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CADERNOS de FILOSOFIA ALEMÃ CNPq FFLCH Programa de Pós-Graduação Área de Filosofia

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Cadernos de

FILosoFIa aLeMÃ

CNPqFFLCHPrograma de Pós-Graduação

Área de Filosofia

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Cadernos de

FILosoFIa aLeMÃ XIII

Publicação semestral do Departamento de Filosofia – FFLCH-USP

Jan.-jun. 2009

São Paulo – SP

ISSN 1413-7860

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Cadernos de FilosoFia alemã é uma publicação semestral do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Editores ResponsáveisMaria Lúcia MeLLo e oLiveira caccioLa

ricardo ribeiro Terra

Comissão Editorialbruno nadai, cauê PoLLa, Fernando cosTa MaTTos, FLaMarion caLdeira raMos, igor siLva aLves, Luís Fernandes dos sanTos nasciMenTo, Marisa LoPes, Maurício cardoso KeinerT, Monique HuLsHoF, rúrion soares MeLo

Conselho EditorialaLessandro Pinzani (uFsc), andré de Macedo duarTe (uFPr), danieL Touri-nHo Peres (uFba), deniLson Luís WerLe (uFsc/cebraP), eduardo brandão (usP), ernani PinHeiro cHaves (uFPa), gerson Luiz Louzado (uFrgs), Hans CHristian Klotz (UFsM), ivan raMos Estêvão (Mackenzie), João carLos saLLes Pires da siLva (uFba), JoHn abroMeiT (Universidade de Chicago), José PerTiLLi (uFrgs), José rodrigo rodriguez (Fgv), JúLio césar raMos esTeves (uenF), Luciano nervo codaTo (UNIFESP), Luiz rePa (UFPR/CEBRAP), Márcio suzuKi (usP), Marco auréLio WerLe (usP), Marcos nobre (Unicamp), oLivier voiroL (Universidade de Lausanne), PauLo roberTo LicHT dos sanTos (uFscar), Pedro PauLo garrido PiMenTa (usP), rosa gabrieLLa de casTro gonçaLves (uFba), sérgio cosTa (Frei Universität), siLvia aLTMann (uFrgs), soraya nour (Centre March Bloch), THeLMa Lessa Fonseca (uFscar), vera crisTina de andrade bueno (Puc/rJ), vinicius berLendis de Figueiredo (uFPr), virginia de araúJo Figueiredo (uFMg), Yara FratEsCHi (Unicamp)

Indexado por tHE PHilosoPHEr’s indEx E ClasE

Universidade de são PauloReitora: sueLy viLeLa

Vice-reitor: Franco Maria LaJoLo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretora: sandra Margarida nitrini

Vice-diretor: ModEsto FlorEnzano

departamento de FilosofiaChefe: Moacyr ayres novaes FiLHo

Vice-chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoordenador do Programa de Pós-graduação: Marco Antônio de Ávila Zingano

diagramaçãoMicroart – Editoração Eletrônica Ltda.

CapaHamilton Grimaldi e Microart – Editoração Eletrônica Ltda.

ImpressãoCromosete Gráfica e Editora Ltda.Tiragem: 800 Exemplares

©copyright departamento de Filosofia – FFLCH/UsPAv. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. UniversitáriaCEP: 05508-900 – São Paulo, BrasilTel: (011) 3091-3761Fax: (011) 3031-2431E-mail:[email protected]º 13 – jan.-jun. 2009ISSN 1413-7860

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Sumário

Editorial 9

Artigos

O sujeito do conhecimento – o objeto da ação: a “pas-sagem”, identidade e diferença na filosofia de Arthur Schopenhauer 11MargitRuffing

O direito frente ao mal radical: a hipérbole kantiana do povo de demônios 29AdelinoBraz

El lenguaje en la Analítica de los conceptos de la Crítica de la razón pura 43DanielLessere

A ampliação do conceito do político: para uma outra re- cepção da teoria crítica de Marx 59RúrionSoaresMelo

A música em Schelling 83FernandoR.deMoraesBarros

Tradução

Começo conjetural da história humana, de ImmanuelKant 95ComentárioetraduçãodeBrunoNadai

Resenhas

Shakespeare, o gênio original, de Pedro Süssekind 125ErnaniChaves

Lançamentos 129Índice em inglês 131Instruções para os autores 133

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FrutodeumainiciativaconjuntadosGruposdeFilosofiaAlemãdoDepartamentodeFilosofiadaUSP,osCadernos de Filosofia Alemã,publicadosdesde1996,pretendemconstituirumespaçoparaapublicaçãodetextos,ligadosàfilosofiaeaoidiomaalemães,quecolaboremparaodesenvolvimentodeumdiálogofilosóficovivo,capazdefazerjusaomote,entrenósconsagrado,dafilosofiacomo“umconviteàliberdadeeàalegriadareflexão”.

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Editorial

Dando continuidade à proposta de estimular o intercâmbio inte-lectual com nossos pares alemães, o novo número dos Cadernos de Filosofia Alemã começa com um artigo de Margit Ruffing, da Johannes Gutenberg Universität Mainz, que esteve no Brasil no ano passado, participando de colóquios em Marília, São Carlos e São Paulo. Propondo-se a trabalhar as tensões da filosofia schopenhaueriana, o seu texto analisa tanto a teoria do conhecimento como a relação entre ética e estética, procurando mostrar em que medida tais tensões não só não comprometem, como acabam por ser necessárias ao sistema schopenhaueriano.

No segundo artigo, Adelino Braz, doutor em filosofia pela Universi-dade de Paris I, analisa a hipérbole kantiana do povo de demônios no intuito de mostrar como o direito permite estabelecer a sociabilidade civil sem ter de eliminar o mal radical. Embora positiva, neste sentido, a autonomia do direito, o texto de Braz sugere que o direito acaba por ter, de um ponto de vista mais geral, a função intermediária de preparar-nos para o advento de uma comunidade ético-civil, o que somente seria possível com a concor-dância também interior de nossas ações com a lei moral.

O texto seguinte é do argentino Daniel Lessere, pesquisador do CONICET/Buenos Aires, que também esteve no Brasil no ano passado, participando de um colóquio na USP, e tematiza a questão da linguagem na Crítica da razão pura, mais especificamente na Analítica dos Conceitos. Procurando mostrar como a questão da linguagem seria essencial nesse texto kantiano, Lessere se posiciona assim contra aqueles – sabidamente numerosos – que vêem em Kant um filósofo que não se teria preocupado suficientemente com a linguagem, o que implicaria a sua inatualidade face à virada linguística.

Rúrion Soares Melo, doutor em filosofia pela USP, é quem assina o quarto texto deste número, cujo tema é o conceito de político em Marx. Percebendo um gradativo enfraquecimento desse conceito na obra do filó-sofo alemão, Melo propõe uma recuperação do sentido dado a ele nos seus textos de juventude, permitindo assim uma reatualização mais frutífera da obra marxiana, no contexto da teoria crítica, com vistas a pensar questões políticas da atualidade.

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O último artigo do número, enfim, trata da questão da música em Schelling. Assinado por Fernando de Moraes Barros, professor da Uni-versidade Federal do Ceará, esse texto procura mostrar o caráter inovador do pensamento schellinguiano no que diz respeito à música, vista por ele, na qualidade de “arte dos sons”, como uma nova e importante forma de saber – o que abriria caminho para reflexões como as de Schopenhauer e do primeiro Nietzsche em torno do papel da música como forma privilegiada de interpretação do mundo.

Dando continuidade também à proposta de favorecer a reflexão e o diálogo sobre a língua alemã, através da tradução de textos clássicos, este número traz a tradução, feita e apresentada por Bruno Nadai, do texto Começo conjetural da história humana, de Kant. Trata-se de um opúsculo bastante peculiar do filósofo de Königsberg, já que adota a Bíblia como “mapa” para estabelecer essa gênese conjetural das disposições humanas fundamentais. Como a apresentação de Nadai procura mostrar, porém, não se trata de uma recaída teológica ou algo do tipo, mas apenas o recurso a um texto da história humana cuja simbologia seria indicativa de momentos decisivos da evolução da razão.

O número se encerra então com uma resenha de Ernani Chaves, da Universidade Federal do Pará, sobre o livro Shakespeare, o gênio original, de Pedro Süssekind. O professor Ernani Chaves procura mostrar que não se trata apenas de mais um livro sobre o grande dramaturgo inglês, mas antes a reflexão, a partir do caso de Shakespeare, sobre a questão tipicamente fi-losófica – e tipicamente alemã – do gênio ou, no caso, do “gênio original”.

E a menção a essa forma de abordar o autor clássico acaba por fornecer-nos um bom mote para o encerramento deste editorial: sob a variedade de perspectivas contidas nos textos aqui apresentados ao leitor, é possível perceber esse mesmo intuito reflexivo, a guiar-nos na leitura dos clássicos alemães. Pois trata-se, segundo o espírito destes Cadernos, não de reconstruí-los segundo a letra do texto, mas sim de neles procurar questões, conceitos e ângulos de reflexão capazes de iluminar também as nossas mais pungentes indagações contemporâneas.

Cadernos de Filosofia Alemã – Editorial nº 13 – p. 9-10 – jan.-jun. 2009

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Margit ruffing e Johannes gutenberg

O sujeito do conhecimento – o objeto da ação:

a “passagem”, identidade e diferença na filosofia de Arthur Schopenhauer

Margit RuffingJohannes Gutenberg Universität – Mainz

Resumo: No presente texto, bus-carei levar a sério as tensões oumesmo contradiçõesdafilosofiadeSchopenhaueretentareicompreen-dê-lasaoinvésdecensurarofilósofopor irracionalidadeou inconsequên-cia. A primeira parte do texto ana-lisa a teoria do conhecimento deSchopenhauer sob os aspectos dadiferençaedapassagem,easegun-dainvestigaoliameentreaéticaeaestéticabuscandoumarespostaparaaquestãodaidentidadepresentenadeterminação da compaixão comoexpressãodoconhecimentodauni-dadedavontade.

Palavras-chave:conhecimento,ação,identidade,diferença,passagem.

Abstract: In the present text, I’lldwell upon the tensions or con-tradictions in the philosophy ofSchopenhauer, and I’ll try to un-derstand them instead of accusingthe philosopher of irrationality orinconsequence.Thefirstpartofthetext investigates Schopenhauer’stheory of knowledge under the as-pectsofdifferenceandpassage,andthe second part investigates theliason between etchis and aesthe-ticssearchingforananswerforthequestion of the present identity inthedeterminationofcompassionasan expression of the knowledge oftheunityofthewill.

Keywords:knowledge,action,iden-tify,difference,passage.

Averdadeirapesquisaacadêmicauniversitáriadafilosofiade Schopenhauer não tem mais do que um quarto de século;RudolfMalterfoioprimeiroqueconsiderouosistemaschopen-haueriano como um derivado da filosofia transcendental. Suamonografia sobre o transcendentalismo de Schopenhauer, de1991�,assimcomosuapequenaintroduçãoàobradopensador,

1. Malter, R. Arthur Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens.Stuttgart-BadCannstatt:Frommann-holzboog,1991.

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Der eine Gedanke�, apresentam uma interpretação convincenteda metafísica da vontade, pondo em relevo a conexão entre ateoriadoconhecimentoe a éticada compaixãocomosoterio-logia. Buscarei continuar a tradição fundada por Malter, umatradição de pensadores que levam a sério as tensões ou mes-moascontradiçõesdafilosofiadeSchopenhauer,equebuscamcompreendê-las ao invés de censurá-lo por irracionalidade ouinconseqüência.

Estaéarazãoporqueescolhiostermos“passagem”,“identi-dade”e“diferença”paracaracterizaraestruturaextremamentedua-listadosistema,porassimdizerambígua,masnãonecessariamen-tecontraditória,quederivadofatodequeSchopenhauerdefineacoisaemsiafirmativamente.AocontráriodeKant,Schopenhauernãorenunciaadefiniroconhecimentodoessencialaque–segun-doele–aconsciênciahumananãotemnenhumacessoracional.Emboraavontade,essênciadomundo,sóexistaemsuasaparên-cias,comorepresentação,épossível,segundoSchopenhauer,ad-quirirumsabernão-representativoqueatravessaoutranscendeaaparência.Porumlado,estepensamentofilosóficoreclamaaiden-tidadeindissolúveldoessencialedaaparêncianoplanometafísi-co,eaomesmotempo,poroutrolado,arealidadedosofrimentonaexistênciahumanasóseexplicapeladivergênciafundamentaldoprincípiodoquereresuasobjetivações,pelasquaissomenteoprincípiopodeserreconhecido.Aquestãodadiferençapõe-seemrelaçãoàessência–avontade–eàaparência–asrepresentações–assimcomoemrelaçãoàsprópriasfaculdadesdeconhecimento,nointeriordasrepresentações.Mas:sóháummundo!Aidenti-dadedodiversopermanece,portanto,umaestruturaprincipaldosistema.Oconceitode“passagem”,nosentidode“transição”,pa-rece-meaptoparaexplicaranecessidadedeumacríticadarazão,porassimdizer;poisédifícilvercomosedáaconexãodapartequerentecomapartecognoscentedaconsciênciahumanase seaceita a teoria epistemológica de Schopenhauer, que não prevênenhumapermeabilidadeentreasfaculdadesdeconhecimento.

2. Malter,R.Der eine Gedanke. Hinführung zur Philosophie Arthur Schopenhauers.Darmstadt:WissenschaftlicheBuchgesellschaft,1988.

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Margit ruffing e Johannes gutenberg

O próprio Schopenhauer não fala jamais de passagem noplanoestruturaleformal,assimcomoevitaaterminologiadistin-tade“diferença”e“identidade”.Assim,otítulodaobracapitalO mundo como vontade e representaçãoevidentementedescreve,paranós,aestruturadualistaquecaracterizatodoosistema,enquanto,segundoSchopenhauer,essetítuloexprimeaunidadeessencialdoseresuasaparências–averdademesma.Comoelementosestru-turaiseformaisdareflexãoschopenhaueriana,osaspectosdadife-rença,daidentidadeedapassagem–comofigurasdopensamento–sãoaptosaexplicarumateoriadaconsciênciabaseadasobreocarátersistemáticod’O mundo como vontade e representação.Nestecontexto,oterceirolivrodaobracapital,aestéticadacontempla-ção,desempenhaumpapelchave.

Na primeira parte do texto, portanto, eu gostaria de falardateoriadoconhecimento,àqualpertenceoconhecimentodasidéias,sobosaspectosdadiferençaedapassagem.Oliameineren-teentreaestéticaeaéticanafilosofiadeSchopenhauer,emumasegundaparte,dáensejoabuscarumarespostaàquestão:“Comoépossíveloconhecimentodaidentidade?”nodomínioético.Poisestaquestãoédeumaimportânciaextraordinárianoquedizres-peitoaoplanodafilosofiapráticadeSchopenhauer,queconsideraa compaixão como possibilidade da moralidade do homem – acompaixãocomoexpressãodoconhecimentodaidentidade.

I. O problema da diferença e a “passagem” na teoria do conhecimento de Schopenhauer.

Eugostariadecomeçarminhasconsideraçõescomumaci-taçãopelaqualnoscolocamosimediatamentenocoraçãodafilo-sofiadeSchopenhauer:

Averdadeéqueosdadosimediatosdenossaconsciênciacom-preendemumaexistênciasubjetivaeumaexistênciaobjetiva,oqueéemsiequesóédopontodevistadeoutro,umsentimentode nosso próprio eu [moi] e um sentimento de outra coisa, eestes dados se apresentam a nós como sendo tão radicalmen-tedistintosquenehumaoutradiferençapoderiasercomparadaàquela.Cadaumconheceimediatamenteasi-mesmo,edetodo

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orestosótemumconhecimentomediato.Eisofato;eistambémoproblema.�

EstacitaçãoajudaaesclareceraoposiçãoqueexisteentreosaspectosdooutroedomesmoemSchopenhauer,oposiçãocha-madapor elemesmode“problema”ou ainda“fato”.Este subs-tantivofrancês,ofait[fato],exprimemelhorqueapalavraalemã(Tatsache)quesetratadeumacoisaqueé feita:estadiferençanãoésomenteumfatodeconsciência,maséfeitapelaconsciênciaou,maisexatamente,pelaconsciênciaintelectual.Éumadiferençatalcomodadaoriginalmentenaconsciênciahumana,porquefeitapornossoconhecimento:conformeotextocitado,oconhecimentodesiéimediato,enquantooconhecimentodooutroémediato.Masadiferençaentreaexistênciasubjetivaeaexistênciaobjetiva,entreaconsciênciadesieaconsciênciadeoutrascoisas,estadiferençaé,paraSchopenhauer,apenasumapartedaverdade:pois,sobreoplanometafísico,sóhá“oum”,eesteserúnico,aessênciadetudo,éavontadedeviver,oquerer-viver.

Schopenhauer está convencido de que cada indivíduo quetemacapacidadederaciocinarserendeàevidência,sejaporcon-sideraçãoempírica,sejaporreflexãoprofunda,dequeháumaen-tidadeúnica,internaecomumatodososfenômenos.Masoqueantesnosparececlaroeevidentenãoéaentidade interna–aocontrário,éomundoexterior,ascoisasforadenósmesmos,osob-jetosnoespaço.Queascoisasmaisafastadasdarealidadeessencialpareçamasmaispróximasdoconhecimentoéumerrohumano.Arazãodesteerroestánanaturezadenossoconhecimento,precisa-mentenadecomposiçãodarepresentaçãodosujeitoedoobjeto.Emoutrostermos,reconhecersignificasersujeitoparaumobje-toeserobjetoparaumsujeito;emcasodeconhecimento,existesempreumcognoscenteeumconhecido,ocognoscentenãosendojamaiscapazdeseconhecerasimesmo.Anaturezaimediatadenossaintuição,aclaridadedareflexão,emsuma,aevidênciainte-lectualnospareceexprimirarealidade:acreditamosreconheceras

3. Schopenhauer,A.Le monde comme volonté et comme représentation.Trad.deA.Burdeau.Paris:PUF,1966,capítulo18dosSuplementos,“Commentlachoseensoiestconnaissable”[Comoacoisaemsiécognoscível],p.886.

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coisascomoelassão,ascoisas-em-si.SegundoSchopenhauer,esteéocaráternaturaldarepresentação:osensocomum,assimcomoopensamentocientífico, sóécapazdereconhecerapluralidade(Vielheit), istoé,adiversidade,edenotarumencadeamentoderelações causais – o“véudeMaia”, omundo como representa-ção.Pois,conformeateoriadoconhecimentodeSchopenhauer,éoentendimentoqueconstróideumsógolpeomundo,ligandocoisassingularescomocausaseefeitos.Éportantoointelecto,asfaculdadesdoentendimentoedarazãoreflexionante,quecriamadiferença.Elesrespondemàquestão“porque”,masnãocompre-endem“oquê”domundo–comodizSchopenhauer.

Segundoele,o intelectoea razão têmfunçõesclaramentedistintaseevidentementedefinidas:oentedimento(Verstand) éafaculdadedeintuição(Anschauung)queconheceacausalidade;arazão(Vernunft),comofaculdadedereflexão,produzosconceitos(Begriffe) para“conservar”oconteúdodoconhecimentointuitivo.Apesardadiferençaentreafunçãointuitivaeafunçãoconceitualdosmodosdeconhecimento,háentreelasalgocomum:oenten-dimento,assimcomoarazão,criamapenasumarepresentaçãodomundo–dominadapeloprincípioderazão,divididaemsujeitoeobjeto.Osujeitocognoscenteeativoapresentaerepresentaascoi-sassingulares,compõe-nasnomundoencadeando-ascomocausaeefeito.Oresultadodaatividadedessasfunçõesintelectuaiséoquechamamosderealidade–emalemãoWirklichkeit(Wirkung (efeito)!)–,oquerepresentamosna intuiçãodoentendimentoenareflexãodarazãocomo“encadeamento”derelaçõesespaciaisetemporais,oquequerdizerrepresentarouconhecer.

Ameuver,essasfaculdadesanaliticamenteseparáveisquefor-mamaconsciênciaintelectualnãodevemserconsideradascomodesempenhandoumaúnicafunção,mesmoquandoSchopenhauerdizrigorosamentequeoconhecimentodacausalidadeseriaaúnicafunçãodoentendimento.�Aocontrário,éprecisoobservaracom-plexidadedessasfaculdades–emcorrelaçãocomacausalidadedo

4. Cf.Schopenhauer,A.Die Welt als Wille und Vorstellung.Vol.I,§4.In:_____.Sämtliche Werke.Org.deArthurHübscher.Wiesbaden:Brockhaus,1972,vol.II,pág.13.

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ladodoobjeto–paraexplicaropensamentoúnicodequeomundoé autoconhecimentoda vontade.A frase schopenhaueriana “Die Welt ist Selbsterkenntnis des Willens” (“O mundo é auto-conheci-mentodavontade”)�enunciaoquesignifica“servivente”–atoma-dadeconsciênciadesi,desimesmo,peloquerervivernãocons-ciente.ÉoacontecimentocomplexodoautoconhecimentodonãoconscienteatravésdomundodarepresentaçãodisfarçadaquelevaSchopenhauer a comparar seu sistemaaumorganismovivo,noqualcadapartecontribuiparaofimdotodo.Maslá,ondenãosepodefalardecomplexidade,éprecisofalartambémdepassagens,oqueeugostariadeanalisaragoradeformamaisnuançada.

Oobjetivofinaldaconsciênciaintelectual–queéaomes-mo tempo o dever da filosofia – é, segundo Schopenhauer, oconhecimentoessencialdomundo,cujopontodepartidaéto-madonecessariamentedarepresentação,portantodosobjetosdaexperiência. É a intuição que é “competente” para o conheci-mentodosobjetos;oconhecimentoabstrato, aoqualnãocor-respondenenhumobjetorealou,maisexatamente,aoqualnãocorresponde mais objeto real, este conhecimento é a tarefa darazão.Aimediaçãopoderiaserconsiderada,enquantomododecertezaporsimesmo,ocritériodaqualidadedoconhecimento:elaindicaacongruênciadaexperiênciaaoconceito.Aimediaçãoéumtraçocaracterísticodoconhecimentopeloentendimentointuitivo.A intuição se apresenta comogarantia de simesma,segundoaspalavrasdeSchopenhauer.

Atéaqui,háduasperspectivasdepassagem:1)háumapassa-gemnacomposiçãodoconhecimentoobjetivo;e2)háumaoutranointeriordaconsciênciasubjetiva.Oqueissosignifica?

Ad1)SegundoSchopenhauer,oentendimentoéocorrelatosubjetivodamatéria,eaprópriamatériaéoequivalentedacausali-dade.Oentendimentoeacausalidadesão,portanto,oaspectosub-jetivoeoaspectoobjetivodeumarepresentaçãodefinidaporeles.

5. Cf.Schopenhauer,A.Die Welt als Wille und Vorstellung.Vol.I,§71.In:_____.Sämtliche Werke,vol.II,pág.485;eIdem,VolI,“Críticadafilosofiakantiana”.In:_____.Sämtliche Werke,vol.II,pág.506.

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Poder-se-iainterpretaraidentificaçãodoentendimentoedamatériademodoqueSchopenhauerpreparassesuametafísicadeumavontadecompreendidacomoessênciaquesecorporifica,quesóexistematerialmenteobjetivada.Esteprojetofilosófico,aexpli-caçãodoconhecimentometafísico,dálugaraumaconcepçãodeintuiçãodeumaimportânciaextraordináriaparaosistemainteiro.Aintuiçãosebaseiasobreaapercepçãosensual,eestaécondicio-nadapeloqueSchopenhauernomeia“Empfindung” (sensação),aqualcontémadeterminaçãototaldoobjetocomoimpressãoin-tegrante.Aintuiçãoéaretomadadasensaçãoprecedentenopre-sente,suare-presentação,istoé,arepresentaçãodoconteúdosen-sualnaconsciência,eeisaíaprimeiratomadadeconsciênciadesidosujeitopeloobjeto.–Aomesmotempo,aintuiçãoconstituiofundamentodosconceitosabstratos,masoconhecimentoabstra-toeconceitualdoobjetonãoémaisimediato,eportantomenoscerto.Éumaconseqüênciaevidenteque,segundoSchopenhauer,arazão–emvirtudedesuafaltadeimediatez–é,porassimdizer,dequalidadesecundária;suafunçãocriadoraeprodutoraéneces-sariamentereligadaàintuiçãoedeladepende.

Resumamos este primeiro aspecto da passagem ou transi-ção:oentendimento,competenteparaconheceroobjetoconcretocomoelenosédadoaossentidos,tornapossívelapassagemdodesconhecidooudoquenãoéaindaconhecidoàconsciência:asensaçãosemconsciência(otermo“inconsciente”éantesutilizadopelapsicanálise)correspondeàunidadeherméticadoobjeto,maspertenceaosujeito,noqualoentendimentoformaativamenteaintuição.(Asensaçãoeaintuiçãosódiferemumadaoutrateo-ricamente,formandoumaunidadenarealizaçãodaconsciência).Adependênciadaintuiçãoeaperdadaimediateztornamarazãofalhaeexpostaaerros.Mas, tambémsegundoSchopenhauer, éa razãoque tornapossíveloconhecimentofilosófico,produzin-doosconceitosabstratosdequeafilosofiatemnecessidade.Issosignificaquea razãodeve terumacessoaoessencialatravésdomundo representativo,que consideramos ser a realidadeporqueoentendimentoaconstituicomototalidadederelaçãoescausais.Esteacessodarazãoaoconhecimentodaessêncianoslevaaose-gundoaspecto.

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Ad2)Asegundapassagem,nointeriordaconsciênciasubjeti-va,encontra-senaconsciênciadesimesmo.SegundoSchopenhauer,aconsciênciadesisignificaa“percepçãodosentidointerior”porcontrasteàpercepçãodomundoexteriorpeloentendimento.Masésomenteaconexãodoconhecimentoexterioredoconhecimen-tointeriorquetornapossível“acompreensãodanaturezaedesimesmo”.�Trata-seaqui,portanto,daconexãoentreavontadeeoconhecimentocujoconjuntoéoquesechamaconsciênciadesi.Estaconsistenoconhecimentodosmovimentosnãofigurativosdavontadepelareflexão,istoé,afaculdadedarazãoreferindo-seàsafecçõesdavontadenaconsciênciadesi–refletindo-as,defini-do-as,concebendo-as.Éjustamenteoconhecimentoabstratoquedáacessoaosconteúdosnãofigurativosdaconsciênciavolitiva.

O§11doprimeirolivrodeO mundo como vontade e repre-sentaçãopoderiaservirparaesclareceressaperformanceracionaldesíntese.Demodoumtantosurpreendente,nocontextodesuasexplicações sobrea faculdadeda razão, cuja expressãoéo saber(§19), Schopenhauer fala do sentimento (Gefühl). Segundo suasexplicações,a razãodeveria sercapazdeconceberosconteúdosapenassentidosdaconsciência,istoé,deencontrarparaelescon-ceitosapropriados.PoisSchopenhauerdiz:casoarazãonãotenhaconseguidoainda,nemdemodoalgumconsigaconceberumcon-teúdovolitivo,elaaplicaaeleoconceitoindefindode“sentimen-to”.Eugostariade interpretaresteparágrafodemaneiraquesetenhadesuporque:1.arazãotemumacessodiretoaosconteúdosouprocessosirracionais,produzidospelaafecçãodavontade,e2.arazãoécapazdetransformá-losemsaber.Poroutrolado,éara-zão,enãooentendimento–nestecasoignorado,porassimdizer,pelarazão–,quenostornacapazesdeconceberossentimentos.Issodemonstraapermeabilidade(Durchlässigkeit)eadinâmicadoquereredoconhecer:algoqueumateoriadoconhecimentodevepreverparapoderexplicaraconexãodafaculdaderacionalcomaconsciênciadesiirracionalesentida.

6. Schopenhauer,A.Über den Willen in der Natur, Phys. Astronomie (“Sobreavontadenanatureza,Astronomiafísica”).In:_____.Sämtliche Werke,vol.IV,p.91.

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No contexto da segunda parte da epistemologia schopen-haueriana–noterceirolivro,sobreasrepresentaçõesindependen-tesdoprincípioderazãosuficiente–éprecisofalardocaráterdeconhecimentodaarte,portantodoconhecimentorepresentativoporintuiçãodasidéias.Oconhecimentointuitivodoentendimen-tolevanormalmenteaosaberdomundomaisoumenosabstra-to,maisoumenoscientífico,maselepermanecesempreligadoàcompreensãoeàaplicaçãodoprincípiocausal.Issoquerdizerqueelepermanecedependenteerelativo–e,assim,nãoéapropriadoacompreenderverdadeiramenteasignificaçãodomundoedavidahumana.Éissoqueodistinguedarepresentação“independentedoprincípioderazãosuficiente”,cujapossibilidadeerealidadesãodemonstradas pela contemplação estética, como Schopenhauerexpõenoterceirolivrodesuaobracapital.

A razão desempenha um papel significativo também nocontextodoconhecimentodasidéias:emminhaopinião,acon-templação estética, como modo de conhecimento cujo objeto éa idéia, éonó centralde transição,por assimdizer,do sistemaschopenhaueriano.Apercepçãodasidéiasnecessita–comoper-cepçãodaessênciametafísica–dasuposiçãodocaráterunificadordasfaculdadesdeconhecer,comportandoumaautarquiarelativadarazão.

Falando da faculdade de representação independente dasrelaçõescausais,Schopenhauerutiliza,nocontextodaestética,otermomenschilcher Intellekt[intelectohumano],servindoapalavraIntellekt,comosinônimodeVerstand (entendimento),paraassina-larseucaráterintuitivo.Oadjetivomenschlich,humano,assinalaadiferençaemrelaçãoaosanimais,que–segundoSchopenhauer–tambémsãodotadosdeentendimentoouintelecto.Estadife-rença consiste então na intelectualidade humana específica: suaracionalidade, como condição da ponderação (Besonnenheit). Acapacidadehumanadeponderaçãoéoqueimporta:umasituaçãomentalindispensávelparaoconhecimentofilosófico,assimcomoparaoatomoral.(Voltareiaissomaisadiante.)

Éo“intelectohumano”queproduzoconhecimentoextraor-dináriodacontemplaçãoestética.Elepoderiasobrepujaraligaçãocomarelacionalidadecausalparatranscenderaumacompreensão

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domundonãolimitadaporrelaçõesespaço-temporais,umconhe-cimentouniversalquepartedoobjetomaschegaasimesmo.Poisaidéiaémaisqueumobjetoconcreto:elatornapossívelacom-preensãodaprópriavontadenamedidaemqueésua“objetidadeadequada”(adäquate Objektität).Adeterminação(definiçãoper-feita,durchgängige Bestimmung)doobjetocontempladosechama“ideal”porqueosujeitoquecontemplaengendraumarepresen-tação“objetiva”,istoé,umarepresentaçãodevaloruniversalein-condicionada.EsteacontecimentomentaléoqueSchopenhauerentendepor“contemplaçãoestética”.

Oconhecimentodasidéiasédefinido,portanto,pelamaiorproximidadepossívelaoobjetoepelamaiordistânciapossíveldosujeitoemrelaçãoàVontade.Acontemplaçãoestéticapodeserapreendida como um processo, como condição mental e comomodo de conhecimento, em todo caso como racionalidade quenãoselimitaaconceitos,masostranscende(…asignificaçãode“ponderação”noplanoepistemológico).

Ocarátertransitóriodoconhecimentoestéticoaparecenessatranscendênciaquesemanifestacomo“transformaçãonosujeito”.Aconsciênciadesiultrapassaaseparaçãoentresujeitoeobjeto,suportandoatensãoentreaproximidadeeadistânciadoconheci-mentoaoquerer.Acontemplaçãoé,porassimdizer,aconsciênciadeumaintensidadeextraordináriadaidentidadenomundodare-presentaçãoalienada.Elaécriadapeloobjetoideal,portantopelavontadeidealmenteobjetivada,eporsuapresençanaconsciênciahumana,umapresença–ditometaforicamente–energética.

Aconcepçãodaidéiacompreendedoisaspectoscomouni-dade:éprecisopensá-lacomoseo sujeitocognoscentepudesseadotaropontodevistadaVontade–apesardocaráterexclusivodaconsciênciadesirefletidaevolitiva.Schopenhauerdefineaidéia,porumlado,comojede bestimmte und feste Stufe der Objektivation des Willens [cada grau determinado e fixo da objetivação daVontade]�,poroutrocomodie unmittelbare Objektität des Willens

7. Cf.Schopenhauer,A.Die Welt als Wille und Vorstellung.Vol.I,§25.In:_____.Sämtliche Werke,vol.II,pág.154.

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auf einer bestimmten Stufe [aobjetidadeimediatadaVontadeemumdeterminadograu].�Notemosamudançadopontodevista!Aexpressão“objetidadedavontadeemumdeterminadograu”podeserinterpretadacomorealizaçãodafenomenalidadepotencialdavontade,demaneiramaisoumenosintensiva,nofatodesuaobje-tivação.Dopontodevistadasobjetivações(àsquaisnósmesmos,sereshumanos,pertencemos),encontra-se,correspondenteaseusgraus,umagradaçãodeconsciência,eissosignificaumagradaçãodeautoconhecimentoeautoconsciênciadavontadecorreponden-teàgradaçãodeacessibilidadedosaberao“quêdomundo”pormeiodasobjetivações.

Paraconcluirestapartedotexto,explicareiaindaumavez,demaneiraresumida,aposiçãoda idéia.Emrelaçãoàtemáticadatransição,aidéiatemumaduplafunção:elaindicaapassagemdacoisaemsiàaparência,assimcomoapassagemdaintuiçãodointelecto(Verstand),ligadoàsrelaçõescausais,àintuiçãoideal,quefazcomqueo“intelectohumano”apreendaouniversaleoessen-cialnaapariçãosingular.Consequentemente,aidéiasedistinguedasoutrasrepresentaçõesporseucarátertransitório:elaindicaaúnicapossibilidadedetranscenderarepresentação–separando-sedelasem,aomesmotempo,abandoná-la–paraadquirirumsaberessencialdomundoedenossaexistêncianele.Aconsciênciaesté-ticaextremamenteintensiva,masinstável,encontra-senotopodagradaçãohierárquicadaobjetividadedaVontade.Aconsciênciaestéticapertence apenas ao“intelectohumano”, potencialmentegenéricoeuniversal,masapenasrealizávelenquantosujeitopurodoconhecimento.Aidéiadeindivíduosignificaassimoconhe-cimento de si da vontade, que se realiza originariamente comocontemplaçãoestéticaantesdepoderserrefletidafilosoficamente.“Originariamente”querdizeraquiomesmoque“apriori”,i.e.an-tesdetodaaparição,poisaidéiaparticipadavidaessencialaoade-riràVontadecomosuaforma,condicionandoarealizaçãodesuasconformações(Objektivationen, “objetivações”)comosuaformabi-lidade(Objektität, “objetidade”).Aomesmotempo,aidéiaestáem

8. Cf.Schopenhauer,A.Die Welt als Wille und Vorstellung.Vol.I,§34.In:_____.Sämtliche Werke,vol.II,pág.210.

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conexãocomarazão:nosmanuscritos(HN)encontra-seumape-quenafrasequeindicaestaconexãodaidéiaàrazão,aidéiasendodescritacomo“fantasmaempresençadarazão”�queseriaprecisoapreendernãocomoforçanatural,mascomoforçaqueproduziriaefeitos não causais nanatureza–umaexpressão contraditóriaoumística–,umaforçaqueSchopenhauerchamaria“mágica”,comoelemesmodiz,seestaterminologiafossefilosoficamentecorreta.�0A independência da idéia face ao princípio de razão suficiente,istoé,àcausalidade,fazcomqueaidéiaseafastedointelecto(dafaculdadedacausalidade)e seaproximeda“presençada razão”,umarazãoqueécapazdesuperaroutranscenderarealidadedadapelointelectocomoodemonstra,porexemplo,suacapacidadedeconcebersentimentos.

