parece que, quando as crianças pensam em religião, a igreja é o

primeiro item que vem à baila. Por volta dos nove - dez anos de idade, a igreja é habitada por gente:

não é mais, como anteriormente, apenas a igreja solta no papel. Depois disso, a criança pode definir

o seu pertencimento religioso institucional, para depois negá-lo em função de uma maneira tida

como mais adequada de ser religiosa, na qual as diferenças entre os credos não são tão importantes.

Lá pelos doze anos de idade em diante, as igrejas são associadas com outras referências, e as

crianças começam a ressaltar que só ir a igreja não é suficiente: há que se fazer o bem − como a

menina de doze anos de idade, que desenhou um grande coração vermelho e escreveu que dentro

dele há “muita paz e muito amor”. Nada mais de igrejas. Ela ressalta que a religião implica em se

sentir em paz e amar o próximo, uma tendência que poderia ser chamada de adulta. Com o nascer de

uma nova maneira de se relacionar com religião, que não passa necessariamente pela igreja (templo),

nem pelas denominações religiosas específicas, poderia-se esperar que o número de igreja caísse.

Isso não acontece porque, como já afirmei, a igreja, para os católicos, assume uma característica

sagrada. Observe a seguinte redação: “Minha religião é conviver bem com os meus amigos, com as

pessoas que eu convivo no meu dia-a-dia, estar de bem com a vida, respeitar meus pais, respeitar

também aos mais velhos, saber perdoar as pessoas que lhe fez alguma coisa de mau. Quando você

estiver triste reze por Deus que ele é o caminho da verdade. Essa é minha religião. Minha religião é

católica”. (PM. 12. M. 12). Este menino, de doze anos de idade, não menciona as igrejas quando

discorre sobre religião. Ao contrário, ele menciona Deus, atitudes que o fazem uma boa pessoa e o

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seu pertencimento institucional. Parece que é assim que os catingueirenses tornam-se religiosos:

colocando Deus no lugar da igreja, acrescentando atitudes positivas em relação ao próximo e,

eventualmente, pertencendo a uma religião em particular.

Kessing (1982: 38) afirma a respeito dos Kwaio “No child could escape constructing a

cognitive world in which the spirits were ever-present participants in social life, on whom life and

death, success and failure, depend”. Ela explica que não poderia ser diferente, dado que a criança

cresce vendo as pessoas sussurrando a um parente morto, vendo pessoas adoecerem em função de

doenças enviadas por ancestrais insatisfeitos e aprendendo a evitar os caminhos conhecidos como

habitados por “espíritos selvagens”. Em Catingueira, passa-se algo semelhante. Parece que as

crianças aprendem sobre religião no convívio cotidiano com as pessoas que lhes são mais próximas.

As crianças não vão à igreja sozinhas: elas sempre estão acompanhadas da sua família ou dos

amigos e vizinhos. Ao mesmo tempo em que aprende como ser gente − seja filho, irmão mais novo,

vizinho ou amigo −, a criança católica aprende que Nossa Senhora é a mãe de Jesus e que Deus é o

Nosso Pai. É importante destacar que ela aprende também como se relacionar com essas entidades

na prática. Isso não prescinde, mas ultrapassa, o aprendizado dos conceitos abstratos. Quero realçar

que este aprendizado enraiza-se na materialidade do mundo, como parece sugerir Tim Ingold (2000)

− o que, por sua vez, parece ressaltar o papel fundamental da família no crescimento religioso das

crianças, uma vez que é no seio familiar que elas aprendem sobre o mundo e as relações sociais.

Astuti (in press 1) também tece considerações parecidas: as crianças Vezo aprendem sobre a

influência dos ancestrais no dia-a-dia nas mais variadas atividades, não-religiosas em si mesmas.

Em título de conclusão, sugiro que o processo que culmina com o pertencer a uma religião

em particular também pode ser pensado em paralelo ao desbastamento religioso necessário para se

tornar adulto. Os dados mostram como o conceito de religião vai sendo restrito aos elementos

genuinamente religiosos com o passar dos anos − já que, nos desenhos dos primeiros anos

pesquisados, há uma variedade maior de elementos desenhados, não necessariamente religiosos.

Interessante notar que movimento parecido ocorre nos desenhos dos mal-assombros. Neste caso,

quando as crianças são pequenas, os desenhos mostram-se os mais variados possíveis e, com o

passar dos anos, vai ocorrendo uma restrição dos mesmos a um conjunto reduzido de possibilidade

de mal-assombros. Esse fato pode ser entendido em paralelo à sugestão de que crescer implica em

um processo de desbastamento religioso, ao contrário de um processo de aquisição, cada vez mais

volumosa, de informações sobre a religião − o que levaria a uma vida religiosa mais intensa169.

169 Poderíamos pensar como hipótese que as crianças se relacionam desde cedo com as entidades religiosas, mas não com a “religião”. Nesse sentido, os mal-assombros seriam parte do mundo da criança, assim como as entidades do panteão religioso tradicional, como os anjos, os santos, Deus e Nossa Senhora. Para elas, tanto os mal-assombros como as entidades têm a mesma existência e habitam o mesmo mundo. A literatura diz que as crianças relacionam Papai Noel e Deus, anjos e personagens de contos de fadas (CLARK 1995; ELKIND 1978; SCHEIDE 1987). Como deixa claro

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Contrariamente, estamos aqui apostando na direção oposta. A vida religiosa seria, nestes termos,

mais intensa durante os anos da infância. Como foi afirmado no capítulo anterior, as crianças

manifestam desejo de freqüentar as igrejas que seus pais não freqüentam. Esse desejo é, via de regra,

tolhido pelos seus pais como uma idéia absurda. Parece-me que a religiosidade, que antes estava

expandida a todas as igrejas, agora deve ser limitada a uma igreja em particular, à qual a criança vai

pertencer e freqüentar com exclusividade, até chegarem a exclamações do tipo das citadas acima:

“não desistirei nunca”, “lá ficarei até a morte”. Mas, ao contrário, parece que as crianças menores

saíram mais á la Riobaldo "Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião.

Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... uma só para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo

cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele,

de Cardéque." (ROSA 1986: 08/9).

Paralelamente, o processo analisado de se tornar um catingueirense pode culminar nas

afirmações de religiosidade que não implicam em uma filiação religiosa exclusiva. O exemplo mais

claro talvez seja o da menina que afirmou que não tinha religião, mas que sua religião era servir a

Deus. Isso parece confirmar uma das hipóteses que estamos perseguindo durante esta tese. Para o

adulto, ser religioso, em muitos casos, ultrapassa as práticas e as crenças de um pertencimento

religioso institucional. Os ensinamentos e a moral cristãos, enfatizando as entidades religiosas e o

amor ao próximo, parecem, em grande medida, definir as principais preocupações de uma pessoa de

bom caráter − em outras palavras, uma pessoa religiosa, ou um catingueirense. Isso sem mencionar o

medo dos mal-assombros − entendidos como as almas dos mortos enviadas por Deus ou pelo Diabo

−, que me parece igualmente significativo entre os espíritas, protestantes e católicos. Talvez, essa

constatação, que, em certo sentido, resume uma das hipóteses centrais da tese, de que o cristianismo

é mais abrangente que as diferenças religiosas específicas de cada credo, pode ser entendido como

contraditório ao que foi apresentado anteriormente no Capítulo Quatro. Expliquei que, para os

adultos, as diferentes igrejas divergem quanto às abordagens do sagrado e, por isso, não se freqüenta

qualquer igreja − mas, sim, “a minha igreja”. O que ressalto aqui é que o cristianismo ultrapassa as

diferenças religiosas de cada credo, mesmo no caso em que as pessoas definem os seus

pertencimentos religiosos de maneira exclusiva. Ou seja, mesmo os crentes pedem a bênção, e

mesmo eles têm medo dos mal-assombros. Ciente da dificuldade de lidar simultaneamente com o

que há de comum e de específico nas religiões, lanço a questão para futuros debates.

