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FILOSOFIA DO DIREITO APLICADA AUTOR: FELIPE DUTRA ASENSI MBA EM PODER JUDICIÁRIO

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FILOSOFIA DO DIREITO APLICADA

AUTOR: Felipe DUTRA Asensi

MBA eM pODeR JUDiCiÁRiO

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Sumário

I) DIREITO E POLÍTICA ..................................................................................................51.1 AssOCiAÇÃO “UMBiliCAl” enTRe DiReiTO, TeRRiTÓRiO e esTADO ...........51.2. AssUnÇÃO DA lei COMO FOnTe pRiMÁRiA e pReDOMinAnTe DO DiRei-TO ................................................................................................................................91.3. CenTRAliDADe DO pODeR JUDiCiÁRiO nO pROCessO De ReiVinDiCA-ÇAO e eFeTiVACÁO De DiReiTOs .........................................................................16

II) DIREITO E PLURALISMO ........................................................................................272.1. plURAlisMO e DiReiTO ...................................................................................282.2. A plURAliDADe DOs plURAlisMOs JURÍDiCOs ........................................30

III) DIREITO E GOVERNAMENTALIDADE ...................................................................353.1. GeneAlOGiA, DiReiTOs e sOBeRAniA .........................................................383.2. GOVeRnO e esTADO .......................................................................................453.3. Os esTUDOs De GOVeRnAMenTAliDADe ...................................................543.4 FilOsOFiA, pOlÍTiCA e esTADO ......................................................................67

IV) JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS ..........................724.1. TRiBUnAis COMO pROFeCiAs QUe se AUTOCUMpReM ............................724.2. JUDiCiÁRiO e MinisTÉRiO pÚBliCO ..............................................................784.3. A JUDiCiAliZAÇÃO ............................................................................................84

V) ANEXOS ...................................................................................................................905.1. AnexO 1 – ApOlOGiA De sÓCRATes ............................................................905.2. AnexO 2 – TipOs De DOMinAÇÃO ............................................................... 1185.3. AnexO 3 – JUDiCiAliZAÇÃO ..........................................................................1355.4. AnexO 4 – pAsÁRGADA .................................................................................164

FILOSOFIA DO DIREITO APLICADA

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DIREITO, POLÍTICA E INTERDISCIPLINARIDADE

I) DIREITO E POLÍTICA

Direito e política estão fortemente entrelaçados. não somente no plano teórico com diversas perspectivas que variam desde sócrates até Ronald Dworkin, mas também no plano empírico das práticas sociais, é inegável que política e direito exercem mútua influ-ência. porém, é preciso realizar um esforço para compreender, de forma mais detalhada, o que é a política, quais as suas dinâmicas e lógicas de funcionamento e, ainda, como ela pode influenciar a “superfície” do direito. Como pressuposto, podemos conceber como política o complexo articulado de indivíduos, instituições e saberes que, por se orientarem por relações de poder, permitem o alcance do entendimento entre os indivíduos na arena pública, e podendo, inclusive, influenciar a sua vida privada.

não é difícil observar que as ciências sociais têm se debruçado sobre a relação entre direito e política há séculos. sócrates, platão, santo Agostinho, Hugo Grócio, nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, John locke, Karl Marx e tantos outros contemporâneos pensaram e pensam, a seu modo, como o direito pode refletir as contradições políticas e se orientar por elas. A despeito desta pluralidade de perspectivas, as ciências sociais têm permitido ao direito repensar as suas três bases de sustentação (ao menos na moderni-dade) quando se trata de política:

a) a associação “umbilical” entre direito, território e estado;

b) a assunção da lei como fonte primária e predominante do direito;

c) a centralidade do poder Judiciário no processo de reivindicação e efetivação

de direitos.

nas três bases, temos a possibilidade de discutir epistemologicamente e ontologica-mente as condições de possibilidade do estabelecimento de uma interface interdisciplinar entre direito e política.

1.1 ASSOCIAÇÃO “UMBILICAL” ENTRE DIREITO, TERRITÓRIO E ESTADO

no que concerne à primeira base, as ciências sociais têm permitido discutir e polemi-zar a relação “umbilical” entre direito, território e estado – aqui denominada como simbio-se DTE.

Com o advento da modernidade nos séculos xV e xVi e a necessidade de estabelecer uma nova política de relações internacionais entre os países europeus, constituição dos

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estados nacionais permitiu a cada país estabelecer sua centralidade político–jurídico–legislativa num contexto administrativo e de poder comum. A relação “umbilical” entre direito, território e estado permitiu, por um lado, e a consolidação da idéia de soberania como inexorável a qualquer relação internacional, de outro, permitiram a criação de um contexto de segurança jurídico–institucional nos diversos países europeus. esta simbiose permitiu a construção de uma teoria do direito fortemente centrada na figura do Estado como fonte de normas jurídicas válidas. seja numa perspectiva weberiana de dominação racional–legal, ou numa perspectiva marxista de dominação estatal da classe dominante, o fato é que esta concepção permitiu ao estado deter o monopólio de “dizer” o direito e resolver conflitos, cuja formatação mais pura foi desenvolvida nos séculos posteriores.

posteriormente, sobretudo no século xix, esta simbiose entre direito, território e es-tado permitiu a constituição da idéia de nacionalidade nos diversos países europeus. Assim como o nascituro ganha autonomia com o corte do cordão umbilical para viver sua vida por seus próprios meios, a associação entre direito, território e estado encontrou na política das nações a possibilidade de se autonomizar. Até então, estes três elementos estiveram associados, porém com a possibilidade de abalos epistemológicos e ontológi-cos, a exemplo dos resquícios do antigo regime analisados por Alexis de Tocqueville, em 1858, a respeito da França feudal. nesse livro, Tocqueville apresenta uma série de dados que corroboram a idéia de que os indivíduos da sociedade francesa apresentavam pouco associativismo e que, por conseqüência, havia uma incipiente atividade de reivindicação de direitos em face do estado, uma vez que este se apresentava de forma absoluta por meio da centralização administrativa. nessa linha, o estado passa a ser o centro por meio do qual a vida social se desenvolve e as relações sociais se realizam. na análise de Toc-queville, “já que o governo substitui desta maneira a providência, é natural que cada um o invoque [o estado] para resolver suas necessidades particulares. Assim é que encon-tramos um imenso número de requerimentos que se referem sempre ao interesse público quando na realidade só tratam de pequenos interesses privados” (Tocqueville, 1979, p. 94). O estado, além de organizador da vida pública, passa a ser o referencial também da vida privada, sobretudo por meio da administração pública. O cenário do Antigo Regime não é, pois, um cenário de ausência de normas. pelo contrário, Tocqueville sustenta a existência de uma pluralidade de normas emanadas pelo estado, pelos senhores, pela igreja, entre outros, que concorriam ao monopólio do regramento da vida social. Assim, “raramente desobedece à lei, mas dobra–a em todos os sentidos conforme casos parti-culares e para a maior facilidade dos negócios [...]. eis todo o antigo regime e toda sua caracterização: uma regra rígida e uma prática mole” (idem, p. 93).

para remetermos a um autor mais contemporâneo, vejamos a contribuição de Thomas Mann (1986). segundo o autor, há quatro principais “fontes” de poder, que não são ex-clusivas tampouco fixas ao longo do tempo, quais sejam: o poder ideológico, econômico, militar e político (denominado “modelo ieMp” pelo autor). Mann observa que não há uma preponderância necessária entre as quatro “fontes”, assim como não há uma sucessão

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temporal ou lógica entre elas. Toda a análise de Mann se desdobra a partir de um pressu-posto essencial: a negação do conceito unitário de “sociedade”. para o autor, o que seria “sociedade”, na verdade, consiste numa série de redes de poder interconectadas em diversas dimensões temporais e espaciais que podem se constituir, inclusive, de maneira inconsciente, imprevisível ou acidental. parte–se do princípio de que o que se entende por “sociedade” é mais uma “confederação” de grupos do que propriamente uma unidade social totalizante. esta “confederação” se organiza de forma relativamente orgânica em virtude de fatores sociais limitantes expressados na idéia de “jaulas” (cages). essas jaulas podem ser relacionadas a diversos fatores – geográficos, físicos, sociais, etc –, de modo que a relação entre os indivíduos esteja muito mais orientada pela idéia de redes de po-der do que por totalizações.

Resgatando a discussão: esta relação entre pluralidade e oficialidade, entre sociedade e estado, esteve na origem da relação “umbilical” de direito, território e estado. porém, podemos afirmar que a política de nações permitiu que esta simbiose ganhasse vida e se intensificasse, de modo a constituir uma verdadeira “jaula” com as cores de nacionalismo. No século XIX, temos em verdadeira interação os poderes ideológico, econômico, militar e político. O corte do cordão umbilical fez com que a relação entre direito, território e esta-do encontrasse na idéia de nacionalidade o ambiente propício para a sua autonomização, e o positivismo – inclusive o jurídico – serviu de condição epistemológica para tal.

A partir de então, a idéia de nação permitiu à simbiose DTe expandir–se, autonomizar–se, voltar–se para si, e criar as condições de possibilidade para a constituição de uma perspectiva de direito fortemente centralizadora, estatalizada e calcada nos referenciais de soberania, cidadania e direitos civis.

no que concerne à simbiose DTe, as ciências sociais puderam contribuir sobrema-neira para a sua problematização. De fato, as contribuições das ciências sociais são diversas do ponto de vista dos autores, do temas e do tempo. em relação aos autores, podemos destacar a denúncia de Karl Marx a respeito da “colonização” do estado pelos interesses da burguesia, ou destacamos a contribuição de Max Weber sobre os limites vocacionais da dominação. Também podemos elencar os autores contemporâneos, que buscaram pensar o direito a partir de sua dimensão fática, como Jurgen Habermas, ou pensar o direito a partir de referenciais de justiça, como John Rawls.

em relação aos temas, podemos elencar diversos. Karl Marx discute como o direito pode ser um instrumento de restrição e “sufocamento” da emancipação social. Max We-ber analisa o direito a partir dos diversos tipos de dominação (tradicional, afetiva e racio-nal–legal). Émile Durkheim, por sua vez, parte do princípio de que o direito encontra–se permeado por relações sociais de solidariedade (orgânica ou mecânica). Dando um salto, niklas luhmann analisa a construção do direito como um sistema autopoiético, e Michel Foucault concebe o direito como resultante de saberes e poderes em interação, além de outros autores.

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em ambos os casos (autores e temas), temos uma variação no tempo das diversas contribuições que os autores realizaram para pensar o direito. De fato, o direito tem sido pensado ao longo da modernidade a partir de duas variáveis. Como variável dependente, o direito tem sido pensado pelas ciências sociais como orientado por configurações polí-ticas, sociais e econômicas que influem decisivamente na sua configuração institucional e na própria cultura jurídica dos cidadãos. Como variável independente, o direito tem sido pensado como elemento definidor das práticas sociais, isto é, assume–se o direito como “força–motor” da reprodução social. Ainda podemos citar a concepção – a exemplo da bourdieusiana – que assume o direito simultaneamente como variável dependente e inde-pendente – com o perdão dos estatísticos –, ou seja, como constituinte e constituído pelo seio social em que se insere e ao qual se remete.

independentemente dos autores, temas ou tempo, temos a possibilidade de pensar de forma crítica a simbiose DTe ao admitir que, no seio social, a pluralidade se apresenta como inerente e, portanto, qualquer associação entre direito, território e estado diz res-peito muito mais aos internacionalistas do século xV do que aos autores contemporâ-neos. As críticas das ciências sociais (numa perspectiva ecumênica) à simbiose DTe se desenvolvem pelo menos de três formas:

a) no que concerne ao direito, salientando: que os costumes também podem ser vistos

como direitos vivos; que a sociedade “muda” mais “rápido” que as normas1; que o

direito, antes de tudo, deve ser pensado e forma interdisciplinar; etc;

b) no que concerne ao território, salientando: que num mesmo território podemos ter

uma pluralidade social, cultural e religiosa; que o território é apenas uma das expres-

sões da nacionalidade, pois esta pressupõe também uma dimensão subjetiva de

“comunidades imaginadas” (Anderson, 1983); que o território, na modernidade, con-

figura–se como uma forma de organização do Estado para a manutenção do poder

político e, portanto, sem qualquer vinculação direta com a condição de cidadania,

mas sim de soberania; etc.

c) no que concerne ao estado, salientando: que o pluralismo social pode sempre ofere-

cer novas possibilidades jurídicas não atingidas pela institucionalidade estatal; que

o processo de deliberação política entre parlamentares e administradores pode ser

orientado por critérios extra–estatais (tais como interesses privados, filiações parti-

dárias, etc); que o estado, em verdade, não é a única fonte de direito legítimo.

portanto, a despeito da simbiose DTe ter recebido destaque e importância na con-solidação do estado moderno, podemos observar contribuições que ultrapassam deci-sivamente a discussão da soberania, dando espaço para debates mais profundos sobre legitimidade e pluralismo. As ciências sociais permitem pensar o direito a partir de suas

1 exemplo disso é a prática de crimes virtuais (crimes na internet) no Brasil. não há lei prevendo punição para tais crimes, pois a legislação penal predominante no Brasil é da década de 40 do século xx.

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veias e artérias que, por mais que “invisíveis” externamente no “corpo” das leis, existem e fazem o direito pulsar.

1.2. ASSUNÇÃO DA LEI COMO FONTE PRIMÁRIA E PREDOMINANTE DO DIREITO

A ênfase na explicação do direito pelo direito é um elemento importante para a soli-dificação e manutenção da perspectiva que se desenvolveu ao longo da história sob a denominação de positivismo jurídico. e o direito moderno ancorou–se na lei como fonte primária e predominante de si próprio. Ao estado coube, por meio de suas instituições, formular as leis gerais e abstratas que seriam dirigidas aos cidadãos e, nos séculos xix e xx, o positivismo jurídico radicalizou a centralidade da lei estatal como fonte do direito.

É possível afirmar que a lógica positivista do direito é uma lógica binária, que pensa em categorias que não admitem anomalias, meio–termos, desvios, etc. esta lógica não admite, portanto, gradações ou hibridismos, na medida em que a realidade é apresentada a partir de um fundamento lógico–sistemático calcado num sistema de racional de expli-cações previamente categorizado. Um dos principais sistematizadores deste paradigma2, comumente denominado de positivismo jurídico, foi Hans Kelsen. este jurista dedicou boa parte de sua obra à formulação e desenvolvimento de uma teoria pura do direito. esta te-oria fundamenta a ordem jurídica na própria norma positivada, sem levar em conta como fundamento de validade qualquer aspecto subjetivo, valorativo, sociológico ou cultural. A diferenciação entre os campos da moralidade e da juridicidade realizada por Kelsen se justificaria pela tentativa realizar uma autonomização da ciência jurídica em relação aos outros campos científicos, tais como a sociologia, psicologia, política, etc. O direito, em seu argumento, seria positivo na medida em que se constituísse como um direito posto pela autoridade do legislador, que seria dotado de validade por obedecer a requisitos formais de produção. em decorrência disto, o direito não precisaria se orientar por um conteúdo moral para ser definido e aceito como direito vigente, bastando apenas a regu-laridade do seu processo formal de produção e validação interna.

Kelsen parte do princípio de que o direito regula a sua própria criação; logo, as regras regulam a maneira pela qual outras regras devem ser criadas através de um sistema lógica e sistematicamente coeso e não–contraditório. Como desdobramento, o ato de interpretação seria apenas “uma operação mental que acompanha o processo de aplica-ção do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (Kelsen, 2000, p. 387) O sistema jurídico se configura como uma estrutura piramidal, em que as normas de escalão superior regulam e determinam a criação das normas de escalão inferior, o que reforça a idéia de que a atividade interpretativa consistiria em meramente

2 Metaforicamente, paradigma é a lente por meio da qual se enxerga o mundo; ou seja, é um conjunto de valores, visões de mundo e representações que condicionam a forma por meio da qual os indivíduos lêem a realidade à sua volta. paradigma “no seu uso estabelecido, [...] é um modelo ou padrão aceito” (Kuhn, 2005, p. 43). Desta forma, segundo Thomas Kuhn, o paradigma confere algum sentido que é compartilhado pelos indivíduos segundo uma mesma perspectiva.

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aplicar as normas superiores nas inferiores, com pouca possibilidade criativa do magis-trado. Trata–se de uma estrutura formalmente escalonada que propicia a unidade lógica e a completude da ordem jurídica por meio de processos “estruturais” de validação.

esta lógica binária se encontra relacionada ao que pierre Bourdieu (2000) denominou como retradução do direito, vale dizer: ao buscar explicar os fatos sociais sob o prisma de categorias pré–determinadas, a lógica jurídica faz com que estes fatos percam a sua especificidade e originalidade a partir do momento em que são lidos à luz de modelos abstratos. em outras palavras, ao tentar encaixar fenômenos complexos em molduras rígidas, o direito desconsidera as peculiaridades e especificidades do mundo real. Assim, não se considera o contexto de produção da norma ou as relações de força que se esta-belecem em seu interior e perpassam toda a sua produção. Esta lógica insere fenômenos sociais complexos em contextos de “sim” e “não”, “certo” e “errado”, “lícito” e “ilícito”, sem levar em conta as gradações, os liames, os interstícios, a complexidade.

Talvez seja no campo da sociologia do direito que essa discussão tenha recebido maiores atenções acadêmicas e as ciências sociais tenham mais contribuído. Jean Car-bonnier, por exemplo, aponta que o direito se consolidou historicamente por meio da ên-fase da sua autonomia em relação às outras ciências. Mais precisamente, o que explica a ampla adesão a esta idéia é a defesa da exclusividade do direito e do dogmatismo, afir-mando que “é próprio dele [direito] ser um deus ciumento que não tolera partilhas: cabe ao direito negar a qualquer outro sistema o título de direito” (Carbonnier, 1980, p. 42). O campo do direito, portanto, evita, repele e, estigmatiza qualquer explicação que não seja realizada por ele próprio. É Deus porque se propõe a responder todos os fenômenos sob uma perspectiva universalista e dogmática; e é ciumento porque se propõe a responder sozinho, ou seja, sem a incorporação de outros campos de saber em seu discurso.

esta perspectiva sobre o direito – fundamentalmente formalista – recebeu críticas ao longo do século xx e vivenciou momentos de forte crise num cenário cada vez mais complexo e fragmentado, em que as instituições jurídicas passaram por transformações estruturais, organizacionais e axiológicas. principalmente após os excessos e desca-minhos ocasionados pelas duas guerras mundiais, os problemas derivados de regimes totalitaristas e o colapso econômico de alguns países, o que se convencionou chamar de pós–positivismo buscou se consolidar como uma alternativa à insuficiência e insensibili-dade das correntes anteriores, em especial o positivismo jurídico.

Do ponto de vista da aplicação do direito, os teóricos do pós–positivismo – tais como Ronald Dworkin, Chaim perelman, Theodor Viehweg, Robert Alexy –, sustentaram que a forma de se concretizar o direito é se debruçando sobre o problema e sobre casos empí-ricos particulares, e não sobre a regra jurídica abstrata, como se enfatizou no positivismo jurídico. A perspectiva consolidada por esses autores enseja o reconhecimento de que o direito não mais se associa a uma mera moldura abstrata que lê a realidade à sua volta à luz de seus próprios limites de moldura. na perspectiva pós–positivista, o direito passa a incorporar conteúdos orientados por uma verdadeira razão prática. A simples adequação

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fato/norma, que seria realizada de maneira mecanicista e pouco sensível às especificida-des dos fatos sociais, deu lugar a uma nova forma de pensar o direito em sociedade, ou seja, um direito capaz de considerar e respeitar as diferenças e de levar em conta as par-ticularidades inerentes ao caso concreto. Tais casos concretos, por definição, variam de acordo com os atores e as circunstâncias em que estão inseridos. para captar e compre-ender tais casos foi adotada como estratégia privilegiada da perspectiva pós–positivista a superação da “letra da lei“ como fonte privilegiada do conhecimento jurídico.

Além disso, associada à perspectiva de incorporação dos valores no âmbito das re-flexões sobre o direito, a necessidade de extrapolar a letra da lei esteve relacionada ao crescimento das reflexões de outras ciências sobre o direito, tais como a sociologia, a antropologia e a psicologia. Como visto, tais campos permitiram a consolidação de uma visão mais interdisciplinar, crítica, problematizante, histórica e não–dogmática. isto efe-tivamente reforçou o processo de estranhamento ou desnaturalização das instituições jurídicas e do próprio direito, sobretudo com a ênfase numa postura crítica que já era, inclusive, objeto de reflexão interna do pós–positivismo.

As reflexões que se desenvolveram no âmbito da teoria do direito e nas ciências sociais produziram diversas idéias e perspectivas que buscam superar o paradigma formalista do direito, o que possibilita a inserção de critérios materiais e substanciais no seu sentido e alcance. Ao longo da história, algumas perspectivas teóricas buscaram pensar o direito enquanto valor e, assim, promover uma reflexão mais aprofundada a respeito de suas di-mensões éticas, políticas e sociais. Tais reflexões se debruçaram sobre o pressuposto da existência de normas que não necessariamente se encontram escritas ou previstas ex-pressamente no texto constitucional, mas que são materialmente constitucionais porque refletem valores sociais. Com isso, tais teorias abriram a possibilidade de construção e reconhecimento de direitos que, embora não constantes do texto formal, preservam a sua força normativa num dado ordenamento jurídico, de modo a fundamentar sua validade a partir de fontes políticas, sociais, econômicas, etc.

A título exemplificativo, realizei outrora (Asensi, 2010) uma análise sobre a contribuição de Ferdinand lassale. Contemporâneo de Karl Marx – com o qual compartilhou alguns momentos, a exemplo da Revolução de 1848 –, lassale buscou pensar justamente os aspectos não–formais que são constituintes de uma ordem jurídica. O autor parte do prin-cípio de que a Constituição não é mera norma escrita, é realidade. e, por ser realidade, a Constituição é informada pela articulação e conjugação de fatores reais de poder, isto é, elementos de poder presentes nas relações que os indivíduos estabelecem em socie-dade. O direito, portanto, seria um reflexo dos arranjos institucionais, sociais, políticos, econômicos e históricos que permeiam a sua formulação e concretização. Em seu argu-mento, se uma Constituição não corresponde aos fatores reais de poder de uma socieda-de, essa Constituição consiste numa mera folha de papel, ou seja, não possui relevância social e eficácia para os atores no cotidiano de suas práticas. Seria um texto que não

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possui efeitos concretos, uma “forma” sem “alma”, ou, na acepção contemporânea, uma norma desprovida de efetividade.

segundo lassale, em essência, a Constituição de um país é “a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação” (lassale, 1988, p. 19). Uma vez que tais fatores reais se articulam e estabelecem pontos de interação que constroem sentidos aos atores, “os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita” (idem). Com isso, a partir desta incorporação em forma de papel, “não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas” (idem).

Por essa razão, apesar de não ser objeto próprio de sua reflexão, a concepção de lassale nos permite, atualmente, afastar a idéia de que o direito é um campo fechado, autopoiético, coeso, ausente de contradições, etc. lassale permite pensar no interior do processo de formulação de normas jurídicas os fatores sociais orientados por relações de poder presentes em qualquer sociedade. Ao se admitir esse pressuposto, os problemas constitucionais não seriam, prima facie, problemas meramente de direito, mas, funda-mentalmente, de poder, que consistiria na “alma” da Constituição.

no Brasil, esta concepção encontrou eco séculos depois no que se convencionou denominar de doutrina brasileira da efetividade, que possui, dentre os seus expoentes, o jurista luis Roberto Barroso. O argumento central desta perspectiva consiste no seguin-te: para além da eficácia jurídica que uma norma possui, ou seja, a sua possibilidade de produzir efeitos num ordenamento jurídico porque formalmente válida, o autor sugere o debruçar sobre a eficácia social das normas, ou seja, a possibilidade de produzirem efei-tos concretos no cotidiano das práticas dos atores sociais.

