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REVISTA DE MANGUINHOS | MAIO DE 2018 56 s colonizadores euro- peus que atracaram suas caravelas na Amé- rica portuguesa enfren- taram grandes desafios, especialmente, em sua busca por fon- tes seguras de alimentos. Essa necessi- dade deixou um legado à cultura culinária brasileira, afirma o historiador e pesquisador Christian Fausto Moraes dos Santos. O tema é abordado no arti- go Saborosos, sadios e digestivos: o dis- curso médico presente no consumo de frutos, conservas e compotas na Améri- ca portuguesa do século 16, publicado na revista História, Ciências, Saúde – O Haendel Gomes Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Christian assina o artigo com a também pesquisadora Juli- anna Morcelli Oliveros. Segundo o estu- do, os frutos encontrados no Brasil assumiram um papel importante na die- ta alimentar dos colonizadores; eram consumidos em for- ma de compotas e conservas. Os doces e compo- tas conti- FIO DA HISTÓRIA nham grandes quantidades de açúcar, produto que era usado também com fi- nalidade terapêutica na época da coloni- zação, conta o historiador da Universidade de Maringá (PR). “As técnicas de conser- vação dos alimentos se limitava ao uso de defumação, ácido

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Page 1: FIO DA HISTÓRIA - agencia.fiocruz.br · presente, por exemplo, no hábito de comer doces em conserva após as re-feições. Algo muito presente na cultu-ra portuguesa. Ora, na ausência

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s colonizadores euro-peus que atracaramsuas caravelas na Amé-rica portuguesa enfren-taram grandes desafios,

especialmente, em sua busca por fon-tes seguras de alimentos. Essa necessi-dade deixou um legado à culturaculinária brasileira, afirma o historiadore pesquisador Christian Fausto Moraesdos Santos. O tema é abordado no arti-go Saborosos, sadios e digestivos: o dis-curso médico presente no consumo defrutos, conservas e compotas na Améri-ca portuguesa do século 16, publicadona revista História, Ciências, Saúde –

OHaendel Gomes

Manguinhos, da Casa de OswaldoCruz (COC/Fiocruz). Christian assina oartigo com a também pesquisadora Juli-anna Morcelli Oliveros. Segundo o estu-do, os frutos encontrados no Brasilassumiram um papel importante na die-ta alimentar dos colonizadores; eramconsumidos em for-ma de compotase conservas.

Os docese compo-tas conti-

FIO DA HISTÓRIA

nham grandes quantidades de açúcar,produto que era usado também com fi-nalidade terapêutica na época da coloni-zação, conta o historiador da Universidadede Maringá (PR). “As técnicas de conser-vação dos alimentos se limitava aouso de defumação, ácido

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acético (vinagre), sal e açúcar”, explicou.Para Christian Fausto, os coloniza-

dores tiveram outros aliados para ga-rantir sua sobrevivência: os indígenas.O estudo constatou que os nativos aju-daram, “em grande parte graças aosaber enciclopédico sobre a flora daAmérica portuguesa”. Desta forma,complementa, os colonizadores “nãosomente sobreviveram a um ambientedesconhecido e inóspito, como elabo-raram uma cultura alimentar única eextremamente dinâmica”.

Com doutorado pelo Programa dePós-Graduação na Casa de OswaldoCruz (COC/Fiocruz), o pesquisador des-tacou a sobrevivência do europeu noprocesso de colonização. “Para alémdaquelas plantas com um valor mer-cantil considerável (como foi o caso dasorientais pimenta do reino, cravo, ca-nela e noz moscada), muitas outrasplantas acabaram se destacando porterem um valor que, em nossa pers-pectiva, poderia superar o das famo-sas especiarias da Índias orientais”,avaliou. Leia a entrevista com um dosautores do artigo publicado pela re-vista História, Ciências, Saúde –Manguinhos, Christian Fausto Mora-es dos Santos.

Houve um legado para nossa cul-tura, por parte do colonizador, aopreparar e consumir determinadosalimentos?

Christian Fausto Moraes dos San-tos: O fascinante de se estudar os pri-meiros relatos, crônicas e tratados feitospelos colonizadores europeus, na Amé-rica portuguesa, reside principalmentenisso, ou seja, ter a chance de obser-var e analisar a construção de saberese práticas que acabaram se tornandobasilares na cultura brasileira. O con-sumo de determinados alimentos, oua maneira de prepará-los, pode ser in-cluído neste legado. No artigo discuti-mos muito sobre doces e compotas ecomo os mesmos eram feitos com umaquantidade razoável de açúcar. Claro,estamos nos referindo a um período emque as técnicas de conservação dosalimentos se limitava ao uso de defu-mação, ácido acético (vinagre), sal eaçúcar. Logo, quantidades generosas

de açúcar deveriamser utilizadas se oscolonizadores qui-sessem que suascompotas e conser-vas durassem mesesem um ambientequente e, por vezes,úmido. Havia tam-bém os paradigmasmédicos da época,que estimulavam ouso do açúcar. Este,considerado uma dro-ga com muitas finali-dades terapêuticas.Séculos se passaram eas compotas e docesfeitos com frutos genu-inamente brasileirosseguem muitos dosprincípios que foram seconstituindo nos primeirosdecênios da colonização: ouso de quantidades genero-sas de açúcar. Para além dovolume de açúcar nas recei-tas, visando garantir o pro-cesso de conservação, oconsumo destes doces sem-pre foi uma fonte de prazere um importante reforço nocardápio do brasileiro. Prin-cipalmente para aquelaparcela da população quesempre teve uma rotina de trabalhodesgastante. Afinal, os doces tambémsão uma rica fonte de calorias.