Acompreensãodesimesmonãosefazpelointelecto,mas“do interior”: ela nos chega. A partir disso, esta compreensãoconsisteemreconheceraidentidadedavontadeedocorpohu-mano,chamadoobjetividadeimediata.SegundoSchopenhauer,estesaberdaidentidadedavontadeedocorpohumanoéa“ver-dadefilosófica”,pois a compreensãode simesmoéaomesmotempoacompreensãodavontadecomoaentidadeessencialdomundo,achavedaexplicaçãometafísicadavidaquetranscendedoconhecimentoin concretoaoconhecimentoin abstracto–comaajudadarazão.

Vimosagoraqueecomoaconcepçãodeidéiadesempenhaumpapelexcepcionalnametafísicadavontade:elamarcaoco-nhecimentodapassagem,doprocessodeobjetivaçãodavontade,desuaaparição(sebemqueostermos“passagem”e“processo”ex-primematemporalidadeeaespacialidade,sobreasquaiséincor-retofalarquandoháreferênciaàvontade).Nodiscursofilosófico,ondeadiferenciaçãopredomina,aartecomomododeconheci-mentoformaumaexceção.SegundoSchopenhauer,nacontem-plaçãoestéticaohomemesqueceseucaráterdevontade–etodas

9. Schopenhauer,A.Der Handschriftliche Nachlaβ in fünf Bänden.VolI.Org.deArthurHübscher.München:DTV,1985,p.130ess.Ofragmentoindi-cado,nap.130,éonº226.

10. Cf.idem,ibidem.

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asconseqüênciasdestecaráter:osofrimentoemtodasassuasfa-cetas.Entretanto,éumconhecimentoessencialquetemlugarnacontemplaçãoestética:acompreensãodasidéiascomoasúnicasobjetivaçõesadequadasdavontade.Emoutrostermos,épelacon-templaçãodebelosobjetosdearteoudeobjetossublimesdana-turezaqueohomemcompreendenapráticaqueoconhecimentopodedominaravontade.Aindaqueasituaçãodacontemplaçãosejalimitada–elanãopodeseriniciadaouprolongadaintencio-nalmente –, ela é de uma importância fundamental no que dizrespeitoàteoriadoconhecimentoschopenhaueriana:avontadeéamaisafastada,porqueéesquecida,rejeitadapeloconhecimento,maséaomesmotempoamaispróxima,porqueécompreendidaemsuasrelaçõesideais,objetivadademaneiraadequadanasidéiasque conservam o caráter intemporal e não espacial da vontade.Trata-se,portanto,deumaformadeconhecimentointelectualdoentendimentoqueproduzintuições.Masesteconhecimentoes-tético,a intuiçãoideal,é liberadodarelatividadecausal,porumladopelaidealidadedoobjeto,poroutropelafaculdadedoenten-dimentodeesquecerapredominânciadavontade.

Entretanto–postadeladoadiferença–,noconhecimentoimediatodesimesmoohomemfazaexperiênciadesuaidenti-dadeessencial.Estaexperiênciaéacondiçãodoatomoral,queSchopenhauer analisa como fato empírico, demonstrando umamoralidadehumanadependentedoconhecimentosemqueoho-memtivesseapotênciadeprovocá-laconscientemente.Issoabreaquestãodasegundaparte,quenoslevaaoplanodafilosofiaprá-tica,daéticadacompaixãoexplicadaporSchopenhauernoquartolivrodesuaobracapital.

II. Como é possível o conhecimento da identidade?

Aduplicidadedavontadeedoconhecimentoressurgeclara-mentenafraseseguintedeSchopenhauer.Éassimque“Omun-doéconsciência/conhecimentodesimesmodavontade”.Alémdisso, encontra-se aqui a determinação do mundo de maneiracomprimida,comoconhecimentoecomovontade.Estesúltimossãopostosemrelação,tomadosemconjuntoenãoapenascomoadição(“omundocomorepresentaçãoecomovontade”).Oco-

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nhecimentodesimesmodavontadesignificaqueháapossibili-dadedavontadeconsciente–nooupeloserhumano.Avontade,caracterizadacomocega,portantonãoconsciente,podesercom-preendidaporumadesuasobjetivações,oquesignificaqueelasereconheceasimesma.Demaneiramaisconcreta:ohomemtemaconsciênciadesimesmocomoservolitivoeserquereconhece.Oconhecimentodesimesmoéimediato,semfazeradistinçãoentresujeitoeobjeto;entretanto,trata-seapenasdeumsaber.Vistoquerepresentarquerdizerreconhecer,segundoSchopenhauer,osaberimediatodesimesmonãopodeserumconhecimentocomoca-ráterderepresentação,masumconhecimentototo generediverso.Comoeleépossível?Sósepodeconstatarqueeleestápresentecomoumdadodaconsciência.NocomeçodosegundolivrodeO mundo como vontade e representação,Schopenhauerescreveque“achavedoenigmaestádadaaosujeitodoconhecimento,manifestocomoindivíduo”.EstachaveéaWille[vontade].Ohomemcom-preendeasignificaçãodesuaindividualidadedaseguinteforma:cadaatividadedocorpoéexpressãodaprópriavontade.Portanto,éacorporalidadequecontémoconhecimentodavontade.��Ditodeoutromodo,oserindividualnãoéacoisaemsi,masacoisaemsiserealizasobaformadaindividualidade(pelocorpo,queexisteapenasindividualmente).

Assimcomooquererviveréoprincípiofundamentaldame-tafísica,eleétambémoprincípiodaexistênciahumana:nocasodaobjetivaçãodavontadenoserhumano,háadiferençaentreavontadenãoconscienteesuaprópriarepresentaçãoconsciente;nopresentecaso,acoisaemsi,oprincípioúnico,torna-seindivíduojánoplanodasidéias.Oresultadoéumpontodevistaextraor-dinário: a individuação como perda da identidade! A alienaçãoessencial consiste, portanto, no fato de que a entidade única serealizapelaindividuação.SchopenhauerutilizatambémotermoSelbstentzweiung davontade:adesuniãodesimesma.

11. Cf.Schopenhauer,A.Die Welt als Wille und Vorstellung.Vol.I,§18.In:_____.Sämtliche Werke,vol.II,pág.120:“avontadeéoconhecimentoa priori docorpo,eocorpooconhecimentoa posteriori davontade”.

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Aperdadeidentidadedavontaderevelaaexplicaçãometafí-sicadosofrimentoqueécaracterísticodaexistênciahumana,avidamesma.Poroutrolado,aconsciência,queconsideraadiversidadeeamultiplicidadedascoisascomosendoaentidadeverdadeira,au-mentaessesofrimentoexistencial.Istoé:asaspirações,osdesejos,ascarênciasdavida,consistemnaimpossibilidadedesatisfação.Éacondiçãohumanafundadasobreaverdademetafísica:avontadenãosereconhecenassuasprópriasaparênciasou,emoutroster-mos,eladominaoconhecimentodeterminando-oeutilizando-oparaseusprópriosinteresses.Arazãoesuasfunçõesestãosobasordensdavontade,elas são instrumentalizadas.Oerroda razão,sua tendênciade superestimar-seao tomar-sepela totalidadedarealidade,sãoascausasprincipaisdosofrimentodavida.

SegundoSchopenhauer,porém,oconhecimentointelec-tualsubordinadoàvontadeimplicaapossibilidadedeliberar-seevoltar-secontraavontade,reconhecendo-aecompreedendo-acomofontedesofrimento.Estaposturadoconhecimentodiantedavontadeéapenasumaposturadavontadediantedesimes-ma,aqueSchopenhauer tambémchamasupressão(Aufhebung)dadesuniãooualienaçãodavontadeconsigomesma.Asupres-sãodadesuniãosignificaapenasacompreensãodavanidadedoprincipium individuationis,oprincípioquecausaadiferençadasaparências.Paradoxalmente,osaberdavanidadedaindividualida-desedáapenasnaconsciênciadoindivíduohumano,namedidaemqueoconhecimentohumanodesimesmoéaorigemdaver-dademetafísicasobrearelaçãoentreavontadeeoconhecimen-to.Portanto,éprecisoqueafilosofia,precisamenteametafísicaschopenhaueriana,expliquearelaçãoentreaidentidadesentidaeadiferençareconhecidaabstratamente,fazendoadistinçãoentreoessencialeonão-essencial.Comosabemos,porém,averdadefi-losóficanãoé,segundoSchopenhauer,produzidaoriginariamentepelointelecto,elaéantesdadacomosentimentodeidentidade.Nacontemplaçãoestéticaelasemostrasobaformadeintuiçãoideal.Noplanodafilosofiamoral,averdadefilosóficadaidenti-dademetafísica semostracomocompaixão.Noquarto livrodeO mundo como vontade e representaçãoeemSobre o fundamento da moral,Schopenhauerapresentaadescriçãodofenômenodacom-

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paixãoparaafirmarsuametafísicadavontadepormeiodeumateoriamoralqueatingeseupontoculminantecomadoutrinadanegaçãodavontade.Aexistênciadacompaixãoéumfatoempíri-co,inexplicávele,alémdisso,qualificadoporSchopenhauercomo“misterioso”.Acompaixãonãoé,portanto,umaconseqüênciaouconclusãodoconhecimentofilosófico,masantes,porassimdizer,seuoutrolado.Aliondesedáacompreensãodesimesmo,comosersubstancialmenteidênticoaooutro,estáacompaixão,quenãopodesernemapreendidanemestudada,masé,aocontrário,umfenômenonatural,dado imediatamentena consciênciahumanaassimcomoacompreensãoadequadade simesma.Oconheci-mentodequeaindividuaçãonãoéreal,mas,aocontrário,imagi-nária,“aestaverdadeosânscritodeuafórmuladefinitiva:tat twan asi, você é isto, ela salta aos olhos sob a formada compaixão”.��Assim,“meu ser interior, verdadeiro, também está no fundo detudooquevive”.��Nofundodaconsciênciahumanaexisteacer-tezadeque,alémdetodapluralidadeediversidadedosindivíduos,suaunidadeexisteverdadeiraerealmente.Vivendoestacerteza,ohomemcompreendequeadiferençadomesmoemrelaçãoaooutronãoéabsoluta,queomundoexteriordomesmoéhomogê-neoàprópriasubstância:“Osoutrosnãosãoparaeleumnão-eu,maseledizdeles:aindasoueu”.��Éoquedizohomemquetemconhecimentodavanidadedoprincipium individuationis.

Oaspectopositivodaperdadeindividualidadeé,portanto,asuperaçãodoegoísmo,semaqualnenhumacompaixãopodeterlugar.Osentimentoquemelhorexprimeaatitudedecompaixãotornapossívelapercepçãodaidentidadenadiferença:essesenti-mentoéoamoraopróximo.

12. Schopenhauer, A. Le fondement de la morale.Trad. de A. Burdeau. Paris:AubierMontaigne, 1978,§22,p. 190. (Emportuguês:Schopenhauer,A. Sobre o fundamento da moral. Trad. de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo:MartinsFontes,1995,p.208.) “Pitié” foio termoescolhido,na traduçãofrancesacitadapelaautora,paraverterapalavra“Mitleid”(compaixão)dooriginalalemão.

13. Idem,ibidem.14. Schopenhauer,A.Le fondement de la morale,§22,p.191. (Emportuguês:

Schopenhauer,A. Sobre o fundamento da moral,p.209.)

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Para concluir, a consideração da metafísica da vontadeschopenhauerianaemtermosdeidentidadeediferençaexprimeclaramente que a estrutura dualista se encontra já na base dopensamento filosófico. Aí está a explicação do princípio vitalcomovontadenão-conscienteobjetivando-senoseiodosseresconscientes.Aperdadeidentidadeétambémdupla:oprincípioúnico se apresenta como diverso conforme o principium individuationis, isto é, soba formadoespaçoedo tempo; eoconhecimento precisa da separação sujeito-objeto, seguindonecessariamente o princípio de razão suficiente. SegundoSchopenhauer,porém,avidapráticademonstraqueadiferençadolorosa pode ser sobrepujada pela compreensão da vanidadedaindividualidade,enfimpelacompaixão,queéaexpressãoda“bondade do coração” (Güte des Herzens) do caráter bom – eassim, nos termos de Schopenhauer, o “ princípio unificante”.Permitam-me terminar com uma bela citação, aparentementeaptaaconstituirumfimemumduplosentido:

(…)ointelectoéumprincípiodediferenciação,consequentemen-tedeseparação.Suasvariedadesdiversas(…)dãoacadaumoutrosconceitos,graçasaquecadaumvivedealgummodonomundo,ondeelesóseencontracomseusiguais;osoutroseleapenaspodechamardelongeetentarsefazercompreenderentreeles.

Grandesdiferençasnograude inteligênciaenodesenvolvimentointelectual abremumgrandeabismoentreoshomens; somenteabondadedocoraçãopodetranspô-lo,eéelaqueéoprincípiounifi-cantequeidentificaosoutroscomnossopróprioeu.��

Bibliografia

MALTER, R. Der eine Gedanke. Hinführung zur Philosophie Arthur Schopenhauers. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1988.

15. Schopenhauer,A.Le monde comme volonté et comme representation,capítulo15dossuplementos,“Das imperfeições essenciais de nosso intelecto”,p.835.

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_____. Arthur Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens.Stuttgart-BadCannstatt:Frommann-holzboog,1991.

SCHOPENHAUER,A.Le monde comme volonté et comme représentation.Trad.deA.Burdeau.Paris:PUF,1966.

_____.Sämtliche Werke.Org.deArthurHübscher.Wiesbaden:Brockhaus,1972.7vols.

_____. Le fondement de la morale.Trad. de A. Burdeau. Paris: AubierMontaigne,1978.

_____. Der Handschriftliche Nachlaβ in fünf Bänden. Org. de ArthurHübscher.München:DTV,1985.5vols.

_____. Sobre o fundamento da moral. Trad.deMariaLúciaCacciola.SãoPaulo:MartinsFontes,1995.

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O direito frente ao mal radical: a hipérbole kantiana do povo de demônios*

Adelino BrazDoutor em Filosofia – Universidade de Paris I

Panthéon-Sorbonne / NoSoPhi

Resumo: Através da hipérbole dopovo de demônios, Kant mostracomoodireitotemopoderdeneu-tralizaroegoísmodesdeopontodevista da ação exterior e constituirassim um estado civil. No entanto,estecorrespondeaumestadodena-tureza ética, revelando assim que acomunidadejurídicapodesercons-tituídasemquesejaeliminadoomalradical.Dessaforma,odireitoémo-ralsemnoentantoserético.

Palavras-chaves: direito,ética,mal,estadocivil,estadodenatureza.

Abstract: Through the hyperboleof thepeopleofdevilsKant showshowrighthasthepowertoneutra-lize selfishness from the point ofviewofexternalactionandtherebyconstituteacivilstate.However,thisstatecorrespondstoastateofnatu-ral ethics, revealing that a juridicalcommunity canbe formedwithoureliminating radical evil. Therefore,rightismoralwithoutbeingethical.

Keywords: right, ethics, evil, civilstate,naturalstate.

NotextoPara uma paz perpétua,de1785,Kant,tratandodacoexistência exterior das liberdades, nota que uma constituiçãoaplicávelaumpovodedemôniospodeserconcebidaseessesseresforemdotadosdeentendimento:“Umamultitudedeseresrazoá-veisdesejamtodos,paraasuaconservação,leisuniversais,emboracadaumtenhaumainclinaçãosecretaparasedispensarda lei”.�Estaposiçãomereceumduploníveldeleitura.Porumlado,Kantinsisteaquinaforçacoercitivadodireito,condiçãonecessáriaparaconstruirumacomunidadedeliberdadesexteriores.Defato,odi-reitopúblico,atravésdajustiçadistributiva,permiteaodireitopri-vado,enessecasoàjustiçacomutativa,sereficaz.Poroutrolado,o

* ArtigooriginalmentepublicadonaRevista Philosophica,nº31,2008,pp.65-78.Agradecemosaoseditoresacessãodosdireitosdepublicação.

1. Kant, I. Para uma paz perpétua. In: _____. Gesammelte Schriften. Berlim:PreußischenAkademiederWissenschaften,1900ess,vol.VIII,p.366.

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autorrevelaaheterogeneidaderadicalentreodireitoeaética,ouseja,entrealiberdadeexteriorealiberdadeinterior.Estaideiapres-supõequeodireitonãosepreocupaemmelhoraramoralidadedosindivíduos,massimplesmenteemgarantirumacoexistência.Nessecaso,aforçadodireitoneutralizaaafirmaçãoilimitadadaliberda-de,semerradicaramaneiradeseroudisposição(Gesinnung)doserjurídico,permitindoassimumacomunidadedeseresjurídicosquesejamseresdiabólicos,determinadosabsolutamentepelamaldade.Ora,adificuldadeque levantaesta teseconsisteprecisamentenadificuldadededefiniradimensãonormativadalegislação.Aalter-nativaéaseguinte:ouodireitosereduzaumatécnicaracionalqueestabeleceumaaçãorecíprocaentreosindivíduosdopontodevistaexterior,ouestaforçadecoaçãoseapresentacomoumacondiçãodeprogressocujohorizontesesituaalémdocampojurídico,ouseja,numacomunidadeética.Atravésdopovodedemônios,trata-sedejustificaraprioridadeteleológicadodireitosobreaética.Paraisso,énecessárioentenderdequemaneiraépossívelconceberaideiadeumserjurídicodiabólico,paraemseguidamostraradimensãohi-perbólicadessaideiaeasuadimensãonormativanasrelaçõesentreosindivíduosenarelaçãoentreosEstados.

I. O sujeito jurídico como ser diabólico: a confrontação entre Erhard e Kant

Oargumentorelativoaopovodedemôniosnãoéumainova-çãokantiana.Defato,em1795,JohannBenjaminErhardpublica,noPhilosophisches Journal,uma“Apologiadodiabo”(“Apoliogie des Teufels”),� textoqueconsideraaquestãodacoexistência jurídicaindependentementedequalquerconsideraçãomoral.Nopresentecontexto,aconfrontaçãodosdoistextosrevela-sepertinenteparaexplicitarospontosdeconvergênciaedivergênciaentreosdoisautores. Erhard formula a tese seguinte: o direito não deve serdeduzidodamoral,masdapossíveltolerânciamútuadosapetitesinteressadosdoshomens.�Paralevaracaboasuademonstração,

2. Erhard,J.B.Apologie du diable.Trad.francesadeP.Secrétan.Caen:CentredePhilosophiepolitiqueetjuridique,1989.

3. Idem,p.18.

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Adelino Braz O direito frente ao mal radical...

oautor radicalizao sujeito jurídicoparaapresentá-lo comoumserdeterminadoexclusivamentepelamaldade,ouseja,comoumdemônio ou diabo. Não se trata aqui de pensar uma ideia semconsistênciamas,bempelocontrário,deelaborarumconceitoquecontémumadimensãonormativa.�Háqueadmitirqueestecon-ceitonãopodeserpensadoapartirdaexperiência,namedidaemquenãoexistemsinaisexterioresnaturais,masoqueinteressaaoautoréaanálisedasdisposiçõesinteriores(Gesinnung).Defato,aradicalizaçãodosujeitojurídicoconsisteemmostrardequema-neiraumacomunidadedeseressemconhecimentodaleimoral,ouseja,determinadospelomalabsoluto,éconcebível.

Segundo essa metodologia, o conceito de diabo define-secomo uma criatura absolutamente má, eternamente torturada,quenãoconhecenenhumarrependimento,procurandoconstan-tementeainfelicidadedoshomens.�Aparticularidadedodiaboéomalabsolutoqueocaracteriza,emoposiçãorealaobem.Nãoexiste uma contradição entre o mal e o bem, mas uma relaçãoentreelementoscontrárioscomoduasforçasopostasquenãopo-demconvergir.Amaldade,oumal absoluto, apresenta-se como“algoreal,quesuprimeobemnaintenção”.�Oidealdemalda-deconsistenumsujeitoqueagesempreemoposiçãoaoidealdemoralidade,emque,porsuavez,eleagesegundoumaintençãodeterminadapelobem.Consideradocomoprincípiomaterial,esteideal de maldade define o carácter da intenção má segundo osmomentos seguintes:� primeiro a singularidade, que se explicitaatravésdeumamáximaquepertenceexclusivamenteaoserqueagedeterminadopelomalabsoluto, impedindoassimqueoutroserpossaadotaramesmamáxima;segundo,oseupróprio interesse,ouseja,aintençãoqueésimplesmenteegoísta;terceiro,aliberdade absoluta,naqualosujeitoconsideraoresto–aspessoaseascoi-sas–comomeiosparaoseuprópriouso.Conjugandoestestrêsmomentos,épossívelentãoformularumaproposiçãoinerenteà

4. Idem,p.1. 5. Idem,p.3. 6. Idem,p.3-4. 7. Idem,p.10.

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intençãomá:“QueroagirdetalmaneiraqueopróprioEusejaoúnicopropósitodaminhaaçãoeapareçacomooúnicoserlivre”.�Segundoestascaracterísticas,Erhardadmitequeumacoexistên-ciaexteriordeseresdiabólicosépossívelapartirdafaculdadedecoaçãododireito.Relativamenteaestaposição,oautorbaseia-senadefiniçãodalegislaçãojurídica.Odireitonãoénadamaisqueacapacidadedeatuarsegundomáximasmateriais,semqueoutremtenhaqualquerlegitimidadeparaseopôrpormeiodaviolência.�Istosignificaentãoqueoprincípiojurídiconãocontemplaosmo-tivosdaação,masapenasoestabelecimentodeumareciprocidade,ouseja,umaexigênciadeacordomútuoentreoshomens,�0condi-çãonecessáriaparaintroduzirumaigualdadededireitos.

Poressasrazões,aobediênciaaodireitonãorequerqualquerdisposiçãointerioranimadapelamoral, jáquesetrataexclusi-vamentedeencontrarumacordoapartirdoqualosindivíduospossamgarantirsuasobrevivênciaesuapropriedade.Estatesetraduzaideiadeumdireitodeduzidodosapetitesinteressadosdoshomens.Apartirdesteponto,épossívelformularduascon-sequências:porumlado,aperfeitaobediênciaàsleisdodireitonãosepodeapresentarcomoumaprovadeintençãomoral.Bempelocontrário,nessascondiçõesaobediência resultado temorqueinspiraafaculdadedecoaçãododireito,representadopeloEstado,seguindo-seassimopensamentodeHobbes.��Seossu-jeitosobedecem, éprecisamenteporque lhes convém, jáque ajurisdiçãoimpedeosoutrosdeexpressaremassuasmásinten-ções,pondoemperigoosseusbens.Poroutro lado,arigorosaaplicaçãododireito,quandoresultadosoberanoedoseupodersupremo,nãoétãopoucoumaprovadebondade.��Estesobera-nopodedeigualmodoserumdemônio,porqueaúnicacontra-diçãoparaeleseriaofatodetodospossuíremosmesmosdireitosqueele,nãoo fatodeele terumdireitoque lhepermitaestar

8. Idem,p.10. 9. Idem,p.17.10. Idem,p.17.11. Hobbes,T.Léviathan.Trad.francesadeF.Tricaud.Paris:Sirey,1971,caps.

VIeXVI.12. Erhard,J.B.Apologie du diable,p.18.

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acimadossujeitosouserviraosseusprópriosinteresses.Erhardsitua-seaquidopontodevistadodireitopositivo,odireitoqueresultadoarbítriodosoberano.

Notextode1785,Kantsitua-senomesmohorizontepro-blemáticoqueErhard.Defato,trata-sedesaberseacoexistênciados sujeitos jurídicospodeexcluirqualquerconsideraçãomoral.DeigualmodoqueErhard,Kantrecorreaoconceitodeserdia-bólicopararadicalizaraheterogeneidadeentreosujeitojurídicoeosujeitodeterminadopelaleimoral.NotextoA religião nos limites da simples razão,de1793,oautordefineoserdiabólicocomoosujeitocujaintençãoconsisteemadmitiromalcomomal,ouseja,afirmaramaldadeabsolutacomomotivonassuasprópriasmáxi-mas.��Oquecaracterizaodemônioéprecisamenteaideiadequeamaldadenãoéumabandonodeprincípiosmoraisditadospelarazãonormativa,masumapropriedadedesuadisposição.Atravésdestahipérbole,oobjetivodeKanté insistirsobreaeficáciadalegislação jurídica para constranger os indivíduos a obedecer àsleiscomunsexteriores.Oquedistinguealeijurídicadaleidevir-tudeéaamplitudedodever:“quantomaisodeveréamplo,maiséimperfeitaaobrigaçãodeatuarparaohomem”.��Odeverjurí-dicoafirma-secomodeverperfeitonamedidaemquenãoaceitanenhumaexceçãorelativaàobediênciaàlei,enquantoodeverdevirtudeconcedeaolivrearbítrioumacertalatitudeemrelaçãoàexecuçãodalei.Apertinênciadestateseémostrarqueparasairdeumestadodenatureza,ondenãoexisteumpoderpolíticohie-rarquicamentesuperiorecapazdeimporleiscomunsexteriores,omeiomaiseficazéaimposiçãodeumalegislaçãojurídicacapaz,atravésdasuaforçadecoação,deneutralizaroegoísmodecadaum.Emoutraspalavras,ohomemobedeceprimeiroaumaforçaexteriorantesdeobedeceràsualeimoral,e,porisso,ofatodeen-trarnumestadocivilrepresentaparaeleoúnicomeiodegarantirsuavidaeseusbens.Apartirdesteponto,temosdereconhecerque a coexistência das liberdades exteriores não resulta de uma

13. Kant,I.Areligião nos limites da simples razão.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VI,p.37.

14. Kant,I.Metafísica dos costumes.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VI,p.390.

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decisãodamoralidadedecadaum,masdeumaconvergênciadeinteresses. Recordamos que o direito se aplica apenas à relaçãoformal dos arbítrios, exigindo assim uma adesão exterior e nãoumaadesãoíntima.��Paraconstituirumacoexistênciadeliberda-des,alegislaçãojurídicaimpõeumaigualdadedeaçãoedereaçãoentreosindivíduos,ouseja,umacoaçãorecíproca.��

Noentanto,apesardessasconvergências,opropósitodeKantdiferedasposiçõesdeErhard.Defato,oautorda Apologia do diabo insistesobreaautonomiadodireitoemrelaçãoàmoral,enquantoKantexplicitaaheterogeneidadeentreodireitoeasleisdevirtude.Estepontoédecisivoporduasrazões:porumlado,aoposiçãokan-tiananãosedáentreodireitoeamoral,masentreodireitoeaética.Notextode1795,Kantnotaqueamoralétambémconsideradacomoumateoriadodireito,��oquesugerequeesteé,aoladodaética,umadasdivisõesdamoraldefinidacomosistemadosdeveresemgeral.Estainovaçãoconjuga-secomumaalteraçãoterminoló-gicaoperadaporKant.NaMetafísica dos costumes,amoraldefine-secomosistemade leisnormativas incondicionadas,queseaplicamaoarbítrioapartirdeumimperativocategórico.��Poressemotivo,nãoexisteautonomiadodireitoemrelaçãoàmoral,namedidaemquealeideliberdadejurídicaéconsideradacomoumaleimoral.Nessascondições,asleisjurídicasseopõemàéticadefinidacomoleimoral,queseaplicaàmáximadaaçãoerequer,assim,umaade-sãoíntimaentreosersensíveleoserinteligível.��Poroutrolado,esteargumento,aocontráriodaqueledeErhard,situa-sedopontodevistateleológico:trata-sedesabercomoépossíveltirarbenefí-ciodomecanismodanaturezaparaencontrarumaconvergênciadeinteresseseconstituirumestadopacíficodelegislação.�0Istosigni-ficaqueodireitonãotemporobjetivomoralizaroshomens,massimplesmenteinstaurarumacoexistênciaexterior,umaigualdadededireitosaplicávelàsações.Oprogressodahumanidadeinscreve-se

15. Idem,p.23016. Idem,p.232-3.17. Kant,I.Para a paz perpétua.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VIII,p.370.18. Kant,I.Metafísica dos costumes.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VI,p.221.19. Idem,p.220.20. Kant,I.Para a paz perpétua.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VIII,p.366.

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noprogressododireitoe,maisrigorosamente,noprogressodasins-tituiçõeseconstituiçõesjurídicas.Antesdenosinteressarmospelasváriasdimensõesdesseprogresso,énecessárioprimeiroexplicaradimensãohiperbólicadopovodedemônios, pontodecisivoparaentenderqueumaconversãodohomemaobemésemprepossível,oquelegitimaopostuladodeumprogressodahumanidade.

II. A dimensão hiperbólica do povo de demônios: a possibilidade do progresso.

Parademonstrarocarácterhiperbólicodopovodedemônios,ouseja,adimensãoqueprocedeporexcessoeque,nestecaso,nãocorrespondeanenhumobjectonaexperiência,énecessáriorelerasdiferentesobservaçõesformuladasporKantrelativamenteàpre-sençadomalnoserhumano.EmumanotadotextoMetafísica dos costumes,de1795,oautor revelaqueosvíciosdiabólicosdohomem,talcomoasvirtudesangélicas,nãosãonadamaisqueosIdeaisdeummáximoconcebidocomomedidaparaacomparaçãodosdiversosgrausdemoralidade.��Estesdoisconceitos,definidoscomoideiasdaprópriarazãonuncasãoobjectosdumaexperiênciapossível.Têmumusonormativo,regulador,masemnenhumcasochegama teruma realidadeobjetiva. Issonos leva a considerarqueohomeméumserintermediárioentreessesdoisextremos,sempertenceranenhumdeles,e,assim,temdeserencontradoumoutrofundamentodomalnohomem.

A posição de Kant relativamente ao fundamento do maladota duas exigências essenciais: por um lado, o mal não podeserdeduzidodeumaperversãodaprópriarazãohumana,oqueimplica que a máxima do mal nunca se pode apresentar comoúnico fundamento subjetivo de nossas ações.�� A razão norma-tivalegisladoranãopodesercorruptanamedidaemque,dandoa conhecera cadahomema leimoral comoumfato,nãopodedestruiraautoridadedessamesmaleienegarassimaobrigaçãoquedelasededuz:conceber-secomoumserqueagelivrementee,

21. Kant,I.Metafísica dos costumes.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VI,p.461.22. Kant,I.A religião nos limites da simples razão.In:_____.Gesammelte Schriften,

vol.VI,p.35.

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aomesmotempo,comoumsercapazdeexcluiroconhecimentodaleimoral,revela-secontraditório.��Nestecaso,ohomemseriacompletamentedeterminadopor leisdenaturezaenãopoderiamanifestarqualquerliberdade.Poroutrolado,quaisquerquese-jamasmáximasdesuaação,inclusiveasqueseapresentamcomoprincípiossubjetivosdemaldade,ohomemnuncarenunciaàleimoral.Ohomemmaisdetestáveltemconhecimentodaleimoral,mesmose,comoserlivre,decidetransgredi-la.Paraentenderesteponto,podemosnosreferiraumanotadaCrítica da faculdade do juízo,no§87.Kantindicaqueoserhumanonãoéumserqueagesegundoasleismorais,masumserqueestásubmetidoaelas:noprimeiro caso,ohomemseriaum ser cuja ação está sempreemconformidadecomaleimoral,manifestandoassimumavon-tade santa – o que se revela impossível sem fazer abstração dasuacondiçãodesersensível.Nosegundocaso,quecorrespondeàcondiçãodohomemcomoser sensível racional,cadaumtemconhecimentodaleimoral,masissonãoimplicaquesigaasindi-caçõesdarazãonormativa:aliberdadedohomempodeexercer-setambémparaoladodomal.��

Apartirdessaideiatorna-sepossívelentenderqueofunda-mentodomalnohomemnãoseconjugacomasupressãodaleimoral,masresulta,pelocontrário,deumdesvioemrelaçãoaoqueindicaarazãonormativa:“ohomem,insisteKant,nuncaconsenteomalnasuaprópriapessoa;porconseguinte,narealidadeamal-dadenuncaresultadeprincípios,masdoabandonodestes”.��Kantexplicitaestepontoemumanotadeumtextode1796:Anúncio da próxima conclusão de um tratado de paz perpétua em filosofia. Aocon-tráriodomalfísico(malum),queresultadacondiçãodesermossub-metidosàsleisdenatureza,omalmoral(pravum)conjuga-secomaleideliberdade.��Dopontodevistadaliberdade,omalresultadeumadecisãointeligível,relativamenteàsuaprópriainterioridade.

23. Idemp.35.24. Kant,I.Crítica da faculdade do juízo.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.V,

p.448-9.25. Kant,I.Antropologia de um ponto de vista pragmático.In:_____.Gesammelte

Schriften,vol.VII,p.294.26. Kant,I.Anúncio da próxima conclusão de um tratado de paz perpétua em filoso-

fia.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VIII,p.415.

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Mesmoqueosersensívelracionaltenhaumadisposição(Anlage)paraobem,nasuaexistênciaéumainclinação(Hang)aomalquesemanifesta.Essadecisãoéumaescolhainteligívelqueadotapormáximasupremaomaleotornaradical.Noentanto,nãosedeveconcluirdaexpressão“malradical”queamaldadesejaumprincípiosubjetivodedeterminaçãoqueexcluialeimoral.Mesmoqueoau-torafirmequeaintençãoradicaléumamaneirainatadeser,��nãosepodeatribuí-laaqualquerdeterminismo.Otermo“inato”refere-seàintemporalidadedoatointeligível,atravésdoqualohomemescolhelivrementeamáximasupremadesuasacções:essamaneirade seré consideradao fundamentoanterioraqualquerexercíciodaliberdadenaexperiênciaerepresentadanohomemdesdeoseunascimento,semqueestesejaasuacausa.Afirmarqueomaléumainclinaçãonaturalequivaleadizerquesetratadeumanaturezaqueoprópriohomemdeuasimesmo.Porissooserhumanoaparececomoumsercurvado,inclinadoparaoseuegoísmo.