Ao partir do pressuposto de que o direito existe para se realizar, a idéia de efetividade significa o desenvolvimento concreto da função social do direito. “Ela representa a mate-rialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever–ser normativo e o ser da realidade social” (Barroso, 2006, pp. 82–83). portanto, busca pensar o desenvolvimento dos direitos na prática, de modo a superar a perspectiva formalista que se traduz na mera eficácia jurídica.

na medida em que o tema do pluralismo foi recebendo destaque no debate das ci-ências sociais e a multiplicidade de grupos sociais ganhou evidência com os eventos ocorridos ao longo do século, o direito passou a ser pensado sob o prisma de outras categorias, tais como heterogeneidade, comunicação, valores, argumentação, etc. Além disso, ao priorizar os princípios como efetivas normas jurídicas, foram estabelecidos ob-jetivos e finalidades a serem alcançados pelos Estados nacionais, o que possibilitou a ampliação dos elementos éticos, sociais e culturais a serem inseridos na interpretação e aplicação da norma jurídica. O direito deveria ser refletido a partir de seu papel na socie-dade, compreendendo–se como direito não somente as regras escritas no texto da lei, mas também os princípios que permeiam todo o seu sistema de valores supra–positivos.

na sociologia jurídica, eugen ehrlich realizou a distinção entre o direito positivo, que seria o direito positivado como texto na norma jurídica, e o direito vivo, que seria fruto da

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dinâmica social que se desenvolve a partir da interação entre os atores sociais. ehrlich sustenta que “querer encerrar todo o direito de um tempo ou de um povo nos parágrafos de um código é tão razoável quanto querer prender uma correnteza numa lagoa” (ehrlich, 1980, p. 110). Trata–se, portanto, de uma perspectiva que confere destaque às práticas sociais em detrimento de modelos jurídicos abstratos e pouco sensíveis às especificida-des próprias de cada contexto social. O direito, portanto, é maior do que a regra formal, e é por meio da sua prática no cotidiano dos atores que se pode observá–lo como dinâmica social em constante transformação.

O estudo do direito vivo nos termos propostos por ehrlich permite extrapolar o racio-cínio calcado na lei e nos livros, de natureza tipicamente positivista, e assume o direito como um fenômeno social e, portanto, orientado por práticas sociais. Ehrlich sustenta que o direito vivo representa a idéia de que o direito é construído mediante a experiência concreta dos sujeitos, que se transforma ao longo do tempo e do espaço de acordo com as sociedades. Por isso, na investigação do direito vivo “não se tornam supérfluos nem o método histórico, nem o etnológico” (idem, p. 114). ehrlich sustenta que o direito está intrinsecamente ligado à cultura e aos seus processos históricos constitutivos, e, desta forma, profundamente relacionado às transformações sociais. portanto, qualquer asso-ciação linear entre direito e lei seria reducionista.

De fato, sobretudo nas ciências sociais, a idéia de pensar o direito para além das leis já era compartilhada pelos principais sociólogos, tais como Marx, Durkheim e Weber. Durkheim, por exemplo, desenvolve todo um esforço para caracterizar o fundamento do direito e como ele se desenvolve nas diferentes sociedades sob o prisma de uma catego-ria central: a solidariedade. A passagem abaixo, em que Durkheim busca pensar a idéia de direito à propriedade, é reveladora de sua perspectiva:

o resultante desses fatos é que o círculo dos objetos apropriados não é determinado

pela constituição natural desses objetos e, sim, pelo direito de cada povo. É a opinião

de cada sociedade que faz sejam tais objetos considerados como suscetíveis de

apropriação, e tais outros, não. Não são seus caracteres objetivos, tais como

determináveis pelas ciências naturais; é a maneira pela qual são representados no

espírito público. Uma coisa que ontem não podia ser apropriada passa a sê–lo hoje,

e inversamente. Daí vem não poder entrar em nossa definição a natureza do ser

apropriado. Nem, até, podemos dizer deva consistir em coisa corporal, perceptível

pelos sensíveis de apropriação. A priori, nenhum limite pode ser assinado ao

poder da coletividade de conferir ou retirar, a tudo quanto exista, os caracteres

necessários à apropriação juridicamente possível. Se, pois, em quanto se segue,

vier a servir–me da palavra coisa, será em sentido absolutamente indeterminado,

e sem a intenção de provar a natureza particular da coisa (Durkheim, 1983, p. 125)

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A chave para pensar essas opiniões de cada sociedade, na perspectiva de Durkheim, é a solidariedade social. A solidariedade permite a cristalização da sociedade, ou seja, que os indivíduos estabeleçam laços de cooperação e sinergias que os possibilitem a vida em comum. não se trata da “espada” hobbesianna ou da “dominação de classe” marxista, mas de uma perspectiva que funda a sociedade em critérios substantivos de solidariedade e cooperação. Uma vez que a solidariedade varia segundo o grau de mo-dernidade da sociedade (primitiva ou moderna) – e, quanto mais moderna a sociedade, mais complexa ela será –, a norma moral tende a se tornar norma jurídica. isso ocorre, no argumento de Durkheim, em virtude da necessidade, nas sociedades modernas, de regras de cooperação e troca de serviços entre os que participam do trabalho coletivo. entretanto, a norma só seria efetivamente jurídica se atendesse a tais laços de solidarie-dade que lhes são constitutivos e, por isso, pré–jurídicos (entendido, aqui, jurídico como formal). Tais laços pré–jurídicos reforçam a idéia de um direito “vivo” que se cria e recria a partir das práticas sociais e, ainda, que se molda a tais práticas.

Ao se adotar a perspectiva do direito vivo, é possível pensar a construção de direitos na dinâmica do espaço público e a construção de novos sentidos para os direitos já po-sitivados. A atividade de criação de direitos sustenta–se sobretudo sob o pressuposto de que o “direito é maior que as fontes formais do direito” (Carbonnier, 1980, p. 45), pois engloba aspectos culturais, políticos, sociais, etc.

Aqui, se configura uma situação que radicaliza ainda mais a posição de Lassale: se neste autor o direito se consolida no texto escrito, sendo informado por fatores reais de poder que lhes são anteriores, na perspectiva do direito vivo é possível pensar a constru-ção de direitos independentemente de serem efetivamente positivados no texto escrito ou de dependerem de intervenção de qualquer instituição estatal ou jurídica. A partir desta matriz de interpretação, é possível elencar três elementos subjacentes à idéia de cons-trução de direitos:

a) os fatores sociais são preponderantes na produção e transformação de normas jurí-

dicas – entendendo–se como normas tanto as regras escritas quanto os princípios

materiais que lhes são subjacentes –, e na produção e construção de novos direitos;

b) o campo da produção jurídica envolve o embate e conflito de opiniões, interesses e

perspectivas sobre os fatos sociais;

c) o estabelecimento do consenso se apresenta como uma forma de cristalizar resultan-

tes de conflitos e estabelecer sentidos para os novos direitos que deles decorrem.

Lawrence Friedman e Jack Ladinsky compartilham desta perspectiva ao refletirem sobre os processos de mudança do direito. Os autores, numa perspectiva normativa, sustentam que o direito deve, acima de tudo, responder às mudanças que ocorrem na so-ciedade. Tal assertiva se baseia no pressuposto de que os processos jurídicos “refletem os problemas sociais, as insatisfações coletivas, e a direção na qual se move a solução

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coletiva dos problemas, os interesses diversos e em conflito que se referem ao processo de tomada de decisões” (Friedman e ladinsky, 1980, p. 207). Assim, os autores realizam uma distinção entre mudança no direito e mudança através do direito. A diferença entre as duas se encontra na abrangência de suas transformações: a primeira se restringe ao domínio puramente formal e interno do direito positivo, ou seja, às mudanças formais pelas quais o texto jurídico passa procedimentalmente ao logo do tempo. A segunda, por sua vez, implica uma mudança dos comportamentos dos indivíduos e em suas ações no cotidiano de suas práticas, o que enseja uma problematização do direito existente e apon-ta para a configuração de novos direitos orientados pelas mudanças sociais.

na perspectiva de Habermas, o direito é visto como um medium entre os fatos que ocorrem no mundo cotidiano e as regras que os indivíduos criam em sociedade, ou seja, o direito se situa como mediador da tensão entre facticidade e validade. A tensão se estabelece na medida em que os critérios universalistas de validação do direito não se encontram necessariamente refletidos no âmbito das práticas sociais (factuais). Diante dessa assimetria, Habermas confere relevo à ação comunicativa na superação ou, ao menos, redução desse hiato. Assim, “o significado universalista da validade excede todos os contextos, mas apenas o ato vinculante local de aceitação permite aos critérios de vali-dade lidarem com o fardo da integração social num contexto ligado as práticas cotidianas” (Habermas, 1999, p. 21).

O direito para Habermas se situa nesse espaço entre facticidade e validade, na medida em que não consiste num sistema fechado em si mesmo, o que possibilita uma abertura, inevitável, à ação comunicativa. Dentre os princípios do direito moderno, haveria prin-cípios morais que não se confundem com as meras regras escritas. Desde modo, com a idéia de ação comunicativa de Habermas, “a função importante da integração social deriva das energias ilocucionárias vinculantes do uso da linguagem orientada para o alcance do entendimento” (Idem, p. 8). Essa abertura do direito à moral significa que ela está incorporada à própria racionalidade procedimental, residindo, aqui, a sua função integradora das mudanças que surgem ao longo do tempo.

Habermas, ao apresentar a idéia de ação comunicativa – segundo a qual o debate e o diálogo travados nos espaços públicos podem, através da evocação de valores como a “razão”, “verdade”, “retidão” e “inteligibilidade”, gerar ações políticas efetivas na disso-lução dos conflitos e alcance de consensos –, tem por objetivo refletir sobre a formação da uma vontade comum e os processos e mecanismos de produção de legitimidade no mundo do direito.

Deste modo, o diálogo surge como elemento essencial para se obter consenso e en-tendimento na esfera pública, constituindo–se como um dos caminhos mais viáveis para resolução de conflitos na arena política. Habermas sustenta que o referencial a ser ado-tado é o do diálogo, ou seja, “a comunicação na qual o sujeito tem que investir uma parte de sua subjetividade, não importando de que maneira isso pode ser controlável, no sentido de ser capaz de encontrar sujeitos conflitantes num nível intersubjetivo, que faz o

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entendimento possível” (Habermas, 1974, p. 11). O espaço do conflito enquanto constru-ção de sujeitos de forma intersubjetiva seria, nesta seara, o elemento fundamental para a aproximação entre teoria e prática, assunto amplamente dedicado por Habermas em diversos momentos de sua obra.

Além disso, “no modelo legal de validade, a facticidade da aplicação do direito é inter-ligada à legitimidade da gênese do direito que clama por ser racional porque garante a liberdade” (Habermas, 1999, p. 28). Assim, para Habermas, é o principio da democracia que deve estabelecer um processo legítimo de produção de normas, ou seja, apenas através de um contexto democrático seria possível a constituição de normas que, além de positivas, fossem legítimas, de modo a permitir que as práticas sociais recebam efeti-vamente status jurídico formal.

1.3. CENTRALIDADE DO PODER JUDICIÁRIO NO PROCESSO DE REIVINDICAÇAO E EFETIVACÁO DE DIREITOS

Os dois componentes anteriores – simbiose DTe e predominância da lei – não podem ser pensados isoladamente. De fato, podemos afirmar que estes componentes vieram aliados na modernidade a uma terceira concepção: a centralidade do Judiciário.

De “poder tímido”, o Judiciário contemporâneo passou a ocupar uma centralidade con-siderável no processo de resolução de conflitos e efetivação de direitos. A título exem-plificativo desta “timidez” institucional, podemos citar Barão de Montesquieu (1748), que concebe o Judiciário como um mero intérprete da lei. Diante da impossibilidade fática da “lei falar por si só”, seria preciso a figura de um ser humano para expressar o que consta em seu texto e o alcance desta norma. este ser humano, por ser investido da autoridade estatal de resolver conflitos e efetivar direitos, deve aplicar a lei de modo que se atenha à sua literalidade. emblemática, aqui, é a idéia de que o Judiciário seria apenas a “boca da lei”, ou seja, sua função seria a de mero verbalizador do texto jurídico, afastando qualquer tipo de subjetividade ou papel pró–ativo na realização do direito. nesta perspectiva, a discussão sobre a legitimidade do direito relacionou–se ao seu reconhecimento enquanto norma jurídica exterior aos indivíduos, mas que se encontra, em certa medida, obrigatória e construída a priori por eles como leis entre partes. sendo uma lei entre partes previa-mente constituída, caberia ao Judiciário apenas expressar essa lei, sem qualquer prerro-gativa de mudança do seu conteúdo ou ampliação da sua titularidade a outros indivíduos.

no século xix, Hans Kelsen também analisou o momento de aplicação do direito, conferindo pouco destaque e protagonismo ao Judiciário. O pressuposto essencial na hermenêutica jurídica em Hans Kelsen é o fato de que esta é “uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão su-perior para um escalão inferior” (Kelsen, 2000, p. 463), de modo a fixar um sentido para a norma. Depreende–se, daqui, que pode haver operações interpretativas em qualquer hierarquia (escalão) em que se encontre a norma; o que difere, na verdade, é o grau de

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liberdade da atividade hermenêutica. Mais especificamente, a interpretação dos órgãos aplicadores é denominada por Kelsen de interpretação autêntica, pois o resultado da in-terpretação seria um enunciado normativo vinculante e auto–explicativo.

Kelsen parte do princípio de que o direito regula a sua própria criação; logo, as re-gras regulam a maneira pela qual outras regras devem ser criadas. O sistema jurídico é uma estrutura piramidal na qual as normas de escalão superior regulam a criação das normas de escalão inferior, portanto a atividade interpretativa envolve aplicar as normas superiores nas inferiores. É essa estrutura escalonada que permite a unidade lógica e a completude da ordem jurídica. Neste sentido, a norma superior define quem e como criar a norma inferior. ela determina não só o processo em que a inferior é feita, mas também, eventualmente, o conteúdo desta norma. Conseqüentemente, uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, mas sim porque é criada mediante um deter-minado procedimento formal. por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser direito desde que a norma inferior retire seu fundamento de validade da norma superior. em outras palavras, o dever–ser da norma jurídica retira seu fundamento de validade sempre de um outro dever–ser: uma outra norma que lhe é superior.

entretanto, o fato do critério de validade advir de uma norma superior não exclui uma certa liberdade para o preenchimento do conteúdo da norma pelo aplicador do direito, ou seja, há sempre uma indeterminação na regulação do conteúdo da norma, que pode ser de duas formas básicas:

a) intencional, em que se concede à autoridade inferior um espaço de liberdade para

resolver certas questões ou inovar;

b) não–intencional, quando surge da pluralidade de significados das palavras ou do

descompasso entre a real vontade da autoridade competente e a expressão lingüís-

tica da norma; ou, ainda, de antinomias.

De fato, apesar de todo o formalismo, o positivismo de Kelsen admite que a existência desta margem de indeterminação relativa é inerente à positivação das normas jurídicas. sempre haverá matérias a serem decididas pela autoridade inferior e a necessidade da interpretação resulta do fato do sistema de normas sempre permitir algumas possibilida-des. portanto, a norma superior fornece apenas uma moldura à norma inferior, de modo que não regula totalmente o seu conteúdo porque o legislador não deseja e também não pode. na medida em que a hierarquia da norma diminui, igualmente menor é a indeter-minação em favor da estrutura da moldura e, conseqüentemente, diminui–se a esfera de liberdade para preencher esta moldura. Assim, observa–se que o que diferencia as normas é apenas o seu grau hierárquico, na medida em que não há uma diferença qua-litativa entre elas.

Kelsen, em uma incursão essencialmente antropológica, nos mostra que o homem re-aliza duas atividades – uma racional e outra volitiva. A atividade racional do juiz contribui

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em dois sentidos: identifica a moldura adequada ao caso concreto e identifica as possi-bilidades de preenchimento desta moldura. por outro lado, a decisão de qual alternativa usar para preencher é um ato de vontade, e não de conhecimento. segundo a análise de Tércio Ferraz Jr. sobre Kelsen, o órgão interpretante define–lhe sentido, delineando limites e fronteiras através de um ato de vontade, ou seja, “trata–se de um ‘eu quero’ e não de um ‘eu sei’” (Ferraz Jr., 2003, p. 262).

Assim, nenhum modelo de interpretação poderia fornecer uma possibilidade corre-ta, visto que o juiz está inserido em um campo simbólico de valores que regerão sua vontade. em suma, o juiz cria direito e esta criação não é por um processo inteiramente racional, apesar de fortemente orientado por ele. segundo Kelsen, a “questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a correta, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito” (Kelsen, 2000, p. 469). Cumpre salientar que Kelsen reconhece que os atos de vontade estejam baseados em atos cognitivos de justifica-ção racional.

em Kelsen, o ideal de segurança jurídica seria uma ideologia na qual os cidadãos precisam acreditar. A ciência alimenta a ficção de que a norma jurídica permite apenas uma interpretação correta, e esta ficção serve ao positivismo tradicional no sentido de consolidar o ideal de segurança jurídica. Assim, “todos os métodos de interpretação até o presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto” (Kelsen, p. 465). De fato, Kelsen concebe o direito não somente como um sistema estático de normas de conduta dirigidas aos jurisdicionados – tal qual o positivismo tradicional fazia –, mas também como um sistema dinâmico de regras que compõem a estrutura do ordenamento jurídico, conferindo poderes aos apli-cadores para o estabelecimento de normas jurídicas, e fixando formas e procedimentos para tal atividade. Dessa concepção do direito como sistema dinâmico resulta a impossi-bilidade lógica de existência de lacunas.

portanto, com Kelsen, esta visão de um Judiciário passivo e mudo passou a ser con-testada. no cenário contemporâneo brasileiro, apesar de crítico ao positivismo kelsenia-no, o que se observa é a transformação de “poder ‘mudo’ a Terceiro Gigante”3 (Werneck

3 Na análise de Luiz Werneck Vianna et al., “neste meio século que nos distancia do último conflito mundial, os três poderes da conceituação clássica de Montesquieu se têm sucedido, sintomaticamente, na preferência bibliográfica e da opinião pública: à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução do mundo arrasado pela guerra, e que trouxe centralidade aos estudos sobre a burocracia, as elites políticas e a máquina governamental, seguiu–se a do legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições de democracia política impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, pelo chamado Terceiro poder e a questão substantiva nele contida – Justiça” (Werneck Vianna et al., 1997, p. 24). A respeito do tema, Giselle Cittadino afirma: “a ampliação do controle normativo do Poder Judiciário no âmbito das democracias contemporâneas é tema central de muitas discussões que hoje se processam na ciência política, na sociologia jurídica e na filosofia do direito. O protagonismo recente dos tribunais constitucionais e cortes supremas não

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Vianna et al., 1997, p. 39), sobretudo a partir da mútua influência entre direito e política, que foi possível em razão de uma série de fatores. principalmente pelos mecanismos de controle de constitucionalidade de leis, o Judiciário passou a fazer parte da formulação das mesmas juntamente ao legislativo e, com a ampliação dos instrumentos processu-ais – tais como a ação civil pública, a ação popular e a ação de improbidade –, passou a exercer controle direto nas ações do executivo e exercer papel proeminente na efetivação de direitos. Com isso, a política passou a fazer parte do mundo do direito, o que ense-jou transformações consideráveis nos sentidos, ações, competências e atribuições das instituições jurídicas, de modo a polemizar a perspectiva kelseniana. no contexto brasi-leiro, por exemplo, a leitura de luiz Werneck Vianna et al. denota que o protagonismo do Judiciário é “menos o resultado desejado por esse poder, e mais um efeito inesperado da transição para democracia, sob a circunstância geral [...] de uma reestruturação das relações entre o estado e a sociedade” (idem, p. 12).

A relevância institucional do Judiciário não se reduz ao âmbito da política. num con-texto welfareano em que há uma pluralidade de normas de eficácia plena e programática que visam, em algum grau, impor um dever de agir ao executivo, o Judiciário tem sido cada vez mais acionado em alguns países para resolver conflitos, efetivar direitos e im-plementar políticas públicas. nesta linha, denomina–se como judicialização o termo que define o movimento de discussão, no campo do direito e com protagonismo do Judiciário, dos conflitos político–sociais. Tal perspectiva exprime que não somente os atores privile-giados se utilizam da via judicial para resolver conflitos políticos, tais como partidos polí-ticos, chefes do executivo, etc. Judicializar relações sociais envolve um processo muito mais amplo, que alça o Judiciário a referencial de resolução de conflitos sociais4.

apenas transforma em questões problemáticas os princípios da separação dos poderes e da neutralidade política do poder Judiciário, como inaugura um tipo inédito de espaço público, desvinculado das clássicas instituições político–representativas” (Cittadino, 2003, p. 17). Ao refletir sobre o protagonismo do Judiciário, Matthew Taylor sustentou: “é amplamente reconhecido que, embora o Judiciário não possua ‘nem a bolsa nem a espada’ –, ou seja, nem os poderes orçamentários do legislativo nem os poderes coercitivos do executivo –, ele tem um considerável poder político como depositário da fé pública nas regras do jogo. O Judiciário desempenha um papel central na determinação e aplicação de princípios tanto constitucionais quanto ideais, tais como o Rechstaat ou état de droit” (Taylor, 2007, p. 248).

4 É possível atribuir a essa relevância institucional a alguns elementos, dentre os quais se destacam: a) a ampliação da possibilidade de controle de constitucionalidade exercido pelo Judiciário por meio da via concentrada (ex.: ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação de descumprimento de preceito fundamental, etc.) e pela via difusa (por meio incidentes processuais a serem julgados por de juízes monocráticos e tribunais); b) a intensificação dos mecanismos e estratégias de ampliação do acesso à justiça (ex.: Juizados especiais Cíveis e Criminais, Justiça itinerante, Defensoria pública, etc.); c) o incremento do poder político que as associações de magistrados passaram a exercer no contexto brasileiro de efetivação de direitos, principalmente por meio de manifestos e estratégias de pressão (ex.: Associação dos Juízes Federais do Brasil, Associação nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, Associação dos Magistrados Brasileiros, etc.). Tais fatores permitem reconhecer um reforço do papel institucional do Judiciário em tornar os direitos expressos formalmente em efetivamente exercidos pelos seus titulares.

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As concepções dos estudos de judicialização possuem um ponto em comum: a cen-tralidade do juiz na efetivação dos direitos. Tais concepções vão além ao estabelecerem que, metodologicamente, as pesquisas realizadas no campo do direito também devem seguir o referencial judicial, o que alça o Judiciário a um verdadeiro lugar privilegiado de discussão de acadêmicos, profissionais do direito e atores políticos.

De fato, o direito brasileiro e, mais propriamente, os estudos sobre o direito brasileiro têm se debruçado sob a ótica judicial para refletir sobre seus processos de efetivação. inclusive, mesmo numa perspectiva pós–positivista, os estudos de judicialização intensi-ficaram este aprofundamento no estudo da dinâmica judicial, situando os demais atores e instituições jurídicas como meros coadjuvantes no âmbito da efetivação de direitos. Como visto, há limites e desafios teóricos e metodológicos presentes na interpretação do direito sob o ponto de vista do Judiciário.

É importante salientar que as concepções construídas pelos estudos de judicializa-ção podem possuir limitações de diversas naturezas para pensar o Judiciário no Brasil e em outros países, tais como portugal. A assunção do juiz como a referencial primaz na efetivação do direito pode propiciar uma a supervalorização da dinâmica judicial. Tal valorização tem sido operada em detrimento de reflexões sobre outras formas jurídicas e não–jurídicas de aplicação e efetivação de direitos, a exemplo a mediação extrajudicial, e as ciências sociais podem contribuir sobremaneira para esta problematização.

Com isso, a perspectiva que enfatiza o movimento de judicialização, seja da política, seja das relações sociais, evidencia que o Judiciário passa a ocupar centralidade no processo de resolução de conflitos políticos e sociais. Como desdobramento, o papel de outras instituições jurídicas apresenta–se como um mero agente proponente de ações judiciais a um magistrado, que possui a competência jurisdicional para resolver o litígio.

Por outro lado, a centralidade teórica e metodológica do Judiciário nas reflexões contemporâneas pode contribuir para um verdadeiro “apequenamento” da relevância institucional da Advocacia, Ministério público e Defensoria pública, além de confundir o direito com o Judiciário ou, mais propriamente, com os entendimentos e concepções construídas no interior da dinâmica judicial. Assim, podemos refletir sobre os limites teóricos e metodológicos que podem se traduzir numa restrição às possibilidades con-cretas de efetivação de direitos por parte dos cidadãos de forma extrajudicial, e, no âmbito acadêmico, numa restrição às pesquisas que visam compreender a prática das instituições jurídicas. Com isto, podemos conceber diversas contribuições das ciên-cias sociais.

