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Física Evolução, auto-organização, sistemas e caos 1

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Física

Evolução, auto-organização, sistemas e caos

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Sumário

ApresentaçãoA Física no século XX: A consciência ferida do cientista

Por Antônio Augusto Passos Videira ...................................................................................... 5

Física Quântica: Da sua pré-história à discussão sobre seu conteúdo essencialPor Paulo Henrique Dionísio................................................................................................. 11

As ‘digitais’ de Einstein encontram-se em todas as áreas da Física moderna, porém te-mos que ter cuidado com o charlatanismo

Entrevista com Carlos Alberto dos Santos ............................................................................. 30

A ciência contemporânea ainda funciona de acordo com o determinismo cartesianoEntrevista comm Alfredo Gontigo de Oliveira........................................................................ 36

Inteligência artificial e robóticaEntrevista com Farlei Jose Heinen ........................................................................................ 40

Um debate sobre o lugar do ser humano na imprevisibilidade imanente ao mundoMesa-redonda com Karen Gloy, Günther Küppers e Carlos Roberto Velho Cirne Lima ........ 42

“A simples relação de causa e efeito se tornou complexa”Entrevista com Günter Küppers ............................................................................................ 55

Natureza e liberdade – A Física atual em focoPor Armando Lopes de Oliveira ............................................................................................ 57

A imperiosa criação e recriação dos códigos de entendimento do universo e as revolu-ções causadas pela Teoria da Relatividade

Entrevista com Armando Lopes de Oliveira .......................................................................... 61

Teoria da Relatividade: uma leitura filosóficaEntrevista com Manfredo Araújo de Oliveira ......................................................................... 65

Por que as leis naturais são como são?Entrevista com Antônio Augusto Passos Videira .................................................................... 69

A lógica quântica e a transdisciplinaridade exigem a mudança de nossos hábitos mentaisEntrevista com Basarab Nicolescu ......................................................................................... 73

Dialética para entender a culturaEntrevista com Paulo Margutti............................................................................................... 79

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“É preciso combater a idéia de que há uma solução técnica e simples para qualquerproblema”

Entrevista com Thomas Michael Lewinsohn .......................................................................... 84

A Cosmologia está mudando a forma humana de pensarEntrevista com Mário Novello ............................................................................................... 87

A dimensão espiritual do cosmosEntrevista com Paul Schweitzer............................................................................................. 91

Filosofia, bioinformática e tecnoumanismoEntrevista com Timothy Lenoir ............................................................................................. 93

Há urgência de pensar uma nova ética globalEntrevista com Nelson Gonçalves Gomes.............................................................................. 97

O ensino de ciências está longe da formação de cidadãos conscientesEntrevista com Susana Lehrer de Souza Barros .................................................................... 100

Copenhagen: montagem paulista sobre a questão nuclear ................................................ 102

Mirada ao passado para fazer uma Terra habitávelPor Attico Chassot................................................................................................................. 103

Copenhagen: um desafio à inteligência e à sensibilidade ................................................... 106

Protagonistas de Copenhagen falam sobre a peça .............................................................. 107

Copérnico e Kepler. Como a Terra saiu do centro do universoEntrevista com Geraldo Monteiro Sigaud .............................................................................. 109

Da caricatura empirista a uma outra históriaEntrevista com Fernando Lang da Silveira ............................................................................ 112

Investigar fenômenos, utilizando abstrações matemáticasEntrevista com Ney Lemke ................................................................................................... 114

O “xeque-mate” da genialidade do jovem Einstein. Como separar o caráter quântico dateoria quântica que busca descrevê-lo

Entrevista com Enio Frota da Silveira.................................................................................... 116

O universo de EinsteinEntrevista com Horácio Alberto Dottori ................................................................................. 121

A onipresença transformadora dos princípios quânticos: desafios e possibilidadesEntrevista com Fernando Haas.............................................................................................. 123

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Apresentação

A Física no século XX: A consciência ferida do cientista

“Nenhum período da história foi mais penetrado pelasciências naturais nem mais dependente delas do que oséculo XX. Contudo, nenhum período, desde a retrata-ção de Galileu, se sentiu menos à vontade com elas.Este é o paradoxo que tem de enfrentar o historiadordo século.” (Eric Hobsbawn)

Este trabalho é composto das notas queapresentei numa oficina no Simpósio Interna-

cional Terra Habitável: um desafio para a

humanidade, promovido pelo Instituto Huma-nitas Unisinos (IHU). O meu objetivo inicial erapreparar uma exposição a respeito do desenvol-vimento teórico-experimental da Física ao longode todo o século XX. Imediatamente, percebi queeste objetivo era descabido, não apenas pelaimensa quantidade de informações a seremtransmitidas à assistência e num tempo muito re-duzido, mas também porque eu não abordariaalguns temas que dizem diretamente respeito àciência – em particular, à Física –, tais como, porexemplo, o desenvolvimento da bomba atômica.Ou seja, analisar a ciência apenas por meio deuma perspectiva que a compreende como umtipo específico de conhecimento não seria possí-vel e, talvez, recomendável para o colóquio emquestão. Com base nessa constatação, resolvi es-colher um outro tema, o qual considero comomuito importante para que possamos compreen-der a ciência e o seu lugar na sociedade durantetodo o século passado: a imagem que os físicosconstroem a respeito de si mesmos. Assim, eu es-tabeleci como objetivos desta oficina os seguintestópicos:

a) analisar as relações entre a Física e a socie-dade;

b) analisar o lugar na sociedade ocupado pe-los físicos segundo eles próprios;

c) responder às questões:• Como é que os físicos explicam a origem

dos nossos problemas atuais?• Quais são as soluções que eles propõem?• Qual é o papel que os físicos atribuem

aos leigos (os não-cientistas) nessesprocessos?

Evidentemente, eu não tinha a pretensão deesgotar o assunto que escolhi, certamente fasci-nante e relevante. A minha pretensão era maismodesta: defender a tese de que os físicos do sé-culo passado viveram uma crise vocacional sériaque começou logo após o final da Segunda Guer-ra Mundial. Não sei se esta crise já foi solucionada,mas creio, no entanto, que ela provocou uma pro-funda, e quiçá irreversível, mudança na auto-ima-gem que os físicos têm de si mesmos.

Como a minha participação no Simpósio

Internacional Terra Habitável: um desafio

para a humanidade aconteceu por meio deuma oficina, o que significava que a assistênciadeveria participar ativamente dela (o que, em mi-nha opinião, aconteceu), acho mais importante,como forma de registro, reproduzir as transparên-cias que projetei na ocasião.

Ainda que constitua uma obviedade, nãogostaria de deixar de registrar que o tema destecolóquio requer que saibamos de que modo a físi-ca poderá contribuir para manter a Terra um pla-neta habitável. Talvez algumas das soluções ne-cessárias e desejadas só possam ser obtidas casohaja mais ciência, e não menos ciência.

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Diferentemente do que afirma o historiadoringlês Eric Hobsbawn a respeito dos sentimentosque o século passado alimentou com relação àciência, o século XIX, de modo geral, observou atendência de enaltecê-lo e, basicamente, por duasrazões: 1) a ciência fornecia explicações sobre arealidade e 2) a ciência, mediante as aplicaçõestecnológicas que produzia, transformava a vidados seres humanos. Em outras palavras, talvez umpouco esquemáticas, para o século XX, a ciênciapassou a ser um problema, enquanto, para o sé-culo XIX, ela fora a fonte de soluções.

Um exemplo muito interessante da positivi-dade desfrutada pela ciência ao longo do séculoXIX encontra-se na defesa que um certo cientistafez da teoria darwiniana da evolução. Certa vez,no final do século XIX, o físico teórico austríacoLudwig Boltzmann (1844-1906) disse que, casoindagado sobre a melhor denominação paraaquele período, o chamaria de o século deDarwin:

Caso vocês indaguem por minha convicção mais ínti-ma se a nossa época ficará conhecida como o século doaço ou o século da eletricidade ou do vapor, contes-tar-lhes-ei, sem pestanejar, que ela será chamada de oséculo da concepção mecanicista da natureza: o séculode Darwin.

Ao afirmar isso, Boltzmann não estava privi-legiando outras importantes realizações, como otelefone, o aço, o telégrafo submarino, o trem avapor, entre outras, as quais já tinham repercutidona população, por considerá-las desnecessáriasou mesmo desinteressantes. Ao declarar sua pre-ferência por aquela teoria, Boltzmann pretendiadefender, não apenas a importância da teoria dar-winiana da evolução, o que, por si só, seria louvá-vel, mas também mostrar que a ciência desfrutavade uma posição central no seio da sociedade hu-mana, uma vez que, ao lado das aplicações tecno-lógicas que começavam a configurar o cotidianode milhões de homens e mulheres por todo omundo ocidental, a ciência, por meio daquela teo-ria, poderia, finalmente, tentar compreender a na-tureza do homem. O exemplo de Boltzmann nosmostra o elevado grau de generalização da opi-nião a respeito do progresso da ciência, a tal pon-to que temas, até então considerados impossíveis

para ela, como aquele que indagava pela naturezado homem, já podiam ser investigados por proce-dimentos científicos.

A opinião de Boltzmann a respeito da ciên-cia era favorável a esta última, tal como já tiveocasião de afirmar. Ao longo de todo o séculoXIX, a ciência construiu um consenso generaliza-do a respeito de suas capacidades referentes àcompreensão e à transformação do real. Ser civi-lizado passou a significar dispor de recursos hu-manos e materiais necessários para a prática daciência. Fazer ciência passou a ser fator de pro-gresso e parâmetro para avaliar os povos. A visãodo século XIX sobre a ciência foi otimista. Paramuitos homens do século XIX, a trajetória daciência seria sempre fadada ao sucesso. Com opassar do tempo, os temores e as críticas à ciên-cia desapareceriam.

Sob certos aspectos, o século XX pode sercaracterizado como o período da história huma-na no qual ocorreram alguns dos mais importan-tes eventos e transformações, envolvendo a ciên-cia. De atriz coadjuvante, papel que desempe-nhou ao longo do século XIX, a ciência passou,no século passado, à atriz principal. No entanto,isso não se fez sem que a sua imagem sofressemudanças. Se, por um lado, o século XX foi, sobmuitos aspectos, um período de tempo favorávelà ciência; por outro, e à medida que o século seaproximava de seu final, a ciência voltou a rece-ber uma série de críticas (epistemológicas, éticas,políticas, ambientais etc), as quais afetaram aimagem que tinha até então. A partir da segundametade do século XX, as pessoas que não pratica-vam a ciência, mas que viviam sob sua influênciadireta, começaram a nutrir sentimentos pessimis-tas com relação a ela. À ciência não mais era con-cedida – ao menos com a facilidade anterior – apossibilidade de configurar os destinos dos sereshumanos. A pergunta “para que fazer ciência?”,que parecia ser respondida facilmente até a déca-da de 1940, começou a ser exposta com mais fre-qüência e ênfase. A reposta “a ciência contribuíapara o progresso da humanidade” já não era maisentendida como óbvia ou a única resposta possí-vel. Propagou-se o sentimento de que a ciêncianão poderia ser promovida e sustentada sem que

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se soubesse o “preço” (isto é, as conseqüências)que tais promoção e apoio exigiam.

Começou-se a questionar a idéia, compreen-dida como evidente entre (em termos aproxima-dos) 1850 e 1950, de que a base da política seria aciência. O pressuposto fundamental para pensarque a política deveria ser elaborada com base na-quilo que a ciência permitia era a neutralidade daciência. Esse pressuposto foi afirmado, ainda quecom variações, a partir do século XVIII. No séculoXX, ele perdeu o seu ar de obviedade e, defen-dê-lo, passou a ser uma tarefa árdua. Como nãopoderia deixar de ser, os primeiros e mais aguerri-dos defensores da ciência foram os próprios cien-tistas. Ao longo de todo o século XX, os cientistastiveram que, publicamente, desempenhar uma ta-refa, a qual, é certo, já desempenhavam desdemuito tempo, ainda que de modo mais discreto,para a qual, pensava-se, eles não eram especial-mente habilitados: fazer política. As fronteiras, queos cientistas e os filósofos seus amigos procuraramcriar entre a ciência e o restante das produções in-telectuais e práticas humanas, foram, então, sub-metidas a duras críticas e rejeições. Para os críticose céticos, o século XX teria mostrado que a ciêncianão vivia num mundo à parte, no qual as regrasde atuação eram específicas e diferentes daquelasoutras presentes, por exemplo, nas sociedades. Omito da torre de marfim foi abandonado e, paramuitos, para sempre.

A conscientização dos físicos

A Segunda Guerra Mundial mostrou, demodo irrecusável, aos físicos que eles não maispoderiam acreditar na tese que a ciência seria neu-tra, isto é, que a ciência poderia ser justificada semque houvesse referência à política. Os físicos per-ceberam que não mais poderiam e deveriam per-mitir que os políticos falassem em seu nome. A de-claração abaixo de Max Born (1888-1970), físico

alemão que ganhou o prêmio Nobel de Física porsuas contribuições à Mecânica Quântica, é parti-cularmente interessante, pois mostra que a consci-entização dos físicos não ocorreu apenas no planoético, mas também no plano político:

Os físicos são conscientes de que, como conseqüênciade seus trabalhos, a humanidade se encontra em ummomento de decisão. Nisso baseia-se o seu sentimentode responsabilidade, que move muitos deles. [Eles]não querem ser puros peões, obedientes aos políticos,mas [querem], sim, tomar parte nas grandes decisões,no mínimo como assessores. Como conseqüência des-ta conscientização, em muitos países foram constituí-das associações, cujo objetivo é familiarizar os seusmembros com os problemas políticos, aconselhar osgovernos e obrigá-los a tomar decisões razoáveis.

Alguns eventos históricos com reper-cussões diretas sobre a Física

Os eventos abaixo, escolhidos arbitrariamen-te, têm por objetivo mostrar a presença da Físicana política, bem como o inverso. De certo modo,esta linha do tempo procura sugerir que ,no séculoXX, a história da Física é inseparável da históriapolítica.

1933 – Ascensão de Hitler ao poder, o queprovoca a demissão ou renúncia demuitos professores alemães judeus,ou de ascendência judia, de suascátedras.

1939 – Albert Einstein (1879-1955)1 enviacarta ao então presidente Franklin D.Roosevelt, assinada por ele, mas quenão é de sua autoria, chamando aatenção para o fato de que os ale-mães poderiam estar interessados emusar, para fins militares, a energia atô-mica. Início da 2ª Guerra Mundial.

1943 – Início do funcionamento de LosAlamos.

1945 – Lançamento de bombas atômicas so-bre o Japão.

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1 Albert Einstein (1879-1955): físico alemão naturalizado americano. Premiado com o Nobel de Física em 1921, é famoso por serautor das teorias Especial e da Relatividade e por suas idéias sobre a natureza corpuscular da luz. É provavelmente o físico maisconhecido do século XX. A revista IHU On-Line n. 135, de 4 abril. 2005, cujo título é Einstein 100 anos depois do Annus

Mirabilis. João Paulo II. Balanço e perspectivas, teve seu tema de capa dedicado a este importante físico. (Nota da IHU On-Line)

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1950 – Niels Bohr (1885-1962)2 envia àONU uma carta pública, na qual de-fende a idéia de que é preciso estabe-lecer colaboração internacional entreos países para evitar uma corrida ar-mamentista. Criação da NationalScience Foundation (EUA).

1954 – Robert Oppenheimer é acusado deatividades antipatrióticas.

1957 – Lançamento do Sputnik.1975 – Andrei Sakharov recebe o Prêmio

Nobel da Paz.

Efeitos da Segunda Guerra Mundial so-bre os físicos e a imagem que a socie-dade constrói da Física

a) Os físicos sofrem de uma crise vocacional,isto é, não sabem determinar qual é a suamotivação principal;

b) o público leigo começa a desconfiar daciência, que se mostra capaz de gerar efei-tos nocivos à sociedade.

A vocação do físico por ele mesmo

Até a Segunda Guerra Mundial, era muitocomum que os físicos afirmassem que a motiva-ção fundamental para se dedicarem à Física era odesejo de compreender o mundo, e não o de mo-dificá-lo. As palavras do físico norte-americano deorigem húngara, Eugene Wigner (1902-1995),são, sob esse aspecto, exemplares:

As atividades do cientista satisfazem não ao seu desejode influenciar o mundo em torno dele. (...) Eu acreditoque isso é verdade. (...) Sem a ciência moderna, nósnão teríamos rádio, televisão ... ou mísseis antibalísti-cos... tais efeitos são conseqüências das atividades doscientistas, e não motivações para elas.

O lugar do físico na sociedade

Wigner permanece na mesma linha de pen-samento quando afirma:

... eu acredito que ao menos aqueles cientistas, que sãomeus contemporâneos, mostram uma autêntica ten-dência para retirarem-se das batalhas que acontecemna nossa sociedade, mostram [também] uma certa in-clinação para o modo monástico de vida: essa é umacaracterística daqueles que escolheram a ciência comosua vocação.

Físicos e leigos

Uma das transformações mais importantesque ocorreram na passagem da primeira metadepara a segunda do século XX foi que as motiva-ções dos físicos passaram a ser muito semelhan-tes daquelas presentes entre os leigos. Até então,os físicos percebiam-se como pessoas diferentesnão apenas porque detinham um conhecimentotécnico, sofisticado e verdadeiro, mas tambémporque este conhecimento seria alcançado e ve-rificado por critérios apolíticos e epistemologica-mente específicos.

Uma vez mais, Wigner é preciso na formula-ção que apresenta dessa transformação:

Pode ser que eu seja antiquado quando espero que aspessoas escolham uma carreira na ciência sem que ali-mentem a expectativa de óbvias recompensas exter-nas.... (...) O cientista de hoje em dia é, em sua atitudepara com a vida, muito mais semelhante ao não-cien-tista do que era o cientista de trinta anos atrás.

No entanto, apesar das palavras acima de Wig-ner, as quais poderiam sugerir que o reconhecimen-to da semelhança entre cientistas e leigos teria leva-do os primeiros a abandonarem a sua atitude aristo-crática, isso não é corroborado pela percepção queoutros físicos têm de si mesmos e dos leigos, apon-tando para a existência de uma distinção funda-

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2 Niels Bohr (1885 - 1962): físico dinamarquês, que desenvolveu a teoria da natureza do átomo. O prêmio Nobel de Física queganhou em 1922 deve-se ao seu trabalho sobre estrutura e radiação atômica. Com a idade de 28 anos, Bohr publicou suateoria que explicava, por meio da Teoria Quântica de Max Planck, os problemas surgidos com a descoberta da radioatividade.No dia 17 de maio de 2005, durante o Simpósio Internacional Terra Habitável, foi apresentada a peça Copenhagen. Atrama do espetáculo remete-se a um misterioso encontro em 1941 entre Niels Bohr e Werner Heisenberg, alemão encarregadodo programa nuclear de Hitler. A montagem foi do Núcleo Arte Ciência no Palco, da Cooperativa Paulista de Teatro, com textode Michael Frayn. Os protagonistas da peça, Carlos Palma (Werner Heisenberg), Oswaldo Mendes (Niels Bohr) e SelmaLuchesi (Margarethe Bohr) foram entrevistados na edição 142ª da IHU On-Line, de 23/05/2005. (Nota da IHU On-Line)

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mental. A educação recebida pelos físicos seria res-ponsável pelo sentimento de diferença que eles sen-tem quando se comparam com os leigos. O mero re-conhecimento da existência de uma diferença entreos dois grupos não seria suficiente para que ambossoubessem como cooperar para a solução dos pro-blemas que afligem a sociedade contemporânea. Aespecificidade do conhecimento científico tornavaos cientistas presença obrigatória nos espaços desti-nados à elaboração, avaliação e aplicação das solu-ções imaginadas, tal como, penso eu, pode ser de-preendido das palavras de Victor Weisskopf(1908-2002), físico teórico de origem austríaca:

Nós não estamos argumentando que apenas aquelescom treinamento básico na ciência, o que excluiria osoutros [isto é, aqueles que não são cientistas], podemresolver os nossos problemas. Longe disso. (...) Elessão necessários, mas não suficientes.

O objetivo da ciência

Apesar de existir um certo reconhecimentopúblico de que as motivações dos cientistas não di-feririam muito daquelas presentes em outros profis-sionais, alguns físicos continuaram a declarar que oseu objetivo não era a aplicação, mas sim, a com-preensão. Weisskopf acreditava na continuidadeda crença que atribuía, em primeiro lugar, à especi-ficidade da ciência ao seu objetivo e, em segundolugar, ao modo pelo qual esse objetivo era efetiva-mente alcançado. “O principal objetivo da ciêncianão é a aplicação; é ganhar discernimento sobre ascausas e leis que governam os processos naturais.”

Tal caracterização do objetivo da ciência,como é bem conhecido, era importante, pois ga-rantiria a sua neutralidade, uma vez que faria comela permanecesse indiferente e protegida dos inte-resses humanos. Pode-se dizer que a já menciona-da crise de vocação, que atingiu parte dos cientis-tas, é explicada pela impossibilidade de se conti-nuar a aceitar essa tese.

Mas, afinal, o que deseja um físico?

A citação de Weisskopf, que continua a sus-tentar a tese de que a ciência é pura, entra emchoque com a declaração de Max Born:

As bombas de Hiroxima e Nagasáqui foram qualifica-das como pecado original da livre investigação. Todoscompreendem que já não é suficiente que o entendi-mento humano continue esforçando-se por descobrir,cada vez com mais profundidade, os segredos da natu-reza, se disso surgem meios de destruição cada vezmais poderosos.O homem deve utilizar a razão e, acima de tudo, per-guntar-se para quê. E, uma vez que apenas o especia-lista sabe do que se trata, somente ele sabe aquilo quepode ser feito, o efeito que se pode esperar; não sepode deixar que a resposta venha apenas dos políticos,dos homens de estado e, tampouco, dos teólogos, doshistoriadores, os quais pensam segundo os métodos rí-gidos e tradicionais da especulação. Exigimos ser es-

cutados. (Os negritos são meus)

As palavras de Born são interessantes, poisdefendem a idéia de que os físicos não podem dei-xar para outros – observe-se que os outros aquisão aqueles que, tradicionalmente, se preocupa-vam com o sentido – a preocupação com a per-gunta “para quê?”. O físico deveria reconhecerque passava por uma crise de vocação; caberia aele resolver este problema, o qual tem profundas egraves conseqüências para a sociedade. De todo,é fácil perceber que Born acreditava que o físicodesfrutava de um lugar especial. Aliás, esse “senti-mento” foi compartilhado por quase todos aque-les que pertenciam à sua geração. Até Wignermostrava-se saudoso de uma época na qual aciência era vista como algo nobre e superior, mes-mo que, talvez, ele tenha se mostrado como umdos mais ferozes críticos à tese da separação entrefísicos e leigos.“Nós, que somos generosamenteapoiados pela nossa sociedade, deveríamos mos-trar um sentido de humildade e gratidão, ao invésde [mostrar] desprezo para com o não-cientista.”

O que fazer?

Diante das transformações causadas pela Se-gunda Guerra Mundial no que diz respeito ao lugardo cientista na sociedade, à imagem que esta últimaformula da ciência, aos problemas que muitos dosresultados (teóricos e aplicados) da ciência provo-cam, como resolver as questões não-científicas quepreocupam os cientistas? Em geral, os físicos pensa-vam ser necessário modificar o seu comportamento,principalmente acerca do seu relacionamento coma sociedade, mas não a ponto de perderem o lugar

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especial que ocupavam, uma vez que isso poderia,por exemplo, implicar a perda, ou a diminuição,dos recursos financeiros destinados à ciência. Poroutro lado, os valores antigos, aos quais se recorreudurante um longo período para justificar a ciência,eram vistos como sofrendo um processo de desgas-te irreversível, como afirma Weisskopf: “Este é umfenômeno novo e perturbador para a espécie hu-mana: as experiências da geração mais antiga nãosão mais úteis como um dia o foram na lida com osproblemas atuais.”

No entanto, não é fácil defender o abandonoda relevância e da utilidade da tradição, dado queesta última é uma das fontes que temos à nossadisposição para formularmos repostas para o“para quê?”. Em outros termos, muito daquiloque compreendemos como sentido é herdado pormeio das tradições que nos constituem. Todavia,não creio que Weisskopf estivesse defendendo,pura e simplesmente, o desaparecimento da tradi-ção. Sua posição parece ser a de mostrar que astradições têm limites sérios.

Quanto a mim, a declaração de Weisskopfaponta para o reconhecimento de um limite heu-rístico da tradição. Se isso for correto, os novosproblemas exigiriam criatividade para poderemser resolvidos. Apesar de os físicos terem tentadoencontrar tais soluções, as quais pressupunham amanutenção e o fortalecimento do diálogo entregrupos que defendiam visões distintas, eles nãoconseguiram implementar, ao menos no grau emque desejavam, as suas posições. Todo o impres-sionante desenvolvimento da Física no século XXnão foi suficiente para mostrar a importância de osseres valorizarem a diferença, como constatadoem 2000 pelo físico norte-americano de origemhúngara, Edward Teller (1908-2003):

Ao final de 2000, ele [Teller] e um de nós [MichaelMay] estávamos esperando por uma cerimônia fúnebreem homenagem a um colega de muito tempo. Enquan-to aguardávamos pelo início da cerimônia, ele me per-guntou quais seriam, para mim, as três mais importan-tes conquistas do século XX. Seus candidatos eram ahabilidade de rapidamente ir de um lugar para outro, ade se comunicar, à velocidade da luz, com praticamen-te toda e qualquer pessoa e a de destruir eficientementetodos nós. Ele, então, me disse qual seria a coisa maisimportante a ser conseguida no novo século. Isso seria,ele afirmou, aprender a conviver um com o outro.

Antônio Augusto Passos Videira3

Referências bibliográficas

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WIGNER, Eugene P. The Scientist and Society. In: From a

life of physics, Evening lectures at the International Center for

Theoretical Physics, Trieste, Italy. A special supplement of theIAEA Bulletin, Printed by the IAEA in Áustria, s.d., p. 49-56.

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3 Antonio Augusto Passos Videira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ), coordenador do grupo de trabalho em Filosofia da Ciência da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia(Anpof) e secretário adjunto da Anpof e secretário da Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC).

Videira é doutor em Filosofia pela Université de Paris VII e fez pós-doutorado nas Universidades de Évora, em Portugal, naUnicamp, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade Federal de Santa Maria. Publicou vários artigos em revistasnacionais e estrangeiras e o livro Henrique Morize e o ideal de ciência pura na República Velha. Rio de Janeiro: FGVEditora, 2003. Além disso, organizou várias obras, entre as quais citamos: Einstein e o Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1995; O que é vida? Para entender a biologia do século XXI. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; Temas de

Filosofia da Natureza. Rio de Janeiro: UERJ, 2004.

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Física Quântica:

Da sua pré-história à discussão sobre o seu conteúdo essencial

Por Paulo Henrique Dionísio

Paulo Henrique Dionísio é doutor em Física

pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS).

Introdução

A Física Quântica desperta, em muitas pes-soas, interesses variados. Nascida com o séculoXX, bastaram algumas décadas para que influen-ciasse, decisivamente, a vida de todos nós, poisdeu sustentação teórica à estonteante revoluçãotecnológica, ocorrida, principalmente, a partir dosanos 1950. Concomitantemente, exigiu dos físi-cos profundas alterações em sua maneira de des-crever os fenômenos naturais, em sua forma decompreender e explicar a natureza. Na verdade,não houve consenso. Ficaram famosas as discus-sões entre Einstein e Niels Bohr, centradas, princi-palmente, na questão do caráter probabilístico danova teoria em oposição ao determinismo da Físi-ca Clássica e na interpretação de alguns aspectosdo formalismo matemático utilizado. E as discus-sões perduram, apesar da sofisticação dos novos

experimentos que o próprio desenvolvimento tec-nológico viabiliza, realizados com o fim específicode tentar elucidar as questões pendentes. Dualida-de onda-partícula, princípio da incerteza, gato deSchrödinger4, colapso da função de onda, açãoda consciência do observador sobre o estado dosistema... Expressões como essas respingam noleigo em Física, que fica entre curioso e perple-xo, às vezes, esperançoso, no mais das vezes, in-diferente. Mas afinal, o que é mesmo a FísicaQuântica?

Em uma tentativa de interpretar os novos pa-radigmas nascidos com a Física Quântica, NielsBohr formulou o seu “princípio da complementari-dade”, segundo o qual os sistemas quânticos po-dem se apresentar sob dois aspectos aparentemen-te incompatíveis e mutuamente exclusivos. Quan-do um dos aspectos é aparente, o outro fica ocultoe vice-versa, como uma moeda que nos volta ape-nas uma face de cada vez. Em um (nada aconse-lhável, advirto!) exercício de generalização, háquem proponha pares de conceitos complementa-res (conceitos que não podem ser esclarecidos si-multaneamente) ou de condições complementares

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4 Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger (1887-1961): físico austríaco, um dos pais da Teoria Quântica. O “gato quântico”de Schrödinger é uma experiência imaginária na qual “o gato imaginário do físico (um objeto macroscópico) é fechado numacaixa, contendo um recipiente de cianureto e um átomo radioativo (objeto microscópico). O átomo está em estadometaestável, ou seja, seu núcleo tem 50% de chance de romper-se. Se isso acontecer, o recipiente quebra, o cianureto éliberado e o gato morre. Se ele continuar no estado metaestável, o recipiente não racha, e o gato continua vivo. O estadoquântico é uma superposição dessas duas possibilidades. Enquanto a caixa não for aberta, o gato está vivo e morto (o que édiferente de estar vivo ou morto, que seria a explicação da Física Clássica). Só ao abrir a caixa, define-se a potencialidade deum dos resultados. É o ato de mensuração que resolve as potencialidades quânticas.” (Nota do IHU On-Line, extraída doartigo Estudo concilia “vida” e “morte” de partícula, escrito por Alexandra Ozorio de Almeida, publicado no jornal Folha de S.

Paulo, em 29-10-2000, reproduzido em http://www.nuclear.radiologia.nom.br/politica/outubr00/291000.htm#6. O professorPaulo Henrique Dionísio aborda esse tema no Cadernos IHU Idéias n. 22. Ele trata de Schrödinger nas páginas 18-23 (Notada IHU On-Line).

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(condições que não podem ser satisfeitas simulta-neamente). Certa vez, em uma entrevista, alguémperguntou a Bohr5: “O que é complementar à ver-dade?” Ao que ele respondeu: “A clareza.”

Este texto é uma tentativa de desmentir oprincípio da complementaridade, ao menos noque diz respeito ao par verdade x clareza. O autorpretende ser “verdadeiro”, ao responder a ques-tão o que é a física quântica, fazendo-o de manei-ra fidedigna, precisa e clara. Esforça-se, ao mes-mo tempo, por ser acessível aos não-físicos e man-ter-se adequado ao ambiente acadêmico. Paratanto, será necessário falarmos não apenas “so-bre” a Física, mas também “de” Física. Trata-se,sem dúvida, de um propósito ambicioso. Seueventual sucesso será creditado, principalmente àdisposição e ao empenho de quem lê.

E, ao falar de Física, não se poderá evitar ouso de alguns recursos de linguagem que são pró-prios a essa disciplina, como a representação desituações por meio de figuras, a referência a gran-dezas físicas por meio de símbolos e algumasequações. Isso se fará, na medida do possível, demaneira acessível a quem não está habituado aesta linguagem. Afinal, vencer o aparente obstá-culo, representado por uma linguagem a que nãose está habituado, é um desafio intelectual fre-qüentemente enfrentado na vida acadêmica. Sal-tar alguns trechos mais técnicos talvez não preju-dique de todo o entendimento do que vem depois.Podemos, também, tentar ler de trás para diante,seção por seção, a partir da conclusão. O resulta-do pode ser surpreendente!

1. A Física ao final do Século XIX e osgermens da transformação

Por volta de 1880, a Física alcançou um está-gio de desenvolvimento que parecia não apenasdifícil, mas até mesmo desnecessário superar. Os

trabalhos de Maxwell sobre os campos eletromag-néticos vieram completar o arcabouço teórico quese iniciara com a mecânica de Newton e que pare-cia, agora, capaz de abarcar a totalidade dos fenô-menos físicos. Aos físicos, restava, então, medir,com maior precisão, os valores das constantes físi-cas fundamentais e trabalhar na implementaçãode aplicações para tantos conhecimentos acumu-lados. Havia, é verdade, uma pequena inconsis-tência teórica a ser resolvida e alguns poucos fe-nômenos ainda não satisfatoriamente equaciona-dos, mas tudo parecia ser apenas uma questão detempo.

A pequena inconsistência teórica era a as-sim chamada não-invariância das equações deMaxwell; sua solução resultou, nada mais nadamenos, do que no surgimento da Teoria da Rela-tividade6, uma verdadeira mudança de paradig-ma na Física. Já os fenômenos não satisfatoria-mente explicados eram a radiação de cavidade,os espectros de raias e o efeito fotoelétrico, aosquais, mais tarde, vieram juntar-se as descober-tas com tubos de raios catódicos e a radioativida-de. O enquadramento teórico desses fenômenosimplicou outra revolução conceitual, que resul-tou na Física Quântica. Assim surgiram a Teoriada Relatividade e a Física Quântica, os dois pila-res da física contemporânea.

2. A radiação de cavidade

Foi o estudo da chamada radiação de cavi-dade que desencadeou o processo de desenvolvi-mento da Física Quântica. Sabemos, há muitotempo, que um objeto suficientemente aquecidoirradia luz, torna-se incandescente (por exemplo,um ferro em brasa na forja do ferreiro ou o fila-mento de uma lâmpada incandescente). Sabemostambém que a coloração da luminosidade irradia-da depende da temperatura: à medida que o obje-

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5 Conforme PIZA, A. F. R. de Toledo. Schrödinger, Emaranhado e Decoerência. In: HUSSEIN, Mahir; SALINAS Sílvio (org.). 100

anos de física quântica. São Paulo: Livraria da Física, 2001, p.14.6 A Teoria da Relatividade, que reformulou a concepção da gravidade, foi criada por Albert Einstein. Ela foi abordada nas

revistas IHU On-Line, n. 130, de 28 fev. 2005, que recebeu o título Einstein: 100 anos depois do Annus Mirabilis. João Paulo

II. Balanço e perspectivas, dedicado a Einstein, e n. 141, de 16 de maio de 2005, que levou o título Terra habitável: um desafio

para a humanidade. (Nota da IHU On-Line)

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to esquenta, sua cor passa de um vermelho fosco aum vermelho vivo, a um alaranjado, depois amare-lo, branco e, finalmente, azulado. Estudando emdetalhe este fenômeno, verificou-se que a colora-ção não depende do material, tamanho ou formatodo objeto, mas apenas da temperatura em que elese encontra. Os físicos, no entanto, preferiram estu-dar a luz emitida por uma cavidade feita no objeto,e não por suas paredes externas, daí o nome “radia-ção de cavidade”. Este mesmo fenômeno é tam-bém conhecido como “radiação de corpo negro”,por razões que não cabe aqui esclarecer.

Em termos técnicos, é mais adequado carac-terizar a luz emitida por um objeto aquecido, espe-cificando-se não a sua cor, mas a freqüência dasondas luminosas. Dizermos que um objeto ostentaum brilho alaranjado, por exemplo, é uma afirma-ção vaga e subjetiva. Os físicos, mediante o uso deequipamentos adequados e muita dedicação, po-dem oferecer uma descrição muito mais precisa,objetiva e abrangente. A luz emitida pelo objeto éapenas uma pequena porção da energia por ele ir-radiada na forma de ondas eletromagnéticas, cor-respondente a uma pequena gama de valores defreqüências. Além da radiação eletromagnéticaque vemos, e à qual denominamos “luz”, o objeto(ou a cavidade feita nele) emite também ondaseletromagnéticas de outras freqüências, que se es-tendem em um continuum desde valores muitopequenos até valores muito grandes. As ondas defreqüência numa faixa imediatamente inferior àda luz constituem a chamada radiação infraver-melha, ou ondas de calor; as de freqüência numafaixa imediatamente superior são a chamada ra-diação ultravioleta. A caracterização do fenôme-no completou-se de maneira satisfatória, do pontode vista experimental, mediante a determinaçãoprecisa da quantidade de energia eletromagnéticaemitida em cada freqüência, de tal modo que osresultados puderam ser representados em um grá-fico e descritos por meio de uma relação matemá-tica. Em outras palavras, obteve-se uma “fórmulaempírica” (isto é, obtida da experiência), que per-mite calcular a quantidade de energia emitida auma dada freqüência por uma cavidade em umobjeto aquecido a uma dada temperatura.

A descrição detalhada do fenômeno encon-trou logo uma importante aplicação tecnológica.Com base nela, desenvolveu-se o “pirômetro óti-co”, um instrumento que permite medir à distân-cia a temperatura de um objeto, como, por exem-plo, o interior de um forno em uma siderúrgica ouuma estrela. Mas, para a Física, isso não basta.Precisamos compreender o fenômeno, descreverseus mecanismos, explicar seus princípios gerais,enquadrá-lo em uma teoria o mais abrangentepossível.

A tentativa de enquadramento teórico do fe-nômeno incluía considerar-se a existência de ra-diadores elementares nas paredes da cavidade,que seriam sistemas oscilantes dotados de cargaelétrica. De acordo com a Teoria Eletromagnética,tais osciladores com carga elétrica, uma vez agita-dos termicamente, devido ao aquecimento do ob-jeto, seriam emissores de radiação, mas poderiamtambém absorver radiação que, porventura, sobreeles incidisse, estabelecendo-se, então, um equilí-brio entre emissão e absorção dentro da cavidade.Os cálculos baseados em tal modelo teórico, noentanto, não conseguiam reproduzir os resultadosexperimentais, uma vez que previam a emissão deuma quantidade infinita de energia nas freqüênci-as mais altas, o que, evidentemente, não podiacorresponder à realidade. Como esta discrepânciaocorria na faixa do espectro eletromagnético de-nominada de “região ultravioleta”, convencio-nou-se chamar esta embaraçosa dificuldade de“catástrofe do ultravioleta”.

3. A solução proposta por Planck

Em dezembro de 1900, Max Planck ofereceuao mundo uma solução para a catástrofe do ultra-violeta. Era o nascimento oficial da Física Quânti-ca. A solução, no entanto, era ainda mais embara-çosa do que a dificuldade que viera superar.

A solução proposta por Planck consistia emestabelecer uma séria limitação ao movimentodos osciladores elementares. Segundo ele, um os-cilador não poderia vibrar com qualquer energia,mas apenas com algumas poucas energias permi-tidas, cujos valores seriam múltiplos inteiros de

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um valor mínimo fundamental, denominado oquantum de energia do oscilador. Este mínimofundamental seria determinado pela freqüêncianatural de oscilação do oscilador. Em linguagemmatemática, se a letra f representa a freqüência dooscilador (ou seja, o número de oscilações que rea-liza por segundo), o quantum de energia valeráhxf (ou simplesmente hf), onde h é um número,uma constante universal, denominada “constantede Planck”. Tomando-se a letra n para represen-tar um número inteiro qualquer (n pode assumirvalores como 0, 1, 2, 3 etc.), a proposta de Planckestabelece que os osciladores elementares só po-dem vibrar com energias tais que:

E = nxhf (ou, simplesmente, E = nhf) (equação 1).

Resumindo, um oscilador elementar cuja fre-qüência natural de oscilação seja f somente pode-rá oscilar com energias zero, 1xhf, 2xhf, 3xhf eassim por diante. Em linguagem matemática,Planck “postulou”7 que a energia dos osciladoresé uma variável “discreta”. Na Matemática, a pala-vra “discreta” é um antônimo para “contínua”.Ou, como passou a dizer-se, então, a energia dososciladores é uma grandeza “quantizada”. Refa-zendo os cálculos, agora submetendo os oscilado-res elementares a esta restrição, Planck deduziu,com base em princípios teóricos, a mesma fórmu-la empírica extraída dos dados experimentais. Aisso os físicos chamam de “explicar o fenômeno”.

A seguir, utilizando-nos de um exemplo sim-ples, tentaremos esclarecer o significado destaproposta e a razão dos embaraços que criou.

4. O movimento de um pêndulo segun-do Planck

“Pêndulo” é a denominação genérica parasistemas constituídos por um objeto suspenso queoscila sob a ação da gravidade. Por exemplo, o fiode prumo de um pedreiro ou um balanço em umparque infantil.

A figura 1 mostra um pêndulo oscilando atéuma altura A acima da posição inferior de sua tra-jetória. Por conveniência, chamaremos a altura A

de “amplitude de oscilação”. Designaremos amassa do objeto suspenso por M, o comprimentodo fio por C e a freqüência de oscilação por f.

Quem já andou de balanço sabe que, quantomais longas as cordas que o suspendem, mais len-tas e suaves são as suas oscilações, ou seja, menoré a sua freqüência. Se o comprimento do pêndulofor medido em metros e a freqüência, em oscila-ções por segundo, esta afirmativa pode ser tradu-zida na relação matemática

f =1 / 2C (equação 2).

Em geral, a freqüência é menor do que um.Por exemplo, se f = ½, significa que o pêndulo reali-za meia oscilação em um segundo, ou seja, leva doissegundos para realizar uma oscilação completa.

Já a amplitude de oscilação A (“altura”) de-pende da energia E que se fornece ao pêndulopara oscilar e do peso P do objeto suspenso. Quan-to maior a energia, maior a altura; quanto maior opeso, menor a altura:

A = E/P (equação 3).

O movimento de um pêndulo é perfeitamen-te compreendido no contexto da Física Clássica, e

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A

M

C

Figura 1 – Um pêndulo de massa M e comprimento C, osci-lando até uma altura A.

7 Segundo o dicionário Houaiss, um postulado é “o que se considera como fato reconhecido e ponto de partida, implícito ouexplícito, de uma argumentação; premissa”. Ou ainda, “afirmação ou fato admitido sem necessidade de demonstração”.

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as relações acima podem ser deduzidas das leis deNewton. Vejamos, no entanto, a conseqüência deadmitirmos como correta a hipótese de Planck so-bre a quantização da energia. Submetendo-se aenergia de oscilação E à condição de ser quantiza-da, a amplitude de oscilação A também o será,pois uma depende da outra, conforme mostra aequação 3. Substituindo-se, na equação 3, a con-dição de quantização de Planck E = nhf (equação1), obtemos:

A EP

nhfP

n hfP

= = = × (equação 4).

A equação 4 mostra que existe um quantum

de amplitude de oscilação hf/P, de modo que aamplitude de oscilação A do pêndulo somente po-derá assumir valores que sejam múltiplos inteirosdele.

Em termos práticos, se alguém for embalaruma criança em um balanço cujo quantum de am-plitude seja, por exemplo, 30 cm, deverá ajustar oimpulso dado para que a altura atingida seja exa-tamente ou 30 cm, ou 60 cm, ou 90 cm, ou 120cm e assim por diante. Se tentar imprimir ao ba-lanço uma oscilação a uma altura proibida, (100cm, por exemplo), o balanço “simplesmente se re-cusará a mover-se” e a pessoa receberá seu impul-so de volta, sendo jogada para trás. Ora, nenhumbalanço, nem o pêndulo de um relógio, nem qual-quer oscilador físico que conheçamos funciona as-sim. Como, então, aceitar a hipótese de Planck,segundo a qual os osciladores elementares nas pa-redes da cavidade funcionariam assim?

Planck inaugurou uma era de perplexidadeno mundo da Física. Por um lado, logrou construiruma teoria capaz de explicar, em todos os detalhes,o fenômeno que se propunha, capaz de descreveradequadamente o comportamento do sistema físi-co em estudo. Mas, por outro lado, deixou-nos naembaraçosa situação de termos que aceitar comoverdadeira uma hipótese inteiramente contráriaaos fatos, ao senso comum e à própria Física Clás-sica. Nas palavras do próprio Planck, “tratou-se

de uma hipótese puramente formal, e não refletimuito sobre ela, mas apenas sobre o fato de que,sob quaisquer circunstâncias, custasse o que cus-tasse, um resultado positivo tinha de ser obtido”8.A partir deste primeiro episódio um tanto acacha-pante, outros semelhantes seguiram-se, envolven-do outros fenômenos e outros pesquisadores. AFísica Quântica avançou, tornou-se uma teoriaconsistente e abrangente, ofereceu uma descriçãoadequada dos fenômenos em escala atômica e su-batômica, o que pode ser comprovado pelo suces-so da tecnologia à qual deu sustentação. A cadapasso, porém, constrangeu os físicos a admitiremmais uma hipótese aparentemente absurda, con-trária ao senso comum e, principalmente, incom-patível com a já consagrada Física Clássica.

5. Uma digressão sobre númerospequenos

Antes de prosseguirmos no relato dos episó-dios que se seguiram ao feito de Planck, é forçosoaprofundar um pouco a discussão a respeito dacontradição entre a sua maneira de descrever a di-nâmica dos osciladores físicos e a descrição conti-da na mecânica newtoniana. Para tanto, devemoslevar em conta o valor da constante de Planck h,valor por ele obtido mediante o simples ajuste nu-mérico entre o seu cálculo teórico e os dados ex-perimentais. A constante de Planck vale

h = 6,63×10-34 J × s (equação 5),

onde s é o símbolo para segundo, nossa conheci-da unidade de medida de tempo, e J é o símbolopara joule, uma unidade de medida de energia.

A presença do fator 10-34 indica que o valornumérico de h é extremamente pequeno. Tendoem vista a provável pouca familiaridade de algunsleitores com este tipo de notação, procuraremosesclarecer o seu significado por meio de um exem-plo, qual seja, o das unidades de medida decomprimento.

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8 Conforme FLEMING, Henrique. Max Planck e a Idéia do Quantum de Energia. In: HUSSEIN, Mahir; SALINAS, Sílvio (org.). 100

anos de física quântica. São Paulo: Livraria da Física, 2001, p.10.

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Um milímetro vale um milésimo de um me-tro, isto é, o milímetro é obtido dividindo-se o me-tro em mil partes. Em linguagem matemática, es-crevemos que 1 mm vale 0,001 m. Mas, dividirpor mil é o mesmo que dividir três vezes sucessivaspor dez. Esta última afirmativa é mais bem expres-sa em linguagem matemática pelo enunciado “1mm vale 10-3 m”. Nesta notação, o sinal – no ex-poente da base 10 indica divisão por dez e o nú-mero 3 indica três divisões sucessivas. Essa manei-ra de escrever é geralmente referida como “nota-ção científica”. Costumamos, também, dizer queo milímetro é três “ordens de grandeza” menor doque o metro. Para ter uma idéia do que significaisso na prática, tome uma trena e compare umadivisão de um milímetro com o comprimento deum metro. Assim, se quisermos, por exemplo, ex-pressar o comprimento de 5 milímetros em me-tros, podemos escrever

5 mm = 0,005 m ou 5 mm = 5x10-3 m.

Um metro é um milésimo de um quilômetro,ou seja, para obtermos um metro a partir de umquilômetro, devemos dividir este por mil, ou trêsvezes sucessivas por dez. Então, para obtermosum milímetro a partir de um quilômetro, este de-verá ser dividido primeiro por mil para obtermosum metro e, em seguida, novamente por mil paraobtermos o milímetro. Um milímetro é, então, seisordens de grandeza menor do que um quilômetro,e isso é o mesmo que dizer que um milímetro é amilionésima parte de um quilômetro. Assim, porexemplo,

5 mm = 0,005 m = 0,000 005 kmou

5 mm = 5x10-3 m = 5x10-6 km.

Observe que a notação científica economizazeros e espaço.

A espessura de uma folha de papel é cerca de10 mícrons. Um mícron (símbolo:£) é a milésimaparte de um milímetro. Então, se quisermos ex-pressar a espessura de uma folha de papel em qui-lômetros, teremos 10£ = 0,000 000 01 km ou10£= 10-8 km. Já o raio de um átomo vale justa-mente cerca de 10-8 centímetros. Ou seja, a pro-porção entre o tamanho de um átomo e um centí-

metro é a mesma que entre a espessura de umafolha de papel e um quilômetro. O raio do núcleoé da ordem de 10-15 metros: quinze ordens degrandeza separam nosso mundo do mundo suba-tômico! Hoje, podemos “ver” um átomo por meiode um microscópio eletrônico de tunelamento(outra conquista da Física Quântica), mas nãoexiste instrumento que permita igual façanha noque diz respeito ao núcleo.

6. O pêndulo segundo Planck ´ o pên-dulo segundo Newton

A constante de Planck, cujo valor foi apre-sentado antes, é expressa em termos das grande-zas físicas energia e tempo, sendo a energia medi-da em joules (símbolo: J) e o tempo medido emsegundos (símbolo: s). Uma duração de um se-gundo é fácil de estimar; esclareçamos, então, oque representa uma energia de um joule:

um joule é a energia necessária para elevar-seum objeto de 100 gramas a um metro do solo.

Na constante de Planck, aparece o fator10-34. Vamos distribuir arbitrariamente essas trintae quatro ordens de grandeza igualmente entre aenergia e o tempo, de modo a concluir que, grossomodo, a constante de Planck refere-se a fenôme-nos cuja duração é da ordem de 10-17 segundos eenvolvem energias da ordem de 10-17 joules. Ouseja, refere-se a fenômenos de duração dezesseteordens de grandeza menor do que um segundo,envolvendo energias dezessete ordens de grande-za menor do que a energia gasta por alguém paraapanhar um objeto de cem gramas do solo e de-positá-lo sobre uma mesa. Lembremos que o nú-cleo atômico é quinze ordens de grandeza menordo que um metro. Logo, mesmo sendo verdadeiraa hipótese de Planck sobre a quantização dos osci-ladores físicos, ela não deve afetar significativa-mente os sistemas macroscópicos, cujas dimen-sões são aquelas a que estamos habituados.

Um exemplo prático esclarecerá a última afir-mação acima. Seja um pêndulo feito com um ob-jeto de 100 gramas suspenso por um fio de 8m,oscilando até a altura de 1m. A energia envolvida

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na oscilação é exatamente um joule, conforme adefinição de joule apresentada acima. A freqüên-cia, calculada pela equação 2, vale um quarto deoscilação por segundo, o que vale dizer que o pên-dulo leva quatro segundos para realizar uma osci-lação completa. O quantum de amplitude de osci-lação, calculado pela equação 4, resulta igual a1,66?10-34 m. Isso é dezenove ordens de grandezamenor do que um núcleo atômico, que, por suavez, é quinze ordens de grandeza menor do queum metro. Ora, se não nos é possível ver o núcleo,com mais razão ainda não poderemos percebervariações dessa ordem de grandeza na amplitudede oscilação do pêndulo, seja qual for o meio deobservação ou instrumento de medida de quepossamos dispor. Isso equivale a dizer que, parafins práticos, o discreto confunde-se com o contí-nuo e tanto faz considerar-se a amplitude de oscila-ção do pêndulo uma grandeza contínua à maneirade Newton ou quantizada à maneira de Planck.

Mas, quando voltamos nossa atenção para omundo microscópico9, a situação é outra. Porexemplo, a energia envolvida na interação de umelétron com um núcleo atômico é da ordem de10-19 J e os seus quanta, ou seja, o valor das varia-ções que lhe são permitidas, são desta mesma or-dem de grandeza. Então, quando se acresce ousubtrai um único quantum à energia do sistema,ela varia apreciavelmente, de modo que seu cará-ter quântico fica evidente (veja o funcionamentode um pêndulo cujo quantum de energia é com-parável à sua energia total no segundo parágrafoabaixo da equação 4). Em outras palavras, os efei-tos quânticos dominam o comportamento do sis-tema. Como veremos adiante, esta foi a explica-ção encontrada por Niels Bohr para os chamadosespectros de raias, mencionados anteriormentecomo um dos fenômenos não passíveis de enten-dimento no contexto da Física Clássica.

Os exemplos acima mostram que a descriçãoquântica é adequada tanto ao mundo macroscó-pico quanto ao mundo microscópico. Mas, no quediz respeito ao comportamento dinâmico dos sis-temas com os quais interagimos no dia-a-dia, po-

demos dispensá-la, uma vez que os detalhes quefornece não são de interesse prático. Aliás, a FísicaClássica aplica-se aí satisfatoriamente, inclusivecom algumas vantagens, uma das quais é a simpli-cidade. O contrário, no entanto, não é verdadeiro:a descrição clássica não corresponde ao compor-tamento do mundo microscópico. Assim, a FísicaQuântica, por abranger a Física Clássica e ir alémdela, é considerada mais adequada, mais comple-ta, mais “verdadeira”.

Mas devemos reconhecer que a aceitação dahipótese de Planck implica uma mudança funda-mental em nossa concepção acerca da natureza dossistemas físicos. A situação é análoga à ocorrida,quando da aceitação das hipóteses sobre a constitui-ção atômica da matéria. Antes, quando servíamosvinho em um copo, por exemplo, víamos um fluidocontínuo, rubiáceo e apetitoso, jorrando da garrafa.Hoje, vemos a mesma coisa e depois saboreamoscom igual prazer, mas “sabemos” que se trata deuma cascata de partículas ínfimas, aliás bem separa-das entre si, às quais chamamos “moléculas”. Damesma maneira, quando observamos um balançoque vai parando, por mais que pareça fazê-lo demaneira contínua e suave, “sabemos” que vai per-dendo “impulso” “aos trancos”, embora isso emnada altere o conforto e o prazer de quem está sen-tado nele... Na verdade, essas novas concepçõesnão alteram diretamente nossas relações com omundo que nos rodeia, pois dizem respeito a fenô-menos que ocorrem em uma escala extremamentepequena, inatingível por nossos sentidos, ausente denossa experiência. Eis aí uma circunstância à qualdeveriam estar atentos alguns que propõem a pura esimples transposição dos conceitos da Física Quânti-ca para o nosso mundo habitual, sugerindo aplica-ções imediatas na Medicina, na Psicologia, na Eco-nomia, no Direito... É claro que não estamos nos re-ferindo à enorme transformação ocorrida em nossasvidas devido ao impacto tecnológico decorrente, emúltima análise, do domínio do mundo microscópico,proporcionado ao homem por essa nova Física. Masisso já é outro assunto.

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9 Micro em oposição a macro. Neste texto, usaremos a expressão “mundo microscópico” para designar o mundo das moléculas,dos átomos, das partículas elementares.