Nancy, de cinco anos de idade, segundo Elkind (1978:35): “A prayer is about God, rabbits, dogs, and fairies and deer, and Santa Clauss and turkeys and pheasants, and Jesus and Mary and the Mary´s little baby”. Ou Scheide (1987:131), citado em Clark (1995:54) “One father told of the son asking him if he was really Santa Clauss. The father had admitted that he was, after which the boy thought for a while, and then asked if his father was also the Tooth Fairy. Again the father admitted that he was. The son then asked if the father was also Easter Bunny, and when the father said yes, the son asked “are you God too?”. Seria esta relação com as entidades místicas e religiosas num nível pessoal e concreto o que torna possíveis, em certo sentido, as experiências religiosas intensas na infância?

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Antes de terminar, gostaria de recuperar as características da religiosidade infantil e adulta,

citadas na introdução deste capítulo, para pensá-las em paralelo entre si. Parece que, em certo

sentido, a religiosidade infantil pode ser distinta da adulta em basicamente quatro pontos principais,

já expostos acima: 1) religião é entendida enquanto uma prática que prescinde de entendimentos

simbólicos. 2) O fato de que a religiosidade não está localizada apenas em um ponto distinto, que,

como conseqüência, 3) leva à expansão de possibilidades de agenciamentos, e o que afirma a sua

possível intensidade. E, finalmente, 4) a religiosidade infantil é vivida, em grande medida, de

maneira relacional. Essas características, ditas como referentes às crianças, levam-nos a refletir em

que medida elas também não se aplicam para os adultos − como já mencionei nas conclusões do

capítulo precedente. Podemos afirmar que, para os adultos, a coletividade, entendida ora como a

família − principalmente para os católicos −, ora como “a comunidade dos irmãos” − principalmente

para os protestantes −, é importantíssima na definição da religiosidade de cada pessoa; embora, para

os adultos, pareça haver uma ênfase na divindade, nas entidades religiosas e na comunidade de

irmãos ou próximo. De outro lado, é possível afirmar, igualmente, que, em muitos momentos, a

distinção entre sagrado e profano também não se coloca para os adultos. Podemos citar, como

exemplo, o fato de que, para grande parte dos católicos, a chamada “parte profana” da festa de São

Sebastião é essencial para seu sucesso. Para os protestantes, igualmente, todos os agenciamentos que

a festa do padroeiro propicia devem ser evitados, uma vez que ela é comemorada em honra de um

santo. Assim, até o sorvete que é vendido na praça é considerado parte da festa religiosa (PIRES,

2003). No entanto, é preciso mencionar dois poréns. O primeiro deles é que as crianças, protestantes

ou não, têm dificuldade em evitar as barracas de brincadeiras e jogos de azar, assim como os

sorvetes e os quitutes vendidos na praça, embora sob a vigilância e os protestos dos seus pais. O

segundo porém é que, para os católicos mais conservadores, as barracas, as danças e as alianças

políticas que podem acontecer durante a ocasião deveriam ser banidas da festa, porque corrompem o

seu aspecto “religioso” mais genuíno. Mais uma vez, como vimos no capítulo precedente, estamos

colocados frente a uma antinomia − que, para Otavio Velho (em preparação), parece constitutiva

mesma da religião, sendo tarefa do pesquisador encontrar meios de transmitir esta realidade

(VELHO em preparação).

Para terminar, talvez fosse útil pensar aqui também a idéia do “jamais fomos adultos”. Em

contraste com os fundamentalismos religiosos, a experiência infantil da brincadeira, na medida em

que se apóia em antinomias e em relações duplo-vinculantes (BATESON 2000 [1972], VELHO em

preparação), pode ser o que, no final das contas, fica como religião para os adultos. Gostaria de

deixar claro que não estamos falando da religião da moralidade − em que fazer o bem parece ser o

aspecto distintivo e mais importante da prática religiosa − mas, sim, da experiência da igreja como

ecclesia, no sentido em que enfatiza a comunidade dos fiéis e as experiências com as entidades

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religiosas e a divindade. A moralidade existe enquanto mediada pela presença de Deus. É justamente

porque Ele existe que nem tudo é permitido, para parodiar Dostoievski nos Irmãos Karamazov. A

literatura está repleta de exemplos que mostram como as festas aos santos católicos comportam

elementos da brincadeira, que conjugam, entre outros paradoxos, o profano e o sagrado (FREYRE

1933, SANCHIS 1983, PEREZ 1994, 1996, 2002, PIRES 2000, 2003, MARTIN 2001). E, por fim,

lembramos que a divindade no cristianismo é tida como antinômica e paradoxal por natureza,

caracterizada pela idéia de que Deus é, ao mesmo tempo, filho e pai, humano e divino − sem

mencionar o Espírito Santo. “O dogma trinitário onde Deus é um e trino ao mesmo tempo, crucifica

a razão (EVDOKIMOV 1959: 181). E, enfim, a verdade é sempre antinômica (EVDOKIMOV 1959:

182).” (VELHO em preparação op.cit.).

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6. Apêndice Gráfico 2

Soma dos elementos religiosos

-

20

40

60

80

100

120

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

núm

ero

de

des

enh

os

Gráfico 6 Deus X Santo (a)

0%

20%

40%

60%

80%

100%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

Deus Santo (a)

Gráfico 7

Deus

0%

20%

40%

60%

80%

100%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

idade

Gráfico 8 Gente + igreja

0%

20%

40%

60%

80%

100%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

idade

Gráfico 5 Soma das Igrejas

0%

20%

40%

60%

80%

100%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13Idade

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CONCLUSÕES

"Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das cousas próprias de menino”. 1 Coríntios 13, 11.

Nesta tese, procurei entender o que as crianças de Catingueira, semi-árido da Paraíba,

pensam sobre a religião e sobre os mal-assombros, e como esses dois temas se relacionam. Comecei

a tese com um pequeno prefácio, onde discorro, de maneira pessoal, sobre as minhas próprias

experiências e idéias religiosas quando menina. Na Introdução, apresentei o tema de pesquisa,

levantei algumas hipóteses e trabalhei com a literatura especializada. No Capítulo Um, discorri

sobre os métodos e técnicas de pesquisa utilizados, dando destaque para as redações, para os

desenhos e para a observação participante, na medida em que estes foram os métodos mais

frutíferos para se trabalhar o tema. No Capítulo Dois, procurei expor, de maneira etnográfica, como

é a vida em Catingueira, dando um certo destaque para o que diz respeito ás relações familiares. No

Capítulo Três, foi trabalhada a questão dos mal-assombros, entendidos pelos adultos como

entidades religiosas e pelas crianças, como tudo aquilo que provoca medo. No Capítulo Quatro,

concentrei-me na religião, tentando entender como as crianças a conceitualizam e a experienciam.

No Capítulo Cinco, relacionei a religião e os mal-assombros − os dois grandes temas de pesquisa

com as crianças durante o meu trabalho de campo − para entender como uma criança se torna um

catingueirense. Nesta conclusão, espero retomar algumas das discussões mais relevantes da tese.