Mais especificamente, é possível elencar dois limites que concernem à centralidade do juiz na compreensão do direito contemporâneo, sobretudo quando se considera a interfa-ce entre direito e política. Os limites teóricos dizem respeito aos desafios e insuficiências relacionados à reflexão sobre o direito no mundo contemporâneo, que assume o Judici-ário como central para a efetivação dos direitos e, inclusive, para a atuação das demais instituições jurídicas. Os limites metodológicos, que, em muitos casos, estão diretamente

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associados aos limites teóricos, dizem respeito aos desafios que se apresentam às pes-quisas sobre as instituições jurídicas, sobretudo em função da primazia que conferem às ações judiciais na efetivação de direitos.

Os limites teóricos exprimem os desafios e insuficiências relacionados à reflexão so-bre o direito no mundo contemporâneo, pois assumem o Judiciário como central para a efetivação dos direitos e, inclusive, para a atuação das demais instituições jurídicas. É possível elencar três limites teóricos elementares:

a) o modelo adversarial da dinâmica judicial, associado ao princípio da inércia

da jurisdição;

b) a reflexão do juiz como um órgão decisor individual e solitário, sem dedicar especial

atenção às decisões coletivas de colegiados; e

c) a ênfase no momento da aplicação do direito posto, deixando em segundo plano a

construção e reconhecimento de novos direitos pelo juiz e também a construção de

direitos não–postos e vigentes no âmbito societário.

no que concerne ao primeiro limite, o Judiciário tradicionalmente se constituiu a partir de um modelo adversarial, que pressupõe, em seu desenvolvimento, o princí-pio da inércia da jurisdição, que será explicada a seguir. A lógica jurídica pressupõe o modelo liberal clássico, em que o juiz é o centro no qual gravitam as duas partes. Bourdieu descreve adequadamente este cenário ao ressaltar que o campo jurídico representa a

confrontação de pontos de vista singulares, ao mesmo tempo cognitivos e avaliativos,

que é resolvida pelo veredicto solenemente enunciado de uma “autoridade”

socialmente mandatada, o pleito representa uma encenação paradigmática da luta

simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta em que se defrontam visões

do mundo diferentes, e até mesmo antagonistas, que, à medida de sua autoridade,

pretendem impor–se ao reconhecimento, e, deste modo, realizar–se, está em

jogo o monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de

conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de visão e de

divisão (nemo significa separar, dividir, distribuir), portanto, de distribuição legítima

(Bourdieu, 2000, p. 236)

Como desdobramento, no poder Judiciário reina a máxima latina nemo iudex sine actore, ou seja, não há juiz sem autor. essa máxima evidencia que o Judiciário somente pode agir para a concretização de direitos mediante provocação de quem se sentir lesado pela ação ou omissão de outrem, de modo a adotar uma postura estática enquanto não for chamado à resolução de um litígio. O ordenamento jurídico brasileiro possui princípios que reforçam esta perspectiva e traduzem garantias para a inércia judicial, a exemplo do

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princípio do juiz natural5 e o princípio da inércia da jurisdição ou do impulso oficial6. Am-bos remetem à idéia de um poder estático que só age quando for chamado ao litígio por meio de provocação das partes, num contexto adversarial.

por outro lado, observam–se limites em relação a este modelo adversarial. primeira-mente, este modelo parte do princípio de que as partes são anatagonistas e, portanto, deve haver um órgão decisório com a possibilidade de definir qual delas será bem suce-dida e qual sucumbirá, ou seja, será perdedora. em segundo lugar, este modelo confere pouco destaque à formação de consenso, apesar de algumas estratégias de conciliação, tendo em vista a própria necessidade jurídica de se definir um “vencedor”. Em terceiro lugar, este modelo estático retira do Judiciário a possibilidade de agir voluntariamente na efetivação de direitos explicitamente desrespeitados, a não ser quando ativado pelas par-tes. Os problemas sociais, apesar de jurídicos, podem não ser levados ao Judiciário por uma série de razões culturais, econômicas e institucionais. Por fim, esta estática abre a possibilidade de se pensar em instituições dinâmicas que não se encontram submetidas à inércia, sobretudo as que compõem as funções essenciais da justiça, tais como o Minis-tério público e a Defensoria pública, pois podem agir independentemente de provocação.

no que concerne ao segundo limite, observa–se uma sobrevalorização da aplicação do direito por um juiz individual e solitário, sem dedicar especial atenção às decisões co-letivas de colegiados de magistrados. Os autores que se dedicaram a pensar o momento da aplicação do direito não assumiram a aplicação também por órgãos colegiados, mas tão somente por juízes singulares. Dentre os diversos autores, é possível destacar Hans Kelsen (2000), Herbert Hart (2001), Antoine Garapon (1996; 2008) e Alf Ross (2004). Nestes autores, e em tantos outros, observa–se um fio condutor analítico: o juiz, e não o colegiado de juízes. Alguns se dedicam de forma mais aprofundada aos mecanismos for-mais de aplicação, ao passo que outros se dedicam a mecanismos substantivos. porém, nestes autores, observa–se a figura do juiz singular como objeto analítico. Seja inserido em molduras formais em que possui relativa autonomia para julgar, seja orientado por princípios e valores compartilhados pela sociedade em que se insere, o juiz apresentado

5 O princípio do juiz natural – expressamente previsto no art. 5º, xxxVii e liii da CRFB – tem como conteúdo não apenas a prévia definição do órgão investido de poder jurisdicional de decisão sobre a causa (vedação aos tribunais de exceção, por exemplo), mas também a própria garantia de justiça material, isto é, a independência e a imparcialidade dos juízes (impossibilidade de escolher o juiz ao qual será distribuída a ação, por exemplo). Os referidos dispositivos jurídicos versam o seguinte: “Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo–se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) xxxViii – não haverá juízo ou tribunal de exceção (...); liii – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (Brasil, 1988)

6 O princípio da inércia da jurisdição – expressamente previsto no art. 2º do Código de processo Civil – determina que o início do processo, em regra, seja somente por iniciativa das partes. Assim, faz–se necessária a petição inicial, que é o documento pelo qual o autor invoca a prestação jurisdicional e, a partir disso, o processo é regido por meio do impulso oficial provocado pelas partes no órgão jurisdicional. O referido dispositivo jurídico versa o seguinte: “Art. 2o nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais” (Brasil, 1973)

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por estes autores caracteriza–se por ser um decisor solitário, isolado, que se encontra recluso em seu gabinete e cuja decisão é fortemente orientada por fatores externos, tais como princípios, regras, entendimentos jurisprudenciais, consciência, crenças, etc.

As insuficiências de uma abordagem desta natureza podem se traduzir pelo menos em dois aspectos. primeiramente, esta abordagem confere destaque à racionalidade do magistrado sob o pressuposto do conhecimento absoluto das leis, jurisprudência e da so-ciedade em que vive. Trata–se de uma suposição frágil, na medida em que podem haver “elementos impremeditados da ação” (Giddens, 2003) que influenciem diretamente no re-sultado da decisão judicial. por isso, não é raro observar o surgimento de algumas pers-pectivas acadêmicas que buscam realizar uma discussão a partir da análise econômica das decisões, do consequencialismo decisional, etc. A racionalidade não é passível de controle analítico absoluto, pois a existência de elementos locucionários, ilocucionários e perlocucionários (Habermas, 1987) na ação social problematizam o que efetivamente se pensou racionalmente pelo magistrado e as conseqüências racionais de suas ações. Da mesma forma, sobretudo num contexto fortemente dinâmico em que o direito se trans-forma por meio de normas, leis, entendimentos dos tribunais, princípios e concepções construídas socialmente, é absolutamente ilusório pressupor que o magistrado possui co-nhecimento absoluto e incontroverso das leis, jurisprudência e da sociedade em que vive. Diversas são as pesquisas que evidenciam a seletividade do processo de recrutamento de magistrados, inclusive no Brasil, que possuem características sociais e peculiaridades bastante próprias.

em segundo lugar, esta abordagem que parte da premissa do juiz singular e solitário desconsidera a possibilidade de construção de consensos e/ou novas concepções a par-tir do embate argumentativo típico do colegiado. segundo Bourdieu,

a interpretação da lei nunca é o ato solitário de um magistrado ocupado em

fundamentar na razão jurídica uma decisão mais ou menos estranha, pelo menos

na sua gênese, à razão e ao direito, e que agiria como hermeneuta preocupado em

produzir uma aplicação fiel da regra, como julga Gadamer, ou que atuaria como lógico

agarrado ao rigor dedutivo de seu ‘método de realização’, como queria Motulsky.

Com efeito, o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de

uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais

desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios

ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das ‘regras possíveis’, e de os

utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua

causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real, determina–se

na relação de força específica entre os profissionais, podendo–se pensar que essa

relação tende a corresponder [...] à relação de força entre os que estão sujeitos à

jurisdição respectiva (Bourdieu, 2000, pp. 224–225)

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num contexto de debates e discussões, o magistrado deve sempre considerar a pos-sibilidade real de contestação presencial e simultânea de suas idéias, de modo que deve qualificar melhor suas teses e decisões, além de estabelecer um contexto argumentativo que permita aos demais magistrados aderirem tais teses e decisões. Da mesma forma, o contexto colegiado de formação de consensos pode ampliar as possibilidades do ma-gistrado qualificar o seu argumento e, até mesmo, de identificar limites e problemas para que possa modificá–lo.

no que concerne ao terceiro limite, as reflexões dos estudos de judicialização demons-tram uma forte preocupação com o momento da aplicação do direito posto, deixando em segundo plano a construção e reconhecimento de novos direitos pelo juiz e também a construção de direitos não–postos, mas vigentes, no âmbito societário. Trata–se, então, de uma sobre–valorização da decisão judicial, em detrimento de outros processos, como o de formação de consenso e o estabelecimento de estratégias extrajudiciais.

numa chave pluralista, observa–se a emergência de outros centros produtores de direito legítimo na sociedade moderna que não se confundem com o estado, revelan-do a complexidade das relações sociais. em outros casos, observa–se a construção de novas interpretações sobre o direito vigente, que não necessariamente remetem à interpretação oficial (e judicial). Situado no interior das contradições sociais, o direito espelha a estrutura social existente. As ciências sociais permitem afirmar que as ques-tões jurídicas não são questões descoladas da sociedade e, portanto, encontram–se amplamente relacionadas ao contexto social. neste sentido, o estado seria apenas mais um centro de produção de direitos e seus sentidos, existindo esferas não–esta-tais que produzem outras concepções de direitos e conteúdos para a sua efetivação. O momento da aplicação do direito pelo juiz, portanto, é apenas um dos múltiplos processos existentes de efetivação do direito posto e de construção de novas concep-ções e direitos. sub–valorizar ou negligenciar tal multiplicidade de processos implica inequivocamente num reducionismo analítico.

no que concerne aos limites metodológicos, observa–se uma sub–valorização do Ju-diciário em relação às demais instituições jurídicas e sociais, tais como Ministério público, Defensoria Pública, Conselhos participativos, etc. Tais instituições figuram, em boa parte das pesquisas, como meros proponentes de ações judiciais. O seu potencial extrajudicial de resolução de conflitos e, por conseguinte, as suas estratégias que evitam a judicializa-ção, passam a não ser captados, analisados e compreendidos a partir de pesquisas que privilegiam a reflexão sobre as ações judiciais.

Mais precisamente, não é raro observar pesquisas sobre concepções de tribunais acerca de determinada matéria, ou então pesquisas que adotam contraposições de en-tendimentos entre tribunais e, até mesmo, pesquisas que investigam quantitativamente o número de ações judiciais propostas. Além disso, as pesquisas que buscam refletir so-bre as demais instituições jurídicas, em geral, as assumem como proponentes de ações judiciais, tais como as pesquisas sobre o número de ações civis públicas propostas

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pelo Ministério público ou o número de atendimentos judiciais realizados pelas Defenso-rias públicas.

Tais pesquisas adotam o Judiciário como central no processo de resolução de conflitos políticos e sociais. Como desdobramento, o papel de outras instituições se reduz à mera proposição de ações judiciais a um magistrado, que possui a competência jurisdicional para resolver o litígio. porém, de fato existem outras formas de atuação das instituições jurídicas que não remetem necessariamente a um processo de judicialização, mas que ainda assim realizam uma discussão jurídica sobre os conflitos e as relações sociais, o que revela um movimento de juridicização da política e das relações sociais. Reside, aqui, uma outra forma de pensar as instituições jurídicas que busca extrapolar o raciocínio juiz–centrado de efetivação de direitos e implementação de políticas públicas, de modo a pensar em outras práticas desenvolvidas pelas instituições jurídicas.

De fato, o que se observa no cenário contemporâneo é uma pluralidade de institui-ções, atores e intérpretes que também atuam decisiva e legitimamente na construção e garantia de direitos. O Judiciário, portanto, se apresenta somente como mais um desses atores, cuja proeminência, verdadeiramente, advém de suas competências e atribuições constitucionais, principalmente no que concerne à resolução de conflitos. Porém, é pre-ciso considerar que há outras formas de envolvimento de instituições jurídicas e sociais que não necessariamente ensejam a judicialização dos conflitos. As ciências sociais po-dem contribuir sobremaneira para esta análise.

Considerando que a estratégia privilegiada de algumas instituições e cidadãos pode ser o diálogo num processo contínuo de concessões recíprocas, podemos observar que as relações sociais podem sofrer muito mais uma juridicização (conflitos que não são le-vados ao Judiciário, mas que são discutidos sob o ponto de vista jurídico, principalmente em estratégias extrajudiciais) do que uma judicialização (conflitos que são levados ao Judiciário na forma de ação judicial ou algum outro instrumento processual). na medida em que há diversas instituições jurídicas (Ministério público, Defensoria pública, etc.) e cidadãos que não se utilizam necessariamente do Judiciário para realizar suas ações, observa–se um contexto em que os conflitos são discutidos sob o prisma do direito, mas evita–se levar o conflito ao Judiciário – isto é, evita–se a judicialização do conflito.

Logicamente, existem também fatores internos ao Judiciário que podem influir nesta valorização da extrajudicialidade. Dentre algumas, podemos destacar as seguintes: a) no caso de direitos coletivos, haveria juízes com receio de julgar ações com grande re-percussão econômica; b) haveria tribunais relutantes em julgar ações coletivas de forma não–conservadora; c) haveria pouca sensibilidade à especificidade dos direitos sociais, tais como o direito à saúde e à educação; d) haveria problemas estruturais e culturais no que concerne ao acesso ao judiciário; e) haveria problemas de morosidade e de transfe-rência da decisão ao órgão judicial, etc (Asensi, 2010).

Assim, outros espaços podem ser adotados como esferas de composição de conflitos que visam, em maior ou menor grau, a se afastar de uma estrutura de funcionamento

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similar à do Judiciário. Tais espaços extrajudiciais têm adotado, por vezes, estratégias de mediação, pactuação e negociação fundamentalmente céleres e que visam, em certa medida, a atuar na efetivação de direitos existentes e na construção de novos direitos. Isso reconfigura e tensiona a própria perspectiva de judicialização e chama atenção, de forma bastante clara, para as atuações extrajudiciais. O âmbito extrajudicial pode inaugu-rar e conferir realce a outros personagens que, em virtude de suas estratégias de ação, são decisivos na efetivação dos direitos, ganhando relevo as práticas sociais.

De fato, assim como o direito não se reduz à lei, o ator que efetiva direitos não é so-mente o juiz. O que se observa no cenário contemporâneo é uma pluralidade de institui-ções, atores e intérpretes que também atuam decisiva e legitimamente na construção e garantia de direitos. O Judiciário, portanto, pode se apresentar somente como mais um desses atores, cuja aparente proeminência advém de suas competências e atribuições constitucionais, principalmente no que concerne à resolução de conflitos.

neste sentido, os processos de efetivação de direitos podem ensejar o reconhecimen-to de que a “interpretação constitucional não é um ‘evento exclusivamente estatal’, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático” (Häberle, 1997, p. 23). pelo con-trário, peter Häberle sustenta que a Constituição deve ser vista enquanto um “processo público” (idem, p. 32). neste sentido, a Constituição não estrutura apenas o estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública, “dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. ela deve integrá–las ativamente enquan-to sujeitos” (idem, p. 33). A via judicial como forma de compreensão do direito, além de reducionista, pode apresentar–se como fortemente assimétrica em relação às diversas instituições jurídicas.

A ampliação do círculo de intérpretes associada ao âmbito extrajudicial inaugura e confere realce a outros personagens que, em virtude de suas estratégias heterogêne-as de ação, podem ser decisivos na efetivação de direitos. em muitos casos, o âmbi-to extrajudicial pode servir como canal para a construção conjunta de entendimentos e concepções com estas instituições num contexto de maior simetria. este “mundo para além do processo” permite aos atores romper barreiras, pensar em inovações criativas, estabelecer novos parâmetros e referenciais de atuação, e estratégias mais adequadas para a efetivação dos direitos e garantias de seus patrocinados. são exemplos evidentes desta extrajudicialidade no Brasil as atividades de consultoria que prestam o advogado, a criação de estratégias de mediação, a implementação de canais de comunicação com as demais instituições, etc. em portugal, recebem destaque as redes de solidariedade e as estratégias de protesto, que reconfiguram a reivindicação dos direitos. Portanto, o processo judicial não é – e não tem como ser – a única forma de efetivação de direitos, sob pena de um reducionismo teórico, metodológico e, principalmente, profissional, e as ciências sociais têm muito a dizer sobre isso.

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II) DIREITO E PLURALISMO

Como visto no capítulo anterior, as reflexões contemporâneas no campo do direito têm se voltado para a relação que se estabelece entre norma e realidade social. O advento do pós–positivismo e a inserção de outras disciplinas permitiram desencadear um pro-cesso de estranhamento das instituições e normas jurídicas. no tocante à sociologia do direito, como visto, observou–se que busca analisar e esmiuçar problemas com relação à efetividade da norma estatal no seio social com vistas a responder à seguinte pergunta: em que medida as normas jurídicas recebem adesão dos atores em seu cotidiano? pos-teriormente, com o incremento da pluralidade de fontes normativas não–estatais e com a constatação de diversos problemas referentes ao acesso à justiça, temos uma perspec-tiva que se preocupa não somente com a efetividade da norma produzida, mas também com a norma em produção. esta compreensão não mais é baseada na adesão pura e simples dos atores à norma estatal, mas também nas condições de produção de nor-mas estatais e não–estatais, que recebem influência direta de relações de poder. Neste sentido, a sociologia passa a não somente se preocupar com a efetividade da norma em particular (reflexão post hoc), mas também com os próprios contextos de produção da norma estatal (reflexão ante hoc) e de produço de normas não–estatais (reflexão ad hoc).

Dentre as perspectivas que se dedicam à reflexão ad hoc, a perspectiva pluralista do direito trouxe algumas contribuições para o campo do direito. De início, deve–se dizer que não existe uma teoria única que englobe toda a perspectiva pluralista. De fato, há uma variedade de autores que buscam pensar o tema da pluralidade das sociedades con-temporâneas a seu modo. A pluralidade pode ser concebida a partir de variáveis como classe, cor, religião, região, etc. Um dos nomes mais conhecidos que se dedica em suas reflexões à perspectiva pluralista do direito é o sociólogo português Boaventura de Sousa santos. este autor tem se inclinado para a assunção do seguinte pressuposto teórico e analítico de sua teoria pluralista: existem outras fontes legítimas de produção de direito e novos sentidos para os direitos existentes que não necessariamente se confundem com o direito estatal, tampouco são emanadas de um órgão estatal. nesta linha, o pluralismo jurídico de Boaventura assume que as práticas não–estatais podem interferir no pro-cesso de produção de sentidos de normas estatais, assim como podem não resguardar quaisquer relações com estas. A idéia de “jurídico”, aqui, não é entendida como somente a oficialidade estatal, abrindo espaço para pensar em “normas jurídicas” oriundas de práticas sociais desenvolvidas pelos indivíduos em seu cotidiano e que são “impositivas” para eles próprios.

santos sintetiza o argumento de forma esclarecedora em seu estudo sobre as tensões entre sociedade civil e estado. O autor é contundente na crítica às teorias que ignoram a dimensão societária da produção de direitos que não necessariamente passa pelo crivo do

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estado. Ao admitir que a “‘re–emergência da sociedade civil’ tem um núcleo que se traduz na reafirmação dos valores do autogoverno, da expansão da subjetividade, do comunitaris-mo e da organização autônoma dos interesses e dos modos de vida” (Santos, 1999, p. 124), santos sustenta que “esse núcleo tende a ser omitido no discurso dominante ou apenas subscrito na medida em que corresponde às exigências do novo autoritarismo” (idem).

esta perspectiva de santos, em verdade, é apenas uma dentre tantas outras perspec-tivas pluralistas do direito que foram construídas pelas ciências sociais. não se trata de uma perspectiva homogênea, pois revela uma gama de autores e enfoques que variam desde produções genuinamente societárias (Boaventura de sousa santos e outros) até hibridismos entre sociedade e estado (Robert Dahl e outros). porém, é fundamental dis-cutir a este respeito duas questões:

a) a perspectiva pluralista e sua relação com o campo do direito;

b) os diversos pluralismos jurídicos.

Considerando estas duas questões, é possível estabelecer uma reflexão “ecumênica” da contribuição das ciências sociais para pensar a pluralidade no interior do campo do direito, como se verá adiante.

2.1. PLURALISMO E DIREITO

É possível sustentar que a temática do pluralismo jurídico tem seus fundamentos epis-temológicos e metodológicos em momentos distintos do pensamento social e jurídico nacional e internacional. Apesar de se solidificar enquanto perspectiva teórica e empírica principalmente a partir das décadas de 60 e 70 do século xx, não é incongruente obser-var algumas perspectivas analíticas do direito que, principalmente pela via sociológica, o situam numa perspectiva pluralista (Asensi, 2010). As reflexões contemporâneas no cam-po da sociologia do direito se voltaram – principalmente a partir da década de 70 com os estudos de Boaventura de sousa santos (1974) e philippe nonet & philip selznick (1978) – para a relação que se estabelece entre norma e realidade social. neste sentido, como visto, a necessidade de extrapolar a “letra da lei” nasceu da própria inserção no campo do direito de outras ciências (sociologia, antropologia, ciência política, etc), as quais pro-puseram uma reflexão sobre o direito de forma transdisciplinar, crítica, problematizante, histórica e não–dogmática, desencadeando um processo de estranhamento das institui-ções jurídicas por meio de uma reflexão científica.

A perspectiva pluralista foi central para a sociologia e antropologia jurídica dos anos 1960 e 1970, pois, segundo shalini Randeria, “questiona as assunções básicas da teoria política e da jurisprudência7 liberais, especialmente no que diz respeito à congruência

7 Aqui, cabe destacar que a palavra “jurisprudência” possui sentido diverso no Brasil. se no contexto inglês a palavra exprime o caráter científico do direito, ou seja, “ciência do direito”, em português a palavra

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entre o território, o estado e o direito” (Randeria, 2003, p. 467). Ao problematizar a asso-ciação clássica construída pelo liberalismo clássico do século xVii da simbiose DTe, a concepção pluralista do direito inaugura um cenário em que nem toda lei que é produzida no interior de um território específico é emanada do Estado. Isto permite o questionamen-to da “centralidade do direito elaborado pelo estado e a sua exigência de exclusividade no ordenamento normativo da vida social” (idem).

santos sintetiza o argumento de forma esclarecedora em seu estudo sobre as tensões entre sociedade civil e estado. O autor é enfático na crítica às teorias que ignoram a di-mensão societária da produção de direitos e de novos sentidos para os já existentes. Tal dimensão não necessariamente passa pelo crivo do estado, sobretudo no que concerne à sua constituição enquanto direito legítimo.

A reflexão ad hoc, nesta linha, estabelece o foco para a relação que se estabelece entre a produção endógena de direitos a partir das práticas sociais e as comunidades específicas nas quais incidem tais normas, que se configuram fundamentalmente não–estatais, apesar de não necessariamente serem anti–estatais. A perspectiva pluralista sustenta a emergência de outros centros produtores de direito legítimo na sociedade contemporânea que não se confundem com o estado, apesar de eventualmente guarda-rem relação com ele, o que revela complexidade das relações sociais e das experiências jurídicas. Além disso, admite que as questões jurídicas não são questões descoladas da sociedade e, portanto, encontram–se amplamente relacionadas ao contexto social.