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7. Einstein e os fótons

Em 1905, em seu chamado “ano miraculo-so”, em um dos cinco artigos que publicou nosAnnalen der Physik, Einstein propôs uma idéia re-volucionária: a quantização do campo eletromag-nético. De acordo com a Eletrodinâmica Clássicade Maxwell, uma onda eletromagnética é contí-nua no tempo e no espaço e sua intensidade é de-terminada pela amplitude do seu campo elétrico.Em seu artigo, contudo, Einstein escreveu10:

De acordo com a hipótese aqui considerada, na pro-pagação de um raio de luz emitido por uma fonte pun-tiforme, a energia não é distribuída sobre volumescada vez maiores no espaço, mas consiste em um nú-mero finito de quanta de energia, localizados em pon-tos do espaço, que se movem sem se dividir e que po-dem ser absorvidos ou gerados somente como unida-des integrais.

Ora, “um quantum de energia localizado emum ponto do espaço, que se move sem se dividir eque somente pode ser absorvido ou gerado comouma unidade integral” corresponde muito mais aoconceito de uma partícula em movimento do queao de uma onda que se propaga. Tais “partículasde luz” foram chamadas de “fótons”. Einstein es-tabeleceu que a energia de um fóton vale o produ-to da constante de Planck pela freqüência da radia-ção: E = h´f. Apesar da semelhança formal, as hi-póteses de Planck e de Einstein são essencialmen-te diferentes. Planck propôs a quantização de uma“grandeza” associada a um sistema físico (a ener-gia de oscilação do oscilador); já o quantum deEinstein é, ele próprio, “um ente físico”.

Nesse mesmo artigo, Einstein usou sua hipó-tese para explicar, entre outros fenômenos, o efei-to fotoelétrico, então razoavelmente caracterizadodo ponto de vista experimental, mas carente deuma interpretação satisfatória no contexto da Ele-trodinâmica Clássica. Tal explicação foi uma dasrazões pelas quais ganhou o Prêmio Nobel em1921.

Eis-nos diante de outra situação contraditó-ria. A natureza da luz fora objeto de disputa porséculos. Experimentos realizados a partir de 1800,

no entanto, deixaram inequívoco o seu caráterondulatório, por apresentar efeitos de difração ede interferência, tal como as ondas sonoras no arou ondas na superfície da água. Newton conside-rava a luz como feita de partículas; para explicar arefração, precisava supor que sua velocidade fos-se maior nos meios mais densos. Contudo, medi-das precisas mostraram que a velocidade da luz naágua é menor do que no ar, o que invalidou a con-cepção newtoniana. Finalmente, na grande sínte-se de Maxwell, a natureza da luz ficou inteiramen-te esclarecida, pois foi ela descrita como umaonda eletromagnética. Esse foi justamente um dosmomentos culminantes da Eletrodinâmica Clássi-ca. Deveria ser tudo isso agora abandonado emfavor, novamente, de uma teoria corpuscular paraa luz?

Aqui, a situação era um pouco mais favorá-vel à Física Clássica do que no caso dos oscilado-res físicos, pois a teoria ondulatória da luz não po-deria ser simplesmente englobada pela nova teo-ria corpuscular. Quando estavam em jogo fenô-menos relacionados com a geração ou a absorçãoda luz pela matéria, a visão quântica se fazia indis-pensável. Mas quando se tratava de descrever osmecanismos de propagação da luz, era necessárioconsiderá-la uma onda. Era, então, necessárioconservar as duas concepções, por mais contradi-tórias que parecessem. Esta maneira ambígua dea luz apresentar-se aos olhos dos físicos foi o quese chamou de “dualidade onda partícula”.

8. O átomo de Rutherford

Enquanto Planck e Einstein explicavam asinusitadas características da radiação de cavidadee do efeito fotoelétrico, a Física Experimental con-tinuava a desnudar aos olhos humanos o mundomicroscópico. As pesquisas com tubos de raios ca-tódicos levaram a descobertas, como a existênciados raios-X e dos elétrons. Os raios-X foram carac-terizados como ondas eletromagnéticas de altafreqüência, os elétrons como partículas dotadasde carga elétrica negativa e de dimensões e massa

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10 STACHEL, John (organização e introdução). O ano miraculoso de Einstein. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. p. 202.

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infinitesimais. A radioatividade foi descoberta, e ahipótese sobre a constituição atômica da matériaganhou solidez.

Por volta de 1910, Rutherford e seus colabo-radores realizaram experiências com o fim de elu-cidar a estrutura do átomo. Tais experiências con-sistiam em bombardear finíssimas lâminas deouro com as recém-descobertas partículas alfa.Esperavam ver as partículas alfa ricocheteandoapós se chocarem contra a compacta barreira me-tálica. O que viram, no entanto, foi surpreenden-te: a maior parte das partículas simplesmente atra-vessava a lâmina, sofrendo pequenos desvios, ra-ríssimas eram refletidas de volta. Cuidadosa análi-se dos dados permitiu concluir que se deveria con-siderar a carga positiva do átomo de ouro comoconfinada em uma diminuta região do espaço,onde também se concentraria a sua massa, sendoa maior parte do volume do material ocupada pe-los elétrons, de massa infinitamente menor, inca-pazes de impedir a passagem das “pesadas” partí-culas alfa. Ou seja, o metal, aparentemente sólidoe compacto, seria, na verdade, vazio e transparen-te como uma peneira!

Rutherford propôs, então, o modelo planetá-rio do átomo: no centro, um núcleo dotado decarga elétrica positiva, contendo quase toda amassa atômica; girando em torno dele, os levíssi-mos elétrons. Um modelo atraente por sua seme-lhança com o sistema solar, com a única diferençade que, neste, a força que mantém os planetas li-gados ao Sol é de natureza gravitacional, enquan-to naquele, os elétrons são atraídos ao núcleo poruma força de natureza elétrica.

Havia, porém, uma dificuldade: estávamos,novamente, diante de uma proposta incompatívelcom a Física Clássica. Segundo a EletrodinâmicaClássica, os elétrons em translação em torno donúcleo, por serem dotados de carga elétrica, irra-diariam continuamente ondas eletromagnéticas,perdendo energia e “impulso”, até finalmente caí-rem sobre o núcleo. Em outras palavras, o átomode Rutherford não poderia existir como uma es-trutura estável. Uma instabilidade deste tipo evi-dentemente não afeta os planetas em torno do Solnem os satélites artificiais em torno da Terra, poisesses não são objetos eletrizados. Mas foi algo pa-

recido que ocorreu com as estações espaciaisSkylab e Mir: enquanto percorriam suas órbitas emtorno da Terra, perdiam, progressivamente, ener-gia devido ao atrito com as camadas superiores daatmosfera. Não havendo reposição da energia per-dida, foram perdendo “impulso” até caírem.

9. Bohr explica o átomo

Niels Bohr tomou a si a tarefa de encontrarjustificativas teóricas, capazes de suportar o mo-delo atômico de Rutherford. De início, não levouem conta as experiências a respeito dos espectrosde raias dos elementos, um dos fenômenos querestavam sem explicação ao final do século XIX,conforme mencionamos na seção 2. Já em 1885,Balmer havia encontrado uma fórmula empíricaque descrevia perfeitamente as raias espectrais dohidrogênio, fórmula esta depois aperfeiçoada porRydberg. Alguém advertiu Bohr de que um mode-lo atômico bem sucedido deveria elucidar aquelesresultados antigos. Na verdade, ocorreu o contrá-rio: bastou a Bohr um rápido olhar sobre a fórmu-la de Balmer-Rydberg para vislumbrar a soluçãodo problema, sendo capaz, ao mesmo tempo, dejustificar o átomo de Rutherford e explicar os es-pectros de raias. Mas, para tanto, foi necessário,como antes já haviam feito Planck e Einstein, queentrasse em conflito com a Física Clássica.

Esclareçamos em que consistem os espectrosde raias dos elementos. Conforme descrevemosanteriormente, a freqüência das ondas eletromag-néticas, emitidas por uma cavidade em um objetoincandescente, estende-se em um continuum des-de valores muito pequenos até valores muitograndes, isto é, a radiação de cavidade varre um“espectro contínuo”. No que diz respeito à porçãodeste espectro que podemos ver, a qual chama-mos luz, isso é facilmente verificável. Basta olharpara o objeto (ou cavidade) através de um prisma,e veremos todas as cores, como em um arco-íris,sem limites definidos entre uma e outra, passandopor todos os matizes intermediários. Aliás, o ar-co-íris que se forma no céu, é uma evidência deque o espectro solar (o conjunto de freqüênciascontidas na luz que o Sol emite) é um espectro

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contínuo. Imaginemos que, um dia, ao olharmospara o céu, víssemos um arco-íris estranho, con-tendo, digamos, apenas quatro linhas coloridas,bem definidas e separadas, uma vermelha, umaalaranjada, uma verde e uma violácea. Isso seriauma evidência de que, nesse dia, o Sol desistira deemitir luz de todos os infinitos matizes possíveis,concentrando-se em apenas quatro cores bem de-finidas, ou seja, tornara-se um emissor de um es-pectro discreto, um “espectro de raias”.

Pois verificou-se que amostras gasosas doselementos químicos, quando estimuladas poraquecimento em uma chama ou por passagem decorrente elétrica, emitem radiação sob a forma deespectros de raias. O número de raias e suas cores(freqüências) são sempre as mesmas para ummesmo elemento, constituindo-se em uma espé-cie de assinatura ou impressão digital do mesmo.Este fato é a base da espectroscopia óptica, umatécnica que permite descobrir a composição deuma substância mediante a análise da luz queemite ou absorve.

Consideremos o hidrogênio, o mais leve e,portanto, o mais simples dos elementos quími-cos. De acordo com o modelo planetário deRutherford, seus átomos devem ser constituídospor um único elétron, orbitando em torno de umnúcleo. A parte visível de seu espectro ostentaquatro raias, nas cores vermelha, verde-azulada,anil e violeta. A fórmula de Balmer-Rydberg quedescreve o espectro de raias do hidrogênio podeser escrita como

fR

n

R

mH2

H2

= − (equação 6).

Nela, f é a freqüência da luz emitida, RH éum número chamado de “constante de Rydbergpara o hidrogênio” e n e m são números inteiros.Fazendo-se n igual a 2 e m igual a 3, ou 4, ou 5,ou 6, obteremos, precisamente, as freqüênciasdas quatro raias visíveis no espectro de umaamostra de hidrogênio, na ordem em que foramenumeradas acima. Bohr percebeu de imediatoque bastaria multiplicar a equação 6 pela cons-tante de Planck h para ter, do lado esquerdo daigualdade, o quantum de energia de Einstein e,do lado direito, a diferença entre duas quantida-

des, identificadas cada uma por um número intei-ro, m ou n:

h fh R

n

h R

mH

2H

2× =

×−

×(equação 7).

Bohr assumiu, então, “como princípio”, aexistência de trajetórias em torno do núcleo, asquais denominou “estados estacionários”, poden-do um elétron percorrê-las sem perder energia.Bohr estipulou também que a cada um desses es-tados corresponde uma quantidade de energia Ek

que pode ser calculada como

Eh R

kk

H2

= −×

(equação 8),

onde k é um número natural que identifica a órbi-ta ou estado em que o elétron se encontra; k é co-nhecido como “número quântico”. A emissão deum fóton, segundo Bohr, ocorre quando um elé-tron salta de um estado de maior energia para ou-tro de menor energia, devendo a energia do fótonemitido ser igual à energia perdida pelo elétronneste salto. Por exemplo, se, na equação 8, fizer-mos k = 3, teremos E3, a energia do terceiro esta-do estacionário; se fizermos k = 2, teremos E2, aenergia do segundo estado estacionário. A dife-rença entre essas duas quantidades mede a ener-gia perdida por um elétron que “cai” do terceiropara o segundo estado estacionário:

E Eh R

3

h R

2

h R

2

h R

33 2

H2

H2

H2

H− =−×

− −×

= −

× ×2

(equação 9).

Mas esta deve ser também a energia E = hffóton emitido no processo. Então,

h fh R

2

h R

3H

2H

× ×= − (equação 10).

A equação 10 é a própria equação 7 com n

= 2 e m = 3, a qual, por sua vez, dividida por h,reproduz a equação 6. Em outras palavras, Bohrobteve, com base em seus pressupostos teóricos,precisamente a fórmula empírica de Balmer-Rydberg, ou seja, explicou teoricamente os espec-tros de raias.

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10. O Princípio da Correspondência

Mas faltava ainda obter o valor da constante deRydberg com base em pressupostos teóricos. Paratanto, Bohr usou de um artifício que mais tarde for-mulou como um princípio, o chamado “princípio dacorrespondência”. A idéia é a mesma que surgiu,quando comentamos o funcionamento de um pên-dulo: a descrição quântica deve convergir para adescrição clássica, quando as dimensões do sistemaquântico ou o valor de suas variáveis dinâmicascrescem, assumindo valores típicos de sistemas ma-croscópicos. Nesse caso, Bohr considerou que, paragrandes valores de m e n, a freqüência do fótonemitido deve corresponder à freqüência da radiaçãoprevista pela eletrodinâmica clássica. Pôde, assim,calcular um valor teórico para RH em perfeito acor-do com o valor experimental já estabelecido, o queserviu como confirmação para suas hipóteses11.

Estranha maneira de fazer Física, a de Bohr.Propôs como princípio justamente o que não en-tendia e precisava explicar: a existência dos estadosestacionários. Ao assim proceder, entrou em francoconfronto com a Eletrodinâmica Clássica. E tomoucomo a energia de tais estados exatamente o valorextraído da fórmula empírica que almejava, masnão pôde deduzir com base nos princípios gerais. Eainda exigiu que seu resultado fosse consistente, nolimite, com a Física Clássica, a qual estava, ao mes-mo tempo, contrariando. Não é à toa que algunseminentes físicos disseram, então, que, caso Bohrestivesse correto, abandonariam a Física. Outros,no entanto, consideraram seus resultados de sumaimportância e seguiram seus passos, fazendo avan-çar a descrição dos sistemas atômicos.

11. As ondas de matéria de Broglie

Cerca de dez anos decorreram desde a pro-posta de Einstein sobre a natureza dual da luz em

1905 até o sucesso de Bohr na explicação da es-trutura atômica. Outro tanto tiveram que esperaros físicos até que mais um passo importante fossedado para o desenvolvimento de uma física dosquanta. Tal passo foi dado em 1924 por Louis deBroglie, ao propor o comportamento ondulatórioda matéria12.

Desta vez, a inspiração não veio de algum fe-nômeno inexplicado ou experimento a ser inter-pretado. De Broglie baseou sua proposta em umaconcepção um tanto filosófica, um tanto poética, arespeito da natureza, mas bastante freqüente en-tre os físicos: a idéia de que a natureza deve ser si-métrica. Ora, estava claro que um raio de luz, umente físico cujo caráter ondulatório estivera portanto tempo bem estabelecido, apresentava-se, defato, com um aspecto dual, devendo, às vezes, servisto com feito de partículas. Por que não admitirque, simetricamente, as partículas, os objetos ma-teriais, não estivessem também a esconder um in-suspeitado caráter ondulatório?

Além da freqüência f, uma onda pode tam-bém ser caracterizada por uma outra grandeza,chamada de “comprimento de onda”, usualmen-te representada pela letra grega £. Seguindo ar-gumentos que não cabe aqui detalhar, de Brogliesugeriu que, a um objeto de massa M, que semove com velocidade V, deve-se associar umcomprimento de onda expresso pela relação:

£ = h/MV (equação 11).

onde h, novamente, é a constante de Planck.De Broglie atribuía realidade física a suas on-

das, às quais referia-se como “ondas de matéria”.Em sua concepção, as partículas apresentavamcomportamento ondulatório, porque viajavam noespaço, conduzidas por essas ondas, acompa-nhando a sua propagação. Algo como um surfista“pegando uma onda”... Daí serem elas chama-das, também, de “ondas piloto”.

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11 Os livros didáticos costumam dar outra versão para os procedimentos de Bohr. Baseamo-nos aqui no relato de SEGRÉ, E. Dos

raios-X aos quarks. Brasília: Universidade de Brasília, 1987. p.126 e seguintes.12 Em 1917, Einstein publicara um importante trabalho a respeito da interação entre um sistema físico quantizado e o campo

eletromagnético, no qual obtivera resultados de grande impacto. Mas Einstein “corria por fora”, mais interessado naquantização dos campos do que no comportamento dinâmico das partículas, que dominava o interesse geral.

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A proposta de Broglie recebeu confirmaçãoexperimental em 1927, quando foi observado ofenômeno da difração de elétrons, isto é, partícu-las exibindo comportamento ondulatório. Um im-portante avanço tecnológico baseado nesta des-coberta foi a invenção do microscópio eletrônico.Mas a comunidade de físicos não esperou por essaconfirmação para considerar plausível o caráterdual das partículas. Já em 1925, Schrödinger, ins-pirado por essa idéia, desenvolveu o que final-mente se poderia chamar de uma verdadeira teo-ria quântica13.

12. Os pilares da Física Quântica emsua fase pré-histórica

Para melhor avaliarmos o significado da con-tribuição de Schrödinger, façamos antes uma revi-são crítica dos progressos relatados até aqui. EssaFísica Quântica, cujos momentos mais significati-vos acabamos de descrever, é, às vezes, referidacomo a “antiga Mecânica Quântica”. Talvez fosseapropriado denominar esse período de “fase pré-histórica da Física Quântica”, pois o que ocorreu aseguir representou, para a nova disciplina, algoanálogo à invenção da escrita para a humanidade.

Aquele primeiro quarto de século foi, semdúvida, uma fase de grandes realizações. A dinâ-mica que rege o mundo microscópico começou aser entendida, e vários fenômenos encontraramuma descrição plausível. A estrutura do átomo co-meçou a ser desvendada e a tabela periódica doselementos, antiga conhecida dos químicos, come-çou a ser explicada por argumentos físicos. Mas asbases teóricas e conceituais sobre as quais se as-sentava essa construção eram muito frágeis. Tra-tava-se, na verdade, de princípios esparsos, enun-ciados com o fim específico de atender a uma ne-cessidade pontual, como a “hipótese puramente

formal” de Planck ou os postulados ad hoc deBohr. Outro exemplo é o “princípio da exclusão”de Pauli, segundo o qual um estado estacionárioem um átomo pode abrigar, no máximo, dois elé-trons. Este princípio não se baseou em nenhumaidéia fundamental ou essencial, mas foi estabele-cido com a única finalidade de explicar por que,em um átomo com muitos elétrons, eles não caemtodos no estado de menor energia. Mais um prin-cípio formulado “sob encomenda”, neste casopara viabilizar o entendimento da tabela periódicados elementos.

Se quiséssemos identificar as linhas mestrasque orientavam o trabalho dos físicos de então,optaríamos por designar as já mencionadas idéiasda dualidade onda-partícula e do princípio da cor-respondência. Em resumo, os físicos ressenti-am-se da falta de postulados autênticos, de princí-pios gerais sobre os quais pudessem assentar umaverdadeira teoria consistente, eficiente e abran-gente. A Física vivia, de fato, uma situação nãomuito favorável à sua auto-estima como ciência...

13. A equação de Schrödinger e o inícioda fase histórica

A solução para esta desconfortável situaçãoveio através de uma equação matemática propos-ta por Schrödinger em 1926, a qual apresentamosabaixo:

− ∇ +

Ψ = ∂Ψ

∂Ψh

h

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2mV i (equação 12).

Aí está um excelente exemplo daquilo quechamamos “um modelo matemático para a descri-ção de um dado conjunto de fenômenos físicos”.Para o leigo, uma dúzia de símbolos incompreensí-veis dispostos segundo algum critério hermético.

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13 Teoria Quântica é a teoria física baseada na utilização do conceito de unidade quântica para descrever as propriedadesdinâmicas das partículas subatômicas e as interações entre a matéria e a radiação. As bases da teoria foram assentadas pelofísico alemão Max Planck, o qual, em 1900, postulou que a matéria só pode emitir ou absorver energia em pequenas unidadesdiscretas, chamadas quanta. Outra contribuição fundamental ao desenvolvimento da teoria foi o princípio da incerteza,formulado por Werner Heisenberg em 1927. Ela foi abordada nas revistas IHU On-Line, n. 130, de 28 de fevereiro de 2005,que recebeu o título Einstein: 100 anos depois do Annus Mirabilis. João Paulo II. Balanço e perspectivas, dedicado a Einstein, en. 141, de 16 maio de 2005, que levou o título Terra habitável: um desafio para a humanidade. (Nota da IHU On-Line)

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Para o físico, o preenchimento das lacunas existen-tes na Física Quântica em sua fase pré-histórica. Aequação de Schrödinger contém em si, ao mesmotempo, os procedimentos necessários à solução deum problema físico e os princípios que os emba-sam. Ela é “a própria teoria”, a tão desejada teoria!Isso ficará claro com o relato de sua aplicação aoátomo de hidrogênio, logo a seguir.

Nesta equação, m representa a massa dapartícula cujo comportamento dinâmico deseja-mos descrever; V é uma função que representa a“energia potencial” da partícula, grandeza estaque contém a informação sobre como o mundoexterior age sobre ela, como influencia o seu mo-vimento; a presença da variável tempo é indicadapela letra t; a variável espaço está contida no sím-bolo ∇ . h é a própria constante de Planck, só quedividida pelo fator constante 2£. Como na álge-bra elementar, resolver a equação significa “acharo valor da incógnita”, aqui representada pela letragrega £. Mas a equação de Schrödinger não éuma equação algébrica comum, e sim uma equa-ção diferencial. Neste caso, a solução £ não éapenas um número ou conjunto de números, esim uma função matemática. £ é função das va-riáveis “tempo” e “posição da partícula” e é usual-mente conhecida como a “função de onda”, maspreferimos chamá-la de “função de estado” dapartícula. “Toda a informação que se pode obtersobre o comportamento dinâmico da partículaestá contida na função de estado £.”

Schrödinger aplicou, de imediato, a suaequação ao átomo de hidrogênio. Para tanto, bas-tou substituir nela a letra m pelo valor da massado elétron e a letra V pela função que representa aenergia potencial de interação (atração) entre oelétron e o núcleo, conhecida da Eletrostática. Re-solvendo a equação, Schrödinger encontrou osresultados abaixo descritos e comentados:

1) A equação só apresenta soluções para de-terminados valores de energia, ou seja, aenergia do átomo de hidrogênio é uma va-riável discreta, quantizada. Assim, não hánecessidade de nenhum postulado, afir-mando a priori a quantização da energiaou a existência de estados estacionários.Tudo decorre naturalmente da solução da

equação, dos procedimentos meramentematemáticos adotados para resolvê-la.

2) A expressão encontrada para os valorespermitidos de energia foi exatamente amesma proposta por Bohr (equação 8),com a constante de Rydberg também idên-tica à encontrada por Bohr. Isso significaque o espectro de raias do hidrogênio ga-nhou uma descrição clara e precisa no con-texto da nova teoria, com os números resul-tando de meros cálculos, sem necessidadede qualquer hipótese prévia a seu respeito.

3) Sendo coincidente com os resultados deBohr, os resultados de Schrödinger, evi-dentemente, satisfazem ao princípio dacorrespondência, mas também de maneiranatural, sem a necessidade de impô-locomo condição. A presença da constantede Planck h estabelece que seus resultadosreferem-se estritamente ao mundo micros-cópico, sendo redundante a sua aplicaçãoaos sistemas macroscópicos com os quaisinteragimos quotidianamente.

4) A equação de Schrödinger não permitecalcular, com exatidão, a trajetória percor-rida pelo elétron em torno do núcleo. Omais que ela pode fornecer é a probabili-dade de o elétron estar aqui ou acolá. Oslivros didáticos costumam representar pic-toricamente este resultado por meio de fi-guras, nas quais o núcleo aparece comoum ponto central rodeado de manchasmais escuras ou mais claras, indicando asregiões onde é mais ou menos provávelencontrar-se o elétron. Na teoria de Schrö-dinger, o elétron é descrito como uma“partícula” de ínfimas dimensões, dotadade massa e de carga elétrica e de localiza-ção imprecisa, indefinida. Esta é a nova vi-são que substitui a paradoxal dualidadeonda-partícula, aceita (a contragosto!) du-rante a fase pré-histórica.

Comparemos este quadro com o apresenta-do pela antiga Mecânica Quântica, descrito na se-ção anterior. Fica claro que, com a nova MecânicaQuântica de Schrödinger, a Física Quântica en-controu a linguagem adequada para sua expres-

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são e desenvolvimento, qual seja, a Matemática,que, de resto, é a linguagem natural e adequadapara a Física, de um modo geral14. Eis porque,guardadas as proporções, podemos traçar um pa-ralelo entre o significado do surgimento da equa-ção de Schrödinger para a Física Quântica e a des-coberta da escrita para a humanidade.

Embora a equação de Schrödinger sirva paradescrever a dinâmica de uma única partícula, arti-fícios de cálculo, que permitiram aplicá-la ao casode átomos complexos, foram desenvolvidos. Como avanço dos recursos computacionais, foi possí-vel calcular, com precisão e riqueza de detalhes, aestrutura eletrônica dos átomos de qualquer ele-mento químico, explicando seu espectro de raias,suas propriedades físicas e até mesmo seu com-portamento químico. A tabela periódica dos ele-mentos ficou inteiramente explicada e não seriaexagero dizermos que a química encontrou seusfundamentos nas leis da Física.

A equação de Schrödinger levou a previsõesnotáveis a respeito do comportamento dos siste-mas microscópicos, todas elas comprovadas emexperimentos posteriores. Mencionaremos, de pas-sagem, apenas duas, talvez as de maior impacto.Com relação aos osciladores físicos, deduziu-seque sua menor energia de oscilação não pode serzero, conforme postulara Planck, mas existe um va-lor mínimo admissível, que é denominado de“energia de ponto zero”. Em outras palavras, umoscilador físico jamais alcançará o repouso. A outraprevisão refere-se ao chamado “efeito túnel”, que écomo se denomina a possibilidade de uma partícu-la confinada escapar ao confinamento como se en-contrasse um túnel nas “paredes” do sistema. Duasimportantes aplicações deste efeito são a explica-ção da radioatividade alfa e a construção dos mo-dernos microscópios de tunelamento.

14. O presente e o futuro

Apesar de todo esse sucesso, a mecânicaquântica de Schrödinger representa apenas o iní-

cio de um processo. Outros passos foram necessá-rios até tornar-se uma teoria mais geral e abran-gente, passando a merecer a denominação de Fí-sica Quântica. Em primeiro lugar, a equação deSchrödinger aplica-se apenas a partículas que semovem em baixas velocidades. Uma versão quecontempla situações relativísticas (isto é, adaptadapara grandes velocidades) foi, de imediato, desen-volvida por Dirac e foi fundamental para a descri-ção precisa da estrutura atômica. Para o tratamen-to de sistemas envolvendo um grande número departículas, criaram-se as teorias estatísticas quânti-cas, em contrapartida à mecânica estatística clássi-ca. Mas essas teorias aplicam-se apenas a partícu-las materiais, não servem para descrever a dinâ-mica dos fótons, uma vez que a estes não se podeatribuir um valor para a massa. Então, para des-crever a quantização do campo eletromagnético,surgiu a Teoria Quântica de Campos. Eletrodinâ-mica quântica, Ótica Quântica, CromodinâmicaQuântica são extensões da teoria, apropriadas àdescrição de determinadas categorias de fenôme-nos físicos. A cada passo, a linguagem e os recur-sos matemáticos tornam-se mais complexos emais difícil se torna levar ao leigo uma informaçãofidedigna e consistente.

Mas houve também tropeços. A Física Quân-tica não mostrou a mesma adequação para a des-crição dos processos nucleares. De certa forma, osproblemas relativos ao núcleo atômico foram su-perados sem serem resolvidos, pois a discussãodeslocou-se para uma escala ainda mais diminu-ta, a do mundo das partículas elementares, mun-do este que ainda hoje carece de uma teoria que orepresente de maneira satisfatória. Atualmente, osfísicos trabalham na busca de uma teoria capaz defornecer uma descrição unificada de todas as for-ças da natureza, que são classificadas em quatrotipos: as forças gravitacionais, as forças eletromag-néticas, as forças fortes ou nucleares e as forçasfracas. Tal teoria, hoje ainda especulativa, é de-senvolvida em linguagem matemática altamentesofisticada e designada pelas siglas GUT (GrandUnified Theory) ou TOE (Theory of Everithing). A

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14 A bem da verdade, diga-se que Heisenberg propôs, simultaneamente, a Schrödinger, outra versão formal inteiramenteequivalente para a Mecânica Quântica, mas que só foi assimilada mais tarde.

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Teoria do Big Bang, por exemplo, pode ser descri-ta como “os últimos avanços teóricos levados àsúltimas conseqüências”. As descrições que destateoria têm sido feitas a título de divulgação científi-ca não passam de arremedos, pois, pelas comple-xidades matemáticas que envolve, seria extrema-mente difícil torná-la compreensível aos leigos.Além do mais, é prematuro divulgá-la, pois a ex-plicação que ela fornece sobre as origens do Uni-verso está longe de ser unanimemente aceita,mesmo no estrito círculo dos especialistas. As ra-zões pelas quais físicos de prestígio assumem o ris-co e a responsabilidade por tais iniciativas de po-pularização constituem, de fato, um verdadeiromistério.

15. Mecânica quântica de Schrödinger xmecânica de Newton

Na intenção de iniciar uma discussão sobre oconteúdo essencial da Física Quântica, vamos nosrestringir, agora, à sua versão mais simples, que étambém a mais limitada: a Mecânica Quântica deSchrödinger. Conforme já foi dito, esta teoria des-creve o comportamento de uma única partículaem interação com o meio exterior e está inteira-mente contida na equação de Schrödinger (equa-ção 12).

Para saber como se comporta uma certa par-tícula sob a ação de algum agente externo, o pro-cedimento é, em princípio, muito simples: bastaresolver a sua equação de Schrödinger. Hoje, épossível programar um computador para cumpriressa tarefa. Tudo o que precisamos fazer é alimen-tá-lo com apenas dois dados: a massa m da partí-cula e a função V, que representa a ação externa aque ela está sujeita. O computador fornecerá, en-tão, a solução do problema, representada pelafunção de estado £.

A função de estado £ contém toda a infor-mação que é possível obter-se sobre o comporta-mento da partícula. No caso de um átomo, con-forme já expusemos, é possível calcular, com ab-soluta precisão, as energias dos vários estados es-tacionários permitidos aos elétrons. Mas, quanto à

posição de cada elétron num dado momento, só oque se pode extrair de £ é a “probabilidade” deencontrá-lo em um dado ponto em um dadoinstante.

Um resultado frustrante, se contrastado como que nos oferece a mecânica de Newton. Estanos permite, por exemplo, prever com absolutaprecisão onde estará um certo corpo celeste dosistema solar em um dado instante futuro, ou dizeronde esteve em qualquer momento no passado. Éassim que os astrônomos podem fazer previsõesespantosamente corretas sobre a ocorrência deeclipses ou interpretar relatos sobre efemérides as-tronômicas encontrados em documentos antigos.Já da Mecânica Quântica, com relação à posiçãode um elétron nas vizinhanças do núcleo atômico,o máximo de informação que podemos extrair é aprobabilidade de ele estar aqui ou acolá...

Por que, então, não usamos a mecânica deNewton no estudo dos átomos? Ora, porque asprevisões que ela faz sobre a localização dos elé-trons, a sua energia, ou qualquer outra variável di-nâmica que caracterize o seu comportamento,simplesmente dão errado. No mundo macroscó-pico, vemos os objetos com nossos olhos e seumovimento futuro é perfeitamente previsível. AMecânica Clássica descreve adequadamente ocomportamento dos objetos macroscópicos, talcomo eles aparecem aos nossos olhos ou sob amira de nossos instrumentos. Se Newton houves-se criado uma mecânica incapaz de ajustar-se aesta realidade, capaz apenas de indicar a probabi-lidade de, digamos, o sol nascer amanhã um pou-co mais tarde ou mais cedo, ou de a próxima luacheia acontecer daqui a três ou cinco semanas,certamente tal mecânica não haveria sido aceita.Já os elétrons, não podemos vê-los, nem dispo-mos de qualquer instrumento capaz de localizá-loscom precisão. De que nos serviria, então, calculara sua exata posição em um dado instante? Comoa equação de Schrödinger permite calcular corre-tamente as energias dos estados estacionários eexplicar as cores presentes nos espectros de raiasdos elementos, que é o que vemos dos átomos, éela, então, a teoria adequada para a descrição dossistemas atômicos.

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16. Duas visões da natureza

Na seção anterior, mencionamos uma cir-cunstância a respeito das teorias físicas raramenteevidenciada ou discutida, mesmo nos cursos deFísica: tais teorias são construídas com o propósitode descrever o comportamento dos sistemas físi-cos dos quais se ocupam, da forma como os per-cebemos ou observamos, e sua validade é medidapor sua adequação a tal propósito; o confrontocom a experiência é o critério definitivo para a suaaceitação ou rejeição. Assim, a mecânica de New-ton é uma teoria adequada para descrever os pro-cessos dinâmicos que ocorrem no mundo macros-cópico e que não envolvem velocidades muitoelevadas, e a tais processos dinâmicos restringe-seo seu domínio de validade. Quanto à MecânicaQuântica, mesmo sem fornecer informação preci-sa sobre a localização das partículas elementares,dá-nos conta perfeitamente dos processos dinâmi-cos que elas protagonizam, permitindo-nos expli-car as sensações que nos produzem ou as indica-ções de nossos instrumentos de medida a respeitode seu comportamento.

As duas mecânicas, no entanto, oferecemduas concepções inteiramente diferentes acercada natureza. A Física Clássica descreve um mundoonde os fenômenos naturais ocorrem de maneiradeterminista. Conhecendo-se as condições atuaisde um dado sistema e conhecendo-se as leis queregem o seu comportamento, é possível prever,com precisão, a sua evolução ou reconstruir o seupassado. A cada causa segue-se um efeito bemdeterminado. Isso corresponde ao senso comum,concorda com a maneira como percebemos os fa-tos naturais em nosso dia-a-dia; as leis da FísicaClássica nada mais fazem do que descrever estanossa realidade. Já as leis da Física Quântica des-crevem uma outra natureza, ajustam-se a umaoutra realidade, na qual dois sistemas físicosidênticos, sob idênticas condições, provavelmen-te não evoluirão da mesma forma, sendo impos-sível prever o exato curso de cada um. Em outraspalavras, a Física Quântica, descreve uma natu-reza em que os fenômenos naturais seguem umcurso aleatório, probabilístico. Mas, como seráde fato a natureza?

Lembremos que os idealizadores da FísicaQuântica impuseram-lhe, desde o início, a condi-ção de que obedecesse ao já mencionado princí-pio da correspondência, isso é, exigiram que a suanova teoria, quando aplicada a velhos problemasjá resolvidos pela Física Clássica, desse os mes-mos resultados, resultados esses, aliás, já consa-grados em virtude de sua plena concordância comos fatos experimentais. Assim, no contexto da Físi-ca Quântica, o aparente curso determinístico dosfenômenos no mundo macroscópico reflete a cir-cunstância de que, nesta escala, dentre as múlti-plas possibilidades para o curso de um fenômeno,uma delas, justamente aquela que estamos acos-tumados a presenciar, é privilegiada em relação àsdemais por ser, de longe, a mais provável; nadaimpede, no entanto, ao menos em princípio, que,em raríssimas ocasiões, algo inusitado ou surpre-endente possa acontecer. A Newton, evidente-mente, não poderia ocorrer semelhante circuns-tância, pois sequer conhecia os fatos com os quaisse defrontariam os físicos na virada do século XIX,havendo a sua mecânica resultado, portanto, emuma teoria de âmbito limitado, adequada apenasaos sistemas macroscópicos e situações que nãoenvolvem grandes velocidades. Então, repetindoo que já foi dito no penúltimo parágrafo da sessão7, a Mecânica Quântica, por abranger a MecânicaClássica e ir além dela, é considerada mais ade-quada, mais completa, mais “verdadeira”, doponto de vista da Física. Seria nossa percepção deuma natureza determinista uma mera ilusão, ape-nas o resultado de nossa maneira imperfeita dever e interpretar os fenômenos naturais?

Essa não seria uma situação nova na históriada ciência. Aristóteles, baseado em suas observa-ções e em sua experiência diária, formulou o prin-cípio de que um objeto somente executa um mo-vimento (que não lhe seja natural) enquanto esti-ver sob a ação de um agente motor; cessada aação deste agente, o objeto pára. Foram necessá-rios dezoito séculos até que Galileu propusesse oprincípio da inércia, segundo o qual um objetonão necessita de agente externo algum que sus-tente o seu movimento, mostrando, assim, queAristóteles se deixara iludir pelas aparências, foraenganado pelos sentidos. A força dos dados sen-

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soriais, das vivências do cotidiano é tanta que,ainda hoje, quem não estudou Física geralmenteainda interpreta a tendência dos objetos ao repou-so à maneira de Aristóteles. Da mesma forma, émuito difícil aceitar-se que seja da essência da na-tureza o comportamento errático, probabilísticodos fenômenos naturais. Esta nova dificuldade,no entanto, não afeta apenas aos que não estuda-ram Física, mas dividiu as opiniões dos próprioscriadores da Física Quântica e ainda hoje é motivode discussão.

17. O Princípio da Incerteza e o Princí-pio da Complementaridade

Os físicos da chamada Escola de Copenha-gue, liderados por Bohr, aceitaram, com naturali-dade, a nova concepção. Interpretaram o caráterprobabilístico das previsões da mecânica quânticacomo a contrapartida teórica das dificuldades ine-rentes aos processos de medida das propriedadesdos sistemas físicos (sub)microscópicos.

Um exemplo pode ajudar a compreender asituação. Nas estradas, os “pardais” realizam, comgrande eficiência, a tarefa de obter simultanea-mente a posição e a velocidade dos automóveis, oque é possível com o auxílio de ondas eletromag-néticas: um radar envia, na direção do automóvel,um feixe de microondas que, uma vez refletidopor ele, traz de volta ao equipamento a informa-ção sobre a sua velocidade; no mesmo instante,um flash ilumina o automóvel para que possa serfotografado, sendo, então, a sua posição precisa-mente determinada na foto. Imaginemos o mes-mo procedimento tendo como objeto um elétron.Suponhamos que queiramos saber, num dadomomento, a exata posição e a velocidade de umelétron que vem em nossa direção. Sendo o elé-tron um ente microscópico, recebe as ondas lumi-nosas que lhe enviamos como uma rajada de fó-tons, ou seja, partículas que, chocando-se contraele, desviam-no de sua trajetória, alteram a suavelocidade. O que poderão dizer tais fótons, umavez de volta ao equipamento, sobre a antiga velo-cidade do elétron ou sobre o novo rumo que eletomou?

O importante, no exemplo acima, é compre-ender que a impossibilidade de obter informaçõesprecisas sobre o elétron não é de ordem mera-mente prática, tal que possa ser superada median-te aperfeiçoamento dos métodos ou instrumentos.Trata-se de uma dificuldade essencial, inerente àescala do mundo microscópico, impossível de sertransposta. Para obter informações sobre um elé-tron, necessitamos da intermediação de um fóton;mas um fóton jamais poderá “ler” um elétron semcom ele interagir, sem alterar as suas condições, oseu estado. Nós, seres do mundo macroscópico,devemos nos conformar com esta limitação ins-transponível: não nos é dado contemplar o mun-do microscópico como meros espectadores, semnele interferir, sem alterá-lo. O que vemos ao pers-crutá-lo já é o resultado desta interação; talvez va-lha aqui a metáfora do elefante na loja de cristais...E, no afã de encontrar uma teoria capaz de seajustar às evidências experimentais que se iamacumulando, os físicos acabaram por construiruma teoria que não apenas explica o comporta-mento dos entes microscópicos em suas manifes-tações espontâneas, mas também descreve a ma-neira como eles reagem, quando em interação co-nosco. Chega a ser quase obrigatório admitirmosque a resposta do mundo microscópico a essasnossas intervenções invasivas só possa ser descritaem termos de probabilidades, uma vez que o cál-culo das probabilidades é o recurso matemáticoadequado para a descrição de fenômenos aleató-rios. Em termos práticos, o que precisávamos erade uma teoria que se ajustasse a essas circunstân-cias todas, que descrevesse os resultados dessasinterações, que explicasse as leituras de nossosinstrumentos de medida; a Mecânica Quânticacumpriu bem essa função, daí o seu sucesso.

O Princípio da Incerteza de Heisenberg e oPrincípio da Complementaridade de Bohr foramconstruídos nessa concepção. Representam tenta-tivas de interpretar o caráter probabilístico danova teoria como resultado da impossibilidade deconseguirmos informações precisas sobre o mun-do microscópico, tal como as obtemos sobre omundo macroscópico. O primeiro afirma queexistem pares de grandezas dinâmicas que nãopodem ser medidas simultaneamente com qual-

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quer precisão arbitrária. A posição e a velocidadede uma partícula são um bom exemplo. Quantoao segundo, já nos referimos a ele na Introdução;discuti-lo com mais profundidade seria tarefa pordemais complexa para este trabalho. São, essen-cialmente, versões equivalentes da mesma idéiafundamental.

Mas, mesmo no grupo de Bohr, aprofunda-vam-se as discussões. O famoso paradoxo conhe-cido como “o gato de Schrödinger” mostra que opróprio criador da mais famosa equação da FísicaQuântica apontava contradições na interpretaçãoprobabilística atribuída ao formalismo da novateoria. A esta altura, no entanto, a teoria já avan-çara muito, e a proposta do paradoxo já se deuem um contexto diferente do até aqui apresenta-do, razão pela qual não o discutiremos agora.

18. Einstein e a Física Quântica

Albert Einstein contribuiu para o desenvolvi-mento da física quântica desde a primeira hora,mas a relevância de sua contribuição raramente éposta em evidência, em virtude de haver sidoofuscada por seu legado maior, a Teoria da Relati-vidade. Esquecemos, com freqüência, que o Prê-mio Nobel lhe foi concedido, principalmente, porhaver proposto a quantização do campo eletro-magnético e, com base nela, haver explicado oefeito fotoelétrico (ver seção 8). Também já men-cionamos que, em 1917, quando o interesse geralera atraído pelas propriedades dinâmicas das par-tículas subatômicas, Einstein “corria por fora”,mais interessado na quantização dos campos ele-tromagnéticos, o que o credencia como um au-têntico precursor da moderna Teoria Quânticade Campos (ver nota de rodapé no 7). O traba-lho, que publicou naquele ano, contém, em seubojo, a indicação teórica sobre a viabilidade deconstruir-se um amplificador de luz, o que, de fato,veio a ser realizado na década de cinqüenta, resul-tando no equipamento hoje conhecido como laser.

Mas Einstein foi, paradoxalmente, um críticoimplacável da Teoria Quântica. O seu desconten-tamento talvez possa ser sintetizado da seguinteforma: ele não compactuava com o conformismo

da Escola de Copenhague. É certo que, por meiode experimentos, não podemos acessar o mundomicroscópico sem nele interferir; não podemos,portanto, por esta via, obter informação precisasobre seus constituintes e seu comportamento.Mas a teoria tem obrigação de ir além, os físicosdevem ser capazes de, pela força do intelecto,compreender as profundezas da matéria. Em1935, Einstein juntou-se a Podolsky e Rosen paraformular o famoso paradoxo (ou argumento) EPR,mediante o qual pretenderam demonstrar a pre-cariedade da Mecânica Quântica e a inadequaçãoda concepção probabilística da natureza, que vemembutida em se arcabouço teórico.

Por suas concepções filosóficas, Einsteinpode ser considerado um realista. Atribuía à natu-reza uma realidade objetiva, realidade esta que ohomem procura conhecer e compreender atravésda ciência. Quanto mais evoluir a ciência, maispróxima da realidade da natureza será a descriçãoque dela fazem os cientistas. Era, também, um ho-mem profundamente religioso: professava umareligião que ele próprio qualificava como trans-cendental. Não é difícil entender o seu realismo fi-losófico como compatível com esta concepçãotranscendental a respeito de Deus e do universo.Tal concepção, no entanto, não admitiria a idéiade uma natureza que se comportasse aleatoria-mente, cujas leis não impusessem aos fenômenosum curso predeterminado, uma finalidade. Ouseja, a descrição quântica do mundo microscópi-co não poderia corresponder à verdade da nature-za. “Deus não joga dados” foi a frase que cunhoupara expressar esta convicção e que se tornoufamosa.

Conclusão

Os posicionamentos filosóficos diante do for-malismo da Física Quântica não se limitam à con-trovérsia entre o pragmatismo da Escola de Cope-nhague e o realismo de Einstein. Há lugar para to-das as tendências, do solipsismo ao positivismo,passando por uma esdrúxula sugestão sobre apossibilidade de o universo subdividir-se continu-amente em universos paralelos, idênticos em

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tudo, exceto por alguma característica particular(por exemplo, o gato de Schrödinger estar vivoem um deles e morto no outro...). Não obstante, aFísica Quântica é um sucesso como teoria científi-ca, na medida em que descreve adequadamenteo mundo microscópico e nossas relações com ele,a ponto de permitir ao homem um domínio fan-tástico sobre os fenômenos físicos nessa escala di-minuta. O imenso impacto tecnológico, sofridopela civilização nas últimas décadas, é conseqüên-cia direta desse domínio.

Ressaltemos, à guisa de conclusão, algunsaspectos:

1. As teorias da Física só atingem a maturida-de, quando expressas em linguagem mate-mática. Conforme expusemos na seção 14e nota de rodapé número 8, a fase madurada Física Quântica iniciou quando Schrö-dinger e Heisenberg desenvolveram suasteorias formais. Mas a Matemática é, paraa Física, muito mais do que mera lingua-gem: é mediante o uso de procedimentosda álgebra e do cálculo avançado que sevão relacionando os conceitos, princípiose leis, de modo a extrair conclusões. Aodesenvolver uma teoria, “o físico não ar-gumenta, calcula”!

2. A Física Quântica é a teoria que descreveos processos físicos no mundo microscópi-co (e submicroscópico). A constante dePlanck h está presente em todas as equa-ções da Física Quântica, sem exceção; oseu valor extremamente pequeno estabe-lece que os efeitos quânticos somente sãosignificativos naquele mundo de escala

também extremamente pequena (ver se-ção 7). Se usarmos a Física Quântica nadescrição de um fenômeno em escala ma-croscópica, os aspectos quânticos serãoofuscados pela magnitude dos aspectosnão- quânticos, e a descrição obtida seráidêntica à dada pela Física Clássica (princí-pio da correspondência).

3. A busca de efeitos genuinamente quânti-cos em escala macroscópica constitui-seem tema de pesquisa atual. Como tema depesquisa, é válido. Nenhum resultado po-sitivo, no entanto, foi até hoje relatado.

4. Vemos, com freqüência, conceitos, princí-pios e procedimentos da Física Quânticaaplicados a processos não-físicos (econo-mia, direito, psicologia, relações interpes-soais, saúde...), a sistemas macroscópicos(de escala incompatível com o valor daconstante de Planck), sem a precisão delinguagem e sem o rigorismo lógico-formalda Matemática. Podemos admitir que pes-soas façam uma extensão livre da FísicaQuântica, assim como alguém faz uma re-leitura livre de um texto ou uma interpreta-ção livre de uma obra de arte. Mas o queelas estão fazendo já não é mais FísicaQuântica. Algumas, no entanto, com ousem formação em Física, insistem, mesmoquando advertidas, em qualificar sua açãocomo tal. Seria ótimo se tais pessoas estu-dassem mais Física Quântica, ou revisas-sem o seu enfoque, ou, até mesmo, reava-liassem suas intenções.

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As ‘digitais’ de Einstein encontram-se em todas as áreas da

Física moderna, porém temos que ter cuidado com o charlatanismo

Entrevista com Carlos Alberto dos Santos

Carlos Alberto dos Santos é graduado em Fí-sica pela PUC-Rio, mestre e doutor em FísicaUFRGS, com a tese Composição superficial e pro-priedades mecânicas e tribológicas de aços carbo-no implantados com nitrogênio. Cursou pós-dou-torado no Centre d’Études Nucleaires de Greno-ble, na França. Leciona no Departamento de Físi-ca da Universidde Estadual do Rio Grande do Sul(UERGS). É autor de, entre outros, O plágio deEinstein. Porto Alegre: WS editor, 2003 e Nitre-tação Iônica. Natal: Cooperativa Cultural daUFRN. 1989.

IHU On-Line – Quais os principais aspectos

que irá abordar ao discutir a preparação de

Einstein para o seu Ano Miraculoso?

Carlos Alberto dos Santos – Existem diversosmitos sobre a biografia de Albert Einstein15, amaioria dos quais persiste no imaginário populargraças à veiculação de equívocos por meio de im-portantes meios de comunicação de massa. Umdeles é que Einstein teve uma tempestade de cria-tividade em 1905. Tudo que ele fez naquele AnoMiraculoso16 é fruto de um rasgo de genialidade.Outro mito bastante difundido é que ele era mau

aluno. Este mito é confirmatório ou paradoxal,conforme o enfoque dado à produção científicade Einstein. Se ele fosse verdadeiro, o rasgo de ge-nialidade poderia ter uma justificativa. Se o rasgode genialidade não for verdadeiro, o segundomito não se sustenta. Na palestra, eu tento des-constituir esses mitos, mostrando que, ao contrá-rio, Einstein era bom aluno naquilo que lhe inte-ressava, e desde sua mais tenra idade dirigiu seuesforço intelectual para aquilo que passou a publi-car a partir de 1900.

IHU On-Line – Tomando como base a infân-

cia de Einstein, quais os fatos que poderi-

am prenunciar o aparecimento de sua

genialidade?

Carlos Alberto dos Santos – Existem quatromomentos na infância e na adolescência de Eins-tein prenunciadores da sua genialidade, todos elesrelatados pelo ele mesmo, em suas Notas Auto-biográficas17. Entre os quatro e cinco anos, seupai lhe deu de presente uma pequena bússola.Einstein ficou muito intrigado com o fato de que aagulha sempre apontava na mesma direção, qual-quer que fosse a posição da bússola. O que o inco-

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15 Sobre Einstein, confira a edição n° 135 da revista IHU On-Line, sob o título Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabilis. Apublicação está disponível no sítio do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), endereço www.unisinos.br/ihu. A TV Unisinosproduziu, a pedido do IHU, um vídeo de 15 minutos em função do Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a 19 de maiode 2005, em homenagem ao cientista alemão, do qual o professor Carlos Alberto dos Santos participou, concedendo umaentrevista. (Nota da IHU On-Line)

16 Ano Miraculoso, ou ainda Annus Mirabilis – denominação dada ao ano de 1905, quando Einstein publicou seus trabalhossobre o efeito fotoelétrico, a relatividade especial e o movimento browniano. (Nota da IHU On-Line)

17 EINSTEIN, Albert. Notas autobiográficas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. (Nota da IHU On-Line)

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modava era que não havia nada “segurando” aagulha. Essa ação a distância (que depois ele veioa saber ser devida ao campo magnético terrestre)passou a incomodá-lo durante seus estudos uni-versitários e foi uma das motivações para a idéiada curvatura do espaço-tempo, conceito funda-mental na sua teoria da relatividade geral. O se-gundo momento revelador ocorreu quando ele ti-nha dez anos de idade. Desafiado por seu tio, eledemonstrou o teorema de Pitágoras, apenas ob-servando figuras geométricas (retas paralelas,convergentes e triângulos diversos). O terceiromomento ocorreu entre os doze e os quatorzeanos, quando ele aprendeu, sozinho, noções decálculo diferencial e integral. Finalmente, no quar-to momento, aos dezesseis anos, na Escola Canto-nal de Aarau, ele se imagina correndo com a velo-cidade da luz, ao lado de uma onda eletromagné-tica. Sua intuição sugere que ele veria o campoeletromagnético estacionário. No entanto, isso éuma contradição, pois que a onda está se propa-gando! Este problema foi resolvido ao longo dedez anos, e constitui o cerne da teoria da relativi-dade restrita.

IHU On-Line – Como caracteriza a trajetória

estudantil e a carreira acadêmica de Einstein?

Carlos Alberto dos Santos – Einstein detesta-va tudo que exigia memorização, e não tinhaqualquer respeito pela autoridade. Então, quandoo assunto não lhe interessava (biologia, línguas es-trangeiras, história), ele não fazia a menor questãode esconder seu desapontamento, e provavel-mente deixava transparecer uma atitude arrogan-

te, atraindo a ira dos professores. Foi desse tipo decontexto que se gerou o mito do aluno relapso. Noexame final do Ensino Médio, Einstein teve quasetodas as notas entre 9 e 10. No exame intermediá-rio na Escola Politécnica (ETH), ao final dos doisprimeiros anos, ele teve a melhor média da turma.No exame final, ele teve a pior nota entre os apro-vados. Mileva, sua primeira mulher, foi reprova-da. Sabe-se hoje, contudo, que, nos dois últimosanos do curso, ele estava interessado em assuntosque não eram tratados na ETH. Na verdade, eleestava se preparando, sozinho, para o que viria aser, o criador de universos.

Antes dos magníficos trabalhos de 1905, Eins-tein publicou, de 1901 a 1904, cinco trabalhos noAnnalen der Physik. Embora os trabalhos não con-tivessem grandes novidades, pois que já haviamsido abordados por Boltzmann18 e principalmentepor Gibbs19, a forma autônoma como Einstein tra-tou a mecânica estatística foi suficiente para que oseditores do Annalen o convidassem para fazer rese-nhas de artigos e livros publicados em outros jor-nais. Ele chegou a resenhar um artigo e um livropublicados por Max Planck20. Trata-se de um privi-légio normalmente concedido a grandes cientistas,e não a um jovem de 25 anos, sem o título de dou-tor, nem vínculo com o meio acadêmico.

IHU On-Line – Além da Teoria da Relativida-

de, quais são as outras contribuições impor-

tantes de Einstein para a Física moderna?