Gostaria de esclarecer um ponto que talvez tenha ficado obscuro para o leitor, qual seja, em

que medida as crianças vivem a religião de maneira externa e impessoal. Foi dito que a igreja,

entendida como templo, resume a religião para as crianças pequenas. Com isso, não estou sugerindo

que as crianças pequenas não tenham experiências religiosas ou que vivam alheias a qualquer forma

de religiosidade. Pelo contrário, a aposta aqui é a inversa, já que, pela minha própria experiência

infantil, eu não poderia negar um encontro intenso com o que é chamado de forças religiosas (se

possível, refira-se ao Prefácio). A sugestão aqui é trabalhar em direção radicalmente oposta às

teorias que imaginam a criança como um ser incompleto em relação ao adulto. Poderíamos apostar

na tendência oposta – não para afirmá-la, como costumam fazer os adultos, mas para realmente

brincar com ela, testar seu valor, puxar seus limites até pouco antes da corda se arrebentar, como

fazem as crianças nas suas brincadeiras (ou com os pressupostos adultos). As crianças seriam

pensadas, nesta brincadeira, como criaturas religiosas, e o crescer, como um processo de

desbastamento religioso. Crescer implicaria, ao contrário do que se poderia imaginar, em um

processo de desbastamento – e não em um processo de acumulação de camadas cada vez mais

densas de relação com o religioso. À medida que crescemos, seríamos desbastados da nossa

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religiosidade. Essa idéia, curiosamente, vai ao encontro do cristianismo e da opção preferencial de

Jesus pelas crianças, na medida em que elas têm acesso privilegiado ao céu: “Deixai vir a mim os

pequenos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes assemelham” (Marcos

10, 14). Como essa sugestão pode ser observada? R. 13. M (o maior sonho) escreveu: “O meu

maior sonho é que a terra se torne um lindo jardim do Éden, isso Deus já prometeu”. Observei que,

muito constantemente, nos mais variados temas de desenho, as crianças escreveram frases

religiosas, versículos da Bíblia ou apenas palavras religiosas, como os exemplos “Deus” (R. 12. F -

Eu), “Jesus” (R. 12. F - Alguém que já morreu), “Jesus é nossa luz” (T. 9. F.- Eu), “Deus é amor,

Deus ama todos nós” (S. 12. F – Alguém que já morreu), “Cristo ama todos” (L. 12. F - A coisa

mais feliz) e “Luana Chimba Cristo170” (L. 12. F - A coisa mais feliz), só para citar alguns

exemplos. Muitas crianças têm como pior momento da vida se encontrar com o Cão (J. 11. F, M.

11. F, C. 7. F) ou ir para o inferno (M. 11. F). Curiosamente, foi quando pedi para desenhar

elementos não explicitamente religiosas que as crianças se mostraram mais “religiosas” − ao passo

que, quando pedi para desenhar “a minha religião”, as crianças mostraram uma religiosidade

externa e impessoal, caracterizada, sobretudo, pela igreja, como foi exposto principalmente no

Capítulo Cinco. Quando desenharam a pior coisa do mundo, algumas crianças desenharam o Cão

(L.12. F,. S.12. F), enquanto que a melhor coisa do mundo para essas mesmas duas meninas é Deus.

Da mesma forma, quando perguntei qual era a coisa mais importante da vida, duas crianças

responderam que era a mãe (R. 12. F, S. 12. F), e o mesmo número respondeu que era Jesus (C. 7.

F, L. 12. F). Tudo se passa como S. 12. F escreveu: [a coisa mais feliz do mundo é o] “nosso Deus,

ele é a nossa felicidade, sem ele o que seria de nós?”. Além disso, na técnica de pesquisa das cartas

elaboradas pelas crianças, na sua maioria, Jesus foi escolhido como destinatário, como vimos no

Capítulo Dois. Aliás, das quinze cartas elaboradas, nove delas eram endereçadas às entidades do

mundo espiritual. As cartas foram endereçadas a Jesus (seis), pesquisadora (três), membros da

família (dois), Papai Noel (um), Papai do céu (um), Deus (um), anjinho (um). Estas crianças

sonham com o jardim do Éden, decoram seus desenhos com o nome de Deus171 e escrevem cartas

para Jesus!

Por fim, parece-me necessário afirmar que, se a criança pequena não enfatizou suas

experiências religiosas nos desenhos sobre a religião, não foi porque ela as desconhecesse, mas,

sim, porque o meu pedido de desenho não pôde alcançar o seu objetivo completamente, em virtude

de uma inadequação da pergunta da pesquisadora à realidade religiosa das crianças − como

anunciado na Introdução e retomado amplamente no Capítulo Cinco. Ao contrário, vimos que, nos

170 Luana é o nome de uma das irmãs desta criança, enquanto Chimba é o apelido de um dos seus irmãos. 171 Para um exemplo de desenho em que o nome de Deus figura em destaque, vide no CD anexo, na pasta Desenhos de Tema Variados: desenho 12 S. 12. F (Livre). Vide também na pasta de Desenhos do Mal-assombro o desenho 26 O mal-assombro MD. 11. F. 13.

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desenhos onde a religião não era enfatizada, as crianças mostraram-se mais religiosas, inclusive as

pequeninas. Isso mostra, de um lado, que a religião nos primeiros anos de vida não é definida como

separada da vida cotidiana. De outro lado, isso parece confirmar a tese de que as crianças têm

experiências e pensamentos religiosos desde pequenas – e, talvez, mais intensos que os próprios

adultos ou crianças maiores.

Robinson (1977) também afirma que as crianças têm experiências religiosas intensas, o que

ele chama de “visão original”. Como tais experiências ocorrem pela primeira vez na infância, elas

tendem a ser para sempre lembradas como algo importante em todo o curso da vida. O grupo de

pesquisa de Robinson (1977) convidou “todos aqueles que ‘sentiram que as suas vidas foram

afetadas de algum modo por algum poder acima deles mesmos’ ”(: 11) a escrever sobre esta

experiência. Sem mencionarem infância, eles constataram que 15% dos que responderam ao pedido

descreveram as experiências infantis − o que, para o autor, é uma evidência de uma possibilidade de

religiosidade intensa na infância. Algumas considerações fazem-se necessárias. O autor trabalhou

com relatos sobre a infância e não com as crianças propriamente ditas: isso porque, de acordo com

ele, segundo os relatos recolhidos, os adultos afirmaram que, quando crianças, eles não tinham a

exata dimensão das conseqüências daquela experiência, e que só alcançaram-na quando se tornaram

adultos. Como discuti na Introdução, se a experiência infantil só pode ser entendida quando se torna

adulto, parece-me errôneo chamá-la de experiência infantil. Quando o sujeito cresce, devido às

outras experiências acumuladas, ele é capaz de compreender um fato do passado com outros olhos e

reavaliar as experiências que tenha tido na infância; porém, de uma perspectiva agora adulta, e não

infantil. Acredito que, as crianças, ao contrário, são plenamente capazes de viver e conversar sobre

experiências religiosas – e acredito, em contrapartida, que, quando adultos, as experiências infantis

adquirem outra dimensão. Assim dito, parece-me que a pesquisa de Robinson (1977) não pode ser

entendida como um estudo da religiosidade infantil, senão como um estudo da memória das

experiências religiosas infantis. Como afirma Mary Catherine Bateson (1994) a respeito do livro no

qual ela descreve a sua infância: “This book cannot be the child’s interpretation, for that child is

now an adult, and I write about that period is a reconstruction” (31) 172.