Alguns autores tratam empiricamente desta temática, de modo a refletir sobre os con-textos de produção de sentidos de direitos a partir de práticas sociais. Gislene neder, por exemplo, sustenta que “o direito não deve ser simplesmente confundido com o estado e/ou a ideologia dominante. situado no interior das contradições sociais, espelha a estru-tura social existente. nem todo Direito é, portanto, Direito estatal” (neder, 1995, p. 80). Norberto Bobbio, por sua vez, na ocasião em que procurou definir o sentido e os pressu-postos do conceito de pluralismo, sustentou que se trata de uma concepção “que propõe como modelo a sociedade composta de vários grupos ou centros de poder, mesmo em conflito entre si, aos quais é atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o ponto de eliminar, o centro do poder dominante” (Bobbio, 2004, p. 928)

Pode–se, assim, afirmar que a noção de pluralismo jurídico traz consigo:

a) a idéia de os fatores sociais são determinantes na produção jurídica através de rela-

ções de poder;

b) o campo da produção jurídica envolve o embate e o conflito, o que pode levar a con-

tradições dentro de um mesmo espaço territorial. (Asensi, 2010)

expressa a idéia de “decisões reiteradas dos tribunais acerca de uma determinada matéria”

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neste sentido, esta concepção preconiza que o estado seria apenas mais um centro de produção de direitos e seus sentidos, existindo esferas não–estatais que produzem outras concepções de direitos e conteúdos para a sua efetivação.

2.2. A PLURALIDADE DOS PLURALISMOS JURÍDICOS

A perspectiva pluralista sustenta a emergência de outros centros produtores de senti-dos de direito legítimos que não se confundem com o estado, revelando a complexidade das relações sociais. Como visto, as questões jurídicas não são questões descoladas da sociedade e, portanto, encontram–se amplamente relacionadas ao contexto social. Um dos principais pesquisadores sobre a temática do pluralismo e, em especial, do pluralis-mo jurídico, é Jean–Guy Belley. O autor realiza um estudo não somente sobre o percurso histórico da perspectiva jurídico–pluralista, mas também busca identificar os pressupos-tos sociológicos e jurídicos que lhe conferem fundamento.

A primeira questão tratada por Belley versa justamente sobre a relação entre estado e direito. O autor observa que, ao longo do tempo, o estado progressivamente tornou–se o centro da realidade social, de modo que a concepção de direito proposta pelos juristas se impôs no campo das reflexões sobre o direito, sendo reforçada pela própria simbio-se DTe. Assim, a “estatização do direito foi também uma estatização da concepção de direito dentro do universo intelectual” (Belley, 1986, p. 12), uma vez que toda e qualquer norma foi associada à figura estatal no tocante à sua legitimidade. Por outro lado, Belley identifica, simultaneamente, uma progressiva atenção dada aos momentos de produção de direito não–estatal, partindo do princípio de que a perspectiva estatizante e a pluralista são concomitantes: “a história do pluralismo jurídico desde o início do século atual [xx] é inseparável da história do direito estatal”8 (idem).

neste sentido, seriam três as teses fundamentais que foram historicamente associa-das à idéia de pluralismo jurídico:

1. o estado não teria o monopólio do direito, seja para a sua produção ou para

a sua aplicação;

2. o direito não seria baseado numa abordagem estritamente racional, mas em

componentes societais comunicativos;

3. o fundamento do direito não seria a liberdade individual, mas a solidariedade

social e as interações dos indivíduos em seu cotidiano.

8 Reforçando o argumento, Jean–Guy Belley observa: “elaborado em grande medida em oposição direta a essa concepção dogmática, a teoria sociológica do direito se baseia em três atitudes complementares: o anti–estatalismo, o anti–formalismo e o anti–individualismo. Às pretensões favoráveis à soberania jurídica do estado, ela opõe a idéia de pluralismo jurídico” (Belley, 1986, p. 13).

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O autor observa que a noção de pluralismo jurídico “não tinha nada de essencial que não fosse a primeira dessas teses. Mas ela foi integrada a uma teoria sociológica que se preocupava não somente com o fenômeno da estatização do direito, mas também dos problemas de racionalização e socialização do direito” (idem, p. 14). Diante dessa explica-ção, Belley sustenta que os primeiros enfoques sobre o tema do pluralismo no campo do direito foram realizados por autores europeus, principalmente de inspiração alemã, tais como eugen ehrlich (enfatizando a idéia de “direito vivo”), Georges Gurvitch (enfatizando a idéia durkheimiana de “solidariedade social”) e, inclusive, Max Weber (enfatizando a idéia de “direito estatal pluralista”). ehrlich, conforme argumentado no primeiro capítulo, propõe uma distinção entre o direito positivo, presente na norma jurídica, e o direito vivo, fruto da dinâmica social. O direito, portanto, seria maior do que a norma, e seria através da sua prática no cotidiano que se poderia observá–lo como dinâmica social. O estudo do direito vivo permitiria extrapolar o raciocínio calcado na lei e no estado, pois assume o direito como um fenômeno social.

na perspectiva de Gurvitch (1977), ganha relevo a idéia de solidariedade social, a coordenação coletiva de condutas no interior dos grupos sociais e a experiência coletiva de justiça, de modo que o direito se exprima fundamentalmente por uma experiência es-pontânea e intuitiva do sentimento de justiça. Ou seja, a racionalização desta “experiência jurídica sob a forma de regras abstratas e sua institucionalização nas superestruturas or-ganizadas de tipo legislativo, judiciário ou repressivo, constituem apenas manifestações derivadas e superficiais da existência de uma ordem jurídica” (Belley, 1986, p. 14).

Weber (1991), que segundo Belley também seria um “pluralista”, não compartilharia desta perspectiva que autonomiza a produção de direitos em relação ao estado, porém inseriria no seio do estado também uma concepção sobre o pluralismo. na análise de Belley, o argumento de Weber é que “a estatização do direito não significa necessaria-mente o desaparecimento de todo pluralismo jurídico. ela põe em evidência, com efeito, o desenvolvimento dos direitos especiais reconhecidos pelo estado” (Belley, 1986, p. 17).

Em sentido similar ao de Weber, podemos identificar em Dahl uma versão pluralista que busca, em certa medida, pensar a articulação entre estado e direito em sociedades complexas. O autor trabalha o tema a partir do que denominou de pluralismo democrático e democracia pluralista, no qual:

a) o termo democracia “pode referir–se tanto a um ideal quanto a um tipo específico de

regime atual. A democracia no sentido ideal é a condição necessária para a melhor

ordem política. Ela não é uma condição suficiente” (Dahl, 1982, p. 4);

b) e os termos pluralismo e pluralista “referem–se ao pluralismo organizacional, ou

seja, à existência de uma pluralidade de organizações (sub–sistemas) relativamente

autônomas (independentes) no domínio do Estado” (Idem, p. 5).

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neste caso, a associação entre direito e estado é fundamental, tal como Weber salien-tou, mas não impede que sejam incorporados nos processos de produção de direitos as pluralidades do mundo social contemporâneo. Ao tratar do tema da democracia pluralista, Dahl procura justamente demonstrar que um país só chega a tal patamar caso seja uma democracia no sentido de uma poliarquia e, simultaneamente, quando as organizações são relativamente autônomas, inaugurando o termo pluralismo organizacional. O autor sustenta que, “nos grandes sistemas políticos, as organizações independentes ajudam a prevenir a dominação e a criar um controle mútuo” (idem, p. 32), sendo a principal al-ternativa ao controle mútuo no governo do estado a hierarquia. Trata–se, então, de uma perspectiva pluralista que privilegia a produção de normas no interior do estado por meio de organizações que abarquem tal pluralidade.

seguramente é na perspectiva de santos que o pluralismo tenha recebido sua versão mais conhecida no campo do direito. A perspectiva de pluralismo jurídico em santos par-te do princípio de que existem outras fontes de produção de direito legítimo que não se confundem necessariamente com o direito estatal. Inclusive, o autor chega a definir as situações em que se configura o pluralismo jurídico, quais sejam: “sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica” (Santos, 1980, p. 87). e tal pluralidade normativa pode receber diversos fundamentos, que variam desde o econômico e perpassam o racial, profissional, religioso, etc. Além disso, “pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de trans-formação revolucionária” (idem) ou, no caso de seu estudo sobre favelas no Brasil, pode ainda resultar “da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social – neste caso a habitação”9 (idem). neste sentido, a pluralidade jurí-dica presente no interior de uma sociedade não é trivial, uma vez que é acompanhada de uma multiplicidade do ponto de vista de suas causas, cabendo às pesquisas empíricas desvendar os mecanismos de poder inerentes à produção desses direitos que não se confundem com o direito estatal. nesta linha, Randeria corrobora a tese de santos sobre o tema ao afirmar que

9 Ganha relevo a tese de doutorado de santos defendida na Universidade de Yale sobre o pluralismo jurídico na favela, na década de 70 do século xx. A pesquisa empírica foi desenvolvida na favela do Jacarezinho (que recebeu a denominação lúdica de Pasárgada), na cidade do Rio de Janeiro. segundo Santos, “no caso específico de Pasárgada, pode detectar–se a vigência não–oficial e precária de um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela associação de moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrentes de luta pela habitação. Este direito não oficial – o direito de Pasárgada como lhe poderei chamar – vigora em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem jurídica de pasárgada. entre os dois direitos se estabelece uma relação de pluralismo jurídico extremamente complexa, que só uma análise muito minuciosa pode revelar. Muito em geral, pode dizer–se que não se trata de uma relação igualitária, já que o direito de pasárgada é sempre e de múltiplas formas um direito dependente em relação ao direito oficial brasileiro. Recorrendo a uma categoria da econômica política, pode dizer–se que se trata de uma troca desigual de juridicidade que reflete e reproduz, a nível sócio–jurídico, as relações de desigualdade entre as classes cujos interesses se espelham num e noutro direito” (santos, 1980, p. 88)

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À medida que o governo é substituído por uma pluralidade de regimes de governo

supra e infra–estatais, com atores públicos e privados, há um direito descentralizado

e microscópico que coexiste, de uma forma mais ou menos incômoda, com o

direito monumental que anteriormente era monopólio dos Estados. O domínio do

direito está sendo expandido no processo de inclusão de convenções, tratados,

acordos bilaterais e multilaterais, bem como de protocolos com efeito jurídico,

embora estes não possam ser entendidos como direito, no sentido estrito em que

possuam uma base legislativa. Além disso, a linha divisória entre direito público

e privado e entre direito e política está sendo reformulada, dada a produção de

normas por parte de atores como sociedades de advogados, árbitros privados

e ONG’s. A criação do direito torna–se cada vez mais um processo contínuo,

de origem tanto administrativa quanto legislativa, sendo as regras, regulamentos

e prescrições produzidas a partir de uma diversidade de fontes locais e com

fronteiras inconstantes (Randeira, 2003, p. 468)

A diversidade, portanto, incide não somente na relação entre estado e sociedade, mas também na própria distribuição de poder em ambas as dimensões, de modo que o processo de produção e legitimação de direitos se torne extremamente complexa, prin-cipalmente diante de uma pluralidade de atores que o compõem. A idéia de clivagens segmentais, inaurada por Harry eckstein (1966) e desenvolvida por Arend lijphart, ofere-ce um referencial relevante para se pensar esta complexidade. O argumento é que uma sociedade plural é uma sociedade dividida por clivagens segmentais, que podem ser de natureza religiosa, ideológica, lingüística, regional, cultural, racial e étnica. Além disso, “os partidos políticos, grupos de interesse, meios de comunicação, escolas e associações voluntárias tendem a se organizarem ao longo das linhas dessas clivagens segmentais” (lijphart, 1977, pp. 3–4), ou seja, clivagens que se inserem no interior do processo de legitimação do direito e que tensionam a relação entre estado e sociedade.

Dentre outros autores que também podem ser pensados sob a perspectiva pluralista é Michael Walzer. este autor inaugura o termo igualdade complexa como uma tentativa de reformular o conceito uniformizante de igualdade para dar conta de uma forma mais diferenciada de sociedade, que pode significar uma mudança em seu próprio ethos. na perspectiva do autor, o argumento da igualdade complexa começa pelo “entendimen-to – quero dizer, o nosso entendimento atual, concreto, positivo e particular – de vários bens [goods] sociais. e então ele nos move a uma discussão sobre a forma por meio da qual nós nos relacionamos uns aos outros com esses bens” (Walzer, 1983, p. 18). Há, portanto, uma compreensão pluralista em relação às visões de mundo e ao conteúdo do que é valorizado socialmente enquanto bem, o que, a princípio, afastaria possibilidades concretas de consenso. porém, Walzer aponta uma possibilidade, aproximando–se do argumento de Habermas, por exemplo:

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Onde os procedimentos democráticos sobreviveram, os limites aos abusos de

poder usualmente permaneceram. A autoridade política democrática, é óbvio, não

garante que a ‘igualdade complexa’ aconteça. As maiorias democráticas podem ser

sustentadas por muitas formas de desigualdades, de muitas dimensões, mas menos

facilmente quando tais desigualdades são proibidas de invadir (através da denúncia

da riqueza e da violência) o próprio processo político. Nos moldes em que Walzer

define a ‘igualdade complexa’ procedimentalmente, como uma forma de negociação

entre sistemas de valores em competição, então as garantias procedimentais de

negociação (grosso modo, democracia) são suas condições necessárias, porém

não suficientes. Se observam então fortes razões para dar prioridade, como Walzer

o faz, à esfera da soberania democrática política (Rustin, 1995, p. 41)

portanto, o que se pode observar é uma pluralidade de concepções, teorias, hipóteses e pesquisas sobre o pluralismo jurídico, o que torna visivelmente complexa a possibilida-de de qualquer redução semântico–conceitual do que significam estes termos. Porém, é possível indicar que as teorias, a seu modo, partem do princípio ecumênico de que:

a) é possível que a sociedade influa e produza direitos legítimos no interior do Estado

ou externamente a ele;

b) a relação entre estado e sociedade é de tensão e heterogeneidade, e não de unidade.

Algumas teorias – mais radicais, tais como santos – assumem a possibilidade de haver produção de direito legítimo, porque social, fora do âmbito estatal; ao passo que outras – mais moderadas, tais como Weber e Dahl – admitem que a pluralidade da vida social só recebe legitimidade do ponto de vista da produção de direitos quando incide no âmbito estatal. neste sentido, as teorias que tratam de pluralismo jurídico nos termos propostos por santos apresentam um potencial de contraposição às teorias estatalistas do direito muito mais visível, porque admitem como pressuposto de que nem todo direito legítimo é direito estatal. A diversidade se expressa não somente na relação entre estado e sociedade, mas também na própria distribuição de poder em ambas as dimensões, de modo que o processo de produção e legitimação de direitos se torne extremamente com-plexa, sobretudo diante da pluralidade de atores que o compõem.

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III) DIREITO E GOVERNAMENTALIDADE

em 1978, Foucault sistematizou sua concepção sobre governamentalidade num curso no Collège de France que reuniu dezenas de estudiosos, servindo sua palestra como elemento seminal de todo o debate que veio posteriormente. porém, não foi na França que o conceito ganhou maior atenção, recebendo forte atenção dos autores de tradição inglesa, tais como peter Miller, nikolas Rose, Colin Gordon e Mitchell Dean (Governmentality studies), além de autores que estudam pós–colonialismo, tais como partha Chaterjee.

O uso que estes autores fazem da idéia de governamentalidade parte do pressuposto de que, quando se fala neste termo, busca–se estabelecer uma perspectiva não–esta-tizante e não–ideologizante dos regimes de práticas de governo. Visa–se pensar como tais práticas se desenvolvem e as formas, tecnologias, saberes, poderes, estratégias, etc, que são correspondentes ao seu desenvolvimento no mundo da práxis sob uma orien-tação crítica. Trata–se, então, de uma perspectiva materialista, pois situa os regimes de práticas como centro da análise e busca desvendar a lógica de tais práticas cotidianas. por essa razão, toda análise de governo (e dos direitos) nos termos propostos por Fou-cault possuiria uma dupla–dimensão:

a) é diagnóstica, porque se refere a fatos empíricos que já aconteceram ou que estão

acontecendo sob uma perspectiva crítica; e

b) é genealógica, porque busca reconstituir as condições de possibilidade de emergên-

cia de um conhecimento acerca do mundo que enseja, necessariamente, um poder

de intervenção e/ou influência em seus saberes e práticas.

portanto, toda análise de governo é não–reducionista, pois não parte de modelos ide-ais tampouco de teorias substancializadas, mas dos próprios contextos de ação em que os diversos atores que compõem o exercício do governo (incluindo os cidadãos) encon-tram–se inseridos. A perspectiva da governamentalidade rompe com a forma de tratar e pensar alguns assuntos típicos de estado, tais como os problemas de legitimidade, a noção de ideologia e os direitos e as fontes do poder, evidenciando uma complexidade das experiências de governo que deriva dos próprios arranjos tecnológicos, políticos, estratégicos e de conhecimento que singularizam cada experiência e faz com que não se possa estabelecer uma teoria geral dos governos. por isso, Rose e Miller (1992) apontam que esta perspectiva engloba três características:

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a) realismo, pois pensa os saberes e práticas em seus próprios termos de forma gene-

alógica e crítica;

b) linguagem, pois confere enfoque especial não somente ao caráter contemplativo ou

justificativo do uso da linguagem, mas também o seu caráter performático; e

c) conhecimento, pois não somente idéias, mas pessoas, teorias, projetos, experimen-

tos e técnicas são componentes do ato de governar.

nesta linha, muito mais do que uma teoria, Foucault está pensando regimes de práti-cas que, na perspectiva da governamentalidade, dizem respeito à forma por meio da qual os governos tentam conceber um cidadão mais adequado (tamed) às suas políticas e às suas práticas governativas dos sujeitos e seus direitos. A governamentalidade, nestes termos, é o próprio atributo de governar e se refere à articulação de saberes e poderes no interior de um contexto específico: o governo e suas diversas possibilidades de ação. Dean (1999) estabelece quatro dimensões na análise de governamentalidade. são elas:

a) formas características de visibilidade, formas de ver e perceber;

b) formas distintas de pensar e questionar baseadas num vocabulário específico e em

procedimentos de produção de verdades;

c) formas específicas de agir, intervir e dirigir formuladas a partir de tipos específicos

de racionalidade prática; e

d) formas características de formar sujeitos, pessoas, atores ou agentes.

Uma pluralidade de regimes de práticas, uma pluralidade de saberes, uma pluralidade de tecnologias e estratégias de ação – o espaço do governo se caracteriza por uma hete-rogeneidade de personagens e estruturas que consolidam a sua necessidade de gerir os homens e as coisas em relação, bem como as suas próprias políticas, inclusive políticas de efetivação de direitos10 (Asensi, 2010). num contexto deste tipo – fortemente hetero-gêneo, assimétrico e plural – Foucault sustenta que o ato de governar não se traduz num mero ato político qualquer, mas como uma própria arte. Diante de desafios e limites no cotidiano do governo, a sua prática passa a exigir uma efetiva capacidade dos governos de gerirem e lidarem com toda esta pluralidade, o que reforça a idéia de que todo ato de governar é uma arte, uma vez que enseja a necessidade de racionalização a respeito das tecnologias, estratégias e saberes a serem mobilizados no cotidiano de suas práticas. A arte de governar, então, possibilita traduzir a complexidade social nos próprios termos da governamentalidade. e estabelecer os próprios termos traz a necessidade de que o go-verno constitua determinados regimes de verdade por meio dos quais se possam apoiar

10 Dean sustenta que “quando Foucault buscou cortar fora a cabeça do rei no pensamento político era de tal forma que ele poderia entender as formas ‘capilares’ de poder que são constitutivas do ‘corpo social’” (Dean, 2008, p. 26). em outra oportunidade, Dean argumentou que “examinar regimes de governo significa conduzir a análise no plural: já há uma pluralidade de regimes de práticas num dado território, cada um composto de uma multiplicidade de elementos ilimitados e heterogêneos a princípio que são ligados por uma variedade de relações e conexões polimórficas uns com os outros” (Idem, p. 27).

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critérios de validade das decisões. nesta linha, “o governo continuamente busca dar a si mesmo uma forma de verdade – estabelecer um tipo de base ética para suas ações [...]. Governar, pode–se dizer, é estar condenado a buscar uma autoridade para uma autori-dade de alguém” (Rose, 2005, p. 27). Mas em que consiste, em linhas gerais, esta “arte”?

Foucault parte do pressuposto de que a governamentalidade é um fenômeno situado historicamente. Sendo assim, trata–se de um fenômeno típico das sociedades ocidentais modernas que se caracterizam, a princípio, por regimes liberais a partir de três movimen-tos distintos:

a) “o movimento que abala a constante da soberania colocando o problema, que se

tornou central, do governo”;

b) “o movimento que faz aparecer a população como um dado, como um campo de

intervenção, como o objeto da técnica de governo”;

c) “o movimento que isola a economia como setor específico da realidade e a economia

política como ciência e como técnica de intervenção do governo neste campo da

realidade”. (Foucault, 2004, p. 291).

seguindo o argumento, Foucault sustenta que são estes três movimentos – o governo, a população, a economia política – que constituem, a partir do século xViii, um conjunto que ainda não foi desmembrado e que problematiza o estado, a cidadania e os direitos. Assim, a arte de governar na análise foucaultiana ensejaria a própria introdução da eco-nomia no nível da gestão do estados por meio de seus regimes de práticas de governo, passando a economia política a servir como critério para exercício e relativa eficácia do poder político.

Mais precisamente, o governo se transforma num governo econômico, vale dizer: “para assegurar felicidade e prosperidade para a população, é necessário governar por meio de um registro particular, que é o da economia. Além disso, o governo por si próprio tem que ser econômico, tanto fiscalmente como no uso do poder” (Dean, 2008, p. 19). A arte de governar é uma arte que enseja uma série de regimes de práticas de governo, com base na perspectiva da economia política, que visa estabelecer, por meio de estratégias, tecnologias, saberes e poderes uma série de relações entre governo e população. Deste modo, uma vez que o enfoque é nas práticas de governo, não importa tanto na análise o estudo da estatização da sociedade, mas sim, nos temos de Foucault, da governamenta-lização do Estado.

neste registro, a produção de conhecimento sobre a governamentalidade está funda-mentalmente associada ao campo que se convencionou chamar de Law and Economics, com forte influência norte–americana, que se traduz na perspectiva da análise econômi-ca do direito. esta perspectiva é, de fato, interdisciplinar, pois busca englobar em suas discussões tanto economistas (Ronald Coase, Gary Becker, etc) quanto juristas (Richard posner, Guido Calabresi, philip Bobbit, Cass sunstein, stephen Holmes, etc). A análise

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econômica do direito tem ampla utilização nos Estados Unidos; é comum a utilização desta perspectiva na formulação de decisões judiciais e na configuração de políticas pú-blicas das mais diversas, influindo decisivamente na forma por meio da qual se efetivam os direitos. Basicamente, tal perspectiva pode ser pensada de duas formas:

a) no âmbito do direito privado, em que desempenha papel decisivo na questão dos

custos de transação, taxas, impostos, cláusulas contratuais, etc;

b) no âmbito do direito público, em que desempenha papel decisivo na alocação de

recursos escassos para a efetivação de direitos garantidos constitucionalmente.

3.1. GENEALOGIA, DIREITOS E SOBERANIA

Um elemento central na perspectiva epistemológica de Foucault é a idéia de genea-logia. A genealogia busca compreender a configuração das positividades dos saberes a partir das condições de possibilidades externas a eles próprios; ou seja, considera–os como elementos de natureza essencialmente estratégica situados historicamente. Bus-ca–se a explicação dos fatores que interferem na sua emergência e adequação ao cam-po discursivo, sustentando sua existência como elementos de poder. neste sentido, o sentido da genealogia consiste em

neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence

as limitações de suas condições particulares de existência instalando–se na

neutralidade objetiva do universal e da ideologia de um conhecimento em que

o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas

condições de existência. Todo conhecimento, seja ele cientifico ou ideológico,

só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que

se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber

não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a

relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político.