Carlos Alberto dos Santos – Sem exagero, po-demos dizer que as “digitais” de Einstein encon-tram-se em todas as áreas da Física moderna e,

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18 Ludwig Edward Boltzmann (1844-1906): matemático e físico austríaco. Sistematizou o conceito de entropia, segundo o qualhá uma tendência natural de a energia se dispersar e de a ordem evoluir invariavelmente para a desordem. Explica odesequilíbrio natural entre trabalho e calor. (Nota da IHU On-Line)

19 Josiah Gibbs (1839-1903): professor de Física e Matemática na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Propôs umafórmula mais abrangente, que inclui certos tipos de interações entre as moléculas. A fórmula de Boltzmann-Gibbs tem sidousada pelos físicos por cerca de 120 anos. (Nota da IHU On-Line)

20 Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858-1947): físico alemão, considerado o pai da Teoria Quântica. Em 1899, descobriu umanova constante fundamental, chamada em sua homenagem Constante de Planck, que é usada, por exemplo, para calcular aenergia do fóton. Um ano depois, descobriu a lei da radiação térmica, chamada Lei de Planck da Radiação. Esta foi a base daTeoria Quântica, que surgiu dez anos depois com a colaboração de Albert Einstein e Niels Bohr. De 1905 a 1909, Planck atuoucomo diretor-chefe da Deutsche Physikalische Gesellschaft (Sociedade Alemã de Física). Como conseqüência do nascimentoda física quântica, foi premiado, em 1918, com o Prêmio Nobel de Física. Após sua morte, o instituto KWG passou a chamar-seMax-Planck-Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften (MPG, Sociedade Max Planck para o Progresso da Ciência). (Notada IHU On-Line)

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por conseqüência, em praticamente toda tecnolo-gia contemporânea. A mecânica estatística baseessencial para o desenvolvimento da Física damatéria condensada, teve seu grande impulso de-pois dos trabalhos de Einstein. Em 1917, ele pu-blicou um artigo com os fundamentos teóricos dolaser. Observe que este só veio a ser inventadonos anos 1960. Isso tudo para não falar na idéiado fóton21, o quantum de luz.

IHU On-Line – Realmente Einstein plagiou

o cientista italiano Olinto de Pretto? Como

se explica esse fato?

Carlos Alberto dos Santos – Por volta de1985, o historiador da Universidade de Peruggia,Umberto Bartocci22, descobriu que, um ano antesde Einstein, Olinto de Pretto23, um cientista ama-dor italiano, também publicara um trabalho comuma equação do tipo E=mc2. Na sua pesquisa, oProf. Bartocci descobriu que um irmão de Olintotrabalhava com o tio de Michele Besso, grandeamigo de Einstein. Com base nessa coincidência,ele levantou a hipótese de que Einstein teria tidoconhecimento do trabalho e que provavelmente te-ria se motivado a escrever o seu. O jornal inglêsThe Guardian deu grande publicidade ao caso, evárias suspeitas de plágio foram levantadas em ou-tros veículos de comunicação. Bartocci tentou, masnão conseguiu publicar sua pesquisa em pelo me-nos duas revistas de história. Os editores considera-ram inverossímil sua hipótese. De fato, o trabalhode Olinto de Pretto, baseado na existência do éter epleno de equívocos conceituais não poderia termotivado Einstein a deduzir sua famosa equação.

Tendo por base esses fatos, escrevi a novelaO plágio de Einstein, na qual vemos o desesperode um hipotético staff (inspirado no staff que está

editando todos os documentos de Einstein) dianteda possibilidade do plágio. A novela desenvol-ve-se sobre a investigação da autenticidade de do-cumentos comprometedores para a honra deEinstein. Descobre-se finalmente que se trata deuma fraude.

IHU On-Line – Qual é a atualidade das des-

cobertas de Einstein?

Carlos Alberto dos Santos – Parte da respostaa esta questão está na resposta à questão 4, masela não pára ali. A busca por uma teoria do campounificado, empreendida por Einstein, continuaaté, hoje envolvendo uma enorme comunidadede cientistas em todas as partes do mundo. O con-densado Bose-Einstein, previsto nos anos 1920,só recentemente foi realizado, e valeu o PrêmioNobel de Física de 2001 para três cientistas nor-te-americanos24. Esta realização experimental de-verá ter repercussões interessantíssimas, na medi-da em que permitirá testes da Teoria Quântica emobjetos macroscópicos.

IHU On-Line – Como a Física dialoga com

outras ciências hoje e quais são seus desafi-

os para o futuro?

Carlos Alberto dos Santos – Os séculos XIX eXX são considerados os séculos da Física. Chega-mos aonde chegamos, em termos científicos e tec-nológicos, graças à Física. Hoje consideramos queo século XXI será o século da Biologia e áreas cor-relatas (Engenharia Genética, Nanotecnologia25),e grande parte dessa história tem a ver com asaplicações que hoje podemos fazer dos conheci-mentos adquiridos com a Física. Um dos grandesdesafios é o desenvolvimento da Nanociência aserviço das ciências médicas.

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21 Fóton: partícula mediadora da força eletromagnética. O fóton também é o quantum da radiação eletromagnética, incluindo aluz. (Nota da IHU On-Line)

22 Umberto Bartocci: professor de Geometria e História da Matemática da Universidade de Peruggia, na Itália. (Nota da IHUOn-Line)

23 Olinto de Pretto: cientista italiano de Vicenza, Bolonha, falecido em 1921. (Nota da IHU On-Line).24 Trata-se dos cientistas Eric Cornell, Carl Wieman e Wolfgang Ketterle. (Nota da IHU On-Line)25 Nanotecnologia: ciência associada a diversas áreas (como a medicina e eletrônica) de pesquisa e produção na escala nano.

O princípio básico da nanotecnologia é a construção de estruturas e novos materiais com base nos átomos (como se fossemtijolos). É uma área promissora, mas que dá apenas seus primeiros passos, mostrando, contudo, resultados surpreendentes,como na produção de semicondutores, por exemplo. Sobre o assunto, a IHU On-Line publicou a edição 120, de 25 deoutubro de 2004, intitulado O mundo desconhecido das nanotecnologias. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Qual é a importância de estu-

dar esse assunto numa universidade, sobre-

tudo para um público composto por estudio-

sos de outros ramos do conhecimento e tam-

bém pessoas de fora do meio acadêmico?

Carlos Alberto dos Santos – Existem váriosângulos para se abordar essa questão. Em primei-ro lugar, a caminhada intelectual de Albert Einsteiné um excelente objeto de estudo para a epistemo-logia da ciência. Depois, a sua própria história devida tem facetas importantes conectadas com opreconceito e a intolerância humana. Finalmente,o conhecimento estrito das suas pesquisas são im-prescindíveis para o entendimento da Física e degrande parte da tecnologia contemporânea.

IHU On-Line – Diz o famoso panegírico so-

bre Newton que ele trouxe para a luz do dia

as leis sobre as quais Deus havia lançado

um “manto escuro”. Como podemos nos re-

ferir às descobertas de Einstein?

Carlos Alberto dos Santos – Acho que é amesma coisa. O que Galileu e Newton fizeramcom a ciência aristotélica, Einstein fez com a físicaclássica (mecânica newtoniana, eletromagnetis-mo, termodinâmica). Todos eles quebraram para-digmas vigentes. Einstein foi o estopim, que ou-tros contribuíram para acender e transformar aciência e a tecnologia do século XX. Praticamentetudo que hoje temos na tecnologia, vem daquelestrabalhos da virada do século.

IHU On-Line – Quais as decorrências das des-

cobertas de Einstein que o senhor destaca?

Carlos Alberto dos Santos – Quase tudo quetemos hoje no nosso cotidiano (em termos tecno-lógicos) vem das descobertas de Einstein. Para assituações mais óbvias, o caminho é simples e cla-ro: quantização da radiação eletromagnética –modelo atômico de Rutherford e Bohr26 – mecâni-ca quântica – física nuclear – semicondutores –

microeletrônica. A relatividade geral resultou namoderna cosmologia, que é a forma como enten-demos o mundo. Também na tecnologia, a relati-vidade geral tem influência: se não fossem usa-das correções relativísticas nos equipamentos deGPS27, seriam acumulados erros da ordem de 11km por dia.

IHU On-Line – Em recente artigo, o senhor

afirmou que “Einstein percebia similarida-

des nos princípios básicos em contextos

aparentemente desconexos”. O senhor po-

deria, de maneira exemplificativa, discorrer

sobre essa característica da percepção de

Einstein?

Carlos Alberto dos Santos – No final do séculoXIX, a física clássica era composta, essencialmen-te, da mecânica newtoniana, da termodinâmica edo eletromagnetismo. Essas três áreas tinhampouca conexão. A teoria cinética dos gases usavaconceitos da mecânica, mas ainda estava no iníciodo seu desenvolvimento. O problema da radiaçãode corpo negro (um problema essencialmente datermodinâmica) foi resolvido por Max Planck28,quando, em 1900, ele propôs que a energia só po-dia ser absorvida ou emitida em quantidades bemdefinidas, que ele denominou quantum, e suaenergia era definida pelo produto da freqüênciada radiação emitida pelo corpo aquecido e deuma constante, que depois veio a ser denominadaconstante de Planck. No entanto, ele entendia queesta constante era tão somente um artifício mate-mático para ajustar a curva espectral. Naquelamesma época, havia outro problema, circunscritoao eletromagnetismo. Era o efeito fotoelétrico, istoé, quando uma chapa metálica era irradiada poralgum tipo de radiação eletromagnética (porexemplo, radiação ultravioleta), ela adquiria car-ga elétrica positiva. Na verdade, o fato essencialera que ela emitia elétrons. Para resolver esse pro-blema, Einstein tomou emprestada a idéia de

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

26 Niels Henrick Borh (1885-1962), físico dinamarquês, apoiando-se em pesquisas de Nelson Ernest Rutherford, físico neo-zelandês(1871-1937) e de Max Plack (ver nota abaixo) concebeu uma teoria atômica que destacou-se pela exatidão. (Nota da IHUOn-Line).

27 Sigla de Global Positioning System. Trata-se de um sistema de rádio navegação, baseado em satélite. Determina a posição dousuário 24 horas por dia, sob qualquer condição climática e em qualquer local do mundo. (Nota da IHU On-Line).

28 Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858-1947), físico alemão, considerado o pai da teoria quântica (Nota da IHU On-Line).

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Planck e a estendeu para a radiação: ele propôsque a radiação eletromagnética, isto é a luz, eracomposta de corpúsculos, também denominadosquantum. Hoje esses corpúsculos são conhecidoscomo fótons. Essa foi a grande revolução do iníciodo século XX. Ao explicar o efeito fotoelétrico,Albert Einstein deu vida à constante de Planck.Oito anos depois, Niels Bohr a usaria no seu mo-delo atômico (na verdade, modelo proposto porRutherford). Então, ao conectar termodinâmica eeletromagnetismo, Einstein deu o grande passopara a formulação da teoria quântica.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre a

aplicação dos conceitos quânticos em ou-

tras áreas do conhecimento humano?

Carlos Alberto dos Santos – Vejo com muitapreocupação o exagero que se comete na genera-lização dos conceitos quânticos. Freqüentementenão passa de charlatanismo ou uso inadequadode analogias.

IHU On-Line – O senhor pode relacionar al-

gumas das analogias que lhe parecem força-

das e/ou temerárias?

Carlos Alberto dos Santos – Você já viu um livrocujo título é algo como Administração Quânti-ca29? O professor Moacir Araújo Lima (participacom freqüência dos programas da TV Guaíba)costuma dizer que a teoria quântica, ao estabele-cer que a medida depende do observador, justifi-ca os ensinamentos espíritas. É esse tipo de exage-ro que me preocupa. A teoria quântica só vale nomundo microscópico. Sequer vale na cosmologia!Como será possível extrapolá-la para o comporta-mento humano, ou espiritual? Infelizmente, nãoposso entrar em detalhes, pois não costumo me-morizar as abordagens exóticas em torno da física.No livro Imposturas intelectuais30, do Sokal,há uma boa coleção.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o ensi-

no de Física no Brasil? As suas dimensões e

projeções “miraculosas” vêm sendo com-

preendidas adequadamente?

Carlos Alberto dos Santos – Há um problemamuito sério para o ensino das ciências no Brasil: abaixa valorização do professor, sobretudo no ensi-no médio, onde esta situação é mais crítica. Nauniversidade, recebemos alunos com a mentecompletamente deformada. Muito esforço temque ser feito para quebrar os misconceptions (ouconcepções espontâneas) e iniciar um processorazoável de ensino-aprendizagem. Com a baixaremuneração, os professores são obrigados a as-sumir uma exagerada carga didática, impedindo onecessário aperfeiçoamento.

IHU On-Line – Para o ensino das ciências

naturais, o que são alunos “com a mente

completamente deformada”?

Carlos Alberto dos Santos – Em suma, umamente é “deformada” em ciência, quando, na so-lução de qualquer problema, deixa de usar osconceitos fundamentais da matéria pertinente.Isso se manifesta claramente pela falta de uso daintuição. Por exemplo, ao perguntar o que acon-tece quando largamos uma pedra (simplesmenteabrimos a mão e a deixamos livre), a maioria dosalunos tenta responder, apelando para conceitoscomplexos, alguns dos quais eles não têm a me-nor idéia do que significam. Falam em campo gra-vitacional, força gravitacional, etc. Quase nenhumdiz a resposta óbvia: A PEDRA CAI. Essa é a prime-ira resposta a ser dada. É tão simples, não? Mas adeformação de uma educação inadequada impe-de que o aluno PENSE SIMPLES!

IHU On-Line – Considerando que o termo

“milagre” designa basicamente um fenôme-

no inexplicável pelas leis naturais, não é cu-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

29 Provavelmente o entrevistado refira-se ao livro Em busca da empresa quântica, de Clemente da Nóbrega. Rio de Janeiro:Ediouro, 1996. Está esgotado, já em sua segunda edição. (Nota da IHU On-Line).

30 Sokal, Alan e Bricmont, Jean. Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999 (Nota da IHU On-Line).

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rioso que o ano de 1905, quando foram pu-

blicados os artigos paradigmáticos de Eins-

tein, seja denominado de “ano milagroso”

pelos cientistas?

Carlos Alberto dos Santos – Esse termo vemdo latim Annus Mirabilis, e já foi utilizado (no plu-

ral Anni Mirabiles) para se referir aos anos de1664-1666, quando Newton realizou seus estudossobre ótica. Acho que qualquer pessoa, por maisagnóstica que seja, sempre manifesta espantocom as grandes descobertas. Esse espanto é mani-festado pela admissão de um “milagre”. Acho queé uma espécie de figura de linguagem.

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A ciência contemporânea ainda funciona de acordo

com o determinismo cartesiano

Entrevista com Alfredo Gontijo de Oliveira

Alfredo Gontijo de Oliveira é professor doInstituto de Ciêncas Exatas da Universidade Fede-ral de Minas Gerais (UFMG). É mestre em Físicapela UFMG, doutor em Física pelo Instituto deCristalografia. Universitat Freiburg (Albert-Ludwigs),A.L.U.F., Alemanha, e pós-doutor pelo ImperialCollege Londres, IC, Inglaterra e pela UniversitatZurich, U.ZURICH, Suiça. Também é diretor doInstituto de Estudos Avançados Transdisciplinaresda UFMG. Juntamente com Chaves. A.S. e Silva.C.E.T.G, é autor do livro Proceedings of theFourth Brazilian School of SemiconductorPhysics. Londres: Word Scientific, 1990.

IHU On-Line – As descobertas da física

quântica são tidas como análogas à inven-

ção da escrita. Em termos leigos, por quê?

Alfredo Gontijo de Oliveira – O que une osdois conceitos é que eles geraram grandes ruptu-ras na história do conhecimento e da humanida-de. Com a invenção da escrita, nossa memóriapode ser aliviada para desenvolver atividadesmais criativas. Criou-se também a base para aconstrução da cultura e da história, registrada emdocumentos. No final do século XIX, acreditou-seque a ciência havia chegado ao fim, com base naformulação das leis clássicas da física, para descre-ver a interações gravitacionais e eletromagnéticacom equações determinísticas que permitiam en-tender o passado, presente e “prever” o futuro. Afísica quântica veio subverter essa ordem, no sen-tido de introduzir um aspecto probabilístico. So-mente podemos fazer previsões probabilísticas e,

mesmo essas, regidas por relações de incertezas.Outro aspecto é que, da mesma forma que a escri-ta abre novos níveis de Realidade para o conheci-mento, a física quântica também o faz, ao unificara realidade das manifestações ondulatórias comas manifestações corpusculares, trocando um“ou” por um “e”. Várias outras rupturas têm amesma dimensão para o conhecimento. Na atua-lidade, eu citaria a revolução da informática.

IHU On-Line – As evidências científicas aci-

ma referidas ainda são pouco compreendi-

das pelas demais disciplinas. Tal fato pare-

ce indicar a ausência de um debate trans-

disciplinar. Como iniciá-lo? Como o senhor

avalia, de maneira geral, a postura das insti-

tuições responsáveis por tal iniciativa?

Alfredo Gontijo de Oliveira – A dificuldadecom a física quântica está na compreensão de suabase conceitual. Como ferramenta de cálculo, elamostrou toda a sua robustez e as previsões feitaspela teoria quântica foram comprovadas paraalém de qualquer imprecisão referenciada em pa-râmetro antropológico. A grande diversidade deformulações da física quântica é outro aspectocomplicador de sua base conceitual. A interlocu-ção entre áreas se dá pela transposição de concei-tos e menos por aspectos matemáticos e funciona-is da teoria. As unificações se dão pelas universali-dades que as teorias contêm. As lógicas das for-mulações quânticas estão sendo utilizadas parafundamentar teorias nas áreas em que o conheci-mento é complexo. Assim, o conceito de emara-

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nhamento de estados quânticos (ou de uma formasimples, um sistema pode estar quanticamente emdois estados físicos diferentes, simultaneamente)tem sido utilizado para, metaforicamente, funda-mentar novas lógicas harmonizadoras de contra-ditórios. Esse é o caso da “lógica do terceiro incluí-do” em que, existindo elementos A e não-A, existetambém um elemento T que é simultaneamente Ae não-A. Esse tipo de transposição pode ser feitometaforicamente entre várias áreas do conheci-mento. O risco é que, em muitos casos, essastransposições metafóricas sejam feitas, violandoos princípios básicos de uma das duas áreas e aítemos o que tem sido designado de “impostura in-telectual”, ou seja, a transposição perde sua vali-dade. No que se refere à incorporação desse de-bate pelo sistema educacional, temos algumas di-ficuldades. Primeiro: ele ainda é fortemente regi-do por práticas pedagógicas que encontram seusfundamentos na ciência do século XIX: linear, de-terminístico, individualista, competitivo, e váriasoutras características dessa natureza. Segundo: oensino de ciências ressente-se da falta de educa-dores preparados para levar uma mensagem cien-tificamente consistente à população. Temos tam-bém um enorme poder sedutor das tecnologias,que são vistas como brinquedos, advindo da apli-cação da ciência contemporânea, ou seja, usu-frui-se da ciência mais como se ela fosse um orá-culo, inacessível ao cidadão. Provocativamente,eu pensaria em formular um conteúdo de ensinode física em que, independente da carga horária,ele estaria dividido em duas partes iguais de tem-po. A primeira metade seria dedicada ao paradig-ma cartesiano (mais ou menos o estado da ciênciado final do século XIX) de uma forma pedagogica-mente correta, ou seja, trabalhando um “conjuntomanuseável de exemplos”. A segunda metade se-

ria dedicada ao ensino da ciência contemporâ-nea, ou seja, aquela do século XX com destaquepara a física quântica, a ciência da complexidade,fenômenos não-lineares. Qual é a dificuldadepara fazer isso? Trata-se de uma nova prática e aresistência será muito grande.

IHU On-Line – Em linhas gerais, quais os

principais debates da física na atualidade

e quais serão seus possíveis reflexos na

sociedade?

Alfredo Gontijo de Oliveira – Essa questão émuito abrangente e começarei fazendo uma abor-dagem também abrangente. Existe hoje aquiloque podemos chamar de as três principais frentesde trabalho científico: o muito grande (questõesque envolvem, por exemplo, a origem do mun-do); o muito pequeno (que cai no domínio da físi-ca quântica); e o muito complexo (que cuida dequestões em que “o todo é mais que a soma daspartes”). Um grande desafio para a física hoje éuma teoria que consiga “unificar” o muito grandecom o muito pequeno. Entretanto, do ponto devista antropológico, as questões do muito comple-xo é que parecem ser as mais interessantes. Porexemplo, como explicar o fenômeno da consciên-cia? Na ausência de uma teoria reducionista quenos permita responder (no momento?) questõesdessa natureza, resta-nos a opção de trabalhar leisda natureza, de forma empírica. As ciências bioló-gicas fizeram isso com competência no século XX.Retornando à questão das transposições metafóri-cas, encontramos no conceito de autopoiésis31,gerado por Maturana32 e Varela33 na biologia,uma formulação que consegue estabelecer umasólida ponte com a ciência da complexidade, quetem sido preferencialmente trabalhada por físicos.Ele consegue, também, estabelecer conexões comáreas das humanidades.

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31 O termo autopoieses, designa os processos de funcionamento de sistemas auto-organizáveis vivos, mas que engloba tambémoutras dimensões, como processos sociais, produção de conhecimento e inteligência artificial. Foi criado por HumbertoMaturana e Francisco Varela (Nota da IHU On-Line).

32 Humberto Maturana e Francisco Varela são biólogos chilenos. Entre outros, escreveram El Arbol Del Conoscimiento.Santiago do Chile: 1994. Editorial Universitária. Santiago do Chile, 1994 (Nota da IHU On-Line).

33 Francisco J. Varela (1946-2001): Ph.D. em Biologia. Nascido no Chile, foi diretor de pesquisas do Centro Nacional dePesquisas Científicas (CNRS) no Laboratório de Neurociências Cognitivas do Hospital Universitário da Salpêtrière, em Paris,além de professor da Escola Politécnica, também em Paris. (Nota da IHU On-Line).

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IHU On-Line – Como o senhor analisa a trans-

posição dos conceitos da física quântica para

outros campos do conhecimento? Quais os

limites desejáveis à transdisciplinaridade?

Alfredo Gontijo de Oliveira – Já abordei umpouco sobre essa questão da transposição. Gosta-ria mais de reforçar agora a necessidade de apren-der ciência. Por exemplo, podemos nos questio-nar em que extensão os fenômenos biológicos (aconsciência, por exemplo) são regidos pelas leisda física quântica. Nesse caso, seria importanteuma mais ampla disseminação do mundo quânti-co para todas as outras áreas do conhecimento,para se fazer as apropriações metafóricas. Sobreos limites da transdisciplinaridade, eu gostaria depensar que a inexistência de limites é uma de suascaracterísticas. O estabelecimento de limites co-lapsa a transdisciplinaridade em disciplinaridade(com suas vertentes na multi e na inter). Nessesentido, as metodologias transdisciplinares devemprocurar trabalhar unificações abertas, no sentidode operar nos espaços vazios das disciplinas e notraspassamento entre elas. Unificação aberta re-presenta a impossibilidade de unificação absoluta.Trata-se de uma utopia? Talvez. Mas essa indefini-ção da transdisciplinaridade será, no mínimo,uma forte força propulsora das abordagens disci-plinares levando as pessoas a trabalharem ques-tões, problemas, temas, etc., com o olhar do ou-tro. Rompe-se com o olhar individualista, maspreserva-se a individualidade que, como elemen-to de um coletivo, contribui para o surgimento deuma propriedade, segundo a qual o todo é maisque a soma das partes, como já foi mencionado.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o

ensino da Física no Brasil? Em que medida

ele corresponde à dimensão social que a Fí-

sica assumiu?

Alfredo Gontijo de Oliveira – Na minha avali-ação, o grande problema com o ensino de Físicaestá relacionado com o conteúdo. Trabalhamoscom conteúdos anacrônicos e, conseqüentemen-te, desinteressantes para professores e alunos.Essa situação tem um forte componente inercial.Por exemplo, na maioria dos cursos superiores,em que a Física é ensinada como ferramenta, o

ensino começa com cinemática e costuma nãoabordar a Física do século XX. Esta continua ina-cessível e hermética para o profissional formadona universidade. No século XX, a Física reinoucomo ciência emblemática: pela explicação da na-tureza na sua versão clássica, pela geração de rup-turas como a produzida pela física quântica, pelametodologia de contrapor experiências e teorias epela produção de uma base conceitual que permi-tiu que a engenharia produzisse dispositivos quedisponibilizou inúmeros artefatos tecnológicos paraa sociedade. No século XXI, esse papel da Físicaserá mais sutil, por exemplo, mostrando que as teo-rias do muito complexo podem ser transpostas legi-timamente para outras áreas do conhecimento.

IHU On-Line – O senhor gostaria de acres-

centar outros comentários?

Alfredo Gontijo de Oliveira – Acredito que, nasegunda metade do século XX, a humanidade vi-veu uma ruptura conceitual que somente encon-tra similar na Renascença. Embora a base concei-tual científica para fundamentar essa nova relaçãodo homem consigo mesmo e com a natureza, jáesteja razoavelmente bem posta, ela ainda não foipopularizada. Uma grande dificuldade é que, em-bora a ciência contemporânea já tenha em si o in-determinismo inerente das questões antropológi-cas, ela ainda funciona de acordo com o determi-nismo cartesiano. Várias tecnologias estão agoracuidando dessas questões e vemos, por exemplo,no estudo de “imagens inteligentes” uma nova di-mensão com potencial de harmonizar a ciência e atecnologia e criar as condições para a populariza-ção da ciência. Temos um bom potencial paraatingirmos uma ciência e tecnologia humanizado-ras, posicionando o homem como sujeito do fazercientífico e tecnológico, e não o seu objeto.

IHU On-Line – O que o senhor quer dizer,

quando afirma que a ciência contemporâ-

nea “ainda funciona de acordo com o deter-

minismo cartesiano”?

Alfredo Gontijo de Oliveira – Essa é realmenteuma questão crucial. Eu acredito que já tenhamosadentrado uma cultura em que a ciência já permi-te pensar de acordo com um novo paradigma.

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Entretanto, os dispositivos e, conseqüentemente,a tecnologia daí advinda, é clássica, no sentido desatisfazer a lógica científica do século XIX. Porexemplo, embora tenhamos necessitado da físicaquântica para projetar o transistor, a lógica de fun-cionamento do transistor é clássica, mais precisa-mente, uma lógica buliana34 de “sim ou não”. A

computação quântica, quando, e se, se tornaruma realidade, será exemplo de uma tecnologiabaseada numa teoria do século XX (a física quânti-ca). Como temos uma cultura que é muito maisfortemente determinada pela tecnologia do quepela ciência, afirmo que estamos ainda sob o im-pério do determinismo cartesiano do século XIX.

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34 Trata-se do aportuguesamento do termo “booleana”, que designa os princípios da lógica booleana, criada pelo matemáticoinglês George Boole (1815-1864). A referida lógica oferece métodos para distinguir sentenças verdadeiras de falsas. Suasvariáveis assumem apenas valores 0 e 1 – verdadeiro e falso (Nota da IHU On-Line).

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Inteligência artificial e robótica

Entrevista com Farlei Jose Heinen

Farlei Jose Heinen é professor e coordena-dor do curso de Engenharia da Computação daUnisinos. Graduado em Informática – Análise deSistemas, pela Unisinos, com a monografia intitu-lada Robótica Autônoma: Integração entre planifi-cação e comportamento reativo. Este trabalho foipublicado com o mesmo título pela Editora Unisi-nos, em 2000. O professor também é mestre emComputação Aplicada pela Unisinos, tendo suadissertação o título Sistema de Controle Híbridopara Robôs Móveis Autônomos.

IHU On-Line – Quais são os desafios con-temporâneos da robótica e da inteligênciaartificial?Farlei Heinen – Apesar de todos os avanços darobótica e da inteligência artificial nos últimosanos, ainda existem muitos desafios pela frente.Um dos principais desafios é desenvolver a capa-cidade dos robôs interagirem com os seres huma-nos de uma forma amigável. Esta interação im-plica: melhorar a capacidade dos robôs nas áreasde reconhecimento de gestos, faces e voz; melho-rar a capacidade de locomoção em ambientesconstruídos para pessoas (com escadas, elevado-res, obstáculos, etc.); construir robôs capazes delidar com situações inesperadas (que não forampreviamente programadas). Outro grande desa-fio que a robótica e a inteligência artificial enfren-tam, é a viabilização da aplicação prática daspesquisas realizadas nos laboratórios de todo omundo. Permitir que a tecnologia restrita aos am-bientes de pesquisa se transforme em algo de útilpara a sociedade.

IHU On-Line – Para que um robô imite opensamento humano, ele precisa ser pro-gramado com uma lógica baseada em re-gras, como os computadores. Como o se-nhor poderia explicar isso a um públicoleigo?Farlei Heinen – A maioria dos robôs mais sim-ples tem sua programação baseada em uma lógi-ca de regras. Quando um robô é programado, uti-lizando-se regras, o programador deve informartodas as situações e ações necessárias para a exe-cução das tarefas. Vamos imaginar um aspiradorde pó robótico: este robô se moveria pela casa, as-pirando a sujeira de forma autônoma; para queele consiga executar esta tarefa (relativamentesimples), são necessárias muitas regras. Um exem-plo simplificado de regra seria em relação ao nívelde bateria – SE (BATERIA FRACA) ENTÃO (ANDEATÉ O RECARREGADOR). A própria ação ANDEconteria outras regras, e assim por diante. A quan-tidade de regras para executar, até os comporta-mentos mais simples, é enorme. Para viabilizar odesenvolvimento de robôs inteligentes, os pesqui-sadores têm desenvolvido diversas técnicas paraaprimorar o processo de programação dos robôs.Podemos citar: Redes Neurais Artificiais35, LógicaFuzzy36, Aprendizado por Reforço, entre outros.

IHU On-Line – Existem exemplos de robôsinteligentes hoje? O que eles são capazesde fazer? Quais os maiores avanços nas pes-quisas do Brasil e do mundo?Farlei Heinen – Utilizar a palavra “inteligente”para definir um robô ainda é motivo de muita

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controvérsia. Podemos afirmar que atualmenteexistem robôs capazes de executar tarefas muitocomplexas, que exigem planejamento, coopera-ção com outros robôs, reação às situações inespe-radas (situações para as quais os robôs não foramprogramados de forma explícita). Exemplos decomportamento inteligente podem ser encontra-dos em vários times de robôs que participam daRoboCup (Copa de Futebol de Robôs), em que osrobôs precisam trabalhar em conjunto para conse-guir ganhar as partidas. Outro exemplo é o projetoCOG desenvolvido no MIT (Massachusetts Institu-te of Technology). COG é um robô construídopara aprender pela interação com os seres huma-nos e com o ambiente. No Brasil, as pesquisas sãodesenvolvidas em várias áreas, podemos citar: na-vegação robótica, utilizando visão computacional,controle hierárquico de robôs, localização de ro-bôs por mapas, entre outros.

IHU On-Line – O que são as redes neuraise o mecanismo de estímulo/resposta eminteligência artificial? O senhor pode darexemplos?Farlei Heinen – As redes neurais artificiais(RNAs) são uma das ferramentas utilizadas pelospesquisadores da área de inteligência artificialpara programar os robôs por meio de um proces-so similar ao pensamento humano. As RNAs sãoinspiradas nas redes bioelétricas do cérebro, for-madas pelos neurônios e suas ligações (sinapses).Os robôs que utilizam redes neurais artificiais po-dem “aprender” um determinado comportamen-to ou tarefa. Este aprendizado ocorre por meio deexemplos: uma situação (ou estado) conhecida ouesperada é apresentada ao robô, ao mesmo tem-po é dito ao robô que ação deve ser executadapara aquela situação. Após apresentar várias situ-ações, o robô já é capaz de reagir a todas as situa-ções apresentadas, e ainda mais, é capaz de reagirinclusive a situações inesperadas, generalizadaspor treinamento.

IHU On-Line – Quais as previsões da robóti-ca para o futuro próximo? É possível pensarque existirá, em breve, um robô capaz deentender atividades que somente um ser hu-

mano seria capaz de efetuar, como aquelasque envolvem tarefas de raciocínio, planeja-mento, estratégia e percepção?Farlei Heinen – A robótica tem evoluído muitonos últimos anos. Diversas aplicações, antes restri-tas aos ambientes de pesquisa, vem se tornandodisponíveis para o grande público. Robôs huma-nóides capazes de dançar, animais de estimaçãorobóticos que jogam futebol e são capazes de re-conhecer o rosto do próprio dono, aspiradores depó robotizados que limpam toda a casa sozinhos,entre outros.

IHU On-Line – Quais as conseqüências daexistência de robôs inteligentes para asociedade?Farlei Heinen – A evolução da robótica, até oponto de existirem robôs inteligentes, só deve tra-zer benefícios para a sociedade. Não acredito navisão fantasiosa de robôs, dominando o mundoou tendo sentimentos como os seres humanos. É aprópria sociedade que dita as regras da evoluçãotecnológica, e um robô inteligente só vai existir seisso for uma demanda real, uma necessidade paraas pessoas. Sendo assim, os robôs inteligentes dofuturo terão um papel muito importante, aumen-tando a qualidade de vida e permitindo que aspessoas direcionem seus esforços físicos e mentaispara tarefas voltadas para a evolução do próprioser humano.

IHU On-Line – Qual a participação da Unisi-nos na pesquisa sobre robótica e inteligên-cia artificial?Farlei Heinen – Na Unisinos, as pesquisas sobrerobótica e inteligência artificial são realizadas peloGrupo de Inteligência Artificial (GIA), composto porprofessores do Mestrado em Computação Aplicada(PIPCA) e pesquisadores colaboradores; pelo Gru-po de Pesquisa de Veículos Autônomos (GPVA,que desenvolve pesquisa nas áreas de veículos in-teligentes, visão computacional e sistemas de apoioao motorista. O GPVA é formado por uma equipemultidisciplinar de professores das áreas de enge-nharia, computação e matemática. Mais informa-ções em: http://www.exatec.unisinos.br/~autonome http://ncg.unisinos.br/robotica/

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Um debate sobre o lugar do ser humano na

imprevisibilidade imanente ao mundo

Mesa-redonda com Karen Gloy, Günther Küppers e Cirne Lima

IHU On-Line reuniu os professores douto-res Karen Gloy, Günther Küppers e Carlos Rober-to Velho Cirne Lima para um debate sobre a Teo-ria dos Sistemas, a Teoria do Caos e a Teoria daAuto-organização.

A Prof.ª Dr.ª Karen Gloy iniciou a sua for-mação na Universidade de Hamburgo, concluin-do o doutorado e a livre-docência na UniversitätHeidelberg. É professora de Filosofia e Históriadas Mentalidades na Universidade de Lucerna(Suíça) e professora visitante na Universidade deViena (Áustria).

Günther Küppers é professor e diretor doInstitut für Wissenschafts-und Technikforschung(IWT) da Universidade de Bielefeld (Alemanha).Estudou Física na Universität Würzburg e Mün-chen. Posteriormente, obteve doutorado em Físi-ca Teórica e habilitação no campo dos estudos ci-entíficos pela Universität Wien. Suas áreas de pes-quisa são a Física do Plasma, a Hidrodinâmica, aFilosofia e a História da Ciência, a Teoria dos Sis-temas e a Teoria da Auto-organização. Entre ou-tras atividades, Günter Küppers é membro daAssociação de Cientistas Alemães, da SociedadeAmericana de Cibernética e da Sociedade para osEstudos Sociais e da Ciência.

Cirne Lima é professor no PPG em Filoso-fia da Unisinos. É graduado em Filosofia peloBerchmannskolleg, em Pullach (Alemanha), é dou-tor em Filosofia pela Universität Innsbruck, (Áustria)e livre-docente pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (UFRGS). Entre seus livros publica-dos, citamos: Realismo e Dialética. A analo-gia como dialética do Realismo. Porto Alegre:Globo, 1967; Sobre a contradição. Porto Ale-gre: Edipucrs, 1993; Dialética para Principian-tes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002. Asquestões da mesa-redonda foram propostas pelaIHU On-Line, e o debate foi conduzido por CirneLima.

Cirne Lima – Estamos aqui com a professo-ra doutora Karen Gloy, da Universidade de Lucer-na e da Universidade de Viena, e com o professordoutor Küppers, da Universidade de Bielefeld,para falar sobre a Teoria dos Sistemas, a Teoriado Caos e a Teoria da Auto-organização. Este en-contro não é, então, uma investigação científica,nem uma palestra científica. Queremos, de formaunicamente jornalística, dar uma entrevista sobreuma temática já conhecida, sobre a qual repetida-mente se diz algo, mas, na discussão, certamenteemergirão alguns aspectos novos. Vou usar pri-meiramente a palavra e levantar a questão, espe-rando que os colegas respondam e, então, surgiráo colóquio. A primeira questão proposta é a se-guinte: No cenário desenhado pelos novos estu-dos sobre as teorias dos Sistemas, do Caos e daAuto-organização, onde se posiciona o ser huma-no como “sujeito social”?

Günther Küppers – Esta é realmente umaquestão difícil, porque há situações diferenciadas.

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Numa posição extrema, se encontra Luhmann35,que exclui o ser humano do sistema social e quesó concebe a comunicação como elemento ecomo princípio constitutivo de todos os sistemas.Aí o indivíduo praticamente não desempenha ne-nhum papel; o sistema social só se desenvolvepela comunicação e há um acoplamento – este éum termo técnico introduzido por Maturana36, –um acoplamento entre os sistemas psíquicos, querepresentam os indivíduos e os sistemas sociais,que determinam a vida social, as estruturas sociaise a dinâmica social. Esta é uma posição extremaque é criticada por muitas pessoas; eu, pessoal-mente, penso que também se pode construir umateoria de sistema social no qual se incluem indiví-duos como elementos, ou seja, propor uma outraconstrução, diferente da de Luhmann. O que, en-tão, promove esses sistemas sociais e promoveseu surgimento? Minha proposta é a de que issodecorre da percepção de incerteza, uma incertezaque requer regulação, levando a que corporaçõessociais apareçam e comecem a dirigir e estipulardeterminados regramentos que são, então, acei-tos socialmente e se tornam obrigatórios, estrutu-rando a vida social, e, com isso, formam, comoconseqüência, instituições sociais, iniciando umaescala temporal, uma dinâmica bem diversa doque a dos indivíduos que interagem nesses siste-mas. Aí ocorre a possibilidade de que certos indi-víduos particulares pertençam a sistemas sociaisbem diversificados, subsistemas, como a socieda-de, a política científica, a economia e outros sub-sistemas da sociedade. Entre estas duas posições,se movimenta a discussão, a qual, creio, não estádefinida. Cada um tem suas razões para argumen-tar por que a coisa é assim como é. Luhmann ti-nha assumido a posição de Maturana e posso merecordar da discussão entre Maturana e Luhmann,

em que Maturana diz claramente que sistemas so-ciais não são sistemas autopoiéticos37. Aí já entranovamente a polêmica entre o que é autopoiesis eo que é auto-organização, e, se autopoiesis se dis-tingue de auto-organização. A autopoiesis tem apropriedade adicional de que ela também temati-za o problema da autoprodução, deixando total-mente de lado a auto-organização, falando ape-nas da auto-estruturação. A paisagem teórica nãoé unitária, ela é polêmica, tendo cada um razõespessoais para sua posição.

O duplo sentido do “sujeito social”

Karen Gloy – Talvez ainda se possa acres-centar algo significativo e fundamental sobre a re-lação entre o indivíduo e o sistema social. O siste-ma se constitui com base na ação conjunta dos in-divíduos, ou o sistêmico, o sistemático, é algonovo, uma totalidade, e as partes individuais sãoapenas partes integradas desse, assim chamado,sistema?. Aí há posições diversificadas: se os indi-víduos particulares formam um sistema social, ouse um sistema social é sempre uma determinadaidéia ou interpretação, na qual as partes indivi-duais se integram. Por exemplo, se temos umpensamento composto de muitas partes, o todo é,então, algo novo, que é um falar com uma lingua-gem em face das muitas partes individuais. E aí sepoderia perguntar se o sistema de relações, cha-mado “indivíduo”, deveria realmente ser reduzidoa dois sistemas, ou a um sistema que perfaz um or-ganismo vivo, organismos um ao lado do outro, eo sistema seria, então, a idéia de uma comunica-ção e da vida em comum, o que, porém, está or-ganizado de uma forma diferente da do organis-mo vivo. Isso ainda é uma problemática.

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35 Niklas Luhmann (1927-1998): sociólogo alemão. Filiado à Teoria dos Sistemas, sua obra incorpora influências, concepçõesque vêm das ciências exatas, especificamente da Biologia. Em 15 de março de 2005, no evento Abrindo o Livro, promovidopelo Instituto Humanitas Unisinos, o Prof. Dr. Leonel Severo Rocha, da Unisinos, apresentou El derecho de la sociedad,obra de Niklas Luhmann (Nota da IHU On-Line).

36 Humberto Maturana: biólogo chileno, criador da autopoiese e um dos propositores do pensamento sistêmico. (Nota da IHUOn-Line)

37 Os sistemas autopoiéticos interatuam entre si sem perder a identidade. Referem-se à idéia de autopoiese, introduzida porHumberto Maturana e Francisco Varela (filósofo e biólogo chileno) como uma forma de organização sistêmica, na qual ossistemas produzem e substituem seus próprios componentes, numa contínua articulação com o meio. (Nota da IHU On-Line)

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Cirne Lima – Tenho uma posição que émais radical do que a dos meus colegas. Aqui sepergunta pelo sujeito social. E sujeito pode aquiter duplo sentido: o indivíduo e o sujeito socialcomo uma sociedade organizada. Eu começariacom o indivíduo, que é social. Na tradição, Aristó-teles tomou o indivíduo como primeiro. E o indiví-duo é social. E o social é carregado por dois indiví-duos com base em uma relação, isto é, nós temossubstâncias que são individuais, segundo Aristóte-les, e, acima delas, temos uma relação, e este é oponto crucial, que pode ser e, eventualmente,pode não ser. Isso significa que o social não per-tence, necessariamente, a esta dimensão. Eu de-fendo exatamente a opinião oposta, que é apre-sentada por pensadores alemães, sobretudo porHegel: o indivíduo singular só existe como nó deuma rede. Isso quer dizer que nem sequer pode-mos falar do indivíduo singular, sem que se fale si-multaneamente do indivíduo social. Isso nem épossível. E Hegel, no primeiro capítulo da Feno-menologia38, mostra que o singular nem sequerpode ser pronunciado, mas só pode ser apontadocom o dedo. Quando se pressupõe que o indiví-duo sempre é somente um nó numa rede, deve-seperguntar, em segundo lugar, quais são os fiosque amarram esse nós. Bem. Estes fios são hojeexplicados pela Teoria dos Sistemas e pela Teoriada Auto-organização. A Teoria dos Sistemas con-siste, se o expressarmos matematicamente, de seisséries de conjuntos teóricos, portanto uma grandequantidade, que tem uma estrutura, e indivíduosno sentido da modernidade, no sentido de Aristó-teles, mas uma estrutura, um exemplo clássico tí-pico para um conjunto. Por exemplo, o conjuntode todos os suíços no qual se pode considerar umsubconjunto. Por exemplo, todos os suíços que fu-mam. Considerar um outro conjunto e aí o dos suí-ços que não fumam seria automático, mas nós po-demos considerar, por exemplo, todos os suíços

que zumbem. E assim se pode hoje, pela Teoriados Conjuntos, chegar mais perto do indivíduo.Se Baumann39 quer, então, nomear o indivíduocomo singular, isso não funciona. Nem no idealis-mo alemão, nem na Filosofia analítica40, segundoQuine41 e alguns dos melhores seguidores da Filo-sofia analítica. Portanto, o indivíduo singular,como o entendemos cotidianamente, ele, tu, issonão existe. Não pode ser pensado, nem pode serexpresso. Por conseguinte, só há indivíduos socia-is. E estes indivíduos sociais só podem subsistirnuma rede. E esta rede, do ponto de vista científico,são conjuntos que estão organizados, e cada con-junto tem naturalmente sua característica, que éum predicado e é universal. Por exemplo: os suí-ços que fumam. E estes indivíduos só são capta-dos por aquilo que está acima. E quando váriosconjuntos se misturam, temos, assim, esta colori-da mistura que é a nossa sociedade. Se nós, ago-ra, com nossos atos de vontade, estabelecemosconexões entre os subsistemas, então temos,como é ensinado na Teoria dos Sistemas, a hierar-quia dos sistemas, em que há um sistema superiore globalmente abrangente, e neste, muitos subsis-temas, nos quais o indivíduo singular no sentidoclássico desapareceu, sendo cada indivíduo social.E agora, social no sentido moderno, em que somossolidários com outros, é conseqüência, quando apercebemos que estamos nessa rede, que, quandoa destruímos, também somos destruídos. É bemeste o pensamento que se adiciona.

Karen Gloy – Posso contradizer um pouco?As conseqüências deste modelo são certamentemuito perigosas, enquanto o indivíduo, segundo ovelho princípio clássico, é concebido como inefá-vel, é inominável, é indizível, é totalmente deter-minado. Falamos agora de um indivíduo inseridonuma função, definimos o indivíduo como um nó,com um complexo de funções, e aí existe o perigode se poder manipular o indivíduo. E estou na

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38 Fenomenologia do Espírito, obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, publicada originalmente em 1807. No Brasil, foipublicada parcialmente na coleção Os pensadores. São Paulo: Abril, 1980. Uma edição integral foi publicada pela EditorasVozes, de Petrópolis (RJ), em 1997. (Nota da IHU On-Line)

39 Martin Baumann: filósofo e teólogo alemão. (Nota da IHU On-Line)40 A filosofia analítica tem como foco principal a linguagem e é também denominada filosofia da linguagem. Destaca o papel da

Filosofia como investigação, apoiada nos desdobramentos da linguagem. (Nota da IHU On-Line)41 Willard Van Orman Quine (1908-2000): filósofo estadunidense. (Nota da IHU On-Line)

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pesquisa do indivíduo no sentido clássico, comozôon politikón, no conceito aristotélico-platônico,no qual o indivíduo, ou o ser humano, é um entepolítico, social, e também só pode ser pensado nocampo, na convivência com outros indivíduos. Oprogresso para a modernidade foi o acento na teo-ria da subjetividade, que constatamos no idealis-mo. Naturalmente, então, o sujeito é egocêntrico,tem sentimentos de expansão, sendo a função so-cial deixada para o segundo plano. A liberdade eresponsabilidade, porém, estão sempre vincula-das ao sujeito, e não a um complexo de distribui-ções de funções. O indivíduo quase submergenestas diversas funções que foram determinadasou na máscara (que era o sentido originário depessoa). Eu, por conseguinte, considero um tantoperigoso dissolver a liberdade e a responsabilida-de do indivíduo numa rede onde o indivíduo éapenas um ponto nodal de diversas relações. Issotalvez seja uma concepção que propriamente nãopertence à nossa cultura, que o Oriente talvez co-nheça bem, onde se leva em consideração o ou-tro, mas toda a nossa tradição foi a acentuação doindivíduo, e não sua anonimização e massifica-ção. Nisso vejo um certo problema, se esta é suaopinião sobre a referida teoria.

O surgimento do social como processode regulação

Günther Küppers – O que me agrada é arepresentação da rede e dos nós. Não me agradaque isso seja pensado em termos de estrutura. Enós aprendemos que passamos da estrutura paraprocessos. Aí precisamos entender como surge ecomo se desenvolve isso. O social, se assim o qui-sermos, é uma conquista da evolução. Não estevedesde o começo no mundo. Em determinado mo-mento, o social surgiu como sistema de conheci-mento e é preciso perguntar como, pois há muitosindivíduos biológicos, animais que não vivem so-cialmente; outros, que já o fazem... Isso não é umacaracterística que só atinge o homem, e eu creioque o social veio ao mundo naquele momento – é

quase uma quebra de simetria, se o posso expres-sar assim – quando o homem faz uma distinçãoentre si e todos os objetos, ou entre os objetos queele encontra no ambiente, destaca um objeto queé como ele e que poderia ser ele. E nisso imediata-mente descobre um risco assustador, o risco que,com os mesmos objetivos, ele pode utilizar os ob-jetos do meio ambiente para seu próprio proveito,explorá-los, etc., e então, ao descobrir que há, noambiente, um objeto que é como ele, imediata-mente se sente obrigado a fazer um manuseio derisco. E, nesse manuseio de risco, ele precisa esta-belecer regras sociais. Ele precisa tratar de entrarnuma discussão com o outro, chegar a um acor-do, que, em tal ou tal caso, aja de tal ou tal manei-ra. E isso inicialmente é bem elementar, o surgi-mento do social como um processo realmentecomplexo de regulação, e o social só atua onde – eaí a idéia da rede é muito boa – há tais processosde regulação, e, na minha linguagem, se trata daredução de insegurança, de risco de qualquer es-pécie. O primeiro também foi uma forma de inse-gurança. Precisamos, realmente, manter separa-dos os sistemas psíquicos, os sistemas sociais,também o homem como sistema típico e em suaindividualidade. O problema é apenas que, no so-cial, se tem muita dificuldade de decidir qual épropriamente o meu sistema psíquico, pois esta-mos socialmente contaminados. Quando eu dese-jo um automóvel, eu não sei se o desejo comoGünther Küppers ou como vítima de uma socie-dade de consumo. Isso significa que traçar limitesentre o sistema social e o individual, o psíquico – eaí ainda se acrescenta o sistema cognitivo –, émuito difícil, porque o social tem precisamenteum efeito muito amplo, não há quase nada quenão se precise regular socialmente. E por isso eudiria que esta rede com os nós é uma imagemmuito bonita, quando ela é concebida dinamica-mente. Neumann42 diria que aí ainda haveriasempre uma reserva, porque o diverso dá o siste-ma típico, a outra dinâmica surgiu simplesmenteporque o sistema cognitivo podia observar-se a sipróprio e, dessa forma, se tornou consciente de si.Desta auto-observação de si surgem os conceitos

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42 John von Neumann (1903-1957): matemático húngaro. (Nota da IHU On-Line).

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de eu, de si mesmo e de estranho. Temos situa-ções muito complexas em que se formaram, nodecurso da evolução, o que hoje descrevemoscomo psique, cognição e social.

Karen Gloy – Posso fazer uma pergunta?Nós partimos do fato de que um sistema social éum produto emergente, isto é, você parte do indi-vidual. Mas, com Buber43, também posso partir dadualidade, da relação eu-tu. Primária é a família eela já é um sistema elementar, antes que o sistemasocial aflore.

Günther Küppers – Se assim o queres, osocial se constitui da relação eu-tu. Eu reconheçono ambiente alguém que é como eu: tu. E segun-do isso, devemos falar. Esta é a fonte do social. Eagora acresce que contatamos com maior núme-ro, surgindo unidades como a família, o clã etc.em que sempre novos sistemas sociais surgiram -e, sob certas circunstâncias, até desapareceram denovo, - porque eles precisavam regular determi-nadas coisas. Muitas vezes, também ocorre quesistemas sociais se cindem. Por exemplo, a novaciência surgiu, porque o sistema “eu sei o quecreio e eu creio que eu sei” se bipartiu, e fé e certe-za se tornaram, de repente, duas coisas diferencia-das, em que a certeza, pelo acesso experimental,se tornou uma atividade operacional. E aí a ciên-cia podia dizer: “não temos nada a fazer com vo-cês, com a fé, mas nós temos competência socialpara aquilo que realmente é”. Aí temos os apare-lhos, as teorias, os conceitos que, de certa forma,permitem responder a essas questões. Contudo,constatamos que surgem sempre novas tipologiasde incertezas, que conduzem à diferenciação denovos sistemas sociais e que determinadas incer-tezas entraram em descaminhos, e isso significaque sistemas sociais desaparecem. Aí temos algotremendamente dinâmico, podendo se dizer quesociedade é algo que abrange todos os sistemassociais. Não sei se isso teria sentido; mas, ao me-nos, teria sentido dizer: há estes múltiplos sistemassociais em que todos se organizam com base nomanuseio de determinados problemas de risco,que existem e operam para este período, que,

pela dinâmica da percepção e da regulação, con-duzem sempre a modificações, novas ocorrênciasdo meio ambiente, que conduzem a novos trata-mentos de incertezas. Assim, temos sistemas so-ciais muito dinâmicos, e o indivíduo é, nesta rede,o nó naturalmente é avassalado e superestimula-do pelo social e, muitas vezes, nem sequer conse-gue mais decidir se é ele que está em questão, ou asociedade.

Cirne Lima – Estou de acordo com quasetudo. Converge para aquilo que eu disse antes e oque disse Karen no final. Ela falou primeiro do in-divíduo, da posição aristotélica, mas, em seguida,ela falou da relação eu-tu introduzida por Buber eo que eu queria propor era precisamente isso.Portanto, a relação institui o indivíduo singular.Nem sequer posso ter o indivíduo singular fora darelação, e por isso, a rede, e por isso, os subsiste-mas. Eu penso, pois, que aquilo que popularmen-te chamamos de indivíduo é um subsistema, cons-tituído de subsistemas inferiores, subsistemas,sangue, pulmão, respiração, digestão, as bactériasque estão em nossos intestinos... No momento emque nos encontramos com o outro, temos uma es-pécie particular de conexão de dois subsistemas. Eaí surgem as diversificadas tensões e relações queGünther mencionou. Entretanto, eu faço uma dis-tinção: penso que os sistemas sociais não podemser concebidos apenas no sentido estrito em que opensaram meus dois colegas. Tomamos “social”em sentido literal: o social é de homem para ho-mem. Onde não há homens, não existe o social.Minhas relações com meu cachorro não são sociais.E eu penso que hoje precisamos ampliar a palavrasocial, não só sobre os cães, não só sobre os ma-cacos no jardim zoológico, mas também em rela-ção às plantas, aos rios: aí se encontra a raiz daecologia, porque o social, em sentido real, é o sis-tema global. Não no sentido estrito, e meus doiscolegas o tomaram nesse sentido, e, em sentidoestrito, não consideraram que há ulteriores subsis-temas, concebendo o social, a meu ver, em senti-do muito restrito.

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43 Martin Buber (1878-1965): filósofo judeu-polonês. (Nota da IHU On-Line).

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A insustentável distinção entre acaso enecessidade

Karen Gloy – Isso é muito interessante, masé a posição de Hegel do eu perante a natureza.Para mim, é a introdução do pensamento ecológi-co, porque, para Hegel, a natureza é o outro demim mesmo, é a alteridade que, na base, é o mes-mo sistema que é o eu, só que na alteridade (di-versidade). Se desta forma não se considera a na-tureza como algo estranho, mas como um sujeito,só que um outro, então se chega ao pensamentoecológico, e não se pode mais operar mecanicisti-camente com a natureza, manipular, dirigir, comocientistas naturais fazem experimentalmente, tor-nando a natureza, como diz Heidegger, uma “ar-mação” (Gestell). Aí se assume outra relação, eeste sistema de relações parece ser sua concepçãoda Teoria dos Sistemas com base em Hegel, sebem o interpretei.