AreflexãodeKantmantémprecisamentearelaçãoentreomalealiberdadepararesponsabilizarohomem.Namedidaemqueomalresultadeumadecisãointeligível,ohomemdetermina-seporsipróprioedefineentãoasmáximassecundáriasapartirdamáximasuprema:“Essemaléradicalporquecorrompeofunda-mentodetodasasmáximas”.��Aradicalidadedestadecisãonãosuprimenemaleimoralnemaliberdadequelheéinerente.Defato,opiorcriminosonãosuprime,nassuasações,aautoridadedarazãonormativa legisladora.Oexemplodo regicídio formuladoporKantrevela-seaquipertinente:��atransgressãodaleimoralsópodeserexplicadacomoefeitodeumamáximaqueadotaocrimeporprincípio subjetivo, pois assim sepode considerá-loum serlivre.Noentanto,nãosetrataaquideumamáximaadotadacomoprincípioobjetivoeexpressandoumvaloruniversal,masdeumamáximaquetransgridealeimoral.Estatransgressãopodechegaraopontoemquedevemosperguntar-nossenãosetrata,maisdo

27. Kant,I.A religião nos limites da simples razão.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VI,p.22.

28. Idem,p.37.29. Kant,I.Metafísica dos costumes.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VI,p.

321-2.

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quedeumdesviooufalta,deumdivórcio,jáqueoindivíduoadotaporprincípioagirsemprecontraaleimoral,apesardereconheceraautoridadeeavalidadedarazão legisladora.�0Oquesignificaquealeimoral,mesmonãosendorespeitada,nãodesaparecedainterioridadedosersensívelracional.

Admitindoqueomal semanifestanohomemcomoumainclinação,nãosepodeaceitarqueomalobedeceaomesmograudeconsciência.Parajulgaracercadaimputabilidadedoindivíduo,éentãonecessáriodistinguirtrêsgrausdistintosdomal:primeiroafragilidade,definidacomoinaptidãoparaseguirnapráticaaleimoralqueavontadeadotanasuamáxima.Afragilidadediferen-cia-seentãodaimpureza,emqueoserrazoávelcumpreumaaçãoboanãoporrespeitoàleimoral,masmedianteoutrosmotivosqueexpressamoseuegoísmo,reduzindoassimavirtudeaumasim-plesaparência.Amaldadeoucorrupção,queéograumaiselevadodomal,consistenumainversãodaordemmoraldosmotivosqueohomemadmitenassuasmáximas.Ointeressedestagraduaçãodomalémostrarqueaideiadeumserdiabólicoécontraditóriacomaideiadaliberdade,oqueexplicaadimensãohiperbólicadopovodedemônios.Issoimplicaumlimitenaliberdadeparaomal:umserlivrenãotemopoderdelibertar-sedaleimoraleescolheromalpelomal.Situadoentreumavontade bruta,quecorrespondeaoanimaldeterminadopelasensibilidade,eumavontade diabóli-ca,doserdeterminadopelomal,ohomemexerceasualiberdadeentreestesdoisextremos:avontadehumananeméabsolutamentemoral,jáquepodeoptarpelomal,nemabsolutamentemá,porquearazãomoralmantémasuaautoridade.

Éprecisamenteessatesequepermitepensarnapossibilida-dedeumaconversãoqueconsistenorestabelecimentodaordemmoraldosmotivos.Embora esta conversão seopere comoumarevolução, através da adoção radical do bem nas suas máximas,paraoserhumanoelasemanifestacomoumaprogressãoinfinita.Ora,estaprogressãotorna-seefetivaapenasatravésdodireitoedomelhoramentodasinstituiçõesjurídicas.Trata-seentãodeconce-

30. Idem,p.322.

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berasdiferentesfasesdoprogressoatravésdapresençadomalnasrelaçõesentreosindivíduoseentreosEstados.

III. A questão jurídica: como neutralizar o mal a nível exte-rior?

Recordamos que o direito, através da sua força de coação,permiteneutralizaraexpressãoilimitadadaliberdadenaturaldosindivíduos.Issosignificaquealegislaçãojurídicaécapazdeneu-tralizaromal,ouseja,impedirqueelesemanifesteanívelexterior,masemnenhumcasoécapazdeerradicá-lo,jáqueodireitonãoseaplicaàinterioridadedosujeitojurídico.Ora,doispontosrevelam-seaquidecisivos:porumlado,ahipérboledopovodedemôniosapresenta-separaKantcomoumexemplodateleologiaordenadapelomecanismodanatureza.Ohomemqueraconcórdia,masanaturezaprocuraadiscórdia,��demodoqueosindivíduos,nosseusdiferentes conflitos de interesses, tornem-se ativos e entrem emumestadocivilondeexistemleiscomunsexteriores.Nestascondi-ções,Kantadmitequenãosepodecontarcomadimensãomoraldosindivíduosparaprogredir,namedidaemquealiberdadequemanifestamestáaserviçodeinteressespatológicosenãodeinte-ressesdarazão.Poressemotivo,osujeitojurídicopode,demanei-rahiperbólica,apresentar-secomoumserdiabólicocontraoqualodireitoopõeaforçadasleisdodireitopúblico.Poroutrolado,notextode1795Kantnãolimitaahipérboledopovodedemô-niosàquestãodapazinteriordoEstado,masainscrevetambém,pormeiodaquestãodapazexterior,narelaçãoentreosEstados.Mesmoseoautornãotematizaesteargumentodemaneiramaisexplícita,épossívelpensarqueopovodedemôniossepodereferirtantoàquestãododireitopolíticocomoaodireitocosmopolítico.Nessetexto,emquetratadopovodedemônios,Kantterminaasuaanálisereferindo-seàexigênciadeinstaurarprincípiosdedi-reitoquepermitamaoEstadogarantir“umapazexterioremesmointerna”.��OqueestáaquiimplícitoéaideiadequeosEstados

31. Kant,I.Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VIII,p.21.

32. Kant,I.Para a paz perpétua.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VIII,p.367.

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podemestarcivilizadosjuridicamentedopontodevistainterno,ouseja,nasrelaçõesentreosindivíduos,mesmoqueasrelaçõesentreEstadospermaneçamemumestadodenatureza.Ditoporoutraspalavras,podemoslevantaraquiahipótesedeosEstadospoderemserdiabólicos,jáquenãoimplicamnenhumadimensãoética.Estecasoépossívelconsiderando-seopontodevistadodireitopositivo,emqueasleisestãodefinidaspeloarbítriodosoberanoeodireitopodeserumconjuntodeleisarbitráriasecontingentes.��Notextode1795,maisprecisamenteno“PrimeiroApêndice”,Kantconfir-maanossatese:aperversidadeenraizadanosindivíduosquevivememumasociedadeciviléneutralizadapelasleiscoercitivasdodi-reito,masmanifesta-seplenamentenasrelaçõesexterioresentreosEstados,ondealutapelasoberaniaéconstante.��

Relativamenteaessasduasdimensões,Kantinsistenaideiadequeoprogressonacondutaexteriornãopodeserdeduzidopormeiodeumareformamoraldoshomens.Pelocontrário,somenteumaboa constituiçãopodeproduziruma reformamoral,oqueimplicaqueomotordoprogresso é exclusivamente jurídico.Odireitorevela-seentão,nareflexãokantiana,tantocomoefeitodomecanismodanaturezaquantocomomeionecessáriodoprogres-sodahumanidade.Apartirdesteselementos,énecessáriosaberquaissãoosmeiospelosquaisodireito,tantoanívelinteriorcomoexterior,podeneutralizaromalecontribuirparaoprogressodarazão.EmumanotadasReflexões sobre a filosofia do direito,Kantsituaomotordoprogressojurídiconaideiadeumgovernode-duzidododireitopúblico,ouseja,deumsistemadeleisaplicadasaumpovo,conformesaodireitodenatureza(Naturrecht),quesedefinecomoumconjuntodeleisdeduzidasdarazãonormativa:“Umgovernoconformetantoaodireitopolíticocomoaodireitocosmopolíticoépossívelnumaconstituição”.��Opontodecisivoconsistenainstauraçãodeummododegovernorepublicano,cujaconstituiçãoexcluioestabelecimentodeumdireitopositivopara

33. Kant,I.Metafísica dos costumes.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VI,p.237.34. Kant, I.Para a paz perpétua. In:_____.Gesammelte Schriften, vol.VIII,p.

375,nota.35. Kant,I.Reflexionen,nº8077.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.XIX,p.

608-9.

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fundamentar-seapenasnasleisnormativasa prioridarazão.Nestecaso,umtalgovernoopõe-seaodespotismodemaneiraapermitirumverdadeiroprogressodasinstituiçõesjurídicas.Considerar-secomo um membro da sociedade cosmopolítica, unido às outraspessoasdeacordocomodireitopolítico,revela-se“comoaideiamais sublime que o homem pode ter do seu destino”.�� Nestascondições,umúnicoexemplodesseEstadopodeservirdesinalprecursor suficiente para dar esperanças quanto à possibilidadedessaunião.EsseEstadoconstitucionalseriaassimagarantiadepazparaosEstadosvizinhos,algoquenãoestariagarantidonumEstadoconformeaumdireitoarbitrário.Contraomaldosindiví-duosedosEstadosqueprocuramosseusprópriosinteresses,Kantnãoopõeinicialmenteumaconversãodamáximasupremadomalpara o bem, mas formula a ideia de que existe uma disposiçãomoraldoconceitodedireitoentendidocomopoderdeobrigaçãoparaogênerohumano.��Adimensão“moral”correspondeaquiàsleisnormativasa prioridarazãoqueseimpõemsegundoaformadeumimperativocategórico,aplicadoaquiapenasàcoexistênciaexteriordasliberdades.Trata-sedeumaideiadodireitoquefun-damentaumaconstituiçãocujosprincípiosimpendemnãosónosconflitos,masgarantemumaprogressãoconstante.Nãosepodeprognosticararealizaçãodeumatalexigência,masoqueficabemclaro,paraKant,équeoshomensperseguirãoesseobjectivoatépoderemrealizá-lo.��

Essa constituição republicana revela-se pertinente tanto aníveldapazinteriorcomodaexterior,paraneutralizaromalnareciprocidadedosindivíduos.Assimcomoaviolênciageneraliza-daconduzumpovoasubmeter-seàleipúblicaeentraremumaconstituiçãocivildoEstado,aviolênciaqueresultadosconflitosinterestataisconduzaentrarnumaconstituiçãocosmopolita,queadotaaformadeumafederação.Estasduasdinâmicasobedecemàmesmaexigência: jáqueomalsemanifestanaoposiçãorecí-procadeinclinações,aúnicamaneiradegarantirosinteressesdecada indivíduo ou de cada Estado consiste no ingresso em um

36. Idem,ibidem.37. Idem,ibidem.38. Idem,ibidem.

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estadojurídico.��Notamosaquiqueestaexigência,maisumavez,não resulta de qualquer disposição da moralidade, mas de umaconvergênciadeinteressesqueanívelexteriorcorrespondeaumadimensãomoral jurídica.Éapartirda ideiadeumgovernore-publicanoqueodireito se afirma comomotordoprogressodahumanidade,tendocomohorizonteumestadojurídicodepaz.

Noentanto,aeficáciajurídicacontraomalestálimitadaàcomunidadejurídico-civil,sebemqueestacomunidadesepossaestenderaumarelaçãointerestatalecosmopolita.Oquesignificaqueasraízesdomal,narealidadedoserhumano,sópodemsererradicadasatravésdeumacomunidadeético-civilnoseiodaqualacoexistência,antesdeserexterior,éinterior,ouseja,osersensí-velconcordacomoserinteligível.Nestequadro,apertinênciadeKantconsisteemconstituirodireitocomomeiodeprogressoedesuaprópriasuperaçãoemdireçãoaumacomunidadefundadasobreleisdevirtude,nãosobreleisdecoação.

Bibliografia

ERHARD,J.B.Apologie du diable.Trad.francesadeP.Secrétan.Caen:CentredePhilosophiepolitiqueetjuridique,1989.

HOBBES,T.Léviathan.Trad.francesadeF.Tricaud.Paris:Sirey,1971.KANT, I. Gesammelte Schriften. Berlim: Preußischen Akademie der

Wissenschaften,1900ess.

39. Kant,I.Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática.In:_____.Gesammelte Schriften,vol.VIII,p.310.

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El lenguaje en la Analítica de los conceptos de la Crítica de la razón pura

Daniel LesserePesquisador do CONICET/Buenos Aires

– Argentina.

Resumen: Enelcontextodeladis-cusión respecto a questión del len-guajeenlafilosofíadeKant,estetra-bajosostieneque:1)enladeducciónmetafísica es posible identificar unlugarparaunaargumentación sobreel lenguaje que muestra la posibleaplicación de la tabla de categoríasal lenguaje:del léxico, lagramáticaylacaracterística;2)porellolatesisdel“silenciodeKant”respectodalenguajeyposicionessemejantesdebenserrevi-sadas;3)elloalientaalaidentificacióndeotrasargumentaciones semejantesen la filosofía de Kant, desarrolladascomouna interpretación internade lacuestióndellenguajeenésta.

Palabras-chaves: Kant, lenguaje,gramática,léxico,ars characteristica.

Abstract: Withinthecontextofthediscussion on language in Kant’sphilosophythispapermaintains:1)it ispossibleto identify intheme-taphysical deduction an argumentregarding language, which shows apossible application of the table ofcategories to language: grammar,lexicon, andars characteristica;hen-cethethesisof“Kant’ssilence”andsimilar has to be reconsidered; 3)thisencouragestotheidentificationofothersimilararguments,approa-ched from the point of view of aninternal interpretation of the issuewithinKant’sphilosophyaspropo-sedhere.

Keywords: Kant, language, gram-mar,lexicon,ars characteristica.

1. La cuestión del lenguaje en la filosofía de Kant

Lapublicaciónde la Crítica de la razón pura inició, con la“metacrítica”deJ.G.HamannyJ.G.Herder,unadiscusiónacercadellugardellenguajeenlafilosofíacríticaydelvalorquedeberíaasignárseleparalareflexiónfilosófica.Estadiscusiónseprolongahastanuestrosdías.Ensuhistoriarecientesehasostenido:a)el“silenciodeKant”respectodellenguaje�;b)la“desafortunadare-

1. deMauro,T.Introduzione alla semántica.Bari:Einaudi,1966,pp.63-6.

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presióndellenguaje”eneldiscursofilosóficodeKant�;c)queres-pectodellenguaje“enelsistemadeKantquedaabiertounlugarparasuposteriordesarrollo,que,comotantosotroslugaresenél,Kantdejavacío”�;d)larenovacióndelacuestiónacercadelaacti-tuddeKantrespectodellenguaje.�Aellosesumanlaspropuestasdeunapragmática�,semántica�ysemióticatrascendentales.�Másrecientemente,elanálisisde las implicacionesde lafilosofíadelconocimientodeKantenfilosofíadellenguaje�ylainterpretacióndeconjuntodelafilosofíadeKantenconexiónconel“lenguajedelafilosofía”deJ.Simon.�

Enestecontexto,elpresentetrabajosostienequelaiden-tificación,elanálisisylainterpretacióndeaquellospasajesdelaobrakantianasobre,odirectamenterelacionadoscon,ellengua-jeconstituyeunpasoprevioineludibletantoparalaevaluacióndellugaryvalordellenguajeenlafilosofíadeKant,comoparalacomparacióndeéstaconlaposteriorreflexiónsobreel len-

2. Markis,D.“DasProblemderSprachebeiKant”.In:Scheer,B;Wohlfart,G.(Eds.).Dimensionen der Sprache in der Philosophie des Deutschen Idealismus.Wurzburg:Königshausen&Neumann,1982,p.111.

3. Prauss,G. Die Welt und wir. I/1: Sprache - Subjekt – Zeit. Stuttgart: J. B.Metzler,1990,p.66.

4. DiCesare,D.“HatKantüberdieSprachegeschwiegen?”.In:Gambarar,D.(Ed.).Language Philosophies and the Language Sciences. A Historical Perspective in Honour of L. Formigari.Münster:Nodus,1996,pp.181-200;yMosser,K.“WhyDoesn’tKantCareAboutNaturalLanguage?”.In:Dialogue,40.Canadá,2001,pp.25-51.

5. Apel, K-O. Transformation der Philosophie, (I: Sprachanalytik, Semiotik, Hermeneutik;II:Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft).FranfurtamMain:Suhrkamp,1973.

6. Hogrebe,W.Kant und das problem einer transzendentaler Semantik.Friburg:K. Alber, 1974; Loparic, Z. A Semântica transcendental de Kant. 3º ed..Campinas:CLE-UNICAMP,2005.

7. Schönrich,G.Kategorien und transzendentale Argumentation. Kant und die Idee einer transzendentalen Semiotik.FranfurtamMain:Suhrkamp,1981.

8. Lütterfelds, W. “Kant in der gegenwärtigen Sprachphilosophie”. In:Engelhard,K.;Heidemann,D. (Eds.),Warum Kant heute?.Berlín-NewYork:W.deGruyter,2003,pp.150-176.

9. Simon,J.Kant.Die fremde Vernunft und die Sprache der Philosophie.Berlín-NewYork,W.deGruyter,2003.

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guaje.ContalfinalidadsedetieneenuncapítulodelaCrítica de la razón pura, la analítica de los conceptos y propone unareconstruccióndelaargumentaciónkantianasiguiendounain-dicaciónexplícitasobreellenguajeenladeducciónmetafísica.�0Acordeaelloseintentamostrarque:1)enladeducciónmeta-físicaesposibleidentificar,demaneraindirectaperoexplícita,unlugarparaunaargumentaciónsobreellenguajeentantoéstaabre la posibilidad a la aplicación de la tabla de categorías allenguaje; 2) esta posibilidad puede ser verificada respecto delléxico, la gramática y la característica; 3) con ello la tesis del“silenciodeKant”respectodellenguajeyposicionessemejantesdebenser revisadas;4)elloalientaa la identificacióndeotrasargumentacionessemejantesenlafilosofíadeKant,desarrolla-dascomounainterpretación internadelacuestióndellenguajeenésta;5)elloconstituyeunpasoprevioaladiscusiónrespectode la relación de la filosofía crítica con la reflexión posteriorsobreellenguaje.

Conestepropósito,entonces,enloquesigueseexaminara:a)cómolascategorías,alrealizarsufuncióndeunificación,fun-danasuvezlaposibilidaddeunaformadeordenamientoenelléxico:latópica;b)cómoladeterminacióndelascategoríascorreenparaleloconladeterminacióndelagramáticadeunalengua,conlocualsesugierequeapartirdeladoctrinadelascategoríassepodríadesarrollaruna“gramáticatrascendental”;yc)laindicaciónkantianadeunaposibleaplicacióndelatabladelascategoríasalartecaracterísticacombinatoria.

Dadoque,prácticamente,desdelapublicacióndelaCrítica de la razón purahastalaactualidadlatesisdel“silencio”deKantrespectodellenguajeyformulacionessemejanteshatenidocon-senso,sesostieneenestetrabajoquelaidentificaciónyelanálisis

10. Cf. Kant, I. Kritik der reinen Vernunft. Hrsg. R. Schmidt. Hamburg: F.Meiner,1956,B109.LaCrítica de la razón puraescitadasegúnlaediciónde1787(B);pasajesquesólosehallanenlaprimeraediciónsecitansegúnlaediciónde1781(A).AsuvezcitolaCrítica de la facultad de juzgarsiguiendolasegundaediciónde1799(B).

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deaquellospasajesdondeKantse refiereexplícitamenteal len-guajeoaaspectosdirectamentevinculadoscobranparticularvalorcomo parte de la argumentaciónquesepresenta.

2. Las categorías como tópica sistemática: la posibilidad de un diccionario completo

Ladoctrinakantianadelascategoríassebasaenunanálisisde losconceptosyde la facultadque losproduce;el resultadoeslaindicacióndeldiseñodetodoslosconceptospurosdelassíntesiscontenidasapriorienelentendimiento.��Losconceptospuros son los “verdaderos conceptos troncales (Stammbegriffe)del entendimiento puro”,�� que también tienen conceptos de-rivados puros, los cuales deberían ser expuestos en el “sistemade lafilosofía trascendental”.�� Sin embargo, yaque el análisisqueconsideramosesmeramenteun“ensayocrítico”��talexpo-siciónquedasolamenteindicada,talcomoocurreconlaposibleaplicacióndelasdefinicionesdelascategoríasalordenamientodel léxico.De estemodoKant señala expresamente la posibleproyeccióndelatabladelascategorías.

Intencionalmentemedispenso,enestetratado,de[dar]lasdefini-ciones[Definitionen]deestascategorías,aunquepudieraestarenposesióndeellas.Enloquesiguedescompondréestosconceptoshastaelgradoqueseasuficienteporloquerespectaaladoctrinadelmétodoqueestoyelaborando.Enunsistemadelarazónpuraellassemepodríanexigircon justicia;peroaquísólodistraeríanlamiradadelpuntoprincipaldelainvestigación,alsuscitardudasyataquesque, sinmenoscabode la intenciónesencial,muybiensepuedenposponerparaotrotrabajo.Sin embargo, ya a partir de lo poco que he expuesto sobre este asunto, que un diccionario completo[vollständiges Wörterbuch], con todas las definiciones [Erklärungen]

11. Cf.Kant,I. Kritik der reinen Vernunft,B106.12. Ídem,B107.13. Ídem,ibídem.14. Ídem,ibídem.

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exigibles para ello, no sólo sería posible, sino también fácil de hacer.Loscompartimentos[Fächer]estánya,sóloesnecesariollenarlos,yunatópicasistemática[systematische Topik]comolapresente,noper-mitequeseyerrefácilmenteel lugar[Stelle]enelquepertenece,propiamente,cadaconcepto,yhacenotaralavezqueconfacilidad[cuál]lugarestáaúnvacío.��

La tablade las categorías vale entonces comounconjun-todeconceptoscomunesqueposibilitanunsistemadeordena-mientoenlugaresvacíos,unatópicasistemática.Ésta,entendidacomounsistemaconceptualúltimoynoderivado, radicadoenlos“primerosgérmenes[Keime]ydisposiciones[Anlage]delen-tendimientohumano”,��permitegenerarotrossistemasconcep-tuales.Lascategoríassonnúcleosgeneradoresdeordenamientosconceptuales.Constituyen,entonces,unmodelodesistemaquepuedetenerdistintasformasdeaplicación,unodeloscualesse-ría, precisamente, el léxico. La determinación de los conceptoselementalespermitiríasegúnelloextraerdeallítodaslasexplica-cionesrequeridasportaldiccionario.Eltextosugiere,entonces,quepartiendodelaestructuraconceptualbásica,ofrecidaporelsistema de las categorías se podría ordenar la estructura léxicadel lenguaje.Estepasajees importanteporque:a)abre,deunamaneraexplícita,unavíadeproyeccióndelateoríapuradelascategoríasalaestructuradelléxicopormediodelatópica,quesuministraelentramadoconceptualenelcualésteseconstruye,b) implica el predominio de la estructura conceptual sobre laestructura léxica, en tanto el ordenamiento conceptual de éstadepende,precisamente,delsistemaconceptualprimeroyfundan-te,losconceptospuros;c)muestraunaautolimitaciónmetódica,tambiénexpresamenteindicada,basadaenelpropósitopropiodelacríticacomométodo;autolimitaciónmetódicareferidaauna

15. Ídem,B108-9.(Kant,I.Crítica de la razón pura.Trad.deM.Caimi.BuenosAires:Colihue,2007).Loscorchetesconlostérminosenalemánylasitáli-caseneltextosonmiagregado.

16. Ídem,B91.

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posiblecontinuacióndeunresultadodeuncapítulocentraldelaanalíticatrascendentalaplicadaallenguaje.Laideadeunatópicasistemáticasugiere,pues,cómolaunidaddelosconceptospuedearticularladiversidadléxica.

3. Investigación de las categorías e investigación gramatical

DeunamaneraindirectaKantserefierealasposibilidadesqueofrecelatabladelascategoríasalestablecerunparaleloen-treladeterminacióndelascategoríasyladeterminacióndeunagramática.Elparalelismoentrelógicaygramáticaesprecisadoentantoseilustralatareadeestablecerelsistemadelascategorías,medianteunacomparacióndeesatareaconladedeterminar,porabstracción,lasreglasqueordenanelusodeunalengua.

Extraerdelconocimientocomúnlosconceptosencuyofunda-mentonoyaceningunaexperienciaparticular,peroqueapesarde ello se presentan en todo conocimiento empírico, del cualconstituyen, por decirlo así, la mera forma [Form] de la cone-xión [Verknüpfung], no requería mayor reflexión ni más inteli-genciaquelasquerequeriríaelextraerdeunlenguaje[Sprache]reglasdelusorealdelaspalabras[Wörter]engeneralyreunirasíelementosparaunagramática[Grammatik](yenverdadambasinvestigaciones están muy estrechamente emparentadas), perosin poder indicar la razón por la cual cada lenguaje [Sprache]tieneprecisamenteesaconstituciónformalynootra,ypudien-do menos aún dar razón de que en general pueda encontrarseprecisamenteesenúmerodetalesdeterminacionesformalesdellenguaje,ynomásnimenos.��

Sibienlaideacentralserefiere,fundamentalmente,alata-readelalógicayalainvestigacióntrascendental,resultaposibleidentificarenestacomparaciónunaindicaciónacercadelacon-

17. Kant,I. Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können.In:_____.Gesammelte Schriften.Berlín:PreußischenAkademiederWissenschaften,1900yss,IV,322-3.(Kant,I.Prolegómenos a toda metafísica futura que pueda presentarsecomo ciencia.Trad.deM.Caimi.BuenosAires:Charcas,1984,pp.93-4).Loscorchetesconlostérminosenalemánsonmiagregado.

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cepción de la tarea gramatical. Lo investigado aquí es el siste-madelascategoríasyelprincipioqueconstituyesuarquitectura.Análogamente, la construcción de una gramática consistiría, enprimerlugar,endeterminarenunalenguadadalasreglasdel“usorealdelaspalabras”.Enlamedidaenquesetratasólodedescribirunusoefectivoyderecopilarunavariedaddelmismo,puedeseridentificadacomounatareaounanálisisempírico.

Lacomparaciónindicaotrasdostareasquedefiniríanasuvezdosdiferentesposibilidadesdeanálisis.Lasegundatareabus-cadarrazóndelacondiciónformaldeterminadadeunalenguaparticular.Apartirdeellolagramáticatendríaporobjetonolaspalabrasqueconstituyenlamateriadeunalenguasinosuestruc-turaformal;estecarácterformalesprecisamentecompartidoporlagramáticaconlalógicaformal.��

Entercerlugarseprocuraindicarelfundamentodelnúmeroexactodecategoríasy,análogamente,elnúmeroexactodedeter-minacionesformalesdelalenguadelcaso.Segúnello,aquíyanoalcanza con precisar la estructura formal del lenguaje, sino queademás resultanecesario, talcomocon lascategorías,dar razóndelnúmeroprecisodedeterminacionesformales.Ellointroducelaposibilidaddeunaconsideracióndesdeelpuntodevistatras-cendental, lacualesexpresamente indicadaenuna lección.AllíKant señala que la filosofía trascendental “es la filosofía de losprincipios,deloselementosdelconocimientohumanoapriori”��,loscualessedividenenlosprincipiosdelasensibilidadapriori(estéticatrascendental)ylosprincipiosdelconocimientohumanointelectual(lógicatrascendental).Enelsegundocasosetratade

18. Talcomohemosvistoelexamenformalresultaenlaposibilidaddeunagra-máticauniversal;talcomovimosenlaslecciones.H.ScholzconfirmalaideadequeenKantseencuentraunagramáticauniversal,perodeformavagacondoscaracterísticas:esnormativarespectodelusodellenguajey,entantouniversal,seextiendeatodaslasreglasdelmismo.Cf.Scholz,H.“Logik,Grammatik,Metaphysik”.In:_____.Mathesis Universalis.Basel-Stuttgart:B.Schawe,1961,p.428.

19. Kant,I.Metaphysik(Pölitz).In:_____.Gesammelte Schriften,XXVIII,1,p.576.

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lascategorías,apartirdelascualespuedenderivarseotrosconcep-tos.Apartirdeelloagrega:

Si analizáramos de este modo los conceptos trascendentales,ello constituiría una gramática trascendental [transzendentale Grammatik],quecontendríaelfundamento[Grund]dellenguajehumano;p.e.cómosehallanennuestroentendimientoelpraesens,elperfectum,elplusquamperfectum,quésonlosadverbiaetc.Sisereflexionarasobreesto,setendríaunagramáticatrascendental.Lalógicacontendríaelusoformaldelentendimiento.Luegopodríaseguirlafilosofíatrascendental,lacienciadelosconceptosuniver-salesapriori.�0

Estamención,yenconexiónconellaelpasajedeProlegómenos,hansidoobjetodeinterpretacionesquecoincidenbásicamenteenseñalartantoelcarácterprogramáticodelasugerenciakantianadelaposibilidaddeunagramáticatrascendentalcomoladificultaddeunadeterminaciónmásprecisadesucometidoylímites.Estasinterpretacionescoincidenenidentificarelcarácterúnicodeunagramática trascendental,perodifierenrespectodecómoyhastaquépuntopodríadesarrollarseenelmarcotrazadoporKant.��Sin

20. Ídem,p.576-7.21. W. Bröcker sugiere entender el texto de Prolegómenos de manera literal,

demodotalquelatabladelosjuiciosdeberíaserestrictamenteinterpre-tadacomo la“estructuraaprioride todo lenguajeposibleencuanto tal”.Bröcker,W.Kant Über Metaphysik und Erfahrung. FrankfurtamMain:V.Klostermann,1970,p.45.J.Simonconfirmalavalidezdelaanalogíaentreambostiposdeinvestigación.Demaneraanálogaalasreglasdellenguaje,lascategoríasoreglasdelentendimientoseencuentranenelentendimien-to de una manera prelingüística. En el entendimiento debería suponerseentoncesunsistemadereglasuniversales,elentendimientonoseríapreci-samentesinolafacultaddereglasuniversalesquesubyacenalconocimientocomúnyconstituyenelobjetopropiodelainvestigacióntrascendental.Lagramáticatrascendentaldeberíaentoncesentendersecomounconjuntodereglas“pre”o“supra”lingüísticasquedeterminaríanelusodelaspalabrasencualquierlenguaje;Simon,J.Sprachphilosophische Aspekte der Kategorienlehre.FrankfurtamMain:Heiderhoff,1971,p.8.F.Kaulbachvisualizalaindica-cióndeKantcomounprogramadondelagramáticatrascendentalserviríaparainterpretarlasdistincionesgramaticalesdeacuerdoconlaguíadelasestructuras de la actividad del “yo pienso”, de forma tal que se funda en

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entrarenesadiscusión,sinembargo,siguiendolostextosvistos,pareceposibledistinguirtresnivelesgramaticalesdeconsidera-cióndellenguaje:unomaterialoempírico,unoformalouniversalyotrotrascendental.��Enelempíricoseconsideranlasreglasdelusorealdelaspalabras,estoes,unaseriedeelementosreunidossegúnunageneralizaciónempírica.Enelsegundoseprocedealanálisisdelaspectoformaldellenguaje.Mientraslamaterialidad(laspalabras)correenformaconjuntaconlamultiplicidadempí-ricadelaslenguas,laformaqueestablececonexionesenlamismaconstituyeunaestructurauniversal.Entercertérmino,sisepro-siguelasugerenciaseñaladaeneltextodeProlegómenos,demodoanálogoaestaprosecucióndelainvestigacióndelascategoríaseneldominiodelléxico,lagramáticatrascendentalconsistiría,pues,enparaleloconlainvestigacióndelascategorías,enunaaplica-cióndeestainvestigaciónaldominiodelasformasdellenguaje:

laactividaddeéste.Kaulbach,F.Das Prinzip Handlung in der Philosophie Kants.Berlín–NewYork:W.deGruyter,1978,12.G.Schönrichdistinguela gramática trascendentalde la gramáticauniversal en tanto estaúltimatendríasuorigenenla“generalizacióndereglasfácticasdellenguaje”.Paraéllagramáticatrascendentalfundalagramáticauniversalenlamedidaenquelaprimera,talcomoloseñalaKant,estudiatambiénel“fundamentodellenguajehumano”.Entiende,además,queenelmarcodeestaideakantia-napuedeubicarsesupropioprogramadeuna“sintaxistrascendental”cuyasreglasseríanprecisamentelasfuncionesdeljuicio.Schönrich,G.Kategorien und transzendentale Argumentation. Kant und die Idee einer transzendentalen Semiotik, pp.79-82.Laimportanciateóricadeltextopuedeservista,ade-másconW.Lütterfeldsentantoconstituiríaelnúcleodelaproyeccióndela perspectiva trascendental en la gramática (y el lenguaje). “Kant in dergegenwärtigen Sprachphilosophie”. In: Engelhard, K.; Heidemann, D.(Eds.).Warum Kant heute?, pp.153-7.

22. Kantsugiereexplícitamenteunadistinciónsemejanteperoubicandocomotercertérminonolaexplicacióntrascendentalsinolaontológica:“Enella[ontología]nohahabidomuchoprogresodesdelostiemposdeAristóteles.Puesasícomounagramática[Grammatik]eslaresolucióndelaformadeunlenguaje[Sprache]ensusreglaselementales,ocomolalógicaesunatalresoluciónde la formadel pensamiento, la ontología es la resolucióndelconocimientoenlosconceptosqueyacenapriorienelentendimientoyquetienensuusoenlaexperiencia.”Kant,I.Preisschrift über die Fortschritte der Metaphysik.In:_____.Gesammelte Schriften,XX,p.260.(Kant,I.Los progre-sos de la metafísica. Trad.deM.Caimi.BuenosAires:Eudeba,1989,p.16.)

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consistiríaenladerivacióndelasformasdellenguajeapartirdelentendimientopuroo,también,enmostrarelorigendelasformasuniversalesdellenguajeenelentendimientopuro.Sutareaseríamostrarcómoapartirdelaenumeracióncompletaysistemáticadelas“accionessimples”dela“razónmismaydesupensarpuro”queconstituyenlalógicacomún��lascategoríasgramaticalesbá-sicas,formalesyuniversales,podríanserderivadascomoconoci-mientosintéticoapriori.��Enestesentidoelenfoquetrascenden-taldelagramáticaesuncapítulodelateoríadelasubjetividadenperspectivatrascendentaly,entantotal,implicasufundaciónenlarelaciónentendimientoysensibilidad.