E isso não porque cai nas malhas do Estado e é apropriado por ele, que dele

se serve como instrumento de dominação, desvirtuando seu núcleo essencial

de racionalidade. Mas porque todo saber tem sua gênese em relações de poder

(Machado, 1981, 198–199)

De fato, a genealogia dá sustentação à análise da proveniência, que leva em conta os mecanismos e estratégias postos em prática nas relações de força e, principalmente, os limites e regras que emergem destes dispositivos de poder e se objetificam por meio de regularidades discursivas que delimitam o espaço de existência do discurso. Assim, Foucault entende a genealogia como uma atividade de investigação que procura analisar os indícios nos fatos desconsiderados, desvalorizados e mesmo apagados pela história

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“oficial”, e que estão presentes, mesmo que inconscientemente, nas práticas sociais. Se-gundo Foucault,

o historiador não deve temer as mesquinharias, pois foi de mesquinharia em

mesquinharia, de pequena em pequena coisa, que finalmente as grandes coisas se

formaram. À solenidade de origem, é necessário opor, em bom método histórico,

a pequenez meticulosa e inconfessável dessas fabricações, dessas invenções

(Foucault, 1999, p. 16)

A genealogia requer, então, a busca da singularidade dos acontecimentos, fazendo emergir os espaços excluídos ou ignorados pelo discurso “verdadeiro”. Trata–se, nesta análise, de considerar os saberes locais ou marginalizados não legitimados ou valori-zados pelo discurso oficial que, ao ocupar um lugar qualificado como científico, ordena, hierarquiza e classifica os diversos saberes. Seria preciso, então, observar os acasos e as descontinuidades, pois se há algum pressuposto a desvendar, é que as coisas não teriam essência, pois a (suposta) essência é construída a partir de situações especificas contextualizadas histórica e socialmente. Foucault, com esta afirmação, dialoga direta-mente com os jusnaturalistas, na medida em que desvenda e critica a idéia de direito natural e inaugura a idéia de um direito construído socialmente por meio de relações de poder, que são constitutivas de qualquer relação jurídica. Deste modo, a genealogia pro-põe evidenciar os acidentes e os acasos, na medida em que não existe uma História, mas sim histórias; da mesma forma que não existe Direito, mas direitos. nas palavras do autor, a genealogia não se opõe à história “como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta–histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da ‘origem’” (idem, 2004, p. 16)

nesse sentido, em contraposição a essa história tradicional que busca na origem das coisas a sua razão, temos uma história efetiva que vê as coisas sob o ponto de vista da descontinuidade, dos descompassos, isto é, dos saberes e práticas associados às rela-ções de poder. A história é efetiva na medida em que todo saber sempre é perspectivo, ou seja, parte de um determinado ângulo e, de forma deliberada, movimenta–se com o fim de apreciar e valorar a realidade empírica. A efetividade da história consiste no fato dela introduzir o descontínuo em seu próprio processo, pois esta história efetiva “olha para o mais próximo, mas para dele se separar bruscamente e se apoderar à distância (olhar se-melhante ao do médico que mergulha para diagnosticar e dizer a diferença)” e, por isso, “o sentido histórico está muito mais próximo da medicina do que da filosofia” (Idem, p. 29).

em sua análise sobre verdade e conhecimento, Foucault parte do princípio de que não há uma relação necessária entre o conhecimento e as coisas a conhecer, ou seja, o que se sabe a respeito de algo não é próprio de sua essência. O conhecimento não faz parte da natureza humana e, então, não é algo que diz respeito à essência do homem. O

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conhecimento é sempre inventado. Assim, “o conhecimento não é instintivo, é contra–ins-tintivo, assim como ele não é natural, é contra–natural” (idem, 1999, p. 17). logo, temos “uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento, não havendo entre eles nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos de natureza” (idem, p. 18).

por não fazer parte da natureza humana, o próprio conhecimento também não pres-supõe uma relação de afinidade ou semelhança com as coisas; ao contrário, o conhe-cimento exprime relações de poder, as quais desmistificam a idéia de algo unificado ou homogêneo11. Por essa razão, Foucault ironicamente afirma que, caso desejemos saber efetivamente o que é o conhecimento, devemos nos aproximar dos políticos, e não dos filósofos, haja vista que a política evidencia os entrechoques de poder e é a partir da po-lítica que se constrói o direito. na verdade, “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (idem, 2004, p. 18). portanto, é através desse disparate que se alcança um resultado, a algo inventado, ao conhecimento. O próprio discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear–nos”. (idem, 2005). Fou-cault procura evidenciar que existe uma história da verdade e que, porém, ela também é inventada, ou seja, é produto de relações de poder. portanto, a própria idéia de direitos do homem passa de algo universal para algo situado historicamente e potencialmen-te relativizável.

para o autor, os “discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que também se ignoram ou se excluem” (idem). Ademais, uma prática de discurso não pode reconhecer, evidenciar ou exprimir a vontade de verdade que lhe permeia; ela deve, desde o início, mostrar–se como algo unívoco, o que denota o seu caráter excludente. no caso da governamentalidade, o discurso sobre o ato de governar deve sempre adotar referenciais de verdade para ter legitimidade. na argumentação jurídica, a proposta de Foucault ganha relevância, na medida em que o ar-gumento jurídico nem sempre está vinculado aos fatos ou ao mundo do direito. por vezes, funciona como argumento retórico que visa única e exclusivamente a adesão do interlo-cutor. neste sentido, o conhecimento derivado da vontade de saber é uma construção

11 na perspectiva da governamentalidade, “o poder é somente poder (mais do que a mera força física ou violência) quando endereçado a indivíduos que são livres para agir de uma forma ou de outra. O poder é definido as ‘ação nas ações dos outros’: ou seja, ele pressupõe mais do que anula a sua capacidade como agentes; ele age sobre e através de um contexto aberto de possibilidades práticas e éticas. portanto, apesar do poder ser uma dimensão onipresente das relações humanas, o poder na sociedade jamais é um regime fixo e fechado, mas sim um jogo estratégico aberto” (Gordon, 1991, p. 5). Rose e Miller, por sua vez, observam que o “poder político é exercido hoje por meio de uma profusão de alianças cambiáveis entre as diversas autoridades em projetos para governar uma multidão de facetas da atividade econômica, a vida social e a conduta individual” (Rose e Miller, 1992, p. 174). Trata–se do reconhecimento de que as práticas de governo estão associadas a uma pluralidade de formas e modos de manifestação do poder e seus saberes conexos.

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que resulta não de instintos básicos ou naturais, mas de confrontos, onde cada instinto deseja instituir como norma universal a sua perspectiva particular. O ato discursivo, nesta perspectiva, sempre se impõe. Interpretar não é apenas encontrar um significado comum e universal para determinado signo; mas, principalmente, imprimir e produzir uma verda-de que submete o outro aos seus próprios termos.

Isso justifica o fato da genealogia visar a análise do poder em seu contexto prático – que está ligado às condições que permitiram sua emergência – realizando a análise histórica das condições políticas de possibilidade dos discursos. A genealogia não bus-ca analisar a origem, mas a proveniência: “a pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo” (idem, 2004, p. 21). Da mesma forma que os discursos estão permeados por relações descontínuas, a interpretação (dentre elas, a jurídica) também se encontra permeada por relações de poder. segundo Foucault, a sociedade se constitui na medida em que instaura a violência dentro de seu sistema de regras e prossegue a dominação de forma institucionalizada. portanto,

o grande jogo da historia será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o

lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê–las, utilizá–las ao

inverso e voltá–las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo

no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar–

se–ão dominados por suas próprias regras (Idem, p. 25–26)

Ora, se interpretar é se apoderar por violência de um sistema de regras que não tem em si significação essencial e lhe impor uma direção, então o caminho dos processos sociais da humanidade é sempre uma série de interpretações sobre a realidade empírica. em decorrência disto,

se a interpretação nunca pode se concluir, é muito simplesmente porque nada há a

interpretar. Nada há de absolutamente primeira a interpretar, pois no fundo tudo já é

interpretação; cada signo é nele mesmo não a coisa que se oferece à interpretação,

mas interpretação de outros signos (Idem, 2000, p. 47)

Vejamos como isso se configura na questão dos direitos. Em A verdade e as formas jurídicas, Foucault resgata as formas jurídicas que emergiram ao longo da história, re-alizando uma reconstituição de como o direito foi se transformando da idéia de justiça privada para a de justiça pública, sob o seguinte argumento:

O Direito Germânico não opõe dessa luta a guerra à justiça, não identifica justiça e

paz. Mas, ao contrário, supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular

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e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos

de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra (Idem,

1999, p. 56–57)

Desta forma, o direito (germânico medieval, vale contextualizar) é essencialmente o espaço do conflito, que se desenvolve de forma institucionalizada e mediante alguns procedimentos comuns às partes em litígio, de modo que “entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas matá–lo segundo certas regras, certas formas” (idem, p. 57). Temos, então, o direito como a manifestação institucionalizada da guerra; porém não se trata de uma guerra que produz danos físicos a outrem, mas sim uma guerra de procedimentos, de argumentos, de fatos, de perspectivas sobre a titularidade de direitos. na guerra, o vencedor é aquele que sobrevive à luta. porém, no direito, não há como determinar o vencedor a partir das duas partes, pois se constitui uma situação de embate entre duas verdades. então, faz–se mister uma terceira pessoa, alheia à controvérsia, que servirá como mediadora e, em seguida, proferirá um veredicto sobre qual verdade prevaleceu de forma soberana. Observe que não se trata de determinar qual verdade é efetivamente verdadeira, mas sim de determinar qual verdade efetivamente prevalece. neste sentido, Foucault argumenta sobre como dos indivíduos é subtraída a possibilidade de resolverem, por si sós, os seus litígios, uma vez que é o poder soberano que passa a impor a decisão final:

o soberano, o poder político vêm, desta forma, dublar e, pouco a pouco, substituir a

vítima. Este fenômeno, absolutamente novo, vai permitir ao poder político apossar–

se dos procedimentos judiciários. O procurador, portanto, se apresenta como o

representante do soberano lesado pelo dano. [...] Assim, na noção de crime, a velha

noção de dano será substituída pela de infração. A infração não é um dano cometido

por um individuo contra outro; é uma ofensa ou lesão de um individuo à ordem, ao

Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano (Idem, p. 66)

em outras palavras, o soberano – em sentido amplo, entendido também como o es-tado – é não somente a parte lesada, mas a que exige e aplica a reparação ao dano. A lesão simbólica ao soberano é comparável à comissão de um pecado, a qual deve rece-ber a devida sanção institucionalizada em virtude da sua relevância transgressora social. nota–se, na genealogia foucaultiana, que a partir da possibilidade de um terceiro resolver a contenda entre as partes e a partir da possibilidade do crime lesar simbolicamente o soberano, ocorre uma mudança na concepção de justiça. De uma justiça privada a qual não pressupunha um poder exterior e que se impõe sobre o litígio, temos uma justiça pública que é realizada pelo terceiro alheio ao litígio e que detém a legitimidade para tal. essa transição do privado para o público ocorre principalmente por meio da apropriação pelo soberano dos procedimentos e mecanismos de resolução de conflitos, apesar de já haver práticas centralizadas no que concerne à administração pública. A publicização do

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direito, portanto, se desenvolve na medida em que ocorre a concentração da produção do direito nas “mãos” do soberano12. O direito se constitui por meio de relações de poder que buscam através do embate de verdades, uma solução comum designada por um terceiro. Daí resulta a importância do discurso e da hermenêutica como formas de persu-asão e a soberania como estratégia política de designação e efetivação de direitos. Mas a análise genealógica de Foucault sobre esses processos que envolvem a soberania não termina aqui.

A concepção de poder que Foucault apresenta ao longo de sua obra permite pensar algumas relações que se estabelecem entre direito e verdade e, ainda, entre governa-mentalidade e direito. Apesar da idéia de poder estar presente em todo o seu pensa-mento, Foucault não sistematizou os seus pressupostos, sentidos e formas de ação em sociedade. isso ensejou o debruçar de diversos autores estrangeiros e, inclusive, no Brasil, que buscaram pensar o conceito de poder e a sua forma de operacionalização no âmbito das práticas sociais.

Dentre tais autores, Thamy Pogrebinschi dedica especial atenção à identificação de princípios e características para definir o poder em Foucault. Para tal, a autora apresenta alguns pressupostos presentes no pensamento de Foucault que, em ampla medida, in-fluenciam sua concepção de poder. Pogrebinschi salienta que se constituíram no âmbito dos estudos de Foucault duas concepções de poder:

a) a de poder enquanto repressão, comumente associado ao poder disciplinar e

ao biopoder;

b) a de poder enquanto emancipação, que, segundo pogrebinschi, se trataria de um

poder inominado.

no argumento da autora, o conceito foucaultiano de poder encontra–se além daquilo que as suas investigações históricas conferiram ao poder disciplinar e ao biopoder. por-tanto, haveria um

12 na análise de Foucault sobre o período medieval germânico, o autor observa que o agente que permite essa publicização do direito é o procurador, que se encarregava de “levar” o direito às partes por meio de visitas periódicas às localidades, servindo–se como a extensão capilar do poder soberano por meio procedimento do inquérito. segundo Foucault, “o inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber–poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e determinações econômico–políticas” (idem, p. 78). Nesta linha, é a partir do inquérito que se torna possível o embate institucionalizado, procedimentalizado e regulamentado de verdades. A conclusão do inquérito funciona como uma forma de definir qual verdade prevaleceu naquele litígio e diante daquelas circunstâncias, produzindo um saber–poder. É saber porque é fruto do embate de verdades; é poder porque impõe qual dessas verdades deve prevalecer de forma coercitiva.

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núcleo comum entre essas duas categorias e um outro conceito de poder, abstrato,

inominado, existe, entretanto, e é o que permite identificá–lo. Trata–se de um

núcleo teórico–conceitual que, ao afastar o poder da idéia de repressão e de lei,

o torna emancipatório, libertador. Trata–se, afinal, de um conceito de poder como

produtividade, como positividade. A chave para encontrar esse núcleo comum nos

conceitos de poder disciplinar e de biopoder é a permanência em ambos do poder–

saber, da idéia de poder enquanto produtor de conhecimento (Pogrebinschi, 2004)

A análise de Foucault sobre verdade e conhecimento permite pensar nesse poder ino-minado que, por natureza, se apresenta como emancipador e libertador. Foucault parte do princípio de que não há uma relação necessária entre o conhecimento e as coisas a se conhecer, ou seja, o que se sabe a respeito de algo não é próprio de sua essência. Sob influência do pensamento de Friedrich Nietzsche, Foucault sustenta que o conheci-mento não faz parte da natureza humana e, então, não é algo que diz respeito à essência do homem; o conhecimento é sempre inventado. Assim, “o conhecimento não é instintivo, é contra–instintivo, assim como ele não é natural, é contra–natural” (Foucault, 1999, p. 17). logo, temos “uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento, não havendo entre eles nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos de natureza” (idem, p. 18).

por não fazer parte da natureza humana, o próprio conhecimento também não pres-supõe uma relação de afinidade ou semelhança com as coisas; ao contrário, o conhe-cimento exprime relações de poder, as quais desmistificam a idéia de algo unificado ou homogêneo. na verdade, “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (Foucault, 2004a, p. 18). portanto, é através desse disparate que se alcança um resulta-do, a algo inventado, ao conhecimento. pogrebinschi salienta que esse poder inominado que vai além da repressão se situa na gênese do conhecimento. portanto,

o poder produz: ele constrói; destrói e reconstrói; ele transforma, acrescenta,

diminui, modifica a cada momento e em cada lugar a si mesmo e a cada coisa

com a qual se relacione em uma rede múltipla, móvel, dinâmica, infinita... o poder

é produção em ato, é a imanência da produtividade. Acima de tudo, como vimos,

o poder está em estreita relação com o saber. Poder e saber se produzem e

auto–reproduzem, estabelecem uma relação de mútua dependência – e de mútua

independência – produzindo, dessa fusão interprodutiva, um novo conceito: o

poder–saber (Pogrebinschi, 2004)

Diante dessa questão, pogrebinschi oferece alguns princípios que permitem pensar e analisar a concepção de poder de Foucault. O primeiro seria o princípio da localidade, que denota que o poder é analisado por Foucault em suas formas e em suas instituições mais locais, de modo que a sua intenção consiste em “ir para além das regras de direito

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que organizam e delimitam o poder: é atrás delas que estão as técnicas, os instrumen-tos e até mesmo as instituições que Foucault quer trabalhar” (idem). O segundo seria o princípio da exterioridade ou da objetificação, que enseja não tratar o poder no nível da intenção ou da decisão, mas sim na perspectiva de sua externalidade, ou seja, “no plano do contato que estabelece com o seu objeto, com o seu campo de aplicação. Trata–se, afinal, de buscar o poder naquele exato ponto no qual ele se estabelece e produz efeitos” (idem). O terceiro seria o princípio da circularidade ou transitoriedade, que preconiza que o poder se exerce em uma espécie de rede, e os indivíduos se situam nessa rede, em cada momento, em posição de exercer o poder ou em posição de submetidos a ele. O quarto seria o princípio da ascensão, que exprime a genealogia foucaultiana como uma análise ascendente do poder, “que parte de seus mecanismos moleculares, infinitesimais, até chegar àqueles gerais, globais” (Idem). Por fim, Pogrebinschi ainda salienta o princí-pio da não–ideologização, que exprime a intenção de Foucault de se afastar das compre-ensões ideológicas do poder e substituí–las pela idéia de saberes e práticas.

Ao apresentar tais princípios como norteadores da concepção de poder em Foucault, pogrebinschi estabelece um quadro conceitual relevante para se pensar como o poder, na visão de Foucault, operacionaliza–se no âmbito das práticas sociais, o que produz questões relevantes para se pensar a relação entre direito e verdade. primeiramente, é importante ressaltar que o conceito de poder é formulado a partir de um olhar que vai além do estado “para buscar no micro e não no macro os elementos moleculares de sua realização cotidiana” (idem). Além disso, há uma relação triangular, na visão de pogre-binschi sobre o pensamento de Foucault, entre os conceitos de poder, direito e verdade, de modo que o conceito de poder se situe entre o direito e a verdade.

3.2. GOVERNO E ESTADO

Quando se trata de contextos de efetivação de direitos sob uma perspectiva genealógi-ca da governamentalidade, a questão da soberania emerge como elemento fundamental na compreensão das transformações pelas quais passa o estado contemporâneo rumo a uma proeminência das questões de governo. Assim, a construção de uma perspecti-va sobre a soberania, dentre as suas diversas facetas, pode ser sintetizada a partir de duas perspectivas:

a) o contratualismo de base fundamentalmente inglesa (Hobbes, locke, etc);

b) o absolutismo típico da experiência italiana (Maquiavel, etc).

Historicamente, a expressão pacta sunt servanda se consolidou no campo do direi-to como um paradigma, tanto do ponto de vista dos profissionais do direito, quanto da própria filosofia jurídica moderna. Originariamente formulada no direito romano, trata–se de uma locução latina que significa a obrigatoriedade do cumprimento das cláusulas

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contratuais. Os contratos devem ser cumpridos na medida em que os pactos constituem lei entre as partes. Tal perspectiva de lei constituída a partir e pelas partes consagrou–se no campo do direito ao longo do tempo englobando duas características específicas:

a) a admissão de que toda norma jurídica é post facto, cabe dizer, é fruto da delibera-

ção de uma comunidade de atores que, em ultima instância, serão os destinatários

desta mesma norma;

b) a admissão de que, uma vez que as normas jurídicas são constituídas por sujeitos

privados, a sua incidência ocorre na seara dos conflitos privados, de modo que con-

flitos entre indivíduos e Estado não se regeriam pela norma jurídica propriamente

dita, mas sim pelo direito de resistência.

O contratualismo13 – conforme de convencionou chamar principalmente a partir do século xVii – aprofunda a temática da formulação da norma jurídica ao introduzir o ele-mento da natureza do homem em seu interior. nas suas mais diversas vertentes, os autores contratualistas buscam realizar uma reflexão sobre a justificação do exercício do poder político não somente sob a perspectiva de um contrato, mas, fundamentalmente, na própria relação que se estabelece na interface natureza–indivíduo–estado por meio da idéia de soberania. A discussão sobre a legitimidade do direito, nesta perspectiva, enseja o próprio reconhecimento de sua eficácia social enquanto norma jurídica exterior aos indivíduos, mas que se encontra, em certa medida, obrigatória e construída a priori por eles como leis entre partes soberanamente definidas.

nesta chave analítica, os dispositivos jurídicos que são criados pelos atores a partir de suas interações sociais institucionalizadas trazem como seu referencial a figura do Es-tado. Hobbes é um dos primeiros precursores desta perspectiva estatizante dos direitos. O autor, inserido no contexto de consolidação do estado nacional inglês e nas reformas institucionais tendentes ao absolutismo, apresenta os seguintes pressupostos:

a) a natureza dos homens não muda, o que implica admitir que ela os fez iguais, equi-

librando–os entre o corpo e o espírito;

b) o homem é egoísta e dificilmente acredita que haja muitos sábios quanto ele, pois

ele vê sua sabedoria de perto, e a dos outros à distância, o que implica reconhecer

que, em certa medida, o homem opaco a outro homem14.

Com isso, Hobbes configura um estado de natureza pré–estatal que se caracteri-za pela guerra perene, uma vez que cada um, sendo dono de si, se imagina sempre

13 Dentre os autores contratualistas, podemos destacar Hugo Grotius, samuel puffendorf, Thomas Hobbes, John locke e Jean–Jacques Rousseau.

14 neste caso, nota–se uma crítica contundente ao à perspectiva aristotélica de homem como um animal social e, por isso, com alto grau de possibilidade de associação

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ameaçado, traído ou perseguido pelos outros. para conter este estado de guerra e esta-belecer algum princípio jurídico–institucional de convivência no âmbito desta sociedade caótica, Hobbes argumenta a criação de um pacto por meio do qual os indivíduos abrem mão de parcela de seu “governo de si” para que sejam governados por um ser externo que, além de definir as liberdades de cada um em sociedade, é responsável por punir ou sancionar quaisquer desvios. O título do livro, O Leviatã (1651), evidencia a perspectiva hobbesiana de que um pacto sem espada não passa de palavras, sendo sempre neces-sária uma força coercitiva exterior – o soberano – que se imponha aos indivíduos através de um pacto de submissão.

entretanto, quando se fala em contratualismo, deve–se ressaltar que não havia um consenso entre os autores sobre as idéias de estado de natureza, estado social, direitos e, ainda mais, soberania. enquanto Hobbes parte do princípio de que a natureza humana é egoísta e o Estado se constitui como força ilimitada e definidora dos direitos, Locke afirma – no Segundo Tratado do Governo Civil (1690) – que a consagração de um estado social se funda somente numa institucionalização dos mecanismos de segurança, orga-nização político–administrativa e organização institucional de direitos que são prévios ao próprio estado. Já Rousseau – em Do Contrato Social (1762) – sustenta que a natureza do homem é positiva e que, em verdade, é a vivência em sociedade que o denigre e vi-cia suas práticas enquanto ser social. As divergências em relação aos direitos também estão presentes: se em alguns se admite o direito de resistência em virtude da presença de direitos anteriores ao estado (como em locke) ou como respeito a uma vontade geral (Rousseau), em outros não é possível qualquer resistência, a não ser em relação à prote-ção da vida injustamente ameaçada (Hobbes).

Uma outra concepção que emerge neste contexto – porém que não se apresenta de forma semelhante ao contratualismo – é a vertente italiana, que recebe influência moderna da filosofia política de Maquiavel. Primeiramente, deve–se dizer que o contex-to histórico em que o autor está inserido é o Renascimento, que apresenta como uma das principais características o Classicismo, ou seja, uma certa idéia de valorização dos padrões clássicos, tanto na literatura quanto nas artes e na própria política. É possível afirmar que esta característica é presente em Maquiavel, pois ele se serve de inúmeros exemplos da Antiguidade Grega e Romana para fundamentar sua análise.

sob uma perspectiva crítica, Maquiavel procura analisar o indivíduo como valor polí-tico, onde a moral não tem um papel proeminente do ponto de vista de sua inserção no mundo da política. O autor, ao conferir destaque ao mundo da política, estabelece um referencial de soberania em que a atividade estatal seja uma atividade fundamentalmente de estratégias, em que o soberano exerce papel elementar na configuração dos direitos e na definição da organização da sociedade.

na análise do autor, haveria dois modos de governar (e exercer a soberania): um com as leis (que seria próprio dos homens), e o outro com a força (que seria próprio dos ani-mais). Assim, se a lei não bastar para assegurar a ordem, deve–se recorrer à força e,

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em sua animalidade, o príncipe deve reunir características de raposa, para conhecer as armadilhas; e de leão, para aterrorizar os lobos. Além disso, Maquiavel sustenta que um governante deve parecer clemente, leal, humano, íntegro e religioso, principalmente em público, se possuir efetivamente estas qualidades, o soberano poderá sofrer prejuízos, portanto parecer tê–las é ainda melhor, pois se pode manejar tais atributos de acordo com as circunstâncias15.