Günther Küppers – Brevemente, para evi-tar um mal-entendido: eu ampliaria o social, por-que me parece que isso inclui os animais, e o pen-samento me parece interessante de ampliá-lo tam-bém para a natureza, vendo-o como um todo, oque então nos ajuda no trato com a natureza.

Cirne Lima – Temos, pois, aqui, uma con-cordância recíproca, o que é raro. O que até aquidiscutimos é a ponta da pesquisa sobre a Teoriados Sistemas. Mas temos outra pergunta sobrecaos e auto-organização, se eles estão inter-rela-cionados. O professor Küppers poderia fazer umapequena síntese?

Günther Küppers – Quando se levanta aquestão sobre a constatação da pesquisa do caos,se poderia dizer, primeiramente, que distinçõesque fazíamos antes não são mais sustentáveis: adistinção entre acaso e necessidade, saber e igno-rância, ordem e desordem; que o mundo deve,por assim dizer, ser ordenado de outra maneira. Apesquisa sobre o caos mostrou que o conceitodesta distinção entre necessidade e acaso se refe-ria sempre ao que era irregular, atribuindo-o aoacaso. E hoje se levanta a questão se realmenteexiste algo como o acaso, se isso pode ter sentido.A pesquisa sobre o caos mostrou que sistemasbem determinísticos, que transcorrem segundo ri-

gorosas regulamentações, por pequenas varia-ções em sua dinâmica interna, mostram em seusparâmetros uma conduta totalmente caótica, apa-rentemente casual, tornando-se, assim, alheios aocálculo e imprevisíveis. A velha concepção que sepossa encarar o mundo como uma espécie de re-lógio, onde se lê o transcurso do tempo, podendoa partir de um momento posterior calcular o tem-po, se demonstrou como demasiado serial e sim-ples, pois há uma imprevisibilidade que é imanen-te. Sempre se acreditou que há âmbitos do mundosobre os quais não sabemos ainda o suficiente.Por exemplo, nos sistemas sociais: há tantos indi-víduos que podem fazer tantas coisas e uns o fa-zem de um modo e outros de outro, e dessa formasão colocados limites ao saber. Todavia, há a con-cepção de que podemos acumular suficientes co-nhecimentos, estabelecendo estações de mensu-ração, podendo, em última análise, predeterminartudo. A concepção clássica da meteorologia, háuns trinta anos, era a de que se podia espalharpelo planeta estações de medição que nos permi-tiriam calcular o clima não só para três dias, maspara um mês, e assim por diante. Isso se demons-trou como falso. Precisamente por esta razão, aimprevisibilidade que inabita o caos, que inabita acomplexa dinâmica regulamentada, que é suficien-temente complexa, esta imprevisibilidade é ine-rente e não pode ser afastada por nenhum proces-so. Não há possibilidades sistêmicas de contor-ná-lo ou solucioná-lo por uma futura teoria me-lhor, que um dia poderíamos sabê-lo – isso jamaissaberemos. Há, porém, um segundo efeito, o daauto-organização, que está diretamente relacio-nado com o caos, no sentido de que ele causa ocontrário, que conecta coisas entre si, mas tam-bém liga coisas estruturais a conexões não-linea-res. E existe a possibilidade de que esta dinâmicaauto-organizadora, na qual causa e efeito se con-dicionam e se conectam reciprocamente de modocircular, fazendo surgir situações ou estados orde-nados que são muito simples e que também apre-sentam uma dinâmica muito simples e que, demaneira simples, também são predizíveis em seudesenvolvimento, mas sempre ainda correm o ris-co. A auto-organização ainda tem em si deter-minados momentos, determinados pontos em

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que o desenvolvimento espontaneamente passade um estado para outro, passa de uma ordempara outra, mas também pode passar de uma or-dem para um estado caótico. E que a coisa é as-sim, mostram, por exemplo, hoje os grandes mo-delos que temos sobre a pesquisa climática, e assimulações climáticas que seriam impossíveis, senão houvesse na natureza a redução de complexi-dade, de modo que podemos imitar essa dinâmi-ca no computador, não calculá-la, veremos comoo desenvolvimento de tais complexos sistemas sedesenvolve nos últimos 30-40 anos. Estamos nes-te ponto e há grandes problemas, auto-organiza-ção e caos são dois momentos reciprocamenteconfrontados.

Karen Gloy – Nós introduzimos a Teoriados Sistemas como inovação. Quando, de certaforma, abrangemos historicamente a Filosofia etemos os conceitos de necessidade e acaso, nãovejo nesta teoria evolucionária muita diferençaem face da combinação de necessidade e acaso.Não se trata de um sistema linear, de um determi-nismo, em que se pode prever tudo, mas as muta-ções que surgem e que descrevemos como impre-visíveis ocupam a posição do acaso. De modo quetemos agora sistemas dinâmicos, sistemas evoluti-vos que se auto-organizam, mas que, de certa for-ma, mantêm as velhas concepções de acaso e ne-cessidade. Não vejo verdadeiro progresso nisso.Ainda poderíamos dizer, e sobre isso já discuti-mos, que a evolução transcorreu darwinistica-mente e que, com base no meio ambiente, ele for-neceu os critérios que melhor se adaptam a umsistema, segundo suas mutações, ou não. Agora,estes sistemas que se autodesenvolvem e auto-or-ganizam e que novamente se tornam instáveis,

entram em colapso e conduzem a novos sistemas.Eu não vejo, porém, que, na Teoria do Caos, sejapensado algo novo, que esta combinação de ne-cessidade e acaso também conta com impondera-bilidade e imprevisibilidade de tipo sistêmico. Eassim falamos de uma auto-organização do siste-ma sob estas condições.

A origem da Teoria dos Sistemas

Cirne Lima – Meus colegas não abordarama origem da Teoria dos Sistemas e da Teoria doCaos. A Teoria dos Sistemas surgiu em Viena, nasmãos e na cabeça de um zoólogo, que tinha estu-dado Filosofia, de nome Ludwig von Berta-lanffy44. Ele viajou ao Canadá e aos Estados Uni-dos e, com outros colegas, viu que tudo isso deveser pensado conjuntamente, senão não teria senti-do. Devemos lembrar que isso ocorreu precisa-mente na época da construção da bomba atômi-ca, e a pesquisa de ponta teve, então, problemasque precisavam ser solucionados. E Bertalanffy ea Teoria dos Sistemas tinham avançado muitonas pesquisas e Küppers trouxe agora bastantesinformações a respeito. Mas Bertalanffy não é opai da Teoria dos Sistemas. Ele escreveu um livrosobre a Teoria dos Sistemas cujo tema é o cardealCusanus45, da grande Renascença, neoplatônico,e que hoje ninguém conhece. Bertalanffy nãoapenas fez uma longa introdução, mas tambémuma tradução ampliada, e só então, por meio deCusanus, ele entendeu o conceito de unidade. E opensamento da unidade é bem simples. Meus co-legas falaram profissionalmente; permitam-me fa-lar bem brasileiramente. O que é um sistema, dito

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44 Ludwig von Bertalanffy (1901-1972): autor do livro General systems theory – Essais on its foundation anddevelopment. New York, 1968. Tradução francesa: Théorie générale des systems: physique, biologie, psycologie,sociologie, philosophie. Paris. 1973. Publicou também The Theory of open systems, General System Yearboock. 1956.A primeira edição brasileira de Teoria Geral dos Sistemas foi publicada pela Editoras Vozes, de Petrópolis (RJ), em 1968.(Nota da IHU On-Line)

45 Nicolau de Cusa (1401-1464): teólogo alemão. Secundou a ação dos papas na Alemanha. Foi educado com os Irmãos da vidacomum em Deventer, onde sofreu a influência do misticismo alemão. Estudou na Universidade de Heidelberg, foco denominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu Matemática, Direito e Astronomia. Ordenado padre, teve parte notável noconcílio de Basiléia (1432). Foi legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos na Itália. As obras fundamentais deNicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De conjecturis, Apologia doctae ignorantiae. As fontes prediletas eprincipais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o neoplatonismo cristão e os autores de tendêncianeoplatônica, em geral. (Nota da IHU On-Line)

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de um modo que um brasileiro possa entendê-lo?Um jogo de futebol. No jogo de futebol, temosonze jogadores de um lado e onze jogadores dooutro, uma bola, um juiz, um campo, duas golei-ras... Isso é um jogo de futebol? Não. Um habitan-te de Marte que venha para cá, diria: bobagem:por que ele não segurou a bola com a mão? Sepensarmos no famoso gol de Maradona, em que“a mão de Deus” teria “chutado” a bola no gol...O que acontece num jogo de futebol? Além damovimentação do jogo que se pode fotografar efilmar, há regras, princípios, que não se podem fo-tografar, que se precisa observar e extrair dos fatose expressar. Isso é um sistema. O sistema não éapenas a soma das partes, mas uma ordem queorganiza essas partes. E isso resulta no que meusdois colegas comentaram. E sistema não é apenasuma invenção da modernidade, do século XX, oude Bertalanffy; não, sistema é um problema neo-platônico, uma solução neoplatônica para condu-zir o mundo a uma unidade. Isso já vemos em Pla-tão, no Timeu, é bem claro em Plotino, e a idéiada emergência do novo já encontramos além dePlotino, em Aristóteles. São velhas traduções quesintetizamos e passamos para a linguagem dasciências modernas, e vejam, a velha Filosofia seadapta exatamente às modernas ciências, e resol-ve problemas que a ciência moderna não resol-veu. Por exemplo: o que significa um ser vivo?Este era um problema sem solução até a chegadade Bertalanffy. E assim em outros campos. O queo colega de Bielefeld mencionou sobre o clima: háum americano, Williams46, que é o primeiro ho-mem na história mundial que tem suficiente capa-cidade computacional. E, como havia a guerra,era tremendamente importante que os lançadoresde bombas soubessem exatamente que clima fa-ria. Os americanos investiram, então, somas fabu-losas em pesquisa meteorológica. Assim se podedizer: “O.K., Williams nos fará tal mapa meteoro-lógico, que nos permite bombardear com todaexatidão os nossos alvos”. E o que Williams des-cobriu? A Teoria do Caos. Uma curva de formasbem simples, que, com um pequeno movimento,

faz uma bifurcação. Matematicamente, desde Pla-tão, não se sabe como surge isso. Apareceramcurvas caóticas, o que, para o cientista, foi umchoque. Todos ficaram chocados, mas no mo-mento em que Wiliams o propôs, e Robert May47

descobriu que a população das abelhas age exata-mente segundo esse cálculo, se começou a adotara Teoria do Caos em todos os campos e obter êxi-to. Muitos problemas não resolvidos e engaveta-dos pelos cientistas, estão vinculados à Teoriados Sistemas e acoplados à Teoria do Caos. Mui-tos falam bobagens sobre a Teoria do Caos, masela é bem determinada, algo determinístico, feitoem computador, e um simples cálculo, se ele é sufi-cientemente repetido, não só despertará bifurca-ções platônicas, mas também uma linha caóticaque passa depois para uma nova ordem e não po-demos dizer previamente qual. E por isso a vida étão complicada, e o homem e a sociedade são tãocomplicados, porque, a cada momento, este fenô-meno é redespertado. E a velha maneira de pen-sar desapareceu completamente: se conhecemostodas as leis e se reconhecemos o ponto de partidade um sistema, podemos predizer tudo. Isso mere-ce ser pensado e revisto por meio desta teoria.Este é um passo gigantesco na ciência e é um pon-to em que Ciência e Filosofia se aproximaram lou-camente, inclusive no âmbito da necessidade, dacontingência e da liberdade, porque a liberdade éa emergência do novo. E a liberdade se exerceneste espaço onde algo surge pela emergência donovo.

“A novidade da Teoria dos Sistemas éa sua constante neo-organização”

Karen Gloy – Na história da Teoria dos Sis-temas, há diferenças fundamentais, de modo quenão se pode reconduzir tudo à opinião clássica,antiga. A Antigüidade foi de opinião de que nãohá nada de novo debaixo do sol. Em Platão, o sis-tema se auto-relaciona e se conserva a si próprio,e não se modifica, e não se gera a si próprio. Na

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46 Garnet P. Williams: meteorologista estadunidense, formulador da Teoria do Caos. (Nota da IHU On-Line)47 Robert May (1936): biomatemático australiano radicado nos Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line)

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forma aristotélica, um homem gera um homem.Até Cusanus... são sistemas estáticos, que se auto-conservam e auto-reproduzem. E o novo na Teo-ria dos Sistemas é este pensamento do desenvol-vimento, esta constante neo-organização que éinstável, que requer fluxos de equilíbrio, a recons-tituição de algo estável ou a busca por um estadoestável que também pode ser ultrapassado. Creioque este é o aspecto inovador dos séculos XIX eXX, desde que Bertalanffy e o Círculo de Viena48

desenvolveram esta Teoria dos Sistemas, que tra-ta de sistemas dinâmicos que não se auto-repetemem determinados lapsos de tempo, mas que, notodo, perfazem desenvolvimentos e que buscamsua estabilidade pela auto-reprodução, porquesão determinados pelo ambiente ou por fatores in-ternos que os fazem perder o equilíbrio. Este é oaspecto novo, que vai além da História, da Anti-güidade e da Idade Média: o fato de que temos es-ses sistemas dinâmicos, fluidos, não tendo, paraisso, uma prefiguração na tradição. Somente como historicismo, no século XIX, emergiu a historici-dade de sistemas, que também passa para outrosâmbitos, de modo que já não falamos “da” ciên-cia com “tais” critérios científicos, mas de um de-senvolvimento, de uma evolução, de uma substi-tuição de paradigmas, como Kuhn49 os chamava,ou como quer que queiramos denominar. Portan-to, brevemente: não a automanutenção de um sis-tema, no sentido do sistema estático, mas a buscade novas formas de organização, já que o mundose tornou extremamente complexo, e talvez sem-pre o tenha sido, mas que agora deve ser integra-do na maneira de pensar. Este me parece o pensa-mento inovador da Teoria dos Sistemas.

Cirne Lima – Não estou em tudo de acordocom o que Karen Gloy disse. Acrescentarei outrosaspectos sobre a diferença entre o antigo e o mo-derno. Segundo Platão e Plotino, por exemplo,havia uma evolução, havia um processo, só que

este processo era inverso. Em Platão, e sobretudoem Plotino, se partiu do Ser mais perfeito que es-tava bem no alto, e quanto mais fundo se desciana pirâmide, menos perfeição havia, menos or-dem, menos necessidade. Isso hoje é precisamen-te o inverso. Nosso ponto de partida não é a perfei-ção, o kalón kai agatón de Platão, ou de Aristóte-les; no Timeu de Platão, não se tinha tanta certe-za, já havia duas perspectivas, mas, em seu todo,se partia do mais perfeito para o menos perfeito,até o ínfimo. E hoje o movimento é praticamenteinverso. Partimos de dados que são muito sim-ples, e esta é praticamente a definição da Teoriado Caos: formas bem simples, se elas são suficien-temente repetidas, e isso só se pode fazer em com-putadores, geram imagens e estruturas de uma ri-queza que nem sequer se pode imaginar. E essa é,então, uma tremenda diferença. Penso que, naAntigüidade, havia uma evolução, só que se par-tia do perfeito para o imperfeito. Agora o inverte-mos e esta inversão coloca os colegas, pois eu soupuramente filósofo, ou ante um dilema, ou anteuma solução: porque os colegas físicos, até o sécu-lo XVIII sempre esperaram, no mais íntimo do seuser, que cada processo fosse reversível. E entãoum vienense que elaborou a estrutura do gás,Boltzmann50, viu que o mundo é temporalmenteorientado. Não se pode inverter o tempo.

Karen Gloy – Ele também assumiu a po-sição inversa. É puramente subjetivo o queBoltzmann diz. A lei da entropia e sua inversão.Isso é meramente subjetivo. Assim como o ho-mem na terra está acostumado a se ver comoponto central, em baixo e não em cima, assimtambém se pode inverter o tempo. São intervalosmuito pequenos que se observam, e era estaidéia do equilíbrio a que se tendia, mas o próprioBoltzmann concordou com a inversão, que háleis meramente subjetivas da entropia presentesna termodinâmica.

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48 Movimento filosófico originalmente austríaco, criado de uma corrente de pensamento intitulada positivismo lógico, reagindo àfilosofia idealista e especulativa. (Nota da IHU On-Line)

49 Thomas Kunh (1922-1996): historiador da ciência e epistemólogo estadunidense. Escreveu A estrutura das revoluçõescientíficas, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva, de São Paulo. (Nota da IHU On-Line)

50 Ludwig Edward Boltzmann (1844-1906): matemático e físico austríaco, Sistematizou o conceito de entropia, segundo o qualhá uma tendência natural de a energia se dispersar e da ordem evoluir invariavelmente para a desordem. Explica odesequilíbrio natural entre trabalho e calor. (Nota da IHU On-Line)

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Cirne Lima – Quem, então, teria descober-to a flecha do tempo, se não Boltzmann?

Günther Küppers – Mas o problema aindacontinua não-resolvido. Nivelamentos cinéticosde gás também são considerados na mecânicacomo choques entre partículas. É uma dinâmicarelativa. Pela mediação para uma descrição ma-croscópica, em que o conceito de entropia real-mente pode ser descrito, em que, havendo muitosconjuntos, muitas possíveis distribuições alternati-vas, ela introduz sua irreversibilidade, isto é, sem-pre ainda temos o problema de entender, comoentra, no puro movimento mecânico, no qualnada mais há do que os gases com determinadavelocidade se chocando em determinadas veloci-dades e determinadas distribuições no espaço,como acontece, de repente, que nunca esses ga-ses se juntariam num canto deste espaço? Isso éuma irreversibilidade. Prigogine51 colocou forte-mente em primeiro plano esta descoberta da irre-versibilidade, quando, durante séculos, se admiti-ram estados de equilíbrio, quando determinadaforça atua sobre algo. Estados de ordem só se re-conheciam em situações de equilíbrio. A desco-berta de Bertalanffy inverteu o sistema de relaçõesambientais e apontou para a abertura dos siste-mas. Constatou-se, de repente, que a vida comotal, a dinâmica como tal, e tudo que realmente po-demos observar aqui na Terra, ocorre em proces-sos e no desequilíbrio. O desequilíbrio é perma-nente e dinamicamente livre, quer sempre nive-lar-se. Todo desequilíbrio procura conquistar ni-velamento e precisa ser externamente conduzidopelo meio ambiente, compensar o desgaste e tra-zer energia e matéria para este estado. Estes sãoos sistemas produtivos, sistemas de equilíbrio po-dem ser estruturados ou caóticos, eles estão mor-tos e neles nada ocorre; deve-se bater neles com omartelo para algo acontecer. Nos sistemas de de-sequilíbrio está a música.

Quanto ao progresso na concepção: natural-mente havia também, na Antigüidade, o conceitode sistema, e o problema era visto com muita cla-

reza: como as partes se juntam num todo, o queentão preenche uma certa finalidade. Como ocor-re isso? Por exemplo: a mão, ou a cabeça, ou oEstado, etc., quando há muitos fenômenos. Isso jáse viu na Antigüidade. Mas não se tinha a mecâni-ca, via-se o fenômeno, mas não se sabia como aspartes e o todo se conectam, se condicionam mu-tuamente e como se pode dizer que o todo é maisdo que a soma de suas partes? Essa é uma senten-ça muito estranha, que também foi formulada porAristóteles, e a moderna pesquisa do caos e da au-to-organização mostrou precisamente que isso seencontra na não-linearidade das ações e efeitosrecíprocos. A não-linearidade dá a idéia de que aspartículas não estão mais interconectadas de for-ma determinista, mas se encontram como numcordão de borracha: se puxo num lado, não vãojunto algumas partículas vizinhas. Há também apossibilidade de que perturbações críticas, de re-pente, se ampliem e se estendam pelo cordão deborracha para todo o sistema do qual preciso mu-dar o arranjo. E eu considero isso o novo que seacrescentou pela Física, por esses sistemas, poressa energética etc. e tudo o que tem a ver com aauto-organização.

O conceito de Teoria dos Sistemassubstituiu a lógica

Cirne Lima – O professor Küppers falouagora de maneira bem complicada. E eu gostariade dizer a mesma coisa de maneira bem simples.Segundo Boltzmann, de maneira anedótica, o de-senvolvimento do mundo seria para baixo. Esta-ríamos agora despendendo tanto calor, que cami-nharemos para a morte, e morte gelada. E o mun-do se direcionaria de tal modo que cada físico po-deria calcular que o fim do mundo chegará, quan-do o frio for total. Entretanto, foi muito bem frisa-do que o novo, na auto-organização, é que, alémdessa força que puxa para baixo, para a morte tér-mica, há uma outra força que conduz para cima,

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51 Ilya Prigogine (1917-2003): cientista de origem russa Recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1977. Na 62ª edição, de 2 dejunho de 2003, IHU On-Line dedicou-lhe a editoria Memória e, dele, publicou o artigo A dimensão ”narrativa” do universo,na 64ª edição, em 16 de junho de 2003 (Nota da IHU On-Line)

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pelo surgimento do novo, e dessa forma introduzum fluente equilíbrio, que tem essa estrutura que oprofessor Küppers mencionou.

Karen Gloy – Não sei se já não é superadoque na teoria tradicional se tinha, de um lado, asegunda lei da termodinâmica que conduzia à en-tropia e à morte térmica e que, de outro lado, te-mos o exemplo da Biologia, na constante neo-or-ganização de espécies, gêneros etc., que introdu-zia sistemas altamente complicados. Lembro-mede uma passagem de Weizsäcker52, em que elenão aduz estruturas orgânicas, mas cristalinas,que estão quase enrijecidas, e aí há estruturas alta-mente complexas, de modo que não podemosmais encarar simplesmente os dois modelos teóri-cos, em que um conduziu num sistema fechado àmorte térmica, tendo nós, de outro lado, o modelobiológico que leva avante a Teoria dos Sistemas.A obtenção de sistemas mais organizados e com-plexos parece ser contraditória, mas são simples-mente modelos que não podem ficar apenas con-trapostos um ao outro. De um lado, porque o tem-po de que dispomos no pensamento da entropia émuito, muito curto, e há pressupostos para o siste-ma fechado sobre como podemos observar isso.Também existe a experiência em que se solta umagota de tinta que se espalha, permanecendo a es-trutura absolutamente igual e não conduz a umamistura; só que, para nossos olhos, tudo fica, en-tão, cinza. De outro lado, temos o sistema biológi-co. Eu creio que seria nossa tarefa interligar essesdois lados. Não deixar a coisa ficar nestes dois mo-delos rígidos, mas unificá-los numa nova teoria.

Cirne Lima – Estou bem de acordo comisso. Eu só queria apresentar os dois extremos,porque assim se pensou até há bem pouco tem-po. Há pouco tempo só se tinha uma caricatura,Boltzmann e a morte. Agora temos uma outra di-reção, e a interconexão dialética de ambas signifi-ca o que nós agora representamos aqui. Portanto,a melhor compreensão do processo cósmico.

Günter Küppers – Eu também diria que amoderna Teoria da Auto-organização satisfaz pre-

cisamente a esta pretensão: que ela realmente estáagora em condições de esclarecer, tanto comosurgem estruturas biológicas como também expli-car como ocorrem determinados fenômenos nomundo físico, padrões em florestas e outros mode-los na natureza, conchas etc., onde podemos mos-trar que, por trás, não há mais duas teorias dispo-níveis: uma que trata do fenômeno do equilíbrio ea outra que trata de algo desconhecido na Biolo-gia. Um mesmo mecanismo opera e houve maisum passo, porque, na sociedade, também é exata-mente assim, no nosso cérebro também é exata-mente assim: não há nenhum lugar no universoonde isso não seja assim. Isso também para mim éuma grande unificação.

Cirne Lima – Esta é a razão por que, segundominha concepção, o conceito de Teoria dos Siste-mas substituiu a lógica, porque é uma teoria univer-sal que conecta precisamente isso. Dali, então, po-dem, especializadamente, ser encarados a natureza,os não-vivos, os viventes e as estruturas sociais.

Karen Gloy – Fica uma pergunta: comopode ser tudo explicado na natureza, na artificiali-dade, no sistema social, segundo esta norma, umavez que se trata de uma estrutura cognitiva pelaqual podemos interpretar tudo? Chegamos, as-sim, ao problema da auto-referência, que é bemcomplicado. E passamos para problemas de Filo-sofia transcendental e de dialética. Se, em nossocérebro, há estruturas, pelas quais interpretamos omundo, tanto os animais, as plantas, o comporta-mento climático, as curvas populacionais, que sãoconstrutos de nosso cérebro, poderíamos assimdizer, estruturas epistêmicas de nosso cérebro quenós extrapolamos. Temos, então, um determina-do construtivismo. E como devemos constatar suarealidade?

Cirne Lima – Você expôs maravilhosamen-te o ponto de vista kantiano como filósofa, e aquestão é puramente filosófica, e eu diria que souum neo-hegeliano todo original, porque modifi-quei tantas coisas em Hegel que quase não soumais hegeliano, mas também não sou kantiano. E

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52 Carl Friedrich Freiherr von Weizsäcke(1912): físico e filósofo alemão. (Nota da IHU On-Line)

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esta afirmação de Kant53 de que primeiro precisa-mos estudar o conhecimento, antes de chegar aoobjeto, me parece que não é válida. É um frutopodre de sua época. E eu, com alguns autores mo-dernos e também com os antigos, e com o velhoHegel, diria: conhecer é agir. Se pego uma colher,eu inicio finalidades. Conhecimento é, portanto,ação inter-humana. Trabalhar com as pessoas fazsurgir conhecimento. Para meus estudantes, expli-co numa frase boba e simples: há macacos queainda não falam, mas desceram das árvores e jáabandonaram a cauda. E já comeram todas as ba-nanas. E há um rio e do outro lado há maravilho-sas bananas. E os macacos olham e nada conse-guem fazer. De repente, um macaco vê que as ár-vores caídas flutuam e ele pensa: “Se derrubouma dessas árvores, posso ir para o outro lado ecomer bananas”. Mas, tentando erguer a árvore,vê que é muito pesada e vai buscar três ou quatrooutros macacos que o ajudam a deitar a árvore atéo outro lado, passam, comem as bananas e retor-nam. Para erguer a árvore, numa expressão ger-mânica, os macacos dizem ho-rück. É o que dizemos lenhadores alemães quando precisam de cola-boração... Se os macacos dizem ho-rück e agem,têm a recompensa. Os que passaram e se sacia-ram estão deitados de barriga cheia. De repente,um macaco levanta, olha os outros e diz: ho-rück.No primeiro caso, temos uma ação conjunta e umsinal, signum, e este signo está conectado com osignatum, conectado de modo meramente sensiti-vo. As bananas estão aí e o ho-rück está com amadeira na mão. Agora a segunda fase desta peçateatral: sem ter a madeira na mão, um macaco gri-ta ho-rück. Os outros olham e se perguntam: ondeestá a árvore? E um diz: também tenho fome eho-rück é para buscar a árvore e já levanta parabuscá-la. Chega um segundo e um terceiro e no-vamente buscam bananas. Após dois meses,ho-rück significa pegar uma árvore, cruzá-la sobreo rio e buscar bananas. Este é o significado da pa-lavra ho-rück. Este ho-rück é, então, desmembra-do: há o ho e o rück e mais algumas palavras que

se acrescentam. É assim, imagino, que surge a lin-guagem, a epistemologia, não do homem, masdos animais, e penso aqui no meu velho professorde Biologia, Karl von Frisch, perguntando o quefazem as abelhas para dizer algo às outras. Elas fa-zem algo, elas dançam e o fazem de tal forma quea dança expressa em que distância e em quequantidade há alimento. Isso quer dizer que co-nhecimento, epistemologia, é, em última análise,resultado de um agir, e ação é uma configuraçãosocial, é um subsistema que produz um conjunto,e eu diria que epistemologicamente estou obriga-do a fundamentar isso, se tenho condições. Mas,Kant, ou você não pode querer previamente queeu faça epistemologia, para só posteriormente fa-zer a base do sistema.

Karen Gloy – Você desenvolveu agora umamoderna teoria do conhecimento ou do saber,que reduz o saber ao know-how. Eu diria que issoé um saber experimental, como você o descreveue que também é feito com macacos numa jaulacom bananas que eles gostariam de ter, com umgalho para passar da gaiola para a banana. Por-tanto, segundo o que você descreveu, umknow-how de como se faz a coisa. Contudo, este éum conceito empírico de experiência, não é oconceito de lei da Física ou da moderna ciência.

Cirne Lima – Não falemos dos macacoscom a árvore, mas da pequena Su, uma chimpan-zé que, há 25 anos, falou com dois biólogos ame-ricanos. A primeira vez que vi o site, ela sabia maisde 800 palavras e já dizia algumas palavras: fome,arroz ou banana etc. Já fizera uma espécie de sín-tese. Por isso, penso que não queremos fazer sín-teses altamente especializadas e desmembrá-las,porque necessitamos dos elementos que estão emvários sistemas. Creio que nós precisamos, falan-do antiquadamente, começar com uma ontologia,ou seja, uma teoria de sistemas e, se avançamosbastante, levar a sério nela o subsistema “episte-mologia” e retornar e também pesquisar nossasraízes. Assim, se poderia pensar e propor umaepistemologia da língua alemã. Todavia, eu creio

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53 Emmanuel Kant (1724-1804): filósofo alemão, em geral considerado o pensador mais influente dos tempos modernos. Aoreferido filósofo IHU On-Line dedicou sua 93ª edição, de 22 de março de 2004. Também sobre Kant é o Cadernos IHU emformação n. 2. (Nota da IHU On-Line).

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que, no começo, precisamos iniciar com a onto-logia que hoje se chama Teoria de Sistemas, naqual está entretecida a epistemologia. Se entãochegarmos tão longe que possamos dizer: “Isto éo subsistema epistemologia, poderemos recupe-rá-la e trazê-la à luz do dia”. Esta é minha posiçãoe, quanto aos símios, tenho grande sensibilidadepor eles, e se, de repente, entra aqui um macacoe diz: “boa tarde”, e se senta, também precisocumprimentá-lo.

Günther Küppers – Há experimentos mui-to interessantes. Em Paris, há um laboratório zo-

nal onde fazem experimentos com fala. É umasala com duas câmeras, que podem movimen-tar-se e mostrar o que vêem, onde macacos jogambola, e eles começam a copiar um objeto numa fo-lha. No começo, é muito caótico, mas, em poucotempo, eles são capazes, com uma fala desenvol-vida na selva, a designar as coisas e chegar até auma primitiva interação e dizer: “Me dá o bastãoverde”. Isso significa que a fala, a linguagem sedesenvolve como algo social, com base na intera-ção e, neste caso, podem mover-se e olhar para oque têm diante de si.

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“A simples relação de causa e efeito se tornou complexa”

Entrevista com Günter Küppers

Günter Küppers é professor e diretor do Insti-tut für Wissenschafts-und Technikforschung (IWT)da Universidade de Bielefeld (Alemanha). Estu-dou Física na Universität Würzburg und München.É doutor em Física Teórica com habilitação nocampo dos estudos científicos pela UniversitätWien. Suas áreas de pesquisa são a Física do Plas-ma, Hidrodinâmica, Filosofia e História da Ciên-cia, Teoria dos Sistemas e Teoria da Auto-organi-zação. Entre outras atividades, Günter Küppers émembro da Associação de Cientistas Alemães, daSociedade Americana de Cibernética e da Socie-dade para os Estudos Sociais e para a Ciência.

IHU On-Line – Qual é a contribuição episte-

mológica da Teoria Quântica para a gera-

ção do conhecimento humano?

Günter Küppers – Houve diversas tentativas(entre outras, de Erwin Schrödinger) de aplicar aMecânica Quântica a processos cognitivos, masnenhuma delas foi convincente. Atualmente, sevêem, na teoria de sistemas complexos maiores,chances para uma modelagem de processos cog-nitivos. Modelos de simulação na base de redes

neuronais são hoje, com êxito, adotados em de-terminados setores, como, por exemplo, no reco-nhecimento de um modelo.

IHU On-Line – Em que medida as teorias da

selforganization são aplicáveis ao estudo

dos sistemas sociais?

Günter Küppers – O aplicador mais conhecido éNiklas Luhmann54. É verdade que ele se baseia,para sua aplicação, em conceitos da autopoiese55,que eu encaro como um caso excepcional de au-to-organização56. Eu mesmo apliquei a Teoria deSistemas de Auto-organização a processos de gera-ção do saber e ao ordenamento de sistemas sociais.Indicações bibliográficas encontram-se em meusite http://www.uni-bielefeld.de/iwt/kueppers/

IHU On-Line – Qual é o resultado prático de

tais aplicações?

Günter Küppers – Resultados práticos de taisaplicações não podem ser mencionados de formabem concreta. Entretanto, de modo bem geral,tais iniciativas conduziram a uma mudança de pa-radigma na teoria e também na práxis da adminis-

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54 Niklas Luhmann (1927-1998): sociólogo e jurista alemão. É o representante mais importante da Teoria dos Sistemas. É autorde uma vasta obra. Em português, citamos os livros Sociologia do Direito I, Editora Tempo Brasileiro, 1983 e Sociologiado Direito II, Editora Tempo Brasileiro, 1985. (Nota da IHU On-Line)

55 A teoria autopoiética tem como idéia básica um sistema organizado auto-suficiente. O termo autopoiese foi cunhado pelosbiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. A teoria autopoiética vem sendo aplicada em várias áreas doconhecimento humano (Nota da IHU On-Line).

56 O PPG em Direito da Unisinos trouxe à Universidade, nos dias 3 e 4 de novembro de 2004, o professor francês Dr. Jean-JosephClam, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), que ministrou palestras sobre o DireitoAutopoiético e lançou o livro Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito (Livraria do Advogado Editora),em co-autoria com Leonel Severo Rocha, coordenador executivo do PPG em Direito da Unisinos, e Germano Schwartz. Oprofessor Leonel Rocha apresentou o seminário O Direito no paradigma da complexidade, dia 16 de setembro de 2004,durante o Ciclo de Estudos sobre “O método”, de E. Morin, promovido pelo IHU. Sobre a apresentação, conferirentrevista concedida pelo professor ao IHU On-Line na 115ª edição, de 13 de setembro de 2004. (Nota da IHU On-Line).

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tração. Sistemas sociais já não são mais vistoscomo comandáveis de fora. Em vez disso, apon-ta-se, com muito empenho, para a dinâmica inter-na de tais sistemas.

IHU On-Line – Qual é a principal contribui-

ção da Teoria do Caos para o conhecimento

contemporâneo?

Günter Küppers – A Teoria do Caos mostra quea simples relação de causa e efeito se tornou com-plexa. Retroconexões (ou retroacoplamentos) decausa e efeito explicam fenômenos da formação

de estruturas que, em sentido clássico, não podemmais ser explicadas como deterministas.

IHU On-Line – Ante o progresso da nova Fí-

sica, qual o destino da Física Clássica?

Günter Küppers – A Física Clássica, por estesnovos aspectos, que se tornaram patentes porauto-organização e caos, não se tornou supér-flua. Há suficientes fenômenos, para os quais elafornece um quadro descritivo adequado. Algo se-melhante ocorre com a Mecânica Quântica e aTeoria da Relatividade. Também estas duas “re-voluções” nada modificaram na validade da Físi-ca Clássica. Elas apenas limitaram sua validade.

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Natureza e liberdade – A Física atual em foco

Por Armando Lopes de Oliveira

Armando Lopes de Oliveira é professor apo-sentado da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). Graduado em Filosofia pela UFMG, émestre em Física pela mesma universidade, dou-tor em Física pelo Centre d’Études Nucleaires deGrenoble (França). O professor Armando partici-pou também do Simpósio Internacional TerraHabitável: um desafio para a humanidade,promovido pelo IHU, onde ministrou a oficina Aestrutura do universo e os seus códigos físicos, e ocurso O caos dedilhado em planilhas Excel. A pe-dido da IHU On-Line, ele escreveu o artigo Natu-reza e liberdade – A Física atual em foco.

Introdução

Não constitui exagero algum afirmar que aFísica, como metodologia científica, já nasceuadulta, no século XVII, por obra e graça do profetaGalileu (“o grande livro da natureza está escritoem uma linguagem matemática”). Sua consolida-ção, no entanto, como ciência inteiramente for-malizada, deu-se a partir do século XVIII, com a di-fusão do legado científico do apóstolo Newton(“eu não imagino hipóteses inúteis”).

Galileu Galilei (1564-1642), com sua geniali-dade polêmica, suas intuições profundas e suaconturbada vida, foi o profeta ardoroso da novaciência. Entre as obras escritas que nos legou, res-salto Sidereus Nuncius – 1610, Il Saggiatori –1623, Diálogo sobre Dois Novos Sistemas –1632 e Diálogo sobre Duas Novas Ciências –1636. O tufão intelectual violento, causado porsuas descobertas astronômicas e seus escritos con-tundentes, acabou por varrer, do Ocidente Cris-tão, velhas convicções insatisfatórias e dogmáti-

cas, baseadas na filosofia aristotélica, que consti-tuía, na época, parte integrante do ensinamentooficial da Igreja Católica, herança direta da magis-tral releitura do aristotelismo, feita, na Idade Mé-dia, por Tomás de Aquino (1125-1274).

Isaac Newton (1642-1727), com sua prover-bial timidez, e genialidade introvertida, foi, porironia da sorte, o grande apóstolo da boa nova, in-tuída, e não inteiramente formalizada por Galileu.Nascido no ano da morte de Galileu, atribui-se aNewton uma frase que acabou se tornando céle-bre: “Se tenho algum mérito, é porque me apoieiem ombros de gigantes”. Estava ele se referindo aGalileu Galilei e a Johannes Kepler (1571-1630).A obra de Newton é extensa, tendo ele escrito, in-clusive, sobre temas teológicos. Chegou-se mes-mo a afirmar que ele se interessava mais por Teo-logia do que por Matemática e Física. Estes doisúltimos campos citados, no entanto, foram os quedefinitivamente o consagraram como um dos ma-iores gênios da humanidade. Entre suas obras pu-blicadas, convém destacar: Philosophiae natu-ralis principia mathematica – 1687, Opticks– 1704, Methodus fluxionun (concebido em1671, mas só publicado em 1736).

Para fazer jus a méritos incontestáveis, foramapresentados, em rápidas pinceladas, os perfisdos dois gênios fundadores da Física Moderna,Galileu e Newton. Foram colocados em destaquetambém os títulos de algumas de suas obras prin-cipais. Grandes matemáticos e físicos dos séculosXVIII e XIX levaram, até às últimas conseqüências,a revolução científico-filosófico-cultural, desenca-deada por Galileu-Newton, aprimorando o queacabou por constituir o que se convencionou cha-mar de Física Clássica ou newtoniana, em contra-posição às físicas relativística, quântica, e, na atua-

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lidade mais recente, à Física dos Sistemas Caóti-cos. Essas três últimas vertentes da Física herda-das do século XX serão abordadas, com mais va-gar, nas seções a seguir.

Teoria da Relatividade

A visão científica mudou, e muito, a partirdos primeiros decênios do século XX. Primeirocom a Teoria da Relatividade. Depois, com a Teo-ria Quântica. Nas últimas três décadas, com a Te-oria do Caos.

A Teoria da Relatividade aboliu o caráter abso-luto do espaço e do tempo, como entidades autôno-mas e separadas, como era postulado na FísicaClássica ou newtoniana, substituindo tais conceitospelo absoluto do contínuo “espaço-tempo” de Min-kovsky, dotado de quatro dimensões (três espaciaise uma temporal). Isso é tão verdade que Einsteinnão gostava da expressão relatividade generalizada,preferindo Teoria Geral da Gravidade. Por outrolado, a Teoria da Relatividade põe em realce oschamados invariantes, grandezas físicas que per-manecem constantes, mesmo quando se muda dereferencial. Um desses invariantes é a velocidadeda luz. Ela não se compõe nem com a velocidadedo observador, nem com a velocidade da fonte.Velocidades próximas à velocidade da luz acarre-tam contração das distâncias e dilatação do tempo.Não existem simultaneidades absolutas, porquenenhuma informação se propaga com velocidademaior que a da luz. Massa pode se transformar emenergia e vice-versa, segundo a famosa equação:E = m c2 (E, energia; m, massa; c, velocidade daluz no vácuo = 300.000.000 m/s).

Efeitos relativísticos aparecem quando as ve-locidades ou as energias envolvidas são muitograndes. Elétron que adquire velocidade 0,99 c (c= trezentos milhões de metros por segundo), emum acelerador de partículas, tem sua massa aumen-

tada de aproximadamente 1852 vezes, ou seja, elase torna igual à massa de repouso do próton. Isso éum efeito relativístico. O processo de fusão nuclear,que ocorre naturalmente no sol, formando núcleosdo gás hélio, a partir de dois prótons (núcleos do gáshidrogênio) e de dois nêutrons, envolve temperatu-ras da ordem de dez bilhões de graus celsius. Fusãonuclear é um efeito relativístico.

Na nossa vida cotidiana, tornada possívelpela mediocridade das temperaturas que nos cer-cam e das velocidades que nos transportam, nãoexperimentamos efeitos relativísticos: as distânciasnão se contraem, o tempo não se dilata, massasnão se transformam em energia.

Espaço, tempo, massa e energia foram relati-vizados, e, no entanto, a relatividade preserva umavisão determinística do mundo: dado o estado douniverso agora, seu futuro está inteiramente deter-minado, e para sempre. No dizer de Albert Einstein(1879-1955)57, fundador da Teoria da Relativida-de, Deus não joga dados! Esta é uma das suas mui-tas afirmações, tornadas célebres. Levando-a radi-calmente a sério, a vida da humanidade seria comoa de colônias de formigas, sujeitas aos tentáculosdeterminísticos de destinos bem traçados. Universopouco confortável... Se, no próprio coração da ma-téria, tudo ocorre de forma determinística, cabe apergunta: permitiria a natureza alimentar a espe-rança de alguma brecha para a liberdade?

Teoria Quântica

Deus joga dados... Com o advento da TeoriaQuântica da matéria, a partir do segundo decêniodo século XX, de colônias de formigas autômatas,horizonte único que a visão mecanicista, herdadados séculos XVIII e XIX, nos oferecia, passamos àcondição extremada oposta: miríades de ébriosda liberdade, sujeitos aos caprichos de um Deusque joga dados.

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57 No evento Abrindo o Livro, promovido pelo IHU, no dia 15 de setembro de 2004, o professor Dr. Paulo Henrique Dionisio,da Unidade de Ciências Exatas e Tecnológicas da Unisinos, apresentou o livro O ano miraculoso de Einstein: Cinco

artigos que mudaram a face da física, de John Stachel (Organização e introdução). Rio de janeiro: UFRJ, 2001. Sobre aobra, o professor Paulo Henrique Dionisio concedeu uma entrevista ao IHU On-Line, na 115ª edição, de 13 de setembro de2004 (Nota da IHU On-Line).

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Um dos postulados da Teoria Quântica pres-creve a impossibilidade de se determinar com pre-cisão absoluta posição e velocidade de partículasatômicas e subatômicas. Este é o chamado princí-pio de indeterminação de Werner Heisenberg(1901-1976). Com ele rui a visão rigidamente me-canicista da matéria, estritamente determinística.O coração da matéria passa a proibir o determi-nismo estrito no seu destino. Se fosse possível co-nhecer com precisão absoluta a velocidade de umelétron, pertencente, por exemplo, a um átomo dehidrogênio, a indeterminação que afeta a sua po-sição, o transformaria em partícula absolutamentenão-localizada, e ruiria por terra o próprio concei-to de átomo de hidrogênio.

Na Teoria Quântica, posição é uma funçãode onda de probabilidade. De ciência do ser, elatransforma tudo em ciência do poder ser. Estáaberta uma brecha para a liberdade...

Aprimoremos, no entanto, um pouco mais oenquadramento epistemológico da Teoria Quân-tica. As funções de onda de probabilidade da Teo-ria Quântica têm evolução matemática determi-nística. Isso parece comprometer, em parte, o quechamamos de brecha para a liberdade...

Prossigamos ainda, um pouco mais, noemoldurar epistemológico da Teoria Quântica. Osquadrados das suas funções de ondas de probabi-lidade têm realismo físico, significando densida-des de probabilidades. Acontece que o quadrardelas, com o colapso de suas partes imaginárias,significa projetá-las no universo macroscópico danossa vida cotidiana, e este é regido por leis deter-minísticas do tipo da Física Clássica ou newtonia-na. Novo golpe na brecha para a liberdade...

Teoria do Caos

Deus joga dados, e o diabo sacode a mesa...Apesar de tudo, caos virou ciência. Uma de suas

leis é a da alta sensibilidade às condições iniciais:o bater de asas de uma borboleta, na Amazônia,pode desencadear um tornado de grandes pro-porções na Flórida. Trata-se de uma metáfora,mas ilustrando aspectos importantes: a hipersensi-bilidade dos fenômenos caóticos às condições ini-ciais e a sua imprevisibilidade, o que poderíamoschamar de solidariedade (não necessariamentedestrutiva, como nos tornados!) ou conjuração detoda a natureza. Existem caos benéficos, como oda atmosfera terrestre, que, livre da ordenaçãonefasta de turbulências, permite, por exemplo, ovôo tranqüilo de aeronaves.

Quem já se extasiou com figuras geradas nocomputador, oriundas da iteração de equaçõessimples, que juraríamos terem sempre comporta-mento inteiramente determinístico, mas têm rotaspara o caos, pode aprofundar vivências importan-tes: brincando de modificar ligeiramente as condi-ções iniciais, experimenta: a) como, em determi-nados casos, se desencadeiam fenômenos caóti-cos e, em outros, não; b) como a universalidadede padrões gerados por sistemas caóticos, apre-sentam total indiferença à imprevisibilidade e àsucessão caótica dos detalhes pontuais (um belís-simo exemplo é o do Conjunto de Mandelbrot –Benoit Mandelbrot58, 1924-...).

Conclusão

A Teoria do Caos e a dinâmica de sistemascomplexos, embora aqui não caibam aprofunda-mentos, abrem novas e incontestáveis brechaspara a liberdade... Existem, no entanto, determi-nistas inveterados. Não raro ouve-se a seguinte ar-gumentação: entre os sistemas complexos, o maiscomplexo de todos é o cérebro humano. Como-damente, postula-se, então, o fatalismo do patri-mônio genético. Por que condenar um matadorprofissional? Ele age assim, por conta do gene da

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58 O Conjunto de Mandelbrot foi analisado na exposição do evento Abrindo o Livro do dia 3 de novembro, ocasião em que oProf. Dr. Ney Lemke, da Unidade de Ciências Exatas e Tecnológicas da Unisinos, apresentou a obra The ComputationalBeauty of Nature: Computer Explorations of Fractals, Chaos, Complex Systems and Adaptation, de G. W. Flake.Cambridge: The MIT Press, 2000. O professor Ney concedeu uma entrevista à IHU On-Line, publicada na matéria de capa da120.ª edição, de 25 de outubro de 2004, na qual comenta aspectos da obra apresentada. (Nota da IHU On-Line).

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violência, dirá alguém. Este alguém está, no en-tanto, redondamente enganado. Mesmo na hipó-tese de se admitir que todo comportamento hu-mano é, em última análise, geneticamente deter-minado, isso não fornece motivo algum para es-cusar assassinos, sejam eles profissionais do crimeou não. Se genes correspondem realmente a ca-racterísticas fatais, a genes de agressividade secontraporiam genes de autocontrole, mas é claroque devemos ir mais longe, em nossa análise. Nãoexiste determinismo genético. Genes não atuamassim. O que nós somos não está irrevogavelmen-te escrito em nossos genes. Por outro lado, o míni-mo que se pode dizer, a respeito de comporta-mento social responsável, é que a elaboração depadrões éticos é uma estratégia de sobrevivênciana linha evolutiva da humanidade, uma constantehistórica benéfica e indispensável.

Alguém poderia ainda insistir: no fundo, a li-berdade não seria uma ilusão, uma mera ficção?Minha resposta é pela negativa a tal pressuposto.Quem ainda não se extasiou diante da beleza deuma rosa púrpura ou de uma orquídea amareloouro? Mas o púrpuro e o amarelo ouro são ilu-sões, insistirá alguém, argumentando: a distinçãoentre essas cores repousa apenas na diferença doscomprimentos de onda das vibrações eletromag-néticas luminosas que as caracterizam. Tudo, noentanto, não se resume apenas nisso. Do outrolado da objetividade das vibrações eletromagnéti-

cas, existe a subjetividade do ser humano que asdecodifica como percepções distintas: púrpuronão é amarelo ouro. Trata-se de percepções dis-tintas, subjetivas, sim, mas o que há de fictício ne-las? O prazer estético existe. Extasiar-se diante dacontemplação do belo existente, seja na natureza,seja em autênticas obras humanas de arte, onde ouníssono de cores bem orquestradas fala maisalto, é um dos muitos apanágios do ser humano.A liberdade tem o seu lado estético. Devemos cul-tivá-lo com carinho. O ser humano percebe-secomo livre. Não há nada de fictício nisso. Somoslivres, mas parece importante não fazer escolhasincorretas, sob o ponto de vista dos padrões éticosde comportamento. Escolhas incorretas criam, nomínimo, vazios de valor. Não é confortável convi-ver com vazios!

Agradecimento

Ao grande amigo e físico teórico, Nilton Pe-nha da Silva, deixo consignado aqui o meu agra-decimento. Com efeito, amigo é para estas horas.Apesar de atarefado, ele não se poupou ao traba-lho de ler o presente artigo, sugerindo-me algu-mas modificações, às quais espero ter atendidocorretamente, em nome de maior clareza e rigornesta breve exposição sobre temas tão fascinantese intrigantes da atualidade científica.

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A imperiosa criação e recriação dos códigos de entendimento do

universo e as revoluções causadas pela Teoria da Relatividade

Entrevista com Armando Lopes de Oliveira

Armando Lopes de Oliveira é professor apo-sentado da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). É licenciado, bacharel em Física, mestreem Física pela UFMG e doutor em Física pelo Cen-tro de Estudos Nucleares de Grenoble (França). Épós-doutor em Física pelo Imperial College (Lon-dres). O físico coordenou, durante o SimpósioInternacional Terra Habitável: um desafiopara a humanidade, a oficina A estrutura douniverso e os seus códigos físicos e ministrou ocurso O caos dedilhado em planilhas Excel.

IHU On-Line – Quais as principais teses

que o senhor apresenta sobre A estruturado Universo e os seus códigos físicos?

Armando Lopes de Oliveira – A estrutura douniverso desafia a curiosidade e a inteligênciados físicos e de toda mente inquiridora em geral,com os seus códigos surpreendentes, na maioriadas vezes paradoxais, quando não enredados noque parece indecifrável. Como conciliar contí-nuo-descontínuo, absoluto-relativo, determinis-mo-indeterminismo, necessário-contingente, or-dem-caos? Meu objetivo principal consiste emafirmar, e tentar mostrar, como, criando e recrian-do seus próprios códigos de entendimento do uni-verso, a ciência consegue levantar, em parte, ovéu do mistério e do paradoxo, com que se reves-tem os códigos físicos do universo.

IHU On-Line – Quais as principais teses que

o senhor apresenta sobre O caos dedilhadoem planilhas Excel?Armando Lopes de Oliveira – Faz algum tem-po, li alguma coisa desconcertante afirmada pelofilósofo francês Michel Serrès59: “Como se podelevar a sério a filosofia da ciência se agora até ocaos está com status de ciência?” O título do meucurso pode criar a ilusão de que o congressista,que não tiver familiaridade com planilhas Excel,estaria perdendo o seu tempo se inscrevendonele. Não é nada disso. Meu esforço consiste emdemonstrar que lidar com o caos cientificamenteé, sob vários aspectos, tão simples como entenderextratos bancários de contas correntes, com ape-nas duas entradas (débito-crédito) e uma saída(saldo).

IHU On-Line – De que forma a Física contri-

bui, e poderia contribuir mais ainda, para

pensar o desafio da Terra habitável?

Armando Lopes de Oliveira – No início, ao re-ceber o convite para orientar uma oficina e minis-trar um curso no Simpósio Internacional Ter-

ra Habitável, tive ímpetos de responder: “Sin-to-me muito honrado com o convite, mas comofísico, talvez, o que gostaria de explorar não te-nha nada a ver”. Acontece que o convite já veiocom cartas marcadas, talvez porque o Prof. Cirne

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59 Michel Serrès: filósofo francês, estuda a situação humana nas várias dimensões da vida e das ciências: existência, espiritualidade,cultura, economia, política, biologia, genética, tecnologia. (Nota da IHU On-Line)

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Lima60 tenha soprado no ouvido da comissão or-ganizadora: “Convide o Armando para falar coi-sas ligadas à estrutura do universo, à complexida-de, aos fractais, ao caos”. Resolvi enfrentar o de-safio. Afinal de contas, a tecnologia se serve da Fí-sica muitas vezes de forma perversa, poluindo,soltando bombas atômicas, detonando artefatosnucleares a título de pesquisa. Por que não apre-sentar os bons usos que se pode fazer da Física?

IHU On-Line – Como as teorias do Caos e da

Complexidade ajudam a compreender as

estruturas do universo?

Armando Lopes de Oliveira – Tem tudo a ver,do big bang à era atual, o universo evolve, e os se-res vivos evoluem, em estranho e apaixonantejogo de aspectos conflitantes, apresentando estru-turas simples das quais emergem complexidades eausências de estruturas ou caos que eclodem emauto-organização.

IHU On-Line – Tendo como objetivo o desa-

fio da Terra habitável, quais as mudanças

mais importantes pelas quais deve passar a

universidade e suas estruturas? Como a Físi-

ca pode contribuir para uma visão do mundo

e um fazer científico mais transdisciplinar?

Armando Lopes de Oliveira – A universidadehoje é uma ficção. O que existe atualmente sãopluriversidades. Tendo como objetivo-vetor-co-mum habilidade e auto-sustentabilidade, deve-seincentivar a transdisciplinaridade em uma rede deinterações unificadoras das grandes culturas dahumanidade: a religiosa, a artística, a filosófica e acientífica.

IHU On-Line – Quais as principais reflexões

que o senhor apresenta sobre o universo e a

Teoria da Relatividade?