Deestemodo,segúnlovistohastaaquí,apartirdesufunda-mentoenelentendimiento,latabladelascategoríasposibilitaríaladerivacióndelagramáticayelléxico,capítuloscentralesdelateoríadellenguajeenlaactualidad.

4. Categorías y arte característica combinatoria

Quela investigacióntrascendentalde lacualresultaelsis-temade las categoríaspodría ser continuada en relación con ellenguajepuedeverse,también,enla indicaciónkantianadeunaposibleaplicacióndelatabladelascategoríasalartecaracterísticacombinatoria.EnsucorrespondenciaconIohannSchulz,alco-mentarlequecadaunadecategoríasubicadasentercerlugaresunconceptoderivado(abgeleiteter)delosdosconceptospreviamenteestablecidos,lediceKant:

Éstaylasotraspropiedades,enparteyamencionadas,delatabladelosconceptosdelentendimientomeparecenconteneraúnma-terialparauna,talvezimportante,invención:ladeponerenprác-ticaunars characteristica combinatoria.[...]Talvezsupenetraciónintelectual,apoyadaporlamatemática,lleguealograrenestouna

23. Cf.Kant,I. Kritik der reinen Vernunft,AXIV.24. Cf.Ídem,B151.

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perspectivamásclara,deloqueyo,comoescondidoporlaniebla,soloperciboconfusamente.��

Vemospuesque,unavezlogradaladeterminacióndelsiste-madelascategoríasporvíadelmétodopropio,deésteesposibleconcluir aplicaciones. De manera semejante reiterará años mástarde,ahoraaIacobSigismundBeck:

[...]noabandonocompletamentelaesperanzadeque,auncuandoesteestudio[delosescritoscríticos]noarrojenuevaluzalamate-mática,bienpuedaésta,inversamente,atravésdelareflexióndesusmétodosyprincipiosheurísticos,juntoasuscorrespondientesne-cesidadesyaspiraciones,llegaranuevasampliacionesparalacríticaydeterminacióndelaextensióndelarazónpurae,incluso,pue-daproporcionarnuevosmediosdeexposición[Darstellungsmittel]parasusconceptosabstractos,algosemejantealars universalis cha-racteristica combinatoriadeLeibniz.Pueslatabladelascategorías[…]está,conrespectoatodoposibleusodelarazónporconcep-tos,determinadaenlaformaenquelamatemáticapuedeexigirlo,comoparaintentarconellos,cuandonoampliación,síalmenostraeradichousotantaclaridadcuantaella[matemática]pueda.��

Latabladecategoríasincluye,pues,elnúcleodeunarespues-taalplanteodelcualelartecaracterísticacombinatoria seofrececomovíaderesolución.Esdecir,elsistemadelascategorías,sinserélmismolenguaje,contienelaposibilidaddeunordenamientouniversaldellenguajeaplicableendiferentesdominios,aquíeldelsimbolismoformal.��

25. Kant, I. Carta a Iohann Schultz del 26-8-1783. In: _____. Gesammelte Schriften,X,351.

26. Kant,I.Carta a Iacob Sigismund Beck del 27-9- 1791.In::_____.Gesammelte Schriften,XI,290.

27. LaposicióndeKantrespectodelacaracterísticaconsideradaenconjuntovadeldistanciamiento,señaladoenel textode1755,a laadmisióndesuposibilidad,comoacabamosdeverenlacartaaSchulzEstaposicióneslasostenida por G. Martin en: Martín, G. Arithmetik und Kombinatorik bei Kant.2°ed.Berlin-NewYork:W.deGruyter,1972,pp.74-103.

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5. La cuestión del lenguaje en la filosofía de Kant: una interpre-tación interna

Basadoentodoello,enloquesigueseproponelaposibili-daddeunainterpretacióndelas indicacionespresentadasdesdeunpuntodevistainternoalaformulacióndeKant,talcomoéstapuede ser identificada en el propio contexto de su obra.�� EstainterpretaciónsostienequecuandoseconsideraloqueKantexplí-citamenteindicóenelmarcodesupropiaterminologíayconcep-tuaciónsepuede,apesardenoestádesarrollada,identificarunaposiciónrespectoallenguajefundadaenlaconcepciónmismadelafilosofíacrítica.Desdeestepuntodevista,pareceposibleiden-tificarrazonesinherentesalafilosofíacríticaporlascualesenella,sibiennose desarrollaexplícitamenteunenfoquetrascendentaldellenguajecomotal,se abre unlugarparaunaaplicacióndelenfoquetrascendentalalacomprensióndellenguaje.Kantconcibiólafi-losofíacríticacomounmétodoycaracterizóaéstecomotrascen-dental.Laformulacióndelafilosofíacríticaentantoobrapubli-cadacomienzaconlaprimeraedicióndelaCrítica de la razón puraen1781yculminaconlaCrítica de la facultad de juzgaren1790,encuyoprólogoselee:“Conestoconcluyomitareacrítica”.��LaCrítica de la razón puraescomprendidacomo“untratadodelmé-todo”�0ylatareacríticaesvistaensuconjuntoporcontraposici-ónala“tareadoctrinal”��queKantproyectaacontinuacióndelaCrítica de la facultad de juzgar.ElquelaCrítica de la razón puraseacomprendidaporKantcomountratadodelmétodoconllevaladeterminacióntantodelcontenidocomodelprocedimientode

28. ElloquieredeciradoptarunpuntodevistacomoeldeP.Baumanns,quiensostiene la necesidad de considerar la crítica de la razón kantiana des-deun“puntodevistanuevoquealmismotiemposeaelpropiodeKant”.Baumanns,P.Kants Philosophie der Erkenntnis.Wurzburg:Königshausen&Neumann, 1997, 5; punto de vista que se caracterizara por el trabajo deevitarcentrarseenlaproyeccióndelapropiaperspectivadelintérprete,Cf.Baumanns,P.Kants Philosophie der Erkenntnis,p.11.

29. Kant, I. Kritik der Urteilkskraft.Hrsg.K.Vorländer.Hamburg:F.Meiner,1974,BX.

30. Kant,I. Kritik der reinen Vernunft,BXXII.31. Kant,I. Kritik der Urteilkskraft,BX.

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latareacrítica.Kantcaracterizóestatareadelsiguientemodo:“lacapacidaddeconocimientoapartirdeprincipiosaprioripuedeserdenominadala razón puraylainvestigacióndelaposibilidadylímitesdelamismacomotal,críticadelarazónpura”.��Elen-foqueométodotrascendentalquesigueeldesarrollodeestatareaimpusorespectodelposibleanálisisdellenguajeydelagramática,enprimerlugar,unalimitacióndehecho:cuandoeldesarrollodelaargumentaciónconduceaunaposiblereflexiónsobreellengua-je,éstanoseprosiguey,enocasionesexplícitamente,quedasóloseñalada;p.e.alreferirsealaanalogíayasufuncionamientoenellenguaje,señalaKant,precisamente,que“Estacuestiónhasidomuypocoanalizadahastaahora,demodotalquemereceríaunainvestigaciónmásprofunda,peroéstenoeslugarparadetenerseen ella.”�� Pero, además, la concepción misma del método tras-cendentalimplicaunlímiterespectodelaposibleconsideracióndellenguaje.“Trascendental”designa:“todoconocimientoqueseocupaengeneralnotantoconobjetossinoconnuestromododeconocimientodeellosentantoéstedebeserposibleapriori”.��Enestesentidokantianodeltérmino,“trascendental”deberíaserapli-cadosóloalasformaspurasdelaintuiciónyaaquellosconceptosbajocuyossupuestospuedepensarsequelascosas,universalmenteyencuanto tal,pueden llegara serobjetodeconocimiento.Laperspectiva trascendentaldeterminaun conjuntode enunciadosrespectodelaposibilidaddelconocimiento,basadoenlasformasylosconceptospurosentantotal,ydejaindeterminadaslasdis-tintasformasdeconocimientosreferidasaobjetosparticulares.��Deacuerdoaello,tantoporelmétodo(trascendental)comoporsudominiodeaplicaciónespecífico(intuicionesyconceptospu-ros)enlaformulaciónexplícitadelainvestigacióntrascendental,

32. Ídem,BIII.33. Ídem,B257.34. Kant,I. Kritik der reinen Vernunft,B25.35. Respectode laconcepciónde lafilosofía trascendentalen laCrítica de la

razón puracomounconjuntodeenunciados:Cf.Scholz,H.“EinführungindieKantischePhilosophie”.In:_____.Mathesis Universalis,pp.171-3.

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noquedaríalugarparaunexamendellenguaje,menosaúnantesdelaexposicióndelsistemadelafilosofíatrascendentalcomotal.

LafilosofíacríticadeKant,basadaensuconcepciónmetó-dica,nodesarrollóunareflexiónsobreel lenguaje,Sinembargo,estaconstatacióntraducidaentesiscomoladel“silenciodeKant”pareceinsuficientecomointerpretacióndelacuestióndellenguajeenKant.Resultainsuficiente,particularmentealuzdelanecesidaddeunnuevoexamendelacuestióndesdelaspreguntasplantea-dasenlareflexiónposterior,p.e.desdeelcontextodelafilosofíaorientadaporelgirolingüísticoodesdelaproyeccióndelateoríacríticadelconocimientocomosemántica,semióticaopragmáticatrascendentales.Frente a esta tesishemosmostrado enun casoejemplar��quelaobrakantianaofrecepasajesexplícitossobre,odirectamenterelacionadoscon,ellenguaje,queestospasajessonparticularmenterelevantesyquesuexameneinterpretacióncons-tituyenunpasoprevioineludiblepararesponderalacuestióndellenguajeenlafilosofíadeKant.Conelloquedaentoncessugeridalaposibilidaddeundesarrolloulteriordeunainterpretación inter-naqueasumapositivamentelasindicacioneskantianasexplícitasysuvalorcomopuntodepartida,tantoparalareconstruccióndelaposicióndeKantrespectodel lenguaje,comoparasuposibleproyeccióneincidenciaenlareflexiónposteriorsobreellenguaje.

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A ampliação do conceito do político: para uma outra recepção da teoria crítica de Marx�*

Rúrion Soares MeloDoutor pelo Departamento de Filosofia da USP

* AgradecemosaRicardoTerrapelascríticasesugestõesfeitasaopresenteartigo.

Resumo: Procurando compreendera dinâmica dos conflitos contempo-râneos presentes na sociedade civil enos novos movimentos sociais, gos-taríamos de apontar para uma outrarecepçãodateoriacríticamarxistadeacordo com uma reinterpretação doconceitodopolítico emMarx, com-parandosuaformulaçãonaCrítica da filosofia do direito de Hegelcomostex-tosposteriores.Primeiramente,vamoslidar de forma breve com a questãodahistóriadosefeitosnarecepçãodaobradeMarx,chamandoatençãoparaumacertaapropriaçãodojovemMarxno caso brasileiro. Em seguida, combasenasinterpretaçõesdeJeanCohen,pretendemosmostrarque,nos textosmaduros,Marxdelimitariaopróprioconceitodopolíticoemsuateoriadarevoluçãoapontodereduzi-loaepi-fenômeno das relações econômicas.O problema principal consistiria emque, nessa delimitação, a ampliaçãodoconceitodopolíticoparaocampoda emancipação social permaneceriapresaaumestreitoconceitodepráxis,pois o potencial emancipatório per-maneceria subordinado às noções de“trabalho”, de “desenvolvimento dasforçasprodutivas”e,conseqüentemen-te,àteoriadasclasses.Palavras-chave: KarlMarx,conceitodo político, emancipação, teoria dasclasses,novosmovimentossociais

Abstract: In order to understandthe dynamics of the contemporaryconflictsaroundcivilsocietyandthenew social movements, we wouldlike to point to an other receptionof marxian critical theory accor-dingtoareinterpretationofMarxs’sconceptofpoliticsandcomparehisyoungformulationinCritic of Hegel ’s Philosophy of Right with the latertexts. First, we take into accountbriefly the question of the historyofeffectsinthereceptionofMarx’sworks.After that,basedonthetheinterpretation of Jean Cohen, weintend to show that, in thematuretexts,Marx restricts the conceptofpolitics in his theory of revolutionand reduces it to an “epiphenome-non” of the economic relations. Inrestrictingit,theincreaseofthecon-ceptofpoliticstothesocialemanci-pationwouldremainattachedtothenotionsof“labor”,“developmentofproductiveforces”and,consequently,thetheoryofsocialclass.

Keywords: Karl Marx, concept ofpolitics, emancipation, class theory,newsocialmovements

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I

Nãoénovidadeparaestudiososdomarxismoque,aotomardeempréstimodaeconomiapolíticaargumentoscomosquaisde-nunciamaordemdodireitoburguêscomoexpressão jurídicaderelaçõesinjustas,Marxampliouaomesmotempooprópriocon-ceitodoquesejaopolítico.�Poisoconceitodopolíticonãoestariamaiscircunscritopelasanálisesefenômenosreferentesàtradiçãojurídico-política burguesa, mas abrangeria fundamentalmente osprocessossociaisqueresidemnabaseeconômicadasociedade:aemancipaçãohumananãoocorrerianointeriordocampotradicio-naldapolítica,comoumaemancipaçãopolítica,massimacontece-riacomoemancipaçãosocial,comolibertaçãodascondiçõessociaisdesiguaiseopressorasàsquaisestãosubmetidososindivíduos.Aintuição fundamental de Marx na sua crítica da sociedade civilconsistiriaemmostrarqueoproblemadademocraciaedaliber-dadenãopoderiasersanadosemquetambémfossesolucionadaa“questão social”.�Pois a emancipaçãopolítica (que resultoudaRevoluçãoFrancesa)significavaapenasaemancipaçãodasrestri-çõespolíticasimpostaspelofeudalismo,desorteque“ohomem”,dizMarx,“nãoselibertoudareligião;eleobteveliberdadedere-ligião.Elenãoselibertoudapropriedade;eleobteveliberdadedepropriedade.Elenãoselibertoudoegoísmodomercado;eleobte-veliberdadedemercado”.�Serianecessário,portanto,darumpassoaléme vincular tal emancipaçãopolíticaparcial aumaposteriorrevoluçãosocial:“apenasquandooindivíduoreal(...)reconhecere

1. AscríticasfeitasaMarx,principalmenteapartirde1989,insistememdes-cartardeumavezportodasapossibilidadedeumaalternativapolíticanointeriordomarxismo.DeacordocomHelmutDubiel–paraficarmoscomapenasumexemplo–a“intelligentziaocidental(...)temdeentenderqueomodelo liberaldedemocracia constitui a referênciade todas as futurasestratégias políticas”. Dubiel, H. Ungewißheit und Politik. Frankfurt/M:Suhrkamp,1994,p.93.

2. “Anoçãocentraldizia respeito à ‘questão social ’,diferentementedeumamerapreocupaçãocomoliberalismopolítico,aliberdade,oradicalismofilosóficooureligioso,etc”.Draper,H.Karl Marx’s theory of revolution: The politics of social classes.NewYork:MonthlyReviewPress,1978,p.97.

3. Marx,K.Die Judenfrage.In:Engels,F.;_____.Marx-Engels Werke.Band1.Berlin:DietzVerlag,1961,p.369.

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organizarsuasforces proprescomopodersocial,eporsuavezopodersocialnãosedividirmaisnaformadopoderpolítico,apenasentãoaemancipaçãohumanaseráconsumada”.�

Parecia claro que sua teoria da emancipação procurou sercompreendidacomoumimportanteesforçodevincularumaaná-lisesistemáticadareproduçãoeautovalorizaçãodocapitalaomo-vimentoproletárioea lutaporumademocraciapolíticaefetiva.Mas,aindaqueessaampliaçãodoconceitodopolíticosejaumdospassosmais importantesa seremmantidosporuma teoriacomorientação emancipatória, não é tarefa simples entender atual-mentesuaabrangêncianeminterpretarsuaconfiguraçãopolíticanoquadrodosconflitoscontemporâneos:esseéoônus da provaquerecaisobreaatualidadedateoriacríticadeMarx.

Podemoslevaradianteumareflexãosobreoconceitodopo-líticoemMarxconsiderandodoispontosdepartidainterpretati-vosque,emboramuitasvezesseencontremvinculados,podemserdiferenciados.Naverdade,essadiferenciaçãoecomplementaçãodepontosdevistanaturalmentenãoserestringemaumaabor-dagemmetodológicaespecíficaàsobrasdeMarx.Oimportante,nestecaso,consistenofatodeambosnos levaremaproblemassemelhantes, mas que possuem graus de importância distintosparaoexercíciodareflexãofilosófica.Oprimeiropontodepar-tida,quechamaremosdemarxologiaporquestãodeconvenção,privilegiaumainterpretaçãoestruturaldepartesoudodesenvol-vimentodatotalidadedaobradeMarx,obedecendoàautoridadee ao rigor conceitual dos textos de origem. Não podemos nosestender sobre essaquestãonopresente artigo.Todavia, exem-plosparadigmáticosdessaabordagempodemserencontradosemcontrovérsiasmetodológicas,comoaquelalevadaacaboporum

4. Idem,p.370.A“questãosocial”comoumaampliaçãodoconceitodopolí-ticoapareceformuladaemA questão judaicaumavezqueapontaparaumdeslocamentodaperspectivaestritamentepolíticaparaasocial.Elasecom-pletaemtodaobradeMarx,naverdade,comoemancipaçãodo proletariado,queaindanão tinha sidoapresentadonesse texto.Porém,cabenotarquearetomadadojovemMarxsugeridaadiantenopresenteartigoparaumareinterpretaçãocontemporâneadoconceitodopolíticonãoestácircunscritaaoquadroconceituald’A questão judaica.

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dos mais reconhecidos comentadores de Marx, Hal Draper. Adespeito da reconstrução monumental que Draper oferece emseus já seis volumesdaTeoria da revolução de Karl Marx, o au-torinsistiunoprefáciodoprimeirovolumequenãotratariaemseuestudodoqueMarxpoderiaterdito(oudoquepoderiaserdeduzidodepassagensrecortadasdeseustextos),masquepre-tendiaofereceruma“interpretaçãocompletaedefinitivadateoriapolíticadeMarx”�–oqueimplicavaestabelecerasbasessegurasdeumainterpretaçãoconceitualmenterigorosae,emgrandeme-dida,neutranoqueconcerneaosproblemaseaosmétodosapli-cados.Ocuriosoéque,naverdade,bastaacompanharosnomesmaisimportantesdahistóriadomarxismoparaconstatarqueoesforço em empreender algo como uma marxologia pura podesetransformaremumarecepçãodeterminadapelocontextodesurgimentoedeaplicaçãodaprópria interpretação, comoqueoobservadorfielimplodiriaseupontodevistaestruturalistaemdetrimentodaperspectivadahistória dos efeitos.

EntendemosqueéjustamenteapartirdahistóriadosefeitosquepoderíamosaferiroônusdaprovadateoriadaemancipaçãodeMarxesuaampliaçãodoconceitodopolítico.Parecenãohavermuitanovidadenisso,umavezqueaprópriahistóriadomarxismosedesenvolveuesobreviveuemrazãodeseupotencialdeatualiza-ção–oquesignificoupassarporsucessivasmodificaçõesemeta-morfoses.Algunsautoresserecusaramaadmitiresseônusdapro-va,outrosoenfrentaramapenasimplicitamente,etiveramaquelesqueoentenderamcomoumdesafioaserexplicitamentelevadoemconsideração.Emtodocaso,deummodooudeoutro,eleestavapresente.SabemosdesdeostrabalhosdeAlthusserqueumapre-tensaneutralidadeepistemológicapodesignificarpraticamenteoseucontrárioquandoimpulsionadapeladisputahermenêuticaquevisava,sub-repticiamente,àcríticadaideologia:aoriginalidadedofilósofofrancêsconsistiunofatodesuainterpretaçãoorientara

5. Draper,H.Karl Marx’s theory of revolution I: The state and bureaucracy.NewYork:MonthlyReviewPress,1977,p.11.Draperretomaessadiscussãoemtornodeumapossível“interpretaçãoúltima”deMarxnoprefáciodosegun-dovolume.Cf.Draper,H.Karl Marx’s theory of revolution II: The politics of social classes.NewYork:MonthlyReviewPress,1978,p.1-13.

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recepção dos textos de Marx num dado momento histórico nadireçãoopostaàevoluçãopolíticadoPartidoComunistaFrancês,confrontandoassima“ortodoxia”partidáriarigorosacontracertasinclinações“liberais”deumateoriaquereivindicavarigorapenasconceitual.�Domesmomodo,a“interpretaçãoúltima”deDraperconsistianumareaçãoaonovoreformismosocial-democrataqueorientavainterpretaçõesmarxistasparalegitimaroprogramadebem-estarsocial.�Osexemplospodemseraludidosàexaustãodeautorpara autor,de épocapara época, e tratá-los emcada casoapenasdeslocarianossaatençãoparaaspectosmenosessenciaisdapresenteexposição.

Ora,aprópriainterpretaçãodasobrasdeMarxémarcadapelahistóriadosefeitosqueécapazdeproporcionar,demodoque nunca o autor está plenamente transparente de uma vezportodas,masseencontraemdisputaemcadarecepção–dis-putaque,naverdade,nãoselimitaàsuainterpretaçãointerna,masprecisa, sobretudo, fornecera mais adequada formulação do diagnóstico do tempo. Nesse sentido, a forçada críticadeMarxnãodependeriaapenasdacapacidadedeapontarparapráticasdetransformaçãodasrelaçõessociaisvigentes,mastambémemproduzirdeterminadosdiagnósticosdotempo.�Essaarticulaçãobemsucedidaentreteoriaepráticaimplodeoslimitesdeumateoriaúnicaepretensamentecompletaenosforçaaumtrabalhoemqueocultoaautoresetemasécolocadoemxequeporcausadacomplexidadedarealidadesocialedaabrangênciateóricaca-pazdetrazertalrealidadeaoconceito.Indodiretamenteaonos-soponto:oônusdaprovaatualmenteparaoconceitodopolíticodeMarxreside,porumlado,nanãoconfirmaçãodeumateoriado colapso capitalista, na crise da sociedade do trabalho e narecomposiçãoorgânicadaclassetrabalhadora;e,poroutrolado,na experiência do capitalismo tardio, na emergência de novos

6. SobrearelaçãodeAlhtussercomoPCF,cf.Anderson,P.Considerações sobre o marxismo ocidental.SãoPaulo:Boitempo,2004,p.59ess.

7. Cf.Draper,H.“New social-democrat reformism”. In: New Politics, v2,n.2.NewYork:1963,p.35-48.

8. Cf.Nobre,M.A teoria crítica.RiodeJaneiro:JorgeZahar,2004,p.11.

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movimentossociais,processosdedemocratizaçãoedosdesafiosimpostospelomulticulturalismo,osquaistambémampliariamoconceitodopolíticodaquestãosocialparaaslutasemancipató-riasligadasàquestãocultural.

II

Existemmuitaspossíveis interpretações sobreodesenvol-vimentoda teoriadeMarxeoquepoderiasignificaressaam-pliaçãodoconceitodopolítico.Interessa-nos,principalmentenocaso uspiano, uma retomada da concepção do político a partirdainterpretaçãodojovemMarxqueuniugeraçõestãodistantesque levavam de Ruy Fausto a Marcos Nobre.� Mesmo que talabordagempermitisseàrecepçãomarxista“deultramar”romperoquadroepistemológicoestabelecidoporAlthusser�0,outrosca-minhoslevavamàsemelhantesuperação.Essaempreitada“con-traAlthusser”�� (frutodeproblemasfilosóficosgenuinos,enãomeramentereaçãoaoautorfrancês)permitiucolocaremquestãoadivisãoalthusserianaapartirdeseuproposto“corteepistemoló-gico”,emqueseseparariaostextos“ideológicos”dojovemMarxdosoutrostextoscientíficosdamaturidade.Aprimeiraidaaojo-vemMarxfoiadeGiannotti,oqual,aindaqueestivesseinteres-sadonoCapital,dedicoutodoumlivroàanálise,sobretudo,dosManuscritos econômico-filosóficos.�� Embora também GiannottifosseaosManuscritosde1844antesdefazerdotrabalhoomo-delodetodasasrelaçõessociais��,seupercursoanti-althusserianodeumaontologiaunificadadematrizlógico-materialistanosim-portamenosagoradoqueumoutroproblemaentrevistoinicial-

9. Cf. Arantes, P. Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz eTerra,1994,p.314;Fausto,R.Marx – Lógica e política.TomoI.SãoPaulo:Brasiliense,1987;eNobre,M.Lukács e os limites da reificação.SãoPaulo:Ed.34,2001.

10. Cf.Althusser,L.Pour Marx.Paris:LibrairieFrançoisMaspero,1966.11. FazendoalusãoaGiannotti,J.A.“ContraAlthusser”.In:Giannotti,J.A.

Exercícios de filosofia.Petrópolis/SãoPaulo:Vozes/CEBRAP,1975.12. Cf. Giannotti, J. A. Origens da dialética do trabalho. São Paulo: Difusão

EuropéiadoLivro,1966.13. Cf.Giannotti,J.A.Trabalho e reflexão.SãoPaulo:Brasiliense,1984.

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menteporRuyFausto“aindasoboefeitoAlthusser”.EstratégiaquetambémteriasidoseguidaporMichaelLöwyaopretenderrecuperaroconceitodopolíticonaobradojovemMarxapartirdeuma teoriada“autoemancipaçãodoproletariado”, adotandoumcaminhobemparticular.��Esseproblemanosrementeaumaquestão fundamental para a teoriada emancipaçãodeMarx e,por conseguinte,nosvinculanovamenteà interpretaçãode seuconceitodopolítico.

Retomando.RuyFaustoterianotadoqueaobradejuven-tudedeMarxseriaumasaídaoriginalparaquepudéssemosfazerumacríticadocapitalismocontemporâneo.Masnãoapenasisso.ElapoderiatambémcontrabalançaraapresentaçãoeconomicistadoCapitalque,partindodaanálisedo“fetichismodamercadoria”,conduziriaaumaconcepçãodepráxispolíticacompletamenterei-ficada,poisaniquilariaasubjetividadehumanajácompletamentemercantilizada.Esseproblemaerabemantigonatradiçãomarxis-ta.Lembremosque,apartirdaSegundaInternacional,achamadatradiçãodomarxismoortodoxodefendeuainterpretaçãodateo-riadeMarxcombasenoCapitaldeacordocomaqualoprocessorevolucionárioseriaresultadonaturaldadinâmicacapitalista.AopassoqueaRevoluçãoRussade1917,porsuavez,mobilizoucrí-ticasdaorientação revolucionáriaaospressupostosmecanicistasdomarxismoortodoxo,abrindoumcamporicodeinterpretaçõesnos textosdo jovemMarx.��Essamistura entre subjetividadeecapitalismo avançado, que tinha levado Marcuse en passant aosManuscritos de1844(ouseja,aoMarxdejuventude),levoutam-bémRuyFausto(nãoporacaso,em1968)apensaraarticulaçãoentrelógicaepolíticacomuminstrumentalconceitualdiferentedaqueledoCapital.EqueminsistiunesseproblemafoiMarcosNobre,aomostrarqueLukácssevoltariaàsobrasdojovemMarx

14. Cf. Löwy, M. A teoria da revolução no jovem Marx. Trad. de AndersonGonçalves.Petrópolis:Vozes,2002.EoqueestavaemjogonessaoutraviaseguidaporLöwyera,certamente,omovimentosocialistaeuropeu.

15. Cf. Reisberg, A. Von der I. zur II. Internationale. Die Durchsetzung des Marxismus um die Wiederherstelung der Arbeiterinternationale.Dietz,1980;Vranicki,P.Geschichte des Marxismus. 2Bände.Frankfurt/M:Suhrkamp,1997.

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(referindo-se,nessecaso,àMiséria da Filosofia) justamenteparapoder apresentar a “determinação do sujeito revolucionário”.��SegundoLukács,asuperaçãoemdireçãoaosocialismonãopo-deriacontarapenascomumdeterminismoestruturaldoprópriocapitalismoeprescindirdaautodeterminaçãodapráxisrevolucio-náriadalutaproletária.��

Temosaquiduaspossíveisconcepçõesconcorrentespresen-tesna teoriada emancipaçãodeMarx: a emancipaçãopensadacomoautoemancipaçãodoproletariado,noqualesteassumeumpapelativoeconstitutivonoprocessorevolucionário;eaemanci-paçãoformuladaapartirdadeterminaçãoeconômicapresentenadinâmicadocapitalismo,aqualgerariaaspré-condiçõestécnicas,sociaisetambémorganizacionaisparaaemancipaçãoproletária.MuitospensaramtambémaquinoBrasil,portanto,queessaco-lisãoentreautodeterminaçãopolíticaedeterminismoeconômicoseriaresolvidacasovoltássemosaojovemMarxerecuperássemoslastrosdesubjetividadeparaoprocessorevolucionário,ouseja,osujeitodarevolução.��

Contudo,umaoutrarecepçãoda teoriacríticadeMarxtornouessaambivalênciaentreautoemancipaçãoeastesesorto-doxasdodeterminismoestruturalmaisexplícita,eencontrouummodo de questionar o conceito do político vinculado à luta declassessegundoumanovagramáticada lutasocial.Eaquiche-gamosfinalmenteaocentrodenossasconsiderações.Partindodoqueentendemoscomoformulaçõesdeumateoriacríticarenova-da,gostaríamosdeinvestigar,aindaquedesobrevôo,seatendên-

16. Cf.Nobre,M.Lukács e os limites da reificação,pp.73ess.17. Cf.Lukács,G.História e consciência de classe.Trad.deRodneiNascimento.

SãoPaulo:MartinsFontes,2003,p.63-104.18. Note-sequeasreferênciasaojovemMarxapontamsempreparainterpre-

taçõesetextosbemdiversos.ParaGiannottieRuyFaustoosManuscritosde1844sãoparticularmenteimportantes;MichelLöwysevoltaàgêneseda teoriada revoluçãoqueculminanos textosde1848,ou seja, antesdaformulaçãodoMarxmaduroconsolidadanoCapital;MarcosNobrechamaatenção,valendo-sedeLukács,paraojovemMarxdeA miséria da filosofia.Aseguir,veremosqueainterpretaçãodojovemMarxestaráligadaàCrítica da filosofia do direito de Hegel.

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ciadeMarxareduzirainteraçãopolíticaàinstrumentalidadedasrelaçõesdeclassenãoolevariaadissolvertambémoconceitoam-pliadodopolíticonasdeterminaçõeseconômicasconstitutivasda“questãosocial”.Éimportanteressaltar,contudo,queessacríticaelaboradaapartirdahistóriadosefeitosimplicaquenosvoltemosàsobrasdeMarxnecessariamenteporumaviapoucoortodoxa,ou seja, comoolhar contemporâneodaquelesque recepcionamateoriacríticamarxistafundamentalmentecombasenasuahis-tóriadosefeitos.Naverdade,seguimosaquioutroricocampodediscussão–aindapoucoexploradonoBrasilnoquediz respei-toàinterpretaçãodeMarx–quesedesdobrounaFrança��,nosEstadosUnidos�0etambémfortementenaAlemanha��,paraficarcomosexemplosmaissignificativos.��TalcamponospermitiriainterpretaroconceitodopolíticodeMarxsemquearecuperaçãodesuasobrasdejuventudeaindapermanecessepresaàteoriadasclasses,eissoporduasrazões:primeiramente,porqueateoriadasclassesseriadeterminadapelopróprioquadroeconomicistaquemuitosprocuraramevitaraosedebruçaremnostextosdejuven-tude;emsegundolugar,porqueosconflitospolíticoscontempo-râneosampliariamoconceitodopolíticoparaalémdonúcleodasrelaçõesentrecapitaletrabalho–núcleoquepermaneceuquase

19. Cf.Baudrillard,J.Le miroir de la production.Ou, l ’illusion critique du maté-rialisme historique.Paris:1985;Castoriadis,C.L’Institution imaginaire de la Societé.Paris:ÉditionsduSeuil,1975.

20. Cf. Cohen, J. Class and civil society: The limits of marxian critical theory.Amherst:UniversityofMassachussetsPress,1982;Benhabib,S.Critique, norm and utopia.NewYork:ColumbiaUniversityPress,1986;Rundell, J.Origins of modernity: The origins of modern social theory from Kant to Hegel to Marx.Cambridge,1987.

21. Cf.Habermas,J.Erkenntnis und Interesse.Frankfurt/M:Suhrkamp,1968;Meyer,T.Der Zwiespalt in der Marx’schen Emanzipationstheorie: Studie zur Rolle des proletarischen Subjekts.Kronberg:1973;Honneth,A./Jaeggi,U.(org.). Theorien des Historischen Materialismus. Frankfurt/M: Suhrkamp,1977;Lohmann,G.Indiferenz und Gesellschaft.Frankfurt/M:Suhrkamp,1991.

22. ProcuramosreconstruiressedebatedeformamaisamplaeaprofundadaemMelo,R.S.Sentidos da emancipação: Para além da antinomia revolução versusreforma.SãoPaulo.Tese(doutorado).FFLCH-USP,2009.

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queintegralmenteintocadonahistóriadosefeitosdateoriamar-xistasobtradiçãouspianaaludidarapidamenteacima.��

Paraosfinsdeumartigoesquemáticocomoeste,ainterpre-tação de Jean Cohen nos parece particularmente representativadosproblemasa seremenfrentadosporessa reatualizaçãocríti-cadateoriamarxista.AautoraestáreavaliandoaconcepçãodeemancipaçãoemMarxcomosolhosvoltadosàsuacontempora-neidade,pretendendoassimcontribuirparaodesenvolvimentodeumanovateoriacríticadasociedade.Poisoqueserianecessárioàteoriacríticacontemporâneadiriarespeitoaumanovareflexãoteó-ricaeumanovainterpretaçãodacontestaçãosocialedapráxispolí-ticapresentesnadinâmicapolíticadasociedadecivil.Oconceitomarxistade classe (bemcomode sistema, totalidadeehistória)nãopossibilitariamaisumpontodepartidaquepermitisse“uni-ficar, teórica epraticamente, apluralidadede lutas emovimen-tossociaisnasociedadecontemporânea”.��Nãose tratadeumaabordagemmeramenteexternaaostextos,poisaautoratrataosdiferentesmomentoseformulaçõesdateoriadeMarxapontandonuancesecontradiçõesinerentesaodesenvolvimentoteóricoeàssuasconseqüênciaspráticas.AtesedaautoraconsisteemmostrarquetemosdepartirdeMarxsem,contudo,permanecermospresoa ele,pois a ampliaçãodoconceitodopolíticodesenvolvidonateoriadasclassessignificariaparadoxalmenteumestreitamentodapolíticaquandoaplicadaacontextosdeconflitodiferenciados.Osprocessospolíticoseadinâmicadalutaentreasclassesseriamtra-tadoscomomerosepifenômenosdasrelaçõeseconômicas.Énessatesemaisgeraldeumacríticafeitaaoparadigmaprodutivistadeemancipaçãoquevamosnosconcentrarmaisdetidamente.