Podemos dizer que foram váriosos legados deixados pelos primeirosdoces feitos na Colônia. Encerradosem uma pequena compota feita comalgum fruto de nossas florestas pode-mos encontrar claros traços de um le-gado cultural, estratégico, nutricional,econômico e mesmo médico.

Quais lições podemos tirar des-se aprendizado a que foram sub-metidos os colonizadores?

Santos: O ambiente não determi-na a História. Mas ele, certamente, éum ator que deve ter sua atuaçãodevidamente considerada pelo histo-riador. Muitas vezes, enquanto pes-quisamos no conforto de nossas

escrivaninhas e noar condicionado de nossos escritórios,bibliotecas e laboratórios, nos esque-cemos de levar em consideração to-dos os percalços que poderiam envolveralgo tão cotidiano quanto a busca oua conservação dos alimentos. Os colo-nizadores, em grande parte graças aosaber enciclopédico dos indígenas so-bre a flora da América portuguesa, nãosomente sobreviveram a um ambientedesconhecido e inóspito, como elabo-raram uma cultura alimentar única eextremamente dinâmica. Cultura estaque, em boa medida, subsiste até hojenos doces caseiros vendidos em “se-cos e molhados” ou nas compotas que,invariavelmente, associamos a uma he-rança culinária rural e interiorana. Custoreduzido, prazer gustativo, cultura gas-tronômica, fonte de energia. A histó-

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ria de nossos doces nos permite obser-var que os incontáveis obstáculos im-postos pelo ambiente colonial, longede serem determinantes, estimularama meticulosidade, observação, criativi-dade e engenho dos colonizadores.

É possível dizer que esse contatocom nossos alimentos (frutas, especial-mente, mas outros ingredientes nati-vos) gerou circulação de conhecimentosobre o tema alimentação na Europa?

A era moderna, e a consequenteexpansão europeia, promoveu umadinâmica alimentar sem precedentes.De fato, é impossível pensar a eradas grandes navegações sem um dosprincipais fatores que desencadeousua dinâmica, ou seja, as desejadasraízes, sementes, folhas, galhos, re-sinas e frutos encontrados nos novosdomínios ultramarinos. Para além da-quelas plantas com um valor mercan-til considerável (como foi o caso dasorientais pimenta do reino, cravo, ca-nela e noz moscada), muitas outrasplantas acabaram se destacando porpossuir um valor que, em nossa pers-pectiva, poderia superar o das famo-sas especiarias da Índias orientais.Estamos nos referindo aqui ao valorda sobrevivência. Não devem ter sidoraras as vezes em que algumas raí-

zes de mandioca ou uma compotade abacaxi significaram a diferençaentre a vida e a morte de uma tripu-lação que trazia os porões de suasnaus abarrotadas de especiarias dooriente. E, claro, o prazer, este senti-mento sempre associado ao ato dese alimentar, também foi um dosgrandes motivadores para que as co-zinhas típicas do Velho Mundo nun-ca fossem as mesmas. Afinal, comoimaginar a culinária italiana sem otomate, a inglesa sem batata ou afrancesa sem a abobrinha? O impac-to que as plantas do continente ame-ricano tiveram sobre o ato de sealimentar, nas mais diferentes cultu-ras do mundo é um prato cheio paranós, historiadores da alimentação.

Pode explicar o termo saudadegustativa?

Santos: O paladar humano, as-sim como a cultura, é resultado deum processo de herança e modifica-ção. Boa parte de nosso paladar édesenvolvida a partir da comida queé preparada pelos nossos pais eavós, ou seja, nosso local de origem,as plantas que compõem a flora lo-cal e a maneira de prepará-las com-põem muito daquilo que estará entrenossas preferências alimentares. Um

exemplo simples desta identidadegustativa pode ser encontrado nofato de que o brasileiro é o únicoconsumidor de abacate, no mundo,que adiciona açúcar ao mesmo comocomplemento (enquanto, pratica-mente, todas as outas culturas adi-cionam sal).

Quando nos deslocamos, seja emuma viagem ou em um processo mi-gratório, levamos conosco essa baga-gem sensorial e cultural. No caso deum processo colonizatório, como aque-le que assistimos na América portugue-sa a partir do século 16, assistimosàquilo que poderíamos chamar de“saudade gustativa”. Ela pode estarpresente, por exemplo, no hábito decomer doces em conserva após as re-feições. Algo muito presente na cultu-ra portuguesa. Ora, na ausência de umbom doce de figo em calda, tal sauda-de poderia ser parcialmente sanadacom o consumo de doces em calda fei-tos com frutos nativos de nossa flora.Identificar esta saudade gustativa é im-portante, pois ela nos mostra que a tãodifundida plasticidade do colonizadorportuguês até poderia estar presenteem muitos ingredientes nativos mas elaacabava onde começava a saudade ea vontade de manter velhos hábitos tra-zidos da Metrópole.

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