172 Por sua vez, Hardy (1965, 1966, 1979) e Hay and Nye (1996, 2006) também afirmam, mas por caminhos bastante diferentes, que a infância é um período de intensa experiência religiosa. Hay & Nye (1996, 2006), preocupados em estudar a educação espiritual, afirmam que as crianças têm experiências religiosas mais intensas que os adultos porque naturalmente os seres humanos são equipados com uma consciência religiosa que vai sendo esquecida com o passar dos anos. Os autores afirmam sua filiação a Alister Hardy (1965, 1966, 1979), zoologista darwinista da Universidade de Oxford que trabalhou com a “[…] hypothesis that what he called ‘religious experience’ has evolved through the process of natural selection because it has survival value to the individual” (HAY & NYE 2006: 22). E arrematam dizendo que “Spirituality is characterized here as a natural form of human awareness” (HAY & NYE 1996: 6). Espiritualidade, em seus termos, é algo mais abrangente que a religiosidade, e é encontrada em ambientes seculares, justamente porque é dada naturalmente. Eles ainda afirmam que “We will thus be able to move beyond an understanding of children´s spirituality based on ‘knowledge’ towards a more general psychological domain of

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Margaret Mead (1932) pesquisa como a crença nos fantasmas é ensinada às crianças Manu,

que naturalmente operam em um mundo no qual estes seres estão ausentes. Para os adultos, ao

contrário, os fantasmas são parte do mundo habitado. Essa distingue radicalmente da abordagem de

Hay & Nye, quando afirmam que “By locating spirituality in the human organism it places a focus

on childhood and on spirituality as intrinsic rather than taught” (1996: 13). Por sua vez, a

abordagem de Rita Astuti (in press 1) distingue-se da de Mead (1932) na medida em que não se

interessa em entender como as crianças “aprendem” sobre os ancestrais e sobre a morte mas, sim,

como elas se tornam conscientes das regras do mundo adulto através do aprendizado da biologia e

dos fatos da natureza. Em outras palavras, para Astuti (in press 1), as crianças aprendem sobre a

influência dos ancestrais quando aprendem que a morte biológica dá fim ao corpo, à mente e ao

espírito. A ambigüidade se resolve, segundo a autora, quando nos damos conta de que, para os Vezo

de Madagascar, a influência dos espíritos dos mortos não é aceita enquanto regra abstrata, mas

apenas quando é pontualmente referida.

O objetivo desta tese não é buscar as origens da religião ou da experiência religiosa. Ao

contrário, foco a análise nas relações entre as pessoas que permitem as experiências religiosas terem

lugar. Como já afirmei, as crianças aprendem sobre a religião na teia de relações em que estão

inseridas. Elas não aprendem no sentido mais comum do termo, conforme os antropólogos estão

acostumados a lidar (ASTUTI, in press 1). Ou seja, as crianças não apenas aprendem sobre religião

indo à igreja, escutando o padre ou lendo a Bíblia. As crianças aprendem a ser religiosas e a temer

os mal-assombros como enviados do Demônio à medida que aprendem como se comportar como

um verdadeiro “rapazinho” ou “mocinha”. Em outras palavras, quando aprende a ser filha, irmã,

neta, amiga, vizinha é que a criança também aprende sobre a religião e os mal-assombros. O que

acontece é que, em se tornando adulto, os dados da comunidade vão sendo entendidos, questionados

e, por fim, assimilados. Religião em Catingueira é um dado: todos têm, todos praticam, mesmo que

seja nas pequenas atividades no cotidiano − como o pedir a bênção. Seria por demais estranho um

catingueirense que se dissesse ateu. Crescer em Catingueira implica em tornar-se religioso. Parece

verdadeiro afirmar que, para os adultos daquela localidade, a confiança em Deus, Jesus, Maria e os

Santos, e a moralidade que sugere a necessidade de ajudar os irmãos, superam o comparecimento à

igreja enquanto aspectos constitutivos da religiosidade. Em Catingueira, a religião está colocada

também nos mais simples e cotidianos lugares da vida social e, ao mesmo tempo, mais penetrantes,

como na bênção cotidiana, no atendimento à missa no fim de semana, na oração antes de dormir e,

finalmente, na crença dos mal-assombros.

spirituality as a basic form of knowing, available to us all as part of our biological inheritance”. (HAY & NYE 1996: 10).

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Para melhor pensar os mal-assombros, uma citação de Maurice Bloch (1971) é interessante:

“The logical link that life necessarily implies death and death implies life is one which many

cultures choose to exploit” (BLOCH 1971: 221). Em Catingueira, a morte implica em nascimento

para uma nova forma de vida, restrita à alma, que não necessita de um corpo material.

Diferentemente dos dados apresentados por Bloch (1971), em relação a Medina/ Madagascar – nos

quais os mortos são assimilados a grupos de ancestrais e perdem seu caráter individualizado −, em

Catingueira, parece se passar o contrário. É justamente a individualidade da alma que a caracteriza e

define a sua atuação no mundo dos vivos. O interessante é que a sua individualidade é dada em

relação ao seu pertencimento ou não por uma família. Não estamos falando dos “mortos como um

todo” (e da sua influência na produção de boa sorte e fertilidade entre os vivos), como parece ser o

acento em Medina, mas de cada morto em particular, e de como esta individualidade vai determinar o

seu comportamento em relação aos vivos e vice-versa. Em Catingueira, as pessoas se interessam em

estabelecer contato com as almas da própria família − não com as almas do purgatório ou do inferno.

Estas são temidas, e delas procura-se afastar. Ao contrário, as almas dos ancestrais estão sempre

sendo contempladas nas orações, são lembradas quando se visita seus túmulos, podem ser vistas e

podem aparecer em sonhos. Luiz Fernando Dias Duarte (2006) discorre sobre o caráter religioso que

a instituição familiar adquiriu na contemporaneidade, cujas características são a sacralidade das

representações sobre o sangue herdado, dos ideais de liberdade e de autonomia. Nesta tese, fazendo

caminho inverso, mostrei como a família institui e intermedia a relação do indivíduo com a religião.

Isso é confirmado quando, dentre outras coisas, afirmei que os próprios mal-assombros são parte da

família e, em adição, que a alma de um familiar é menos amedrontadora que as outras almas. Da

mesma forma, quando discuti que a experiência de ver um mal-assombro é confirmada pelos

parentes, ou quando foi dito que se aprende sobre os mal-assombros em família.

Gostaria, também, de lembrar que, nesta tese, as crianças não constituem o objeto último. As

crianças são incluídas na pesquisa da mesma forma que os adultos e os idosos. Mas para ser capaz

de entender o ponto de vista das crianças é que desenvolvi certas técnicas de pesquisa, as quais

acredito que sejam mais interessantes e apelativas para as próprias crianças − como os desenhos.

Como as crianças interpretam o mundo é algo levado a sério, na medida em que ilumina aspectos do

real que possam estar velados aos adultos. A interpretação que as crianças têm do mundo é

conhecimento do mundo, assim como a interpretação dos adultos. Mas, na medida em que partem

de pontos de vistas diferentes, podem revelar distintos aspectos do real e servir para uma abordagem

mais abrangente da vida social. Assim, gostaria de enfatizar, mais uma vez, a necessidade de

pesquisar as crianças sempre em relação aos adultos e vice-versa. Pesquisar as crianças em si

mesmas pode representar um perigo para a análise antropológica, na medida em que não leva em

consideração a configuração do mundo social, no qual crianças, adultos e idosos convivem.

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É necessário, também, dizer que esta tese foi constituída a partir de uma série de técnicas de

pesquisa. As sugestões apresentadas foram construídas através da análise de materiais coletados −

entre eles, os desenhos e redações. Essas técnicas de pesquisa permitiram uma série de constatações

e abriram vários caminhos de análise. Pelo seu volume avantajado, os dados coletados podem ainda

render continuidades desta pesquisa, explorando aspectos aqui somente mencionados, como a

política. Quiçá os dados apresentados e as técnicas experimentadas também podem ser aproveitados

por outros pesquisadores interessados no tema da infância, criança ou religião. Evidentemente, o

material coletado também possui limitações − como a já mencionada dificuldade de lidar

metodologicamente com as experiências religiosas infantis, principalmente nos desenhos sobre “a

minha religião”.