III

CohenclassificaostextosdeMarxnosseguintesperíodos:acríticadasociedadecivilanteriora1844;aprimeiracríticada

23. Atualmente,taisproblemassãocentraisnapautadeumateoriacríticare-novadaeseusdiferentesmodelos.Paraumavisãodeconjunto,cf.Nobre,M.(org.)Curso livre de teoria crítica.Campinas:Papirus,2008.

24. Cohen,J.Class and civil society: The limits of marxian critical theory,p.xii.

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economiapolíticaem1844;ateoriadomaterialismohistórico;eateoriasistêmicadodesenvolvimentocapitalistanosGrundrisseeemO Capital,de1857-1883.��AautoramostracomocadaumdestesperíodospodeserinterpretadocomoumatentativadeMarxemdesenvolversoluçõesoualternativasaproblemassurgidos,so-bretudo,jáemsuaCrítica da filosofia do direito de Hegel.Emoutraspalavras,ateoriadasclassesresponderiaaproblemassurgidosemformulaçõespréviasdesuacríticadasociedadecivil.Oresultadodessedesenvolvimento,queculminanaelaboraçãodeOCapital,implicariaumadissoluçãosociológicadosprincípiosnormativosqueregulavamademocracia,bemcomoumacompreensãofun-cionalista do Estado democrático de direito. Marx assumiria aexistênciadeumsistemaúnico–omodocapitalistadeprodução–cujalógicapenetrariaeestruturariatodasasesferasdavida.OlivrodeCohenpermite traçaressepercursonasobrasdeMarxpor meio do qual este, privilegiando a economia política comoobjetodacrítica,nãoapenasteriacompreendidoasociedadecivileoEstadocomoinstituiçõesmeramenteburguesassubordinadasaosimperativosdeauto-valorizaçãodocapital,comoidentificariatambémas relaçõesdeclasseà lógicade reproduçãocapitalista.Dacríticadasociedadecivilanteriora1844atéseustextostar-diosaconteceriaassimumagradativareduçãodadinâmicaprópriada práxis política. Poderíamos notar uma provável “redução” emodificaçãodoconceitodepráxisnosdiferentesperíodosabor-dados ao entender como Marx o concebeu em seus primeirostextos,segundoaautora,comoumarica“interaçãopolítica”.Em1844talconceitopassaasignificarprincipalmente“objetivação”,enostextostardiosvaria,porfim,aindaentre“objetivação”e“lutadeclasses”.

ParaumarápidacompreensãododesenvolvimentopolíticodojovemMarx,parece-nosfundamentalpartirdadistinçãohe-geliana entre sociedade civil eEstado.EmsuaCrítica da filoso-fia do direito de Hegel,MarxincorporaaformulaçãodeHegeldasociedadecivil,entendendo-acomoumsistemadenecessidadesorganizadopelaeconomiademercado,porumsistema jurídico

25. Idem,p.24.

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que assegurava liberdades civis, e associações e corporações daadministraçãopública.��Contudo,elerejeitaasversõesliberaisehegelianadaliberdadepolíticaporrestringiremaformaçãopolí-ticadavontadeaoâmbitodasinstituiçõesdoEstado,resultandoassimem“alienaçãopolítica”.IssoporqueHegelprocurousuperarafragmentaçãoedesintegraçãoresultantedoprincípiodeautode-terminaçãoindividual,abstrataeegoístaqueregiaasociedadeci-vil,aosublinharavinculaçãodosindivíduosaâmbitosdoEstadoemqueseprivilegiariamosinteressesgeraissobreosparticulares,gerandoformasfundamentaisdesolidariedadesocial,taiscomoascorporações,aadministraçãoracionaldajustiçaeapolícia.��Nãoestavaemquestãonasoluçãohegelianaaparticipaçãopolíticaati-va,poisafunçãodascorporaçõesconsistiaemgarantiraintegra-çãosocial,mediandooEstadocomosindivíduosessencialmenteprivatizadosdasociedadecivil.

SegundoavisãodeMarx,oproblemadosistemahegelianodascorporaçõesedoEstadoconsistianofatodequenãodavamcontadosprincípiosimanentesàsociedadecivilexplicitadospelopróprio Hegel: “A estabilidade alcançada por meio da institu-cionalizaçãodasassociaçõesvoluntáriascomocorporaçõesequerequeriamoreconhecimentodoEstado(...)fatalmentesolapaaindependênciadasociedadecivil,cujosprincípiossãoaindividu-alidade,livre associaçãoeauto-organização”.��Tratar-se-iadeuma“críticaimanente”daspretensõesnormativasarticuladasporHegelentresociedadecivileEstado,emboracomarecusadesuasepa-ração.Emoutraspalavras,nãosetratavadeafirmaroelementodeatomizaçãodosindivíduosnasociedadecivilcontraoEstado,massimdenunciaresteEstadocomoumfalsouniversal, istoé,falsasoluçãoparaa fragmentaçãoda sociedadecivil.A tarefade suacríticaconsistiriaemextrairasnormasdas instituiçõespolíticas

26. Cf. Hegel, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt/M:Suhrkamp,1986,§§182-256. Cf. a interpretação fornecida emHonneth,A.Sofrimento de indeterminação: Uma reatualização da filosofia do direito de Hegel.Trad.deRúrionSoaresMelo.SãoPaulo:EsferaPública,2007,prin-cipalmenteaparteIII.

27. Cf.Hegel,G.W.F.Grundlinien der Philosophie des Rechts,§§230-256.28. Cohen,J.Class and civil society: The limits of marxian critical theory,p.28.

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modernasecontrastá-lascomaformainstitucionalparticulardoEstadoburguêsqueasrealizariamapenasemparte(ouseja,rea-lizariaapenasparcialmentealiberdadeeaigualdade,ajustiçaeademocracia,etc).“Acrítica imanente”,deacordocomCohen,“con-sisteemumprojetoduplo:(1)tematizareabriràdiscussãoaquelesprincípiosnormativosinerentesàsestruturaspolíticasmodernasquedeveriaminformarapráxissocialepolítica;e(2)demonstrarasconstriçõesinstitucionaisqueimpediamsuaatualizaçãonaso-ciedademoderna(críticadadominaçãoedaestratificação)”.��ÉfundamentalnoargumentodeCohenofatodequepensara“so-ciedadecivil”nãoimplicavavincularo“sistemadasnecessidades”comaquiloqueconstituirásuaanatomianostextosposteriores,asaber,otrabalhoeomododeproduçãocapitalista.UmavezqueMarxaindanãohaviareduzidoasociedadecivileoEstadoàsde-terminaçõesdaeconomia,eletevedefazeruma“críticaimanente”quesimplesmenteextraísseosprincípiosnormativosdasdemo-craciasmodernasecontrastá-loscomaquelasinstituiçõesqueim-pediriamsistematicamentearealizaçãodessesmesmosprincípios.“Democracia”significaria,deacordocomaexplicaçãodeDraper,“auniãodoEstadocomopovo.Elaconotaumasociedadeemqueaseparaçãoentreosocialeopolíticoé transcendida,emqueouniversaleoparticularnãomaisseopõem,emqueoEstadonãoseencontramaisalienadodasociedadecivil,e,porsuavez,estasociedadecivilnãoémaismeramenteaesferadointeresseindivi-dual”.�0Pelaprimeiravez,dizMarx,épossívelcomademocracia“averdadeiraunidadedouniversaledoparticular”.��

É ainda mais importante notar o fato de que a qualidadehumanamaisfundamental,ouseja,apráxis,serialocalizadaporMarxnointeriordasociedadepolítica.Marxentenderiatalpráxiscomo uma capacidade de autodeterminação política por meio da

29. Idem, p. 29. Sobre a questão da “crítica imanente” em Marx, cf. aindaWellmer, A. Kritische Gesellschaftstheorie und Positivismus. Frankfurt/M:Suhrkamp,1969,p.83-4.

30. Draper,H.Karl Marx’s theory of revolution I: The state and bureaucracy,p.86.31. Marx, K. Kritik des Hegelschen Staatsrechts. In: Engels, F.; _____. Marx-

Engels Werke.Band1,p.231.

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interaçãocomosoutrosemrazãodosinteressesdacomunidade.Aparticipaçãodosindivíduosnavidapolítica–enãoo“trabalho”,que seráconstitutivoapartirdosManuscritos de1844– seriaaverdadeiraexpressãodesuahumanidade.Masnamedidaemqueo Estado moderno emerge com suas instituições políticas pre-tensamente universais (parlamento, burocracia, exército, polícia,tribunais, etc.),mantém-seumaestratificação social e,por con-seguinte,umaesferadeindivíduosapolíticos,unidosapenaspelasnecessidadeseinteressesprivadosequedependemmutuamentedadivisãodotrabalhoedomercado.Àsociedadecivildelega-senãoumespaçodeautodeterminação,deatividadeautônoma,masdealienação políticaprópriadeumindividualismoirrestrito.Ora,nãohaverianessaformulaçãodojovemMarxumaconsideraçãomeramentefuncionalistadosprincípiosnormativosdarepúblicademocrática,talcomonostextosposteriores,poisaidéiadesobe-raniapopular,autonomia,igualdade,democracia,etc.,possibilita-riamarealizaçãojustamentedessaautodeterminaçãopolítica–eque,navisãocontemporâneadeCohen,seriafundamentalaindahojepara“instruir osmovimentos sociais contra a exclusão e aigualdadepolítica”.��

Oquedefiniria,alémdisso,ainclusãodaquestãodo“social”emseusprimeirosescritosresidenaconstataçãodeMarxdequehaverianaprópriasociedadecivilumaestratificaçãoprimáriaqueadotavauma formadedominaçãoapolítica,ou seja,quenão semostravana sua articulaçãomeramentepolítica (nosmodosderepresentação no interior do Estado). A posse ou falta da pro-priedade e a liberdadeouanecessidadede exercer trabalhoas-salariadosãoosfatoresdeterminantesdesuaanálisedeclassenointeriorda sociedade civil.Marx identificaassimumaclassedetrabalhadores assalariados que, apesar de seu papel central paraareproduçãoeconômicadasociedade,seriaexcluídadetodosos

32. Cohen,J.Class and civil society: The limits of marxian critical theory,p.33.EssatambéméaleituraencontradaemBehre,J.Volkssouveränität und Demokratie: Zur Kritik staatszentrierter Demokratievorstellungen.Hamburg:VSA,2004.EmboraoautormantenhatalinterpretaçãoinclusiveparaasobrasmadurasdeMarx.

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benefíciosmateriaisalcançadose,nãoobstante,veriatambémseusdireitosseremsistematicamenteviolados.Éimportantenotarqueasuperaçãodessaestratificaçãosocialocorreria,nessemomento,pormeiodeumapráxisdeautodeterminaçãoqueincluísseasne-cessidadesdessaclassenademandapolíticadasociedade.Poressarazão,insistindonasoberaniapopular,Marxdefendeaparticipa-çãode todos,poisasquestõesdoEstado,pornatureza,concernematodos:“Atendênciadasociedade civildetransformar-seemso-ciedadepolítica,oudefazerdasociedadepolíticaasociedadereal,mostra-secomoatendência,amaisuniversalpossível,àparticipa-çãonopoder legislativo”.��

Ora,oquecaracterizariaaaçãoautônomaparaumasocie-dadecivilindividualistaseriaofatodesermotivadasomentenointeresse,oqualsignificariaaexpressãodaalienaçãoaumaneces-sidadeespecíficadocapitalismo.Apenasumatransformaçãoradi-caldasnecessidades,ouseja,somenteaaboliçãodaestruturadosinteresses,libertariaosindivíduosdaalienação.Asociedadecivilburguesa e o Estado não possibilitariam a plena realização dasnecessidades radicais��, aefetivaçãodevaloresquepudessempro-moveraabundânciaeoenriquecimentodascapacidadesindivi-duaisecoletivas.AcríticadeMarxjásedirigiaassim“àlimitaçãododesenvolvimentodenecessidadesmúltiplasaumestratosocialparticular”,os“proprietários”.��

Contudo, abandonandoaperspectivada“crítica imanente”presentenolivrode1843,Marxbuscaráumadeterminaçãopo-sitivacapazdesuperarosistemadeinteressesaointerpretar,combasenoconceitodetrabalho,oproletariadocomoaúnicaclassecapazdedesenvolvertais“necessidadesradicais”.Será,portanto,nosseusManuscritos de1844queelepassaaintegrarnoconceitodetrabalhoaquiloquecompreendecomoumaatividadeespecí-

33. Marx, K. Kritik des Hegelschen Staatsrechts, In: Engels, F.; _____. Marx-Engels Werke.Band1,p.133.

34. Cf. Heller, A. Theorie der Bedürfnisse bei Marx. Westberlin: Vsa, 1987,principalmentep.85-107;eFraser,I.Hegel, Marx, and the concept of need.Edinburgh:EdinburghUniversityPress,1998,p.28e33-6.

35. Cohen,J.Class and civil society: The limits of marxian critical theory,p.68.

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ficadaclassetrabalhadora,asaber,otrabalhocomoalienaçãoesimultaneamentecomopotencialemancipatórioderealizaçãofu-turadasnecessidades–identificando,posteriormente,arealizaçãodeum“sistemadenecessidades radicais” à constituiçãodeumasociedadede“produtoresassociados”.��

Apartirdesuaprimeiracríticadaeconomiapolítica,Marxapresentaoconceitode trabalho segundoseureferencialeconô-mico (em que a atividade produtiva está estreitamente atreladaàformahistóricaespecíficadotrabalhoassalariado)oudeacor-do comumanoçãomaisfilosóficadeobjetivação (umprocessopormeiodoqualosindivíduoscriammaterialmenteesatisfazemsuasdiferentesevariadasnecessidades).Noprimeirocaso,trata-se da atividade heterônoma a que está submetido o proletaria-do:otrabalhotransformaaatividadedoindivíduoemummeioforçado de sobrevivência, o separa da coletividade, não permitequesereconheçanoseupróprioprodutoeosujeitaàdominaçãodeumsistemaanônimoeindependentedesuavontade.Nose-gundocaso,aatividadeautônoma,impossibilitadapelocapitalis-mo,consisteementenderotrabalhonãoapenascomoexpansãodascapacidadesenecessidades,mastambémcomocondiçãodepossibilidadedapróprialiberdade.Eprincipalmentenocontextodeseu“materialismohistórico”–emqueseabandonaumaima-gemexpressivistadetrabalhoporumconceitoreduzidoànoçãoeconomicistaeunilateraldeprodução(ouseja,trabalhoemgeral)–aforçamotrizdahistóriapassaaresidirnoconflitoentrefor-çasprodutivase relaçõesdeprodução,de sortequea superaçãodo capitalismo se funda na possibilidade de desenvolvimento ereapropriaçãocoletivadas forçasprodutivas.Aorompercomosentravesàexpansãodasnecessidades,daproduçãoedascapaci-dadesdeautorealização,ocapitalismocriariaascondiçõesparaauniversalizaçãodasnecessidades–emborasuaplenarealizaçãoseencontrassebloqueadaemcondiçõesdetrabalhoheterônomo,ouseja, sobomododeproduçãocapitalista.ApesardasdiferençasqueosconceitosdetrabalhoedeforçasprodutivasassumemnostextosdeMarx,oimportanteconsisteemfrisarque“aslutaspor

36. Cf.Lange,E.M.Das Prinzip Arbeit.Berlin:Ulstein,1980,pp.11ess.

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emancipaçãopodemagorasertravadasemnomedaslegitimaçõesinternasdoprópriocapitalismo:universalidade,desenvolvimentoesatisfação”.��

Nessa nova chave conceitual, o conceito de práxis políticateriadeserpensadoapartirdodesenvolvimentodasforçaspro-dutivasdemodoquetaldesenvolvimentonãoseopusesseaumateoriarevolucionáriadalutadeclasses.Serianecessárioidentificaraauto-atividadedosindivíduosedasclassescomoprópriodesen-volvimentodasforçasprodutivas.Oconceitodopolítico,intima-mentedependentedaidéiaderevolução,corresponderiasomenteàtransformaçãodomododeproduçãoque,pormeiodeumare-voluçãosocial,resultariaemumprodutosocialcoletivo.Contudo,haveriaumatendênciaemassimilaralógicadarevoluçãoprole-táriaaomodelorevolucionáriolevadoacabopelaburguesia,poisseufimúltimoresidirianodesenvolvimentoposteriordasforçasprodutivasiniciadopelaburguesia.Aoreduzirasrelaçõessociaisàsrelaçõeseconômicas,segundoCohen,suateoriadasclassesnuncapôde rompercomo“espelhodaprodução”e,portanto, acabariaporlimitaropotencialdaaçãohumanaexatamentecomoofezasociedadecapitalistaaqueMarxseopôs:

ÉirônicoqueMarxatribuaaoproletariadoaessência idênticaàqual a sociedade burguesa tentou reduzi-lo – força de trabalho.Definidasegundoauniversalidadedaforçadetrabalhoebaseadanalógicaracionalistatípicadaconsciência‘burguesa’,aclassedosproletários,paraserconsistente, temdeassumira tarefa iniciadapelaburguesia–afinalidadedaproduçãoesuaracionalização.��

Nessesentido,aatividadeealutapolíticadostrabalhadorespermaneceriamatreladasaomodelodeclasseburguês,repondonapráxisproletáriaaspectosdarealidadequeaburguesiahaviaantescriadoparasimesma.Coheninsistequeaslutasproletáriasteriamdeserentendidasantescomolutacontraaracionalidadecapitalis-taprodutivistaeseusimperativos,comocriaçãodeformasdeor-ganizaçãoedemandasqueexpressariamnecessidadesradicaispor

37. Cohen,J.Class and civil society: The limits of marxian critical theory,p.73.38. Idem,p.103.

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novasformasdevidaenovosvaloresquepudessemseapresentarcomoumaalternativaàdominaçãopresente.

Somente em seus textos histórico-políticos seria possívelromper,dealgumaforma,comoparadigmaprodutivistaparaacompreensãodeseuconceitodopolítico.Embora,aindaassim,ostextossejamperpassadosporumajustaposiçãodedoismo-delosde atividadepolítica e revolucionária: porum lado, umaanálisequeidentificaumconstanteprocessonoqualadinâmi-capolíticaenvolveumacomplexamisturadenecessidades(nãodiretamente ligadas à objetivação), tradição e símbolos; e, poroutro lado,o cálculo racionaldo interessede classequepene-tra a dinâmica complexa do jogo político. Desse modo, Marxconfrontaria seu rico“processodeanálise”dosacontecimentospolíticos nesses textos com um “esquema interpretativo” queresultaria reducionista.Nosescritoshistórico-políticos surgiriaumanoçãodelutapolíticaedehistóriabemdiferentedaqueladomaterialismohistórico:

Atradição,osmitos,umacompreensãonãoreducionistadossím-bolosedaideologia,daaçãorevolucionáriaedapolíticanãodeter-minadapelosinteressesmeramenteeconômicos,masmotivadaporumapluralidadede significados,necessidades emotivosque sãoreelaboradosapartirdopassado.��

Emvezdereconhecerosprocessospolíticoseacontecimen-tos históricos como interesse de classe, as rupturas radicais sãomotivadasporumconjuntodenecessidades,valores,tradições,as-piraçõesutópicas,etc.,queressurgemdeumpassadosempreporsecompletaremnovascombinaçõesenovos significados,man-tendoemabertoadeterminaçãodosentidodaemancipação.�0

Cohennota,porém,que“oqueMarxoferececomumamão,eletiracomaoutra”.A“brilhante”análiseedescriçãoqueremeteàimportânciadossímbolosetradiçõesdopassado,quesemes-clavamcomumapluralidadedenecessidades,interesseseidéias,e

39. Idem,p.113.40. Cf.Draper,H.Karl Marx’s theory of revolution I: The state and bureaucracy,

principalmenteparteII.

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quecompunhamemconjuntoamotivaçãodaatividadehistórica,édiluídapelaavaliaçãodeMarxdeacordocomaqualtalprocessonãoseriaimpulsionadosenãoporumagrandeilusãoqueobscu-receriaaconsciênciarevolucionária.Aointerpretartaisaconteci-mentos,eleprocurariadesmistificaras ilusões,mitosetradiçõesincessantesqueaindapesavamsobreaconsciênciadosatoresequeocultavamsuasrelaçõeseinteressesdeclasse.Naverdade,opontodereferênciaconsisteno idealdeumarevoluçãoproletáriaver-dadeiramenteuniversalqueserealizariaunicamenteemnomedeum interessede classe, oqualpelaprimeira vez representaria ointeressedetodaasociedadee,portanto,nãonecessitariaescreversuapoesiaapartirdopassado.

Seria no Capital, na formulação madura de sua crítica daeconomia política, que Marx concluiria a substituição de umacrítica imanente da sociedade civil pelo conceito de “modo deprodução”.SegundoCohen,a teoriadaevoluçãohistóricama-terialistadálugaraumaanálisedasformaçõessociaisquepar-tedeumadistinçãoentre“lógica egênese histórica”.��Comestadistinção,seriapossívelapresentarpelaprimeiravezaeconomiacomo uma totalidade sistêmica cuja lógica é fundamental paraa reprodução das relações sociais. Por um lado, os imperativosdoprocessoespecíficodeautovalorizaçãodocapitalcriamumasubordinação total dos indivíduos à economia. Com isso, nãoapenasas raízesdaalienação,mas tambémaprópriaconstitui-çãoprivilegiadadaidentidadedeclassedoproletariadoresidiriaunicamentenomododeproduçãocapitalista.��Poroutrolado,aovincularestreitamenteoconceitodeclasseaomododeprodu-çãocapitalista,ariquezadacríticamaduradaeconomiapolíticarepresentariaumempobrecimentosecomparadacoma“crítica

41. Cohen,J.Class and civil society: The limits of marxian critical theory,p.114.Ver tambémGiannotti, J.A.Origens da dialética do trabalho,p.182-94;eReichelt,H.Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei Karl Marx.Freiburg:çaira,2001,capítulo3.

42. Cf.aexplicaçãodeDraperparaoqueesteentendeseroquecaracterizaoconceitodeclasseemMarxapartirdedeterminaçõesespecíficasdomododeproduçãocapitalista,emDraper,H.Karl Marx’s theory of revolution I: The state and bureaucracy,p.33-48.

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imanente”dasociedadecivilnoquedizrespeitoàconcepçãodepráxis política em causa: no Capital, “a relação com a práxis ésomentedeterministaearbitrária”.��

Seasclasseseaslutasentreasclassessãoconstituídaspelalógica reprodutiva do capital, se o proletariado é fundido, ho-mogeneizado e posto pelo próprio capital como um momentode seu próprio processo de valorização, se essa lógica – junta-mentecomomercado–impõeumaestruturadeinteressessobreasnecessidadesindividuaisdaquelesqueparticipamcomoagen-tes da produção, “em que base se pode argumentar”, perguntaCohen,“queaauto-constituiçãodessesagentesdaproduçãoemumaclassequeseopõeaocapitalpodeseralgoamaisdoqueaafirmaçãosubjetivadalógicadoprópriocapital?”.��Aslutasdeclassesquepossibilitamodesenvolvimentodasforçasprodutivasparecem levar adiante a lógica presente na produção capitalis-ta,enãoconstituirumapráxisautônomaquecontestatallógicademaneira radical.Pois emmuitaspassagens“abarreira real àprodução capitalista é opróprio capital”.Aúnicapossibilidadedeação revolucionáriaapresentadaemOCapital consistirianaunificaçãodoproletariadonabasedasocializaçãoedahomoge-neizaçãodotrabalho,imanenteaoprocessodeprodução.Comorepresentantesdasforçasprodutivassocializadas,comopersoni-ficaçãodotrabalhosocial,o interesse“objetivo”doproletariadoteriadeconsistirnaaboliçãodoslimites impostos pelocapitalaoposteriordesenvolvimentodasforçasprodutivasesuaorganiza-çãoconscientedeacordocomumplanocentralizado.Ainteraçãopolíticaperderiasuadinâmicaprópria,poishaveriaumadeduçãodeumalógicadalutadeclassesapartirdalógicadereproduçãocapitalistaedassuas contradições imanentes:

Asúltimasimplicaçõesdaintegraçãodoconceitodeclassesocialemumadinâmicadaprodução,datransformaçãodasclassesempersonificaçãodasrelaçõesdeprodução,emsuma,da lógicadocapitalcomoumalógicadelutadeclasses,setornaevidentelogoque essa lógica do desenvolvimento interno e das contradições

43. Cohen,J.Class and civil society: The limits of marxian critical theory,p.50.44. Idem,ibidem.

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passamaditaradinâmicadaconstituiçãodaclasseedatransfor-maçãohistórica.��

Pois,comoconfirmariaopróprioMarx,“odesenvolvimen-to histórico das contradições de uma forma de produção exis-tente é a única via histórica de sua dissolução e de uma novaconfiguração”.��

IV

AinterpretaçãoparadigmáticadeCohenpermiteavaliarqueolimitedoconceitodopolíticodeMarxcomoorientaçãoeman-cipatóriaconsiste,assim,nasuarestriçãoparadarcontadeumaampliaçãodedemandas,atores,equestõesaseremincluídosnaspreocupaçõesdeumateoriacríticacontemporânea,poisaslutasemancipatóriasquejánãoseriammaislocalizadasnoâmbitodaclassetrabalhadoraacabariamsendonegadasouconsideradaszo-nas de conflitos marginais. Contudo, as relações entre capital etrabalhoderamlugaraumaoutratipologiadosconflitos,ouseja,àslutasemtornodaintegridadeeautonomiadediferentesformasdevida,espaçosdeautorrealização,conquistasdedireitoeauto-determinaçãopolítica.Dessaoutraperspectiva,ateoriadasclasses“excluiperigosamenteapossibilidade(...)depoderhaveroutrosmodosdedominaçãoquenãoasrelaçõesdeclassesócio-econô-micas,outrosprincípiosdeestratificaçãoalémdeclasse(naciona-lidade,raça,status,sexo,etc.),outrosmodosdecriaçãohistóricaedeinteraçãoquenãootrabalhoeapráxisrevolucionária,outrasfontesdemotivaçãoparaaorientaçãodaaçãosocial,outrasformasdeinteraçãopolítica(participação)quenãorelaçõeshierárquicasdepoder, eoutrasmaneirasde contestar a sociedade capitalistaquenãoaslutasdeclasseemtornodenecessidadesradicaisqueemergemnadialéticadotrabalho”.��

45. Idem,p.174.46. Marx, K. Das Kapital. Erster Band. In: Engels, F.; _____. Marx-Engels

Werke.Band23.Berlim:DietzVerlag,1998,p.512.47. Cohen, J. Class and civil society: The limits of marxian critical theory, p.

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O modelo crítico do jovem Marx da Critica da filosofia do direito de Hegel,quepartiadasanálisesdasociedadecivil,parecemaisricoecheiodeconseqüênciasemrelaçãoàsuahistóriadosefeitosporqueestavacentradonarealizaçãoradicaldasoberaniapopularpormeiodeummodelodeautodeterminaçãoeinteraçãopolíticasnãocircunscritoàsrelaçõeseconômicas:

SemdúvidaMarxpermaneceucomprometidocomosvaloresdaliberdadepública,democracia,autonomiaeigualdade,masapenasemseustextosmaisiniciaiselevislumbrouumaformadedemo-craciadiretabaseadanodesenvolvimentoposteriorda sociedadecivil,enãonasuaabolição–umaformaqueprotegeriaoindivíduoeointegrarianasociedadeenoEstadopormeiodesuaprópriaparticipaçãoativa.��

Nessecontextodejuventude,arealizaçãodas“necessidadesradicais”dacomunidadepolíticanãoestavalimitadaaosinteres-sesprivilegiadosdeumaúnicaclasse,permitindoumarecepçãomaisricaaoolharvoltadoparaosdesafiosdapolíticacontempo-rânea,poisnãopodemoscontinuarpressupondoqueosinteressesdeclasseaindarepresentemlegitimamentetodasasnecessidadesque compõemapluralidade e a complexidadedadinâmicadosconflitospolíticos,osquaisnãosãomaisdeterminadospelasre-laçõeseconômicasentrecapitaletrabalho.Deoutraforma,nãoépossívellevaradianteumaampliaçãodoconceitodopolítico.Masareconstruçãodessanovagramáticadalutasocialnosremeteaumaoutrahistória.��

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A música em Schelling

Fernando R. de Moraes Barros�*Professor adjunto da Universidade Federal

do Ceará.

* AgradecemosaoCNPqpeloauxílio.

Resumo: O presente artigo contamostrar o papel exercido pela mú-sica no interior do pensamento deSchelling. Para tanto, espera-se in-dicaramaneirapelaqualofilósofoalemão redimensiona as bases queatéentãodavamsustentaçãoàesté-ticatradicionalpara,apartirdeumaponderaçãoinovadora,caracterizaraartedossonscomoumaformaori-ginaldesaber.

Palavras-Chave: Schelling,música,ritmo,modulação,melodia.

Abstract:This article aims at sho-wingtheroleplayedbymusicwithinSchelling’s thought.To accomplishthis task, it intends to indicate thewaytheGermanphilosophertrans-formsthefoundationsoftheso-cal-led traditional aesthetics in ordertocharacterizemusicasanoriginalformofknowledge.

Keywords:Schelling,music,rhythm,modulation,melody.

Quesemprecoubeàluz,enãoaosom,atarefadeiluminarocaminhoasertrilhadopelosujeitodoconhecimento,eisalgoquesaltaaosolhosdequempercorreahistóriadafilosofia.Sendoomaishelióidedosórgãoshumanos,éàvisãoqueseatribui,emgeral,anossacapacidadededescerraraestruturaobjetivadarea-lidade.E,embaladosporessacrença,osfilósofosnuncahesitaramemafirmarqueaalmadohomemésemelhanteaoolhar.Senãocontemplaaregiãodeondeirradiaaluzdasidéias,deixando-seenredarpelavolubilidadedosoutrossentidos,suaalmapoucoco-nheceedesvia-sedoidealdeinteligibilidade.Bemmenosfreqüen-te,porém,éasuposiçãodequeamúsicapodeserlegitimamenteequiparadaaummodoprivilegiadodesaber.Emnossoentender,éjustamentetalpressupostoqueseachaemjogonahipótesedeinterpretaçãoafirmadaporSchellingemsuaFilosofia da arte.

Longedeserfortuita,essaousadatentativadefundarumaoutrainstânciadedeterminaçãoparaoconhecimentodeve-se,em

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maioroumenorgrau,àinfluênciaexercidapelaestéticamusicalromântica.Suigeneris,talvertenteinterpretativajulgavaencontrarnamúsicainsígniasespeculativasqueatornariapreferívelaoutrasformasdeconhecer,porquantopressupõemumaidentidadeestru-turalentresomemundointeligível.Maisaté.Senostextosqueperfazem os cânticos os ditos significantes permanecem atarra-xadosadeterminadossignificados,acruateiaderelaçõessonoraspercebidapeloouvinteformaria,anteriormenteàsimagensacús-ticasusadasparaformaçãodosignolingüístico,umcampolibertodos limitesdosignificado–únicocapazdeacessardiretamenteoindelineáveluniversodossentimentos.OquesedeixaentrevernaseguinteexclamaçãodeWackenroder:“Masporquedesejoeu,toloquesou,dissolveraspalavrasemmúsica?Elasnuncaexpri-memaquiloquesinto.Vinde,oh!sons,acorreiesalvai-medestadolorosabuscadepalavrasaquinaterra”.�

Pretendendo ultrapassar as diferenciações produzidas pelarazão, a estética musical romântica acabou, porém, por substi-tuiraverdadeapofânticadosenunciadospelaverdadeenquantoumaespéciedeauto-manifestação.AquestãoquesecolocaparaSchellingéadecomoadministraresselegadosemreeditar,nosmesmos termos, os dispendiosos compromissos metafísicos quedormitamsoboromânticoisomorfismoentresomemundointe-ligível.Valendo-sedoléxicomusicalcomoumpreciosovocabulá-rioimagético,aeleinteressasuperaroslimitesatinentesàestru-turaconvencionalda linguagemcomvistasàsuperaçãopositivadacisãoentrerazãoesensibilidade,bemcomoentreoutrospólosdicotômicosintroduzidospelodualismometafísico.Seamúsica,conformeoveredictodeKant,nãosedeixaapreenderfacilmentesobaformadeumjuízoestético,jáquenãosepodedizer“seumacorouumtom(som)sãomeramentesensaçõesagradáveisouemsijáumbelojogodesensações”,�tantopiorseria,depoisdarevo-

1. Wackenroder,W.H.“DaseigentümlicheinnereWesenderTonkunstunddie Seelenlehre der heutigen Instrumentalmusik”. In: _____. Phantasien über die Kunst.Stuttgart:Reclam,2000,p.86.