Armando Lopes de Oliveira – Minhas reflexõespretendem levantar um pouco o véu do mistério,que a Teoria da Relatividade ainda costuma re-presentar, como se estivesse condenada a ser umaespécie de visão do mundo acessível apenas aos

físicos. E eis uma questão mais complicada ainda:como falar sobre relatividade de Einstein, numcongresso de dialética, promovido por filósofos,se a dialética não constitui a ferramenta de traba-lho da Física? A tarefa, eu a encarei como desafi-ante e, ao mesmo tempo, estimulante. Felizmente,o grupo do professor Cirne Lima está envolvidocom a Teoria dos Sistemas, o que, em grande par-te, facilita as coisas. As reflexões feitas foram cen-tradas na quebra de réguas, relógios e massasclássicos, na vertigem do confronto de distânciasque se contraem, tempo que dilata e massa que setransforma em energia.

IHU On-Line – Quais são as revoluções cau-

sadas pela Teoria da Relatividade? Como

ela ajuda a compreender o universo?

Armando Lopes de Oliveira – As revoluçõescausadas pela Teoria da Relatividade, no que têmde mais contundente, são totalmente estranhas ànossa vida quotidiana, na qual não ocorrem velo-cidades imensas nem temos o nosso planeta Terraturbilhonando na linha de horizonte dos buracosnegros. Para que uma régua clássica de 1,00 m ti-vesse o seu comprimento reduzido para 44 cm,ela deveria estar dentro de uma nave espacial eapontando para o mesmo sentido do seu movi-mento, o qual deveria se dar a uma velocidade de972 milhões de quilômetros por hora. Nada acon-teceria com a largura da régua. Nesse caso, a pes-soa que a estivesse empunhando, em pé dentroda nave, estaria transformada em uma réplica desi própria, com o próprio perfil emagrecido, paramenos da metade do diâmetro da própria barriga,e nada lhe teria acontecido com respeito à altura.Seria uma espécie de dieta cósmica! Por outrolado, vamos supor que o passageiro da nave sechame João, e tenha deixado na Terra um irmãogêmeo de nome Paulo. Os dias para João estariamdilatados para 537h 3’ e 36”, e, caso ele fosse por-tador de algum tumor maligno, o seu câncer evo-luiria em ritmo diminuído também na mesma pro-porção. Mas seria um erro dizer que a Teoria daRelatividade não afeta em nada a nossa vida do

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60 Carlos Roberto Velho Cirne Lima integra o PPG em Filosofia da Unisinos. Dele, publicamos a entrevista Karl Rahner defendeuidéias, antes do tempo, cedo demais, na 102ª edição, de 24 de maio de 2004. (Nota da IHU On-Line)

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dia-a-dia. Se no Sol, a massa não se transformas-se em energia, em reações de fusão nuclear, queapenas a Teoria da Relatividade explica, de, hámuito, ele se teria apagado, o que vai acontecerapenas daqui a, aproximadamente, 12 bilhões deanos. Outra coisa, a tabela periódica dos elementosquímicos tem propriedades que só a Teoria da Re-latividade permite entender, de forma complemen-tar à Física Quântica. Uma delas, a cor amarela doelemento químico ouro, é um efeito relativístico.

IHU On-Line – O que a Teoria da Relativida-

de não consegue resolver?

Armando Lopes de Oliveira – A Teoria da Re-latividade generalizada supõe o encurvamento docontínuo espaço-tempo. Continuidade não é umapropriedade topológica que se encaixe bem comos pressupostos da Teoria Quântica. Outra coisa éo seu determinismo, incompatível com o probabi-lismo quântico e, mais grave ainda, com o carátererrático da Teoria do Caos. Einstein dizia que nãoaceitava um Deus que jogasse dados. Niels Bohruma vez lhe retrucou: “E quem é você para dizer oque Deus deve ou não deve fazer?”. Hoje os físi-cos vão mais longe ainda: dizem que Deus jogadados, e o diabo sacode a mesa!IHU On-Line – Como vai se construindo a

ponte entre os grandes sistemas clássicos

da dialética com as ciências contemporâ-

neas? Por que o senhor considera importan-

te esse diálogo?

Armando Lopes de Oliveira – O diálogo nãosó é importante como imprescindível. Por outrolado, a Teoria dos Sistemas é uma boa ferra-menta teórica para fazer a ponte entre os gran-des sistemas clássicos da dialética e as ciênciascontemporâneas.

IHU On-Line – Na apresentação do evento

(Congresso Nacional DIA/2005) afirma-se

que “a Teoria da Evolução, por sua vez –

isso foi por nós demonstrado – está em co-

nexão com a Teoria do Caos Determinístico

e com a Geometria Fractal. Para poder ex-

pressar esta Totalidade em sua hierarquia

de um Todo que está dentro de outro Todo,

foi introduzida a Teoria dos Sistemas”.

Como explicaria esta afirmação para um

público leigo?

Armando Lopes de Oliveira – A afirmação édo professor Cirne Lima. Os fractais gozam de in-variância com respeito à escala. Isso significa que,ao se aplicarem “zooms”, tantas vezes quantasquisermos, os detalhes podem mudar, mas os pa-drões se repetem, em um conceito que, em mate-mática, se denomina auto-similaridade. Teoriados Sistemas é realmente muito afim com a di-mensionalidade fractal.

IHU On-Line – Quais as relações mais im-

portantes realizadas nesse evento entre dia-

lética, tempo e natureza?

Armando Lopes de Oliveira – Tenho proposi-ções específicas, calcadas na Filosofia da Natu-reza, elaborada pelo Padre Henrique Cláudio deLima Vaz61, de quem tive o privilégio de ser aluno.Muita coisa, entretanto, está inédita. O importanteé que, na década de 1960, Lima Vaz elaborouuma extraordinária visão filosófica da natureza,incorporando o que havia de mais atualizado nocampo da Matemática e da Física. O método dia-lético, por ele inaugurado, incluindo Indução His-tórica, Redução Crítica e Elaboração Categorial,continua inteiramente atual e eficiente, podendoser retomado para incorporar o que de lá para cáapareceu como novidade: fractais, sistemas com-plexos e caos. O mesmo se pode falar, em relaçãoaos vertiginosos avanços das ciências biológicas,já em parte levados em conta por Lima Vaz, nasua última versão da Filosofia da Natureza, ela-borada na década de 1980. Dialética, tempo e na-tureza têm vinculações que podem e devem serexplicitadas em lógicas ascendentes e descenden-tes, como acontece nas elaborações do grupo Cir-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

61 Na editoria Memória, publicada na edição 142ª da IHU On-Line foi realizada uma entrevista com o próprio Armando Lopesde Oliveira, celebrando o terceiro aniversário do filósofo. Henrique C. de Lima Vaz, filósofo, padre jesuíta, autor de uma vastaobra filosófica foi tema da IHU On-Line número 19, de 27/05/2002. (Nota da IHU On-Line)

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ne Lima e Eduardo Luft62. Existem, no entanto,densidades ontológicas subjacentes às grandesteorias matemáticas, físicas e biológicas da atuali-dade, as quais seria muito oportuno tentar reexa-minar sob uma perspectiva vaziana.

IHU On-Line – Como as mudanças das con-

cepções de tempo e espaço provindas das

novas tecnologias influenciam na compre-

ensão do universo?

Armando Lopes de Oliveira – Dotam a huma-nidade da capacidade de avançar na compreensãoda imensidade cósmica, até o limite de quintilhõesde anos-luz, e mergulhar no abismo do coração damatéria, desvendando o que ocorre no universodos quarks63, cuja escala é de 10 quintilhonésimos

de metros. E as possibilidades de recuo no temponão são menos impressionantes, desvendando obig bang, o início do espaço-tempo, ocorrido hápelo menos 10 bilhões de anos.

IHU On-Line – O senhor gostaria de acres-

centar mais algum comentário que julgue

pertinente?

Armando Lopes de Oliveira – O efeito de suc-ção, postulado por Cirne Lima, em esforço hones-to e persistente, para elevar o nível acadêmico daUnisinos, deve ser levado adiante com afinco, e éo que estou percebendo que estão fazendo des-bravadores incansáveis, com quem tive o privilé-gio de trocar idéias, como os padres Marcelo deAquino64 e Inácio Neutzling65.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

62 Eduardo Luft é jornalista, mestre e doutor em Filosofia pela PUCRS e Universidade de Heidelberg (Alemanha) respectivamente.Autor dos livros Para uma crítica interna ao sistema de Hegel. Porto Alegre: Edipucrs, 1995 e As sementes da dúvida.São Paulo: Mandarim, 2001. (Nota da IHU On-Line).

63 Designação genérica de partículas elementares hipotéticas, com cargas iguais à fração da carga elementar, que seriam osconstituintes das outras partículas elementares. (FERREIRA, Aurélio B. de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ed. rev. eaum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). Prótons e nêutrons são feitos de quarks. Tudo o que sabemos sobre o tamanhodos quarks é que são muito pequenos para se medirem com os aceleradores atuais e os métodos experimentais existentes.Logo, os teóricos os tratam como se fossem partículas pontuais. (Nota da IHU on-Line)

64 Marcelo Fernandes de Aquino é vice-reitor da Unisinos e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia daUniversidade. (Nota da IHU On-Line)

65 Inácio Neutzling é diretor do Instituto Humanitas Unisinos e professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação emCiências Sociais Aplicadas da Unisinos. (Nota da IHU On-Line)

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Teoria da Relatividade: uma leitura filosófica

Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira

Manfredo Araújo de Oliveira é professor doDepartamento de Filosofia da Universidade Fede-ral do Ceará. Manfredo é graduado em Filosofiapela Faculdade de Filosofia de Fortaleza, mestreem Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoria-na de Roma (Itália) e doutor em Filosofia pela Uni-versität München Ludwig Maximilian (Alemanha),com a tese intitulada Subjetividade e mediação:estudos sobre o desenvolvimento do pensamentotranscendental em Kant, E. Husserl e H. Wagner.É autor de, entre outros, Filosofia transcen-dental e religião. São Paulo: Loyola, 1984; AFilosofia na crise da modernidade. São Pau-lo: Loyola, 1989; Ética e racionalidade mo-derna. São Paulo: Loyola, 1993; Ética e econo-mia. São Paulo: Ática, 1995; Diálogos entre ra-zão e fé. São Paulo: Paulinas, 2000; Desafioséticos da globalização. São Paulo: Paulinas,2001; Para além da fragmentação. São Paulo:Loyola, 2002; Dialética hoje. Lógica, metafí-sica e historicidade. São Paulo: Loyola, 2004.Manfredo de Oliveira participou na Unisinos doCongresso Nacional DIA/2005 – Dialética, tempoe natureza, onde ministrou a conferência Leiturafilosófica da Teoria da Relatividade.

IHU On-Line – Qual é a leitura filosófica da

Teoria da Relatividade?

Manfredo de Oliveira – A minha abordagem éa posição de um professor alemão, DieterWandschneider66, que faz uma tentativa de ler fi-

losoficamente a Teoria da Relatividade, dizendo oseguinte: a filosofia tem uma parte, que é seu nú-cleo central, que se faz por meio de uma reflexãosobre o puro espírito humano sobre si mesmo.Nesse momento, ela busca chaves de compreen-são do mundo, do universo, do homem e das coi-sas. Mas quando chega a hora de, com base nes-sas chaves de inteligibilidade que ele trabalhou noprimeiro momento, compreender realmente ouniverso, ele não pode vir do puro permanente,tem que vir das ciências. Então a Teoria da Relati-vidade pôs em questão, não destruiu, pôs emquestão, alguns conceitos fundamentais da FísicaClássica, ou seja, a mecânica de Newton. E a par-tir daí elaborou uma visão do mundo natural que,em muitos aspectos, discorda da posição de New-ton, portanto, abre o espaço para uma nova com-preensão da natureza. Ora, a tese do autor que eutrabalho é que o filósofo, quando trata exatamen-te das coisas do homem, do universo, não podefazer isso, fundamentado na pura reflexão, mastem que, em primeiro lugar, considerar as ciênci-as. Só que as ciências empregam conceitos parafalar do mundo e não trabalham propriamente es-ses conceitos. Ora, o filósofo teria como tarefa ex-plicitar o que está implícito nos conceitos que asciências trabalham e descobrir neles uma cone-xão. Isso significa dizer que a filosofia do real, deagora em diante, não pode mais passar sem asciências. Ela tem que partir das ciências e fazertodo o seu trabalho como uma espécie de explici-

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66 Dieter Wandschneider: formado em Física em Hamburgo. Foi professor de Filosofia na Universidade Tübingen (Alemanha) naUniversidade de Hamburgo e na de Padeborn. Desde 1988, é professor de Filosofia e Teoria do Conhecimento na Universidadede Aachen, situada na fronteira entre a Bélgica e a Holanda. Entre suas publicações, citamos Das Problem der Dialektik(Studien zum System der Philosophie, Bd. 3), hg. von Dieter Wandschneider, Bonn (Bouvier) 1997. (Nota da IHU On-Line).

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tação de conexões necessárias que estão presen-tes no trabalho da ciência, mas não estão consci-entes para o cientista. Já a preocupação dele émuito mais explicar como o mundo acontece, oucomo as coisas acontecem no mundo. Não estápreocupado com seus próprios conceitos, com aconexão de conceitos etc.

IHU On-Line – Qual é a importância da

Teoria da Relatividade para compreender

o universo?

Manfredo de Oliveira – Veja bem, em primeirolugar, é preciso notar o seguinte: foi espalhadapelo mundo a idéia de que se trata de uma Teoriada Relatividade, mas, na realidade, quando estu-damos, vemos que Einstein combinou dois princí-pios: o princípio da relatividade dos movimentosdos corpos e o princípio absoluto da não-variabili-dade da velocidade da luz. Portanto, a Teoria daRelatividade tem um princípio do absoluto da ve-locidade da luz e um princípio da relatividade doscorpos em relação ao princípio. Existe até um psi-cólogo alemão, Wertheim, que diz que a Teoriada Relatividade poderia ser chamada também deteoria da absolutidade, porque a própria relativi-dade do movimento só aparece quando fazemosa referência de todos os corpos em movimento aalgo que não tem referência a nada, que é exata-mente o movimento absoluto neste sentido da luz.Então, o interessante da Teoria da Relatividade écomo ela se esforça por pensar junto aquilo que,na física anterior, tinha ficado separado, porexemplo, movimento e repouso. A Teoria da Re-latividade diz que é impossível pensar movimentosem repouso, é impossível pensar repouso semmovimento. Matéria e movimento. Antigamente,se dizia que matéria é aquilo que não muda, e mo-vimento é aquilo que muda; o movimento é umacidente, a matéria, substância. Com a Teoria daRelatividade, é impossível pensar o movimento

sem algo que se movimenta, portanto sem a maté-ria, e é impossível pensar a matéria sem movimen-to. Trata-se de um esforço em pensar, de uma for-ma integrada, conceitos que, na Física Clássica, ti-nham ficado separados. Isso significa dizer que va-mos na direção de uma visão muito mais integra-da do mundo do que a Física Clássica poderiadar, embora a Teoria da Relatividade não é umateoria do mundo, até porque Einstein teve muitadificuldade em aceitar a Física Quântica por umasérie de razões. E hoje se diz exatamente que a Teo-ria da Relatividade ainda é uma física do macro-cosmos, enquanto a Física Quântica é subatômi-ca, do microcosmos. E a teoria verdadeiramenteunitária da realidade cósmica só apareceria,quando fôssemos capazes de juntar o micro e omacro, ou seja, em termos físicos, a Teoria da Re-latividade e a Física Quântica. É o que tenta fazerhoje, por exemplo, a Teoria das Supercordas, queainda está em embrião, surgindo, mas a intençãoou, por exemplo, teóricos do todo, como o físicoLee Smolin67, cujo livro A vida nos cosmos (tra-duzido pela Unisinos), vai atrás de um elementocomum que perpassa tanto os seres anorgânicosquanto os orgânicos, mentais e a realidade social.

IHU On-Line – Como se relacionam os gran-

des sistemas clássicos da dialética com as

ciências contemporâneas?

Manfredo de Oliveira – Hoje só podemos fazeressa relação se fizermos certas correções dos gran-des sistemas dialéticos do passado. Se tomarmossobretudo a referência deste congresso, que é He-gel, ele imaginava que o filósofo podia, puramen-te com base na reflexão, não só descobrir a estru-tura do pensamento, as estruturas básicas de todaa realidade, mas também pensar concretamentetoda e qualquer realidade, puramente como se dizem Filosofia, a priori, independentemente da ex-periência, por pura reflexão. Hoje, mesmo guar-

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67 Lee Smolin é professor de Física na Universidade da Pensilvânia (EUA). Como físico teórico, tem contribuído com idéias-chavenas pesquisas pela unificação da Teoria Quântica com a Cosmologia e a Teoria da Relatividade. Apresentamos na IHUOn-Line, na 111ª edição, de 16 de agosto de 2004, do livro de Lee Smolin A Vida do Cosmos, publicado pela EditoraUnisinos, em 2004, o prólogo e a introdução, escritos pelo autor, que dão uma visão do alcance e do significado da obra.Também publicamos, na editoria Livro da Semana, da edição n. 130, de 28 fev. 2005, da IHU On-Line a resenha deste livro,de autoria do professor Dr. Ney Lemke, da Unidade de Ciências Exatas e Tecnológicas da Unisinos. (Nota da IHU On-Line)

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dando o esquema hegeliano de dizer que a Filoso-fia tem que buscar a inteligibilidade de todas ascoisas, ela não pode ser reduzida apenas a umateoria do espírito humano, que pensa o mundo,mas tem que fazer isso também, portanto, tem quepensar a racionalidade que está imanente emcada realidade, em cada coisa. Mesmo admitindoesse propósito, temos que dizer para Hegel e paraos dialéticos do passado que, para fazer isso, pre-cisamos ouvir as ciências. Hegel dividia a ciênciaem dois grandes campos. O primeiro é a filosofialógica, que teria como tarefa tematizar essas gran-des chaves de compreensão, os conceitos funda-mentais com os quais nós podemos pensar omundo. O segundo é a filosofia do real, em que ofilósofo, com esses grandes conceitos, pondera anatureza e o homem. Só que Hegel pensava queisso podia ser feito puramente mediante a reflexãodo pensamento sobre si mesmo. Nós, hoje, dize-mos que isso é impossível sem ouvir o trabalho docientista, ver como ele concatena seus conceitospara falar do real.

IHU On-Line – Como a pesquisa no Brasil

está levando em conta esse diálogo com os

clássicos?

Manfredo de Oliveira – Muito incipiente. Achoque a Unisinos é uma exceção, porque CirneLima sempre teve uma consciência clara de queessas correções com os grandes dialéticos do pas-sado têm que ser feitas e que cultivou o conheci-mento das ciências, de modo que ele pode, talvezmais do que qualquer outro filósofo no Brasil, fa-zer essas ligações necessárias hoje. Não só no Bra-sil, no mundo é coisa incipiente. Estamos saindode uma época em que os filósofos achavam queas ciências não tinham importância para eles.

IHU On-Line – Na apresentação do Congres-

so, afirmou-se que foi demonstrado que a Teo-

ria da Evolução está em conexão com a Teo-

ria do Caos Determinístico e com a Geome-

tria Fractal. Qual é sua opinião a respeito?

Manfredo de Oliveira – Naturalmente, é umpouco de otimismo demais a expressão de que“está demonstrado”. Cirne Lima acha que de-monstrou, mas está longe. Estamos todos no mes-

mo barco, mas não porque concordemos emtudo. Estamos na mesma busca. Inclusive do pon-to de vista físico, essas teorias todas não estãomais conectadas entre si. Agora, é claro que eledisse que o nosso trabalho está consistindo nisso.O exemplo da Teoria da Evolução e da Teoria dosSistemas é muito elucidativo. Pega-se, por exem-plo, uma semente que depois vai crescendo e de-senvolvendo-se. Então, o universo, para um pen-sador como Hegel, embora no tempo dele não hou-vesse isso, e ele só imaginava evolução no pensa-mento, ele não tinha idéia de que a natureza mesmaera um processo de evolução. Isso não é difícil deacoplar, porque tem todas as bases filosóficas, sis-temáticas que permitem essa história de pensar oreal como evolução, porque, no fundo, é a mesmaestrutura fundamental que vai se desenvolvendo.O desenvolvimento não leva à fragmentação. Éisso que a Teoria dos Sistemas compõe e que éuma idéia fundamental de Hegel. O real constituiuma unidade na diversidade. São muitas realida-des diferenciadas, mas todas estão unificadas, detal maneira que viver é conviver, ou seja, uma rea-lidade está sempre em relação com todas as ou-tras. Nesse sentido, o que a Teoria dos Sistemasquer explicitar é que o real é uma totalidade, e queessa visão fragmentária, analítica ao extremo, quenós tivemos com as ciências modernas, tem gran-des avanços, porque ela se tornou menos preten-siosa, no sentido que queria ver o campo da reali-dade, só que levou a uma especialização enorme,que permitiu uma grande manipulação dessescampos. Mas o preço foi muito grande também,porque se perdeu a unidade do universo, e fica-mos com a consciência totalmente fragmentada,separada, em gavetas, e isso é o que caracteriza ohomem moderno, analítico, científico.

IHU On-Line – Quais as relações mais im-

portantes realizadas neste evento entre dia-

lética, tempo e natureza?

Manfredo de Oliveira – Há diferentes aborda-gens possíveis. A minha diz mais respeito à idéiade que não podemos pensar tempo sem espaço,nem espaço sem tempo. Eles constituem uma uni-dade indissolúvel. São aquilo que Hegel chamavade determinações reflexivas: uma não pode ser

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pensada sem a outra. E a matéria é aquele mo-mento do repouso que está no movimento espa-ço-temporal. Assim, coisas que antes apareciamcomo realidades separadas, agora aparecem inte-gradas. A dialética é exatamente a tentativa de

pensar esses conceitos básicos que estão na Física,espaço, tempo, matéria, vendo a sua mútua imbri-cação, ou seja, para retomar a idéia de que a natu-reza é essa totalidade de múltiplas faces.

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Por que as leis naturais são como são?

Entrevista com Antônio Augusto Passos Videira

Antônio Augusto Passos Videira é professordo Departamento de Filsosofia da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Videira édoutor em Filosofia pela Université de Paris VII epós-doutor pelas Universidades de Évora (Portu-gal), pela Unicamp de São Paulo, pela Universida-de Federal da Bahia e pela Universidade Federalde Santa Maria. Publicou artigos em revistas nacio-nais e estrangeiras, o livro Henrique Morize e oideal de ciência pura na República Velha.Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003, e organizouvários livros, entre os quais citamos: Einstein e oBrasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995; Oque é vida? Para entender a biologia do sé-culo XXI. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000;Temas de Filosofia da Natureza. Rio de Janei-ro: UERJ, 2004. O professor Videira coordena ogrupo de trabalho em Filosofia da Ciência daAssociação Nacional de Pós-Graduação em Filo-sofia (Anpof). Ele é também secretário adjunto daAnpof e secretário da Associação de Filosofia eHistória da Ciência do Cone Sul (AFHIC). Para oprofessor Dr. Antônio Augusto Passos Videira, a fi-losofia da ciência deve perceber a ciência “nãoapenas como um tipo específico de conhecimento,mas percebê-la em seu processo de desenvolvi-mento histórico, de interação com outras formasde conhecimento e nas suas relações com os dife-rentes grupos que constituem a sociedade”. Entre-vistado pela IHU On-Line, ele declarou-se “favo-rável a um diálogo da Filosofia com a ciência, a suahistória”, já que disso podem resultar “transforma-ções profundas no fazer filosófico, pois talvez oobjetivo da Filosofia se modifique”. O professorVideira ministrou a conferência Cosmologia e Fi-losofia da Ciência, durante o Colóquio Internacio-nal Filosofia e Ciência: Redesenhando Hori-

zontes, realizado na Unisinos, de 21 a 24 de se-tembro de 2004.

IHU On-Line – O quê é a Cosmologia moder-

na e qual a sua importância para a ciência?

Augusto Videira – A importância da Cosmolo-gia moderna para a ciência é fundamental. Entreoutras questões, a Cosmologia se coloca a seguin-te: qual é a origem das leis naturais? Nós sabemosque a ciência moderna acredita na existência deleis naturais, mas por que o problema da origemdelas é importante? Por que as leis naturais têm aforma que elas têm? Por que elas são como são?Ou ainda: por que os fenômenos, ao obedeceremàquelas leis, o fazem de uma determinada forma?Para que essas leis não sejam tão arbitrárias, seriainteressante se nós pudéssemos compreender assuas origens. No campo da ciência, a disciplinaque poderia perguntar-se a respeito desse tema,seria a Cosmologia, pois ela se preocupa com aorigem do universo. Em outras palavras, caso sejapossível compreender a origem do universo, po-deremos compreender a origem das leis, pois elasse teriam originado com o universo e, de acordocom a formação responsável pelo surgimento douniverso, essa mesma formação também seria res-ponsável pelo surgimento das leis. Assim, a Cos-mologia poderia nos ajudar a compreender aspec-tos muito importantes da ciência. Outro aspectoimportante é a relação entre a consciência e o co-nhecimento ou, como alguns cosmólogos costu-mam dizer, qual é a relação entre a existência daconsciência e a existência de um universo. Paramuitos, a consciência seria responsável pelomodo segundo o qual o universo é. Dito de outraforma, o universo é como é, porque existe umaconsciência que é a nossa. Esse tipo de argumento

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é conhecido como o “princípio antrópico”, para oqual existem várias formulações diferentes, de acor-do com o grau de radicalidade que se queira dar aopapel da consciência. É um assunto controverso.

IHU On-Line – Como dialogam a Cosmo-

logia e a Filosofia? Qual a importância

desse diálogo para compreender a socie-

dade contemporânea?

Augusto Videira – Eu acho que a Cosmologiatem, paulatinamente – e eu digo paulatinamente,porque isso ainda é controverso, nem todos oscosmólogos, nem todos os cientistas aceitamquestões como as antes referidas –, cresce o nú-mero de cosmólogos favoráveis a um diálogo mui-to forte com a Filosofia, pois percebem que a Cos-mologia tem possibilitado que se façam questõesque a Filosofia já propõe há muito tempo. Porexemplo, a Cosmologia vem incorporando per-guntas como “por que as leis naturais são comosão?”, que é uma questão tipicamente filosófica,pois indaga pelo motivo. Segundo o cosmólogoGeoge Ellis68, dependendo das indagações quesão atribuídas ao escopo da Cosmologia, nós en-contraremos questões da Filosofia. Então, me pa-rece que o diálogo é natural. Por outro lado, falarsobre a importância desse diálogo para a socieda-de contemporânea é extremamente complexo.Sabemos que a Cosmologia, historicamente, en-volve perguntas do tipo “o que é o homem?”, “oque é o mundo?” e “qual é o lugar do homem nomundo?”. E sabemos que essas indagações foramrespondidas não apenas pela Cosmologia ou pelaFilosofia, mas também pela Teologia. Portanto,na sociedade contemporânea, dependendo doescopo que se queira dar à Cosmologia e o quevai influenciar o tipo de diálogo que a Filosofia vaimanter com a Cosmologia, nós poderemos nosdeparar com o diálogo entre a Cosmologia e aTeologia. Trata-se de uma questão que deve serabordada cautelosamente. Nesse momento, esta-mos mexendo com idéias muito caras para um ou

outro lado da ciência ou da Teologia. Não pode-mos utilizar conseqüências cosmológicas, baliza-das e validadas pela ciência para justificar forma-ções teológicas. O exemplo mais conhecido, é oda criação do universo. Nós sabemos que a Cos-mologia ainda não dispõe de conhecimentos sufi-cientes para explicar como o universo se originou,e alguns teólogos, no que, às vezes, são acompa-nhados por alguns cosmólogos, dizem que aí estáum limite para a ciência, que nada poderia falarsobre a origem do universo. Então, se abriria umespaço para um discurso teológico. De todo omodo, independentemente da resposta que sequeira dar, a minha posição atual é que nós deve-mos respeitar a possibilidade de que esse diálogoaconteça. Parece-me que a Cosmologia e a Teolo-gia podem manter um diálogo, mesmo que elenão resulte numa posição consensual. Mas nãopodemos ignorar que existem teólogos interessa-dos em se basear em conclusões cosmológicas emfavor dos seus discursos teológicos. Ou o contrário:que temos cosmólogos interessados em manter osteólogos distantes, não permitindo o uso das suasconclusões. Até que ponto a Cosmologia pode nosajudar a dar sentido à nossa existência? Essa inda-gação é delicada, porque, tradicionalmente, a ciên-cia moderna não se preocupa com esse tipo detema. É importante reconhecer a complexidade des-se tema ao invés de colocá-lo debaixo do tapete. Épreciso possibilitar o diálogo, pois se não chegarmosa uma resposta, poderemos chegar a algo importan-te que é estabelecer as diferenças. E respeitá-las apartir daí, o que eu acho fundamental.

IHU On-Line – Qual é a influência exercida

pela metafísica sobre a ciência?

Augusto Videira – Considerando a vastidão dotema, vou me limitar apenas à relação entre meta-física e Cosmologia. Essa relação é bem evidente:a metafísica pode ser definida como um discursosobre a estrutura mais fundamental do mundo ouda natureza, e a Cosmologia precisa desse discur-

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68 George Ellis é professor de Sistemas Complexos na Universidade Cape Town no Departamento de Matemática. É co-autor,com Stefphen Hawking, do livro The Large Scale Structure of Space-Time, publicado em 1973 e é considerado um dosprincipais cosmólogos do mundo. No ano de 2004, ele recebeu o Templeton Prize por sua pesquisa sobre os aspectosfilosóficos da Cosmologia. Ele também lutou ativamente contra o apartheid do seu país. (Nota da IHU On-Line).

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so, na medida em que ela não tem como compro-var muitas das suas conclusões. A Cosmologia so-fre de uma certa restrição às suas observações.Por exemplo, ela trata do universo, definidocomo sendo o todo, tudo aquilo que existe – aindaque essa existência seja determinada pelas leis físi-cas, o que exclui a consciência. De todo o modo,ainda que tenhamos uma restrição desse tipo,essa totalidade, que é constituinte da definição daCosmologia, não pode ser objeto de observação.Mesmo porque nós, seres humanos, que construí-mos a Cosmologia, integramos essa totalidade.Não temos como sair dessa totalidade e obser-vá-la, a não ser por meio da nossa capacidadeteórica. Ou seja, a metafísica é importante para aCosmologia, na medida em que ela nos ajuda aestabelecer definições que permitem à Cosmolo-gia se fundamentar em certos princípios, sobreuma certa base sem a qual ela não pode funcio-nar, não pode se constituir. Então, a Cosmologianão apenas mantém uma relação com a metafísi-ca, mas mantém relação de dependência, não to-tal e completa, mas trata-se de uma relação pre-sente e atuante. E é bom que os cosmólogos a re-conheçam. De uns anos para cá, eles têm se mos-trado um pouco mais liberais quanto a essa rela-ção. Se, durante muito tempo, a ciência queriaver a metafísica o mais longe possível, a partir domomento em que a Cosmologia surgiu comouma disciplina científica – e hoje ela é uma disci-plina científica – os cientistas reconheceram que aCosmologia mantém uma relação muito fortecom a metafísica.

IHU On-Line – Quais são os grandes desa-

fios que persistem no diálogo entre a Filo-

sofia e a ciência e destas com a sociedade

contemporânea?

Augusto Videira – Normalmente, o diálogo en-tre Filosofia e ciência foi organizado da seguintequestão: que tipo de conhecimento é a ciência?Ou seja, a Filosofia preocupa-se com a ciênciaapenas como uma forma de conhecimento, inte-ressada em saber quais as características inerentesà ciência justificam aquilo que a ciência consideraser, isto é, verdadeira, objetiva, intersubjetiva, en-tre outros aspectos. O problema é que essa pers-

pectiva é muito restrita. A Filosofia devia olharpara a ciência, como vem acontecendo de unsanos para cá, não apenas como um tipo de conhe-cimento, mas como um tipo de práxis, pois a ciên-cia envolve outros princípios que não são apenasrelativos à sua estrutura como um certo tipo de co-nhecimento. Sem dúvida, esses princípios existempara muitos, a ciência seria um tipo de conheci-mento distinto da religião, por exemplo, mas aciência é muito mais do que isso. O que eu achoque cabe fazer agora é perceber que a ciência temuma dimensão social e política que é inerente aela mesma. Nós não podemos compreender oque é ciência, se nós não nos preocuparmos emperceber de que modo ela consegue influenciar asnossas vidas, a sociedade. Não podemos pensar,por exemplo, que a divulgação científica é umaatividade marginal à ciência. Ela faz parte intrínse-ca da ciência, pois é por meio dela que a ciênciapode falar com o mundo que não é ciência, masque depende dela. E a ciência precisa disso, por-que é extremamente cara e o destino dos recursosnela aplicados exigem critérios transparentes. Issonão é marginal, mas só recentemente os filósofosestão se preocupando com esse tipo de problema.Mas nós não sabemos ainda como incorporar es-sas discussões, incorporar um problema relativo àtransparência e distribuição dos recursos sem queas questões concernentes à natureza da ciênciacomo conhecimento sejam abandonadas. O gran-de desafio é juntar essas indagações. Precisamosredesenhar esses horizontes, como diz o título docolóquio realizado pela Unisinos.

IHU On-Line – Como o saber científico e es-

pecialmente as universidades podem com-

prometer-se mais com a sociedade?

Augusto Videira – Nós temos que pensar nocontexto da aplicação. Vamos desenvolver um co-nhecimento? Mas para quem? Para quê? A quepreço? Quais são as conseqüências positivas e ne-gativas desse conhecimento? Isso não deve serpensado, como ainda é regra, como uma limita-ção à ciência. Não podemos manter uma posturaque ainda é a principal, segundo a qual o cientistadesenvolve uma teoria e não se preocupa com osusos, que seriam de responsabilidade dos políti-

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cos. No que diz respeito à estrutura da universida-de, no momento em que nós ensinamos, forma-mos os nossos alunos. Nós ainda não sabemostransmitir-lhes esse tipo de responsabilidade, oque é uma falha muito séria. A universidade deveincorporar a responsabilidade social à nossa for-mação, ao lado do ensino da pesquisa. Deve defi-nir como vamos integrar o nosso conhecimentoao mundo, que está para além das fronteiras dauniversidade ou da ciência. Esse desafio deve serenfrentado o mais rapidamente possível em fun-ção dos riscos de toda a ordem que estamos en-frentando, como os ambientais e sociais.

IHU On-Line – Qual é o impacto de uma re-

flexão filosófica sobre a ciência em sua in-

serção sociocultural contemporânea? Qual

a ressonância desse impacto nas condições

do fazer filosófico?

Augusto Videira – Respondendo à primeira in-dagação: eu acho que é fundamental, pois nós te-mos que ver a ciência não como um elemento dis-tinto da cultura. A ciência é uma forma de produ-ção cultural e tem que se perceber como um ele-mento estruturante que pode estar em igualdadecom os outros elementos constituintes da socieda-de. Considerando a visão de mundo que nos do-mina, percebemos a ciência como um elemento,se não inteiramente, à parte, ocupando um lugardistinto dos demais. A ciência tem que evitar secolocar num pedestal, precisa dar espaço, porexemplo, à posição de quem não deseja comeralimentos transgênicos – e isso não significa queessa recusa seja proveniente de uma pessoa semcultura. Como incorporar essa posição? O proble-ma, muitas vezes, é que, devido à presença daciência no nosso mundo, até que ponto as conclu-sões científicas devem ser impostas ou incorpora-das pelos outros? Quanto à segunda parte da per-gunta, embora esse tema me interesse, eu não te-nho uma resposta organizada. O que eu diria, nocampo da filosofia da ciência, é que ela deve per-ceber a ciência não apenas como um tipo específi-

co de conhecimento, mas percebê-la em seu pro-cesso de desenvolvimento histórico, de interaçãocom outras formas de conhecimento e nas suas re-lações com os diferentes grupos que constituem asociedade. No fazer filosófico, sou favorável a umdiálogo da Filosofia com a ciência, a sua história,a ética... E isso pode resultar em transformaçõesprofundas no fazer filosófico, pois talvez o objetivoda Filosofia se modifique. Portanto, é preciso ha-ver diálogo.

IHU On-Line – Quais são os principais de-

safios que o ecossistema global represen-

ta para o pensamento econômico e social

contemporâneo?

Augusto Videira – Penso que seria obrigatórioincorporar esse tipo de tema às nossas reflexões.Temos que pensar na preservação da natureza,por exemplo. Não há como sustentar que todo equalquer tipo de progresso é válido, ou que qual-quer tipo de modelo econômico é válido. De ma-neira alguma. E não digo isso porque o meio am-biente está ameaçado, mas é preciso considerar oimpacto sobre as nossas vidas do tempo que per-demos nos deslocando, considerar como estão sedando as relações entre os seres humanos... Te-mos que pensar que os critérios econômicos nãosão decisivos de modo algum, pelo contrário. Oíndice mais importante na economia não deve sero da confiança dele na economia. Ou eu só existo,porque consumo? Se quisermos manter uma rela-ção equilibrada e estável com os outros e com omeio ambiente, não poderemos continuar consu-mindo do jeito que consumimos. Qual é a capaci-dade de sustentação que o planeta tem diantedessa voracidade consumista? Estamos nos acos-tumando de modo perigoso a viver em shoppingscenters. E o shopping de São Leopoldo é igual aodo Rio de Janeiro que é igual ao de Londres. Issoé triste e ruim. Acho que devemos incorporar es-ses temas nas nossas reflexões, incorporar essaspreocupações às nossas práticas como pesquisa-dores e professores.

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A lógica quântica e a transdisciplinaridade exigema mudança de nossos hábitos mentais

Entrevista com Basarab Nicolescu

Basarab Nicolescu é professor de Física Teóri-ca na Universidade Pierre e Marie Curie (Paris),onde foi fundador do Laboratório de Física Teóricae de Altas Energias. É um dos mais atuantes e res-peitados teóricos do cenário científico contemporâ-neo. É também presidente do Centro Internacionalde Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (Ciret),fundado na França, em 1987. Na última década,Nicolescu produziu diversos textos que procuramdesvendar as relações entre arte, ciência e tradição,propondo novos modelos de pensamento que pos-sam resgatar à cultura e à sociedade um ser huma-no mais completo, capaz de enfrentar os desafiosda complexidade, a intrincada teia de relações en-tre conhecimentos, disciplinas e sistemas (naturais,culturais e econômicos), que caracteriza o mundocontemporâneo. Nicolescu integra o corpo de pes-quisadores do Centro de Educação Transdiscipli-nar (Cetrans), de São Paulo. Seus livros publicadosem português são Ciência, Sentido & Evolução– A cosmologia de Jacob Boehme. São Paulo:Attarl, 1995; O Manifesto da Transdisciplinari-dade. 2. ed. São Paulo: Triom, 2001.

IHU On-Line – O senhor afirma que o pro-cesso de decadência das civilizações é mar-cado pela defasagem entre a mentalidadede seus atores e as necessidades internasdo desenvolvimento de um tipo de socieda-de. O senhor poderia, em traços largos, de-monstrar a defasagem que existiria entre osobjetivos dos principais atores das socieda-des contemporâneas e as exigências de umanova civilização?Basarab Nicolescu – Quem poderia negar quea ciência, pela sua conseqüência mais visível – atecnologia – está transformando nossas vidas e

nos deixando desarmados diante do dilema deum bem-estar exterior, acompanhado de um em-pobrecimento (até o aniquilamento) de nossa vidainterior? A ciência se encontra na posição daqueleque é chamado a limpar uma casa consideradasublime e a encontra em mau estado. Uma vezque seu trabalho é concluído, ele observa que oproprietário da casa fica muito tempo ausente,que ela está vazia. Como não ficaria ele tentado atomar posse deste lugar inabitado? A ciência fun-damental enterra suas raízes na terra nutridora dasinterrogações comuns a todo campo do conheci-mento humano: Qual é o sentido da vida? Qual éo papel do homem no processo cósmico? Qual é olugar da natureza no conhecimento? A ciênciafundamental tem, então, as mesmas raízes que areligião, a arte ou a mitologia. Entretanto, gradati-vamente, suas questões foram consideradasnão-científicas e foram rejeitadas no inferno do ir-racional, campo reservado do poeta, do místicoou do filósofo. A causa essencial desta mudançade paradigma foi o triunfo indiscutível, sobre oplano da materialidade direta, do pensamentoanalítico, reducionista e mecânico. Bastava postu-lar leis vindas não se sabe de onde. Em virtudedessas leis, dessas equações de movimento, tudopodia ser precisamente predito, uma vez que ascondições iniciais estivessem fixadas. Tudo estavadeterminado, mesmo pré-determinado. Nesteuniverso de falsa liberdade (tudo estando, destaforma, determinado), era surpreendente que algopudesse realmente acontecer. Testemunha deuma ordem absoluta, estática e imutável, o cien-tista não podia mais ser, como em outra época,um filósofo da natureza – ele era obrigado a tor-nar-se um técnico do quantitativo. Uma prolifera-

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ção anárquica e caótica do mental invade inevita-velmente o mundo. Uma tecnociência sem dire-ção produz um número cada vez maior de máqui-nas, verdadeiros prolongamentos dos órgãos dossentidos69. Este movimento destruidor da nature-za engendra, necessariamente, uma aceleração damecanização, da fragmentação, do aniquilamentoe da interação. Os sinais da nova barbárie são per-ceptíveis no mundo inteiro. A fonte da nova bar-bárie me parece residir na mistura explosiva dopensamento binário, aquela do terceiro excluído(“sim” e “não” – verdade absoluta e falsidade ab-soluta), em oposição aos dados da ciência funda-mental contemporânea e uma tecnologia sem ne-nhuma perspectiva humanista.

IHU On-Line – O senhor considera que ocomputador faz surgir ferramentas e metá-foras que contribuem de maneira inéditapara a compreensão dos destinos da huma-nidade? A idéia, segundo a qual “o mundo éfeito de informação”, poderá nos conduzir auma compreensão fértil do destino potencialda humanidade?Basarab Nicolescu – Os efeitos quânticos nãose limitam à escala do infinitamente pequeno. Sis-temas macroscópicos como os feixes laser, o héliosuperfluido ou os metais supercondutores apre-sentam efeitos quânticos em grande escala. Toda-via, apesar de tudo, o mundo quântico continuasendo, para o grande público, um mundo distan-te, paradoxal, ambíguo, na fronteira do real e doimaginário. No entanto, um acontecimento extraor-dinário produziu-se no final do século XX, como seo conhecimento científico quisesse celebrar, desua maneira, o centenário do nascimento da Me-cânica Quântica: a passagem repentina das idéiasque pareciam reservadas, a apenas alguns anos,aos debates dos iniciados – a não-separabilidade,o indeterminismo, a redução do pacote de ondas,

as relações de incerteza – em direção às aplicaçõespráticas que dizem respeito à nossa vida cotidia-na. Uma teoria nova – A Teoria Quântica da Infor-mação – nasce, graças ao feliz e inesperado casa-mento entre a Teoria da Informação e a TeoriaQuântica. Expressões novas, como “criptografiaquântica” e “computadores quânticos” fazem suaaparição nas publicações científicas mais presti-giadas. E mesmo uma palavra como “teletrans-porte”, que fascina a imaginação dos leitores dasobras de ficção científica, ou jovens espectadoresdos filmes deste gênero, faz sua entrada no mun-do sério da ciência: o “teletransporte quântico”.Uma verdadeira explosão de publicações nestasnovas áreas é acompanhada de investimentos fi-nanceiros consideráveis. E se o dinheiro se mistu-ra a isso, quer dizer que não se trata certamente dametafísica ou da poesia. Trata-se de quê? No cen-tro de todos estes desenvolvimentos, encontra-seo princípio de superposição quântica, ilustradopelo célebre gato quântico de Schrödinger mortoe vivo ao mesmo tempo. Este gato estranho estávivo com uma certa probabilidade, morto comuma outra, sendo a soma destas duas probabilida-des 100%. Nenhuma medida em nosso mundo,mostrando-nos claramente que o gato está vivoou morto pode abolir o que acontece no mundoquântico, onde o gato não está morto nem vivo.É precisamente este princípio de superposiçãoquântica que engendra todos os supostos para-doxos quânticos e as grandes dificuldades decompreensão dos fenômenos quânticos, quandoeles são analisados por meio da matriz do realis-mo clássico. Mas o mesmo princípio poderia con-duzir ao nascimento de uma nova espécie decomputadores – os computadores quânticos. Éuma casualidade que o primeiro pesquisadorque tenha pensado na possibilidade de computa-dores quânticos seja o grande físico teórico Ri-chard Feynman70, figura emblemática da Física

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69 Conferir entrevista com David Le Breton na IHU On-Line n. 121, de 1º de novembro de 2004, no sitio www.unisinos.br/ihu.(Nota da IHU On-Line)

70 Richard Feynman, (1918-1988): físico norte-americano que ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1965. Considerado um dosmaiores físicos do século XX e famoso por suas excelentes palestras, foi participante do Projeto Manhattan e grande divulgadorda ciência. Suas características pessoais mais marcantes eram a sua grande curiosidade e o seu gosto por problemas lógicos,sempre investigando as causas e implicações desde pequenos fenômenos do quotidiano até os aspectos mais profundos damatéria. (Nota da IHU On-Line).

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do século XX e homem de grande abertura a ou-tras áreas de conhecimento?

IHU On-Line – No que consiste um compu-tador quântico?Basarab Nicolescu – A idéia fundamental doscomputadores quânticos é relativamente simples.Todo o mundo sabe que toda informação sobreum texto, uma imagem ou um som é codificadaem nossos computadores por uma série de 0 e de1. A unidade fundamental de informação é o bit(palavra que vem do inglês binary digit), que podeter dois valores: 0 e 1. Este bit já é, por sua nature-za, quântico, pois significa uma propriedadequântica: um spin, uma polarização ou um nívelenergético. Entretanto, sua leitura, em nossoscomputadores atuais, é clássica: um bit será des-crito por um número, dois – por dois, três – portrês, n – por n. Sua leitura quântica será radical-mente diferente: o bit quântico – ou kilobits – terásimultaneamente os valores 0 e 1, cada valor sen-do afetado por uma certa probabilidade. Então,dois kilobits serão descritos por 4 coeficientes, três– por 8 coeficientes e n – por 2 coeficientes. Porexemplo, se n = 50, então 1015 números são ne-cessários para descrever todos os estados do com-putador quântico, o que ultrapassa as capacida-des de nossos computadores atuais. À medidaque o cálculo é desenvolvido, os estados quânti-cos se tornam mais “intricados” (intriqués)71: anão-separabilidade quântica desempenha plena-mente seu papel. Tudo acontece como se umcomputador quântico fosse o equivalente de umimenso número de calculadores clássicos, calcu-lando, simultaneamente, cada um num mundoparalelo ao nosso. Evidentemente, estamos aindamuito longe da realização efetiva destes computa-dores quânticos, pois a incoerência ameaça a suaexistência. Mas os progressos – ao mesmo tempoteóricos e experimentais – são muito rápidos, e es-tes calculadores poderiam fazer sua aparição em

nossa vida cotidiana nas próximas décadas. O fe-nômeno de intricação (intrication) dos estadosquânticos permite a transição de uma “mensagemquântica” à distância. Não se trata da teleportaçãode um objeto, de uma pessoa ou de uma alma,mas das propriedades quânticas. Estamos longede Star Trek72, porém nos encontramos em ummundo tão perturbador quanto este.

IHU On-Line – O senhor poderia discorrersobre outra decorrência do iminente mundoquântico?Basarab Nicolescu – O princípio de sobreposi-ção quântica tem conseqüências importantes so-bre a criptografia, termo que designa a elaboraçãode um código decifrável somente pelo emissor e odestinatário. A idéia de uma criptografia quânticafoi emitida em 1983-1985. A particularidade do“código quântico” é que ele é imbatível: todo es-pião que tentar decifrar a mensagem transmitidaencontrará uma falsa mensagem, pois sua própriaintervenção abolirá as leis quânticas. Terminar-se-á,assim, com o pesadelo do roubo de nossos códi-gos de cartões bancários. Indo mais além, os efei-tos quânticos têm mesmo uma influência certa so-bre nossa própria vida biológica e psicológica. Umexemplo é a combinação aleatória de moléculasde DNA no momento da concepção de uma crian-ça. Os efeitos quânticos desempenham, certa-mente, também um certo papel no funcionamentode nosso cérebro e de nosso consciente. O mundoquântico não está finalmente tão distante. Ele estáem nós e, em breve, estará conosco, em nossavida cotidiana. Em seu célebre conto filosófico LaConférence des oiseaux (A Conferência dos pás-saros), o poeta persa do século XII, Attar73, nosdescreve a longa viagem dos pássaros em buscade seu verdadeiro rei, Simorg. Os pássaros atra-vessam sete vales, cheios de perigos e de maravi-lhas. O sétimo vale é o vale das coisas surpreen-dentes. Nele, faz ao mesmo tempo dia e noite, é

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71 Expressão que também designa a não-separabilidade. (Nota da IHU On-Line).72 Série televisiva de ficção científica conhecida no Brasil como Jornada nas Estrelas. (Nota da IHU On-Line).73 Farid Uddin Attar (1119-1229): poeta e místico persa. Sua obra principal é o Mantic Uffair ou A Conferência dos pássaros,

um texto clássico do sufismo persa, que sacudiu como um furacão a espiritualidade do século XII. Relata a viagem que todos ospássaros da terra desejam fazer para o Simung, origem e destino de todo pássaro viajante e de qualquer um que busca odesenvolvimento da consciência. (Nota da IHU On-Line).

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possível e impossível ver se existe e se não existe,as coisas são ao mesmo tempo vazias e cheias. Seo viajante se prende com toda convicção aos seushábitos, ao que ele já conhece, torna-se prisionei-ro do desencorajamento e do desespero – o mun-do lhe parece absurdo, incoerente, insano. Mas seele aceita abrir-se a este mundo desconhecido,este mundo novo se revela a ele em toda a suaharmonia e coerência. E se fosse nosso própriomundo o Vale Surpreendente?

IHU On-Line – Como a emergência das lógi-cas quânticas nos conduz à transdisciplina-ridade?Basarab Nicolescu – A transdisciplinaridade dizrespeito à travessia dos níveis de realidade. Essatravessia pode se operar graças a uma nova lógi-ca, uma lógica quântica, a do “terceiro incluído”,que nos diz que “existe um terceiro termo T, queé, ao mesmo tempo, A e não-A”. Este terceiro in-cluído é inscrito no cerne da Física Quântica pelopostulado de sobreposição dos estados quânticos.Se continuamos num único nível de realidade,toda manifestação aparece como uma luta entredois elementos contraditórios (por exemplo, ondaA e corpúsculo não–A). O terceiro dinamismo, odo estado T, se exerce em um outro nível de reali-dade, no qual o que aparece como desunido(onda ou corpúsculo) é, na verdade, unido (quan-tum), e o que aparece contraditório é percebidocomo não-contraditório. A lógica do terceiro in-cluído é a da complexidade e talvez a lógica privi-legiada, na medida em que ela permite atravessar,de uma maneira coerente, os diferentes camposdo conhecimento. A lógica do terceiro incluído écapaz de descrever a coerência entre todos os ní-veis de realidade por um processo interativo, quecontinuará infinitamente até o esgotamento de to-dos os níveis de realidade, conhecidos ou conce-bíveis, sem nunca poder chegar a uma teoria total-mente unificada. Nesse sentido, nós podemos fa-lar de uma evolução do conhecimento, sem jamaischegar a uma não-contradição absoluta, impli-cando todos os níveis de realidade: o conheci-

mento está aberto para sempre. Existe certamenteuma “coerência” entre os diferentes níveis de rea-lidade, ao menos no mundo natural. De fato, umavasta autoconsistência – um bootstrap74 cósmico –parece reger a evolução do universo, do infinita-mente pequeno ao infinitamente grande, do infi-nitamente breve ao infinitamente longo. Um fluxode informação se transmite de uma maneira coe-rente de um nível de realidade a um outro de nos-so universo físico. A transdisciplinaridade nos per-mite aproximar racionalmente esta coerência.

IHU On-Line – O senhor considera possível acoexistência da transdisciplinaridade comas premissas do mercado? Como construirum novo humanismo, quando a produçãodo conhecimento é prisioneira dos paradig-mas do mercado?Basarab Nicolescu – A transdisciplinaridadenos permite, muito particularmente, renunciar àidéia demasiado simplista, e portanto perigosa, deprogresso sem percorrer um evangelho de perdi-ção. Podemos, assim, considerar toda a riquezade uma “evolução” imprevisível, pois ela está liga-da à consistência do ser humano. O progresso é odeus supremo da sociedade de consumo, comofoi no passado o deus constitucional da sociedadecomunista. O deus relojoeiro do pensamento ma-quinal é substituído hoje pelo deus mercado. A fe-licidade ao alcance do bolso. O progresso é mas-culino – ele significa o fantasma de um poder ilimi-tado, de uma penetração sem limites no mistériodo humano. A evolução é feminina, descontínua,fundada sobre a receptividade do que é, aqui eagora, numa travessia sem fim dos níveis de reali-dade. A transdisciplinaridade é, a meu ver, o vetorde uma nova forma de ligação entre o ser humanoe o mundo. Ela aparece como mediadora do diá-logo entre as diferentes culturas e as diferentesreligiões.

IHU On-Line – O senhor considera que omundo acadêmico está atento ao pensamen-to complexo e transdiciplinar? Como o se-

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74 Método computacional intensivo aplicado à Estatística em situações nas quais os métodos existentes não podem ser aplicadosdiretamente. (Nota da IHU On-Line).

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nhor imagina que ele possa prosperar, abran-gendo as instituições sociais e seus atores?Basarab Nicolescu – A chave do problema é aeducação. A educação transdiciplinar está próxi-ma das idéias de Paulo Freire em sua dimensãohumanista. Os aspectos epistemológicos da trans-disciplinaridade, apresentados aqui, foram estu-dados, no plano prático, em 1997, no CongressoInternacional de Locarno Quelle Université pourdemain? Vers une évolution transdisciplinaire del’éducation, organizado pelo Centre Internationalde Recherches et Études Transdisciplinaires (Ci-ret)75, sob os cuidados da Organização das Na-ções Unidas para a Educação, Ciência e Cultura(Unesco). Experiências conformes às recomenda-ções do Congresso de Locarno já estão sendo efe-tuadas em vários países: no Brasil, no Canadá, naFrança, na Suíça, na Espanha e na Romênia. Ocongresso de Locarno estimulou também uma re-flexão teórica e a invenção dos métodos de edu-cação em relação com as novas tecnologias da in-formação e da comunicação. A educação trans-disciplinar é uma educação da liberação, que nospermitirá estabelecer laços entre as pessoas, os fa-tos, as imagens, os campos de conhecimento e deação, de descobrir os erros do aprendizado duran-te toda a vida e de construir seres em permanentequestionamento e integração.