Foi sugerido, nesta tese, que o cristianismo é mais abrangente que as distinções entre as

religiões presentes na cidade: o espiritismo kardecista, três diferentes ramos do protestantismo

evangélico e o catolicismo. Isso pôde ser demonstrado em trabalhos anteriores (PIRES 2000, 2003,

2004a, 2005a), através do santo padroeiro, São Sebastião, e da festa a ele celebrada. Neste trabalho,

concentramo-nos no pedido de bênção − atitude que parece ser largamente praticada e que

independe das filiações religiosas institucionais. Mas falamos, principalmente, do medo de mal-

assombro, que se aplica, de um lado, tanto para as crianças como para os adultos e, de outro lado,

para os católicos, crentes e espíritas. Nestes três exemplos, a festa do padroeiro, o pedir a bênção e o

medo de mal-assombro, as diferenças entre os protestantes, católicos e espíritas parecem

subsumidas em função de uma realidade que as ultrapassa. No entanto, isso não significa que os

mal-assombros, o pedido de bênção e a festa do padroeiro sejam interpretados e experimentados da

mesma maneira pelos praticantes de cada um dos três ramos do cristianismo presentes − mas

implica sim, na sua relevância, mesmo que diferenciada, para compreender todas essas religiões.

É chegada a hora de colocar um ponto final neste trabalho. Gostaria de retomar a idéia de

que ‘jamais fomos adultos’ para discutir os pontos de inter-relação entre os adultos e as crianças.

Foi discutido que, segundo Latour (1994 [1991]), a modernidade nunca teria de fato ocorrido, a não

ser na cabeça dos que se consideram modernos. Para tentar priorizar um mundo contínuo (INGOLD

2000), ao invés de reafirmar um grande divisor (GOLDMAN & LIMA 1999), adulto e criança,

tentamos incluir a hipótese de que a idade adulta, a não ser para aqueles que vivem a religião de

maneira fundamentalista, nunca chegaria completamente. O que ficaria para os adultos, de modo

geral, como religião, tida como mais intensa nos anos infantis é, justamente, o seu aspecto

antinômico que a aproxima da brincadeira. A experiência íntima do devoto em relação ao santo de

sua devoção e à promessa ou às festas de padroeiro altamente participativas são alguns exemplos

que apóiam o caráter “brincalhão” e antinômico da religiosidade. Nesse sentido, os adultos jamais

teriam sido adultos, ou melhor, jamais teriam deixado de ser crianças. O que estamos sugerindo é,

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em outras palavras, que os adultos jamais teriam separado religião da igreja, profano do sagrado,

prática e símbolo.

Os encantados, trabalhados no Capítulo Três, são muito interessantes para discutir esse

propósito, na medida em que podem ser vistos pelos adultos e pelas crianças. Nesse sentido, os

encantados problematizam a distinção entre criança e adulto e também a restrição dos mal-

assombros às almas dos mortos na idade adulta. A Maria Fulozinha é temida pelas crianças e

recebe fumo dos caçadores adultos quando sobem a Serra da Catingueira. Da mesma maneira, o

pedido de bênção e a festa do padroeiro não podem ser entendidos quando remetemos aos termos

“adulto” e “criança”, como se, em si mesmos, constituíssem realidades distintas. Ambos participam

da festa e, da mesma forma, as crianças e os adultos recebem e podem conceder a bênção. Uma

criança pode dar a bênção, por exemplo, ao seu “afilhado de fogueira173” ou ao (á) seu (sua) irmão

(ã) mais novo. Além disso, os três elementos citados, encantados, pedido de bênção e festa do

padroeiro, desestabilizam a distinção profano e sagrado174. Nenhum deles pode ser entendido, de

uma perspectiva que leve em conta a cosmologia nativa, se continuarmos a lidar com a

diferenciação dos dois termos. A Rasga-mortalha, ave traiçoeira, habita os sinos da igreja e prevê a

morte. Além disso, a festa do padroeiro não se realizaria sem a “parte profana”, que é organizada

pela própria paróquia de Catingueira e consta nos cartazes de cores vivas que anunciam as

celebrações ao santo. A bênção, por sua vez, é pedida constantemente, sem a necessidade de uma

postura reverencial. Talvez fosse mais útil, depois de percorrer as diferenças, pensar em

aproximações contingentes (VELHO 1997) de um mundo contínuo (INGOLD 2000), e em

diferenças sutis, mais do que de grandes oposições (VELHO 2005), tanto no caso das falsas

distinções (adulto x criança, profano x sagrado) quanto no caso do cristianismo como mais

abrangente que as denominações religiões específicas.

173 Na noite de São João é que os “afilhados de fogueira” são consagrados. Na festa a este santo, acendem-se fogueiras nas frentes das casas. O laço entre padrinho ou madrinha e afilhado (a) se constitui quando ambos pulam a fogueira juntos. A consagração a São João é bastante comum na localidade, e crianças pequenas − de, por exemplo, sete anos de idade, podem tornar-se padrinhos e madrinhas. 174 Eloísa Martin afirma: “As práticas realizadas pelos nativos, no entanto, se bem não negam a especificidade diferencial do“sagrado” (mesmo quando não o denominem necessariamente desse modo), mostram-nos que aquilo que os autores precedentes diferenciam, separam e classificam como “sagrado” e “profano” coexiste e combina-se de modos bem mais flexíveis do que aqueles que eles próprios identificam: torna-se necessário, então, uma abordagem que não substitua um dualismo por outro (VELHO 1997) e que, como coloca Velho (2005), consiga apreender dita especificidade diferencial, não como descontinuidade, ruptura ou oposição, mas nas pequenas diferenças de um mundo contínuo. “Sagrado” ao ser utilizado como adjetivo, não designa uma instituição, uma esfera ou um sistema de símbolos, mas heterogeneidades reconhecíveis em um processo social contínuo em um mundo significativo, e por isso, não “extraordinário” nem radicalmente outro. Processo que se ativa em momentos diferenciais e específicos e/ou em espaços determinados e que, longe de existir de forma abstrata ou com um conteúdo universal, é reconhecido e atuado pelos nativos em diferentes situações: nas descontinuidades geográficas, nas marcas diferenciais do calendário, nas interações cotidianas, em gestos ordinários e em performances rituais” (MARTIN 2006: 5).

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ANEXOS

Anexo 1

ÍNDICE DE REFERÊNCIAS DE MAL-ASSOMBROS (em ordem alfabética)

CABEÇA: Há uma cabeça apontada como a causa de vários acidentes na BR 361, que liga Patos a

Piancó, nas proximidades de Catingueira. O mal-assombro Cabeça teve sua origem quando um

caminhoneiro sofreu um acidente fatal e, com a violência da batida, teve sua cabeça decepada.

Conta-se que a cabeça “voou” para um lado e o corpo do caminhoneiro “voou” para o outro. Desde

então, segundo populares, uma série de acidentes envolvendo vítimas fatais tem sido registrado

neste local. Alguns sobreviventes desses acidentes afirmam ter visto uma cabeça no meio da estrada

– o que teria causado o acidente. Duas senhoras, mães de família, costumavam fazer uma

caminhada matinal por essa estrada, como descrevi na Introdução. No período do trabalho de

campo, juntei-me a elas na esperança de ter acesso ao mundo adulto feminino e comparar as suas

idéias com as de suas filhas e filhos. Assim, por volta das quatro horas e trinta minutos da manhã,

elas batiam na minha porta e saíamos a caminhar a passo lento, apreciando o sol que nascia. Dois

acidentes envolvendo vítimas fatais foram registrados nessa estrada no período do trabalho de

campo. Certa manhã, tomamos o caminho dos sítios. Perguntei a razão da mudança do trajeto e elas

afirmaram que tinham mudado a direção porque estavam com medo de passar pela referida estrada

(“Pista”). Mesmo estando em oração, o Maligno poderia armar-nos uma “prezepada”. Seria melhor

nos precavermos.