O que se observa, portanto, é um debate sobre como chegar ao poder e como se manter no poder. Maquiavel tornou–se um clássico não apenas porque retomou padrões clássicos da Renascença, mas também porque promoveu uma ruptura com os padrões ético–religiosos da predominante Igreja Católica, configurando–se como um cidadão sem fortuna, e um intelectual de virtù16.

portanto, analisando as concepções de soberania e soberano no contratualismo e em Maquiavel, o que se observa é que tais concepções aparecem associadas aos seguin-tes aspectos:

a) a relação simétrica entre governo e estado;

b) a soberania como critério de legitimidade dos direitos; e,

c) a proeminência do político em detrimento do econômico, social, cultural, etc.

nos estudos de governamentalidade, estes três aspectos são problematizados, o que enseja uma reconfiguração substancial e metodológica do lugar da soberania no cenário de efetivação de direitos contemporâneo. Os estudos de governamentalidade que se desenvolveram, principalmente, a partir da década de 90 do século xx, apesar de rece-berem ampla influência intelectual de Foucault desde o final da década de 70, inauguram uma nova forma de analisar as questões políticas atinentes à administração pública – originariamente associada à figura da soberania do Estado – que se desenvolve com enfoque privilegiado no governo e em suas práticas cotidianas16. As pesquisas sobre governamentalidade têm se debruçado sobre os regimes de práticas de governo, visando pensar como tais práticas se desenvolvem e as formas, tecnologias, saberes, poderes, estratégias, etc, que são correspondentes ao seu desdobramento no mundo da práxis sob uma orientação crítica. para tal, propõem realizar tanto um diagnóstico das transfor-mações que ocorrem no cenário contemporâneo quanto uma genealogia dos saberes e

15 no capítulo xix de O Príncipe, por exemplo, é defendido que o príncipe deve fugir de coisas que o torne odioso e desprezível. importante notar que, na época de Maquiavel, o príncipe poderia ser odioso por ser rapace ou usurpador de mulheres; e desprezível por ser volúvel, superficial, efeminado, pusilânime ou indeciso. Quando se tratam de seus bens, os indivíduos tornam–se muito mais atentos e preocupados, daí a preocupação de Maquiavel com relação ao respeito do soberano ao direito de propriedade dos súditos.

16 não é por acaso que estes estudos ganharam visibilidade e foram aprofundados nos países de tradição anglo–saxã a partir das análises de Miller, Rose, Gordon e Dean. Os contextos de transformações que foram implementados por Ronald Reagan e Margaret Thatcher no sentido da constituição de um Estado–gerente contribuiu para uma perspectiva de pesquisas sobre as práticas e regimes de governo que lhes são subjacentes.

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práticas que lhes são constitutivos, o que permite afirmar que os estudos de governamen-talidade não buscam configurar uma teoria geral dos governos ou do seu funcionamento, mas sim compreender as dinâmicas de espaço–tempo em que os atores estão inseridos.

no que concerne à perspectiva discutida pelos contratualistas e pela tradição ma-quiavelista, a governamentalidade rompe decisivamente com a forma de tratar e pensar alguns assuntos típicos de estado, tais como os problemas de soberania e as questões sobre a posse e a fonte do poder e dos direitos. por isso, a governamentalidade evidencia uma complexidade das experiências de governo que deriva dos próprios arranjos tecno-lógicos, políticos, estratégicos e de conhecimento que singularizam cada experiência. Neste sentido, ao pensar em governamentalidade, é preciso refletir sobre três aspectos que tensionam a perspectiva da soberania e, por conseqüência, a própria idéia de estado e seu papel político–social para os direitos:

a) a contraposição entre uma razão de estado e uma arte de governar que, no argu-

mento e Foucault, se constituiu na modernidade (principalmente no século xx);

b) a tensão entre governo e soberania no cenário de efetivação de direitos;

c) a mudança no contexto de governamentalidade de uma perspectiva de cidadão (asso-

ciado ao estado soberano) para a de população (associado às práticas de Governo).

Foucault, analisando a teoria de Maquiavel, sustenta que, esquematicamente, é possí-vel dizer que O Príncipe “é essencialmente um tratado da habilidade do príncipe em con-servar seu principado e é isto que a literatura anti–Maquiavel quer substituir por uma arte de governar”, de modo que “ser hábil em conservar seu principado não é de modo algum possuir a arte de governar”. (Foucault, 2004, p. 279–280). esta assertiva traz em seu bojo uma crítica ao principal elemento que caracteriza a soberania constituída no contexto dos estados–nação: a associação entre estado e território.

A literatura anti–Maquiavel é usada por Foucault como sintetizadora do que ele deno-mina posteriormente como arte de governar. Recorrendo a Guilhaume de la perrière17, Foucault demonstra que a concepção política de governo é construída como “uma cor-reta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi–las a um fim con-veniente” (idem, p. 282). isto implica reconhecer que se governa um conjunto de homens e coisas em sua relação, e não territórios soberanamente definidos e com leis abstratas. Assim, o autor realiza uma distinção entre uma razão de estado (raison d’État) e uma arte de governar (art de gouverner), que traduz, em outros termos, a tensão entre soberania do estado e práticas de governo e, mais ainda, a tensão entre poder jurídico–soberano e o biopoder governamental.

Num contexto de soberania, em geral a figura do Estado é associada à realização de uma finalidade, que consiste no conceito abstrato de bem comum e na “salvação” de

17 Guilhaume de la perrière (1499–1565) se trata de um erudito e humanista francês contemporâneo da Renascença

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todos pelo soberano. em decorrência disto, toda ação soberana só é legítima se guiada por um ideal de bem comum. este ideal, segundo Foucault, se manifesta por meio da obediência às próprias leis instituídas, de modo que todo exercício de soberania seja cir-cular: é soberano porque se obedece às leis, e se obedece às leis porque é soberano. “O bem é a obediência à lei, portanto o bem a que se propõe a soberania é que as pessoas obedeçam a ela” (idem, p. 284), ou seja, “o bem visado pela soberania consiste exclusi-vamente na obediência dos sujeitos à lei” (Berns, 2002, p. 362), de modo que a soberania se exerça pela lei.

Com isso, o referencial normativo da razão de estado (raison d’État) é uma lei sobera-namente instituída que atua como paradigma do que significa bem comum, traduzindo–se numa finalidade específica. Thomas Berns, analisando os argumentos de Foucault, ainda discorre sobre os componentes de um “modelo jurídico da soberania” ao enumerar os seguintes elementos:

a) pressupõe a existência de indivíduos com direitos naturais ou poderes primitivos;

b) diz respeito à gênese ideal de estado;

c) a teorização do direito é obcecada pelo personagem do soberano;

d) o código jurídico está ao centro da teoria da soberania;

e) inversamente, o problema da soberania é o problema central do direito.

num contexto de governo, não é a fórmula dedutiva da soberania que ganha destaque, mas a idéia de práticas produtivas de governo18. Rose e Miller sustentam que as imagens filosóficas e constitucionais do Estado soberano estão desaparecendo. O Estado gover-naria somente na medida em que se dedica a “elaborar uma rede de relações formada num complexo de instituições, organizações e aparatos” (Rose e Miller, 1992, p. 176). nesta linha, o próprio Foucault sustenta que a idéia de governo não traduz uma única finalidade. Uma vez que se encontra inserido no âmbito da administração do Estado, o governo atua numa lógica de adequação entre meios e fins, de modo que as finalidades para as suas diversas ações carreguem estratégias, recursos, saberes e práticas distin-tos, variando de acordo com o objetivo que se pretende alcançar.

Desta forma, o objetivo de governo é adequado a cada uma das coisas a governar, o que demonstra uma pluralidade de fins específicos e, por conseqüência, afasta a idéia de que a lei é o referencial de atuação ou a fonte substantiva única do que significa bem comum19. Além disso, uma vez que a lógica é adequar meios a uma pluralidade de fins,

18 para aprofundar a contraposição entre uma lógica dedutiva (baseada em modelos) e uma lógica produtiva (baseada em experiências e práticas), ver Dean (1999)

19 Gordon observa que o próprio enfoque que é dado no âmbito das práticas de governo ao “como fazer” tensiona a perspectiva da soberania que estabelece “o que fazer”. segundo o autor, “a governamentalidade é sobre como governar. Foucault continua sua preferências sobre questões de ‘como’ [...]. Foucault não diz que a teoria da legitimidade está esvaziada (apesar de em palestra ele chamar o contrato social um blefe e a sociedade civil uma estória de fantasia); mas somente que a teoria da legitimidade baseada

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as práticas de governo não são destinadas a todos, mas sim a todos e a cada um em re-lação com as coisas. O governo passa a ser o definidor do alcance de suas práticas e, por conseqüência, do próprio alcance dos direitos. Assim, o direito “não mais precisa ser visto como uma sobrevivência arcaica da soberania e de suas instituições jurídico–políticas”, assim como a disciplina não é mais vista como uma “forma pré–eminente moderna de poder”. Então, o problema passa a ser repensado no sentido de refletir sobre “o lugar do direito e da dominação disciplinar nos termos das formas contemporâneas de governo” (Dean, 1999, p. 25).

Ao analisar essas duas lógicas – a razão de estado e a arte de governar –, Foucault sustenta que alguns processos histórico–institucionais, se por um lado permitiram uma transição soberania–governo, de outro incorporaram saberes e práticas que, num mo-mento prévio a tal transição, não pertenciam a nenhum dos dois. O argumento consiste no seguinte: na medida em que o estado estabelece as suas próprias leis, que são dota-das de uma racionalidade formal (razão de estado), cria–se um obstáculo à arte de go-vernar até o séc. XVIII, pois tal racionalidade estabelece uma finalidade única ao Estado e, simultaneamente, afasta qualquer referencial substantivo que não seja o da lei. Deste modo, Foucault sustenta genealogicamente que a arte de governar encontrou dois obs-táculos fundamentais:

a) o primeiro é um “quadro muito vasto, abstrato, rígido da soberania”;

b) o segundo é um “modelo bastante estreito, débil, inconsistente: o da família” (idem,

p. 287).

se no contratualismo há um bloqueio da via política pelos modelos rígidos da sobera-nia, na família se bloqueia a via da economia entre a vida privada e a arte de governar. nesta linha, Foucault observa que o que permite o desbloqueio da via política e da via econômica no âmbito do Estado e, por isso, permite a constituição efetiva de uma arte de governar, é a economia política. A economia política, ao permitir a introdução da eco-nomia no nível da gestão do estado, passa a ser critério para exercício do poder político e de definição de estratégias de governo. Mas o surgimento da economia política como estratégia não é meramente casual20.

na soberania não pode ser fundada como uma forma de descrever as formas através das quais o poder é exercido dentro dessa soberania” (Gordon, p. 7). A esse respeito, Dean afirma que os estudos de governamentalidade estão mais preocupados com como o pensamento opera nas formas organizadas de fazer as ciosas, nos regimes de práticas, e em suas ambições e efeitos” (Dean, 1999, p. 18). estudar governos nesta perspectiva, portanto, envolve pensar a relação entre saber e poder, de um lado, e de que forma ambos se tornam práticos e técnicos, de outro.

20 Dean elenca quatro emergências genealógicas relacionadas ao surgimento da economia política enquanto estratégia de governo na contemporaneidade, quais sejam: a) o estabelecimento de estados e o sistema de estados no âmbito internacional; b) a formação de uma sociedade civil e, dentro dela, a economia nacional, como um domínio de governo; c) a constituição de um domínio social como uma superfície na qual aparece o estado de bem–estar social; d) e a problematização neoliberal do bem–

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Foucault observa que os saberes e práticas que conduziram a economia política ao âmbito do Estado foram influenciados por uma expansão demográfica que ocorre prin-cipalmente nos séculos xViii em diante, de modo a se constituir uma nova ciência que busca refletir não mais sobre a soberania propriamente dita, mas sobre o governo e suas práticas. Assim, o problema de governo passa a ser pensado fora do quadro jurídico da soberania, mas sim sob o prisma econômico com métodos e técnicas próprias voltadas para a administração da população, sob a lógica do seguinte argumento:

O que gostaria de mostrar é a relação histórica profunda entre o movimento que

abala a constante soberania colocando o problema, que se tornou central, do

governo; o movimento que faz aparecer a população como um dado, como um

campo de intervenção, como o objeto da técnica de governo; e o movimento que

isola a economia como setor específico da realidade e a economia política como

ciência e como técnica de intervenção do governo neste campo da realidade. São

estes três movimentos – governo, população, economia – que constituem, a partir

do século XVIII, um conjunto que ainda não foi desmembrado (Idem, p. 291)

Dentre esses métodos, o autor sustenta que um ganhou relevo: a estatística. A estatís-tica como método privilegiado de diagnóstico possibilita a articulação dos três movimen-tos anteriormente descritos (governo, população e economia), na medida em que auxilia na compreensão quantificada da população e elimina definitivamente o modelo da família como unidade ao enfatizar os indivíduos numericamente21. Foucault observa que a es-tatística permite, do ponto de vista da arte de governar, uma objetificação da realidade governada a partir dos seguintes aspectos:

a) compreender a população sob o ponto de vista de suas regularidades próprias (nú-

mero de mortos, doentes, acidentes de trânsito, etc) e como uma entidade coletiva;

b) singularização dos fenômenos da população em relação à família22 (epidemias,

questão do trabalho, etc),

estar liberal–nacional em nome de um sistema econômico globalizado e uma sociedade civil transnacional (Dean, 2008, p. 28)

21 interessante notar que, apesar de não citar Arendt, Foucault expressa o mesmo argumento da autora em sua análise sobre a promoção do social. segundo Arendt, “é o mesmo conformismo, a suposição de que os homens ao invés de agir em relação uns aos outros, que está na base moderna da ciência da economia, cujo nascimento coincidiu com o surgimento da sociedade e que, juntamente com o seu principal instrumento, a estatística, se tornou a ciência social por excelência” (Arendt, 1987, p. 51). em capítulo posterior, refletiremos sobre como a introdução da estatística como ciência para contabilizar direitos passa a exercer papel fundamental na sua possibilidade de quantificação

22 O surgimento da sociedade de massas indica que “os vários grupos sociais foram absorvidos por uma sociedade única, tal como as unidades familiares haviam antes sido absorvidas por grupos sociais; com o surgimento da sociedade de massas a esfera do social atingiu, finalmente, após séculos de desenvolvimento, o ponto em que abrange e controla, igualmente e com igual força, todos os membros de

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c) revela que a população produz efeitos econômicos específicos (distribuição de ren-

da, consumo, etc).

na análise de Bruce Curtis,

a população foi novamente descrita por Foucault neste ensaio de forma naturalística,

como um fenômeno empírico com “processos” – e de forma artefatualística,

como a construção de objetos de governo através da investigação dos indivíduos

administrados. O desenvolvimento capitalista foi destinado a ser responsável pela

transformação demográfica que, a seu turno, confrontou a administração política

com os problemas que teria que lidar. “População” é fluída, existindo como um

objeto de polícia, como um corpo coletivo e como um artefato estatístico. O artefato

estatístico, vale frisar, parece ter sido “descoberto” no século XVIII (Curtis, 2002,

p. 520)

A própria governamentalidade passa a incorporar, no âmbito do estado, as práticas de posse, domesticação e controle que haviam sido desenvolvidas em momentos anteriores no âmbito do oikos (relacionado à família), associando a isso um aparato político–admi-nistrativo que permite consolidar as práticas político–econômicas no nível do Estado. Assim, a população23 passa a ser o objetivo último de governo – uma “totalidade de vozes subjugadas como uma população de governados” (idem, p. 505) – pois se expressa tanto como sujeito de necessidades e aspirações quanto como objeto de ações governamen-tais. na medida em que o governo lida com esses homens em relação com as coisas, a introdução da economia política na administração desta relação se torna fundamental para o incremento da equivalência numérica a priori entre os sujeitos.

Uma pluralidade de regimes de práticas, uma pluralidade de saberes, uma pluralidade de tecnologias e estratégias de ação – o espaço do governo se caracteriza por uma hete-rogeneidade de personagens e estruturas que consolidam a sua necessidade de gerir os homens e as coisas em relação. Deste modo, a arte de governar é uma arte que enseja uma série de regimes de práticas de governo, com base na perspectiva da economia po-lítica, que visa estabelecer, por meio de estratégias, tecnologias, saberes e poderes uma série de relações entre governo e população. Uma vez que o enfoque é nas práticas de

uma determinada comunidade” (idem, p. 50)

23 Observe que, indiretamente, o foco no termo população produz efeitos relevantes no âmbito da efetivação dos direitos. Apesar de Foucault não mencionar e tampouco ser objeto privilegiado de reflexão dos Governmentality Studies. Uma vez que se denomina o titular de um direito como um membro da população, e não como cidadão, abre–se maior possibilidade do governo interferir nos seus mecanismos de efetivação – seja ampliando–os seja restringindo–os – por meio do argumento de uma administração econômico–política da sociedade. A própria idéia de sujeito de direitos (subjetificado) da lugar à idéia de membro da população (de–subjetificado). Esta é a chave para pensar, como se verá no próximo capítulo, a perspectiva da análise econômica do direito.

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governo, não importa tanto na análise o estudo da estatização da sociedade, mas sim, nos temos de Foucault, da governamentalização do Estado.

por essa razão, deve–se, desde já, marcar que a perspectiva da governamentalidade não se opõe à idéia de estado, mas sim à de soberania, pois as práticas de governo que se traduzem numa arte de governar permanecem se desenvolvendo no interior de um de-terminado estado, porém tensionando a perspectiva totalizante e abstrata da soberania. De fato, as questões de governo são associadas à questão do estado, ou seja, “com um corpo soberano que traduz o monopólio de um poder territorial independente e meios de violência” e, além disso, que é investido de “aparatos e instituições de autoridade político–formal organizada e que é separado dos governantes e dos governados” (Dean, 1999, p. 9). porém, o estado em Foucault é apresentado como uma entidade desprovida de uma funcionalidade ou necessidade em essência, constituindo–se apenas como uma “função de mudanças de práticas de governo” (Gordon, 1991, p. 4) responsável por gerir e admi-nistrar uma sociedade atomizada. O governo enquanto arte passa a ser a estratégia de administração deste estado no contexto contemporâneo.

3.3. OS ESTUDOS DE GOVERNAMENTALIDADE

na perspectiva da governamentalidade, o poder é somente poder inominado, isto é, construtor de saberes e práticas, e não meramente repressivo, uma vez que endereçado a indivíduos que são livres para agir de uma forma ou de outra. O poder pressupõe mais do que anula as práticas dos agentes e, então, age sobre e através de um contexto aber-to de possibilidades de ação. “portanto, apesar do poder ser uma dimensão onipresente das relações humanas, o poder na sociedade jamais é um regime fixo e fechado, mas sim um jogo estratégico aberto” (Gordon, 1991, p. 5). Assim, na perspectiva da gover-namentalidade, o “poder político é exercido hoje por meio de uma profusão de alianças cambiáveis entre as diversas autoridades em projetos para governar uma multidão de facetas da atividade econômica, a vida social e a conduta individual” (Rose e Miller, 1992, p. 174). Trata–se do reconhecimento de que as práticas de governo estão associadas a uma pluralidade de formas e modos de manifestação do poder e seus saberes conexos.

Os estudos de governamentalidade têm desenvolvido a idéia foucaultiana de que as práticas de governo se expressam como condutas da conduta (conduct of conduct). Configuram, portanto, um governo que atua não somente como “administrador” da coisa pública, mas também como agente de controle de condutas de formas de autoridade que, apesar de não–estatais, exercem algum tipo de poder decisório. Conforme susten-ta Dean,

colocando esses sentidos de “conduta” juntos, o governo envolve qualquer tentativa

de delinear com algum grau de deliberação os aspectos de nosso comportamento

de acordo com arranjos particulares de normas e uma variedade de fins. O governo

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nesse sentido é uma conduta no plural. Existe uma pluralidade de agências e

autoridades governantes, de aspectos do comportamento a serem governados, de

normas invocadas, de propósitos buscados, e de efeitos, resultados e conseqüências

(Dean, 1991, p. 10)

não se trata de gerir e normatizar as condutas individuais dos membros da popula-ção, mas de gerir e normatizar as condutas das racionalidades, tecnologias, saberes e estratégias que conduzem e mediam a capilaridade das práticas de governo no âmbito societário. Mais ainda, implica admitir a sua relação com processos de subjetificação, em que o governo passa a ser discutido sob o ponto de vista político e também filosófico, religioso, médico, pedagógico, etc. O governo, então, passa a expressar também uma lógica de “auto–controle, de guia da família e das crianças, de gerente do lar, conduzindo a alma, etc” (lemke, 2000, p. 2). seria, portanto, a conduta da conduta porque lida tanto com a situação de governar a sociedade quanto a de governar o self, o que complexifica a temática da governamentalidade, pois insere no debate a questão das racionalidades e suas tecnologias. nesta linha, as tecnologias de governo permitem realizar o movimento de codificação da realidade caótica nos termos do governo, uma vez que este depende de cálculos sobre como uma questão afeta as demais por meio de uma padronização das condutas na linguagem. Governar, antes de tudo, afasta a idéia de agir segundo um pensamento pré–existente com suas divisões naturais. O ato de governar “corta a expe-riência de certas formas, para distribuir atrações e repulsões, paixões e medos, novas intensidades e relações” (Rose, 2005, p. 31). isso implica reconhecer que o regime de práticas desenvolvidas no governo se torna uma questão de tempo, espaço e definição de fronteiras de ação.

A prática de governo passa a ser, então, uma atividade em constante problematização, pois abre e amplia o debate sobre a adequação entre meios e fins da ação a partir da in-serção de diversos saberes e práticas em seu interior. Os ideais e estratégias de governo se encontram intrinsecamente ligados aos problemas de governamentalidade, de modo que o estabelecimento de programas seja uma estratégia privilegiada de composição destes saberes e práticas no momento da definição sobre como articular de forma mais eficaz os meios e fins.

É preciso ainda discutir um elemento que tensiona as decisões de governo neste contexto de adequação de meios e fins dos programas: a especialização (expertise). para dialogar com a perspectiva da expertise inserida na governamentalidade, deve–se considerar a análise de Hannah Arendt sobre a introdução da estatística no mundo contemporâneo e a sua aplicabilidade no contexto governamental. Arendt sustenta que um fenômeno típico da modernidade é a transformação do “governo de um só homem” numa sociedade de “governo de ninguém”, mas que esse “ninguém”, ou seja, “o supos-to interesse único da sociedade como um todo em questões econômicas e a suposta opinião única da sociedade educada nos salões, não deixa de governar por ter perdido a personalidade” (Arendt, 1987, p. 50). neste sentido, a ausência de uma personalidade

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individualizada não quer dizer, de forma alguma, que haja uma ausência de governo. As-sim, toda ação política “produzirá sempre algum tipo de ‘ficção comunística’, cuja principal característica política é que será, de fato, governada por uma ‘mão invisível’, isto é, por ninguém” (idem, p. 54).

A principal ênfase dos estudos de governamentalidade sobre tais governos desperso-nificados (“de ninguém”) consiste justamente na idéia de que, apesar de não serem de ninguém, são orientados por determinados saberes e práticas comumente associados a uma expertise. Estabelecer programas de governo significa conferir alguma substância a esse governo de ninguém com racionalidades e tecnologias que visam a adequação en-tre meios e fins orientados por saberes econômicos, sociais, políticos, jurídicos, médicos, etc. O ato de governar encontra–se fundamentalmente articulado à presença de uma expertise, cujo papel consiste não somente em delinear uma rede persuasiva de controle social, mas em desencadear tentativas de administrar, por meio do cálculo, “os diversos aspectos da conduta através de incontáveis, muitas vezes concorrentes, táticas locais de educação, persuasão, indução, gerência, incitação, motivação e encorajamento” (Rose e Miller, 1992, p. 175).

A figura do expert como alguém neste mundo de ninguém está relacionada à incor-poração de uma relativa neutralidade, autoridade e habilidade que opera de acordo com um código específico sob a forma de um argumento de autoridade, de modo a transfor-mar e influenciar as próprias racionalidades e tecnologias de governo. Em certa medida, a expertise ocupa um lugar privilegiado na mediação entre governo e população como elemento de tradução dos problemas de governo (eixo população à governo) e como cri-tério de validação das estratégias de ação governamentais (eixo governo à população). O fenômeno da governamentalidade eleva ao nível de discurso legítimo aquele desenvol-vido por especialistas, numa perspectiva de adequação entre meios e fins por meio de programas de governo, possibilitando a governamentalização do Estado.