2. Kant,I.Crítica do Juízo.In:_____.Os Pensadores.Trad.deRubensRodriguesTorresFilho.SãoPaulo:AbrilCultural,1974,p.260.

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luçãocopernicanaemfilosofia,irmaná-laapenasànoçãode“coisa”empírica.Doravante,nãoésuficientedesestabilizaratradição,quejulgaaesferamusicalapartirdocódigoclássicoderepresentaçãoeoutorga-lhesomentequalidadessecundárias.Cumpretambémrenunciaràconcepçãodesonoridadecomocompletaexteriorida-de,concebidacomoconjuntodepropriedadesacústico-mecânicasligadasunicamentepor relações causais.ESchelling,que contatransporaoscilaçãoentrejogodassensaçõesejulgamentodafor-ma,tratarádedizerque,emseubifrontismo,amúsicareconheceosdoisladosdamoeda:“consideradadeumlado,[amúsica]éamaisuniversalentretodasasartesreais,eaqueestámaispróximadadissoluçãonapalavraenarazão,embora,deoutro lado, sejasomenteaprimeirapotênciadelas”.�

Amúsicaéamaisuniversaldentretodasasartes,porqueéasíntesedaquiloque,paraareflexão,permaneceseparado,desortequeadotá-lacomooperadorteóricoequivaleacolocar-senacon-tracorrentedavertenteespeculativaqueconcebehomememundocomoduasinstânciasdistintaseimpermeáveisentresi.�Afinal,paralembraraspalavras lapidaresdoautordeIdéias para uma filosofia da natureza:“Malohomemsepôsemcontradiçãocomomundoexterior(....)dá-seoprimeiropassoemdireçãoàfilosofia.Éemprimeirolugarcomestaseparaçãoquecomeçaaespeculação;deago-raemdianteeleseparaaquiloqueanaturezadesdesempreuniu,se-

3. Schelling, F. W. J. Filosofia da arte.Trad. e notas de Márcio Susuki. SãoPaulo:Edusp,2001,p.161.

4. Porque toma tal cisão como problema central, a interpretação schellin-guiananãodeixadeser,emgrandemedida,umpassorumoàprópriadis-soluçãodametafísicadogmática.ÉnessesentidoqueArturoLeyte,autornoqualnosfiamos,pondera:“Seatradiçãoracionalistaconfirmadecisiva-menteumacisãoentrerazãoesensibilidade,quecondenaaarteaocuparumlugaràmargemdaverdade,noromantismosequestionaradicalmentetalcisãoatéconduzi-laàsuaculminaçãoteórica.Nocursodesseprocessodoromantismo,afilosofiadoidealismocorrespondeaumaposiçãopri-vilegiada,porquantonelaseconcebecomoproblemaepontodepartidaaquelacisãometafísica,e,comosolução,aformulaçãodeumaunidade”.Leyte,A.“Schellingy lamúsica”. In:Anuário Filosófico (29).Pamplona:UniversidadedeNavarra,1996,p.107.

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paraoobjetoeaintuição”.�Depoisqueaintuiçãoésuprimidaparafavoreceraespeculaçãosobreoobjeto,acomplementaridadeentreamboscedeterrenoaumarelaçãointransitivasoboinfluxodaqualosujeito,tornadoobjetoparasimesmo,identifica-secomaativi-dadedeumaconsciênciaquejánãoserelacionacondicionalmentecomomundo,senãoquecomrepresentaçõesquedeleseafastam.Eohomem,separando-sedomundo,separa-sedesi.Razõessuficien-tesparadizerqueacontrovérsiadosfilósofosnadamaisseriaqueoreflexoampliadodeumlitígiomaisrecuado,porquantopartedeum“conflitoorigináriodoespíritohumano”.�

Ésobtalânguloquesepodecompreenderaduplicidadedoproblema-cujasoluçãoserájustamenteaFilosofia da arte.Porumlado,oidealdeinteligibilidadetemcomopreçoadissipaçãopre-datóriadaforçaespiritualhumana,jáque,deummeroesquemadeabreviação,aseparaçãoentresujeitoeobjetoarvora-seemumfimirredutívelaoprópriomundo:

Estaseparaçãoéummeio,nãoumfim(...)Ohomemnãonasceuparadissiparasuaforçaespiritualnalutacontraafantasiadeummundoimaginadoporsi(...)Portanto,ameraespeculaçãoéumadoençaespiritualdohomem,mesmoamaisperigosadetodas.�

Poroutrolado,secontraessafilosofiaquefazdaespeculação,nãoummeio,masumfim,todas“asarmassejustificam”,�acríticadeSchellingsearticulaaserviçodeumcontra-idealartísticoquenãopodedeixardesertambém,noutropatamarreflexivo,ummo-vimentoinéditorumoàconstruçãofilosóficadaarte:“Oacréscimo‘arte’em‘filosofiadaarte’apenasrestringe,masnãosuprime,ocon-ceitouniversaldefilosofia.Nossaciênciadeveserfilosofia”.�

5. Schelling, F. W. J. Ideias para uma filosofia da natureza. Trad. de CarlosMorujão.Lisboa:INCM,2001,p.39.

6. Schelling,F.W.J.Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo.In:_____.Os Pensadores.Trad.,seleçãoenotasdeRubensRodriguesTorresFilho.SãoPaulo:AbrilCultural,1979,p.10.

7. Schelling,F.W.J.Ideias para uma filosofia da natureza,p.39. 8. Idem,ibidem. 9. Schelling,F.W.J.Filosofia da arte,p.27.

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Aponderaçãofilosófica sobreaartenãoé,pois,umtópi-co entre outros.Trata-se, ao contrário, de uma forma de sabercujatarefaconsisteem“expor no ideal o real que existe na arte”,�0buscandoaidentidadenotodoefomentandoovínculoentreouniversaleoparticular.ASchellingcaberáentãodisporasformasartísticas em sériesdistintas, adepender senelaspreponderaoaspectofísicoouoladoespiritual,massemperderdevistaquetal distinção marca apenas uma diferença de grau, já que am-bos,espíritoematéria,remetemaumamatrizdialéticacomum:“Aquiloqueconhecemosnahistóriaounaarteéessencialmenteomesmoquetambémexistenanatureza”.��Alémdeoutras,umaconseqüência curiosadessa convergência é a escolhadamúsicaparaocuparoprimeirolugarnointeriordasériequedesignaaunidade real -“física”porexcelência -, ao ladodapinturaedaplástica.Maisdoqueumasimplesextravagância,aescolharefleteumaopçãometodológica.Poder-se-iaterirmanadoamúsicaàssuaspotencialidadesparalelasnointeriordasérieideal,como,porexemplo,aoladodapoesialírica–jáque,libertadasdimensõesespaciaisquecaracterizamapinturaeescultura,àmúsica,comomatériavibrante,conviriaomínimodesuportematerial.Mas,éjustamente issoqueoautordaFilosofia da artequerevitar.Emvezdereduzi-laaumaartedossentimentosouvalidarotriunfodasubjetividade,eleesperapôremevidênciaquea“músicanadamaiséqueoritmoprototípicodapróprianatureza”.��Issonãooimpele,porém,àconclusãodeque,emsuamaterialidade,amú-sicaéummerosersemsignificação.Tantoéassimque,referin-do-seàuniversalidadedesentidodaprópriasonoridade,eledirá:“Naformação-em-umdoinfinitonofinito,aindiferença,comoindiferença,sópodeaparecercomosonoridade”.��

Polissêmicos,ostermosindiferençaeformação-em-umindi-camaidentidadeentrerealeideal,sujeitoeobjeto,nãocomopartesisoladas,mascomomodosdeapresentaçãodeumacontinuidade

10. Idem,p.27.11. Idem,p.28-9.12. Idem,p.31.13. Idem,p.147.

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infinitaquevaideumpóloaooutro.Condicionadoporessamútuaacessibilidade, o objeto se constitui em relação ao sujeito e viceversa,desortequeosaberquedelesdecorrenãoadvémdenenhumdosdoisemparticular;mastampoucodeumterceiroelementoemqueambossereuniriamnaformadeumasomatória:

Entendeu-se(e,emparte,aindaseentende)aidentidadeabsolutadosubjetivoedoobjetivocomoprincípiodafilosofia,empartedeformameramentenegativa(comomeraindistinção),empartecomomeraligaçãodeduascoisas-em-simesmasopostasnumaterceira.��

ÉcomcautelaqueSchellingencaraomovimentoderetornoàteseapartirdanegaçãodaantítese.Éclaroqueestaúltimanãopodefaltar.Eécertoaindaqueoretornoàprimeiraécondiçãonecessáriaparaquehajaqualquersíntese.Aprópriasuperaçãosu-põe,afinaldecontas,conflitoeunidade.Issonãooobriga,porém,adarocréditoànegatividade,cedendo-lhe,sobaformadeumaterceiraunidade,aintensivapositividadedaafirmação.Seomo-mentodanegaçãotornou-seimanente,foiporqueumavisãodeconjunto mais ampla relativizou as dicotomias. E como Bruno,personagemdeseudiálogohomônimo,Schellingterminapondoem cena“uma unidade que, por sua vez, vincula a unidade e aprópriaoposição”.��

OautordaFilosofia da arteoperacomose,damáximaafir-maçãodaidentidadedoscontrários,asuadialéticadevessesupe-rarpositivamenteasdiversasmodalidadesdodualismo,nãorumoanovas sínteses,masemdireçãoauma sínteseoriginária, cujamáximaexpressãoseresumenaindiferençadoinfinitonofinito.Essa indiferença é justamente a sonoridade. E não é acidentalofatodeSchellinginiciarseudiscursosobreamúsica,no§76detalobra,estabelecendoumparalelismoentreasonoridadeeomagnetismo-categoriafísicaque,nocontextodafilosofiada

14. Schelling,F.W.J.Ideias para uma filosofia da natureza,p.127.15. Schelling,F.W.J.Bruno ou do princípio divino e natural das coisas.In:_____.

Os Pensadores.Tradução,seleçãoenotasdeRubensRodriguesTorresFilho.SãoPaulo:AbrilCultural,1979,p.89.

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natureza,defineoprimeiromomentodaconstruçãodamatéria.��Nãohá,afinal,comoisolarospólosmagnéticosdeumímã.Este,vindoaseromper,converte-senumnovomagneto,reproduzindoasextremidadesopostas.Sendoqueomaisrelevante–paraaqui-loquenosimporta–éofatodeque,porsernula,adivergênciadocampomagnéticonãopermiteomonopóliodenenhumdoslados. E essa indiferença, na música, “só ocorre na sonoridade,poisesta=magnetismo.”��

Encaradaapartirdaindiferenciaçãoquelheconstitui,aso-noridadeé,pois,acondiçãomesmadaexperiênciamusical,hajavistaquenenhumacordepoderiadeterminar-sesemantesterfei-toparte,aindaquevirtualmente,deumamálgamavaziodedeter-minações.Somé,noentanto,transmissão.Ressoarimplicatrans-mitir-seaoutrem,desorteque,semdiferenciar-sedesimesma,asonoridade,comoindiferença,éinaudível.Donde:“Condiçãodosomé,portanto,queocorposejapostoforadaindiferença,oqueacontecepelocontatocomumoutro.”��Aformação-em-umnãopode,namatéria,serexpostapuramentecomotaleasonoridade,porsuavez,nãoprescindedeumcorpoqueafaçaecoar.Oór-gãoauditivo,nessesentido,seriaomagnetismodesenvolvidoatéaperfeiçãoorgânicaeaaudição,porseuturno,seriaasonoridadeintegradaaoseuoposto:“elasetorna=ouvido”.��

Mas,essaligaçãodamúsicacomasdimensõesdamatériasódeixa-seapreender,comefeito,quandoexpostaàluzdeumacom-binatóriatripartitededefinições.Acercadestaúltima,Schellingresume: “ritmo = primeira dimensão, modulação = segunda di-mensão, melodia = terceira”.�0 Com tal escalonamento, o autordaFilosofia da arteesperaretomar,noutrachave,oesquemageraldadopelasínteseentresujeitoeobjeto,masdesortearevelar,pela

16. Cf.,aessepropósito,Schelling,F.W.J.“Primeiroprojetodeumsistemadafilosofiadanatureza:esboçodotodo”.In:_____.Entre Kant e Hegel.Trad.deJoãosinhoBeckenkamp.PortoAlegre:EDIPUCRS,2004.

17. Schelling,F.W.J.Filosofia da arte,p.148.18. Idem,p.149.19. Idem,ibidem.20. Idem,p.154.

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estrutura interna da música, a indiferença que vigora à base deambos.Oargumentoconsideraque,peloritmo,amúsicaestaria“determinadaparaareflexãoeparaaconsciência-de-si”.��Como propósito de justificar tal caracterização, Schelling vale-se danoçãodetempo:“Aformanecessáriadamúsicaéasucessão.–Poisotempoéaformauniversaldaformação-em-umdoinfinitonofinito”.��Fadadoaorganizarapercepçãosobaformahumanadeintuição,aoouvintenãoseriadadoapreenderossonsforadasu-cessãotemporal,restando-lheintuirotempo,demaneiraindireta,porumalinhaimagináriaaolongodaqualomúltiploperfazsu-cessivamenteumasériedeumaúnicadimensão.Daí,amúsicasóter“umaúnicadimensão”.��

O próprio magnetismo atuaria longitudinalmente, já queaforçamagnéticaé,emrigor,tangencialàlinhadeseuprópriocampo–istoé,seusentidoacompanhaadireçãodeseucompri-mento.Sesetratassedeexportalcategorianaintuição,ter-se-iaqueimaginarumesquemadadotambémpelalinhareta,desortequeomagnetismoseria,analogicamente,aexpressãodotemponascoisas.Mas,seotempoéoprincípiodaconsciência-de-si,cumprenãoperderdevistaqueumadasfunçõesdestaúltimaéprecisamenteocontar:“Amúsicaéumaenumeração-de-sirealdaalma”.��Assim,alémdocaráter sucessivoe longitudinal,aoritmoseriaatribuídoaindaumaspectomarcadamentearitmé-tico,sendoqueéjustamenteissoquefarádamúsica,“notodo,umaartequantitativa”.��

Dandocontinuidadeàsuaponderação,Schellingseencar-regaentãode retiraroutrasconclusõesdadimensãorítmica.Acomeçar por sua capacidade de introduzir a diferença na uni-dadeorigináriadasucessão,que,deinsignificante,torna-sesig-nificativa:“oritmoéemgeraltransformaçãodasucessãoemsiinsignificantenumasucessãosignificativa(...)transformaçãodo

21. Idem,ibidem.22. Idem,p.150.23. Idem,ibidem.24. Idem,ibidem.25. Idem,p.173.

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contingentedasucessãoemnecessidade=ritmo”.��Divisãoperi-ódicadohomogêneo,oritmovinculaaunidadeàmultiplicidade,sendoqueéporissoque

ohomemprocura,pormeiodoritmo,pôrmultiplicidadeoudiver-sidadeemtodasaquelasocupaçõesque,emsi,sãopura identidade.Nãosuportamospormuitotempoauniformidadeemtudoaquiloqueéemsiinsignificante.��

Aqui, diferentes graus de determinação poderiam ser al-cançados.Omaiselementarseriaaquelequeseccionaotododasucessão em divisões uniformes, atribuindo valores de duraçãoigualmentegrandesedistantesnaordemdotempo.Umtipomaisricoserialogradopelacadência[Takt],quedivideotempoapartirde intensidadesevaloresdiferentesentresi:“Umaespéciemaisaltadeunidadenadiversidadepodeserantesdetudoalcançadaquandoos sonsoubatidas individuaisnãosão indicadoscomamesmaforça,masvariandoentreoforteeofraco(...)Aquiaca-dênciaentracomoelementonecessárionoritmo”.��

Emlinhasgerais,aconclusãoaqueSchellingesperanoslevaréadeque,pormeiodoritmo,otodonãoésubmetidoaotempo,masotememsimesmo,dandoaconhecerumasucessãoquenãoésimplesmenteimpostaporumaordemexterior;nãoselimitan-doasignificarotempo,massendoumcomele,oritmoinstituisuaprópriacadência.Masconsideradaemsuaprimeiradimen-são,omesmoédizer, emumaunidadepuramentequantitativa,a música não passa de uma unidade incompleta, carente, comoomagnetismo,deunidadesulteriores.Emboraseja“amúsicanamúsica”,��oritmonãopodefiar-se,porsisó,emalgoefetivamen-teatuanteatéconfigurar-senumaunidadequalitativamentemaissubstancial. Daí, o papel a ser exercido pela modulação. “Nesseaspecto”,lê-se,“amodulaçãoéentãoaartedemanter,nadiferença

26. Idem,p.152.27. Idem,p.151.28. Idem,p.152.29. Idem,ibidem.

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qualitativa,a identidadedotomqueéodominantenotododeumaobramusical.”�0

Schellingnãoutiliza apalavramodulação em sua acepçãotécnica.Seaelenãoimportaerigiruma“teoria”daarte,tampoucoteria cabimento, a essaaltura, abandonara construçãofilosóficadamúsicaemproldasignificaçãoinstrumentaldotermo.Afinal,comoelemesmoirádizer:“Conduzircantoeharmonia,median-te as chamadasmodulações e resoluções, atravésdevários tons,para enfim voltar de novo ao primeiro tom fundamental, é ummodo artístico que já pertence inteiramente à arte moderna”.��Mas,comoovalorexpressivodeumdeterminadoacordedependedarelaçãocomosdemaisagrupamentosdaestruturaharmônica,adquirindodiferentesmatizesemvirtudedeseaproximarounãodeumcentrotonal-deleseafastando,porexemplo,comosub-dominante,ou,então,deleseaproximandocomodominante-,oautordaFilosofia da arteveráaíapossibilidadedeatribuiràmo-dulaçãoatarefadeexporaidentidadeapartirdaprópriadiferençaqualitativaentreossons.Exercendo-se,pois,emtaldimensão,amúsica determina-se para a “sensação e para o juízo”�� e, dessemodo,converte-seemsubjetividade.

Pormeiodoritmo,amúsicaexpande-sequalumaforçacentrí-fuga,alongando-semaisemais;pormeiodamodulação,concentra-se,agrupando-secentripetamentenaformadeajustamentossono-roscoexistentes.Mas,assimcomooolhar“natural”nãodecompõeanaliticamenteaalturaeocomprimentodaquiloquecontempla,aaudiçãotampoucosedetémnoexamedoselementosquantitativosdosompara,aíentão,dedicar-seàsuaqualidade.Indivisa,percep-çãomusicalpõe-seàescutadeumtodo,demodoqueadiferençaentreritmoemodulaçãosótemvalidadecomodiferentesângulosde visãonosquais se reflete amesma identidade.E, casonão sedeixemagruparemtornodeumaoutrasíntese,reflexãoesensaçãopermanecerãoformasunilateraisdecompreenderaindiferençaen-

30. Idem,p.153.31. Idem,ibidem.32. Idem,p.154.

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Fernando R. de Moraes Barros A música em Schelling

trerealeideal.Daí,aimportânciadamelodia.Comela,Schellingesperaindicaroestreitovínculoentreritmoemodulação:“Ater-ceira unidade, na qual as duas primeiras [ritmoemodulação] estão equiparadas, é a melodia”.��Pormeiodestaúltima,amúsicaestariadeterminadaparaa“intuiçãoeimaginação”,��deixando-seapreen-der,porfim,comouniãoentre sujeitoeobjeto.Aqui,oautordaFilosofia da artecontareencontrar,emoutrachave,aidéiadesímbo-lo[Sinnbild],encontrobem-vindoedecisivodoesquematismoedaexposiçãoalegórica,��momentoemqueaparticularidadedosomsefundeàuniversalidadeabstratadafilosofiadamúsica.

Nãoporacaso,Schellingiráelegeroidiomasonorodosan-tigoscomooidealretrospectivomaiscondizentecomsuaexpo-sição, julgandopossível localizá-lo,aindaquesobummodo“al-tamentedissimulado,nocanto coral”.��Aoenalteceresteúltimo,o filósofo opta pelo registro melódico-linear em detrimento daconcatenaçãoharmônica,achando-se,comisso,nacontramãodamodernidadeartísticadaqualsesabefatalmentecontemporâneo.Imputar-lhe,porém,amarcadoconservadorismoéignoraroteor“universal”desuaponderação.Atentoàuniãoentresujeitoeobje-to,eletemeque,peloexcessodeharmonização,amúsicaconver-ta-seaosubjetivismo,bemcomoaovirtuosismoautocomplacente.Maisaté.Emvirtudedanaturezaalegóricadapuramúsicahar-mônica,elereceiaque,poraí,aartedossonstorne-seexpressãodesofrimento,existindoapenasparasignificaroinfinito,comoumesforçonostálgicodo indivíduoparavoltaraumaunidadeper-dida.Porquebuscaoinfinitonofinito,amelodiaschellinguiana

33. Idem,p.153.34. Idem,p.154.35. Cf.,aesserespeito,ofinoecélebrecomentáriodeRubensRodriguesTorres

Filho:“Osímbolo,encontrodasduasmetadesdamedalha,anulaçãoda‘au-sência’pressupostapelaBedeutung,nãoé,pois,apenasoopostodaalegoria,comoparaGoethe,ouosucedâneodoesquema,comoemKant:estáemnível superiorecontémaambos.É issoque, traduzindocommuita feli-cidadeapalavra‘símbolo’,otermoalemãoSinnbild(imagem-sentido)põeemevidência.”TorresFilho,R.R.“OsimbólicoemSchelling”In:_____.Ensaios de filosofia ilustrada.SãoPaulo:Iluminuras,2004,p.114.

36. Schelling,F.W.J.Filosofia da arte,p.155.

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submete-seàorientaçãosimbólica:ondenemouniversalsignificaoparticularnemoparticularouniversal,masondeambossãoum.Énessacondiçãoqueamúsica,maisdoqueumtema,éumsaberquesubmeteouniversalaoparticularedissolve,aomesmotempo,esteúltimonoprimeiro.Sejánãosepodeescutá-la,issonãosedeveaoseucaráterfilosófico,masaoalaridodeumaespeculaçãoquesedeixouarrastarpelaseparaçãoentrerazãoesensibilidade.

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Da natureza à liberdade: as conjeturas sobre o começo da história

e a destinação moral da humanidade

Bruno NadaiDoutorando do Departamento de Filosofia

da Universidade de São Paulo

Resumo: Trata-se de apresentarbrevemente alguns dos pontos dis-cutidos por Kant no Começo conje-tural da história humana, indicandoa conexão deste texto com outrosmomentos da filosofia da históriakantiana. Chamamos atenção paraos pressupostos teleológicos queestãonabasedestahistóriaconjetu-ral,mostrandoas imbricaçõesentreo desenvolvimento das disposiçõesnaturais humanas e a destinaçãomoraldahumanidade.Palavras-chaves:Kant,história,ra-zão, teleologia, cultura, destinaçãomoral

Abstract: We briefly introducesome ideas discussed by Kant inthe Conjetural beginning of Human History,indicatingitsconnectiontoanothermomentsofKant’sphiloso-phyofhistory.Westresstheteleolo-gicalpresuppositionsonthegroundof this conjetural history, showingthe connections between the deve-lopment of human natural predis-positions and the moral destiny ofmankind.

Keywords:Kant,history,reason,te-leology,culture,moraldestiny

Comosesabe,diferentementedeoutrosfilósofosdeseutem-po,Kantnão foiumhistoriador.Apesardesua forteconsciênciahistórica–lembremos,porexemplo,doPrefáciodaprimeiraediçãodaCrítica da razão pura,ondeKantcaracterizasuaépocacomoa“épocadacrítica,àqual tudotemdesesubmeter”–,aobrakan-tiananãoseestruturaapartirdaconfrontaçãocomfatoshistóri-cospassadosoupresentes(exceçãofeita,éclaro,àsuarecepçãodaRevoluçãoFrancesa).Grossomodo,poderíamosdizerqueoprojetodeinvestigaçãodascondiçõesdepossibilidadedoconhecimentodanaturezaedaaçãomoralresultanumafilosofiamaisatentaaoquehádeatemporalnaracionalidadehumana–asestruturastranscen-dentaiseapriorísticasdasubjetividadequegarantemobjetividadeaoconhecimentodanaturezaefundamentamauniversalidadedoprincípiomoral–doqueaosseusprocessosdedesenvolvimento.

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Aindaassim,nãosãopoucasaspassagensdaobrakantianaconsagradasdiretamenteaotemahistória,sobretudoàsquestõesligadasaoprogressopolíticodahumanidade,emespecialaospro-blemasdasaídadoestadodenaturezaeentradanoestadociviledapossibilidadedoestabelecimentodeumapazduradouraentreosEstadosepovos.Esseéotemacentral,porexemplo,detextoscomo a Idéia de uma história universal de um ponto de vista cos-mopolita, À Paz Perpétua, o Conflito das faculdades, entre outros.UmaleituraatentadessestextosnosmostraaindaqueKantpensaoproblemadoprogressopolíticodahumanidadenachavemaisgeraldadiscussãodarelaçãoentrenaturezaeliberdade.Aidéiacentralaíéadequeohomeméumserdanaturezadotadodedisposiçõesoriginaiscujodesenvolvimento–quenãoésenãoodesenvolvimento da capacidade humana de fazer uso da razão– leva-oaabandonarasuacondição inicialdepertencimentoànatureza,permitindo-otornar-seconscientedesuapeculiarepa-radoxalcondiçãonouniverso,adeumserquepornaturezaestádeterminadoadeterminarasimesmolivremente.�Aesseproces-soKantdáonomedecultura.ÉdelequeseocuparásobretudooComeço conjetural da história huamana,textopublicadoemjaneirode1786naBerlinische Monatsschrift,revistanaqualKantpublica-riaamaioriadosseustextosdeintervençãonodebatedopúblicoletradodaépoca–taiscomoIdéia de uma história universal (1784),Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento?(1784),O que significa orientar-se no pensamento (1786),Determinação do conceito de raça humana (1786), Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática (1793),etc.

OComeço conjeturalfoipublicadonochamado“períodocrí-tico”dafilosofiakantiana(quecompreendetodooperíodopos-terioràpublicaçãodadissertaçãolatinaDe mundi sensibilis atque intelligibilis forma e principiis, apelidadade Dissertação de 1770).

1. Cf.Kant,I.Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.Trad.deRicardoTerraeRodrigoNaves.SãoPaulo:MartinsFontes,2003,pp.6-8[VIII20-21].Cf.tambémKant,I.“Começoconjeturaldahistóriahumana”.Trad.deBrunoNadai.In:Cadernos de filosofia alemã, no.13.SãoPaulo,2009,p117,nota[VIII117].

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Segundoentendemos,ecomosugerimosnaapresentaçãoquese-gue,oComeço devesercompreendidonumalinhadecontinuidadeque se inicia na Idéia de uma história universal e desemboca naCrítica da faculdade do juízo,emparticularnoseuparágrafo83.

Kant abre o escrito em questão buscando precisar no queconsistiriaumahistóriaconjetural.Elanãodeveserconfundidacomahistóriapropriamentedita, compostaapartirdos relatosdosfatosdopassado.Tampoucoeladeveserentendidacomoumameraficção,aquiloemqueresultariaumahistóriacompostaso-menteapartirdeconjeturas.Evidentemente,oprocedimentodeintroduzirconjeturasnasnarrativashistóricasnãoéumainvençãokantiana: ele também se faz presente na narrativa dos fatos dopassadotalcomorealizadapeloshistoriadores.ComoopróprioKant reconhece, “é permitido intercalar conjeturas na progressão deumahistóriaparapreencherlacunasnosrelatos”(p.109[VIII109]).Oquenãoélícito,porém,anãoserquesequeiraescreverumromance,écriarumahistóriaapenasapartirdeconjeturas,aqual“nãopoderia trazeronomedeumahistória conjetural,masapenasodeumameraficção”(p.109[VIII109]).

Semseconfundircomahistóriacompostaapartirdosre-latos do passado, a história conjetural kantiana indica hipóte-sesquepossamdar sentidoaopercursodahumanidadedesdea saída de sua condição natural inicial, de completa rudeza eanimalidade, até o estado presente de civilização e cultura. Oqueconfereplausibilidadeàhistóriaconjetural,distinguido-adameraficção emqueresultariaumahistóriainteiramentebaseadaemconjeturas,éofatodeelapartirdeumprimeirocomeçoque,segundoKant,“nãoprecisaserinventado,maspode serextraí-dodaexperiênciaquandosepressupõequeemseucomeçoelanãoeranemmelhornempiordoqueaencontramosagora”(p.109[VIII109]).Essealgoquenãoprecisaserinventado,equeservirácomopontodepartidadahistóriaconjetural,nãoéoutracoisasenãoapróprianaturezahumana,oumelhor,oconjuntodasdisposiçõesnaturaishumanas.Kantdefendeatesedequeasdisposiçõesnaturaishumanassãoinvariáveisnotempo,istoé,dequeemseucomeçoanaturezahumananãoeranempiornemmelhordoquehojeaexperiêncianos revela.Oqueexplicaria

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que hoje o homem seja mais cultivado e civilizado do que nocomeçodesuahistórianãoéumprogressodanaturezahumana,massimummaiorgrau de desenvolvimento dassuasdisposiçõesnaturais–tantoéqueKantinsiste,porexemplo,emqueacadanovageraçãoahumanidadetemdepercorrernovamentetodoodesenvolvimentoculturalecivilizatóriotrilhadopelasgeraçõesanteriores(cf.p.117,nota[VIII117]).Daíadefiniçãodahistó-riaconjeturalcomoa“históriadoprimeirodesenvolvimentodaliberdadeapartirdasdisposiçõesoriginaisnanaturezadoho-mem”,distintada“históriadaliberdadeemsuaprogressão,queapenaspodebasear-seemrelatos”(p.109[VIII109]).

Atentativadecircunscreverumdiscursosobreahistória,quenãoseconfundecomahistóriadoshistoriadoresmaspretendesermaisdoquemeraficção,retomaoprojetodeconstituiçãodeumahistóriafilosóficaesboçadoporKantnaIdéia de uma história uni-versal de um ponto de vista cosmopolita.AliKantjádistinguiaa“his-tória propriamente dita, composta apenas empiricamente” (cujaorigemremontaàTucídides)da“históriauniversaldomundo”ou“históriadogênerohumano”,�ressaltandoqueestaúltimaresultaemalgomaisdoqueummeroromanceporbasear-senumacertaconcepçãododesenvolvimentoteleológicodasdisposiçõesnatu-raishumanas.�

NasprimeirasproposiçõesquecompõemaIdéia de uma his-tória universal Kantexpõeoque lá recebeonomede“doutrinateleológicadanatureza”�equepodemoscaracterizarbrevementenosseguintestermos:todososseresvivostêmdisposiçõesnaturaisdestinadasadesenvolver-seconformeaumfim;nohomemessasdisposiçõesnãosãoapenasdisposiçõesanimais, ligadasaos ins-tintosepartilhadascomosdemaisseresdanatureza,mastambémdisposiçõesvoltadasparaousodarazão;seudesenvolvimentoexi-geprática,exercícioseensinamentos,oquesópoderealizar-senaespéciecomoumtodo,aolongodeumasérieindefinidadegera-

2. Cf.Kant,I.Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita,pp.19-22[VIII29-30].

3. Cf.idem,proposiçõesIaIIIeIX. 4. Cf.idem,pp.5-8[VIII18-20].

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ções.QuandonoComeço Conjetural Kantdefineahistóriaconje-turalcomoa“históriadoprimeirodesenvolvimentodaliberdadeapartirdasdisposiçõesoriginaisnanaturezadohomem”,écomessamesma“doutrinateleológica”�queeleestáoperando.�

5. NoComeço Conjetural Kantnãousaaexpressão“doutrinateleológicadanatu-reza”–quealiás,segundonossoconhecimento,sóocorrenaIdéia–,massim“filosofiadanatureza”:ahistóriaconjetural“nãopodesercomparadaàquelahistóriaqueésempredenovoestabelecidaeacreditadacomorelatorealdosmesmosacontecimentosecujaprovasebaseiaemrazõestotalmenteoutrasqueasdeumamerafilosofia da natureza”(pp.109-10,grifomeu[VIII109]).

6. Cumprenotar,noentanto,queofatodea“doutrinateleológica”servirdepontodepartidaparaahistóriakantiananãotornamenosproblemáticaasua circunscrição epistemológica, afinal a representação teleológicadana-tureza(ou,sequisermos,a“doutrinateleológicadanatureza”)nãoencontralugarno conhecimentodanatureza talqual fundamentadopelaAnalíticaTranscendental da Crítica da razão pura: a idéia de conformidade a fins(Zweckmässigkeit)nãoéconstitutivadocampodaexperiênciapossível (cf.Nadai,B.Teleologia e História em Kant: a idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.Dissertaçãodemestrado.SãoPaulo:FFLCH-USP,2006, cap. I).ParaKant, é apenasnum registrohipotéticoqueodiscursofilosóficosobreahistóriapodepretenderlegitimidade;queeleochamede“idéia”–lembremosqueparaKantasidéiassãorepresentaçõescujoobjetotranscendeocampodaexperiênciapossívelmasque,apesardisso,têmumusoheurísticoadequadocomoreguladorasdoconhecimentoempírico (cf.Kant,I.Crítica da razão pura.Trad.deManuelaPintodosSantoseAlexandreFradiqueMorujão.Lisboa:FundaçãoCalouste-Gulbenkian,1989,pp.307-8e533-5[B367-368eB671-673])–oude“conjetural”nãoésenãoindíciodestapreocupaçãoemdiferenciá-lodoconhecimentoteóricodanatureza.

Nãoéporacaso,portanto,queoconteúdodahistóriafilosóficaexpostanaIdéia enoComeço sejaretomadonaCrítica da faculdade do juízo,ondesecon-solidaum“conhecimento” teleológicodanaturezaautônomoemrelaçãoàestrutura judicativa posta em marcha na ciência da natureza strictu sensu,produtonãomaisdeum“usohipotéticodarazão”,massimdoquesepassaa chamarde“juízo reflexionante teleológico”.Comomostra a“Críticadafaculdadedojuízoreflexionanteteleológico”,aexperiêncianospõediantedecertosprodutosdanaturezacujapossibilidadenãoconseguimoscompreen-dersenãoquandoosjulgamossegundoumconceitodefim,conceitoquenãoéconstitutivodaexperiência,massemoqualessesobjetosrestariamparanósininteligíveis(cf.Kant,I.Crítica da faculdade do juízo.Trad.AntônioMarqueseValérioRohden.RiodeJaneiro:ForenseUniversitária,2002,§63).Umavezqueoconceitodefimnaturalfoi justificadoemsuavalidadesubjetivae heurística enquanto um princípio transcendental da faculdade de julgarreflexionante,abre-seapossibilidadedeconsideraranaturezaemseutodo

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Noentanto,seosdoistextostêmemsuabaseamesmadou-trinadasdisposiçõesorigináriasdahumanidade,éprecisosalien-tarumelementofundamentalqueosdistingueemsuaarticulaçãointerna.EnquantoaIdéia temumaorientaçãoprospectiva,epro-curadelinearadireçãoparaaqualpodemossuporqueahistóriahumanaseencaminhanamedidaemqueohomemdesenvolveassuasdisposiçõesnaturais,oComeço temumaorientaçãoretrospec-tivaebuscaesboçaropercursoquesepodesuportertrilhadoodesenvolvimentodessasmesmasdisposiçõesnaturais.

Nessa orientação retrospectiva, destaca-se no Começo Conjetural um recurso literário aparentemente estranho ao Kant“demoletudo”.Omesmoautorque,comolembramosacima, ca-racteriza a sua época como a“época da crítica”, ressaltando quenemmesmoareligiãopodepretenderescaparaessecrivo,�recor-reráagoraàBíbliacomo“mapa”paraorientaroexercíciodepen-sarcomoteriasidoodesenvolvimentodasdisposiçõeshumanasapartirdeseuprimeirocomeço.Comoveremos,KantfarácoincidirpassagensdoGênese (livrosIIaoVI)comosmomentosmaisim-portantesdesuahistóriaconjetural.Assim,opecadooriginaleaexpulsãodojardimdoÉdencorresponderãoà“passagemdatuteladanaturezaparaoestadodeliberdade”(p.116[VIII115]).Ahis-tóriadeCaimeAbelcorresponderáaomomentodosurgimentodaagriculturaedopastoreio,passagem“doperíododacomodida-deedapazparaodotrabalho ediscórdia[...],prelúdiodauniãoemsociedade”(p.119[VIII118]).Operíodoquesesegueaoassassi-natodeAbelporCaimcorresponderáaodadispersãodogênerohumanopelaTerra,osurgimentoda“culturae[...]ainstituiçãodealgumaconstituiçãocivilejustiçapública”(p.120[VIII119]).