Capistrano (1938: 331-2) relata a estória da Cabeça errante que teria dado origem à lua,

segundo populações indígenas no Acre. Um homem cortou sua própria cabeça, que foi encontrada

por um grupo de homens que colocaram-na em um saco. No entanto, a cabeça, insistentemente,

pulava para fora do saco e continuava o caminho ao lado deles. Os homens fizeram de tudo para ela

parar de segui-los. Em vão. Quando chegaram à vila, fecharam todas as portas e janelas das casas,

assustados. A Cabeça errante pensou, então, no que poderia se transformar, e resolveu transforma-

se na lua, já que não queria ser útil a nenhum daqueles homens. Pediu ao menos que os homens lhe

fornecessem dois carretéis de linha, e a São Pedro pediu que atirasse uma varinha para ir enrolando

a linha até alcançar o céu. Assim, ela cumpriu sua palavra de não ser útil a ninguém; afinal, a lua só

ilumina quando está cheia – e é preciso andar à noite, ou seja, esporadicamente. Outra versão é

contada por Frabenius (1936: 244-247), segundo o conto no qual um louva-deus transforma-se em

antílope morto. Algumas crianças decepam a cabeça de um louva-deus e, assombradas, fogem em

desespero ao ouvir a cabeça falar e mover-se. O pseudo-antílope recompõe-se e desaparece.

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CARNEIRO DE OURO: Em Catingueira, alguns animais são considerados encantados. Entre eles,

estão a Gia Encantada do Olho D’água e o Carneiro de Ouro. O Carneiro de Ouro, assim como a

Gia Encantada, trará riqueza a quem o vir. E, como a Maria Fulozinha, ele também mora na Serra.

Alguns dizem que ele mora na Furna (que se localiza na Serra), mas que pode ser visto em todo o

alto da Serra. Ele é de ouro maciço. A Furna habita o imaginário da Catingueira. De tão profunda e

perigosa, ninguém jamais conseguiu atingir o seu fim; os que tentaram, diz-se que ou desistiram, ou

nunca mais voltaram. Para entrar na Furna, o sujeito deve estar sem pecado, e levar consigo uma

vela benta, que será a única fonte de luz capaz de iluminar a escuridão da mesma. Lanternas, por

mais que já tenham sido experimentadas, nunca resistem e se queimam inexplicavelmente. O sujeito

que quiser atingir o fundo da Furna, lugar onde o aguardará uma série de surpresas − inclusive,

possivelmente, o Carneiro de Ouro −, deve usar uma corda de grande extensão a fim de não se

perder no interior da caverna. Um grupo de amigos deve ficar na parte exterior segurando a corda, a

fim de puxá-la, em caso de necessidade. Além disso, na Furna habitam imensas quantidades de

morcegos e outras criaturas que se valem da escuridão, como os mal-assombros, cobras e onças −

sem falar que, à medida que o sujeito vai adentrando, a Furna vai se tornando cada vez mais

estreita, chegando ao ponto de o sujeito ter que se locomover arrastando-se.

Segundo Cascudo (1984: 199), o Carneiro de ouro é uma versão do Carneiro encantado. A

lenda do Carneiro encantado acontecera em Passagem de Santo Antônio, na divisa do Piauí com o

Maranhão, às margens no rio Parnaíba. Um monge missionário que voltava com um saco de

esmolas para o convento foi assassinado. Os ladrões assassinos, arrependidos do sacrilégio, trataram

de enterrar ali mesmo o monge junto a todo o dinheiro roubado. Neste local do enterro, é visto um

grande carneiro branco com uma estrela radiante na testa, sinal de que ali se encontra toda a

riqueza. Sá (1913) conta estória parecida, que se passa em Campo Maior, no Piauí, na Serra de São

Antônio, e que dá origem ao Carneiro de ouro. Um grande carneiro de ouro, todo vestido de luz e

com uma estrela na testa, tem-se apresentado a algumas pessoas, às vezes durante o dia, às vezes

durante a noite. Dizem que ele berra junto a uma enorme corrente de ferro, como que indicando que

naquele local existem grandes riquezas e grandes encantos. Mas, como uma só pessoa, ou mesmo

duas ou três, não são capazes de carregar o achado precioso, quem o vê volta à vila e reúne todo o

povo para buscar o velocino. Chegando, porém, ao lugar, não encontram mais sequer sinal da

corrente ou do carneiro. Dantas (s/d: 97-100) conta que, em Serra Talhada, Pernambuco, na Vila

Bela, existe um gruta em cuja entrada aparece um carneiro de ouro de brilho lusco-fusco. Dentro da

gruta, mora uma enorme e apavorante jibóia que não deve ser morta por se tratar de uma linda

princesa encantada. Para entrar na gruta, é preciso ter cuidado com os morcegos e com a jibóia (em

hipótese alguma matá-la). Além disso, é imprescindível levar consigo sete velas bentas por Padre

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Cícero. Essa versão é citada também por Melo (1930). Vê-se semelhanças entre essas versões com

aquela encontrada em Catingueira. Vide no CD Desenhos Temas Variados: desenho 5 G. 11. M O

carneiro de ouro.

GIA ENCANTADA DO OLHO D’ÁGUA: A Gia Encantada mora no Olho D’água, a fonte de

água potável que abastece a cidade (vide Capítulo Dois). Desde a canalização da água para as

residências, houve um decréscimo considerável do número de pessoas que bebem exclusivamente a

água do Olho D’água. Muitos preferem beber a água da torneira diretamente, tanto porque

consideram a água tratada e boa para a saúde, quanto pela praticidade. Buscar a água no Olho D’

água é, geralmente, tarefa feminina, feita com a ajuda de latas de tinta usadas transformadas em

latas d’água. O Olho D’água fica em área considerada afastada da cidade − apesar de que, hoje em

dia, há casas construídas até bem perto do mesmo. Gia é o nome popular dado às rãs no nordeste. A

Gia Encantada não aparece facilmente. O felizardo que escutá-la cantando ficará rico e, como

conseqüência, terá muita alegria. Sua tarefa é nunca deixar faltar água no Olho D´água. Diz-se que

se uma pessoa, embriagada pela ambição, conseguir capturá-la, a mina de água secará para sempre.

Algumas pessoas comentam que o mal-feito já deve ter ocorrido, uma vez que o Olho D´água, hoje

em dia, produz apenas um filete d´água. Porém, as pessoas também justificam a escassez da água

em função da extração industrial de minerais na região.

MARIA FULOZINHA: é uma mulher (espírito, alma) com cabelos de arame e um chicote nas

mãos, que mora na Serra de Catingueira. É na Serra também onde os caçadores encontram o seu

sustento: preá, tatu, mocó, dentre outros, são os animais mais encontrados. Acredita-se que, outrora,

a Serra estivesse repleta de onças e outros animais perigosos. Os caçadores utilizam-se de cachorros

treinados para ajudar nas caçadas. Durante estas, a Maria Fulozinha pode aparecer pedindo fumo.