Diante de desafios, limites e problemas no momento de governar, a prática de gover-no passa a exigir uma efetiva capacidade dos governos de gerirem e lidarem com toda esta pluralidade, o que reforça a idéia de que todo ato de governar é uma arte, uma vez que enseja a necessidade de racionalização a respeito das tecnologias, estratégias e saberes a serem mobilizados no cotidiano de suas práticas. A arte de governar, então, possibilita traduzir a complexidade social nos próprios termos da governamentalidade. e estabelecer os próprios termos traz a necessidade de que o governo constitua determi-nados regimes de verdade por meio dos quais se possam apoiar critérios de validade das decisões. nesta linha, “o governo continuamente busca dar a si mesmo uma forma de verdade – estabelecer um tipo de base ética para suas ações [...]. Governar, pode–se di-zer, é estar condenado a buscar uma autoridade para uma autoridade de alguém” (Rose, 2005, p. 27).

Adiciona–se a essa pluralidade de projetos a própria idéia de que, apesar de se vi-ver num mundo de programas, não se trata de um mundo programado. O mundo dos

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programas é sempre um mundo prognóstico, do vir–a–ser, daquilo que ainda será realiza-do e, portanto, do que será governado. Assumindo que o “governo é uma operação con-genitamente falha”, Rose e Miller afirmam que “o mundo dos programas é heterogêneo e competitivo. Os programas complexificam o real, então as soluções para um programa tendem a ser problemas para outro” (Rose e Miller, 1992, p. 190). numa perspectiva de programas, o “social” passa a ser objeto dos próprios conflitos e desafios inerentes à sua formulação, o que implica deslocar a idéia de direitos absolutos – típica de um contexto de soberania – para a de direitos passíveis de redefinição a partir de programas de go-verno estabelecidos de forma circunstancial.

no âmbito do governo, a idéia de escolha (choice) parece ser fundamental, bem como a interferência do ambiente no processo decisório. Como pensar os direitos nesse con-texto em que as práticas de governo enfrentam a necessidade de se fazer escolhas por meio de racionalidades e tecnologias orientadas por uma heterogeneidade de atores? Como pensar a cidadania nesse contexto populacional atomizante? Os direitos são efeti-vamente passíveis de quantificação numa lógica econômica de definição de programas? As ciências sociais também têm muito a dizer sobre isso.

Ao dissertar sobre o que se denominou de arte de governar, é preciso compreender que a combinação destas palavras não é trivial. essa expressão engloba uma constela-ção de sentidos que dizem respeito não somente à relação entre estado e sociedade, mas, principalmente, à relação entre estado e governo. A indagação que se deve fazer a respeito dela é a seguinte: em que consiste o ato de governar e quais elementos denotam que este ato pode ser associado a uma arte?

As respostas podem ser das mais diversas, dependendo do referencial teórico e do momento histórico específico a ser analisado. Em geral, o que se denomina em termos abstratos de arte de governar não necessariamente corresponde ao seu sentido especí-fico no âmbito da governamentalidade, ou seja, um conjunto de práticas de governo que exigem imaginação, astúcia, destreza, habilidades, conhecimento prático, emprego de intuição, etc. De fato, a polissemia da expressão enseja a necessidade do pesquisador estabelecer um referencial substantivo de análise, o que implica diferenciar alguns conte-údos oriundos do campo da política, quais sejam: governamentalidade, governabilidade e governança.

Alfredo Veiga–neto (1997) contribuiu para a primeira diferença quando esclareceu a questão em torno da qual alguns tradutores e comentadores de Foucault têm divergido: a correta tradução da palavra francesa governamentailité. esta palavra, na própria França, não se encontrava dicionarizada na década em que Foucault sistematizou suas idéias sobre o tema, constituindo–se como um neologismo que Foucault construiu para explicar um determinado fenômeno empírico. Por isso, Veiga–Neto considera essencial realizar dois conjuntos de perguntas:

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a) é possível manter a forma governabilidade e continuar falando em governamentalizar,

governamentalização e razão governamental? Ou trocamos essas últimas palavras

para governabilizar, governabilização e razão governável ou governabilimental?;

b) em nome de quê temos o direito de deslocar um radical – de governamental para

governável –, deslocando, automaticamente, o sentido de uma palavra?

O autor observa que este conceito foucaultiano tem sido tradicionalmente traduzido para a língua portuguesa como governabilidade ou como governamentalidade, sendo que a primeira diz respeito ao atributo do que é governável, ao passo que a segunda diz respeito a ao atributo do que é governamental. por meio de uma arqueologia do conceito de governabilidade no Brasil, Veiga–neto observa que o termo diz respeito à qualidade daquilo ou daquele que é governável, que se deixa governar, e que é, por isso, dócil. por outro lado, a palavra governamentalidade não está dicionarizada na língua portuguesa, mas é possível discuti–la como derivação do adjetivo governamental, que é dicionariza-do. na análise do autor sobre estes termos em Foucault,

os corpos podem até ser governáveis, e daí falaríamos em governabilidade dos

corpos; e, mesmo assim, a existência de corpos governáveis pode ser entendida

como um efeito da governamentalité. Mas, no curso de 1978, o filósofo falava

de outra coisa: falava da governamentalização do Estado. Certamente esse

processo de governamentalização só pôde ocorrer porque se estabeleceram

algumas condições de possibilidade, por volta do século XVIII, entre as quais

o desenvolvimento de técnicas de disciplinamento, docilidade e autogoverno (o

governo do próprio corpo). Mas não há dúvida que estamos lidando com dois

planos diferentes (Idem, pp. 5–6)

neste sentido, ao passo que a governabilidade encontra–se associada ao governo privado e individualizado dos corpos no sentido do incremento de uma docilidade, a go-vernamentalidade estaria associada ao governo público e numericamente organizado dos indivíduos no sentido do incremento de um controle governamental. entretanto, o argumento foucaultiano enfatiza que a governamentalidade se expressa não somente no governo da sociedade, mas também no governo de si, o que implica dizer que a idéia de governabilidade, na verdade, seria uma especificação da governamentalidade quando expressa no âmbito privado, ou seja, no próprio ato de governar–se a si próprio.

por outro lado, ainda cabe realizar uma segunda diferenciação, que diz respeito à idéia de governamentalidade e governança. John Crowley sustenta que a idéia de governança enseja uma discussão sobre duas dimensões: de um lado, este conceito foi concebido num contexto institucionalista das relações internacionais; e, por outro, a governança contribuiu para analisar as formas territoriais de política, notadamente no nível urbano. nesta linha, na medida em que se impõe ao estado a necessidade de lidar com sistemas internacionais e, simultaneamente, com formas nacionais de organização e manifestação

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de interesses, “o mundo da governança é, assim, um mundo onde a soberania é ausente” (Crowley, 2003, p. 53).

numa outra versão, philippe Chevallier busca desenvolver a idéia de governança e direito tomando como base justamente as contradições que surgem no cenário contem-porâneo para a ação do estado. Admitindo que o discurso da governança comporta uma dimensão normativa/prescritiva e uma dimensão descritica/analítica, Chevallier sustenta que a governança é guiada por uma situação de exterioridade em relação ao direito. Tra-ta–se de “flexibilizar o estilo de ação pública, trazendo novas categorias de atores para a elaboração das escolhas coletivas” (Chevallier, 2005, p. 131), de modo que estas sejam cada vez menos estatais e cada vez mais não–estatais, pois desempenhadas por atores que não são titulares de poder decisório soberanamente atribuído ao estado.

No argumento de Chevallier, “a lógica gestionária da eficiência tende, então, a con-ceber a governança como alternativa ao direito” (idem). nesta linha, Chevallier realiza uma distinção entre a lógica do direito e a lógica da governança. enquanto a primeira se exprime num imperativo sob a forma de “comandos obrigatórios provenientes de uma au-toridade investida do poder de decisão e segundo as regras fixadas para sua elaboração”, a segunda advém de uma “abordagem pluralista e interativa da ação coletiva” (Chevallier, 2005, p. 131). A governança envolve compromissos e habilidades de troca, implicando a ampliação do círculo de atores associados aos procedimentos decisórios e, simultane-amente, a procura sistemática de soluções que comportem os diversos interesses. por isso, a governança exprime duas características essenciais:

a) a desigualdade na participação da decisão, de modo que alguns grupos têm maior

possibilidade de influir nos processos decisórios que outros;

b) a informalidade do processo decisório, não mais inserido no interior do parlamento,

mas descentralizado nas práticas de governo.

portanto, toda prática de governança é sempre periférica ao mundo do direito for-malmente garantido, uma vez que é orientada por uma ordem de lógica política e adota como critério de decisão a pluralidade, e não a fixidez do bem comum típico de contextos de soberania. Sendo a eficácia da ação pública o foco privilegiado da governança, a le-gitimidade do governo não se constitui mais como um a priori, tal qual se constitui num contexto de soberania.

Como se observa, as idéias de governabilidade e governança possuem uma conste-lação semântico–conceitual que, segundo o argumento, não se confunde com a idéia de governamentalidade. se na primeira predomina uma perspectiva privatista de docilidade dos corpos, na segunda predomina a perspectiva pública de composição de interesses como condição de exercício do governo. Quando se trata de governamentalidade, por sua vez, busca–se expressar que as técnicas de governabilidade e de governança podem fa-zer parte do que se sustenta como prática governamental, uma vez que esta prática não

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obedece a uma fonte normativa universal, mas sim a uma pluralidade de finalidades a serem estabelecidas em contextos específicos.

Uma prática governamental pode buscar lidar com o controle dos corpos e também da composição de interesses, como também pode não lidar com nenhuma delas. isso evidencia que a governamentalidade diz respeito muito mais a uma situação específica em que o governo ocupa a proeminência nos assuntos de estado, e menos a uma idéia de necessidade de se formular uma regra geral sobre como se comportam os governos no interior de suas práticas. por essa razão, Crowley (2003) sustenta que, numa chave de leitura de governamentalidade, o governo é entendido não somente como instituição, ou seja, como um complexo de estruturas e normas delimitadas institucionalmente, mas, fundamentalmente, como um processo, ou seja, como uma forma que se cria e recria no cotidiano das práticas sociais. Mas, de fato, em que consiste o diagnóstico de Fou-cault que foi desenvolvido no âmbito dos estudos de governamentalidade sobre a arte de governar?

Como analisado, num contexto de governo, não é a fórmula dedutiva da soberania que ganha destaque, mas a idéia de práticas produtivas de governo. Foucault sustenta que a idéia de governo não traduz uma única finalidade. Uma vez que se encontra inserido no âmbito da administração do estado, o governo atua numa lógica de adequação entre meios e fins, de modo que as finalidades para as suas diversas ações carreguem estra-tégias, recursos, saberes e práticas distintos, variando de acordo com o objetivo que se pretende alcançar.

Porém, governar uma sociedade numericamente expressiva traz desafios do ponto de vista das estratégias a serem adotadas para a operacionalização das racionalidades de governo, de modo a possibilitar que o governo efetivamente governe. Os estudos de gover-namentalidade admitem como diagnóstico da modernidade a idéia de que todo ato de go-verno significa governar à distância (govern at a distance). na perspectiva de Rose e Miller,

o domínio da política é, então, simultaneamente distinto das outras esferas,

e inextricavelmente ligado a elas. As forças políticas procuraram utilizar,

instrumentalizar e mobilizar técnicas e agentes outros que aqueles do “Estado”

para governarem “à distância”; outras autoridades procuraram governar os arranjos

econômicos, familiais e sociais de acordo com seus próprios governos e mobilizaram

os recursos políticos para seus próprios fins (Rose e Miller, 1992, p. 181)

Assim, governar à distância traz a idéia de que o governo não estabelece uma relação direta com os governados; o governo se relaciona por meio de racionalidades, tecnolo-gias, saberes e estratégias que atuam como mediadores da gestão e, com isso, permitem uma capilaridade empírica das ações governamentais. Rose (2005) observa que essas forças políticas que instrumentalizam formas de autoridade para governarem à distância atuam em duas dimensões:

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a) distância constitucional, pois elas operam por meio de mecanismos e processos

decisórios capitaneados por formas de autoridade não–políticas;

b) distância espacial, pois as tecnologias de governo ligam uma variedade de espe-

cialistas (experts) – inseridos em diferentes contextos – nos cálculos (calculations)

desenvolvidos no centro: o governo.

Um governo à distância, mediado por uma rede de saberes e práticas que o operacio-nalizam no âmbito societário que, a seu modo, são regradas e geridas pelo próprio gover-no com condutas das condutas – e o que confere dinamicidade a estas relações são as racionalidades e tecnologias que lhes são inerentes. Ou seja, no âmbito dos regimes de práticas de governo, a seleção de tecnologias que conduzam a uma certa racionalidade se torna elemento essencial na delimitação de condutas. neste sentido, diversamente de uma chave weberiana que associa a prática de governo ao exercício de uma dominação, os estudos de governamentalidade sustentam que governar não é impor–se num terri-tório mesmo com resistências, mas sim adequar meios e fins por meio de tecnologias orientadas por uma racionalidade específica a cada fim.

este tipo de racionalidade, vale dizer, não é fundado numa relação transcendental, ou seja, o objetivo do estudo não é a investigação das práticas conforme as racionalidades, mas sim de estabelecer e descobrir quais racionalidades são utilizadas e mobilizadas pelos atores em suas práticas sociais. A análise de governo foca no “conhecimento que é parte das práticas, a sistematização e a ‘racionalização’ das práticas numa orientação pragmática” (idem, p. 7). A racionalidade, nesta chave, não se refere à razão transcen-dental, mas às práticas historicamente contextualizadas; ela não implica um julgamento normativo, pois se refere a relações sociais.

Dentre as diversas racionalidades, Rose e Miller buscam desenvolver uma análise dos elementos associados à constituição e definição de uma racionalidade política, que se configura como uma das principais estratégias de governo. Segundo os autores, as racionalidades políticas apresentam as seguintes características:

a) primeiramente, apresentam uma forma moral, pois estabelece poderes e deveres

às autoridades e organiza a distribuição de tarefas (políticas, espirituais, militares,

pedagógicas, familiares, etc.) e os ideais e princípios de governo (justiça, liberdade,

eficiência econômica, etc.);

b) em segundo, apresentam uma dimensão epistemológica, pois incorporam uma

concepção de natureza dos objetos governados (nação, sociedade, população, eco-

nomia, etc);

c) por fim, são articuladas com uma linguagem específica, pois se configura como um

tipo de arcabouço intelectual para transformar a realidade em algo pensável e pal-

pável às deliberações políticas.

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por isso, as racionalidades políticas são “coloridas moralmente, fundadas no conhe-cimento e tornadas pensáveis por meio da linguagem” (Rose e Miller, 1992, 179)24. Com isso, é possível governar com algum grau de inteligibilidade, na medida em que governar passa a ser sob uma certa descrição. A linguagem, nessa linha, não seria secundária ao governo; seria seu elemento constitutivo. A linguagem possibilitaria que os atos de governo seriam descritíveis e, principalmente, possíveis, pois cria condições de possibili-dade de conferir capilaridade social aos diversos saberes incorporados e traduzidos nas práticas de governo.

As instituições do estado, por conseqüência, ampliam a extensão de suas operações e a profundidade de sua influência na vida cotidiana da população traduzindo os problemas do cotidiano sob a perspectiva do governo. e elas realizam isso por meio de um complexo de estratégias que englobam diversos saberes – principalmente os da economia – e os inserem como objetivos governamentais. As racionalidades políticas permitem, portan-to, uma racionalização dos problemas de governo numa linguagem específica orientada por valores específicos. Trata–se de uma perspectiva que visa domesticar a realidade intratável (taming its intractable reality) submetendo–a à disciplina do pensamento e da categorização. O governo, assim,

é o domínio de estratégias, técnicas e procedimentos por meio dos quais as diversas

forças buscam tornar os programas operacionalizáveis, e por meio dos quais uma

variedade de conexões são estabelecidas entre as aspirações das autoridades

e as atividades dos indivíduos e grupos. Esses mecanismos heterogêneos nós

chamamos de tecnologias de governo (Rose e Miller, 1992, p. 183)

Deste modo, o mundo da governamentalidade não é o mundo de um discurso homo-gêneo, mas da tradução de discursos extra–governamentais como discursos de governo a partir de uma linguagem específica. O espaço do governo é sempre delineado por es-ses discursos com seus próprios regimes de verdade, suas próprias históricas, aparatos e questões, “e cuja relação com o governo não é de expressão ou causalidade, mas de tradução” (Rose, 2005, p. 22). Mas efetivamente por que há a necessidade de traduzir?

Como foi observado, o contexto de soberania representa a presença de um estado orientado por uma única finalidade: o bem comum, o que implicaria dizer que toda ação soberana só é legítima se guiada por um ideal de bem comum (obediência às leis, mais especificamente). No contexto de governo, por outro lado, se observou que a idéia de governo não traduz uma única finalidade. Uma vez que se encontra inserido no âmbito da

24 neste sentido, Gordon observa que Foucault estava interessado “no governo como uma atividade ou prática, e na arte de governo como formas de saber em que aquela atividade consiste e como ela pode se desenvolver. Uma racionalidade de governo então significa uma forma ou sistema de pensar sobre a natureza da prática de governo (quem pode governar, o que é governar, o que é e quem é governado) capaz de tornar alguma forma de atividade pensável e praticável aos seus praticantes e para aqueles aos quais é praticada” (Gordon, 1991, p. 3)

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administração do Estado, o governo atua numa lógica de adequação entre meios e fins, de modo que as finalidades para as suas diversas ações carreguem estratégias, recur-sos, saberes e práticas distintos, variando de acordo com o objetivo que se pretende al-cançar. por isso, muito menos do que políticas de Estado orientadas por um critério único de soberania, observa–se a formulação de programas de governo, marcados fortemente pela pluralidade de fins. Portanto, numa dinâmica de tradução, os

alinhamentos são realizados entre os objetivos de autoridades desejando governar

e os projetos pessoais das organizações, grupos e indivíduos que são sujeitos do

governo. É através dos processos de tradução que vários assuntos são vinculados

entre as agências políticas, corpos públicos, autoridades econômicas, legais,

médicas, sociais e técnicas e as aspirações, julgamentos e ambições de entidades

formalmente autônomas, tais como firmas, fábricas, grupos de pressão, famílias e

indivíduos (Idem, p. 48)

Não faria sentido, portanto, afirmar que a idéia de governo se ponha à idéia de Estado, porque, ao partir da perspectiva de que o estado não tem uma essência, uma substân-cia, um conteúdo apriorístico, a governamentalidade simplesmente confere algum tipo de lógica a essa estrutura formal traduzida no estado. De fato, as questões de governo são associadas à questão do estado, porém este estado é apresentado como uma entidade desprovida de uma funcionalidade ou necessidade em essência, constituindo–se apenas como uma função responsável por gerir e administrar uma sociedade atomizada.

O argumento desenvolvido pelos autores inseridos no Governmentality studies é que – muito além da governamentalização ter conferido algum conteúdo a esse estado sem essência – foi possível a sua sobrevivência no mundo contemporâneo justamente porque realizou a mudança de uma lógica de soberania para uma lógica de governo, reconfigu-rando temas e assuntos que, antes, eram típicos de sua seara. Ao invés da ênfase numa soberania estática, abstrata e até mesmo mítica, a governamentalização do estado per-mitiu capilaridade em suas ações, de modo que o espaço do público fosse redefinido em termos de táticas de governamentalidade. Rose sustenta que essa governamentalização

permitiu ao Estado sobreviver dentro das relações contemporâneas de poder; é

dentro do campo da governamentalidade que se observa tentativas contínuas de

definir e redefinir quais aspectos de governo estão na competência do Estado e

quais não estão, o que é e o que não é político, o que é público e o que é privado

(Rose, 2005, p 18)

Ao tratar desta relação entre estado e governo, Foucault afasta a assunção do con-tratualismo de que o governo consiste numa mera técnica a serviço das autoridades e aparatos estatais. Como tática de governo, o estado passa a ser visto como uma forma

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histórica dinâmica de estabilização das relações de poder societárias, e as táticas vão se voltar para a centralização, controle e regulação do estado.

Benites, ao analisar as formas por meio das quais se foi possível a sobrevivência do estado por meio das táticas de governo, confere especial enfoque para o que Foucault chamou de mecanismo de individualização (associado ao poder pastoral) e mecanismo de totalização (associado ao biopoder). O poder pastoral tem sua forma originária nas instituições cristãs e possui como características principais as seguintes:

a) objetivo de garantir a salvação individual no outro mundo;

b) o preparo para se sacrificar pela vida e salvação do rebanho;

c) cuida de cada indivíduo em particular e não apenas da comunidade como um todo;

d) exerce–se a partir do conhecimento da mente das pessoas, da revelação de seus

segredos, etc.

no âmbito do estado, o poder pastoral foi redimensionado em suas caracterizações: o objetivo agora é a salvação neste mundo; a salvação assume novos significados, tais como saúde, bem–estar, segurança, proteção, etc.

Há também o reforço das estruturas de administração desse poder. Elas vão desde

os próprios aparelhos estatais, passando pelas instituições filantrópicas e médicas,

até as estruturas mais antigas, como a família. A diversidade de objetivos e agentes

do pastorado necessitavam desenvolver novos saberes que se organizaram a partir

de um eixo global e quantitativo relativo à população (a estatística, por exemplo)

e outro eixo analítico centrado no indivíduo (como a psiquiatria) (Benites, 2004,

p. 281)

numa outra dimensão, não mais associada à individualização, Benites elenca os me-canismos de totalização, expressos pela perspectiva foucaultiana do biopoder. O que Foucault denomina de gestão das forças estatais passa a ser desenvolvido no interior de formas específicas de poder: a biopolítica. A biopolítica permite a racionalização dos problemas que surgem ao cotidiano das práticas governamentais, que são fenômenos próprios dos membros da população, tais como a saúde, higiene, natalidade, etc, daí a importância da estatística na configuração e totalização do mundo, que passa a permitir a “regulação dos fatos aleatórios que acometem uma determinada população” (Benites, 2004, p. 282)

nesta chave, os mecanismos de individualização e os mecanismos de totalização dão ensejo, a seu modo, a práticas que reconfiguram a atuação do Estado na sociedade contemporânea. A sobrevivência do estado ocorre, paradoxalmente, pela sua substan-cialização, pela necessidade de conferir algum conteúdo a esta forma abstrata não mais calcada na idéia de soberania. O Estado, então, pôde manter sua posição de centro

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organizador da administração, sendo que o conteúdo desta administração passa a ser orientado por uma lógica governamental. Com isso, a ênfase no que seria o mundo das políticas de Estado se desloca para o mundo dos programas de governo. essa lógica governamental é a lógica da pluralidade, em que as diversas forças políticas buscam operacionalizar seus programas de governo influenciando e se aliando a recursos que não diretamente controlam, o que, a princípio, traria uma idéia de governo de ninguém, se não fosse a captura desses processos por uma certa expertise.

sob esse raciocínio, a lógica governamental encontra–se inserida num mundo dos programas que não é de todo modo um mundo homogêneo ou unívoco. Apesar de cen-tro, não se deve imaginar o estado como uma unidade homogênea ou como um verda-deiro sujeito. pelo contrário, se caracteriza pela heterogeneidade de visões e projetos de governo, de modo que cada indivíduo “é o ponto de interseção entre forças e, portanto, um ponto de resistência potencial para qualquer forma de pensar e agir, ou um ponto de organização e promulgação de um programa diferente ou de oposição” (Rose e Miller, 1992, p. 190). se trata menos do nascimento de uma nova forma de estado do que de um novo modo de governar as vidas econômicas, sociais e pessoais da população.

O contexto de um governo que – a seu modo, delimita as ações estatais e, por isso, ad-quire proeminência no cotidiano de suas práticas ao empregar racionalidades e tecnolo-gias diversas – implica a discussão sobre o próprio lugar de suas ações no âmbito de um estado de bem–estar social (welfare state). Rose e Miller, ao tratarem desta racionalidade que incorpora certos princípios e é baseada numa concepção de governo, substituem o que seria o welfare state por uma prática: o welfarism25. esta racionalidade welfarista encontra–se ligada a um arranjo de programas mutuamente traduzíveis, tecnologias e dispositivos que variam desde seguridade social até desafios para moradia e saúde.

por essa razão, o “social” não se refere a um dado repertório de assuntos sociais, mas a um “certo terreno trazido à existência pelo próprio governo – a identificação de certos problemas, o repositório de esperanças específicas e medos, o alvo de programas e o espaço atravessado por um aparato administrativo particular” (Rose e Miller, 1992, p. 191). O “social” passa a ser estudado numa chave de problematização, ou seja, passa a ser visto como objeto de intervenção e, simultaneamente, “capilarização” das práticas de governo no interior da sociedade, gerindo, administrando e regulando o seu funcionamen-to e, indo além, o exercício de direitos26.