IHU On-Line – O senhor gostaria de acrescen-tar outros comentários ao tema em questão?Basarab Nicolescu – Estou contente de consta-tar o interesse crescente do Brasil pela transdisci-plinaridade. Cada vez que vou ao Brasil, me sintoem casa.

IHU On-Line – O senhor se refere ao adven-to da mecânica quântica como um “escân-dalo intelectual”, visto que ela abala a lógi-ca clássica. Em que medida esse abalo estáefetivamente influenciando a produção deconhecimento?Basarab Nicolescu – A técnica tem um grandepapel neste abalo. Sem os progressos técnicos, é

impossível efetuar as experiências de física queconduzem à formulação da mecânica quântica e,por conseqüência, ao questionamento da valida-de universal da lógica clássica.

IHU On-Line – O senhor também afirma queo espaço entre e além das disciplinas “estácheio”. O que contém esse espaço e comoesse conteúdo pode ser conceitualizado?Basarab Nicolescu – Este espaço contém umnovo tipo de informação – a informação quântica.Seu conteúdo é conceitualizado pelos três postu-lados fundamentais da transdisciplinaridade: osníveis de Realidade e de percepção, a lógica doterceiro incluso e a complexidade.

IHU On-Line – Como a nova produção deum novo conhecimento, para além dos im-portantes debates no âmbito acadêmico,está influenciando a política, a economia,as questões sociais? Como se manifesta a“lógica quântica” na vida concreta?Basarab Nicolescu – O processo de mundiali-zação é um grande desafio para toda a humanida-de. A transdisciplinaridade pode conduzir a umamundialização de feição humana, para uma edu-cação transcultural e transreligiosa. Se os políticosdesejam verdadeiramente evitar os conflitos mor-tíferos, eles devem adotar uma atitude transdisci-plinar. De modo todo particular, eles devem pôrem dúvida o modelo atual do “todo econômico”.A economia não deve mais dominar nossa vida,mas se pôr ao nosso serviço, incluindo a todos. Asrelações sociais serão profundamente mudadas,pondo em evidência o terceiro incluído em cadasituação complexa. A lógica quântica se manifestapor uma mudança total de nossos hábitos men-tais. E nossos hábitos mentais determinam nossasações.

IHU On-Line – Em que outros campos do co-nhecimento a transdisciplinaridade fez, efe-tivamente, progressos? Quais são os limitese obstáculos que se apresentaram?

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75 Ver o site Internet http://perso.club-internet.fr/nicol/ciret/)

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Basarab Nicolescu – A partir da _omputaç tam-bém se pode mencionar o domínio da saúde. Nodomínio dos handicaps mentais e físicos, a trans-disciplinaridade é muito pertinente. Também paraos cuidados das pessoas em final de vida e dos lac-tentes. Enfim, a transdisciplinaridade é capital nodomínio da psiquiatria e da psicanálise. Os limitessão aqueles impostos artificialmente pela estruturaatual das instituições. Os obstáculos provêem denossos hábitos mentais, de uma outra época quenão esta do século XXI.

IHU On-Line – É possível avaliar o grau deadesão das instituições geradoras de co-nhecimento ao conceito de “transdiscipli-naridade”? Quais as reações na pesquisacientífica? É possível realizar um diagnósti-co mundial, mesmo preliminar, relativa-mente à compreensão e adoção deste con-ceito nas diversas regiões do mundo?Basarab Nicolescu – Pode-se falar em geral do“grau de adesão” das instituições, mas não podehaver uma adesão global. Esta adesão se faz porpequenos passos, em cada região do mundo e,sobretudo por iniciativas locais tomadas por per-sonalidades conscientes dos percalços da transdis-ciplinaridade. Do local ao global – tal é o caminho

da transdisciplinaridade. A pesquisa científicacontinua demasiado especializada e demasiadoconcentrada em minúsculos territórios do conhe-cimento. Mas, a pesquisa científica se ressente,inevitavelmente, da precisão de transdisciplinari-dade, como, por exemplo, no domínio da neurofi-siologia e da genética. Os países mais avançadosno domínio da transdisciplinaridade são o Brasil,o Canadá, a Suíça, a Romênia e a Austrália.Alguns passos importantes se operam atualmentena África do Sul.

IHU On-Line – Como podem ser abordadasas relações da lógica quântica com a Teoriados Sistemas? Qual a contribuição destapara o “escândalo intelectual” acima men-cionado? Pode-se dizer que a lógica quânti-ca recuperou e restituiu, em favor do conhe-cimento humano, a herança da Teoria dosSistemas?Basarab Nicolescu – Há um grande parentescoentre a transdisciplinaridade e a Teoria dos Siste-mas, sobretudo no reconhecimento do papel dacomplexidade no conhecimento. Mas, o que faltana teoria dos sistemas e na teoria da complexida-de é a noção central da transdisciplinaridade – ade “níveis de Realidade”.

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Dialética para entender a cultura

Entrevista com Paulo Margutti

Paulo Margutti é professor de Filosofia doDepartamento de Filosofia da Universidade Fede-ral de Minas Gerais (UFMG). Margutti trabalha naárea de Lógica e Filosofia da Ciência. É membrodo grupo de estudos em Dialética, liderado peloProf. Carlos Cirne Lima, da Unisinos. Graduou-seem Filosofia pela UFMG, e é Ph.D. em Filosofiapela University of Edinburgh, Scotland, UK. É au-tor de Iniciação ao Silêncio (Análise do Tracta-tus de Wittgenstein). São Paulo: Loyola, 1998 eIntrodução à Lógica Simbólica. Belo Hori-zonte: Editora UFMG, 2001. No livro Dialética eAuto-organização. São Leopoldo: Unisinos,2003, organizado por Carlos Cirne Lima e LuizRohden, publicado pela Editora Unisinos em2003, escreveu o capítulo Dialética, Lógica For-mal e Abordagem Sistêmica, em que discute asidéias de Cirne Lima

IHU On-Line – Quais as reflexões que o se-nhor apresenta sobre dialética e tempo?Paulo Margutti – Tendo em vista que participodo GT Dialética como crítico das perspectivas quesão oferecidas – sou um filósofo de tendência ana-lítica, e normalmente os analíticos não se dão mui-to bem com a dialética, de modo geral –, eu trouxeuma contribuição um pouco diferente das passa-

das, já que esta é a terceira vez que participo desteevento. Nas vezes anteriores, eu elaborei avalia-ções mais ou menos amplas da perspectiva ofere-cida pelo Prof. Cirne Lima. Desta vez, avancei umpouco mais, aproveitando certos trabalhos que es-tou fazendo nos estudos de pensamento filosóficobrasileiro. Mostrei que a perspectiva que o Prof.Cirne Lima está oferecendo, baseada na transdis-ciplinaridade de tipo hegeliano, não explica tudoo que ele gostaria que fosse explicado. Parece-meque essa perspectiva é bem sucedida na Biologia.Nas comunidades dos seres vivos e, principalmen-te, nas comunidades humanas, em que entra a lin-guagem e toda a problemática correspondente,tenho a impressão de que a abordagem dele en-frentará muitas dificuldades. Minha proposta, en-tão, foi apresentar um problema nesta área, mos-trando que nela ainda não há elementos para che-garmos até o ponto referido, por mais boa vonta-de que tenhamos. É verdade que sou simpatizanteda perspectiva transdisciplinar, embora não noviés hegeliano do Prof. Cirne Lima. Acho, porexemplo, que uma das boas idéias sobre essaabordagem apareceu com o Capra76, no livro ATeia da vida. Entretanto, quando ele tenta expli-car a sociedade, no último livro que escreveu, cha-mado As conexões ocultas77, falha. E demonstra

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76 O austríaco Fritjof Capra é físico, mas seu trabalho há muito transcende os limites desta ocupação. Cientista, ambientalista,educador e ativista, Capra surgiu para o mundo, após lançar O tao da física, no qual discorre sobre os paralelos, a princípioimpossíveis, entre a Física Quântica e o misticismo oriental. Estabeleceu-se no posto de pensador holístico com O ponto demutação, explorando as mudanças no paradigma social que acompanham as descobertas científicas. Atualmente vivendo emBerkeley, na Califórnia, Capra fundou o Center for Ecoliteracy, uma instituição que forma profissionais para ensinar ecologianas escolas,. Também é professor do Schumacher College, um centro de estudos ecológicos na Inglaterra. Em português,foram publicados, entre outros, os livros: Pertencendo ao universo. São Paulo: Cultrix, 2003; As conexões ocultas. SãoPaulo: Cultrix, 2002; O tao da física. São Paulo: Cultrix, 2000; A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1997; Sabedoriaincomum. São Paulo: Cutrix, 1995; O ponto de mutação. São Paulo: Cutrix, 1982. (Nota da IHU On-Line)

77 As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix, 2002. (Nota da IHU On-Line)

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que ainda há muita coisa por fazer. Desse modo,parece que a perspectiva transdisciplinar, no mo-mento, pelo menos no que diz respeito à explica-ção de fenômenos mais complexos como a socie-dade humana, ainda está mais numa fase progra-mática do que, propriamente, numa fase de reali-zações. Em minha apresentação, trabalhei umaquestão ligada à cultura, ligada, portanto, à lin-guagem, à comunidade humana e, pelo que meparece, essa situação não seria facilmente explicá-vel naquela perspectiva. Expus, ainda, que há ou-tras maneiras de compreender a dialética que po-deriam explicá-la. A principal contribuição quetrouxe para este evento foi a tentativa de dizer queé possível fazer, por exemplo, uma interpretaçãoda cultura brasileira, utilizando uma dialética mui-to pouco hegeliana, que, na verdade, se opõe aela: a dialética de Kierkegaard78. Essa interpreta-ção teria algum fundo de verdade, e não seria fa-cilmente explicável pelo viés transdisciplinar, por-que está um pouco além do seu alcance.

IHU On-Line – Quais as relações mais im-portantes que foram estabelecidas em dia-lética, tempo e natureza?Paulo Margutti – Do ponto de vista da dialética,tempo e natureza, alguma coisa já foi feita, pelomenos no que diz respeito à explicação dos seresvivos. Desde a grande explosão até o aparecimen-to dos seres vivos, parece que há a possibilidadede explicar alguma coisa, utilizando o aparato queestá sendo desenvolvido, mas daí para a frente,fica difícil. Quando pensamos, por exemplo, notempo da Física, há uma possibilidade de essaperspectiva teórica explicá-lo; quando pensamosna natureza formada por seres vivos, mas não,propriamente, ainda, do ponto de vista das suasrelações sociais, também há alguma possibilidadede nos apoiarmos na referida perspectiva teórica.Entretanto, principalmente quando se trata da cul-tura, a abordagem transdisciplinar se torna defici-

tária. Ela aponta na direção de uma explicaçãomelhor do que aquela meramente física do queconstitui o nosso universo, até a vida. Contudo,acima dela, principalmente nas relações entre se-res vivos e seres humanos entre si, a coisa se com-plica – neste ponto, a abordagem transdisciplinarestá apenas na fase programática.

IHU On-Line – Como mudanças das concep-ções de tempo e espaço, provindas de novastecnologias, influenciariam na compreen-são do universo?Paulo Margutti – Essas mudanças influenciamde uma maneira inteiramente revolucionária.Nesse aspecto, até mesmo a abordagem transdis-ciplinar ainda é precária para entender. Vou darum exemplo que pode ajudar a esclarecer algumacoisa. Se pensarmos no que acontece com a Teo-ria da Relatividade, veremos o seguinte: ela esta-belece que, em vista de a velocidade da luz serconstante no universo, significa que três observa-dores diferentes podem ver dois fenômenos emsucessões temporais completamente diversas. Oobservador A pode ver o fenômeno 1 como ante-rior ao fenômeno 2; o observador B pode ver osdois fenômenos como simultâneos; o observadorC pode ver o fenômeno 2 como anterior ao fenô-meno 1. Isso coloca em questão a própria suces-são temporal e a dialética, por exemplo, se baseianuma idéia clara de que o tempo caminha numadireção específica. Alguns autores sugerem, porexemplo, que a Teoria da Relatividade nos indicaque, na realidade, existe um estoque de eventosno universo. Assim, dependendo da posição emque o observador se encontre, aquele estoque deeventos vai aparecer para ele em uma sucessãotemporal determinada. Mas isso vai fazer da su-cessão temporal uma coisa que não é a mais im-portante de todas. Com efeito, se dois fenômenospodem ser observados como simultâneos ou su-cessivos, inclusive em ordens inversas, fica difícil

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78 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo e pensador religioso dinamarquês, nascido em Copenhague. Kierkegaard égeralmente considerado um dos fundadores do existencialismo. Exerceu grande influência no pensamento religioso, naFilosofia e na Literatura. Suas diversas obras preocupam-se com a natureza da fé religiosa. De modo mais específico, ele seinteressava pelo problema do que significa ser um verdadeiro cristão. Kierkegaard dirigiu duras críticas a todas as tentativas detornar a religião racional. Sustentava que Deus quer que obedeçamos a ele e não que argumentemos com ele. (Nota da IHUOn-Line)

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acharmos que o tempo tem alguma importânciana estrutura do universo. Ele pode ter importânciapara nós, como observadores particulares emuma determinada posição, o que não significa,porém, que esse tempo seja o tempo. Ora, a pers-pectiva dialética parte do pressuposto de que te-mos um tempo único, que é o tempo da história...

IHU On-Line – Como um tempo absoluto...?Paulo Margutti – Isso. Como um tempo absolu-to. Além disso, parece que as mudanças afetamtambém a concepção do espaço. Einstein cons-truiu um experimento mental, conhecido como oparadoxo de Einstein-Podolsky- Rosen79, porqueforam esses três autores que colaboraram nesteproblema, envolvendo o seguinte: se a MecânicaQuântica estiver certa, então dois fótons, emitidosde uma mesma fonte e que estão imbricados, en-contram-se relacionados de uma forma tal que oque acontecer com um vai repercutir no outro,embora estejam a uma distância tão grande quenão possa ser percorrida a tempo pela velocidadeda luz. Como a velocidade da luz é constante nouniverso e é a velocidade máxima que pode seratingida, Einstein considerava isso uma prova deque a Mecânica Quântica estava equivocada. Masjá foram feitos experimentos, admitindo que, efe-tivamente, esses fótons gêmeos, assim chamadosporque estão imbricados, são, realmente, emiti-dos da mesma fonte, mesmo que estejam suficien-temente longe um do outro, para que a comunica-ção entre eles exija uma velocidade superior à daluz, um repercute no outro. Se efetuarmos a medi-ção num deles, o outro vai dar uma resposta, ape-sar de a informação, que vai de um para o outro,não conseguir percorrer a distância entre eles coma velocidade necessária, que teria de ser maior

que a da luz. A resposta vai ser instantânea. Issosugere a existência de relações não-locais entreesses objetos; não-espaciais, ou em alguma região“abaixo” do espaço. É o que geralmente se chamade “buraco de minhoca”, ligando dois pontos doespaço, na forma de um atalho, que poderia serpercorrido numa velocidade superior à da luz. Issomodifica profundamente a concepção de espaço.Eu não sei se a abordagem sistêmica dá conta des-sas modificações, se ela seria a mais adequada.

IHU On-Line – Como está ocorrendo a liga-ção entre os grandes sistemas clássicos dadialética com as ciências contemporâneas?Por que esse diálogo é importante?Paulo Margutti – Quem considera realmente im-portante essa ligação, essa ponte, é o professor Cir-ne Lima. Ele faz questão de mostrar que a Teoriados Sistemas do Bertalanffy, por exemplo, tem ori-gem em Nicolau de Cusa e que esses autores estãoligados aos platônicos. Ele faz questão de mostrarisso, já que a própria filosofia hegeliana tem uma li-gação muito grande com esses autores, mas me pa-rece que essa ligação é mais metafórica do que lite-ral. O que aqueles autores disseram no passadopode, realmente, ter alguma semelhança com oque nós estamos dizendo. Pode até servir comofonte de inspiração. A maneira, porém, como aproblemática está sendo tratada é muito diferente.Envolve uma mudança de perspectiva que não éfacilmente explicável por estes sistemas clássicos.

IHU On-Line – Envolve circunstânciasdiferentes...?Paulo Margutti – Sim. E, sendo essas circunstân-cias tão diferentes, eu sentiria certa dificuldadepara fazer uma aproximação mais forte. Há liga-

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79 Para entender o Paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen, ou Paradoxo EPR, é preciso conhecer o motivo do seu surgimento.Einstein foi o fundador da Teoria Quântica. Com base nela, surgiram correntes de pensamento e não era com todas queEinstein concordava. Dentre essas, encontrava-se a Escola de Copenhague, liderada por Niels Bohr. Essa escola apregoavaque muitos eventos eram impossíveis de serem determinados, cabendo apenas à estatística defini-los. Einstein discordavadisso, pois para ele tudo obedecia a certas regras e bastava descobrirmos essas “variáveis ocultas” para chegarmos exatamenteao resultado. Uma dessas incertezas que Bohr e seus companheiros propunham era que o elétron possui vários eixos derotação e é impossível determinar em torno de qual ele irá girar, pois o próprio ato de medir já definiria o eixo. Para Einstein,bastava descobrirmos as “variáveis ocultas” que tudo estaria certo. Foi aí que, numa célebre polêmica sobre a Teoria Quântica,Einstein propôs um paradoxo, pensando em derrubar a teoria de Copenhague. Esse paradoxo ficou conhecido comoParadoxo de Einstein-Podolsky-Rosen, ou Paradoxo EPR. (Nota da IHU On-Line)

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ções, mas elas talvez não sejam tão fortes como,por exemplo, o professor Cirne Lima pretende.

IHU On-Line – Na apresentação do eventoafirma-se que “a Teoria da Evolução, porsua vez – isso foi por nós demonstrado - estáem conexão com a Teoria do Caos Determi-nístico e com a Geometria Fractal. Para po-der expressa essa Totalidade em sua hierar-quia de um Todo que está dentro de outroTodo, foi introduzida a Teoria dos Siste-mas”. Como explicaria essa afirmação paraum público leigo?Paulo Margutti – O que eu posso dizer a respeitoda Teoria da Evolução é que, para que seja encai-xada na perspectiva transdisciplinar, ela teria queser pensada não como evolução – até essa palavrateria que ser trocada. Evolução significa que va-mos do inferior para o superior, do pior para omelhor, implica, inclusive, uma forma de teleolo-gia, algum finalismo, parece que o universo foiprojetado para um determinado fim e a evoluçãosignifica que o universo está caminhando em dire-ção àquele fim para o qual ele foi projetado. Naabordagem sistêmica, o máximo que nós pode-mos dizer, de acordo com uma das teorias existen-tes, é que o universo surgiu de uma grande explo-são; em que o espaço e o tempo se teriam origina-do. A explicação para isso é a de que é possívelconstruir um modelo matemático que permiteisso. Imagine algo em forma de um sino invertido.O ponto no vértice inferior do sino é a origem detudo. Antes dele não há nada. Então, o espa-ço-tempo se desenvolve dessa grande explosão,expressa nesse modelo. Essa explosão gerouaquilo que poderíamos chamar de uma “derivanatural”. Ao invés de usarmos a expressão evolu-ção, o nome mais adequado seria esse, conformesugere Maturana. A explicação da evolução poresse viés poderia ser entendida com o auxílio deuma metáfora. Vamos imaginar uma montanha ealguém que joga água no cume. A água vai des-cendo e os caminhos que ela escolhe aleatoria-mente para descer correspondem à deriva natural.Ela vai encontrá-los à medida que desce; se ela se-guir por um lado vai encontrar tal desvio à direitaou à esquerda; se seguir por outro, vai encontrar

um desvio diferente. Esses caminhos, que vão sur-gindo de uma maneira mais ou menos aleatória,mais ou menos caótica, determinariam o que seriaa “evolução”, ou melhor, a deriva natural. Nessaderiva natural, apareceriam os sistemas auto-or-ganizados, como, por exemplo, uma estrela. Elanada mais é do que o resultado da força gravita-cional sobre uma quantidade muito grande de gáshidrogênio, por exemplo. As partículas de gás vãose atraindo mutuamente e, num determinadoponto, elas formam um aglomerado. Esse aglo-merado vai atraindo mais partículas, gerandouma compressão muito grande dos átomos que seencontram no interior, produzindo reações nu-cleares e gerando uma força de expansão. Se aforça de atração for suficientemente grande paracompensar a força de expansão, a estrela vai semanter equilibrada e produzirá luz e calor. Na suaevolução, num determinado momento, ela explo-de. Ela começa como uma estrela de hidrogênio,mas produz um elemento mais pesado, o hélio.Aos poucos, vamos tendo estrelas de outros ele-mentos, e as explosões das estrelas vão gerandorestos de explosões estelares. Estes restos é quevão gerar planetas, pela força da gravitação, enesses planetas vão surgir estruturas dissipativasque seriam os seres vivos. Assim, a Teoria da Evo-lução estaria em conexão com a Teoria do CaosDeterminístico. Para entender as estruturas dissi-pativas, que correspondem aos seres vivos, imagi-nemos uma outra situação. Se tivermos uma ba-nheira fechada, com água, ela ficará parada. Se ti-rarmos a tampa do ralo, a água começará a descere, espontaneamente, formará um redemoinho.Esse redemoinho é uma estrutura auto-organiza-da que se preserva até certo ponto, pois, se o atra-palharmos com um movimento da mão, ele com-pensará a perturbação e voltará a se formar. Ele éauto-organizado, com mecanismos de retroali-mentação que o mantêm naquele processo em re-demoinho. Isso constitui o que Prigogine chamade estrutura dissipativa. Ela se mantém organiza-da através da dissipação de energia. Essa estrutu-ra é um modelo interessante para entendermos anós mesmos: seríamos estruturas dissipativas.Não somos redemoinhos de água, mas somos re-demoinhos químicos. Somos estruturas que se or-

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ganizaram oportunisticamente, neste universo.Estamos dissipando energia mas, ao mesmo tem-po, mediante a dissipação, mantemos uma deter-minada estrutura constante. Ora, a noção de evo-lução, não como evolução, e sim como deriva na-tural, seria um modelo importante para explicarcomo chegamos a esse ponto. E. para estudarmosessas estruturas dissipativas, precisamos de umamatemática especial, como a dos fractais, e de te-orias especiais, como a do Caos...

IHU On-Line – Nesse aspecto seria salutarque as diversas teorias convergissem na rea-lização desse estudo?Paulo Margutti – Sim. Nós estamos chegando aum ponto em que, se as diversas perspectivas nãoconvergirem na explicação, não se associarem,não vamos conseguir fazer muita coisa.

IHU On-Line – O que a Teoria da Relativida-de não consegue explicar?Paulo Margutti – Parece que há fenômenos, emrelação ao quântico, que a Teoria da Relatividadenão consegue explicar. Aliás, existe hoje um con-flito entre a Teoria da Relatividade e a MecânicaQuântica. Como os campos, os domínios de apli-cação dessas teorias são diferentes, isso não estáainda criando um conflito maior, mas possivel-mente irá criar uma dificuldade em se conseguir

uma perspectiva única que seja capaz de unir asduas teorias. Isso talvez signifique um obstáculomuito difícil de ser transposto em relação ao quefoi comentado na pergunta anterior, porque é pre-ciso que as diversas teorias sejam capazes de con-vergir na explicação. Se não houver essa conver-gência, vai ser difícil. Nesse caso, vamos ter quenos contentar com uma pluralidade descritiva:mais de uma teoria, teorias alternativas para expli-car campos, domínios da realidade diferentes, po-dendo ser um desses domínios aquele que a abor-dagem transdisciplinar explica. Em alguns outrosaspectos, muito possivelmente a abordagemtransdisciplinar não daria conta do recado.

IHU On-Line – Mas isso não acabaria au-mentando a fragmentação, que já é bastan-te grande, das áreas de conhecimento?Paulo Margutti – Possivelmente sim, mas o quese há de fazer? O ideal seria encontrar uma pers-pectiva integradora e, no momento, todos se es-forçam nessa direção. Pessoalmente, simpatizomuito com a perspectiva transdisciplinar e pensoque ela constitui a nossa melhor aposta no mo-mento, em que pesem as suas dificuldades. Toda-via, se nós não encontrarmos uma perspectiva su-ficientemente ampla, integradora, que seja capazde reunir tudo, vamos ter que nos contentar comas descrições parciais. O futuro dirá o que vaiacontecer.

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“É preciso combater a idéia de que há uma solução técnica

e simples para qualquer problema”

Entrevista com Thomas Michael Lewinsohn

Thomas Michael é professor da UniversidadeEstadual de Campinas (Unicamp). Ele é graduadoem Biologia, mestre em Ecologia, doutor em Eco-logia pela Unicamp e pós-doutor pelo Center ForPopulation Biology Imperial College (Inglaterra) epelo National Center For Ecological Analysis AndSynthesis (Estados Unidos). Lewinsohn é tambémlivre-docente pela Unicamp. Publicou Plant-Animal Interactions. Nova York: John Wiley,1991 e Biodiversidade Brasileira: Síntese doEstado Atual do Conhecimento. Brasília:Contexto, 2002. “O ‘tecnojeito’ é a idéia de quetodo o problema pode ser simplificado e que exis-te uma solução técnica simples para qualquer pro-blema”, disse Thomas Lewinsohn, argumentandoque é preciso mudar essa idéia. No SimpósioInternacional Terra Habitável: um desafiopara a humanidade, ele proferiu a conferênciaO Impacto humano sobre a vida na Terra.

IHU On-Line – O senhor afirma que há umgrau de incerteza muito grande nos proces-sos biológicos. A Teoria da Auto-Organiza-ção vale-se também da incerteza para bus-car uma certa previsibilidade dos processosem geral. Pode-se dizer que as ações em de-fesa da biodiversidade acompanham essaabordagem da auto-organização?Thomas Lewinsohn – Estão muito próximas decaminharem no mesmo sentido. Mesmo que nóspossamos divergir de um ou outro modelo especí-fico da auto-organização, nos aspectos funda-

mentais, estamos plenamente de acordo. Trata-sede conviver com a incerteza e de trabalhar comela, ou seja, não esperar que tenhamos plena cer-teza, não contar com a possibilidade de produzirum modelo exato, preciso, rigorosamente deter-minado em relação aos sistemas biológicos, ecoló-gicos ou sociais. Esses modelos não existem e nãoexistirão. O que nós precisamos e estamos fazen-do, tanto na Biologia como nos âmbitos que oprofessor Küppers80 mencionou é desenvolver ou-tros modelos que trabalham com o desconheci-mento, que incorporam a incerteza e a elaboramcomo um dado natural. Todo ecólogo trabalhacom sistemas que são intrinsecamente complexos,que não podem ser simplificados até que se tor-nem previsíveis e capazes de ser manejados comtranqüilidade. Nós vamos ter que dar conta dessessistemas, incorporando toda a sua complexidade.

IHU On-Line – O senhor sustenta que é im-perioso não respeitar a lógica econômica.Essa não é uma posição unilateral e, por-tanto, perigosa?Thomas Lewinsohn – Não, pois o que eu defen-do é que não haja a primazia do econômico. Eunão sustentaria que nós ignoremos essa lógica ouas demandas econômicas. A minha posição é a denão aceitar que, desde o início, elas tenham umaposição privilegiada em relação a outros critérios eoutras escalas de valor. É nesse sentido que euconsidero imperioso não nos submetermos à lógi-ca econômica. Valores ou prioridades econômicas

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80 Refere-se a Günter Küppers, físico alemão, cuja entrevista também foi publicada neste número. (Nota da IHU On-Line)

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são componentes de um sistema, mas não devemser os primeiros componentes de um sistema dedecisão mais complexo. Eles devem ser colocadoslado a lado com valores sociais, espirituais e afeti-vos. A vida é mais do que a satisfação de necessi-dades materiais estabelecidas com base num crité-rio de custo e benefício.

IHU On-Line – Essa resposta seria uma for-ma de combater o que o senhor chamou de“tecnojeito”?Thomas Lewinsohn – Não diretamente. O pro-blema do “tecnojeito” é distinto. O “tecnojeito” éa idéia de que todo o problema pode ser simplifi-cado e que existe uma solução técnica simplespara qualquer problema. Nós produzimos essassoluções técnicas, mas a dificuldade não está nasolução, propriamente dita, e sim no desconheci-mento dos novos problemas que essas soluçõescriam. É aí que falhamos. Nós olhamos para umrio, consideramos que há um problema de cons-tante alagamento na sua margem, retificamos orio e aumentamos o fluxo de água. Isso é uma so-lução técnica. O problema não está na solução emsi, mas nos novos problemas que ela cria e que,muitas vezes, vão ser mais complicados ou maisgraves do que o problema inicial que estaria sen-do aparentemente resolvido.

IHU On-Line – Isso nos leva para a transdis-ciplinaridade. Qual é a sua opinião sobreesse debate? O País, as universidades têmse posicionado bem? Podemos ser otimis-tas nesse campo?Thomas Lewinsohn – Cautelosamente otimistas.Otimistas no sentido de ver como muito saudávela circulação dessa idéia, a preocupação com essaidéia. A cautela vem do fato de que a transdiscipli-naridade e a interdisciplinaridade não são passí-veis de legislação, não se estabelecem por umadecisão institucional. A transdisciplinaridade só éconstruída de fato com muita persistência, comum convívio longo e paciente de pessoas que tra-zem experiências e bagagens diferentes das suasdisciplinas e que se dispõem a aprender o vocabu-lário e um pouco do conhecimento dos outros,sem achar a priori que o seu próprio conhecimen-

to é mais importante do que o conhecimento dosdemais. Então a transdisciplinaridade é necessáriae alcançável, mas ela não se produz instantanea-mente. As pessoas têm que se dispor a trabalha-rem juntas, a se ouvirem por bastante tempo, an-tes que ela comece a produzir frutos genuínos.

IHU On-Line – A expressão biodiversidadetem freqüentado exaustivamente a mídia. Osenhor acha que ela tem sido compreendidana sua complexidade?Thomas Lewinsohn – Não inteiramente. Tenhoa impressão de que a visão pública que se temhoje da biodiversidade é ainda bastante parcial.Ela abrange só alguns aspectos e, principalmente,valoriza o que nós chamamos de “espécies-ban-deiras”, as mais carismáticas, que atraem a aten-ção pública, como o mico-leão e outras espéciesameaçadas de extinção. Por isso, não há muitaclareza sobre a existência de uma imensa diversi-dade de pequenos organismos, que, normalmen-te, não são notados: pequenos insetos, animais desolo... E também há pouco conhecimento da tre-menda importância que esses pequenos organis-mos têm para o funcionamento e para a manuten-ção dos ecossistemas. Ainda há muito por melho-rar nessa compreensão pública da biodiversidade.

IHU On-Line – Sobre as ações do governo re-lativas à biodiversidade, nós podemos sertambém otimistas, ainda que contidamente?Thomas Lewinsohn – Em parte, sim. Não falosó do governo federal, mas também dos estaduaise municipais, que, às vezes, adotam iniciativascom as quais, há dez anos, nem sonhávamos. Hámuitas iniciativas de âmbito local e regional quesão interessantes; há também no âmbito federal,no Ministério do Meio Ambiente, em alguns dosseus grupos de técnicos, uma compreensão e ini-ciativas que merecem atenção e apoio. Por outrolado, nessa área, como em outras, o governo nemsempre é consistente, há divergências fortes entrediferentes setores do próprio governo. Em particu-lar, eu tenho que mencionar o fato de que os pes-quisadores, os cientistas brasileiros, hoje enfren-tam dificuldades muito grandes, particularmentecom o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

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Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ele temregulamentado a atividade de pesquisa com no-vos instrumentos legais que, na prática, represen-tam uma camisa-de-força. Embora sejam instru-mentos bem-intencionados que têm por objeti-vo, por exemplo, coibir a biopirataria, eles aca-baram atingindo muito fortemente a atividade depesquisa genuína, que é altamente necessáriapara o País, com resultados, no momento, bas-tante contraproducentes. O que eu tenho dito éque, preocupados com a biopirataria, algunsdesses órgãos federais, miraram o bandido, po-

rém acertaram o cavalo do mocinho, deixando agente realmente a pé.

IHU On-Line – Não estamos permanente-mente em busca de uma Terra habitável?Thomas Lewinsohn – Há certos problemas que,por mais antigos que sejam, são atuais, porquenunca estão inteiramente resolvidos. Digamosque o tema desse simpósio talvez possa ser tradu-zido não pela indagação se teremos um futuro ha-bitável, mas pela interrogação sobre qual será aqualidade da habitação, como será a habitabilida-de da Terra, como nós gostaríamos que ela fosse.

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A Cosmologia está mudando a forma humana de pensar

Entrevista com Mário Novello

Mário Novello é professor do Centro Brasilei-ro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro,onde é coordenador do Laboratório de Cosmolo-gia e Física Experimental de Altas Energias. É mes-tre em Física pelo CBPF e doutor em Física pelaUniversité de Genève (Suíça), com a tese Algebrede l’espace-temps, pós-doutor pela University ofOxford (Inglaterra) e doutor honoris causa pelaUniversidade de Lyon (França). Conquistou prê-mios internacionais, destacando-se a menção hon-rosa por teses em Cosmologia e Teoria da Gravita-ção, concedida pela Gravity Research Foundation(USA). É autor de mais de 150 artigos e dos livros:Cosmos et Contexte. Paris: Masson, 1987; Cos-mos e Contexto. Rio de Janeiro: Forense Univer-sitária,1989. Cosmologie. Paris: Ellipses, 1992(com Elbaz E.); Cosmology and Gravitation;Paris: Frontières, 1994 (org.); Cosmology andGravitation II. Cingapura: Frontières, 1996(org.); O Círculo do Tempo: Um olhar científi-co sobre viagens não-convencionais no tem-po. Rio de Janeiro: Campus, 1997; Cosmologyand Gravitation. Paris: Atlantisciences, 2000(org.); Os sonhos atribulados de Maria Luísa.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; Le cercle dutemps. Paris: Atlantica-Seguier, 2001; ArtificialBlack Holes. Cingapura: World Scientific Publis-hing Co., 2002 (org. com Volovik, G. e Visser, M.);Os jogos da natureza. Rio de Janeiro: Campus,2004; Máquina do tempo – Um Olhar Científi-co. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

IHU On-Line – A Cosmologia passou a serconsiderada ciência recentemente. No queela consiste e por que não era consideradauma ciência?Mário Novello – Por uma razão muito simples. ACosmologia tratava de uma totalidade chamadauniverso, isto é, espaço, tempo, matéria e energia,e as pessoas argumentavam que toda a experiên-cia feita pelo homem é limitada no espaço e notempo. Como tal, a totalidade do espaço e dotempo não teria possibilidade de ser observada.Isso foi descartado, porque, em 1929, Hubble81

mostrou que as observações que ele estava fazen-do de estrelas e galáxias, apontavam que haviaum processo global do universo e que podia serinterpretada como sendo a expansão do volumedo universo. Ou seja, o volume total do universoestava variando com o tempo e, conseqüente-mente, o volume total podia ser observado comotal, quer dizer, não era uma região pequena doespaço-tempo que estava sendo observada, masera um processo global, passível de ser observa-do. Conseqüentemente, a Cosmologia, comoqualquer ciência, tinha o seu objeto de estudo: ouniverso.

IHU On-Line – O universo passa a serobservável?Mário Novello – Sim. As experiências, as obser-vações até então, eram localizadas no espaço e notempo. Quando a experiência é feita em um labo-

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81 Edwin Hubble (1889–1953): astrofísico norte-americano. Descobriu a natureza verdadeira das galáxias, determinou adistância de várias delas, evidenciou o movimento que as leva a se afastarem umas das outras e encontrou uma relação entresua velocidade de recessão e sua distância, a qual é considerada uma prova de expansão do universo. Um satélitenorte-americano recebeu o seu nome (1993). (Nota da IHU On-Line)

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ratório, que é um sistema fechado, espacialmentefalando, a experiência tem um certo tempo de du-ração. Quando olhamos para estrelas, mesmo es-sas observações são limitadas no espaço e no tem-po. Hubble mostrou que se poderia observar otodo.

IHU On-Line – Pode-se dizer, então, “este éo universo”?Mário Novello – Exatamente. Passou-se a poderdizer: este é o universo, o qual a Cosmologia vaitratar de entender.

IHU On-Line – Quais são as decorrências daevolução dos estudos da Física e da Cosmo-logia para uma Terra habitável?Mário Novello – Temos dois aspectos. Um estri-tamente técnico, prático, do conhecimento da Fí-sica, que pode ter conseqüências no conhecimen-to da Terra. Outro, um aspecto mais profundo deconhecimento do pensamento, porque ao fazerCosmologia nós nos envolvemos com uma estru-tura de pensamento, contendo a totalidade doque existe e, no fundo, ao examinarmos essa es-trutura global, fazemos referências, conexões einferências sobre processos que são limitados noespaço e no tempo, mesmo sobre processos depensamento localizado, como, por exemplo, a ló-gica. A Cosmologia está mudando certos hábitosde pensamento. Atualmente, já se começa a pen-sar que as propriedades que nós temos na Terratêm muito a ver com as propriedades do universo,e não o contrário.

IHU On-Line – O senhor pode exemplificar?Mário Novello – Antigamente, se pensava que atotalidade era um processo a ser definido de duaspequenas partes. Seria um processo evolutivo quecomeçava pelos quarks, as partículas elementares,e ia num crescendo. Hoje vemos a contrapartidadisso, ou seja, o movimento global do universo,produzindo situações que são descritas como con-seqüência da evolução do universo em proprieda-des localizadas – as partículas elementares. Issodemonstra que nem uma direção nem a outra sãopreponderantes e não deveriam ser o único modopelo qual o homem descreve o que existe. Há um

compromisso entre as duas coisas. Isso está nosmostrando que o movimento de pensar a totalida-de é muito amplo. A cosmologia está nos dandoessa abertura para esse modo de pensar e libertan-do o homem dos grilhões que o aprisionaram du-rante milhares de anos, impedindo-o de ter uma vi-são global do mundo em que vivemos – nessecaso, me refiro ao universo em que vivemos.

IHU On-Line – Há duas verdades?Mário Novello – Ambas as visões são somentepedaços da verdade. O que está se descobrindo éque assim como os constituintes elementares damatéria, a microfísica, influenciam o universo, amacrofísica, o universo, tem uma importânciamuito grande na própria caracterização dos está-gios fundamentais da matéria, o que era inimagi-nável há pouco tempo. Na verdade, estamos des-cobrindo que há uma dialética nesse movimento,mas é uma dialética que não se esgota nesseprocesso.

IHU On-Line – Como podem ser relaciona-dos esses avanços da abordagem cosmoló-gica com as teorias do Caos e dos Sistemas?Mário Novello – A Teoria do Caos nada mais édo que um processo que ocorre em teoriasnão-lineares. No final da segunda metade do sé-culo XX, os físicos entraram de vez nos processosnão-lineares, na Física. Embora algumas das teo-rias mais importantes, como a Teoria da Relativi-dade Geral, de Einstein, de 1915, já fosse uma teo-ria não-linear. Por várias razões, não se usou a Teo-ria da Relatividade Geral como paradigma dasteorias não-lineares. Demorou muito tempo atéque essa teoria fosse entendida, em certas circuns-tâncias, como um processo que podia admitiruma interpretação de sistema dinâmico. Mas éclaro que o sistema dinâmico é apenas um modopelo qual se pode ver o processo evolutivo. A Cos-mologia é muito mais rica do que isso. Podemosencontrar processos caóticos em alguns aspectosda Teoria da Gravitação e em alguns aspectos daCosmologia. Por exemplo, uma teoria em voganos anos 1970 argumentava que muitas das pro-priedades do universo observável, como a isotro-pia espacial, nada mais eram do que a conse-

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qüência de uma fase caótica que teria ocorrido emuma região extremamente condensada do univer-so, que teria homogeneizado o espaço. Na Cos-mologia, em vários exemplos, pode ser detectadaa aplicação de sistemas dinâmicos.

IHU On-Line – Em relação à Cosmologia,qual o lugar do ser humano no universo?Mário Novello – Há centenas de bilhões de galá-xias e de estrelas no universo, mas somos nós queestamos tentando entender isso. Embora o nossopapel seja aparentemente insignificante no uni-verso, não deixa de ser interessante que estejamosconseguindo entender essa quantidade fabulosade objetos, de energias, de matérias que existemno universo. Eu não acho que deva se extrair daCosmologia – não nesse momento – um modopelo qual se comporta uma sociedade, mas euacho que se pode extrair algumas circunstânciasenvolvendo a espécie humana. A espécie humanasofreu, ao longo da história, como disse Freud,três golpes profundos no seu orgulho. Primeiro,foi quando se mostrou que a Terra não era o cen-tro do universo, no século XV. Depois, quandoDarwin mostrou que havia um processo evolutivodas espécies e que talvez a própria raça humanafosse uma conseqüência dele. E o terceiro grandegolpe veio do próprio Freud, que disse essas frasese demonstrou que alguns momentos do nosso co-tidiano, os quais apresentamos como racionaistêm, na verdade, motivações altamente irracio-nais, pois a Cosmologia está mostrando que háum quarto golpe, sendo desferido sobre a espéciehumana, que consiste no fato de que, talvez, aprópria linguagem newtoniana, com a qual nóstentamos descrever o que existe, não é aplicávelem todas as circunstâncias. O que isso quer dizer?Quer dizer que, no momento em que o universopassa de uma fase “colapsante” para uma fase deexpansão, há circunstâncias que podem ser des-critas como se houvesse coisas materiais que nãosão representadas no espaço e no tempo. Ora, équase inimaginável para todo o mundo pensarque se possa aplicar a palavra “existir” para algoque esteja fora do espaço e do tempo. Para nós,existir é ser representado no espaço e no tempo. Oque os físicos estão mostrando é que o espa-

ço-tempo pode ser uma estrutura construída. Issoé um golpe tremendo na nossa imagem mental domundo. Isso ataca o nosso orgulho como espécie.Por um lado, temos orgulho porque somos nósque estamos tentando construir essa estrutura ma-temática que descreve o universo; por outro lado,não estamos utilizando o nosso mundo mentalpara representar o que existe. Ainda vamos levaralguns anos, talvez décadas, para conciliar essasconcepções. Trata-se de uma revolução mental.Esses processos representam uma revolução emmarcha, as preocupações que motivaram o Sim-pósio Terra Habitável demonstram isso. Mas háuma revolução de caráter diferente, mais profun-da, com a discussão desses aspectos da Cosmolo-gia, na produção dessa passagem de um colapsopara uma expansão do universo, que mexe comconceitos que estão lá atrás, no nosso imagináriomais remoto e que nem sequer são discutidos nocotidiano.

IHU On-Line – As universidades estão dan-do a atenção necessária para esses deba-tes? A discussão desses assuntos está indobem?Mário Novello – Não, não vai bem. Uma catás-trofe que atinge os sistemas universitários brasilei-ro e mundial é a separação em departamentos.Temos uma universidade que não é uma“uni-versidade”. A maior parte das universidadesbrasileiras tem institutos separados física e geogra-ficamente uns dos outros, nos quais o pessoal deGeografia interage com o pessoal de Geografia, opessoal de Física com o de Física, o de Químicacom os químicos e assim por diante. Disso resul-tam técnicos e profissionais que têm uma vagaidéia do que está acontecendo na vizinhança. Hámovimentos tentando unir os conhecimentos,como este Simpósio, que também ocorrem emoutros lugares, mas isso é muito pouco. Na verda-de, no cenário da inteligência brasileira, isso é mui-to pouco. Muito mais deveria ser feito nas univer-sidades. Essas barreiras deveriam ser quebradas,e quebradas violentamente, porque elas não se-rão quebradas por dentro. As pessoas, que têmseus institutos programados e uma estrutura depoder interno muito bem delineada, não vão abrir

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mão dele. No fundo, o que temos é um jogo depoder, não é o conhecimento que está sendo bus-cado. Nessas estruturas, o que se procura não éconhecimento, e sim, manter o status quo para ge-rar uma estrutura política. É desagradável o queeu estou falando, mas é o que eu vejo no cotidia-no das nossas universidades. Para mudarmosisso, esse tipo de reunião que está ocorrendo aquideveria acontecer cotidianamente, em todas asuniversidades. Como se vê, é quase impossívelque isso se dê. Por isso, eu acho que deveria haveruma revolução stricto sensu na educação. Esta-mos formando pessoas altamente competentes,em várias áreas, mas sem o poder de compreen-der as coisas globalmente, e isso é a pior coisa queexiste. Vemos, por exemplo, que o movimentoecológico está tentando demonstrar que há cone-xões muito maiores do que imaginávamos entre

diferentes áreas. Isso é muito mais profundo,como a Cosmologia está demonstrando. Ela pre-cisa de toda a gama de físicos para tentar esboçaruma idéia mais simples possível do universo e, nofundo, estamos jogando com diferentes áreas doconhecimento. Ora, isso só é possível se houveruma troca, que não está acontecendo no cotidia-no. Formamos pessoas como se formássemosoperários extremamente competentes numa de-terminada área. Talvez isso seja mesmo resultadodo sistema em que vivemos: um capitalismo selva-gem. Na verdade, todo o sistema universitáriobrasileiro não busca o conhecimento. Claro queisso não é exclusivamente um problema brasilei-ro, isso reflete o momento que estamos vivendo.Por isso, se deveria quebrar a estrutura do poderintelectual acadêmico universitário.

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A dimensão espiritual do cosmos

Entrevista com Paul Schweitzer

Paul Alexander Schweitzer é professor daPUC-Rio. Graduado em Teologia e Matemática emestre em Filosofia, o pesquisador é doutor emMatemática pela Universidade de Princeton (Esta-dos Unidos) e pós-doutor pelo Instituto de EstudosAvançados da mesma universidade.

IHU On-Line – Quais foram as principaisidéias desenvolvidas na oficina A dimensãoespiritual da realidade do cosmos?Paul Schweitzer – Eu me detive bastante na re-lação entre matéria e espírito. Teilhard de Chardinreferia-se à lei da complexidade e da consciência.Sua idéia é que a consciência é uma realidade queestá presente em tudo o que existe, desde a menorpartícula até o ser humano. Ela se manifesta à me-dida que a matéria se organiza em formas maiscomplexas que permitem o funcionamento daconsciência. Descartes separa matéria e espírito,Teilhard, por sua vez, reconhece que matéria e es-pírito são dois aspectos reais do mundo. O ser hu-mano tem consciência reflexiva: somos os únicosque sabemos, e sabemos que sabemos, mas háconsciência em animais e organismos mais primi-tivos. Aspectos da consciência estão presentes emtodo o universo, e essa consciência se manifesta àmedida que a matéria se organizada em formas

complexas. O cérebro humano permite que nossaconsciência chegue a um nível de reflexão e auto-conhecimento. Teilhard fala também do poder es-piritual da matéria. Ele vê o espírito de Deus agin-do em toda a realidade, não somente o espírito fi-nito, o ser humano com toda a sua consciência,também o espírito de Deus que age em toda a na-tureza. Ele afirma que há uma direção na evolu-ção, no progresso, no desenvolvimento. Não éque tudo seja meramente aleatório. O espírito estápresente, guiando e fortalecendo essa evolução.

IHU On-Line – Como a Matemática ajuda acompreender os desafios do mundo habitável?Paul Schweitzer – A Matemática hoje não se re-fere tanto às questões de números, embora hajaisso. Vemos, nas palestras deste Simpósio, muitosgráficos com números que mostram a degradaçãodo Planeta, os problemas quantificados, mas é naárea das modelagens que a Matemática pode aju-dar mais. Ela oferece estruturas de pensamento,estruturas abstratas, que podem ser aplicadaspara modelar um processo, podendo ajudar a pla-nejar a maneira de encontrar os meios para che-gar a implementar o projeto ecológico, como oprof. Latouche82 falava, um projeto de decresci-

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82 Serge Latouche é professor na Universidade de Paris-Sul e presidente da Associação Linha do Horizonte. É autor de diversoslivros. Entre eles, Les Dangers du marché planétaire (Os perigos do mercado planetário). Paris: Presses de Sciences, 1998;La déraison de la raison économique. Paris: Albin Michel, 2001; La pensée créative contre l’économie de l’absurde.Paris: Parangon, 2003; Justice sans limites – Le défi de l’éthique dans une économie mondialisée (Justiça semlimites. O desafio da ética numa economia globalizada), Paris: Fayard, 2003. Latouche publicou, no Brasil, A Ocidentalizaçãodo Mundo. Petrópolis: Vozes, 1994. Serge Latouche foi entrevistado pela IHU On-Line na edição nº 100, de 10-05-2004 ena 141, de 16-05-2005. Latouche fez a conferência Crescimento econômico e decrescimento. Os desafios da vida da Terrapara a economia contemporânea no Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade, namanhã do dia 18 de maio de 2005. (Nota da IHU On-Line)

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mento em vez do crescimento maior da economiae chegar, assim, a uma vida sustentável.

IHU On-Line – Qual foi o impacto de Teilhardem seu tempo?Paul Schweitzer – Foi positivo. O fato de a Igre-ja Católica ter assimilado a teoria da evolução,sem fazer a bobagem de condená-la, deve-se, emgrande parte, ao trabalho de Teilhard. Ele era umvisionário. A idéia de planetização, de noosfera,em que não somente haveria seres humanos indi-viduais espalhados pela Terra, mas a formação deuma rede de intercomunicação cada vez mais for-te foi prevista por ele. Nos últimos 15 anos, assisti-mos ao desenvolvimento da Internet, a comunica-ção instantânea, essa comunicação em rede queestá acontecendo, e ainda vai provocar resultadosimprevisíveis.

IHU On-Line – Como a universidade poderiapreparar-se melhor para os desafios queapresenta uma Terra habitável?Paul Schweitzer – O exemplo de Teilhard nosajuda a pensar isso. Ele era uma pessoa que traba-

lhava em vários campos diferentes, que unia as di-versas disciplinas numa visão global, o que é mui-to difícil. Na universidade, é necessário que hajauma base de informação e formação em cada dis-ciplina, senão ficamos na superficialidade. Entre-tanto, a estrutura da vida moderna deixa a pessoasob pressão o tempo todo e gastamos muito tem-po em engarrafamentos de trânsito, trabalhamoso dia todo e continuamos o trabalho em casa. Asuniversidades não têm uma vida fora das aulas.Ideal seria que o aluno tivesse tempo livre para es-tar, pensar, conversar com os colegas, cultivaressa visão mais global.

IHU On-Line – Como Teilhard se teria senti-do se tivesse participado deste evento?Paul Schweitzer – Certamente muito feliz. Ogrande problema dele foi não ter muitas oportuni-dades de discutir suas idéias com o público. Ele foiproibido de publicar certas obras. E foi, mais oumenos, exilado na China. Então teria ficado muitofeliz de estar em um lugar no qual pudesse apre-sentar suas idéias e escutar as respostas. Esse in-tercâmbio teria sido maravilhoso para ele.

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Filosofia, bioinformática e tecnoumanismo

Entrevista com Timothy Lenoir

Timothy Lenoir é coordenador do Programaem História e Filosofia da Ciência da Universidadede Stanford (Estados Unidos). É doutor em Histó-ria e Filosofia da Ciência pela Universidade deIndiana. Ocupa a Kimberly Jenkins Chair da Uni-versidade de Duke. É pesquisador com interesseinterdisciplinar em humanidades, ciências e enge-nharia. Possui extensa lista de publicações sobre ahistória da matemática no século XVII, história dabiologia e fisiologia alemã no século XIX, sobre oimpacto do uso da informática nas ciências, sobreconceito e implicações da tecnociência e sobre aprodução de materiais digitais para a pesquisa naárea de filosofia e história das ciências. Entre seustemas de interesse atual, está a discussão da ne-cessidade de se repensar um papel para as huma-nidades à luz dos grandes avanços tecnológicos,propondo o que chama de tecnoumanismo. Ti-mothy Lenoir foi o responsável por duas confe-rências no Colóquio Internacional Filosofia eCiência: Redesenhando horizontes. A primei-ra teve o seguinte título: Réquiem para o Cyborg,e a segunda, que encerrou o Colóquio, Inventan-do a Universidade empreendedora: Stanford e aco-evolução do Vale do Silício.

Durante o Colóquio, foi lançada a traduçãoportuguesa do livro de T. Lenoir, Instituindo aCiência. A produção cultural das discipli-nas científicas. São Leopoldo: Editora Unisi-nos, 2004. Agradecemos o auxílio da professoraDr.ª Anna Carolina Regner, professora no PPGde Filosofia da Unisinos e coordenadora do Coló-quio Internacional, que serviu de intérprete daentrevista.

Para o professor Dr. Timothy Lenoir “A ciên-cia contemporânea está indo na direção de um ca-samento com a tecnologia, o que cria tipos dife-

rentes de perguntas, tipos diferentes de questõesque a filosofia da ciência tradicional não aborda”.Segundo ele, houve uma explosão no passado,em torno das guerras da ciência, em que o cientis-ta e o filósofo simplesmente não se compreendiam.“Chegar a um entendimento e criar uma filosofiada ciência mais compatível, que aborda as verda-deiras preocupações da ciência, que eu chamo de‘tecnociência’, me parece ser a principal questãohoje”, salienta Lenoir.

IHU On-Line – Quais são os principais desa-fios para um diálogo entre a Filosofia e aciência hoje?Timothy Lenoir – Há várias questões-chave emque a Filosofia e a ciência se confrontam. Um dosprincipais problemas tem sido a falta de compre-ensão dos filósofos sobre o tipo de coisas que oscientistas buscam. Há um estilo antigo da filosofiada ciência, em particular, que tende a enfocar aexplanação científica, a predição e a lógica daciência. E a ciência contemporânea está indo nadireção de um casamento com a tecnologia. Estecasamento da tecnologia com a ciência cria tiposdiferentes de questões, que a filosofia da ciênciatradicional não aborda. Houve uma explosão nopassado, em torno do que nós, nos Estados Uni-dos, chamamos de guerras da ciência, em que ocientista e o filósofo simplesmente não se compre-endem. Chegar a um entendimento e criar uma fi-losofia da ciência mais compatível, que aborda asverdadeiras preocupações da ciência, que eu cha-mo de “tecnociência”, me parece ser a principalquestão hoje. Isso perpassa tanto os aspectos téc-nicos da ciência como suas dimensões maiores so-ciais que não podemos simplesmente evitar nadiscussão sobre a construção do saber científico.