Se o caçador negar-lhe o pedido, ela bate nos cachorros com seus cabelos de arame, podendo até

mesmo matá-los. A fim de evitar problemas, ao iniciar a caçada, os caçadores devem deixar o fumo

da Maria Fulozinha em cima de uma pedra. A Maria Fulozinha assemelha-se à Comadre

Fulozinha, uma cabocla encantada de grande cabeleira e olhos escuros que vive na zona da mata

pernambucana. A entidade serve-se de um chicote, tem os olhos pretos e é malvada e zombeteira.

Suas distrações são fazer trança na cauda dos cavalos e de gente, desorientar os caçadores com seus

assobios e, finalmente, surrar os cachorros que se encontram na mata. Ela gosta muito de fumo e

também de mel, e diz-se que protege a caça contra os caçadores. Além disso, ela tem o poder de se

transformar ora em mocinha, ora em animais, ora em um menino magro, e desaparecer sem deixar

rastro. Vide no CD Desenhos Temas Variados: desenho 11 - S. 12. F Maria Fulozinha.

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MULHER DE BRANCO: A Mulher de Branco assusta as meninas no banheiro feminino das

escolas. Curiosamente, ela fazia suas aparições no colégio onde eu estudava em Minas Gerais, e

também já foi vista nos colégios do Rio de Janeiro! Uma variação da mesma mulher é a Maria

Fumaça, que pode aparecer também no mesmo banheiro feminino quando as meninas apontam seus

lápis no vaso sanitário. No momento em que puxam a descarga, dá-se a aparição mal-assombrada

(T. 9. F. Livre). Outra variação da Mulher de Branco dá-se nas estradas. A assombração pede

carona e tenta seduzir o motorista. Como ela é muito bonita e está sempre bem arrumada, poucos

homens resistem aos seus encantos. Ao fim, ela pede para o motorista parar no cemitério ou em

algum lugar onde tenha ocorrido algum acidente fatal, dizendo que ali é a sua casa.

PAPA-FIGO e HOMEM DO SACO: O Papa-Figo, segundo os Catingueirenses, é um homem

doente. Para não morrer, ele precisa se alimentar de fígados de crianças − daí, o nome Figo. Ele

anda pelo mundo porque seria linchado se a sua identidade viesse a ser descoberta. É um homem

velho e maltrapilho, que aparece nas comunidades sozinho, não toma conhecimento de pessoa

alguma e permanece pouco tempo. Ele leva às costas um saco e, por isso, segundo Cascudo (1976

[1947]: 206-9), é confundido com o Homem do Saco. Este, em Catingueira, não é considerado

doente; apenas, mau. Ele também rapta as crianças e as deposita dentro do saco que leva às costas.

O que ele faz com as crianças pode variar desde comer, matar, abusar sexualmente, escravizar,

maltratar, criar como animal. Esses dois personagens também são encontrados em outras regiões,

mas com algumas variações. No Recife antigo, o Papa-Figo era um negro escravo que andava pelas

ruas da cidade aprisionando crianças em um saco que levava às costas para a degustação de seu

senhor, um ricaço que só podia se alimentar de fígado de crianças (FREYRE 1933: 368). Porém, a

versão mais divulgada diz que o Papa-Figo era um homem que matava e retirava o fígado das

crianças para vender aos leprosos ricos, que o comprava na esperança da cura de seu mal. Cascudo (

(1976 [1947]: 206-9) explica a lenda do Papa-Figo no livro Geografia dos Mitos Brasileiros. Para

ele, o “O Papa-Figo é o lobisomem da cidade. Não muda a forma. É um negro velho, sujo, vestindo

farrapos, com um saco ou sem ele, ocupando-se em raptar crianças para comer-lhes o fígado ou

vendê-los aos leprosos ricos. É alto e magro. Noutras regiões, é muito pálido, esquálido, com

barba sempre por fazer. Sai à noite, às tardes, ao crepúsculo” (1976: 206). Ele afirma, ainda, que

há evidências históricas que comprovam a existência de personagens semelhantes ao descritos

acima. “A existência do fato não pode ser negada. Em abril de 1938 foram presos em Natal dois

negros que iam levando crianças. Eram pretos de meia idade, doentes, palúdicos, visivelmente

dementados. A polícia expulsou-os. Outros fatos se repetiram no Ceará e Pernambuco. No interior

dos Estados corre a mesma estória, irradiando pavores idênticos” (1976: 206). Para Cascudo, a

associação da cura da lepra com o fígado, principalmente de criança, tem origem na tradição

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galênica, da qual os curandeiros são adeptos. Essa tradição concebe ao fígado predomínio quase

absoluto no organismo porque este órgão é o responsável pela formação e pela distribuição do

sangue por todo o corpo. Assim, ao fígado estaria reservada a regulação da saúde ou da

enfermidade, segundo os galenistas. Cascudo afirma que os pacientes de lepra constantemente

endereçam sua doença ao sangue, donde a associação do Papa-Figo aos leprosos. Além disso,

afirma ele, o banho de sangue humano e a degustação do fígado são remédios tradicionais na

terapêutica contra a lepra.

RASGA-MORTALHA: A Rasga-Mortalha é uma espécie de coruja de nome Tyto Alba

conhecida ainda como Suindara ou Coruja de Igreja. É um pássaro negro com o ventre branco que

anuncia morte preeminente ou mau agouro, quando sobrevoa uma residência. Para confirmar sua

predição, ela aparece no velório daquele a quem predisse a morte, a fim de acompanhar o enterro.

Alguns dizem que ela mora na Serra da Catingueira; outros, que ela mora no alto da igreja, perto do

sino. É o seu piar agudo que a associa ao mau agouro. Além disso, o bater de suas asas lembra

perfeitamente o ruído de uma tesoura cortando pano ou o rasgar de uma mortalha lutuosa. Daí a

denominação popular “rasga mortalha”. Vide no CD Desenhos Temas Variados: desenho 2 L. 6. F

(Livre) Rasga Mortalha e desenho 8 Y. 12. F Histórias da Serra. O ninho da Rasga Mortalha na

Igreja.

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Anexo 2:

CD:

1) Mapas.

2) Fotos.

3) Desenhos.

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1) MAPAS: Figura 1: Localização de Catingueira em relação ao mapa da Paraíba

Figura 2: Mapa do Estado da Paraíba.

Figura 3: Mapa Político do Brasil

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2) FOTOS Fo t o g r a f i a 1 : E u n ã o g o s t o d o meu n o me, p o r q u e el e é ma c o n h a . Fo i meu i r mã o q u e me d i s s e q u e L o l ó é ma c o n h a . E u g o s t o s ó q u e me c h a mem d e L u c é l i a . L u c é l i a n ã o é ma c o n h a . É s ó n o me. E u q u er i a r o d a r a b i c i c l et a , s er á q u e a Fl á v i a d ei x a ?

Fo t o g r a f i a 2 e 3 : E s t a mo s t o d o s s en t a d o s o u v i n d o u ma es t ó r i a . D ep o i s a g en t e v a i b r i n c a r d e p a s s a r a n el . C h i mb a é c u r i o s o , q u er s a b er o q u e a men i n a es t á c o men d o ... D o q u e s er á q u e eu es t o u r i n d o ?

Fo t o g r a f i a 4 e 5: E s t o u mo s t r a n d o p a r a v o c ê s o s meu s d es en h o s . H o j e eu d es en h ei a mi n h a f a mí l i a e mu i t a s c o i s a s . E u es t o u d e f é r i a s . N ã o t en h o n a d a p a r a f a z er p o r i s s o eu f i c o a q u i n a Fl á v i a . E s t o u n o mu r o d a c a s a d el a , d e v ez em q u a n d o a g en t e b r i n c a a q u i .