Entretanto, o leitor não deve precipitar-se e interpretar asreferênciasàBíbliacomoseareligiãoestivesseentrandopelapor-tadosfundosdafilosofiacrítica.Esserecursoliterárionãodeve

comoumsistemadefins(cf.idem,§67).Ohomem,oumelhor,ocultivar-se dahumanidade,podeentãoserajuizadocomooúltimofimdessesistemateleológicodanatureza,paraoqualtodaelaseorienta(cf.idem,§83).

7. Cf.Kant,I.Crítica da razão pura,p.5[AXI].

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levar-nos a confundir apropostakantiana comalgo comoumainterpretaçãoreligiosadahistóriahumana.Trata-se,antes,dauti-lizaçãodotextosagradodoscristãoscomoummapaparaorientarumaconstruçãodiscursivacujocaráteréeminentementeconcei-tual,aindaquenãopretendaacertezadeumconhecimentoapo-díticooudeterminante�eseapresentecomoummero“exercíciodaimaginação,emcompanhiadarazão,concedidoparaorecreioesaúdedoânimo”(p.109[VIII109]).ComodizKant:

Postoqueaquimeaventuroemumameraviagemprazerosa,pos-so conceder-meapermissãodeutilizarumdocumento sagradocomomapae,aomesmotempo,imaginarqueminhajornada,querealizonasasasdaimaginaçãomasnãosemumfiocondutorqueseligaàexperiênciapormeiodarazão,sigaexatamenteamesmalinhaqueaqueledocumentosagradocontémesboçadanaformadehistória.Oleitorabriráaspáginasdessedocumento(1.Moisés Cap.II-VI)e,passoapasso,verificaráseocaminhoqueafilosofiatomasegundoconceitoscoincidecomaquelequeahistóriaindica(p.110[VIII109-10]).

SepodemosnosservirdoGênese comodeummapaaorien-tar-nos nessa “viagem prazerosa”, é apenas para verificar se eleconferecom“ocaminhoqueafilosofiatomasegundoconceitos”.Éafilosofia–ou,sesequiser,sãoasconjeturasformuladasquandoconsideramosahistóriapregressadahumanidadeapartirdofiocondutordodesenvolvimentodesuasdisposiçõesnaturais–queindicaopercursoaserseguido.ABíblia servedemapa,masaquiloqueomaparepresentaéprodutodarazão.

8. Apretensãomeramenteconjetural destareflexãokantianasobreocomeçodahistóriahumanapermite-nosaproximá-ladotipodediscursooriundooudouso hipotéticoda razão – queo“Apêndiceàdialéticatranscendental”daprimeiraCrítica justificaapartirdointeressedarazãopelaunidadesis-temáticadosconhecimentosdanatureza,usoquese opõeaouso apodíticoquecaracterizaoconhecimentoteóricodanatureza (cf.,Kant,I.Crítica da razão pura,pp.535-6[B674-675])–oudosjuízosreflexionantestelológi-cos –que a“Críticada faculdadede juízo teleológica”da terceiraCrítica justificaapartirdavalidadesubjetivadoconceitodeconformidadeafins(Zweckmässigketi)enquantoumprincípiotranscendentalprópriodafacul-dadedojuízo.

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Feitasessasponderaçõesmetodológicas,Kantpassaaenu-merarascondiçõesiniciaisdequeasconjeturasterãodepartirequenãopodemserderivadaspelarazãodecausasnaturaispre-cedentes.Sãoelas:aexistênciadeumcasaldesereshumanosemidade adulta; a existênciade apenasumúnico casal; a presençadessecasalemumlugarasseguradocontraoataquedeanimaisselvagenseprovidopelanaturezacomosmeiosdesubsistêncianecessários;e,porfim,queesseprimeirocasaldesereshumanossejacapazdeandar,comunicar-seepensar(pp.110-1[VIII110]).NãoédifícilnotaroparalelocomasituaçãodeAdãoeEvanoÉden.Sejacomofor,asrazõesparataiscondiçõesiniciaissãoasseguintes:ossereshumanostemdeexistiremidadeadultaparaquenãosejaprecisopressuporumamãeacuidardeles,oquele-variaaumregressoinfinito,eéprecisoquehajadesdeoinícioumcasalparaqueahumanidadesejacapazdesereproduzir;temdeexistirapenasumúnicocasalporqueaindanãoháestadojurídicoe,havendomaisdeumcasal,surgiriadeprontoaguerra;ocasaltemdeestarpresentenumlugarprotegidodosanimaiseprovidodealimentosparaquepossasobrevivermesmoantesdainvençãodaagriculturaedacriaçãodascidades.

Diferentementedastrêsprimeirasdascondiçõesenumera-das, todas elas relacionadas com a manutenção do homem nosentido fisiológico (reprodução, conservação e alimentação), apressuposiçãodequemesmonesseprimeirocomeçoohomemseja capaz de se comunicar e pensar já implica, segundo Kant,algumdesenvolvimentodassuasdisposiçõesnaturais.Emcon-formidade com o que afirma na terceira proposição da Idéia,�Kantnotaqueessascapacidadestiveramdeseradquiridaspelohomem, isto é, que elas não são inatas e, por isso mesmo, sãoresultadodeumprimeirodesenvolvimentodassuasdisposiçõesoriginais.SegundoKant,duasrazões justificamquenãoinicie-

9. “Anaturezaquisqueohomemtirasseinteiramente de situdooqueultrapas-saaordenaçãodesuaexistênciaanimal. [...]Elenãodeveriaserguiadopeloinstinto, ou serprovido e ensinadopelo conhecimento inato; eledeveria,antes,tirartudodesimesmo”.Kant,I.Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita,p.6[VIII,19].

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mosahistóriaconjeturalapartirdacompletarudezadanaturezahumana. Primeiro, o fato de o intervalo correspondente a essedesenvolvimentopresumivelmentecompreenderumgrandees-paçodetempo,razãopelaqualasconjeturasaseurespeitosetor-nariamexcessivaseasuaverossimilhança,muitopouca.Segundo,porque,umavezquesepartedohomemjácomessegraumínimodedesenvolvimentode suashabilidades,ficaabertoocaminhopara“tomaremconsideraçãoapenasodesenvolvimentodoquehádemoralemseufazerenãofazer,oqualpressupõenecessa-riamenteaquelashabilidades”(p.111[VIII110]).

Chegamosassimaumpontoquenosparecefundamentalecomoqualpretendemosconcluirestanossaapresentação.Comoficasugeridonotrechocitadoacima,oprocessodedesenvolvimen-todasdisposiçõesnaturaishumanasrevela tambémumaspectomoral,oumelhor,épossíveldestacaralgodemoralnocultivar-sedahumanidade.Issoficarámaisclaronomomentoposteriordotexto,quandoKantdescreveosquatropassospormeiodosquaisarazãosetornaativanohomem.Ospassossão:

1)Aonotarquenãoprecisarestringirsuaalimentaçãoàquiloqueo instinto lhe recomenda,ohomemtorna-seconscientedequearazãolhepossibilitaestender-semuitoalémdoslimitesemqueanaturezaoconfina(p.112[VIII111-2])–oparaleloaquiéoprovardofrutoproibido.

2)Aoperceberquepormeiodesuaimaginação,afastandodossentidosoobjetododesejo,épossívelprolongareaumentaroestímulosexual,quenosanimaisésemprepassageiro,ohomemtorna-seconscientedequearazãopodetersupremaciasobreosimpulsos(enãoapenaspermiteescolherentrediferentesobjetosdainclinação,comonoprimeiropasso)(pp.113-4[VIII112-3])�0–oparaleloaquiéafolhadafigueirasobreosgenitais.

10. Éinteressantenotarqueessemomentojáanunciaadestinação moraldahu-manidade.Comentandoessepasso,Kantafirmaquecomelesedesenvolvenohomemumacertapropensãopara,“pormeiodasboasmaneiras(ocul-tandoaquiloquepoderiacausardesprezo), insuflarnosoutrosorespeitoparaconosco”–oqual“ofereceu,enquantoverdadeirabasedetodasociabi-

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3)Aodar-secontadequeasuasobrevivênciadependedeseutrabalho,quesuavidaérepletadesacrifíciosedeque,aofinal,o que lhe advémé amorte, ohomemdesenvolve a capacidaderacionaldeprojetarnofuturoumaexistênciamelhor,istoé,elesetornaconscientedasuacapacidadedegozarnãomeramenteosmomentospresentesdavida,mastambémdetornarpresentesosmomentosfuturos��(pp.114-5[VIII113-4)–oparalelosãoos“castigos”queDeusimpõeaohomemquandodescobrequeelescomeramdofrutoproibido,emespecialoanúnciodequeagoraohomemterádecomeropãonosuordeseurosto.

4)Aonotarquepodeusartodasasoutrascriaturasdanatu-rezacomomeioparaarealizaçãodeseusfins,ohomemtorna-seconscientedeque éo verdadeirofim da natureza (p. 115 [VIII114])–oparaleloaquiéomomentoemqueDeusdáaAdãoeEvapelesparaquesevistame,afirmandoqueelesagoraseigua-lamaelenoconhecimentodobemedomal,osexpulsadoÉden.Ofundamentalnessequartopasso,noentanto,resideemqueeletrazconsigoaidéiadequeseporumladoohomempodeusartodaanaturezacomomeioparaarealizaçãodeseusfins,poroutrolado“elenãodevedirigir-sedetalmodoanenhumhomem,mastemdeconsiderá-locomoparticipanteigualnasdádivasdanatu-reza”(p.115[VIII114]),comoquesepõe“empéde igualdadecomtodos os seres racionais [...]emrelaçãoàpretensãode serseu próprio fim,deseraceitocomotalportodososoutrosedenãoserusadoporninguémcomosimplesmeioparaoutrosfins”(p.115[VIII114]).

Ora,pretender“serseuprópriofim”e“nãoserusadopornin-guémcomosimplesmeioparaoutrosfins”éoquecaracterizaaidéia de dignidade humana em Kant, afirmada, por exemplo, naseguinteformulaçãodoimperativocategórico:“agedetalmaneira

lidade,o primeiro indício da formação do homem como uma criatura moral”(p.114,grifonosso[VIII113]).

11. Cf.Tambémessepassoanunciaadestinaçãomoraldahumanidade,poisacapacidadedeesperarporumfuturomelhor“éomaisdecisivosinaldaprer-rogativa humana de,emconformidadecomsuadestinação,preparar-se para fins mais distantes”(Idem,ibidem,grifonosso[VIII113]).

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queusesahumanidade,tantonatuapessoacomonapessoadequalqueroutro,sempreesimultaneamentecomofimenuncasim-plesmentecomomeio”.��Ouseja,osquatropassosterminamportrazeràconsciênciadohomemadimensãomoralinscritanasuaracionalidade,àqualKantdáonomededestinaçãomoral.

Esseacentonarelaçãoentrehistóriaedestinaçãomoraldaespéciehumana,que,comovimos,dáatônicadoComeço conjetu-ral,éumpontoimportantequedevemosreterquandobuscamoscompreenderodesenvolvimentodafilosofiadahistóriakantianadesde as suasprimeiras formulaçõesdoperíodo crítico.Emborao possível significado moral do desenvolvimento da cultura nãoestejaausentedeumtextocomoaIdéia de uma história universal,��éinegávelqueneleoacentorecaisobreosignificadopolíticodes-sedesenvolvimento–apontodeumcomentadorcomoOtfriedHöffechegaraafirmarqueemsuafilosofiadahistória“Kantli-mitaoprogressoàjustiçapolítica,arelaçõesjurídicasnoâmbitonacionaleinternacional”,��ouqueofimterminal(Endzweck)dahumanidadeserestringeaoEstadodeDireito.��Noentanto,comoKantmostrano§83daCrítica da faculdade do juízo,desenvolvendoinsights doComeço conjetural,osentidomoraldoprogressopolíticoéinseparáveldoprocessodedesenvolvimentodacultura.Maisdo

12. Kant,I.Fundamentação da metafísica dos costumes.Trad.dePauloQuintela.Lisboa:Edições70,2001,p.69[IV429].

13. Comaentradanoestadocivil,afirmaKant,“dão-seentãoosprimeirosver-dadeirospassosquelevarãodarudezaàcultura,queconsistepropriamentenovalor socialdohomem;aídesenvolvem-seaospoucos todosos talen-tos,forma-seogostoeteminício,atravésdeumprogressivoiluminar-se,afundaçãodeummododepensarquepodetransformar,comotempo,astoscasdisposiçõesnaturaisparaodiscernimentomoralemprincípiosprá-ticosdeterminadoseassimfinalmentetransformarumacordoextorquidopatologicamente parauma sociedade emum todomoral” (Kant, I. Idéia de uma história universal,p.9[VIII21]).

14. Höffe,O.Imannuel Kant.Trad.deChristianHammeValérioRohden.SãoPaulo:MartinsFontes,2005,p.275.

15. Cf.Idem,ibidem.Alémdisso,comoinsisteKantno§84daterceiraCrítica, ofimterminal(Endzweck)dacriaçãoéohomemenquantosercapazdede-terminarasiprópriosegundooprincípiodamoralidade.Cf.Kant,I.Crítica da faculdade do juízo,p.276[V435].

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que isso, é este sentido moral que permite a Kant admitir umaorientaçãoteleológicaparaodesenvolvimentodacultura.��

O§83daterceiraCrítica articulaarelaçãoentrehistóriaemo-ralpormeiodosconceitosdefim último efim terminal (Endzweck).Ohomemsópode ser consideradoofimúltimodo sistema te-leológicodanaturezanamedida emqueé capazdedeterminarmoralmenteasuavontade,eahistóriahumanaseapresentacomoodesenvolvimentoda“habilidadeparatodaaespéciedefins,paraoqueanatureza[...]podeserporeleutilizada”��,aqualpreparaohomemparaqueelevenhaadeterminar-sesegundoumfimespe-cíficopostopelasuarazãopuraprática,oprincípiodamoral.��

PublicadodoisanosdepoisdaIdéia de uma história univer-sal equatroanosantesdaCrítica da faculdade do juízo,oComeço conjetural da história humana éo lugarondeKant introduzpelaprimeiravezumacertadiferenciaçãonoconceitodefimquecul-minaránadisjunçãoentrefimúltimoefimterminal(Endzweck)��

16. ÉoqueKantexpressapormeiodaformulação,porcertoabstrata,segun-doaqualohomem(ouodesenvolvimentodacultura)éoúltimofimdosistemateleológicodanaturezasomentesefizerdesimesmofimterminal(Endzweck)dacriação–oqueseriaomesmoquedizerquesópodemostomarodesenvolvimentodaculturaedacivilizaçãocomoumfimdana-turezaporqueohomemécapazdedarumsentidoà suaexistênciaquetranscendeanatureza,aodeterminar-sesegundoaidéiadeliberdade,istoé,aodeterminar-sesegundolheordenaasuarazãopuraprática.Cf.idem,p.271[V431].

17. Idem,p.270[V430].18. É o que Kant resume na seguinte formulação: “Enquanto único ser na

Terra que possui entendimento, por conseguinte uma faculdade de vo-luntariamente colocar a si mesmo fins, ele é corretamente denominadosenhordanaturezae,seconsiderarmosestacomoumsistemateleológico,oúltimofimdanaturezasegundoasuadestinação;massempresósobacondição–istoé,namedidaemqueocompreendaequeira–deconferiràquelaeasimesmoumatalrelaçãoafinsquepossasersuficientementeindependentedapróprianatureza,porconsqüênciapossaserfimterminal(Endzweck),oqual,contudonãopodedemodonenhumserprocuradonanatureza”(Idem,ibidem).

19. ComonotaWeyand,“adiferenciaçãono conceitodefimem‘fim termi-nal’ (Endzweck) e ‘fim último’ se dá somente na Crítica da faculdade de julgar”,mas“quando,nacitação introduzidaacima[istoé,emVIII114],

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que orienta toda a reflexão sobre a história tal qual exposta naterceira Crítica. Explicitando de que modo, com o desenvolvi-mentodacultura,ohomemsetornaconscientedasuadignidadeenquantopessoamoral–idéiacentralnafilosofiamoralkantianadesdeaFundamentação–,noComeço conjetural KantressaltaquesuadivergênciacomRousseau,quantoàvisãonegativadesteemrelaçãoàsaídadoestadodenatureza,nãoresidetantonumadis-cordânciaquantoaosaspectosnegativosdavidaemsociedade(pp.118-9[VIII116-7]),masmuitomaisnofatodeRousseaunãoterpercebidoo sentidomoralque sepodedestacarnoprocessodedesenvolvimentoculturalecivilizatóriodahumanidade.

Bibliografia:

HÖFFE,O.Imannuel Kant.Trad.deChristianHammeValérioRohden.SãoPaulo,MartinsFontes,2005.

KANT,I.Kants Werke.AkademieTextausgabe.Berlin:WalterdeGruyter&Co,1968.

_____. Crítica da razão pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos eAlexandre Fradique Morujão. Lisboa: Ed. Fundação Calouste-Gulbenkian,1989.

_____.Crítica da faculdade do juízo.Trad.deValerioRohdeneAntónioMarques.RiodeJaneiro:ForenseUniversitária,1995.

_____.Fundamentação da metafísica dos costumes.Trad.dePauloQuintela.Lisboa:Edições70,2001.

_____. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.Org.RicardoRibeiroTerra.Trad.deRodrigoNaveseRicardoR.Terra.SãoPaulo:MartinsFontes,2003.

NADAI,B.Teleologia e História em Kant: a idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.Dissertaçãodemestrado.SãoPaulo:FFLCH-USP,2006.

WEYAND, K. Kant Geschichtsphilosophie, ihre Entwicklung und ihr Verhältnis zur Aufklärung.Köln:KölnerUniversitätsverlag,1964.

Kantfalaqueohomemsetornafim da natureza [...]semencionacomissoa segunda e importantenova idéiadafilosofiadahistória: aproblemáti-cadofim(Zweck),queKantesclareceránaCrítica da faculdade do juízo”.Weyand,K.Kants Geschichtsphilosophie, ihre Entwicklung und ihr Verhältnis zur Aufklärung.Köln:KölnerUniversitätsverlag,1964,pp.130-1.

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Começo conjetural da história humana�∗

Immanuel Kant

Certamenteépermitido intercalar conjeturasnaprogressãodeumahistóriaparapreencherlacunasnosrelatos:poisoquevemantes,enquantocausalongínqua,eoquevemdepois,enquantoefeito,podenosoferecerumadireçãobastanteseguraparaades-coberta das causas intermediárias, tornando compreensível essapassagem.Mascriarumahistóriaapenasapartirdeconjeturasnãoparecemuitomelhordoquefazer oesboçodeumromance.Essahistórianãopoderiatrazeronomedeumahistória conjetural,masapenasodeumameraficção. –Entretanto,aquiloquenãosepodeousarnaprogressãodahistóriadasaçõeshumanas,asa-ber,investigá-lapormeiodeconjeturas,podemuitobemserfeitoemrelaçãoaseuprimeiro começo,namedidaemqueéanatureza quemoproduz.Poisessecomeçonãoprecisaserinventado,maspode serextraídodaexperiênciaquandosepressupõequeemseucomeçoelanãoeranemmelhornempiordoqueaencontramosagora:umapressuposiçãoqueéconformeàanalogiadanaturezaenãotrazconsigonenhumrisco.Umahistóriadoprimeirode-senvolvimentodaliberdadeapartirdesuasdisposiçõesoriginá-riasnanaturezadohomem é,portanto,algototalmentediferentedeumahistóriadaliberdadeemsuaprogressão,queapenaspodebasear-seemrelatos.

Noentanto,postoqueconjeturasnãodevemelevarexcessi-vamenteassuaspretensõesdeassentimento,mastêmdeseprocla-mar,emtodoocaso,nãocomoumaempresaséria,mascomoumexercíciodaimaginaçãoemcompanhiadarazãoconcedidoparaorecreioesaúdedoânimo,entãoelasnãopodemsercomparadas

* TextopublicadoporKantnaBerlinische Monatsschrift emjaneirode1786,disponívelemKant,I.Kants Werke,AkademieTextausgabe.Berlin:WalterdeGruyter&Co,vol.VIII,pp.109-23.OtradutoragradeceàssugestõesecorreçõesdeFernandoCostaMattoseMoniqueHulshof.

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àquelahistóriaqueésemprenovamenteestabelecidaeacreditadacomorelatorealdomesmoacontecimentoecujaprovasebaseiaem razões totalmente outras que não as de uma mera filosofiadanatureza.Por issomesmo,epostoqueaquimeaventuroemumameraviagemprazerosa,possoconceder-meapermissãodeutilizarumdocumentosagradocomomapae,aomesmotempo,imaginarqueminhajornada,querealizonasasasdaimaginaçãomasnãosemumfiocondutorqueseligaàexperiênciapormeiodarazão,sigaexatamenteamesmalinhaqueaqueledocumentosagradocontémesboçadanaformadehistória.Oleitorabriráaspáginasdessedocumento(1.Moisés Cap.II-VI)�e,passoapasso,verificará se o caminho que a filosofia toma segundo conceitoscoincidecomaquelequeahistóriaindica.

Senãoqueremosvaguearemconjeturas,entãotemosdeto-mar por começo aquilo que por meio da razão humana não sepodederivardecausasnaturaisprecedentes:aexistência do homem; e,paraserpreciso,emsuaidade adulta,porqueeletemdepassarsemoauxíliomaterno;ecomoumcasal,paraqueelereproduzasuaespécie; e, ainda, comoapenasum único casal,paraquenãosurjadeprontoaguerraentrehomens queestariampróximosunsdosoutrose,noentanto,seriamestranhosunsaosoutros,outam-bémparaquecomissoanaturezanãosejaacusadade,pormeiodadiversidadedeascendências,falharnaorganizaçãomaisadequadaàsociabilidade,omaiorfimdadestinaçãohumana;poisaunidadedafamília,deondetodososhomensdescendem,foisemdúvidaamelhorordenaçãoparatanto.Eusituoestecasalemumlugarasseguradocontraoataquedeanimaisselvagenseprovidorica-mentepelanaturezacomtodososmeiosdealimentação,portanto,por assimdizer, emum jardim sobumclimaamenoconstante.

1. Em vários momentos do texto Kant remete o leitor para passagens doGênese.Muitasvezeseleindicaocapítuloeoversículocorrespondenteataispassagens:nestescasosocapítulovemindicadoemalgarismosromanos,se-guidopeloversículoindicadoemalgarismosarábicosapósumavírgula(porex.:III,1).OutrasvezesKantomiteocapítuloeindicaapenasoversículo:oalgarismoarábicoéentãoantecididoporum“v”seguidodeponto(porex.:v.7).Nestescasos,oversículoindicadoseencontranocapítuloreferidoimediatamenteantes[N.doT.].

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E,maisainda,euoconsideroapenasapóseleterdadoumpassoimportantequantoàhabilidadedeservir-sedesuasforças,enãocomeço,portanto,dacompletarudezadesuanatureza;poisseeuquisessepreencheressalacuna,quepresumivelmentecompreendeumgrandeespaçode tempo,asconjeturaspoderiamfacilmentetornar-se excessivas para o leitor, enquanto as verossimilhançasmuito poucas. Portanto, o primeiro homem podia levantar-se eandar;elepodiafalar(1.B.Moisés Cap.II,v.20),conversar�,istoé,falarapartirdeconceitoscoerentes(v.23),portantopensar.Taishabilidadeseletevedeadquiririnteiramenteporsimesmo(poissefosseminatasseriamtambémhereditárias,oqueaexperiênciacontradiz);maseujáosuponhodelasdotado,demodoatomaremconsideraçãoapenasodesenvolvimentodoquehádemoralemseufazeredeixardefazer,oqualpressupõenecessariamenteaquelashabilidades.

Oinstinto,estavoz de Deusaquetodososanimaisobede-cem, teve inicialmente de conduzir esse novato. O instinto lheconcediaalgumascoisasparaalimentação,outraslheproibia(III,2.3).–Paraessepropósito,porém,nãoénecessáriosuporumins-tintoparticularhojeperdido;pode ter sidomeramenteo senti-dodoolfatoeseuparentescocomoórgãodogosto,aconhecidasimpatiadesteúltimopelosinstrumentosdadigestãoetambém,porassimdizer,acapacidadedesentirantecipadamenteseumacomidaestáaptaounãoparaoconsumo,aqualpodemosperceberatéhoje.Tampoucosetemdesuporqueessesentidofossemaisacuradonoprimeirocasaldoqueéhoje;poisésuficientementeconhecidaadiferençaqueexisteentreafaculdadeperceptivadoshomensqueseocupamapenascomseussentidoseadaquelesque

2. Oimpulso para comunicar-se deveterprimeiramentemovidoohomem,queaindaestásó,aanunciarsuaexistênciaaseresvivosexterioresaele,princi-palmenteàquelesqueemitemsonsqueelepodeimitare,emseguida,usarcomonome.Vê-seainda,também,umefeitosemelhantedesseimpulsoemcriançasepessoasdesprovidasdepensamento,asquais,pormeioderugidos,gritos,apitos,cantoseoutroscomportamentosbarulhentos(freqüentemen-tetambémrituais semelhantes),perturbamapartepensantedacomunida-de.Poiseunãovejonenhumoutromotivoparaissosenãoqueelesqueremanunciarsuaexistênciaatodosàsuavolta[N.doA.].

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seocupamigualmentecomseuspensamentoseque,porisso,sãodesviadosdesuassensações.

Enquantoobedecia a este chamadodanaturezaohomeminexperienteseencontravabem.Maslogoa razão se feznotare,pormeiodacomparaçãodojáexperimentadocomaquiloqueumoutrosentidoquenãoaqueleligadoaoinstinto–talcomoosenti-dodavisão–apresenta-lhecomosemelhante,tentoualargaroseuconhecimentodosalimentosparaalémdasbarreirasdoinstinto(III,6).Aindaqueoinstintonãorecomendasse,essatentativapo-deriatalvezserbemsucedida,desdequeelanãoocontradissesse.Entretanto,éumacaracterísticadarazãosercapazde,comacon-tribuiçãodaimaginação,inventardesejosnãosósem umimpulsonaturalaelesvoltado,comoatémesmoopostos aesteúltimo–noinícioelesrecebemonomedelascívia–,masatravésdosquaissãoengendradas,poucoapouco, todaumamultidãode inclinaçõessupérfluaseatémesmoantinaturais–asquaisrecebemonomedeluxúria.Aocasiãopararenegaroimpulsonaturalpodetersidoapenasumatrivialidade;porém,osucessodaprimeiratentativa,asaber,tornar-seconscientedesuarazãoenquantoumacapacidadedeestender-separaalémdoslimitesaosquaistodososanimaisestãoconfinados,foimuitoimportanteedecisivoparaoseumododevida.Quetenhasido,pois,umfrutocujoaspecto,pormeiodesuasemelhançacomoutrosfrutosagradáveisjáexperimentados,convidouparaatentativa;queparaissotenhaservidodeexemploumanimalcujanaturezaseadequasseaessedesfrute,aindaqueestefosseprejudicialaohomeme,conseqüentemente,uminstintonaturalaeleseopusesse:issopôdedaràrazãoaprimeiraocasiãoparazombardavozdanatureza(III,1)e,adespeitodoprotestodaúltima,fazeraprimeiratentativadeumaescolhalivre,aqual,porseraprimeira,provavelmentenãosedeuconformeàexpec-tativa.Odanopodetersidotãoinsignificantequantosequeira,masabriuosolhosdohomem(v.7).Estedescobriuemsiumacapacidade de escolher por si mesmo um modo de vida e não,comoosoutrosanimais,estarligadoaumúnico.Aoprazermo-mentâneoqueessadescobertapossater-lhecausadodevem-seterseguidoimediatamentemedoeapreensãoemrelaçãoacomoele,queaindanãoconheciaascoisassegundosuaspropriedades la-

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tenteseefeitoslongínquos,deveriapôremobraasuacapacidaderecémdescoberta.Elesedeteve,comoqueàbeiradeumabismo;pois,apartirdosúnicosobjetosdeseudesejo,paraosquaisatéagoraoinstintolhehaviaconduzido,abriu-se-lheumainfinidadedeobjetosacujaescolhaelenãosabiacomochegar;aomesmotempo, uma vez experimentado esse custoso estado de liberda-de,tornou-se-lheentãoimpossívelretornaraoestadodeservidão(sobodomíniodoinstinto).

Depoisdoinstintodealimentação,pormeiodoqualana-turezapreservacadaindivíduo,omaisrelevanteéoinstinto para o sexo,pormeiodoqualelacuidadaconservaçãodecadaespécie.Umaveztornadaativa,arazãonãotardouemprovarsuainfluên-cia tambémsobreesteúltimo.Ohomemdescobriuemseguidaqueoestímulosexual,quenosanimaissebaseiaemumimpulsopassageiroeemgrandeparteperiódico,neleécapazdeserpro-longadoeatémesmoaumentadopormeiodaimaginação,aqualde fatoexerce sua funçãocommaismoderação,masaomesmotempooimpulsionademodotantomaisduradouroeuniformequantomaisoobjetoéafastado dos sentidos.Assimeledescobriutambémqueatravésdissosepodeevitarofastioaqueconduzasatisfação de um desejo meramente animal. A folha de figo (v.7)foi,portanto,oprodutodeumamanifestaçãodarazãomuitomaiordoqueelamostraranosprimeirosestágiosdoseudesen-volvimento.Poistornarumainclinaçãomaisintensaeduradouraafastando-sedossentidososeuobjetomostrajáaconsciênciadealgumdomíniodarazãosobreosimpulsosenãosimplesmente,comonoprimeiropasso,acapacidadedeestaraserviçodelasemmaioroumenorextensão.Arecusa foioartifícioparaconduzirdomeroestímulosensualaoestímuloideal,paraconduzirgradual-mentedodesejomeramenteanimalaoamore,comeste,dosenti-mentodomeramenteagradávelaogostopelabeleza,inicialmenteapenaspelabelezadoshomensmasemseguidatambémpeladanatureza.Orecato,�umainclinaçãopara,pormeiodasboasma-

3. O termo alemão é Sittsamkeit e há uma certa controvérsia a respeito decomotraduzi-lo.Nasua traduçãoportuguesadaCrítica da razão pura (B776),ManuelaPintodosSantoseAlexandreFradiqueMorujão optampor

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neiras (ocultando aquilo que poderia causar desprezo), insuflarnosoutrosorespeitoparaconosco,ofereceu,enquantoverdadei-rabasedetodasociabilidade,oprimeiroindíciodaformaçãodohomemcomoumacriaturamoral.–Umpequenocomeçoquenoentantofezépoca,poisdeuumadireçãototalmentenovaaomododepensareémaisimportantedoquetodaasérieindeterminadadosdesenvolvimentosposterioresdacultura.

O terceiro passo da razão, depois que ela se misturou àsprimeirasnecessidadesbásicasimediatas,foiaesperarefletidado futuro. Esta capacidade de gozar não meramente os momentospresentesdavida,mas tambémde tornarpresenteo tempo fu-turo, freqüentementemuitoafastado, éomaisdecisivo sinaldaprerrogativa humana de, em conformidade com sua destinação,preparar-separafinsmaisdistantes.Maselaé,aomesmotem-po,amaisinesgotávelfontedepreocupaçõesecuidados,evocadospelofuturoincertoedosquaistodososanimaisestãodispensados(v.13-19).Ohomem,quetinhadealimentarasimesmo,aumaesposaeàsfuturascrianças,anteviuocaráterpenoso,semprecres-cente,deseutrabalho;amulheranteviuasdificuldadesàsquaisanaturezasujeitouseusexoetambémaquelasqueohomem,maispoderoso, lhe infligiria.Nocenáriodessequadro,ambosantevi-ramcommedoaquiloque,apósumavidapenosa,atingeinevita-velmenteatodososanimaissemqueestessepreocupem,asaber,amorte,epareceramreprovarasimesmospelousodarazão,quelhecausoutantosmales,considerando-oumcrime.Viveremsuadescendência,quetalveztivesseumamelhorsorte,ouentãocomo

traduzirpor“moralidade”.EssaéamesmaopçãodeFoucaultnasuaversãodaAntropologia de um ponto de vista pragmático (VII151).NatraduçãoemlínguainglesadoComeço Conjetural feitaporMichalW.Doyleencontramosotermodecency,mesmaopçãodePiobettanatraduçãoemlínguafrancesa(decence).“Moralidade”nãomepareceserumaopçãomuitoacertadapoisemtodasessaspassagens(tantonaprimeiraCríticaquantonaAntropologia enoComeço Conjetural)Kant se refereauma inclinaçãoparaafetarcertocomportamentotidocomomoralporquemobserva.Essainclinaçãoéim-portantenapromoçãodasociabilidade,civilizaohomeme,assim,éumacondiçãoinicialdoseudesenvolvimentoenquantocriaturacujadestinaçãoé,emúltimainstância,moral.Mas,porissomesmo,aSittsamkeitnãoéaindaaprópriamoralidade[N.doT.].

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membrosdeuma família poder aliviar o seu fardo, era talvez aúnicaperspectivaconsoladoraqueosanimava(v.16-20).

Oquartoeúltimopassodadopelarazão,elevandoohomemcompletamenteacimadasociedadecomosanimais,foiterconce-bido(aindaqueapenasobscuramente)queeleéverdadeiramenteofim da naturezaequenadaquevivesobreaTerrapodecompetircomelenesseaspecto.Aprimeiravezqueeledisseàovelha“a pele que você carrega a natureza não deu a você, mas a mim”,tomouapeleparasievestiu-a(v.21),elesedeucontadoprivilégioque,emvirtudedesuanatureza,possuisobretodososanimais,osquaiselepassouaconsiderarnãomaiscomoseuscompanheirosnacriação,mas sim como meios e instrumentos disponíveis à sua vontadeparaarealizaçãodesuasintenções,quaisquerquesejamelas.Estarepresentação implica (ainda que obscuramente) a idéia do seuoposto:elenãodevedirigir-sedetalmodoanenhumhomem,mastemdeconsiderá-locomoparticipanteigualnasdádivasdanatu-reza;umapreparaçãodistanteparaaslimitaçõesquearazãodeveimporfuturamenteàvontadeemrelaçãoaseuspróximos, equeémuitomaisnecessáriaparaoestabelecimentodasociedadedoqueasimpatiaeoamor.