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Essas questões são parte da construção da tecno-logia científica, e o outro aspecto disso, que é umapreocupação muito atual, são as dimensões éticasda construção científica.

IHU On-Line – Como acontece este diálogona Universidade de Stanford?Timothy Lenoir – Creio que, em Stanford, o diá-logo acontece de várias maneiras diferentes. Nóstemos um Departamento de Filosofia muito im-portante, um grupo de filosofia da ciência muitoforte, um grupo de história e filosofia da ciência.Na Faculdade de Medicina, existe um programamuito forte de ética da biomedicina que já ganhouum grande número de subvenções federais subs-tanciais para realizar uma variedade de projetos.Além disso, finalmente, na Faculdade de Enge-nharia, é exigido que todos os alunos façam, pelomenos, uma disciplina de Ética da Engenharia.Então, há uma variedade de oportunidades nestescontextos para o diálogo entre cientistas, enge-nheiros e filósofos. À parte disso, Stanford é umauniversidade incrivelmente interdisciplinar. Este éo nome do jogo em lugares como Stanford, quesão universidades com alta prioridade na pesqui-sa, onde a colaboração entre engenheiros e cien-tistas da computação, por exemplo, ou entre en-genheiros, cientistas da informática e biomédicos,é rotineira. Quando olhamos os trabalhos que sãofeitos, as patentes que são registradas pelo corpodocente de Stanford, que sempre encontra ofertano mercado, vemos que existe muito desta inter-disciplinaridade na universidade e eu, pessoal-mente, a considero um ambiente muito acolhedorpara pessoas como eu com interesses nos aspec-tos sociais, éticos e técnicos da ciência. Este diálo-go acontece regularmente. É um ambiente incen-tivador de diálogo.

IHU On-Line – O que deve ser consideradopara obter resultados eficientes nas rela-ções entre a universidade e a economia in-dustrial da região onde a universidade seencontra?Timothy Lenoir – Quando olho a história da re-lação de Stanford com o Silicon Valley, penso quetem havido várias ondas de inovação no Silicon

Valley. A partir do começo dos anos 1950, houveo desenvolvimento da eletrônica e da eletrônicade estado sólido e transistores, depois veio a ondado desenvolvimento dos semicondutores, seguidapela dos computadores microprocessadores epela da Internet, que aconteceu no começo dosanos 1990 e continua até hoje. Acima disso tudo,abrangendo o período de meados dos anos 1970até o presente, há o que se pode chamar de bio-tecnologia, na qual há um enorme influxo de ino-vações. Stanford tem participado em todas estasondas de inovações. Você está perguntando sobrequal o valor adicionado ao ambiente local, adicio-nado à estrutura econômica da região por um lu-gar como Stanford. Não é tanto na área de produ-zir tecnologias individuais ou criar invenções nauniversidade que podem ser lançadas nas compa-nhias. Um pouco disso acontece, o que é muitoimportante, mas a universidade é importante parao que eu chamo de tecnologias convergentes emque há tecnologias e desenvolvimentos científicosde diferentes áreas que convergem para este am-biente e criam possibilidades tecnológicas com-pletamente novas e revolucionárias. Por exemplo,podemos olhar para o desenvolvimento da bioin-formática, um campo que está transformandomuito a prática da Biologia hoje, um campo quese formou em Stanford, mas também em outroslugares, com a colaboração de bioquímicos e cien-tistas da computação que deslancharam umacompanhia que fundamentalmente transformou ocampo. Poderíamos olhar para outras áreas deatividades semelhante. A convergência de dife-rentes tipos de tecnologias acontece em ambien-tes universitários onde a indústria não teria tantointeresse em pesquisar o que eles considerariamproblemas a longo prazo que não rendem para assuas necessidades tecnológicas imediatas. A uni-versidade contribui para isso, mas o mais impor-tante é que Stanford, diferentemente de outrasuniversidades, tem enfocado sua abordagem naadaptação da universidade ao seu ambiente local.Stanford depende, quase inteiramente, de fundosfederais para as suas operações, surpreendente-mente, e isso significa que Stanford se adapta aoseu ambiente, aproveitando a ciência e a tecnolo-gia inovadora que se encontram nos âmbitos de

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várias companhias e vários outros laboratórios,trazendo as pessoas para a universidade a fim deestabelecer novos programas. Foi isso que aconte-ceu, por exemplo, no caso do programa de Físicado Estado Sólido em Stanford. Física do EstadoSólido não é um campo desenvolvido numa uni-versidade – estava sendo elaborado na Bell Labo-ratories. Os pró-reitores (decanos) de Stanford daengenharia e ciências viram isso como uma opor-tunidade para desenvolver o campo e incorpora-ram algumas das pessoas mais importantes daBell Laboratories que construíram o programa in-teiro da Física de Estado Sólido. Eu poderia conti-nuar com outros tipos de exemplos, mas essencial-mente, o que fizeram foi treinar uma geração dedoutores que, fundamentalmente, transformarama área. Então há este relacionamento fantástico,esta co-evolução da Stanford como uma universi-dade de pesquisa, Stanford como uma universi-dade altamente produtiva de idéias novas e novastecnologias, que está profundamente dependenteda área local, de Silicon Valley, mas também doambiente de fundos federais para sustentar estasinovações. É um relacionamento muito dinâmico.

IHU On-Line – Poderia falar um pouco maissobre os seus projetos sobre a história dainteração entre o homem e o computador ea história da bioinformática?Timothy Lenoir – Os projetos da história da inte-ração entre o homem e o computador e a históriada bioinformática surgiram de uma preocupaçãosobre o que os historiadores do futuro irão preci-sar para documentar e pesquisar a história daciência e tecnologia contemporânea. Para colocarisso em perspectiva, todo o trabalho que eu haviafeito anteriormente sobre a história da ciência etecnologia de antes da Segunda Guerra Mundial,enfocava, basicamente, a ciência da tecnologiaalemã e a sua relação com a indústria no séculoXIX e começo do século XX. E se alguém faz pes-quisa nisso, o que encontra é uma linda área paratrabalhar, pois toda a documentação está registra-da em papel. A ciência contemporânea, desde porvolta de 1960, surpreendentemente, armazenaseus documentos em ambiente digital. Os projetosque as pessoas têm desenvolvido freqüentemente

foram em colaboração com outros cientistas,compartilhando arquivos, criando bases de dadose programas para visualizar a produção e o que éespecialmente importante para a ciência e a enge-nharia contemporânea é a construção de simula-ções. Bem, estas coisas são digitais; se olharmosos arquivos da ciência contemporânea, encontra-rá trabalhos científicos publicados em revistas,mas as outras coisas que os historiadores da ciên-cia e tecnologia usam como documentos de labo-ratórios, cadernos de laboratórios, etc., encon-tram-se todos em forma digital. Então, para po-dermos acessar estas notas, precisamos aprendercomo preservá-las corretamente, precisamos ad-quirir ferramentas diferentes para fazer este tipode pesquisa por causa das tecnologias com asquais lidamos. Todos estes projetos, dos quais es-tamos falando, são multidisciplinares e disponibi-lizados para muitas pessoas. Envolvem cientistas eengenheiros de várias disciplinas, que auxiliam nasua colaboração e na sua construção, como a bio-informática, por exemplo, que foi desenvolvidapelo trabalho de bioquímicos que não sabiam mui-to sobre computação, que tiveram ajuda de cien-tistas da computação e cientistas da informaçãopara desenvolver aspectos do campo. Esta cola-boração desenvolveu recursos internos próprios.Para podermos fazer isso, do que precisamos?Dominar todas as diferentes disciplinas para po-der escrever uma história das pesquisas? Poucaspessoas podem fazer isso, assim temos um núme-ro cada vez menor de historiadores da ciência e datecnologia que podem escrever de uma maneiramenos superficial. Para podermos fazer isso, te-mos que desenvolver novos tipos de ferramentasque permitem a nossa cooperação com cientistase engenheiros para eles documentarem a sua pró-pria história, e eles colaborarem conosco ao escre-vermos as suas histórias. Isso não significa quelhes damos autoridade para escreverem a sua pró-pria história. Nós os auxiliamos porque a históriada interação entre o homem, o computador e a bio-informática foi elaborada com estes objetivos emmente, para desenvolver ferramentas que iriamcriar ambientes colaborativos que permitiriam acientistas e engenheiros ajudar a elaborar docu-mentos que criariam recursos que nós, historiado-

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res e cientistas sociais, usaríamos ao escrever asnossas histórias. Entre algumas destas ferramentasque desenvolvemos para fazer isso acontecer, es-tão, por exemplo, as linhas de tempo, linhas detempo colaborativas, que permitem que os própri-os cientistas estruturem os tipos de eventos queacham importantes e para estabelecer relaciona-mentos entre estes eventos, para discutir traba-lhos-chave, reuniões-chave, contribuições impor-tantes para a indústria, e assim por diante, numambiente altamente interativo que está em cons-tante revisão. É um lugar de jogo para o cientista eo engenheiro, para ajudar a assimilar os detalhesbásicos do seu campo e outras coisas importantesao seu ver. Creio que isso tenta resolver algumasdas dificuldades que vemos surgir nas guerras decultura, nas guerras de ciência em que temos cien-tistas sociais e filósofos de fora, criando históriassobre o que acontece na ciência. Aqui nós temos acolaboração entre cientistas e filósofos na discus-são sobre os esboços do campo. Não significa queseja a história final, mas se não desenvolvermosferramentas assim, para arquivar, para preservar eoutros tipos de ferramentas para acessar e analisaressas histórias, não poderemos fazer pesquisa nofuturo.

IHU On-Line – Por que o senhor acha im-portante realizar colóquios como este queestá acontecendo na Unisinos?Timothy Lenoir – É difícil dizer quais vão ser osresultados que evoluirão a partir desse colóquio. Éuma oportunidade importante para pessoas de di-

ferentes origens. A maioria dos conferencistas filó-sofos teve sua formação em muitas das mesmasinstituições nas quais eu também fiz a minha. Mui-tas das pessoas tiveram os mesmos professores, asmesmas professoras. Um dos meus professoresmais importantes veio da Argentina para os Esta-dos Unidos onde eu trabalhei com ele, o AlbertoCoffa. Então há muita colaboração cruzada jáacontecendo no desenvolvimento do campo. Oque eu vejo acontecendo, não sei como funcionaaqui no Brasil, é um movimento nos Estados Uni-dos e nas comunidades de estudos científicos emgeral, de aproximação ao cientista, e não de afas-tamento dele. O que é importante é tentar desco-brir como podemos estabelecer um discurso críti-co, como podemos trabalhar com cientistas e en-genheiros e manter um discurso crítico que nãoseja ofensivo e que permita que o diálogo conti-nue. Creio que isso foi um problema no passado eme parece que seria uma das oportunidades deuma conferência como esta. Outro ponto que meparece muito importante para os filósofos no Bra-sil são os problemas sobre a ética da ciência e tec-nologia e o rápido desenvolvimento industrial etecnológico, aqueles que levam a deslocamentosna terapia médica e em outras áreas e que nós,nos Estados Unidos, não ficamos sabendo certocomo são. Os filósofos da ciência e os cientistasbrasileiros que trabalham com essas questões,contribuem mais diretamente e enormementepara o tipo de direção que estamos buscando,portanto eu prevejo que isso tenha um resultadovalioso.

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Há urgência de pensar uma nova ética global

Entrevista com Nelson Gonçalves Gomes

Nelson Gonçalves Gomes é professor titularda Universidade de Brasília desde 1976, ondecoordena o Mestrado em Filosofia. Doutor em Fi-losofia pela Universidade de Munique (Alema-nha), obteve o título de pós-doutor em Filosofia naUniversidade de Munique e na London School ofEconomics (Departamento de Filosofia). Nessasinstituições, na Universidade de Oxford, Universi-dade Hebraica de Jerusalém e no Centro Interna-cional de Fundamentos das Ciências, em Salzbur-go (Áustria) fez estágio sênior. É também bolsis-ta-pesquisador do CNPq desde 1985, membro doComitê Assessor de Filosofia do CNPq e do Con-selho de Ensino e Pesquisa da UnB. Tem publica-ções nas áreas de lógica, história da filosofia comênfase no positivismo, ética e filosofia da psicolo-gia. É organizador do livro Hegel. Brasília: Edito-ra Universidade de Brasília, 1981. O professor Dr.Nelson Gonçalves Gomes vê, com otimismo, apossibilidade de formular uma nova ética que leveem conta os problemas de sobrevivência do ecos-sistema. “Há muitos problemas que estão no ca-minho, mas creio que hoje temos que colocar auniversalidade da ética na globalização, porque aglobalização universalizou os problemas. Nãoqueremos soluções que atinjam simplesmenteuma determinada comunidade. Temos uma inter-dependência entre todas as comunidades existen-tes no Planeta. Como a ecologia está se transfor-mando numa questão de sobrevivência da Terra,uma ética voltada para problemas ecológicos éuma exigência do nosso tempo”. Durante o Coló-quio Internacional Filosofia e Ciência: Re-desenhando horizontes, o professor Nelson foio responsável pelo debate Lógica dialógica e co-municação ideal.

IHU On-Line – Em que consiste a lógica / dia-lógica numa comunicação ideal?Nelson Gomes – A lógica / dialógica consiste,basicamente, num sistema no qual se discute umatese no contexto de um diálogo entre duas pessoas:o proponente e o oponente. O proponente apre-senta uma tese, por exemplo, “amar a natureza éuma coisa boa, positiva”. O proponente e o opo-nente, seu interlocutor, debatem-na. A discussãonão acontece de qualquer maneira. Há regras quedevem ser observadas. E, ao final do diálogo, se,por ventura, o oponente é levado a uma espéciede situação sem saída, não pode ou não tem maisobjeções a fazer, ele perdeu o diálogo. Ganhou oproponente.

IHU On-Line – O que essa lógica / dialógicateria a dizer em um mundo marcado porfundamentalismos?Nelson Gomes – A lógica / dialógica é apenasum instrumento. Ela não é ética. A ética é outroassunto. A lógica / dialógica pode ser um instru-mento da reflexão ética. É uma forma de mostrarcomo as pessoas podem dialogar. A parte da Filo-sofia que reflete sobre todas as questões do mun-do contemporâneo, cada vez mais difícil, é a ética.Não é propriamente a lógica / dialógica. Evidente-mente, o fundamentalismo é a negação do diálo-go, ele consiste simplesmente em afirmar-se umaposição.

IHU On-Line – Como o senhor vê a possibili-dade de uma ética universal que privilegie arelação do ser humano com o ecossistema?Nelson Gomes – Eu vejo isso com otimismo. Hápossibilidades reais de pensarmos nisso. Há mui-

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tos problemas que estão no caminho, mas creioque hoje temos que colocar a universalidade daética na globalização, porque a globalização uni-versalizou os problemas. Hoje não queremos so-luções que atinjam simplesmente uma determina-da comunidade. Temos uma interdependênciaentre todas as comunidades existentes no Planeta.Pensar em termos de uma ética universal é muitonatural. Como a ecologia está se transformandonuma questão de sobrevivência da Terra, uma éti-ca voltada para problemas ecológicos é uma exi-gência do nosso tempo.

IHU On-Line – Qual pode ser a contribuiçãodas religiões para uma ética global?Nelson Gomes – Realmente não tenho umaboa resposta para dar, ou pelo menos uma res-posta que seja fruto do raciocínio e da reflexão,mas posso dar uma resposta parcial. Entre os gre-gos antigos, havia a crença de que o mundo erahabitado por deuses. Cada objeto, por exemplouma árvore, teria um Deus dentro de si. O mar te-ria deuses dentro de si. Isso é algo que pode levaras pessoas a terem uma relação de maior respeitopara com a natureza. As diversas religiões hojeestão levando as pessoas, pelo menos em algunscasos, à guerra, à violência. Em todo o Planeta,há várias guerras que têm como base a religião. Ésó pensar nos problemas gravíssimos que o Oci-dente tem com os muçulmanos. Nesses confron-tos, o elemento religioso é importante. Ou sepensarmos na Irlanda do Norte, problemas entrecatólicos e protestantes, o elemento religioso éimportante. Eu não saberia definir as religiõescom precisão, porque elas podem ser muito úteispara aproximar os homens em muitos casos, mastambém podem levá-los à destruição. Infelizmen-te, temos exemplos históricos das duas coisas.Mas, com certeza, as religiões são fontes de rela-ções éticas e morais.

IHU On-Line – Como a frase evangélica“tudo o que vocês desejam que os outros fa-çam a vocês, façam vocês mesmos também

a eles” (Mateus 7, 12)84 poderia ser basepara uma ética universal?Nelson Gomes – Essa frase é mais bem formula-da negativamente. É melhor colocar assim “nãofazer ao outro aquilo que eu não quero que sejafeito a mim”. Por exemplo, uma pessoa masoquis-ta pode querer que façam coisas ruins para ela, eisso não é bom, porque não é por isso que ela po-derá fazer coisas ruins para os outros. A formula-ção negativa é melhor. Essa regra “não fazer aooutro aquilo que eu não quero que seja feito amim” chama-se, em ética, “regra de ouro”. E essaregra está presente no ensinamento de inúmerasreligiões e de inúmeros sistemas éticos. É uma re-gra, sem dúvida nenhuma, central no pensamentoético. Muitas teses éticas podem ser derivadas daí.

IHU On-Line – Quais os principais desafiosque o senhor vê no diálogo entre ciência eFilosofia?Nelson Gomes – O principal desafio no diálogoentre ciência e Filosofia consiste, em primeiro lu-gar, em se definir o que a Filosofia pode fazer,para que se entenda melhor a ciência. Em segun-do lugar, em que a ciência pode enriquecer a Filo-sofia. Essas questões são, até hoje, mal resolvidas.O naturalismo, uma corrente filosófica, diz, em úl-tima análise, que a Filosofia pode fazer muito pou-co, ou talvez nada, para que a ciência tenha umentendimento melhor de si mesma. Na verdade,o filósofo, segundo os naturalistas, seria incapazde trazer contribuições importantes para o enten-dimento da ciência. Em outras palavras, a ciênciapoderia ser entendida estudando-se a própriaciência. A ciência é que estaria em condições delevar ao entendimento dos seus próprios proce-dimentos. Este é o desafio contemporâneo: en-contrar uma boa resposta para essa questão. Pre-sentemente, os naturalistas têm um grande pres-tígio filosófico. Há estudos muito importantes ecrescentes sobre o naturalismo. E se o naturalis-mo tem razão, a Filosofia não ajuda no entendi-mento da ciência. Essa é uma questão a seresclarecida.

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84 A tradução é da Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Edições Paulinas. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – O senhor acha que haveriatambém uma necessidade de maior diálogoentre ciência, Filosofia e os problemas dasociedade contemporânea?Nelson Gomes – Sim. Mas acho que temos demanter as coisas separadas. Uma coisa é a relaçãoentre ciência e Filosofia, outra coisa é a relaçãodos problemas da sociedade com os problemas daFilosofia e com os problemas da ciência. São coi-sas que não devem ser colocadas no mesmo con-junto de preocupações.

IHU On-Line – Mas não estaria faltando às ins-tituições científicas, às universidades, umaabertura maior aos problemas da sociedade?Nelson Gomes – Esta é uma outra questão: sa-ber, por exemplo, como a universidade deve for-mar o seu pessoal, alunos, professores, no sentidode pensar em profundidade as questões da socie-dade. É importante que as questões não sejammescladas, porque saber se a Filosofia tem algo adizer sobre a ciência é uma coisa. Saber que pro-blemas sociais o filósofo pode ajudar a resolver, éoutra. São blocos diferentes de problemas: Filoso-fia, ciência, sociedade. Não há a menor dúvida deque a preocupação em torno da sociedade é cru-

cial. No final das contas, a ciência deve aperfeiço-ar o homem. Essa já é uma frase de Spinosa. E eudiria que a Filosofia também. Essa é uma preocu-pação fundamental.

IHU On-Line – Que momento está vivendo aFilosofia?Nelson Gomes – De um modo geral, eu não di-ria que a Filosofia esteja vivendo um momentoparticularmente brilhante. Não estamos na situa-ção em que estávamos, por exemplo, em 1950,1960, ou até nas décadas anteriores, quando, en-tão, a Filosofia era discutida pelo trabalho degrandes cabeças, como Heidegger ou BertrandRussel, Husserl, Sartre, etc. No momento, essesgrandes nomes não estão aí. Há filósofos famosos,sem dúvida nenhuma, pensadores, como Locke,mas não há aqueles grandes trabalhos. Com res-peito ao Brasil, temos hoje 27 programas dePós-Graduação, entre mestrados e doutorados, ehouve um crescimento quantitativo da Filosofia eda produção filosófica. Quanto a isso não há dúvi-da. Ainda falta o crescimento qualitativo. Haven-do o crescimento quantitativo, evidentemente au-menta a probabilidade de um crescimento qualita-tivo, mas esse ainda não aconteceu

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O ensino de ciências está longe da formação de cidadãos conscientes

Entrevista com Susana Lehrer de Souza Barros

Susana Lehrer de Souza Barros é professorano Instituto de Física da Universidade Federal doRio de Janeiro (UFRJ). Graduada em Física pelaUniversidade de Buenos Aires (UBA), a professoraé mestre em Física pela Manchester University(Inglaterra).

IHU On-Line – Qual é o cenário brasileiro doensino das ciências naturais em geral e daFísica em especial? Em que medida os con-ceitos ensinados propiciam uma reflexãosobre as suas relações com a sociedade?Susana de Souza Barros – Um cenário confu-so, com muita atividade de pesquisa em educaçãoem ciência e pouca transferência desse conheci-mento para a escola, que se encontra num estadode abandono notório. O interesse dos governostem sido aumentar a matrícula escolar, como dissehá pouco o Presidente Lula: “A escola agora pre-cisa ensinar...” Concordo. O ensino de ciências,por outro lado, precisa de muito apoio e in-fra-estrutura, que não são conseguidos de um diapara outro. Não depende apenas da vontade polí-tica dos governantes. Precisamos de professorescom bom conteúdo científico e de pedagogia eque tenham compreensão da natureza da ciênciae de seus métodos. Para isso é necessário que aformação inicial seja boa, o que não é verdadepara a maioria do nosso professorado. Neste mo-mento, o governo, ciente da situação, oferece pos-sibilidades de educação continuada para muitosprofessores, por meio das suas Secretarias deEducação, do Ministério de Educação e Cultura(MEC), da Coordenação de Aperfeiçoamento dePessoal de Nível Superior (CAPES), da Financia-dora de Estudos e Projetos (FINEP), etc. Essasações pulverizadas NÃO substituem a formação

inicial, são colchas de retalhos, que não cobremninguém...

IHU On-Line – Quanto ao cenário interna-cional, onde se posiciona o Brasil, no quese refere ao ensino mencionado? É possívele/ou útil fazer tais comparações?Susana de Souza Barros – A situação interna-cional é também preocupante. Existem paísescom maior grau de interesse pela educação e quedão prioridade à formação em ciências para pro-vocar o desenvolvimento tecnológico (Coréia, Ja-pão, Taiwan, alguns países europeus). A idéia deensinar ciências para formar o cidadão conscien-te, que possa “salvar” este planeta, está ainda mui-to longe de ser atingida, mas hoje estamos comuma nova visão, e isso é importante.

IHU On-Line – Em que medida a chamada“nova Física” é conhecida pelos estudantesbrasileiros? No nosso ensino, predomina afísica convencional?Susana de Souza Barros – A nova Física não po-derá ser oferecida para os nossos alunos no contextoatual de ensino. Precisamos de um ensino básico deciências que contemple um bom ensino de Matemá-tica, de Português e de Ciências Observacionais. Osalunos que não possuem esses pré-requisitos dificil-mente poderão aproveitar o ensino de Física atual.No limite, poderão ser informados.

IHU On-Line – Quais as medidas necessá-rias para que o ensino de Física permita aefetiva compreensão da ciência, “do univer-so, da natureza e suas inter-relações”?Susana de Souza Barros – 1. Formar o bomprofessor de ciências. 2. Uma escola que atenda

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suas obrigações com seriedade e crie condiçõesde trabalho escolar (infra-estrutura, coordenação,biblioteca, novas tecnologias e laboratórios paratodos). 3. Salários condignos para os professores.4. Avaliação e coordenadorias escolares.

IHU On-Line – Nos últimos anos, tanto nasciências físicas como nas biológicas, os es-pecialistas vêm se inspirando no computa-dor como ferramenta e metáfora. Comoabordar temas afins se o universo computa-cional está, muitas vezes, distante da salade aula? Como aproximar os estudantesdessa nova abordagem do estudo do univer-so e dos corpos que o habitam?Susana de Souza Barros – Não será por meiodas novas tecnologias que o nosso ensino serámelhorado. Pode ser um fator que contribua, masnão resolverá o problema da educação. O interes-se de levar o computador para TODOS, é objeti-vo-mor de todos os governos, acreditando ser fa-

tor principal de melhoria. Estudos feitos nos Esta-dos Unidos mostraram que 50 anos de computa-dor na sala de sala não fizeram muita diferença.

IHU On-Line – A senhora gostaria de acrescen-tar outros comentários ao tema em questão?Susana de Souza Barros – Corro o risco de re-petir-me. Precisamos bons professores, boas esco-las e governos que dêem prioridade à educaçãosem demagogia, criando sistemas que desenvol-vam um bom ensino, de acordo com as necessida-des do educando, com continuidade e não tro-quem programas e currículos do dia para a noite,avaliando continuamente e modificando com co-nhecimento de causa. Um aspecto ainda muito es-quecido: a INCLUSÃO de todos na escola, porta-dores de deficiências, crianças pequenas e aque-les que não tiveram ocasião de ser educados naidade certa. Temos que compreender que o ensi-no de ciências, especificamente, não pode serbom sem uma educação geral que corresponda.

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Copenhagen: montagem paulista sobre a questão nuclear

Elogiada por críticos como Alberto Guzik eBárbara Heliodora, a peça teatral Copenhagen,montagem paulista do Núcleo Arte Ciência noPalco, da Cooperativa Paulista de Teatro, foiapresentada no Anfiteatro Padre Werner, dia 17de maio de 2005, integrando a programação doSempre às Terças e do Simpósio Internacio-nal Terra Habitável: um desafio para a hu-manidade. Com texto de Michael Frayn, direçãode Marco Antonio Rodrigues e tradução de AimarLabaki, com Carlos Palma (Werner Heisenberg),Oswaldo Mendes (Niels Bohr) e Selma Luchesi(Margarethe Bohr) no elenco, Copenhagen parti-cipou da programação do 9.º Porto Alegre emCena e foi contemplado com o Prêmio EstímuloFlávio Rangel 2001 (Governo do Estado de SãoPaulo) e Prêmios Qualidade Brasil 2001: melhordireção e melhor espetáculo.

A peça é recomendada para pessoas a partirde 16 anos e tem duração de 150 minutos, emdois atos.

A peça

Copenhagen é uma trama de suspense, ami-zade, mistério e espionagem, tendo a questão nu-clear, a ética e a responsabilidade dos cientistascomo temas centrais. Fala de um explosivo e mis-terioso encontro que mudou o rumo da história.Em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, ospais da Física Quântica, Niels Bohr, judeu dina-marquês, e Werner Heisenberg, alemão encarre-gado do programa nuclear de Hitler, têm umabreve e secreta conversa sobre a construção dabomba atômica, em Copenhague, então sobocupação nazista. As diferentes versões desse en-contro entre os dois renomados cientistas são re-vistas com os personagens já mortos, agora coma presença de Margarethe Bohr, mulher de Niels.O espetáculo revela as implicações das decisõeshumanas e um profundo pensar sobre o mundo enossas vidas, usando a ciência como metáforapara fortes emoções.

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Mirada ao passado para fazer uma Terra habitável

Por Attico Chassot

O Prof. Dr. Attico Chassot, do PPG em Edu-cação da Unisinos, comenta o espetáculo Cope-nhagen no artigo que segue, elaborado especial-mente para a IHU On-Line. Attico Chassot émestre em Educação pela UFRGS, doutor emEducação pela mesma universidade, com tese inti-tulada Para que(m) é útil o ensino de Química? Epós-doutor pela Universidade Complutense deMadri Ele é autor de diversos livros, entre os quaiscitamos: Para que(m) é útil o ensino de Quími-ca?. Canoas: ULBRA, 1995; Alfabetização cien-tífica: questões e desafios para a educação.Ijuí: Editora Unijuí: 2001. Educação conSciên-cia. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2003; A Ciência émasculina? É, sim senhora! São Leopoldo: Edi-tora Unisinos, 2003. (Coleção Aldus, 16).

Li, com entusiasmo, no IHU On-Line núme-ro 139, que, durante o Simpósio InternacionalTerra Habitável: um desafio para a humani-dade, teríamos o privilégio de ver, na Unisinos, oespetáculo Copenhagen. Em 25 de setembro de2002, quando assisti a esta peça, apresentadapelo grupo Amaná-Key, registrei em meu diário

que vira, ao mesmo tempo, uma das melhores au-las de História e Filosofia da Ciência e de Didática.Recordo que, então, com alguns colegas, sonha-mos em trazê-la à Unisinos, mas nos demos conta(fazendo contas) que era inviável. Assim são so-bradas as razões para vibrar com a oportunidadeque teremos no dia 20 de maio, às 18 horas, noAnfiteatro Pe. Werner. Este texto é também a ma-nifestação pública de minha gratidão aos fazeresdo Instituto Humanitas Unisinos (IHU).

Copenhagen

Saber que Copenhagen – uma peça premia-da em vários países – estará entre nós, encenadapela Companhia Paulista de Teatro, que já é de-tentora de vários prêmios pela produção e apre-sentação desta peça, nos obriga a uma prepara-ção para o melhor desfrute da oportunidade. A es-tréia de Copenhagen foi em Londres, em 1998.Seu autor é o dramaturgo (também repórter e tra-dutor) Michael Frayn84 (Londres, 1933), detentorde muitos prêmios recebidos por uma longa listade produções, especialmente para teatro.

Sem tirar nada do suspense e até da tramaenvolvente do texto Copenhagen, vale olharmosum pouco o cenário para onde somos transporta-dos pela magia do teatro. Viveremos, então, em1941, em meio aos momentos mais dramáticos daguerra que iniciara em 1939 e ainda se estenderiaaté 1945. Estamos em Copenhague, capital da Di-namarca, ocupada pelos nazistas, situação igual à

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Niels Bohr, Margarethe Bohr e Werner Heisenberg

84 Michael Frayn: dramaturgo, colunista, repórter e tradutor inglês, nascido em 1933, em Londres. Para saber mais, consulte osítio http://www.imagi-nation.com/moonstruck/clsc74.html (Nota da IHU On-Line)

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parte significativa de uma Europa dilacerada. Asatrocidades que hoje vemos no Iraque, para refe-rir um dos conflitos dolorosos de nossos dias,eram barbarizadas, naquela época, com batalhasde nações contra nações.

Niels Bohr e Werner Heisenberg

Em Copenhagen, vamos nos encontrar comapenas três personagens, que tiveram histórias ex-cepcionais: o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962)e o alemão Werner Heisenberg85 (1901-1976),dois dos maiores físicos do século XX. O primeirorecebeu prêmio Nobel de Física em 1922, “porseu trabalho na investigação da estrutura do áto-mo e das radiações emanadas a partir dele”86 e osegundo, o prêmio Nobel de Física em 1932 “pelacriação da Mecânica Quântica, e sua aplicaçãoque, entre outras descobertas, levaram à identifi-cação de formas alotrópicas do hidrogênio”87 Mashá uma terceira personagem: está em cena, commuito destaque, Margarethe Bohr (1890-1984)88,esposa de Niels, numa trama de idas e vindas quepassa em revista as diferentes hipóteses (inclusivea do próprio Michael Frayn), sem a pretensão dedeterminar a suposta versão “verdadeira” do en-contro histórico dos dois eminentes físicos.

Bohr e Heisenberg foram, em outros tempos,antigos colaboradores. O o físico alemão trabalha-ra em Copenhague, sob orientação de Bohr, nosanos 1920, mas agora, separados pelas circuns-tâncias, estão em lados opostos do conflito, porémcom um envolvimento comum: a bomba atômica,que daria, ao lado que a detivesse, a cartada ma-

cabra para vencer a guerra. Heisenberg estava en-carregado de desenvolver a bomba atômica ale-mã; Bohr contribuiu para a confecção da bombaestadunidense, que destruiria, em 1945, as cida-des japonesas de Hiroxima e Nagasáqui e deter-minaria a rendição do Japão e término da Segun-da Guerra Mundial.

Quais as razões pelas quais Heisenberg pro-cura seu antigo professor para um jantar queacompanhamos intrigado durante as 2h30min deespetáculo? Essa pergunta sem resposta é o pivôda peça e é sobre ela que surgem as especulaçõesque envolvem a história da ciência e a filosofia daciência, permeadas por profundas discussões éti-cas. Esta é a dimensão que ainda hoje traz atuali-dade às discussões e, com razão, se faz presenteem um simpósio que se propõe discutir propostaspara que tenhamos uma Terra habitável.

Algumas hipóteses podem ser levantadas so-bre o encontro: Heisenberg pretendia extrair deBohr segredos do programa nuclear dos aliados?Teria ido alertá-lo para o projeto de Hitler de fabri-car a bomba? Teria ido se aconselhar com ele? Oufoi a Copenhague para sondar o grau de desen-volvimento do projeto nuclear dos aliados (que sócomeçou em 1942)? Será que foi tentar roubar se-gredos de seu antigo orientador para adiantar aconstrução da bomba para Hitler? Ou será que foipropor um pacto de paz, segundo o qual os cien-tistas nazistas e aliados se recusariam a construirarmas de genocídio?

Michael Frayn traz para o jantar discussõesacerca das contribuições dos dois físicos, que sãoaquelas pelas quais um e outro foram laureadoscom o Nobel de Física. Bohr com base na propos-

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85 Werner Karl Heisenberg (1901-1976): físico alemão, vencedor de Prêmio Nobel e um dos fundadores da mecânica doquantum. Heisenberg foi o líder do programa da energia nuclear da Alemanha nazista. (Nota da IHU On-Line)

86 Fonte: http://nobelprize.org/physics/laureates/ (Nota do autor)87 Fonte: Idem nota anterior. (Nota do autor)88 Margarethe Norlund, filha de um farmacêutico, nasceu em uma pequena cidade distante menos de 100km de Copenhague.

Casou com Niels em 1912. Enquanto ele trabalhava na Inglaterra, houve trocas de lindas cartas entre ambos, nas quais eledava detalhes de seus trabalhos que desenvolvia em Cambridge com Rutherford. O casal teve seis filhos, o quarto, Aage Bohr,nasceu no ano em que seu pai foi laureado com o Nobel de Física, recebeu o mesmo prêmio que o pai em 1975. Margarethefoi, durante muitos anos, assistente de Niels, não apenas datilografando seus textos, mas, segundo reconhecimento dele e dosfilhos, inspiradora de muitas de suas idéias científicas. Niels, mesmo batizado cristão, quando da ocupação nazista naDinamarca, teve sérios problemas, pois era filho de mãe judia. Em 1943, com recrudescimento das perseguições da Gestapo, afamília Bohr fugiu para a Suécia. (Nota do autor)

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ta de um átomo nuclear de seu professor ErnstRutherford89 (1871-1937), prêmio Nobel de Quí-mica 1908, define que os elétrons só poderiam gi-rar em torno do núcleo em órbitas predetermina-das, e só emitiriam ou absorveriam quantidadesdiscretas de energia (quanta). A contribuição deHeisenberg pode ser considerada uma comple-mentação com formulação do princípio da incer-teza, segundo o qual seria impossível medir comexatidão a posição e a velocidade de um elétronsimultaneamente. É indiscutível que os dois mu-daram a Ciência do Século XX. Aqui vale um aler-ta: essas concepções são trazidas com tal abun-dância de metáforas que um leigo em Física partici-pa da ágape com um saborear especial, catalisadopelas intervenções quase ardilosas de Margarethe.Ela medeia as réplicas e as tréplicas dos dois físicos,tornando os diálogos fascinantes.

A ciência como Golem

É um olhar à ciência como esse desencadea-do por Copenhagen que ressurge a constante dis-cussão acerca de ser a ciência boa ou má. Primei-

ro vale repetir que ciência não é um ente. São oshomens e as mulheres que fazem ciência, que têmações que são boas ou são más. Permitam-meuma simplificação: uma faca sobre o mesmo cor-po pode matar ou salvar a vida. Depende dequem a usa.

Há um tempo, eu dicotomizava a ciênciacomo sendo ora uma fada benfazeja, ora umabruxa. Depois de fazer uma leitura, em que reabi-lito bruxas, que está em meu livro EducaçãoconSciência90, passei a dizer que a ciência podeser ora uma fada benfazeja, ora um ogro maligno;agora, para fugir a esta polarização, trago uma ou-tra metáfora para a ciência, dizendo que ela meparece mais o Golem (Goilem), aquele ente damitologia judaica que se parece com um gigantede barro que desconhece sua verdadeira força ese assemelha muito a um bobão, mas que temações, às vezes, de sábio e outras de sabido91.

Oxalá as discussões que devem catalisar Co-penhagen sirvam para que ajudemos o Golem aser menos tolo e colaborar, para que, ao fazer-mos ciência, o façamos para transformar o mun-do para melhor. Só assim teremos uma Terrahabitável.

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89 Ernst Rutherford (1871-1937): físico britânico, ganhador do prêmio Nobel por seus trabalhos inovadores na Física nuclear epor sua teoria da estrutura do átomo. Rutherford foi um dos mais importantes pesquisadores da Física nuclear. (Nota da IHUOn-Line)

90 CHASSOT, Attico. Educação conSciência . Santa Cruz do Sul: EdUNISC. 2003. (Nota do autor)91 Adaptado de COLLINS, Harry; PINCH, Trevor. O golem: o que você deveria saber sobre ciência. São Paulo: Editora da UNESP,

2003. (Nota do autor)

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Copenhagen: um desafio à inteligência e à sensibilidade

Em uma trama de suspense, amizade, misté-rio e espionagem, o espetáculo teatral Copenha-gen teve como temas centrais a questão nuclear, aética e a responsabilidade dos cientistas, remeten-do-se a um misterioso encontro em 1941 entre ospais da Física Quântica, Niels Bohr, judeu dina-marquês, e Werner Heisenberg, alemão encarre-gado do programa nuclear de Hitler.

A montagem é do Núcleo Arte Ciência noPalco, da Cooperativa Paulista de Teatro, comtexto de Michael Frayn, tradução de Aimar Laba-ki. No elenco, Carlos Palma (Werner Heisenberg),Oswaldo Mendes (Niels Bohr) e Selma Luchesi(Margarethe Bohr).

Para Marcel Bursztyn, diretor do Centro deDesenvolvimento Sustentável da UnB e ministran-te do curso Desenvolvimento Sustentável. Funda-mentação teórico-prática no Simpósio Interna-cional Terra Habitável: um desafio para ahumanidade, a apresentação da peça encaixaperfeitamente no tema por ele abordado. “Algofundamental quando se pensa em desenvolvi-mento sustentável e meio ambiente é o controleético da ciência. Eu me refiro a um autor, mate-mático judeu, polonês, que fugiu da guerra, foipara a Inglaterra e participou do projeto da cons-trução da bomba, Jacob Bronowski92, como umdos artífices das equações que a viabilizaram.Quando ele foi convidado a visitar Nagasáqui,logo após o bombardeio, depois do que ele viu,questionou-se sobre a missão do cientista: Até queponto, ultrapassamos os limites da própria ciên-cia? Quais são os limites que ela deve ter? Felicitoo evento por ter acolhido essa peça”.

Entre a platéia que acompanhou as duas ho-ras e meia de apresentação, encontrava-se Simo-ne Mundstock Jahnke, bióloga, professora substi-tuta na UFRGS. Impactada com o caráter humanoda peça, a professora salientou a capacidade defazer refletir sobre a origem e o caráter dos confli-tos do mundo. “Muitos de nós já ouvimos falar dahistória da discussão em Copenhague, mas a peçatrouxe um novo olhar, nos fez vê-la mais de perto.Gostei da participação da esposa de Bohr. Ela ficacomo espectadora e vê os dois lados. Demonstra asua revolta em relação aos outros personagens ecomeça a entrar na trama com uma postura pró-pria. Achei importante como a peça nos mostra apercepção de que os conflitos do mundo todo, sãogerados no próprio ser. Os conflitos internos se re-fletem também no mundo político, na Física, nomundo exterior”.

Para Jony Johann, jornalista e aluno de Mes-trado em Ciências Sociais na Unisinos, Copenha-gen foi a melhor peça de teatro que ele já viu.“Densa. Carregada de ciência e de emoção aomesmo tempo. Ela faz refletir, na figura do Hei-senberg, sobre o pensamento da clássica Filosofiaalemã diante daquele horror do holocausto. Foimuito bom, estou realmente emocionado”.

Gabriela Mühlbach, estudante de Comunica-ção Digital na Unisinos e ex-estudante de teatro,assistiu à peça pela terceira vez. “Acho incrívelcomo eles conseguem emocionar com a Física.Um texto superdifícil. O tempo todo falam de Físi-ca e conseguem relacionar isso à vida, às questõeséticas, à Filosofia”.

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92 Jacob Bronowski (1908-1974): filósofo e matemático inglês. (Nota da IHU On-Line)

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Protagonistas de Copenhagen falam sobre a peça

Duas horas antes de a peça entrar em cena,IHU On-Line conversou com os três atores queprotagonizam Copenhagen: Carlos Palma (Wer-ner Heisenberg), Oswaldo Mendes (Niels Bohr) eSelma Luchesi (Margarethe Bohr). EnquantoOswaldo ia arrumando detalhes da cenografia,Selma sentava no piso do palco, do lado deOswaldo, para iniciar a conversa, e Carlos testavaas roupas que usaria como o personagem WernerHeisenberg. “Nós somos um casal dinamarquês, eCarlos é um físico alemão, Werner Heisenberg,que vem nos visitar”, explica Oswaldo, resumindoa trama. O trio vem apresentando Copenhagen,que já ganhou diversos prêmios, desde 2001.“Acho a peça interessante. O texto é muito bom,um dos melhores textos de teatro dos últimos 30ou 40 anos. Está entre os grandes textos da dra-maturgia mundial”, comenta Oswaldo. Pergunta-do sobre as razões do sucesso, responde como ofez o autor Michael Frayn. Quando escreveu Co-penhagen, Frayn fez um texto muito complexo detrês horas de duração, falando de Física Quântica,ficção nuclear, princípios da incerteza. Ele achouque seria uma peça com uma carreira curta e sesurpreendeu com o sucesso no mundo todo.Quando perguntaram a Michael Frayn sobre osucesso da obra ele respondeu o seguinte: “O pú-blico gosta de ser desafiado na sua inteligência,sensibilidade e emoção, o que este espetáculoconsegue fazer”. A peça exige do público umapresença ativa intelectual e afetivamente. A pes-soa sai muito excitada por causa de todos os te-mas levantados na peça. Para Selma, o públicopode vê-la pelo olhar de cada um dos persona-gens, as pessoas escolhem a personagem por cujoolhar vai acompanhar a peça. Ela chama a aten-ção para a participação da mulher de Bohr, Mar-garethe, papel que ela representa. “O autor coloca

Margarethe Bohr com um olhar crítico, fora dadiscussão desses dois homens. Eles foram lá parase encontrar e, nesse encontro, houve a rupturade uma amizade de anos. É um fato histórico. Oteor da conversa é um mistério, porque, a partirdaí, eles nunca mais se falaram. Margarethe ques-tiona o que esses dois ícones da Física estavamconversando no momento. É um olhar imaginárioque tenta encontrar algumas pistas sobre o queeles podem ter conversado de tão grave”, disseSelma.

Carlos também destaca, em Copenhagen, aqualidade do texto. “Teatro é essa composição deliteratura, cenografia, iluminação. A receita desseespetáculo funcionou, mas o texto é a base detoda peça teatral, e este texto é muito provocante.Provoca perturbações nas pessoas de diferentesordens, não só emocional, mas de uma reflexãoprofunda sobre nossas escolhas. A peça está falan-do de escolhas. Somos responsáveis por nossasescolhas e carregamos as causas e as conseqüên-cias delas”. O intérprete de Heisenberg afirma quea peça fala de duas teorias científicas fundamen-tais para a quântica: a complementaridade e a in-certeza. “Não importa se não sabemos tecnica-mente sobre isso como platéia, e sim se entende-mos o conceito na peça, que está entrelaçado coma vida dos personagens: Heisenberg e Bohr.Então começamos a pensar sobre nossas incerte-zas. A vida é feita de incertezas. Não podemosachar que tudo é causa e efeito, o acaso tambémfaz parte da vida”. Para o ator, o princípio da in-certeza de Heisenberg e a complementaridade deBohr fazem parte da nossa vida.

O elenco de Copenhagen considera que apeça diz muito no contexto do Simpósio Inter-nacional Terra habitável. “Copenhagen discu-te o papel da ciência e do conhecimento e da nos-

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sa responsabilidade diante desse planeta com esseconhecimento. A própria Margarethe faz estequestionamento: “O que vai sobrar, se todo co-nhecimento levar à bomba, à destruição? O quevai ser da Terra, nosso adorado planeta, nossacasa, que está destruída, mas é nossa casa? A peçadiscute a responsabilidade e a ética, aborda aciência, que não é neutra, afeta as pessoas e onosso habitat para o bem ou para o mal. Por isso,a importância da peça neste evento, unindo-se aoquestionamento sobre a responsabilidade de to-dos os cientistas e de todo ser humano”, salienta oator.

Um dos grandes textos do século XX

Os atores afirmam que Copenhagen é umdos grandes textos do século XX e, como todos osclássicos é atemporal, mergulha nas profundezasda alma humana. “O tempo não atrapalha, aocontrário, como diz Brecht, às vezes, temos queolhar os fatos de longe. O teatro épico de Brecht,do distanciamento, teatro mais político, de cons-ciência, parte da necessidade de se afastar do fato,porque se estiver dentro dele, não o vemos”, ex-plica Oswaldo. Selma lembra que críticos muitoconceituados consideram o texto de Copenhagencomo um grande clássico da dramaturgia, “Essestextos acabam não tendo tempo e espaço, eles re-fletem a questão do humano, e o teatro tem essacaracterística: o central é o ser humano”.

Projeto Arte Ciência no Palco

Carlos Palma foi o criador do Núcleo ArteCiência no Palco. Ele explica que o projeto surgiucom a peça Einstein, um texto canadense, ao qualele assistiu no Chile. “Apaixonei-me pelo texto, fuiatrás, comprei os direitos e montei Einstein. Entãoconheci, de fato, Einstein e toda a sua preocupaçãopela ética da ciência. Ao ser encenada, notei que apeça atraía pessoas de diversas áreas. O principalponto de atração era a responsabilidade científica.Um ano depois, eu tinha ganhado um prêmio pela

personagem, mas não podia parar ali. Então tive aidéia de fazer o projeto Arte Ciência no Palco etrabalhar de maneira sistemática temas da ciência,de todas as áreas, mas principalmente as naturais”,explica. Segundo o ator, as naturais eram uma te-mática que o teatro não abordava por achar difi-culdades em levar ao palco a Química, a Física oua Biologia.“ Achei que podia ser importante paraa sociedade, para o teatro e para nós, atores,como maneira de trabalho e de sobrevivência.Imediatamente montamos uma peça infantil, de-pois Copenhagen e hoje temos oito espetáculoscirculando. Vamos a Portugal, onde ficaremos 26dias, para inaugurar um teatro científico, no qualfaremos quatro espetáculos. Um país que não temconhecimento científico é um país dependente.Temos que despertar os jovens para a ciência e te-mos que despertar o público leigo, como eu e osoutros atores, para a importância da ciência e to-das as implicações dela com o mundo, as regrasque devem norteá-la e de que maneira intervirnessas regras”, argumenta Carlos. Segundo ele,entender os fenômenos da natureza leva a umamaior compreensão da própria vida. “Na hora quesinto que nada sou diante do universo, apenas oresultado de uma série de modificações físicas danatureza do universo, eu vou compreender melhormeu colega e a natureza desse planeta e respeitá-la.Assim vou viver mais feliz”, disse o ator.

Atualmente, o núcleo Arte Ciência no Palcoestá integrado por 14 pessoas, entre técnicos eatores. O grupo não tem um diretor, optou por di-versos diretores, de linguagens diferentes paracada encenação. “O que faz as pessoas se uniremé o projeto Arte Ciência, não é a figura de um dire-tor. Agimos assim para ter uma linguagem maisdiversificada”, diz o criador do projeto.

A experiência pessoal dos atores, interpre-tando peças científicas, está sendo muito enrique-cedora para suas vidas profissional e pessoal.“Para mim, que nunca mergulhei na área dasciências exatas, este texto tão complexo está sen-do uma reelaboração da minha vida no sentido derepensar nossa responsabilidade para com esseplaneta hoje tão sofrido e baqueado”, explicaSelma.

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Copérnico e Kepler. Como a Terra saiu do centro do universo

Entrevista com Geraldo Monteiro Sigaud

Geraldo Monteiro Sigaud é professor do De-partamento de Física da PUC-Rio. Graduado,mestre e doutor em Física pela PUC-Rio, é tam-bém pós-doutor pelo Institut Für Kerphysik J WGoethe Universität de Frankfurt (Alemanha).

IHU On-Line – Sua palestra, intitulada Co-

pérnico e Kepler: Como a Terra saiu do cen-

tro do universo, abriu o Ciclo de EstudosDesafios da Física para o século XXI: umaaventura de Copérnico a Einstein, em 3 deagosto de 2005. Sobre o que, exatamente, osenhor tratou neste encontro?Geraldo Sigaud – Meu objetivo principal foimostrar como o trabalho desses dois astrônomoscontribuiu para a ciência, tal com a conhecemoshoje, particularmente no que diz respeito à buscade modelos consistentes, reprodutíveis, e princi-palmente gerais, para descrever fenômenos ob-servados em um contexto comum.

IHU On-Line – Quais foram as grandes des-cobertas e proposições feitas pelo matemá-tico e astrônomo Nicolau Copérnico e peloastrônomo Johannes Kepler? Em que medi-da elas fizeram “a Terra sair do centro doUniverso”?Geraldo Sigaud – Copérnico, ao buscar umadescrição mais simples do que a existente na épo-ca, baseada essencialmente no trabalho do astrô-nomo grego Ptolomeu, para o movimento doscorpos celestes, retomou e aperfeiçoou a idéia he-liocêntrica que já havia sido proposta por Aristar-co de Samos dezessete séculos antes. Entretanto,Copérnico não percebeu o verdadeiro significado

de seu modelo, por permanecer ligado às idéiasaristotélicas que ainda prevaleciam durante a Re-nascença. Foi Kepler, sessenta anos depois, quepercebeu a real dimensão do modelo de Copérni-co quando abandonou o dogma do movimentocircular uniforme ao enunciar que as órbitas dosplanetas eram elipses, e não círculos. Isso ocorreuporque Kepler era dotado de um senso de extre-ma precisão e não se conformava com as diferen-ças mínimas entre os resultados teóricos do mode-lo de Copérnico e as observações astronômicasdisponíveis. Foram suas três leis que, de fato, “ti-raram a Terra do centro do universo”, e foi basea-do nelas que Newton chegou à Lei da Gravitaçãouniversal.

IHU On-Line – Em linhas gerais, em que con-sistia a Teoria Heliocênctrica proposta porCopérnico e por que ela incomodou tanto opoder instituído? Quais foram os avanços fei-tos por Kepler em relação a Copérnico?Geraldo Sigaud – Durante algum tempo, o mo-delo heliocêntrico de Copérnico teve muito pou-ca repercussão. No entanto, à medida que foi setornando mais conhecido, o modelo começou adespertar a ira principalmente dos religiosos pro-testantes – luteranos e calvinistas – sem maioresmanifestações contrárias ao seu trabalho, vindasda Igreja Católica. Estas só vieram mais de seten-ta anos depois, principalmente porque Galileuapoiou e defendeu o modelo heliocêntrico. As ra-zões para isso vêm da interpretação da bíbliacom relação a alguns aspectos importantes,como, por exemplo: se o céu participa do movi-mento da Terra, participa de suas imperfeições.

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Como então ele pode ser a residência de Deus?Além disso, a retirada da Terra do centro do uni-verso representava uma queda no status do serhumano criado “à imagem e semelhança deDeus”.

IHU On-Line – Obras de Stephen Hawking eRonaldo Rogério de Freitas Mourão com-põem a sua lista de textos para leitura a fimde aprofundar o assunto que o senhor apre-sentou no Ciclo de Estudos Desafios da Fí-sica. Quais foram as contribuições que am-bos os pesquisadores oferecem à Física equal o motivo que o levou a escolher esseslivros como suporte à sua fala?Geraldo Sigaud – Tanto o físico Stephen Haw-king quanto o astrônomo Ronaldo Mourão sãopesquisadores extremamente ativos em suas áre-as e têm dado contribuições muito importantes.Eu escolhi livros destes pesquisadores porque am-bos possuem uma outra característica, bem maisrara, que é a de divulgadores da ciência para o pú-blico não-especializado.

IHU On-Line – Antigamente, as novas teo-rias físicas causavam furor ao poder institu-ído, que temia ser questionado e, por isso,perseguia figuras como Galileu Galilei.Como a Física dialoga com as outras ciênci-as hoje e qual é a sua recepção em termosgovernamentais e sociais? Há incentivospara a pesquisa continuar seu desenvolvi-mento no Brasil?Geraldo Sigaud – Há, hoje, uma forte intera-ção entre a Física e várias outras ciências, em es-pecial a Química e a Biologia. As descobertasmais recentes de todas essas ciências levam ne-cessariamente à interdisciplinaridade, já que tan-to os conceitos básicos quanto as aplicações es-tão fortemente correlacionados. No Brasil, conti-nuamos ainda tendo grande parte do apoio àpesquisa sendo dado pelos governos federal e es-taduais. Diferentemente dos países mais desen-volvidos, como Alemanha e Estados Unidos, o

apoio da iniciativa privada à pesquisa é aindamuito pequeno.