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ccxxxii Fo t o g r a f i a 6: M eu n o me é I n á c i o . E s s a é mi n h a p r i ma S a r a . E u n ã o g o s t o mu i t o d e d es en h a r , ma s S a r a a d o r a . E u g o s t o ma i s d e j o g a r b o l a e r o d a r a b i c i c l et a . E u a j u d o a Fl á v i a a t i r a r l a r a n j a d o p é .

Fo t o g r a f i a 7: A q u i es t á t o d o mu n d o mo s t r a n d o o s s eu s d es en h o s . E s s e é o mu r o d a c a s a d e Fl á v i a .

Fo t o g r a f i a 8 e 9: E s t a mo s d es en h a n d o n a c a s a d e Fl á v i a . E l a d á a s f o l h a s e o s l á p i s e a g en t e p o d e d es en h a r o q u e q u i s er . H o j e eu d es en h ei u ma c a s a , u m p é d e á r v o r e e u ma b o n eq u i n h a . É b o m d es en h a r . V o u p ed i r a mã i n h a p a r a me d ei x a r v o l t a r a ma n h ã . E u p o s s o v o l t a r a ma n h ã ?

Fo t o g r a f i a 1 0 e 1 1 : E s t e d i a f o i u m c a r r eg o ! P en s e! Fl á v i a d ei x o u a b r i r o s o f á . P u l a mo s t o d o mu n d o j u n t o f a z en d o mu i t a f es t a . A g en t e r i a e c o n t a v a p i a d a . T ev e a t é p i p o c a . Y a s mi m, f ec h a a b o c a !

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Fo t o g r a f i a 1 2 e 1 3 : E s t e d i a f o i mu i t o l eg a l ! S u b i mo s a S er r a d a C a t i n g u ei r a n a b a r r a d o d i a . A s men i n a s t r o u x er a m p ã o , b o l a c h a e r ef r i g er a n t e. A g en t e c o meu t u d o . D a q u i d e c i ma v o c ê t em a v i s t a ma i s b o n i t a d e C a t i n g u ei r a . A s p es s o a s p a r ec em u ma s f o r mi g u i n h a s e a g en t e s e d i v er t e t en t a n d o en c o n t r a r a n o s s a c a s a . C h eg a mo s a o a l t o d a s er r a d a C a t i n g u ei r a , a o s p é s d o C r u z ei r o d e S ã o S eb a s t i ã o . E s t a mo s s eg u i n d o p r a C a c h o ei r a d a M ã e L u z i a . S er á q u e o p o ç o es t á c h ei o ?

Fo t o g r a f i a 1 4: O b a ! T em á g u a ! N ã o t em n a d a mel h o r q u e d a r u n s t i b u m n o p o ç o d a M ã e L u z i a !

Fo t o g r a f i a 1 5: E s t a é a I g r ej a d e S ã o S eb a s t i ã o . A q u i a g en t e es t á n o c a t ec i s mo . A mi n h a mã e d i s s e q u e n o c a t ec i s mo a g en t e b r i n c a . Q u a n d o v a i s er a b r i n c a d ei r a ?

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Fo t o g r a f i a 1 6: A q u i es t a mo s n a es c o l a d es en h a n d o s o b r e o M a l -a s s o mb r o . E u j á v i u m ma l -a s s o mb r o p er t o d a C a p el i n h a d o V a q u ei r o q u a n d o eu i a p a r a o s í t i o ma i s o meu t i o .

Fo t o g r a f i a 1 7: E s t e é o t i me E n c a r n a d o d a G i n c a n a d a I n f â n c i a M i s s i o n á r i a . O s d o i s t i mes emp a t a r a m. E u a c h o q u e a g en t e g a n h o u e o s j u r a d o s f i c a r a m c o m p en a d o o u t r o t i me.

Fo t o g r a f i a 1 8: E s t e é o A ç u d e d o P r ef ei t o . N ã o s ei s e v o c ê c o n s eg u e v er , ma s o s men i n o s es t ã o j o g a n d o b o l a n o c a mp i n h o . E s t a é a h o r a ma i s b o n i t a d o d i a . O p ô r d o s o l mu d a a s c o r es d a mi n h a c i d a d e e p o r t r á s d a s er r a j á v em c h eg a n d o a l u a c h ei a . Fo t o g r a f i a 1 9: E s t e é p a i n h o . E l e es t á r a l a n d o o mi l h o v er d e p a r a f a z er mi n g u a u . E l e é t r a b a l h a d o r , n ã o es c o l h e s er v i ç o . E s t a f o t o f u i eu q u e t i r ei . P a i n h o n ã o q u er i a d ei x a r p o r q u e d i s s e q u e o p o v o i a ma n g a r d el e ( L ei d i a n e, 1 2 a n o s ) .

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3) DESENHOS A minha religião: Desenho 1 A minha religião A.7.M.13 Desenho 2 A minha religião D.9.M.8 Desenho 3 A minha religião I.6.M.4 Desenho 4 A minha religião L.7.M.15 Desenho 5 A minha religião AL.13.M.2 Desenho 6 A minha religião D.12.M.3 Desenho 7 A minha religião JC.10.M.13 Desenho 8 A minha religião MA.9.M.12 Desenho 9 A minha religião CF.10.M.8 Desenho 10 A minha religião F.7.M.4 Desenho 11 A minha religião JP.4.M.2 Desenho 12 A minha religião MN.10.F.14 O mal-assombrro: Desenho 1 O mal-assombro A.5.M.2 Desenho 2 O mal-assombro D.5.M.18 Desenho 3 O mal-assombro F.6.M.15 Desenho 4 O mal-assombro GF.8.F.11 Desenho 5 O mal-assombro J.6.M.11 Desenho 6 O mal-assombro K.5.F.26 Desenho 7 O mal-assombro LM.7.F.18 Desenho 8 O mal-assombro R.4.M.2 Desenho 9 O mal-assombro R.9.M.19 Desenho 10 O mal-assombro S.5.M.24 Desenho 11 O mal-assombro B.7.F.6 Desenho 12 O mal-assombro D.9.M.7 Desenho 13 O mal-assombro F.7.M.13 Desenho 14 O mal-assombro I.7.M.5 Desenho 15 O mal-assombro J.12.M.27 Desenho 16 O mal-assombro L.8.F.6

Desenho 17 O mal-assombro LR.7.F.9 Desenho 18 O mal-assombro R.5.F.8 Desenho 19 O mal-assombro RJ.11.M.14 Desenho 20 O mal-assombro CM.9.F.9 Desenho 21 O mal-assombro E.9.M.4 Desenho 22 O mal-assombro FF.7.M. 14 Desenho 23 O mal-assombro JC.10.M.13 Desenho 24 O mal-assombro JP.6.M.17 Desenho 25 O mal-assombro LF.7.M.16 Desenho 26 O mal-assombro MD.11.F.13 Desenho 27 O mal-assombro R.7.M.12 Temas Variados: Desenho 1 G.7.F Promessa para São Sebastião - subir a serra Desenho 2 L.6.F (Livre) Rasga Mortalha Desenho 3 R.12.F A serra de Catingueira Desenho 4 Y.12.F (Livre) Ela, amiga e pesquisadora Desenho 5 G.11.M O carneiro de ouro Desenho 6 L.12.F A serra da Catingueira Desenho 7 R.12.F Livre Desenho 8 Y.12.F Histórias da Serra. O ninho da Rasga Mortalha na Igreja Desenho 9 J.8.M Cidade de Catingueira Desenho 10 R.12.F (Livre) A serra do arco íris Desenho 11 S.12.F Maria Fulozinha Desenho 12 S.12.F. (Livre) Desenho 13 CFB.7.F. (Livre) Desenho 14 J.11.F. (Livre)

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