E assim o homem pôs-se em pé de igualdade com todos os seres racionais,qualquerquesejaasuaposição(III,22):istoé,emrelaçãoàpretensãode ser seu próprio fim,deseraceitocomotalportodososoutrosedenãoserusadoporninguémcomosimplesmeio para outros fins. Aqui, e não na razão considerada mera-mentecomoinstrumentoparaasatisfaçãodasváriasnecessidades,encontra-seofundamentodatãoilimitadaigualdadedoprópriohomemcomosseressuperiores,osquaispodem,paraalémdetodacomparaçãopossível,ultrapassá-loemrelaçãoaosdotesnaturais,masnempor issotêmodireitodedeledisporaseubel-prazer.Portanto,estepassoestáaomesmotempoligadoaoabandonodoseiomaternodanatureza:umamudançahonrosa,masaomesmotempoperigosa,namedidaemqueoimpeliuparaforadasituaçãoinofensivaeseguradeumainfânciasobproteção,comoqueparaforadeumjardimaeleprovidosemseuesforço,e lançou-onovastomundoondetantaspreocupações,esforçoemalesdesconhe-cidosoaguardam(v.23). Futuramente,asdificuldadesdavidalhe

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despertarãomuitasvezesodesejoporumparaíso,criaçãodesuaimaginação,ondeemcalmaociosidadeepazduradouraelepossasonharoupassarsuaexistência.Masaincansávelrazão,posicio-nando-seentreeleeesselugarimagináriodedelícias,impulsionairresistivelmenteodesenvolvimentodascapacidadesnelepostasenãopermiteoretornoaoestadoderudezaesimplicidadedequeo arrancou (v. 24). Ela o impulsiona a aceitar pacientemente oesforçoodiadoporele,aperseguirasfalsasjóiasqueeledesprezae,diantedetodasaquelastrivialidadescujaperdaeletemeaindamais,aesqueceraprópriamortequeoapavora.

Nota

Dessaexposiçãodaprimeirahistóriahumanaresultaose-guinte: a saída do homem do paraíso, representado pela razãocomoaprimeiramoradadaespécie,nãofoioutracoisasenãoapassagemdarudezadeumameracriaturaanimalparaahuma-nidade,damuletadoinstintoparaaconduçãodarazão,emumapalavra,apassagemdatuteladanaturezaparaoestadodaliber-dade.Seohomemganhououperdeucomessamudançadeixadeserumaquestãoquandoconsideramosadestinaçãodesuaespécie,queconsisteemnadamaisdoquenoprogredirparaaperfeição,pormaisqueasprimeirastentativasdealcançaressameta,mesmoemumalongasériedemembrossucessivos,tenhamsidoerrôneasemalsucedidas.–Entretanto,separaaespécieessecursoéumprogressodopiorparaomelhor,paraoindivíduonãoéexatamenteomesmo.Antesdearazãodespertarnãohaviaaindamandamen-toouproibiçãoe,portanto,nenhumatransgressão;mastãologoelacomeçasuaempreitadae,porfracaqueseja,entraemconflitocomaanimalidadeemtodaasuaforça,surgemmalese,oqueépior,narazãomaiscultivadasurgemvíciosqueeramcompleta-menteestranhosaoestadodeignorânciae,portanto,deinocência.Oprimeiropassoparaforadesseestado foi,portanto,doladodamoralumaqueda;doladofísico,aconseqüênciadessaquedafoiumaquantidadedemales jamais conhecida, logo,umapunição.Assim,ahistóriadanaturezacomeçadobem,poiséumaobra de Deus;ahistóriada liberdadecomeçadomal,poiséumaobra do homem.Paraoindivíduo,quenousodesualiberdadeolhaapenas

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parasimesmo,talmudançafoiumaperda;paraanatureza,quenocasodohomemdirecionaoseufimàespécie,foiumganho.Porissooindivíduotemmotivosparaatribuirasimesmoaculpapor todososmalesqueoafligemepor todomalqueperpetra.Ao mesmo tempo, porém, enquanto membro do todo (de umaespécie),eletemtambémmotivosparaadmirareexaltarasabe-doriaeconformidadeafinsdaordenação.–Dessemodo,pode-setambémfazerconcordarementresi,ecomarazão,astãofreqüen-tementemal-entendidaseaparentementecontraditóriasafirma-çõesdo famoso J. J. Rousseau.Em seu escrito Sobre a Influência das Ciências eemSobre a Desigualdade entre os Homens,elemostramuitocorretamenteoinevitávelconflitoentreaculturaeanatu-rezadogênerohumanoenquantoumaespéciefísicaemquecadaindivíduodevealcançarcompletamentesuadestinação;masemseuEmílio,emseuDo Contrato Socialeemoutrosescritos,elebus-canovamenteresolveroproblemamaisdifícildecomoaculturatemdeavançardemodoadesenvolverasdisposiçõesdahumani-dadepertencentesàsuadestinaçãoenquantoumaespéciemoral,detalmodoqueestasnãomaisentrememconflitocomaquelasdisposiçõesdahumanidadeenquantoespéciefísica.Apartirdesseconflito (jáquea cultura,deacordocomosverdadeirosprincí-piosda educaçãodohomeme,aomesmotempo,docidadão,talveznãotenhaaindacomeçadocorretamente,muitomenosatingidoacompletude)surgemtodososverdadeirosmalesquepesamsobreavidahumanaetodososvíciosqueadesonram.�Entretanto,os

4. Apenaspara introduziralgunsexemplosdesseconflitoentreoesforçodahumanidadecomvistasà suadestinaçãomoral,deumlado,ea imutávelobediênciaàsleispostasemsuanaturezacomvistasaoestadorudeeanimal,deoutro,mencionooseguinte.

Anaturezafixouporvoltados16aos17anosaépocadamaioridade,istoé,doimpulsoedacapacidadeparareproduziraespécie:umaidadenaqual,noestadodenatureza,ojovemtorna-seliteralmenteumadulto;poisesseho-mementãodispõedacapacidadedemanterasimesmo,reproduzirsuaes-péciee,juntocomsuamulher,manteraestaúltima.Asimplicidadedasne-cessidadeslhefacilitaessatarefa.Noestadocultivado,entretanto,pertencemaestaúltimamuitosoutrosmeios,tantoemtermosdehabilidadequantodecircunstânciasfavoráveis,detalmodoque,aomenoscivilmente,aépocadamaioridadeépostergadaem10anosnamédia.Anatureza,entretanto,não

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estímulosparaosvícios,aosquaisnessecasoseatribuiaculpa,sãoemsibonse,enquantodisposiçõesnaturais,sãoconformesafins,

alterouseumomentodamaturidadeparafazê-loconcordarcomosprogres-sosdorefinamentosocial,masobservaobstinadamentesualei,estabelecidaparaaconservaçãodaespéciehumanaenquantoespécieanimal.Ora,surgedaíuminevitáveldanoparaofimnaturalcausadopeloscostumes,eparaes-tescausadoporaquele.Poisnumacertaidadeohomemnaturaljáéadulto,enquantoohomemnoestadocivil(que,entretanto,nãodeixoudeserho-memnatural)éapenasumjovem,oumesmoapenasumacriança;poisassimpodemosmuitobemchamaraqueleque,emfunçãodesuaidade(noestadocivil),nãopodemantersequerasimesmo,muitomenossuaespécie,aindaqueemrazãodochamadodanaturezatenhaoimpulsoeacapacidadedereproduziraespécie.Poisanaturezacertamentenãodotouascriaturasvivasdeinstintosecapacidadesqueelasdevessemcombaterereprimir.Assim,adisposiçãodanaturezanãofoidemodoalgumtalhadaparaoestadocul-tivado,masparaasobrevivênciadahumanidadecomoespécieanimal;eoestadocivilizado,portanto,inevitavelmenteentraemconflitocomoúltimo,conflitoqueapenasumaconstituiçãocivilperfeita(ametasupremadacul-tura)poderiaresolver,jáquehojeoespaçoentreeleséocupadousualmentepelosvíciosesuasconseqüências,adiversidadedamisériahumana.

Umoutroexemploqueprovaaverdadedaafirmaçãodequeanaturezanosdotoudeduasdisposiçõesparadoisfinsdistintos, a saber, para ahuma-nidadecomoespécieanimaleparaamesmacomoespéciemoral,éaArs longa, vita brevis deHipócrates.Umacabeçafeitaparaasciênciaseasartes,desdeque,atravésdelongapráticaeconhecimentoadquirido,tenhaalcan-çadoajustamaturidadedojuízo,poderialevá-lasmuitomaislongedoqueofariamgeraçõessucessivasinteirasdedoutos,bastandoparaissoqueelaatravessasseotempocomamesmajovialforçadeespíritoqueseemprestaaessasgerações.Ora,anaturezatomousuadecisãoemrelaçãoàduraçãodavidadohomemabertamente apartirdeumoutropontodevistaquenãoodapromoçãodasciências.Pois,quandoacabeçabemafortunadaestádiantedasgrandesdescobertasquesuahabilidadeeexperiênciapermitiriamesperar,chega-lheentãoaidade;elasetornagastaedevedeixarqueumasegundageração(quecomeçanovamentedoABCetemdeatravessartodaadistânciajápercorrida)acrescentemaisumpalmonoprogressodacultura.Ocaminhodaespéciehumanaparaatingiracompletudedesuadestina-çãoparecesercontiuamenteinterrompidoeestarsobameaçacontínuaderegredirparaaantigarudeza;eofilósofogregonãoreclamavasemrazão:é uma pena que se tenha de morrer quando se começou a perceber como se deveria verdadeiramente ter vivido.

Umterceiroexemplopodeseradesigualdade entreososhomens,e,defato,nãoaqueladosdonsnaturaisoudosbensdefortuna,masadodireito uni-versaldo homem:umadesigualdade sobreaqualRousseau reclamacommuitarazão–masquenãopodeserseparadadaculturaenquantoelaavançarcomo

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masessasdisposições,postoqueforamtalhadasparaoestadodenatureza,sãoprejudicadaspeloavançodaculturae,inversamente,prejudicam a esta, até que a arte completa se torne novamentenatureza:enquantotal,elaéaúltimametadadestinaçãomoraldaespéciehumana.

Conclusão da história

Oiníciodoperíodoseguinte foi:ohomempassoudope-ríododacomodidadeedapazparaodo trabalho edadiscórdiaenquanto prelúdio da união em sociedade. Aqui temos de darnovamenteumgrandesaltoecolocá-lodesúbitoempossedosanimaisdomesticadosedosvegetaisque,semeandoeplantando,elemesmopodiaproduzirparaa suaalimentação (IV,2),mes-moqueapassagemdaselvagemvidadecaçadorparaapossedeanimaisdomesticados,edainconstantecoletaderaízesoufrutasparaapossedosvegetaisqueeleproduzia,tenhasetranscorridodemaneiraconsideravelmentelenta.Aquidevemter-seiniciadoasrusgasentrehomensque,atéentão,viviampacificamenteunsaoladodosoutros,eaconseqüênciadissofoiasuaseparaçãose-gundoosdiferentesmodosdevidaesuadispersãopelaterra.Avida pastorilénãoapenasagradável,masoferecetambémosus-tentomaisseguro,poisnãofaltapastoemumsoloinabitado,vastoedistante. Inversamente,aagricultura,ouplantio,émuitotraba-lhosa e dependente da inconstância do clima, portanto incerta.Elaexigetambémresidênciapermanente,propriedadedosoloepodersuficienteparadefendê-lo.Opastor,entretanto,detestaessapropriedade, que limita sua liberdade de apascentar. No que serefereàvidapastoril,podeparecerqueoagricultorinvejaopastor

quesemplano(oqueé,emtodocaso,inevitávelporumlongotempo)–eparaaqualanaturezanãodestinouohomem,jáquelhedotoudeliberda-deerazãoparanãolimitarestaliberdadesenãoporsuapróprialegalidadeuniversale,paraserpreciso,exterior,aqualsechamadireito civil.Ohomemtevedetrabalharporsimesmoparalibertar-sedarudezadesuasdisposiçõesnaturaise,aomesmotempoemqueseelevavasobresi,manterocuidadodenãocontrariá-las;umahabilidadequeelesópodeesperarobtertardiamenteedepoisdemuitastentativasfrustradas.Nesseínterimahumanidadegemesobosmalesque,porinexperiência,causaasimesma[N.doA.].

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comomaisbemaquinhoadopeloscéus(v.4);defato,porém,estelheébastanteincômodo,poisogadonãopoupasuasplantaçõesquandopasta.Ora,postoqueéfácilparaopastor,juntocomseurebanho,afastar-separalongedepoisquecausouoestrago,esca-pandodequalquerressarcimento–jáqueelenãodeixaparatrásnadaquenãoencontrariademodoigualmentefácilemqualqueroutrolugar–,entãofoicertamenteoagricultorquemtevedeusarda força contra tais prejuízos, que o outro não considera comonãopermitidos,equem,senãoquisesseperderosfrutosdeseulongolabor(dadoqueaocasiãoparataisincidentesnãopoderiasertotalmenteeliminada),tevetambémdeafastar-seomaisquepodiadaquelequelevaavidapastoril(v.16).Essaseparaçãoiniciaaterceiraépoca.

Um terreno de cujo trabalho e plantio (especialmente deárvores) depende o sustento exige residência permanente, e adefesa do mesmo contra todas violações carece de um grandenúmero de homens dispostos a prestar auxílio uns aos outros.Conseqüentemente,nessemododevidaoshomensnãopodiammaissedispersaremfamílias,mastinhamdesemanterunidoseconstruiraldeias(imprecisamentechamadascidades)demodoaprotegersuapropriedadecontracaçadoresselvagensouhordasdepastoresnômades.Asprimeirasnecessidadesdavida,cujaaqui-sição exige um modo de vida diferente (v. 20), podiam agora sertrocadasentresi.Apartirdaítevedesurgiraculturaeocomeçodaarte,dopassatempoassimcomodolabor(v.21.22);masomaisimportanteéquetevetambémdesurgirainstituiçãodealgumaconstituição civil e justiça pública, primeiro decerto em relaçãoapenasaosmaioresatosdeviolência,cujavingançanãomaiseradeixadaaosindivíduos,comonoestadoselvagem,masaumpoderlegalqueunificao todo, istoé,aumaformadegovernocontraaqualnenhumexercíciodaviolênciatinhalugar(v.23,24).–Apartirdessasprimeiraserudesdisposiçõespuderamdesenvolver-segradualmentetodasasarteshumanas–dentreasquaisamaisvantajosaéartedasociabilidade e segurança civil–,ogênerohuma-nopôdemultiplicar-see,apartirdeumpontocentral,espalhar-secomocolméias,pormeiodoenvioparatodososladosdecolonosjáformados.Comessaépocacomeçoutambém,edaíemdiante

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cresceu,adesigualdade entreoshomens,essaricafontedetantomal,mastambémdetodobem.

Enquanto os povos de pastores nômades, que reconhecemapenasDeuscomoseusenhor,cercavamosagricultoresehabitan-tesdascidades,osquaistêmumhomem(autoridade)porsenhor(VI,4)�,e,comoinimigosdeclaradosdetodapropriedadedaterra,maltratavamaquelese,inversamente,eramporelesodiados,hou-veguerracontínuaentreambos,ouaomenosameaçadeguerra.Assim, os povos de ambos os lados podiam ao menos gozar doinestimávelbemdaliberdadeinterior–(aameaçadeguerraéaindahojeaúnicacoisaquemoderaodespotismo,porqueexige-serique-zaparaqueumEstadosejaumapotência,massemliberdadenãoháindústriaquepossaproduzirriqueza.Emvezdisso,emumpovopobretemdeencontrar-se grandeparticipaçãonaconservação dacomunidade, a qual, por seu turno, não é possível senãoquandonelaopovosesentelivre).–Comotempo,entretanto,oluxocres-centedosmoradoresdacidade,esobretudoaartedeagradar,pormeiodaqualasmulheresdascidadesofuscamassujasmeretrizesdosdesertos,devetersidoumpoderosochamariz paraqueaquelespastores(v.2)estabelecessemrelaçãocomosprimeirosesetransfe-rissemparaareluzentemisériadascidades.Aí,então,pormeiodamisturadedoispovosquedeoutromodoseriaminimigos,comofimdetodaameaçadeguerraeaomesmotempodetodaliberdade,odespotismodetiranospoderosos,deumlado,eumaculturare-cémcomeçada,deoutro,–misturadaatodososvíciosdoestadoderudeza,imersaemopulênciasemalmaenamaisabjetaescravidão–,desviaramirresistivelmenteogênerohumanodaprogressãododesenvolvimentodesuasdisposiçõesparaobemtalcomoanatu-reza lhetraçara;ecomissoelemesmosetornouindignodesuaexistênciacomoumaespéciedestinadanãoaviverbestialmenteeservircomoescrava,masasersenhorasobreaTerra(v.17).

5. Osbeduínos árabesaindasechamamasimesmosdefilhosdeumsheikh ances-tral,instituidordesuatribo(comoBeni Haled equetais).Estenãoédemodoalgumsenhordeles,nempodeapartirde suacabeçaexercerpoderalgumsobreeles.Pois,emumpovodepastores,jáqueninguémtempropriedadefixaquetenhadeabandonar,qualquerfamíliaqueestejadescontentecomsuatri-bo podemuitofacilmenteseparar-sedela eengrossarumaoutra[N.doA.].

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Nota de conclusão

O homem pensante sente uma aflição, desconhecida pelonão pensante, que pode muito bem tornar-se corrupção moral:trata-seda insatisfação comaProvidência,que regeo cursodomundoemseutodo,sentidaporelequandoconsideraosmalesque,semesperançademelhora(comoparece),tantooprimemogênerohumano.Masédamaior importânciaestar satisfeito com a Providência (mesmoqueelatenhatraçadoumaviatãopenosaparanossomundoterreno),emparteparasempremantercora-gemdiantedasdificuldades,emparteparaquenãoatribuamosaodestinoaculpaporaquiloqueénossaprópriafalta–talvezaúnicacausadetodosessesmales–,e,deladesviandoosolhos,deixemosdebuscarajudacontraeles nomelhoramentodenósmesmos.

Éprecisoreconhecerqueosmaioresmalesqueoprimemospovoscivilizadosnossãocausadospelaguerrae,defato,nãotan-toporaquelaqueefetivamenteaconteceouaconteceu,masmaispelacrescenteeincessantepreparaçãoparaguerrasfuturas.TodasasforçasdoEstado,todososfrutosdesuacultura,quepoderiamserusadosparaaumentaraindamaisa cultura, sãoempregadoscomestefim;enormeprejuízoécausadoà liberdadeemtantoslugares,eocuidadomaternodoEstadoemrelaçãoaseusmem-brosindividuaistransforma-seemumrigorimplacávelemtermosdeexigências,aindaqueestecuidadosejustifiquepelomedodaameaçaexterior.Masessacultura,aestreitauniãodosestamentosda comunidade para a promoção recíproca de seu bem-estar, apopulação,emesmoograudeliberdadequeaindarestamesmosobleistãolimitadoras,seriaissotudoencontradoseessamesmaguerra,sempretemida,nãocoagisseossoberanosdosEstadosaesse respeito pela humanidade? Basta apenas considerar a China,quesegundosuaposiçãopodesofrersubitamentealgumataqueinesperado,masnãotemdetemernenhuminimigopoderoso:lá,porisso,todovestígiodeliberdadefoiexterminado.–Noestágiodaculturaemqueogênerohumanoaindaseencontra,portanto,aguerraéummeioindispensávelparalevá-lamaisadiante;umapaz duradoura seria salutar para nós apenas depois de a cultu-ra atingir seudesenvolvimento completo (Deus sabequando) e

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tambémapenaspormeiodestaculturaelaseriapossível.Noqueserefereaesseponto,pois,nóssomososprópriosculpadospelosmalespelosquais tanto lamentamos; e,postoquea culturadospovosseiniciararecentemente,asagradaescrituratemtodarazãoemrepresentaramisturadelesemumasociedade,esuacompletalibertaçãodaameaçaexterna,comoumobstáculoparatodacultu-raposterioreumasubmersãoemumacorrupçãoincurável.

A segunda insatisfação do homem diz respeito à ordem danaturezaemrelaçãoàbrevidade da vida.Estima-semesmomalovalordavidasesedesejaqueeladeveriasermaislongadoqueelaefetivamenteé;poisissoseriaapenasoprolongamentodeumjogoconstanterepletodedificuldades.Mas,emtodocaso,pode-secompreendera infantil faculdadede julgardaqueleque temeamortesemamaravidaeparaquemsetornadifícilatravessaraexistênciaacadadiacomsatisfaçãorazoável,mesmoqueelenun-camaistenhadiassuficientespararepetiressetormento.Masseapenasrefletirmossobrequantapreocupaçãonosafligeemrelaçãoaosmeiosparaconduzirumavidatãocurta,sobrequantainjustiçaécausadapelaesperançadeumgozofuturo,aindaquetãopoucodurável,entãotemosdecrerdemodoracionalque,seoshomenspudessemver-seemumavidade800anosoumais,ninguémmaisestariasegurodesuavida–opaiemrelaçãoaofilho,umirmãoemrelaçãoaooutro,umamigoemrelaçãoaooutro–,equeosvíciosdeumgênerohumanoquevivessetãolongamentealcançariamtalalturaqueoshomensnãoseriamdignosdenenhumoutrodestinosenãoodeseremexterminadosdaterraemumainundaçãouni-versal(v.12-13).

O terceirodesejo,oumelhor,anostalgiavazia (poisse temconsciênciadequeaquiloqueédesejadonuncaseráalcançado),éofantasmadaidade do ouro,tãolouvadapelospoetas:nelahaveriauma libertaçãode todasasnecessidades imagináriasqueo luxonosimpõe,umasatisfaçãocomasimplesexigênciadanatureza,umaigualdadegeneralizadaentreoshomens,umapazduradouraentreeles,emumapalavra,opurogozodeumavidasempreo-cupação, absortanapreguiçaoudesperdiçadaem jogos infantis–umanostalgiaquetornatãoatraentesosRobinsonseasviagensàsilhasdosmaresdosul,masqueprovasobretudootédioqueo

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homempensante sentena vida civilizadaquandobuscao valordestaapenasnogozoearazão,opondo-seàpreguiça,olembradedarvaloràvidapormeiodeações.Avacuidadedessedesejoderegressoaumtaltempodesimplicidadeeinocênciafoisuficien-temente mostrada quando, na apresentação acima, tratou-se doestadooriginário:ohomemnãopodemanter-seneleporqueelenãolhebasta,eeleéaindamenosinclinadoaretornaraomesmo;detalmodoque,portanto,temsempredeatribuirasimesmoeàsuaescolhaopresenteestadodedificuldades.

Portanto, para o homem, para a sua instrução e melhora-mento,uma tal apresentaçãode suahistória éproveitosa eútil.Elalhemostra:queelenãotemdeatribuiràProvidênciaaculpapelosmalesqueooprimem;queeletambémnãoestáautorizadoaatribuirsuasprópriasinfraçõesaumpecado origináriodeseusancestrais,pormeiodoqualalgocomoumatendênciaatransgres-sões semelhantes tivesse sido herdada pelos descendentes (poisaçõesvoluntáriasnãopodemtrazerconsigonadadehereditário);que ele tem de reconhecer com todo o direito, isto sim, o queseusdescendentesfizeramcomofeitoporelemesmo,atribuindointeiramente a si mesmo, portanto, a culpa por todos os malesquesurgemdomauusodesuarazão–poiselepodemuitobemtornar-seconscientedequesecomportariaexatamentedomesmomodonasmesmascircunstâncias,equeoprimeirousoqueteriafeitodarazão,portanto,seriaummauuso(mesmocontraaindi-caçãodanatureza).Osverdadeirosmalesfísicos,mesmoquenes-seponto,porcausadosmorais,estejamcorretamenteatribuídos,dificilmentepodemdecidiranossofavorosaldodaverificaçãodeméritoseculpas.

Eesseéoresultadodamaisantigahistóriahumana,talcomoinvestigadapelafilosofia:asatisfaçãocomaProvidênciaeocursodascoisashumanasemseutodo,oqualnãose inicianobemeavançaparaomal,massedesenvolvegradualmentedopiorparaomelhor;paratalprogresso,pois,contribuicadaumcomsuaparte,namedidadesuaforça,pormeiodochamadodanatureza.

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RESENHA. Shakespeare, o gênio original, de Pedro Süssekind. (Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 2008)

Ernani ChavesDepartamento de Filosofia,

Universidade Federal do Pará

Otítulodestelivro,àprimeiravista,éenganador.Deimedia-to,podemossimplesmentepensarqueseuassuntoéShakespeare.Apenasoleitormaisafeitoàsquestõesdefilosofiadaarteprestaráatençãoaoqueseguenotítulo:nãosetrataapenasdemaisumes-tudosobreograndedramaturgoinglês(omaioremlínguainglesa,diz-se;omaiordentretodosemtodosostempos,tambémsecos-tumadizer),masdeumestudoapartirdeumacertaperspectiva,adaquestãodogênio,e,maisainda,apartirdeumaconcepçãobemprecisadegênio,adogênio“original”.Oradesfeitooengano,ascoisasficambeminteressantes,umavezqueénecessáriopergun-tar,obviamente,oquemvemaserum“gêniooriginal”.

Responder a essa pergunta significa situar filosófica e his-toricamente a questão do gênio, conceito que Pedro Süssekindreconstrói,conduzindo-noscomissoparaointeriordeumadis-cussão fascinante,muitobem localizadano tempoenoespaço:trata-se, acimade tudo,deumaquestão alemã, capítulo funda-mentaldahistóriadareflexãofilosóficasobreasartesnosséculosXVIII e XIX; trata-se, de fato, da grande contestação, iniciadaporLessing,domodeloerigidopelosfranceses,emespecialporCorneille eRacine, equedizia respeito às regrasquedeveriampresidiraatividadedequalquerdramaturgoquequisesseserreco-nhecidoporsuaexcelência.

Dopontodevistadoclassicismofrancês,apesardeumaououtra modificação, Aristóteles teria dado à posteridade, em suaPoética,omaiordetodosospresentes:oselementosapartirdosquais sepoderiamconstruiras regrasa seremobedecidas tendoem vista a perfeição. Nesta perspectiva, “gênio” e “engenho” secomplementam,ouseja,ogêniosecaracterizapelototaleabsolu-todomíniodeumatécnicaespecífica,quesegueobedientemente

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asnormas estabelecidasparadistinguir aboadamá tragédia e,porconseguinte,oqueébeloeelevadoporoposiçãoaoqueéfeioedecaído.Dessamaneira,oclassicismofrancêsdácontinuidadeauma interpretação iniciadaaindanaRenascença,períodohis-tórico em que a Poética é redescoberta. Assim sendo, as teoriasnormativasdaarte“associavamotalentoaumatécnicaapurada,aumaperíciadeexecução, à realizaçãodeumaobra semerros,equilibradaearduamentealcançada”(pp.7-8).

O movimento pré-romântico alemão, também conhecidoporSturm und DrangeantecedidoporDideroteLessing,marcaumarupturaemrelaçãoaessequadro,jánasegundametadedoséculoXVIII,aodefenderaliberdade,aespontaneidadenacria-çãoe,comisso,tambémapossibilidadedetransgressãodasregras,visandoosefeitoscausadospelasobrasdearte.Opoeta,libertodaescravidãoàsregrasenormas,serávalorizadoagoraporsua“ori-ginalidade”;otalento,dessemodo,tornar-se-ásuperioràtécnicaeoefeitoalcançadopelasobras,àsregras.Questãoqueganhará,nocampodafilosofia,sucessivaselaborações,cujomarcoinicialé,semdúvida,a“3ª.Crítica”,deKant.

Éno interiordessedebatequeaobradeShakespearede-sempenhaopapelprincipal,poisobardoinglêsserátomadocomomodeloalternativoàstragédiasfrancesas.PedroSüssekind,comelegânciaeprecisão,descortinaaoleitorseuimpactosobreoseru-ditos alemães, a fervorosa admiração, poderíamos mesmo dizer,quepassamanutrirporShakespeareequeumfrancês,Diderot,jáexpressaracomtodasaslinhasnoverbete“Gênio”daEnciclopédia,ondeShakespeareéconsideradoum“verdadeirodeusdramático”(p.67).EmShakespeare,diziaHerder,aoriginalidadedacriaçãoartísticaatingiráseupontomaisalto,poisnele“onovo,oprima-cial,odetododiversomostraaforçainatadesuavocação”(p.68).Taladmiração,entretanto,permitetambémacríticaeodistancia-mento(comoéocasoemalgunstextosdeSchiller,porexemplo,etambémdeGoethe),massemabalarradicalmenteessaespéciedeveneração.ConsiderarShakespearecomooSófoclesmoderno,igualar“Hamlet”ao“ÉdipoRei”consistiu,semdúvida,nopontoculminantedesseprocesso,doqualnemmesmoNietzscheesca-pou.Lembroapenas,en passant,oaforismo240deAurora.

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Margit ruffing e Johannes gutenberg

Ernani Chaves RESENHA. Shakespeare, o gênio original

OlivrodePedroSüssekindédeumrigorexemplar.Rigornotratocomasfontes,namobilizaçãodosintérpretesecomentado-res,naindicaçãoaoleitorbrasileirodetextosquepassariamfacil-mentedespercebidos.Éocaso,porexemplo,doartigodeWalterBenjaminsobreGoethe(escritoentre1926e1928),naverdadeumverbetequedeveriaserpublicadonumaEnciclopédiarussaequefoirecusado.Rigorexemplarporquesetratadeumlivromuitobemescrito,fluente,nacontracorrentedaidéiadequeumtextofilosófico é necessariamente hermético e esotérico, escrito parainiciados.Elepode,assim,atingirumpúblicodiversificadoenãoapenasumpúblicoacadêmico.Masambos,opúblicomaisamploeaqueleespecializadoeexigente,certamenteganharãomuitocomaleituradesselivro.

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Lançamentos

O animal político: Estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles,deMarisaLopes.SãoPaulo,EditoraSingular/EsferaPública,2008.

Arte e filosofia no idealismo alemão,organizadoporMarcoAurélioWerleePedroFernandesGalé.SãoPaulo,Barcarolla,2009.

A concepção de matéria na obra de Schopenhauer,deEduardoBrandão.SãoPaulo,Humanitas,2009.

Curso livre de teoria crítica, organizado por Marcos Nobre. Campinas,Papirus,2008.

Direito e democracia: Um guia de leitura de Habermas, organizado porMarcosNobreeRicardoTerra.SãoPaulo,Malheiros,2008.

Fuga do direito – Um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann,deJoséRodrigoRodriguez.SãoPaulo,Saraiva,2009.

Justiça e democracia: Ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas, deDenilsonWerle.SãoPaulo,EditoraSingular/EsferaPública,2009.

A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: Os papéis de reconstrução, interpretação e crítica,deLuizRepa.SãoPaulo,EditoraSingular/EsferaPública,2008.

Traduções

Anotações sobre as Cores / Bemerkungen über die Farben, de LudwigWittgenstein.TraduçãoeApresentaçãodeJoãoCarlosSalles.Campinas,EditoradaUnicamp,2009.

A arte de conhecer a si mesmo,deArthurSchopenhauer.TraduçãodeJairBarbosaeSilvanaLeite.SãoPaulo,MartinsFontes,2009.

O capital, Livro 3,deKarlMarx.TraduçãodeReginaldoSantana.SãoPaulo,CivilizaçãoBrasileira,2008.

Dialética negativa,deTheodorW.Adorno.TraduçãodeMarcoAntônioCasanova.RiodeJaneiro,Zahar,2009.

O direito e a política – Teoria da democracia,deIngeborgMaus.TraduçãodeEliseteAntoniuk.BeloHorizonte,DelRey,2009.

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 13 – p. 129-130 – jan.-jun. 2009

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Kant, organizado por Paul Guyer. Tradução de Cassiano Rodrigues.Aparecida,Idéias&Letras,2009.

A lógica das ciências sociais, de Jürgen Habermas. Tradução de MarcoAntônioCasanova.Petrópolis,Vozes,2009.

Teoria crítica,organizadoporFredRush.TraduçãodeBeatrizKatinskyeReginaAndrésRebolo.Aparecida,Idéias&Letras,2008.

Teoria da responsabilidade no Estado democrático de direito, de KlausGünther. Tradução de Marta Rodriguez de Assis Machado e FláviaPüschel.SãoPaulo,Saraiva,2009.

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Summary

Editorial 9

Articles

The subject of knowledge - the object of action: the “passage”, identity and difference in the philosophy of Arthur Schopenhauer 11MargittRuffin

Right faces the radical evil: Kant’s hyperbole of the people of devils 29AdelinoBraz

Language in the Analytic of Concepts in the Critique of Pure Reason 43DanielLessereEnlarging the Concept of the Political: for another reception of Marx’s Critical Theory 59RúrionSoaresMeloMusic in Schelling 83FernandoR.deMoraesBarros

Translation

Immanuel Kant’s Conjectural Beginning of Human History 95CommentedandTranslatedintoPortuguesebyBrunoNadai

Reviews

Pedro Süssekind’s Sheakespeare, o gênio original (Shakespeare, original genius) 125ErnaniChaves

Releases 129Summary 131Instructions 133

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INSTRUÇÕES AOS AUTORES

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• As notas substantivas devem vir em notas de rodapé.

• A bibliografia deve ser apresentada no formato seguinte:

Livro: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título em itálico: subtítulo. Número da edição, caso não seja a primeira. Local da publicação: nome da editora, ano.

Coletânea: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título do ensaio. In: SO-BRENOME, Nome (abreviado) do(s) organizador(es). Título da coletâ-nea em itálico: subtítulo. Número da edição, caso não seja a primeira. Local da publicação: nome da editora, ano.

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Artigo em periódico: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título do arti-go. Nome do periódico em itálico, local da publicação, volume e núme-ro do periódico, ano. intervalo de páginas do artigo, período da publi-cação.

Dissertações e teses: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título em itá-lico. Local. número total de páginas. Grau acadêmico e área de estudos [Dissertação (mestrado) ou Tese (doutorado)]. Instituição em que foi apresentada. ano.

• Internet (documentos eletrônicos): SOBRENOME, Nome (abreviado). Tí-tulo em itálico, [Online]. produtor. ano. Disponibilidade: acesso. [data de acesso]

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• Os originais devem ser enviados com texto digitado em programas com-patíveis com o ambiente Windows, em formato RTF. Os textos devem ser enviados para o endereço eletrônico [email protected]. Maiores infor-mações podem ser obtidas pelo mesmo endereço.

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