IHU On-Line – Há um certo preconceitocontra a Física. O senso comum costumataxá-la de hermética, inacessível. É possí-vel discutir essa ciência numa linguagemmais acessível ao grande público?Geraldo Sigaud – É claro que isso é possível!Este é um trabalho que vem crescendo nos últi-mos anos com os esforços dos divulgadores cientí-ficos: pesquisadores e estudiosos como StephenHawking e Ronaldo Mourão. Apesar de a Físicautilizar uma linguagem matemática, com suasequações e leis, existem outros aspectos impor-tantes a serem abordados. A “tradução” desta lin-guagem para uma mais acessível, explorando osaspectos qualitativos e mais fascinantes destaciência, é um desafio que exige grande esforço,conhecimento e experiência por parte dos físicos.Para contornar essas dificuldades, é muito impor-tante que este movimento de divulgação, desliga-do da linguagem matemática, esteja presente naformação dos novos físicos e professores do Ensi-no Médio.

IHU On-Line – Como percebe o ensino daFísica no Brasil, em nível médio e universi-tário? Que medidas poderiam ser imple-mentadas a fim de suprir a carência de pro-fessores nessa área de conhecimento?Geraldo Sigaud – O ensino da Física no nívelmédio contribui muito para a criação do “mito”da Física como uma ciência inacessível. Em geral,a abordagem da Física no Ensino Médio é muitoárida e abstrata com muitas “fórmulas” e esque-mas desprovidos de qualquer significado para osestudantes. Assim, não é surpresa alguma a rejei-ção pela Física na escolha de carreira deles. Por-tanto, como eu já afirmei, é muito importante queum trabalho de valorização dos aspectos maisqualitativos da Física comece nas universidades, echegue até o Ensino Médio por intermédio de seusprofessores.

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IHU On-Line – O Ano Mundial da Física estásendo comemorado em 2005, alusivo a1905, quando Albert Einstein publicousuas cinco teses revolucionárias. Quais sãoos principais desafios ainda não resolvidospor esta ciência? Quais são os grandes te-mas hoje em discussão?Geraldo Sigaud – Acho que os principais desafi-os estão relacionados essencialmente à busca dasorigens: a origem do universo, a origem da vida e

a origem da vida na Terra. O primeiro tema temrecebido grande interesse recentemente, princi-palmente depois da entrada em operação do te-lescópio espacial Hubble, que tem enviado infor-mações livres da interferência da atmosfera sobreo universo. Os outros dois estão fortemente rela-cionados aos imensos avanços recentes na áreade biologia e genética, bem como de física atômi-ca e molecular, física atmosférica e astrofísica.

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Da caricatura empirista a uma outra história

Entrevista com Fernando Lang da Silveira

Fernando Lang da Silveira é professor doDepartamento de Física da UFRGS. Graduado emestre em Física pela UFRGS e é doutor em Edu-cação pela PUCRS, com a tese intitulada Umaepistemologia racional-realista e o ensino daFísica.

IHU On-Line – Que aspectos o senhor desta-cará em sua explanação no Ciclo de Estu-dos sobre a Física? Como o senhor relacio-nará Galileu, Pisa e plano inclinado comEinstein, os experimentos de Michelson-Morley; Bohr e os espectros de emissão atô-mica no mesmo encontro?Fernando Lang – O objetivo principal da minhapalestra é mostrar que a “história da ciência” queencontramos nos livros-texto de Física é uma cari-catura de uma história muito rica e complexa. Estacaricatura está baseada na epistemologia empiris-ta. O empirismo, como concepção sobre o conhe-cimento científico, afirma que os cientistas obtêmas teorias científicas (leis, princípios, etc.), basea-dos na observação, na experimentação, em medi-das. Ao relatar um episódio de descoberta científi-ca, a história da ciência empirista apresenta os da-dos, os resultados observacionais/experimentaiscom base nos quais o cientista, aplicando as re-gras do método científico, produziu conhecimen-to. A caricatura empirista distorce e supersimplifi-ca a história da ciência, omitindo os pressupostosextracientíficos, metafísicos sempre presentes nareal atividade científica. Por não reconhecer que

os cientistas inventam e especulam, a história em-pirista se cala sobre as idéias que não se mostra-ram bem sucedidas. Somente as idéias corretasmerecem um lugar nesta história, pois, para quemsegue o método científico, como poderia incorrerem erro? Na palestra, apresentarei a caricaturaempirista de três grandes protagonistas das revo-luções científicas modernas (Galileu) e do séculoXX (Einstein e Bohr)93 e depois contarei uma outrahistória sobre a Teoria da Queda dos Graves, aTeoria da Relatividade Restrita e a Teoria do Áto-mo de Bohr. Mostrarei que a gênese das suas teo-rias é diferente e muito mais interessante do que aversão conhecida por meio dos livros-texto de Fí-sica. Os três episódios considerados na palestraexemplificam que “a epistemologia sem contatocom a ciência se torna um esquema vazio. A ciên-cia sem epistemologia – até o ponto em que sepode pensar em tal possibilidade – é primitiva eparalisada” (Einstein).

IHU On-Line – Quais os impactos na histó-ria do conhecimento e da humanidade dasdescobertas da física quântica?Fernando Lang – Do ponto de vista epistemoló-gico e ontológico, a física quântica se constitui emuma revolução, revelando que o mundo micros-cópico possui propriedades surpreendentes, con-tra-intuitivas. A nossa intuição macroscópica atri-bui aos corpos determinadas propriedades quenão são aplicáveis aos entes quânticos, pois elesparecem não possuir posição e momentum defini-

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93 Sobre Einstein e Bohr, conferir a IHU On-Line número 135, de 4 de abril de 2005. (Nota da IHU On-Line)

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dos, além de exibir comportamentos ondulatórios.Assim também a energia de um elétron ligado aum átomo não pode variar de maneira contínua,mas de forma discreta, quantizada. Estes são al-guns exemplos do que aprendemos com a físicaquântica. As aplicações práticas, tecnológicas dafísica quântica estão incorporadas ao cotidianosem que a maioria das pessoas tenha consciênciadisso. Ao utilizarmos qualquer tecnologia eletrôni-ca, como, por exemplo, um aparelho de telefoniacelular, estamos nos valendo da física quântica.Ou seja, sob qualquer ângulo, a física quânticatem um enorme impacto no mundo atual.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a pos-sibilidade de aplicação dos conceitos da fí-sica quântica para outros campos do conhe-cimento? É possível um debate transdisci-plinar sobre a física?Fernando Lang – Apesar de todo o sucesso tec-nológico da física quântica, nem os físicos conver-gem quanto às questões de interpretação e signifi-cado desta nova teoria. É paradigmático o debatesobre a mecânica quântica entre os dois grandescientistas Einstein e Bohr, somente encerrado coma morte do primeiro. Bohr defendia uma interpre-tação idealista subjetiva, enquanto Einstein eraum realista. Atualmente, há diversas interpreta-ções para a física quântica e ninguém pode dizerque possui a interpretação correta. No domíniodas ciências humanas e sociais, prolifera literaturaque tenta extrapolar os conceitos da física quânti-ca para outros domínios. Ora, qualquer tentativa

de fazer isso é, no mínimo, problemática, já quenem os físicos possuem um consenso sobre taisconceitos, sobre as questões de interpretação esignificado. Essa literatura, de um modo geral,peca porque tenta passar a idéia de que, no âmbi-to da física, existe uma única interpretação; a in-terpretação adotada nesses textos é a interpreta-ção da Escola de Copenhagen (defendida porBohr, Born, Heisenberg94, ...), que está lastreadaem uma filosofia idealista subjetiva, mais especifi-camente, positivista. A interpretação da Escola deCopenhagen, forjada no final da década de vintedo século passado, coincide e se alimenta da filo-sofia da ciência que então era predominante: a fi-losofia positivista do Círculo de Viena95. O maisimpressionante é que os representantes das ciên-cias sociais e humanas que se aventuram nessa ta-refa de extrapolar os conceitos da física quânticapara outros domínios acreditam que a interpreta-ção de Copenhagen” seja um rompimento com opositivismo!!

IHU On-Line – Em linhas gerais, quais asprincipais divergências nos debates da físi-ca na atualidade e quais serão seus possíve-is reflexos na sociedade?Fernando Lang – Como tentei demonstrar an-tes, o debate sobre as questões de interpretaçãoda física quântica está em aberto mesmo no domí-nio da física. Na minha opinião, urge que os cien-tistas humanos e sociais deixem de procurar na fí-sica a solução para os seus problemas, deixem deacreditar que a última teoria física iluminará osseus caminhos.

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94 Werner Heisenberg: físico alemão encarregado do programa nuclear de Hitler. Durante o Simpósio Internacional TerraHabitável: um desafio da humanidade, realizado na Unisinos em maio deste ano, foi apresentada a peça teatralCopenhagen, que teve como temas centrais a questão nuclear, a ética e a responsabilidade dos cientistas, remetendo-se a ummisterioso encontro, em 1941, entre os pais da física quântica, Niels Bohr e Werner Heisenberg. (Nota da IHU On-Line)

95 Círculo de Viena: movimento filosófico iniciado nas duas primeiras décadas do século XX, responsável pela criação umacorrente de pensamento intitulada positivismo lógico. Este movimento surgiu na Áustria, como reação à filosofia idealista eespeculativa que prevalecia nas universidades alemãs. (Nota da IHU On-Line)

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Investigar fenômenos, utilizando abstrações matemáticas

Entrevista com Ney Lemke

Ney Lemke é professor do Programa Inter-disciplinar de Computação Aplicada da Unisinos.É graduado, mestre e doutor em Física pelaUFRGS. No dia 3 de novembro de 2004, durante oevento Abrindo o Livro, o professor Ney apre-sentou a obra The Computational Beauty of

Nature: Computer Explorations of Fractals,

Chaos, Complex Systems and Adaptation,de G. W. Flake. Cambridge: The MIT Press, 2000.Sobre ela, concedeu uma entrevista à IHU

On-Line, publicada na matéria de capa da 120ªedição, de 25 de outubro de 2004. Ele também foio responsável por apresentar o tema Bioinformáti-ca: uma nova perspectiva para compreender avida no evento IHU Idéias, do dia 28 de outubrode 2004. A IHU On-Line entrevistou o professorNey Lemke na 69ª edição, de 4 de agosto de2003, sobre as possibilidades dos softwares livrese sua compatibilidade com os comerciais. Tam-bém publicamos, na editoria Livro da Semana, daedição número 130, de 28 de fevereiro de 2005, aresenha escrita pelo professor Dr. Ney Lemke dolivro A vida do cosmos, de Lee Smolin.

IHU On-Line – Quais as maiores contribui-ções de Newton à Física moderna? Que re-voluções causadas por suas descobertas osenhor destacaria?Ney Lemke – As contribuições de Newton per-passam todas as áreas da Física e muitas áreas daMatemática. Entre elas, podemos destacar asLeis de Newton e a Gravitação Universal. A con-tribuição mais relevante e perene de Newton, noentanto, se refere ao método que desenvolveupara propor e testar suas teorias, que, em linhasgerais, pode ser resumido em: criação de mode-los matemáticos; resolução dos modelos, utilizan-

do métodos matemáticos rigorosos; comparaçãodas predições com experimentos e observaçõesquantitativas.

IHU On-Line – Quais as diferenças entreCosmologia e Astronomia?Ney Lemke – Astronomia é a ciência que estudaos corpos celestes e engloba tanto aspectos teóri-cos como observacionais. A Cosmologia é voltadaao estudo de todo o universo, enfatizando a mo-delagem matemática.

IHU On-Line – A cosmologia de Newtonpressupunha elementos isolados articula-dos em sistemas graças à ação de certas for-ças naturais. Quais as conseqüências daperda implicada por essa fragmentação domundo, por essa ênfase na segmentaçãodos elementos constitutivos de todos osentes?Ney Lemke – A cosmologia de Newton, ou seja,a visão de mundo do ser humano Isaac Newton,não era fragmentada. Ele era um homem profun-damente religioso e sua visão de mundo incluíaum ser onisciente e onipotente que regia o cos-mos. Mas, de fato, ele acreditava na idéia de que ocosmos é formado por átomos que interagem me-diante forças. Para os mecanicistas, como Descar-tes, estas forças deveriam ser forças de contato.Newton se deparou com um problema que elenunca conseguiu resolver de forma satisfatória, agravitação aparentemente agia à distância e pres-cindia de qualquer agente físico. Nesta atitude deNewton, encontramos um traço que torna suaciência a nossa ciência contemporânea, ou seja, acapacidade de investigar fenômenos que não con-seguimos entender de forma intuitiva, utilizando

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abstrações matemáticas. Eu considero difícil falardas perdas que tal perspectiva acarretou, pois doponto de vista moderno, a Física desenvolvida poroutras abordagens, como a aristotélica, possui umimpacto insignificante no pensamento moderno.

IHU On-Line – A física newtoniana pressu-punha essencialmente o movimento e visa-va a ele, mas um movimento que se expres-sava, sobretudo, como uma temporalidadereversível, típica do pensamento físico-ma-temático. Como é possível aplicar isso deforma prática?Ney Lemke – As aplicações desta abordagem in-cluem praticamente todos os avanços tecnológi-cos obtidos desde então, incluindo de forma diretaas viagens interplanetárias, a decodificação doDNA, a invenção da televisão, etc.

IHU On-Line – Qual a relação entre a cos-mologia newtoniana e a Teoria da Gravita-ção clássica de Newton?Ney Lemke – A teoria da gravitação de Newton éum dos elementos de sua Cosmologia, mas deve-mos incluir outros, como o espaço e tempo abso-lutos, a cronologia bíblica, a influência de Deus naorganização e criação do cosmo.

IHU On-Line – E qual a relação da cosmolo-gia de Newton com a cosmologia relativistade Einstein?Ney Lemke – Einstein retoma muitas das ques-tões levantadas por Newton, em especial, a equi-valência entre a massa gravitacional (provenienteda Lei da Gravitação Universal) e inercial (originá-ria da lei de Newton) e a discussão do espaço tem-po absoluto. Na verdade, Einstein consegue ata-

car alguns dos problemas que Newton não conse-guiu atacar. O mais crítico deles é que Einstein con-segue propor uma base mecânica para a gravita-ção universal e abandonar a idéia de ação à distân-cia (que era desagradável ao próprio Newton).

IHU On-Line – Sobre quais físicos Newtonexerceu maior influência?Ney Lemke – A evolução da Física passa neces-sariamente por Newton. Nenhuma idéia na Físicapós-newtoniana está desconectada do pensamen-to de Newton. Mesmo a Mecânica Quântica estáalicerçada no método de Newton.

IHU On-Line – Qual a importância que osenhor vê em um debate sobre os desa-fios da Física para o século XXI em umauniversidade?Ney Lemke – Os avanços da Física pautaram osavanços tecnológicos da humanidade nos últimostrês séculos. Talvez no século XXI, este papel pos-sa ser desempenhado pela Biologia. Mas, de qual-quer forma, a Física continuará a ser vital paracompreendermos a nossa sociedade e antever oimpacto que as novas tecnologias possam causarnela.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar maisalgum comentário sobre o tema?Ney Lemke – Eu gostaria de acrescentar que,pela minha experiência, as pessoas, em geral, têmuma visão bastante equivocada da figura humanaIsaac Newton e de sua visão de mundo. A trajetó-ria de Newton é espetacular e inclui muitos aspec-tos surpreendentes, como, por exemplo, sua pai-xão por alquimia e suas disputas viscerais comHooke.

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O “xeque-mate” de genialidade do jovem Einstein. Como separaro caráter quântico da teoria quântica que busca descrevê-lo

Entrevista com Enio Frota da Silveira

Enio Frota da Silveira é professor do Depar-tamento de Física da PUC-Rio. Mestre em Físicapela PUC-Rio, é doutor em Física pela UniversitéParis Sud (França) e pós-doutor pela Texas A MUniversity (Estados Unidos).

IHU On-Line – Colocamos em discussão asdescobertas que viabilizaram o desenvolvi-mento e aprofundamento do conhecimentoda Física e sua aplicação em diferentesáreas. Como as vidas e as obras científicasdos personagens que influenciaram o traba-lho, a vida e a obra de Einstein podem con-tribuir para isso?Enio Frota – Segundo Einstein, os quatro cientistasque mais influenciaram seus trabalhos foram Galileu(1564-1642)96, Newton (1642-1727)97, Maxwell(1831-1879)98 e Lorentz (1853-1928)99. O primei-ro, autor do livro Diálogo sobre duas novasciências, reformulou os conceitos de força e movi-mento, a Lei da Inércia e enunciou o Princípio da

Relatividade: as leis físicas são iguais nos sistemascom velocidade constante. Foi sobre este princípioque Einstein ergueu sua Teoria da Relatividade. Osegundo, Isaac Newton, autor do Principia Mat-hematica Philosophie Naturalis, atrelou defi-nitivamente a Física à Matemática, enunciou asLeis da Gravitação Universal, da Ação e Reação eestabeleceu a importante relação entre massa, for-ça e aceleração. Defendeu a hipótese de que: 1) aluz seria formada por partículas – idéia que foi aper-feiçoada por Einstein e que revelou a existência dosquanta de luz – e 2) o tempo e a simultaneidade deeventos são absolutos – consideração que foi ataca-da por Einstein na sua Teoria da Relatividade. Max-well é o arquiteto do eletromagnetismo e o sintetizaem quatro equações. Deduz dela que a velocidadedas ondas eletromagnéticas (em particular a luz) éfinita e calcula seu valor. Einstein concilia idéias apa-rentemente contraditórias sobre a natureza da luz epropõe que ela seja uma onda localizada no espa-ço. Lorentz, contemporâneo de Einstein, combina

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96 Galileu Galilei (1564-1642): grande astrônomo italiano e o primeiro grande físico da Renascença. Fez descobertasfundamentais no campo da Física e da Astronomia, revolucionando a ciência da sua época. Considerado o primeiro grandegênio da ciência moderna, valorizou a técnica e a experimentação. (Nota da IHU On-Line)

97 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrônomo e matemático inglês. Revelou como o universo se mantém unido por sua Teoriada Gravitação, descobriu os segredos da luz e das cores e criou um ramo da Matemática, o cálculo infinitesimal. Essasdescobertas foram realizadas por Newton em um intervalo de apenas 18 meses, entre os anos de 1665 e 1667. É consideradoum dos maiores nomes na história do pensamento humano, por causa da sua grande contribuição à Matemática, à Física e àAstronomia. (Nota da IHU On-Line)

98 James Clerk Maxwell (1831-1879): cientista inglês e um dos maiores matemáticos e físicos do século XIX. Sua enorme famadeve-se aos estudos de eletricidade em movimento e à Teoria Cinética dos Gases. Foi um grande físico experimental e teórico.Sua obra mais conhecida é o Tratado de eletricidade e magnetismo, publicado em 1873, e reconhecido atualmente comoo fundamento da Teoria Eletromagnética. (Nota da IHU On-Line)

99 Hendrik Antoon Lorentz (1853-1928): físico holandês, que se tornou conhecido por sua Teoria Eletrônica da Matéria.Compartilhou o prêmio Nobel de Física de 1902 com o físico holandês Pieter Zeeman pela descoberta dos efeitos domagnetismo sobre a luz (efeito Zeeman). (Nota da IHU On-Line)

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as Leis de Newton e as Leis de Maxwell para deter-minar o movimento dos elétrons nos átomos. Foi oprecursor da idéia de que o tempo não é absoluto edepende da velocidade do observador.

IHU On-Line – Einstein foi um marco, umdivisor de águas para a Física. Que caracte-rísticas de sua personalidade e da históriade sua vida podem ajudar a entender comoele, um cientista tão jovem e inexperiente,com 26 anos, pôde ter elaborado cinco arti-gos que mudaram a forma de ver o mundoem apenas um ano (1905)?Enio Frota – O momento em que Einstein come-çou sua vida profissional foi caracterizado poruma revolução científica. A visão do universo mu-dava. Os átomos e as galáxias estavam sendo des-cobertos, assim como os elétrons, os raios-X, a ra-dioatividade... Encontraram-se evidências con-cretas de que o famoso éter não existia. Planck100

lançara a idéia dos quanta. Lorentz e Poincaré101

começavam a destrinchar o enigma das observa-ções de fenômenos físicos feitas por observadoresem velocidades diferentes. O jovem Einstein, comsua genialidade, deu um “xeque-mate” em váriosproblemas da época.

IHU On-Line – Que decorrências, na teoria ena prática cotidiana das descobertas deEinstein, o senhor destacaria?Enio Frota – Suas descobertas geraram muitasaplicações importantes, entre as quais destacoduas: o entendimento da transformação de maté-ria em energia permitiu a construção de centraisnucleares, e o conceito de emissão estimulada deluz levou à construção do laser.

IHU On-Line – Como Einstein aparece nasnovas descobertas físicas, como a computa-ção quântica?Enio Frota – O físico Richard Feynman102 conce-beu a computação quântica, que permitiria a rea-lização de um computador extremamente rápidoe pequeno, de dimensões da escala atômica. Umapossibilidade seria o uso do spin do elétron comobit na representação de números, o qual está suje-ito às leis da Mecânica Quântica. Ao contrário doque aconteceu na Teoria da Relatividade, nãovejo como central o papel de Einstein nesta ques-tão. Sua contribuição ocorreu indiretamente, pormeio de trabalhos sobre mecânica estatística dossistemas microscópicos, como o de 1905 sobre omovimento browniano.

IHU On-Line – Por que razão a ciência purade Einstein ultrapassou os portões da aca-demia e foi incorporada ao vocabulário daspessoas comuns, ajudando a moldar a cul-tura popular?Enio Frota – Idéias como a aniquilação da maté-ria, transformado-a em energia, e a dedução deque o tempo não é absoluto disparam a imagi-nação de cientistas e de leigos. Armas superpo-derosas foram construídas e viagens fantásticasintergaláticas ou no tempo são cogitadas. Filmescomo Guerra nas Estrelas ou os de James Bondassumem ar de verossimilhança e são sucessomundial.

IHU On-Line – Que relações podem ser esta-belecidas entre a física de Isaac Newton e afísica de Einstein?Enio Frota – A física de Isaac Newton é a dodia-a-dia, chegando até mesmo a ser válida na es-

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100 Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858-1947): físico teórico alemão. Dedicou-se ao estudo da termodinâmica. O fenômeno deabsorção e emissão de energia radiante o atraía muito. Em 1900, Planck propôs a Lei da Radiação, estabelecendo osfundamentos para o desenvolvimento da Teoria Quântica. Esta nova teoria revolucionou a Física. Em 1918, Planck foiagraciado com o prêmio Nobel de Física por suas realizações sobre a radiação do corpo negro. (Nota da IHU On-Line)

101 Jules Henri Poincaré (1854-1912): cientista francês. Foi um dos maiores matemáticos dos tempos modernos. Utilizando aMatemática como instrumento, fez também pesquisas em diversas outras áreas, como eletricidade, luz e movimentos dosplanetas. Escreveu vários livros e ensaios sobre a filosofia da ciência. Seus livros mais famosos são Ciência e hipótese(1902), O valor da ciência (1909) e Ciência e método (1909). (Nota da IHU On-Line)

102 Richard Feynman (1918-1988): físico norte-americano. Ganhou o Prêmio Nobel de 1965 por sua teoria das interações entreos elétrons e os fótons (Eletrodinâmica Quântica). (Nota da IHU On-Line)

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cala planetária. Ela resolve a esmagadora maioriados problemas de mecânica da escala humana,aqueles relacionados com a engenharia conven-cional. A física de Einstein é a das altíssimas velo-cidades (próximas à da luz) ou das massas imen-sas (como a das estrelas). Nestas condições, a me-cânica newtoniana falha.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a pos-sibilidade de aplicação dos conceitos da Fí-sica Quântica para outros campos do co-nhecimento? É possível um debate transdis-ciplinar sobre a Física?Enio Frota – Possível é, e deve ser tentado.Ambos os lados podem lucrar com esta discussão.O exercício deve ser feito com cautela, entretanto.Alguns dos conceitos envolvidos são extrema-mente abstratos, e a Matemática aparece comoapoio indispensável no seu tratamento. Levar es-tes conceitos para um terreno em que a Matemáti-ca entra de forma limitada pode não ser frutuoso.Um exemplo típico em que um conceito físicopode aparecer em outra área é o Principio daIncerteza de Heisenberg103, que estabelece limitespara nosso conhecimento, isto é, em certas cir-cunstâncias, não há progresso tecnológico possí-vel que permita melhorar a precisão de observa-ções. Para materializar o conceito: os microscópiosóticos são cada vez melhores, mas nunca poderãonos mostrar vírus ou objetos menores.

IHU On-Line – Em linhas gerais, quais asprincipais divergências nos debates da Físi-ca na atualidade e quais serão seus possíveisreflexos na sociedade?Enio Frota – A Física avança para o muito gran-de (Astrofísica), o muito pequeno (partículas ele-mentares) e o muito complexo (plasmas, nano-ciência104, biofísica, por exemplo). Os instrumen-tos de pesquisa são cada vez maiores, mais com-plexos, mais eficientes e requerem mais energia e

maior poder de computação. Para levar a caboessa operação, é necessário, em particular, umexército de pesquisadores experimentais e teóri-cos, com boa formação, capazes de interagir comprofissionais de áreas afins. A sociedade continua-rá a receber os frutos dos empreendimentos quefinancia, seja na forma de respostas a perguntasdo tipo: de onde viemos? como somos feitos?onde estamos? Etc. ou na forma de ferramentascapazes de melhorar nossa qualidade de vida oucomo impedir que um cometa nos destrua.

IHU On-Line – Qual a importância que osenhor vê em um debate sobre os desafiosda Física para o século XXI em umauniversidade?Enio Frota – A importância da universidade nes-te processo é formar adequadamente novos pen-sadores, assim como professores, pesquisadores ealunos, gerando novas idéias e desenvolvendoprojetos de mérito.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar maisalgum comentário sobre o tema?

Enio Frota – Desvendando boa parte dosfenômenos atômico-moleculares, o homem dis-põe, hoje, de conhecimento e de tecnologia paraatacar problemas complexos. Não desprezando oque aprenderemos no “muito pequeno” e “nomuito grande”, tenho a convicção de o século XXIserá marcado pelo grande desenvolvimento cien-tífico na área bio. A Física, atuando com novasabordagens, novos conceitos, instrumentação maispoderosa, estará sempre presente nesta área.

IHU On-Line – A física vem se revelando umdos mais fascinantes campos do conheci-mento humano. Entretanto, ela parece des-pertar pouco interesse entre os jovens estu-dantes. Quais as razões desse afastamento,na sua opinião? Ele tem diminuído? Quais

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103 O princípio de indeterminação ou princípio da incerteza foi desenvolvido pelo físico alemão Werner Heinsenberg (1901-1976),que se celebrizou por seus estudos de física nuclear teórica. Esse princípio estabelece que é impossível determinar, com altaprecisão, simultaneamente, a posição, a velocidade e a energia de um elétron em movimento. (Nota da IHU On-Line)

104 A revista IHU On-Line número 120, de 25 de outubro de 2004, dedicou sua matéria de capa ao tema das nanotecnologias.Sítio www.unisinos.br/ihu (Nota da IHU On-Line)

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os aperfeiçoamentos que o ensino da Físicaestá a exigir?Enio Frota da Silveira – Concordo obviamentecom a afirmação. A física, nos três últimos séculos,tem sido uma das molas mestras do progresso cien-tífico, revelando-nos como é o mundo em que vi-vemos e fornecendo uma infra-estrutura para odesenvolvimento de outras disciplinas. Sem a físi-ca, os computadores não passariam de ábacos eas telecomunicações por rádio não existiriam. Foitambém graças a ela que sabemos hoje que o Uni-verso está em expansão há 14 bilhões de anos. Dedescobertas da física surgiram aparelhos ou técni-cas como os raios-X, os lasers, as microondas e aultra-sonografia, que modificaram profundamen-te a medicina moderna e a telefonia. É quase in-concebível imaginar a sociedade atual sem o be-nefício de tais avanços tecnológicos. Descobrimostambém que a vida teve início na Terra há quasequatro bilhões de anos e que muito dificilmenteentraremos em contacto com seres extraterrestres.Tais informações “cosmológicas” transcendem aprópria física e invadem campos como filosofia,teologia, antropologia e paleontologia. Quanto àredução do interesse pela física entre os jovens,seria conveniente perguntar a eles a razão. Dequalquer forma, acho que este comportamento émais amplo e profundo, pois inclui a matemática,a química e, de certa forma, também as engenha-rias. A sociedade moderna desfruta de muito con-forto e vemos que freqüentemente as inovaçõestecnológicas visam ao consumismo. Pode ser,então, que muitos jovens julguem que tudo já es-teja inventado e não se sintam motivados ao es-tudo das ciências exatas. Há uma visível fuga dotecnológico, ao contrário do movimento das dé-cadas 1950-70. Essa tendência apresenta umgrande desafio aos professores. Realizaçõescomo o Museu de Ciência da PUC-RS buscamaproximar o público, principalmente o jovem,das ciências exatas e tecnológicas. Como em par-te as necessidades ditam as investigações, talvezuma forma de motivá-lo seja realçar, no ensinoda Física, as questões que afligem o homem mo-

derno. Não é por acaso que tem crescido o inte-resse pela biofísica.

IHU On-Line – Entre os aperfeiçoamentosreferidos na questão anterior, estaria umaaproximação com a filosofia? Qual é a suaopinião sobre a aplicação dos conceitosquânticos em outros campos do conheci-mento humano?Enio Frota da Silveira – A física básica sempreesteve próxima da filosofia. Temas como o geo-centrismo e a teoria atômica de Demócrito105 ge-raram debates intensos entre físicos e filósofos. Ateoria da relatividade e a física quântica continuampromovendo discussões entre eles. A aplicaçãodos conceitos quânticos em outros campos do co-nhecimento é tentadora no sentido revolucioná-rio, quebrando paradigmas com conceitos clássi-cos. Um desses conceitos é o Princípio da Incerte-za, que postula para determinadas circunstânciasque a informação possível de ser obtida é limitadapor “princípio”, isto é, ao atingir um certo limite,não adianta usar um aparelho mais caro ou sofisti-cado, trocar de método, etc. que nunca podere-mos aumentar nosso grau de informação. Quantomais conhecimento conseguimos sobre uma gran-deza, menos sabemos sobre uma outra associada.Esta idéia tem sido estendida a outras áreas, mastalvez deva ser apenas em um sentido metafórico.

IHU On-Line – Quais são os principais pro-blemas teóricos enfrentados pela física nes-te começo de século? O que, por assim di-zer, falta “resolver”?Enio Frota da Silveira – Em linhas gerais, a pes-quisa hoje em física está direcionada para o muitogrande (cosmologia), para o muito pequeno (par-tículas elementares) e para o muito complexo (de-mais áreas da física). Por exemplo, gostaríamos desaber “como” o universo se expande, “como” osquarks interagem e “como” milhões de átomos sereúnem para formar um DNA. Outro problema aresolver: todos os fenômenos físicos que conhece-mos e que estudamos, podem ser explicados por

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105 Demócrito de Abdera (480aC-380aC), filósofo grego que acreditava que tudo estava predeterminado por ser resultado de umsimples jogo de causa e efeito entre os átomos (Nota da IHU On-Line).

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quatro tipos fundamentais de força: a gravitacio-nal, a elétrica, a nuclear e uma denominada defraca. Um grande problema teórico é a unificaçãodessas quatro interações.

IHU On-Line – Pode-se dizer que a físicaquântica nos revelou a existência de ummundo impossível de apreender objetiva-mente? Se assim é, como se pode lidar obje-tivamente com uma sucessão de fenômenosnão-objetivos?Enio Frota da Silveira – Talvez as idéias que te-mos sobre física quântica fiquem mais tangíveis sesepararmos o “caráter” quântico da natureza da

“teoria” quântica que busca descrevê-lo. É umfato que a natureza é quântica no mundo micros-cópico. Uma prova disso é que todos os elétronsou prótons são absolutamente iguais (indistinguí-veis) enquanto que asteróides, planetas ou estre-las são todos diferentes uns dos outros; outra pro-va “visível” do comportamento quântico (nãocontínuo) da natureza é que as luzes de algumaslâmpadas amarelas, usadas na iluminação públicapodem ter intensidades diferentes, mas têm exata-mente a mesma cor. Esses fenômenos são bemobjetivos. Por outro lado, a teoria que temos paradescrevê-los é tremendamente abstrata. Mas issoé outra estória...

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O universo de Einstein

Entrevista com Horácio Alberto Dottori

Horácio Alberto Dottori é graduado emAstronomia pela Universidad Nacional de Córdo-ba, Argentina, e especialista no mesmo assunto peloMax Planck Institut Fur Physik And Astrophysik,Alemanha. É doutor em Física pela UFRGS, com atese Espectro de Absorção, Contínuo Óptico eAvermelhamento em Núcleos Normais e Ativos deGaláxias. Fez três pós-doutorados: na RoyalGreenwich Observatory, Inglaterra; no CentreNational de la Recherche Scientifique, CNRS,França; na Ruhr Universitat Bochum, RU-BO, Ale-manha. Atualmente é vice-coordenador doObservatório Educativo Itinerante, coordenadordo grupo de Dinâmica de Sistemas Estelares eprofessor do Departamento de Astronomia dessauniversidade.

IHU On-Line – Quais são os maiores equívo-cos ligados à imagem de Einstein?Horácio Dottori – Não conheço equívocos. Pro-vavelmente a transformação dele num mito sejacontraproducente ao desenvolvimento da ciência,embora seja um dos gigantes das ciências.

IHU On-Line – Acredita que a figura de Eins-tein ajude a despertar o interesse das novasgerações pela Física?Horácio Dottori – Eu espero que sim, embora oideal da juventude seja moldado em figuras às ve-zes antagônicas à de Einstein.

IHU On-Line – Einstein refletiu uma décadasobre a Teoria da Relatividade Restrita.Quais são as principais contribuições dessateoria?

Horácio Dottori – Não conheço, mesmo queEinstein tenha refletido uma década sobre a TRR.Resulta, porém, impossível de serem enumeradasas contribuições. Se pudesse sintetizar em duaspalavras seria uma “crítica acertada ao comporta-mento da luz”, que levou à unidade dos conceitosde espaço e de tempo. Daqui saem milhares deresultados.

IHU On-Line – De que modo as descobertasde Einstein contribuem para um novo en-tendimento do Universo?Horácio Dottori – Aqui de novo se aprofunda acrítica ao comportamento da luz. O nascimento daTeoria da Relatividade Geral parte da crítica aocomportamento dos fótons num campo gravita-cional e como o fóton é afetado pelo campo. Nãoé que essa idéia fosse nova. Ela já tinha sido esbo-çada 100 ou mais anos antes, já que na fórmulada aceleração newtoniana não entre a massa dapartícula acelerada, mas somente a da acelerante,portanto um fóton também poderia ser aceleradono campo gravitacional. Todavia o limite do mó-dulo da velocidade da luz da Relatividade Restritase mantém na RG, e o fóton é afetado de duasmaneiras: 1) o campo gravitacional curva a suatrajetória (órbita) e 2) o campo muda a energia dofóton.

IHU On-Line – Quais os aspectos que a

Astronomia mais aproveita das descobertas

de Einstein?

Horácio Dottori – Existem inúmeros. Um exem-plo: se observamos uma fonte luminosa (porexemplo um Quasar, uma supernova etc.) que se

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movimenta a uma grande velocidade em relaçãoa nós (por exemplo 299.000 km/seg), cuja luz va-ria no nosso relógio com um dado período, sabe-mos calcular qual é o período de variação num re-lógio instalado no objeto em questão. Dessa for-ma, podemos compará-los com objetos seme-lhantes vizinhos da nossa galáxia.

IHU On-Line – O que seria mais importante

comemorar em 2005, Ano Mundial da Física?

Horácio Dottori – O método científico comoforma de conhecimento, a regularidade dos fenô-menos naturais que faz possível o seu estudo e oestabelecimento de leis (imagine se, de pronto, aassistíssemos um porco voando, como diz o meu

amigo Aníbal Damasceno). Paralelamente, la-mentar a pequenez desta fase da evolução do uni-verso à que chamamos consciência, que, na sua li-mitação, pode chegar a autodestruir-se, ou acabarcom o seu habitat.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar maisalgum aspecto que aqui não abordamos?Horácio Dottori – Talvez o desafio das próxi-mas décadas seja salvar o meio ambiente. Isso éparadoxal, pois provavelmente saibamos o quedeveria ser feito para compensar a agressão queele está sofrendo, mas não tenhamos a menorpossibilidade de implementá-lo. Não sei se issotem a ver com Einstein, mas definitivamente tem aver com um sistema físico, que é o nosso habitat.

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A Onipresença transformadora dos princípios quânticos:desafios e possibilidades

Entrevista com Fernando Haas

Fernando Haas é graduado, mestre e doutorem Física pela UFRGS, com a tese Sistemas de

Ermakoy Generalizados, Simetrias e Inva-

riantes. Fez pós-doutorado na Université HenriPoincaré, UHP, França.

IHU On-Line – Em linhas gerais, o que é acomputação quântica e qual o contexto noqual surgiu?Fernando Haas – A computação quântica é aarte de processar informação, utilizando regras dafísica quântica, em contraposição à computaçãoclássica, que é a arte de processar informação,usando as regras da física clássica. Afora por al-guns trabalhos pioneiros, a computação quânticatem sido desenvolvida mais fortemente nos últi-mos dez anos. Isso se deve ao descobrimento decertos problemas que podem ser resolvidos ade-quadamente por computadores quânticos e quenão podem, aparentemente, ser resolvidos eficien-temente nem mesmo pelo melhor supercomputa-dor disponível hoje. Além disso, vemos um au-mento de nossa capacidade de manipular siste-mas microscópicos, como na nanotecnologia.Estes desenvolvimentos nos dão a esperança deque seja possível fabricar, na prática, computado-res quânticos de grande poder de processamento.

IHU On-Line – Quais são os principais desa-fios da computação quântica para o séculoXXI?Fernando Haas – O desafio principal é criar es-tratégias para fazer funcionar na prática a compu-

tação quântica, até agora restrita a simulacros decomputadores quânticos, dispondo de um poderde cálculo muito pequeno. Para funcionar ade-quadamente, um computador quântico precisa deum alto grau de isolamento do mundo externo, e éisso que tem travado a fabricação destas máqui-nas. Outros desafios envolvem a criação de novosalgoritmos quânticos, o que exige pensar de acor-do com as normas da física quântica. Isso não é fá-cil porque estamos acostumados a pensar de acor-do com uma intuição que vem da nossa experiên-cia do dia-a-dia, a qual é uma experiência basea-da na física clássica.

IHU On-Line – Quais as diferenças entre fa-zer computação do modo tradicional e con-forme as regras quânticas?Fernando Haas – A computação clássica funcio-na em termos de objetos exclusivistas. Ou zero, ouum; ou sim, ou não; ou cara, ou coroa; ou colora-do, ou gremista, e assim por diante. A unidade bá-sica da informação clássica é o bit, o qual podeadotar os valores zero ou um. Já a computaçãoquântica não necessita desta lógica exclusivista,de modo que os objetos básicos da computaçãoquântica sobrevivem como uma superposição dedois estados. Por exemplo, seria como se umamoeda pudesse assumir simultaneamente os esta-dos cara e coroa. Outro aspecto que só existe nacomputação quântica é uma forte correlação en-tre sistemas que estão distantes no espaço. Isso severifica, por exemplo, no fenômeno do teletrans-porte, que envolve a transmissão de informação à

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distância e sem necessidade de nenhum intermediá-rio como uma onda de rádio ou algo semelhante.

IHU On-Line – Em quais aplicações a com-putação quântica é hoje mais utilizada?Fernando Haas – Como ainda não dispomos decomputadores quânticos com grande capacidadede processamento, muitas das aplicações imagi-nadas ainda não se concretizaram. Este é o caso,por exemplo, do uso de algoritmos quânticos paraquebrar os esquemas de criptografia mais usadosatualmente. Só para explicar um pouco, cripto-grafia é a arte de enviar mensagens em código.Por exemplo, na hora de enviar uma informaçãosecreta pela Internet (como uma senha de banco),se utiliza um esquema de criptografia. Pode-se de-monstrar que mesmo o melhor supercomputadoratual levaria bilhões de anos para quebrar o es-quema criptográfico (RSA), que é o mais freqüen-temente utilizado. Um computador quântico demédio porte, entretanto, levaria um tempo muitomais acessível. Por isso, há tanto interesse por par-te dos departamentos de defesa pelo mundo aforaem desenvolver a computação quântica. Por ou-tro lado, concretamente, já existem alguns esque-mas para transmissão segura de informação, invi-olável a espiões. Estes esquemas se baseiam na te-oria da informação quântica e já estão sendocomercializados.

IHU On-Line – Qual é a situação brasileirasobre a pesquisa voltada à computaçãoquântica?Fernando Haas – Temos pesquisas de projeçãointernacional, como no caso do grupo lideradopelo professor Luiz Davidovich, do instituto de fí-sica da UFRJ. Trata-se, mais propriamente, depesquisa sobre informação quântica, envolvendofenômenos tais como o teletransporte, incluindoavanços teóricos e experimentais. No entanto, aospoucos os departamentos de computação brasilei-ros estão despertando para a nova realidade, ti-rando dos departamentos de física a exclusividadeno assunto. Por exemplo, o Laboratório Nacionalde Computação Científica, no Rio de Janeiro,conta com um grupo de pesquisas sobre algorit-mos quânticos. A teoria dos algoritmos, como se

sabe, está no arcabouço da teoria da computaçãoe não da física. Espera-se que a colaboração entrefísicos e informatas brasileiros permita ao Paíscompetir com um mínimo de dignidade nesta áreaque pode até se tornar central na economia mun-dial. Quem sabe, sendo otimistas, seja possívelcontar com maior apoio governamental e de gran-des empresas de informática para pesquisas naárea no Brasil.

IHU On-Line – Que relações podem ser esta-belecidas entre a física quântica e a compu-tação quântica?Fernando Haas – Na medida em que as regrasdo jogo na computação quântica são regras quân-ticas, não faz sentido conceber uma computaçãoquântica sem a física quântica. Entretanto, indoalém desta observação meio óbvia, a computaçãoquântica, de certa forma nos ajudou a entender demodo diferente a própria física quântica. De fato,podemos imaginar que a natureza é um grandecomputador, transformando continuamente opresente no futuro. Já que atualmente a teoriaaceita para o mundo natural é a física quântica,podemos interpretar nosso universo como umcomputador quântico, processando informação,usando regras quânticas.

IHU On-Line – De que forma a computaçãoquântica pode auxiliar na pesquisa a respei-to da consciência e inteligência artificial?Fernando Haas – Uma das questões básicas dainteligência artificial é responder se seria possívelconstruir uma máquina com os atributos de umser inteligente. Esta máquina haveria de ter capa-cidade de escolha autônoma, consciência e assimpor diante, embora não seja evidente o que cha-mamos de “inteligência”. Caso esta máquina fun-cionasse seguindo as regras da física clássica, é dese imaginar que os algoritmos envolvidos no seuprocessamento haveriam de ser tenebrosamentecomplicados. Da complexidade emergiria a inteli-gência. Entretanto, é de se questionar se uma má-quina determinista poderia ser chamada de “inte-ligente”, e este questionamento seria extensível anossa própria inteligência como seres humanos.Para os computadores quânticos, há mais espaço

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para pensar em coisas diferentes, já que as regrasquânticas não são totalmente deterministas. Emparticular, faz mais sentido imaginar que exista li-vre-arbítrio num universo quântico, que não é umuniverso determinista. De um determinado pre-sente, é possível que surjam diferentes futuros,cada um com uma probabilidade.

IHU On-Line – Qual é a importância de abor-dar a computação quântica no Ciclo de Estu-dos “Desafios da Física para o Século XXI:uma Aventura de Copérnico a Einstein”?Fernando Haas – Einstein foi um dos maioresimpulsionadores da mecânica quântica, apesar deter sido, até o final da vida, um adversário da in-terpretação padrão que se dá a este ramo da físi-ca. Como a computação quântica é inconcebívelsem a física quântica, a escolha do assunto dacomputação quântica dá margem a discutirmosuma possibilidade científica e tecnológica atualaberta pelo legado einsteniano. Ao mesmo tem-po, são importantes todas as oportunidades detentar tornar acessíveis ao público em geral temasda física moderna.

IHU On-Line – Qual é a contribuição da físi-ca quântica para as demais áreas do conhe-cimento humano?Fernando Haas – A física quântica (tambémchamada de mecânica quântica) influenciou e in-fluencia, de modo importante, uma série de áreasdo conhecimento. Na filosofia do século XX, porexemplo, é difícil ignorar as questões levantadas apartir da formulação da mecânica quântica, nosidos da década de 1920. Nesse sentido, ficou fa-moso o debate entre Einstein e Bohr106, este talvezo líder da chamada escola de Copenhagen, a cor-rente majoritária entre os físicos, quando se tratade dar uma interpretação à mecânica quântica.Segundo a escola de Copenhagen107, não existeuma realidade intrínseca, independente do obser-

vador. Esta visão se opõe àquela advogada porEinstein e outros, denominada visão realista, queacredita na existência de uma natureza indepen-dente de se fazer ou não experiências, buscandodescobrir suas propriedades. Estas questões epis-temológicas sobre a natureza do conhecimentooferecido pela física quântica não foram decidi-das, sendo objeto de debate atual. O próprio Eins-tein, apesar de suas contribuições ao desenvolvi-mento da mecânica quântica, acreditou até o fimda vida no advento de uma teoria mais geral, livredas dificuldades de interpretação da mecânicaquântica. Por outro lado, nas áreas mais tecnoló-gicas, a mecânica quântica tem também um papelfundamental. Estima-se que 30% do PIB mundialdependem de fenômenos que só podem ser devi-damente explicados pela física quântica. O com-putador, por exemplo, só pôde evoluir da formu-lação teórica de Alan Turing108 para a máquinareal que conhecemos, após a invenção do transis-tor. O transistor, como uma série de dispositivoseletrônicos, se apóia na física dos semicondutores,a qual só pode ser propriamente entendida pormeio de princípios quânticos. Nesse mesmo cami-nho, a crescente miniaturização dos dispositivoseletrônicos exige, cada vez mais, a aplicação deprincípios quânticos, quando se trata de incre-mentar a capacidade de processamento dos com-putadores. Isso sem contar com o novo paradig-ma da computação quântica, que pode levar auma nova revolução na informática, caso possaser implementado na prática, e não apenas na te-oria. Não podemos também esquecer as aplica-ções da física quântica na geração de energia, jáque uma parcela significativa da energia elétricamundial provém de reatores à base de fissão nu-clear, um processo descrito pela física nuclear, queé um capítulo da física quântica. Na mesma linha,a pesquisa sobre reatores nucleares, a fusão, tidapor muitos como a saída para a crise do fim doscombustíveis fósseis, exige o domínio da física

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106 Refere-se ao debate entre Albert Einstein e Niels Bohr, relativamente ao indeterminismo ontológico sugerido pela mecânicaquântica (Nota da IHU On-Line).

107 A Escola de Copenhagem reuniu os principais formuladores da mecânica quântica (Nota da IHU On-Line).108 Alan Mathison Turing (1912-1954), matemático inglês. Idealizou a “máquina de Turing”, antecessora dos computadores,capaz

de calcular qualquer função matemática mediante um determinado conjunto de instruções (Nota da IHU On-Line).

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quântica. Do ponto de vista indubitavelmente ne-gativo, há que se lembrar que as armas nucleares,quer se queira admitir, quer não, só puderam serdesenvolvidas a partir da física nuclear, um setorda física quântica. No âmbito da física, a cosmolo-gia, a física das partículas elementares, as teoriasde grande unificação, são todas pensadas atual-mente no paradigma da mecânica quântica, ouseja, as áreas mais nobres da física, que buscamnos dar respostas sobre a natureza última do uni-verso, estão apoiadas na física quântica.

IHU On-Line – A aplicação dos conceitosquânticos nessas áreas está consolidada?Fernando Haas – Sobre as aplicações da mecâ-nica quântica estarem consolidadas, a resposta énão, já que, diariamente, surgem novas e instigan-tes possibilidades nesse sentido. Por exemplo, te-mos, hoje, o desenvolvimento dos nanomateriais,ou seja, dispositivos microscópicos (da escala atô-mica), criados para tarefas específicas como fazero papel de transistores. Há também uma série deconjecturas sobre o papel da física quântica naemergência do que chamamos “consciência”. Nes-sa linha, antigas questões como a existência ounão de livre-arbítrio podem ser examinadas sobuma nova luz, a luz da física quântica. Temos tam-bém, finalmente, muitas questões físico-filosóficasque ainda demandam exame, sobre a interpreta-ção da mecânica quântica ou sobre a transição domundo do muito pequeno para o mundo macros-cópico, onde os fenômenos quânticos freqüente-mente são desprezíveis.

IHU On-Line – Quais são os principais de-bates e pesquisas, envolvendo a física atu-almente? Eles são tributários diretos dasdescobertas de Einstein?Fernando Haas – Provavelmente, a resposta aesta pergunta varia tremendamente, dependendode quem está sendo entrevistado. Na minha opi-nião, temos duas frentes principais. Uma delas serefere à física dos sistemas complexos, que se rela-ciona com a aplicação da física aos fenômenos davida, da biologia. Estamos apenas iniciando nesta

questão fundamental que é entender a biologiaem termos de modelos físico-matemáticos maisprofundos. Por outro lado, no mundo das partícu-las subatômicas, teremos, nos próximos anos, ofuncionamento de um novo acelerador de partí-culas, o Large Hadron Collider (LHC), que nospermitirá acessar a novas escalas de energia, oque admitirá testar devidamente a teoria atual-mente aceita sobre as forças da natureza, baseadano conceito de supersimetria. Eventualmente, no-vos fenômenos poderão ser observados. A super-simetria, como o nome diz, envolve um princípiode simetria, de invariância. A idéia de que por trásda aparente desordem do mundo deve existir umprincípio matemático unificador, de simetria, re-monta a Platão. Mais recentemente, Einstein, coma sua teoria da relatividade especial, foi o granderesponsável pela importância dos princípios de si-metria na física. Mais exatamente, na teoria da re-latividade geral, não há um observador privilegia-do no mundo, o que é um tipo de princípio de si-metria. Todos os sistemas de referência são igual-mente aceitáveis, qualquer que seja seu tipo demovimento. Portanto, sem Einstein possivelmentenão teríamos a supersimetria nem qualquer dasteorias em voga na física das partículas subatômi-cas. Para completar, Einstein contribuiu decisiva-mente no desenvolvimento da mecânica quânti-ca, subjacente a todas estas questões.

IHU On-Line – Persiste como amplamenteválida a estrutura causal do mundo, revela-da pelo exame da propagação da luz realiza-do por Einstein?Fernando Haas – Que eu saiba, não há contes-tação experimental à teoria da relatividade. Alémdisso, o princípio de causalidade, ou seja, de queas causas precedem os efeitos, permanece aceito.Nesse sentido, a existência de uma velocidade li-mite, a velocidade da luz, impõe restrições, já quea ocorrência de dado “efeito” num dado ponto doespaço só pode ocorrer após um certo tempo, de-terminado pela distância até a “causa” e a veloci-dade da luz. Existem certas situações admissíveisna mecânica quântica, como no experimento

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Einstein-Podolsky-Rosen (EPR)109, em que háaparente violação do princípio da causalidade.Entretanto, segundo a visão majoritariamenteaceita, esta violação é apenas aparente, não ha-vendo propagação de informação a uma veloci-dade que exceda a da luz.

IHU On-Line – Como a física quântica se re-laciona com a teoria dos sistemas e a teoriado caos? Quais as decorrências práticasdesse diálogo?Fernando Haas – Confesso que não sou o perso-nagem mais apto a falar sobre a Teoria dos Siste-mas, que conheço apenas superficialmente. Acre-dito, porém, no poder de fogo dos princípios de si-metria, tão caros à mecânica quântica e certamen-te úteis também no caso da Teoria dos Sistemas.Quanto á Teoria do Caos, existe o chamado caosquântico, que se manifesta por uma distribuiçãodesorganizada dos níveis de energia no caso desistemas cujo limite clássico é caótico. Trata-se,porém, de um caos menos bombástico do que ocaos evidenciado nos sistemas clássicos. Tudo de-vido à estrutura matemática linear da mecânicaquântica, que, neste pormenor, é muito mais“bem comportada” do que a mecânica clássica.Provavelmente é dos únicos aspectos em que omundo quântico é mais habitável do que o mun-do clássico.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o está-gio do ensino e da pesquisa da física no Bra-sil? Nesse cenário, qual é a posição daUnisinos?Fernando Haas – A física brasileira vive uma si-tuação paradoxal. Por um lado, temos uma pro-dução acadêmica qualificada, com boa inserção ereconhecimento internacionais. Por outro lado,não temos, no momento, uma geração de pesqui-sadores de destaque do nível da geração de umCésar Lattes110, por exemplo. Temos, também,por incrível que pareça, uma legião de jovensdoutores e pós-doutores, que não conseguem po-sição no meio acadêmico, sendo obrigados fre-qüentemente a executar malabarismos para so-breviver. O que fazer com estes jovens doutores epós-doutores, como fazer para não jogar pelo raloo seu investimento pessoal e o investimento esta-tal na forma de bolsas que foram dadas a eles, é aquestão humana mais premente que vejo no mo-mento. Diferentemente da época da corrida arma-mentista, na qual, por óbvias e nada nobres ra-zões, se reconhecia, de imediato, a sua importân-cia, hoje, é necessário convencer a sociedade darelevância da física. Nós, físicos, pelo jeito não so-mos muito bons em promoção pessoal ou da área.Quanto à Unisinos, no momento, é modesta apesquisa em física na Universidade, com apenasalguns projetos de pesquisa em andamento e sempós-graduação na área. Acredito, porém, que aUniversidade esteja pronta a incentivar novas pro-postas de qualidade no setor.

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109 A sigla EPR designa os autores (Albert Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen (os dois últimos são físicos norte-americanos)de um experimento destinado a demonstrar a incompletude da mecânica quântica. Insere-se no debate Einstein-Bohr, antesmencionado (Nota da IHU On-Line).

110 Físico brasileiro, de nome Cesare Mansueto Giulio Lattes. Nascido em 1924, faleceu em 08-03-2005. Sobre ele, IHU

On-Line publicou na sua 132ª edição, de 14-03-2005, os textos “César Lattes – 1924/2005”; “Físico César Lattes morre aos80 anos” e “”César Lattes, herói da física nacional”. (Nota da IHU On-Line).