Numa perspectiva de programas, o “social” passa a ser objeto dos próprios conflitos e desafios inerentes à sua formulação, o que implica deslocar a idéia de direitos absolutos

25 para manter a integridade semântica do termo welfarism, preferimos por traduzi–lo para a língua portuguesa como welfarismo ou, quando se refere à qualidade de welfarism, o termo designado é welfarista.

26 Aprofundando esse argumento, Dean observa que “o liberalismo não é para ser abordado como uma teoria, uma ideologia, uma filosofia política da liberdade individual ou um conjunto de políticas, ou mesmo como uma forma da sociedade ‘representar a si própria’” (Dean, 1999, p. 58). Analisando Focault, Dean afirma que o liberalismo deve ser visto como “uma maneira de fazer as coisas orientada para certos objetivos e auto–regulada por uma reflexão contínua” (idem)

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– típica de um contexto de soberania – para direitos passíveis de redefinição a partir de programas de governo. A suscetibilidade do “social” (e os direitos correspondentes a ele) à governamentalidade enseja a emergência de dois aspectos: o prudencialismo (pruden-tialism) e a onipotência do estado.

A idéia de prudencialismo encontra–se associada à própria limitação do governo em traduzir todos os problemas sociais em seus próprios termos para, então, formular e implementar programas que atuem na solução destes problemas. A perspectiva do pru-dencialismo age numa chave de responsabilização dos membros da população pelos próprios rumos do governo. A princípio, tal perspectiva aparece associada a um ideal de democracia participativa. porém, a diferença é sutil: ao enfatizar os vínculos de solida-riedade e interdependência entre os indivíduos (e aqui o fato desses indivíduos serem ci-dadãos é enfatizado pelo governo), busca–se criar um welfarismo de responsabilização. na análise de Dean, se observa “a múltipla ‘responsabilização’ dos indivíduos, famílias e comunidades pelos seus próprios riscos – de saúde física e mental, de desemprego, de pobreza na velhice, de performance educacional pobre, de se tornarem vítimas do crime” (Dean, 1999, p. 166). Deste modo, se constituem “práticas de liberdade em que as responsabilidades pela minimização do risco se torna um aspecto das escolhas que são feitas pelos indivíduos e comunidades enquanto consumidores, clientes ou usuários dos serviços” (idem).

Mais precisamente, ao enfatizar a solidariedade dos cidadãos, a lógica do prudencia-lismo reconfigura a relação entre cidadania e poder público na medida em que insere o elemento da relativização desta sob o argumento de que o próprio cidadão é responsá-vel. sendo ele responsável e solidário, deve ser compreensivo em relação à restrição do seu direito à construção de uma escola pública, na medida em que o outro se encontra carente da construção de um posto de saúde, por exemplo. É o retorno da cidadania na dimensão do governo de si, afastando o argumento quantitativo e atomista que carrega o termo população.

porém, para além desta perspectiva horizontal de que o indivíduo deve ser solidário a outrem tendo em vista o argumento cívico de cidadania, observa–se um outro aspecto (vertical) que se relaciona às transformações do “social” num contexto de governamenta-lidade: a onipotência do estado. se no primeiro aspecto se observa um retorno retórico da cidadania, no segundo aspecto temos o do estado. Deste modo, “o estado não se sacrifica pelo indivíduo: o indivíduo tem que algumas vezes ser sacrificado pelo Estado” (Gordon, 1991, p. 12). Termos como cidadania responsável, autonomia prudente e con-sequencialismo distributivo ganham destaque conforme se desenvolve o argumento da auto–restrição ou da estado–restrição dos direitos.

Ao incorporar as contradições retóricas e discursivas de cidadania e estado em seu âmbito, o governo cria um ambiente que lhe confere mobilidade, dinamicidade e ampla possibilidade de transito entre os diversos programas, ora trabalhando com mecanismos individualizantes, ora trabalhando com mecanismo totalizantes; ora admitindo o indivíduo

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como cidadão, ora admitindo–o como membro de uma população. Torna–se, portanto, um governo econômico de um indivíduo enfraquecido porque manipulável (manipulable man27) nos diversos contextos de ação governamental orientados por uma expertise.

Originariamente formulado por Gordon (1991), a idéia de homem manipulável recebeu especial atenção de Dean (1999), que delineou três atributos desta categoria:

a) o neoliberalismo americano emprega a noção de escolha como uma faculdade hu-

mana fundamental e acima de todas as determinações;

b) ao invés de um sujeito que racionalmente calcula seus interesses como uma ator

econômico (homo economicus), as escolhas do sujeito são capazes de serem mo-

dificadas pelo ambiente;

c) esse neoliberalismo apresenta a marca do sujeito como um empreendedor (entre-

preneur) de si mesmo.

3.4 FILOSOFIA, POLÍTICA E ESTADO

As primeiras constituições escritas são de matriz liberal–burguesa, de modo que exigiam uma prestação negativa por parte do estado nas relações privadas. Ou seja, ao enfatizar a separação dos poderes e a defesa de direitos individuais, propunha–se um modelo liberal em que o indivíduo é o centro, de modo que o estado deve ser mínimo e, conseqüente-mente, não deve intervir nas relações sociais. De fato, a doutrina do liberalismo preconizou que o estado fosse “o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional como o maior inimigo da liberdade”28. nesta linha, “quanto menos palpável a presença do Estado nos atos da vida humana, mais larga e generosa a esfera de liberdade outorgada ao indiví-duo. Caberia a este fazer ou deixar de fazer o que lhe aprouvesse”29.

para Marx, esta postura negativa do estado enseja a exploração do homem pelo ho-mem, na medida em que o Estado não reconhece e não intervém no conflito, uma vez que todos são iguais perante a lei. segundo Marx,

À sua maneira, o Estado suprime as distinções oriundas do nascimento, do nível

social, da educação e da ocupação, declarando que o nascimento, nível social, a

27 A respeito do manipulable man, Gordon demonstra como que sua constituição não se confunde com a do homo economicus: “enquanto o homo economics originariamente significou um sujeito cuja atividade deve permanecer sempre intocável pelo governo, americano neoliberal homo economicus é o manipulable man, um homem que é perpetuamente responsável pelas modificações do seu ambiente. O governo econômico aqui junta as mãos com o behaviorismo” (Gordon, 1991, p. 43). Deve–se frisar que a idéia de manipulable man se refere ao contexto norte–americano.

28 Bonavides, 1980, p. 30

29 idem, p. 31

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educação, a ocupação específica são diferenças não políticas, quando, sem levar

em conta as suas distinções, proclama que todo membro do povo participa da

soberania popular em pé de igualdade e quando aborda todos os elementos da vida

real do povo do ponto de vista do Estado. Porém , o Estado nem por isso impede

que a propriedade privada, a educação, a ocupação atuem a seu modo, isto é,

enquanto propriedade privada, educação e ocupação, e façam valer a sua natureza

especial. Longe de suprimir essas diferenças de fato, o Estado apenas existe sobre

tais premissas; só tem consciência de ser um Estado político e faz prevalecer sua

universalidade em oposição a esses elementos30

são constatadas, assim, duas noções deste tipo de estado: a) a concepção formalista de que a lei por si só garante a igualdade entre os homens, sob a perspectiva de que a igualdade no liberalismo “consiste na aplicação da mesma lei para todos, quanto protege ou quando castiga”31; b) a idéia de que as relações privadas são ditadas pelos privados, e não pelo público.

em decorrência da mudança nas relações sociais causadas, principalmente, pela in-dustrialização, buscou–se um novo tipo de direito que reconhecesse as desigualdades sociais. A falta de condições salubres de trabalho, a ausência de direitos trabalhistas e a exploração foram os problemas que o direito social (inspirado na concepção francesa de estado32) procurou resolver. exigiu–se, para tal, uma atuação positiva por parte do estado no âmbito das relações privadas. predomina, no direito social, a preocupação de proteger o homem do próprio homem e, para tal, o estado deve ser o ator redutor de di-ferenças sociais, praticando uma verdadeira justiça distributiva. Rui Barbosa, na primeira metade do século xx, já dizia que a concepção individualista de direitos humanos havia evoluído rapidamente

para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo

restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já não

se vê na sociedade, um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais,

acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente

orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os

lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o

egoísmo à solidariedade humana33

e completa:

30 Marx, 2003a, p. 252

31 idem, p. 36b

32 Dentre os principais defensores do direito social na França encontra–se león Duguit e Maurice Hauriou, que inauguram uma nova concepção de estado baseada na igualdade concreta. Também se insere na concepção francesa, embora não seja francês, Georges Gurvitch

33 Barbosa, 1965, p. 178

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As nossas constituições têm ainda por normas as declarações de direitos

consagrados no século dezoito. Suas fórmulas já não correspondem exatamente

à consciência jurídica do universo. A inflexibilidade individualista dessas cartas,

imortais, mas não imutáveis, alguma coisa tem de ceder (quando lhes passa já

pelo quadrante o sol do seu terceiro século) ao sopro da socialização, que agita o

mundo34

em suma: ao passo que o direito liberal–burguês enfatiza a igualdade formal dos ho-mens e a mínima interferência do Estado nos conflitos privados; o direito social enfatiza a igualdade concreta dos homens, já que o Estado deve tratar os homens desiguais desigualmente de modo a torná–los iguais concretamente. Trata–se de uma concepção altamente influenciada pela idéia de vontade geral de Rousseau e de solidariedade social de Durkheim35. por isso,

o direito social toma como referência a sociedade na sua mais concreta expressão,

de modo a possibilitar uma inserção igualitária dos indivíduos no seio social. O

direito público passa a ter predominância sobre o direito privado pois, ao realizar

o movimento de publicização do direito, deve–se, necessariamente, realizar a

sua socialização. [...] Este movimento em prol do direito social coincide, ainda,

com a interdisciplinaridade com outras ciências que buscam a reflexão crítica da

sociedade – tais como a sociologia e a antropologia – de modo que os valores

liberais–burgueses vão, cada vez mais, sendo desnaturalizados e justificados

somente em relação a uma sociedade determinada e situada historicamente. Ou

seja, ocorre uma verdadeira relativização de valores que eram outrora universais36.

indo além, Bobbio alerta que a questão central dos direitos sociais não mais reside na forma através da qual são justificados, mas sim na forma através da qual são protegidos. Ou seja, não se trata mais de discutir a importância desses direitos, mas sim a forma mais eficaz de implementá–los. Da mesma forma,

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e

seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas

sim qual é o modo mais seguro para garanti–los, para impedir que, apesar das

solenes declarações, eles sejam continuamente violados37

34 idem, p. 181

35 Rousseau e Durkheim, inclusive, foram os paradigmas de león Duguit e Maurice Hauriou.

36 Asensi, 2005

37 Bobbio, 1992, p. 25

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Com isso, surgem algumas questões importantes acerca da implementação e garantia de direitos sociais existentes: quem estipulará a forma pela qual as pessoas se tornarão iguais? Quais as pessoas legítimas para isso? Quem detém a legitimidade para dizer em que medida os homens são desiguais? A resposta foi encontrada no próprio seio social, pois somente a sociedade poderia indicar as deficiências e os problemas das ações do estado, já que é a sociedade que sofre diretamente as suas conseqüências.

A partir daí ganhou força o discurso de uma terceira dimensão da igualdade que vai além da igualdade formal ou da igualdade material, que é a igualdade de participação. e esta participação deveria ocorrer em espaços públicos abertos a qualquer cidadão.

se a democracia representativa significa a manifestação da população nas decisões políticas por meio de representantes, os quais objetivam realizar a vontade geral dos representados de acordo com a lei e com a legitimidade que lhes foi auferida pelo voto, surge uma outra perspectiva, ancorada na idéia de participação dos então eleitores no processo decisório, passando estes a atuar como atores efetivos no processo de formu-lação e execução de políticas. Trata–se de uma perspectiva que “relaciona a emergência da democracia política à formação de espaços públicos nos quais os cidadãos podem participar como iguais e, através da discussão sobre projetos coletivos para a sociedade, formular e guiar decisões políticas”38

podemos dizer que a democracia participativa não se reduz à representação, pois toma como pressuposto essencial a idéia de que a democracia não deve se encerrar no voto ou no processo eleitoral. A democracia se faz no cotidiano das práticas dos atores; ou seja, a democracia participativa pressupõe a existência de espaços públicos de parti-cipação nos quais estejam presentes representantes e representados com igualdade de voz e voto. na análise de Cohn, a democracia participativa

significa o reconhecimento não só da existência de uma tensão crescente entre

Estado e sociedade, mas também do fato de que a esfera estatal não se caracteriza

mais como sendo o monopólio do espaço de existência da esfera publica. A

conseqüência lógica é a necessidade de que o próprio Estado passe a incorporar

de forma ativa a sociedade civil, conferindo espaços próprios às modalidades

emergentes de solidariedade social. Isso porque, dado que se o estatal e o

publico não se confundem, o fortalecimento da sociedade civil tem que se tornar

solidário com a construção da democracia e da cidadania, implicando a própria

democratização do Estado. É nessa rearticulação das relações do Estado que a

sociedade civil que passa a residir a possibilidade de emergência das condições

para a recriação da cidadania política e expansão da cidadania social39

38 Avritzer, 2002, p. 5 [tradução nossa]

39 Cohn, 2003

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O tema da relação entre estado e sociedade civil tem sido explorado por diversos autores, constituindo–se como uma temática instigante no debate das ciências sociais. Como fio condutor, observa–se um cenário em que democracia deva ser provida de me-canismos de participação contínua dos cidadãos no processo de formulação, promoção e fiscalização das políticas públicas. Em decorrência disto, a sua legitimidade advém do próprio corpo social, já que as decisões realizadas nesses espaços públicos contam com a deliberação daqueles que vivem e conhecem as mazelas e avanços de um serviço pú-blico. A discussão no âmbito participativo remete ao mundo da vida em seu aspecto mais cotidiano, concentrando–se os debates políticos “sobre o que fazer [,,,]. Isso é definido pelo seu propósito prático”40. em decorrência disto, pensar em termos práticos requer que os participantes estejam inseridos no contexto político, econômico e social em que vivem, emergindo “em continuidade ou animados por uma conexão genuína com o tecido social – ou mundo da vida, como se queira”41. A representação, no contexto participativo, é “identitária e supõe, por mediação da identidade, a abolição da distância entre repre-sentado e representante”42.

por essa razão, a democracia participativa significa a participação da população em conjunto aos seus representantes em espaços públicos, com o objetivo de promover, for-mular, deliberar e fiscalizar as políticas públicas em igualdade de voz e voto, de modo a legitimar socialmente as decisões ali estabelecidas.

40 elster, 1997, p. 25 [tradução nossa]

41 lavalle, Houtzager e Castello, 2006, p. 46

42 idem, p. 51

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IV) JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS

4.1. TRIBUNAIS COMO PROFECIAS QUE SE AUTOCUMPREM

Conforme já analisado por mim em outra oportunidade (Asensi, 2010), as relações sociais podem sofrer tanto uma juridicização (conflitos que não são levados ao Judiciário, mas que são discutidos sob o ponto de vista jurídico, principalmente em momentos pré–processuais) quanto uma judicialização (conflitos que são levados ao Judiciário na forma de ação civil pública ou algum outro instrumento processual). Ambos os movimentos têm crescido consideravelmente no Brasil. Comecemos pelo caso Judiciário:

De fato, podemos pensar o protagonismo do Judiciário no Brasil de uma forma ainda mais ampla e conceitual, isto é, como uma “profecia que se cumpre por si mesma”. O fortalecimento do Judiciário no Brasil ocorreu em função de uma série de circunstâncias e oportunidades sociais, políticas e culturais no século XX, que culminaram na intensifi-cação da judicialização dos conflitos e dos próprios direitos. Tais transformações foram decisivas para o fortalecimento institucional do Judiciário enquanto “profecia”, recebendo este o “chamado” para ser a instituição privilegiada de efetivação de direitos no país. Como uma profecia, uma vez admitida pelos atores (partes, operadores do direito, aca-dêmicos, etc) como verdadeira, a prática judicial passa a ser interpretada como o espaço privilegiado – e, em muitos casos, único – de encaminhamento de conflitos e efetivação de direitos. Os atores sociais e políticos, ao admitirem o protagonismo do Judiciário como verdadeiro, a despeito das próprias limitações teóricas e metodológicas, tornaram–no verdadeiro em suas conseqüências. este fortalecimento, de causa aparente, transfor-mou–se em conseqüência real.

Robert Merton, sociólogo americano, elaborou o conceito de “profecia que se cumpre por si mesma” no livro Social Theory and Social Structure, publicado em 1949. esta idéia encontra–se ancorada na expressão de W.i. Thomas, que buscou formular um teorema básico para as ciências sociais: “se os indivíduos definem as situações como reais, elas são reais em suas conseqüências” (Merton, 1970, p. 515). Mais precisamente, a primeira parte do teorema evidencia a idéia de que os homens reagem não somente aos traços objetivos de uma situação, como também, e, às vezes, principalmente, ao sentido que a situação tem para eles. Deste modo, assim que os homens atribuem algum sentido à situação, sua conduta conseqüente, e algumas das conseqüências dessa conduta, são determinadas pelo sentido atribuído. Com isso, a profecia que se cumpre por si mesma é um prognóstico que, ao se tornar uma crença, provoca a sua própria concretização na cultura política. Quando os indivíduos esperam ou acreditam que algo acontecerá, agem como se a profecia ou previsão já fosse real e, por conseqüência, a previsão se realiza efetivamente. Ou seja, ao ser assumida como verdadeira – embora seja irreal – uma

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previsão pode influenciar o comportamento das pessoas, de modo que a reação de sua conduta acaba por tornar a profecia real.

Merton salienta que as definições públicas de uma situação chegam a ser parte inte-grante da situação e, em conseqüência, afetam os acontecimentos posteriores. Assim, “a validade especiosa da profecia que se cumpre por si mesma perpetua o reinado do erro, pois o ‘profeta’ mencionará o curso real dos acontecimentos como prova de que tinha razão desde o princípio [...] Tais são as perversidades da lógica social” (idem, p. 517). esta validade é legitimada pela história, que “cria sua própria prova da teoria da profecia que se cumpre por si mesma” (Idem, p. 518). Isto permite afirmar que a prova da aparente veracidade da teoria é sempre ex post facto.

É também fundamental no estudo da profecia que se cumpre por si mesma a análise que Merton realiza a respeito dos intragrupos e extragrupos. Trata–se de uma análise predominantemente sob o ponto de vista étnico, porém se revela útil para orientar as reflexões sobre o fortalecimento do Judiciário contemporâneo, tais como o controle de constitucionalidade, o Conselho nacional de Justiça, etc. segundo Merton, os extragru-pos são formados por todos aqueles indivíduos que julgamos serem diferentes de “nós mesmos”, em termos de nacionalidade, raça ou religião. O contrário do extragrupo é o intragrupo, que é constituído por todos os que pertencem ao “nosso grupo”. É preciso admitir, ainda, que “nada há de fixo ou eterno nas linhas que separam os intragrupos dos extragrupos. Conforme mudam as situações, também mudam as linhas de separação” (idem, pp. 519–520)

Mas o que mais chama atenção nesta diferenciação é o argumento de Merton a res-peito da alquimia moral. Quando ocorre a interação entre intra e extragrupos, é possível observar uma transformação moral, que Merton denominou de “alquimia”. este processo pode ocorrer de duas formas:

a) quando os extragrupos são condenados por não apresentarem (aparentemente) as

virtudes do intragrupo;

b) quando as virtudes do intragrupo se convertem em vícios do extragrupo, ou seja,

quando os extragrupos também são condenados quando possuírem estas virtudes.

Merton chama atenção justamente para a relação entre a alquimia moral – através da qual ocorre uma valoração das virtudes de acordo com o pertencimento aos grupos – e o preconceito assimétrico – através do qual o simples exercício da virtude não basta para que o grupo seja efetivamente virtuoso. Deste modo, “mediante o hábil emprego dos ri-cos vocabulários de louvor e de opróbio, o intragrupo transmuta facilmente suas próprias virtudes nos vícios dos outros” (idem, p. 524).

Ao articular a teoria sobre a profecia auto–realizável com esta diferenciação entre intra e extragrupos, Merton ainda permite pensar o papel das instituições neste contexto. Ou seja, a profecia que se cumpre por si mesma, “pela qual os temores se transformam em

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realidade, funciona somente na ausência de controles institucionais deliberados” (idem, p. 531). neste sentido, as instituições possuem papel decisivo na manutenção ou extin-ção de profecias, de modo que a sua concretização esteja diretamente relacionada a dois fatores:

a) ausência de mecanismos de controle institucionais;

b) adesão e reforço das profecias por parte das instituições.

No caso específico do Judiciário, de profecia assumida pelos atores sociais e políticos, este poder passou a ser uma das principais instituições que reforçam a sua validade. Podemos afirmar que o Judiciário é uma profecia que se cumpre por si mesma, sobretu-do no Brasil. Mais precisamente, o Judiciário foi constituído no cenário contemporâneo brasileiro como uma profecia e, não somente, seus membros foram alçados à categoria de profetas para as ações futuras e pontificados para ações presentes. num primeiro momento, quando os indivíduos definiram as situações como reais, a profecia tratou–se menos de um processo desenvolvido pelo próprio Judiciário, e mais de um contexto político institucional específico de redemocratização do país e da Assembléia Nacional Constituinte. A conseqüência da profecia, em que a conduta conseqüente e algumas das conseqüências dessa conduta são determinadas pelo sentido atribuído, traduz–se numa ampliação e fortalecimento real da presença do Judiciário na vida cotidiana, o que influenciou, inclusive, as construções teóricas e metodológicas do direito brasileiro cen-tradas na figura do juiz.

A profecia que se cumpre por si mesma sempre possui como prova o elemento ex post facto. Ou seja, o que define a veracidade da profecia é justamente o seu desenvolvimen-to no mundo cotidiano. no caso do Judiciário, a título elucidativo, observa–se uma série de reformas que se operaram nos últimos 10 anos, que visam intensificar o arcabouço jurídico–institucional que fora outorgado previamente pela profecia de seu fortalecimen-to e centralidade na efetivação de direitos. São alguns exemplos desta intensificação no Brasil:

a) Súmula vinculante (EC nº 45/2004): é a jurisprudência com efeito geral que, quando

votada pelo supremo Tribunal Federal, se torna um entendimento obrigatório ao

qual todos os outros tribunais e juízes, bem como os outros poderes (legislativo e

executivo) e a Administração pública, Direta e indireta, terão que seguir, sob pena

de reclamação constitucional ao sTF;

b) Conselho Nacional de Justiça (EC nº 45/2004): é o órgão do poder Judiciário bra-

sileiro encarregado de controlar a atuação administrativa e financeira dos demais

órgãos daquele poder, bem como de supervisionar o cumprimento dos deveres fun-

cionais dos juízes;

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c) Súmula impeditiva de recursos (Lei nº 11276/2006): é a decisão que impossibilita a

impetração de recurso contra a decisão de juiz que estiver em conformidade com

matéria sumulada no superior Tribunal de Justiça ou no supremo Tribunal Federal.

Tais fatores indicam o fortalecimento do Judiciário enquanto profecia que se cumpre por si mesma. A peculiaridade é que, de profecia, o Judiciário passou a possuir seus próprios profetas. num contexto em que as instituições estatais encontram–se num processo de crise e de reformulação jurídico–institucional, “somente escapou deste naufrágio o poder Judiciário, pelas razões que dizem respeito à sua função” (Badinter, 2003, p. 10). segun-do Badinter, dentro de uma sociedade cada vez mais conflitiva, tais como a brasileira, todas as autoridades morais tradicionais encarregadas de resolver os litígios familiares ou comunitários perderam seu crédito. O recurso à Justiça, autoridade funcionalmente encarregada de resolver os conflitos e de assegurar o respeito à regra comum, está cres-cendo. “Assim como o juiz, porque ele é competente para resolver o conflito, para dizer o Direito, e que o Direito exprime, dentro de toda a sociedade, um sistema de valores, de modo que este juiz apareça como depositário e defensor destes valores” (idem). neste sentido, o juiz desempenharia, ao mesmo tempo, o papel de Esfinge – aquele que inter-roga – e de profeta – aquele que revela a “lei divina”. na análise de Badinter,

estes dois fatores – crescimento do imperium jurisdicional de um lado, e exercício

de um pontificado laico, de outro lado – se conjugam para assegurar ao juiz uma

função proeminente dentro das sociedades democráticas contemporâneas. Esta

autoridade é ainda reforçada pelas garantias constitucionais: inamovibilidade e

irresponsabilidade do juiz pelas suas decisões (Idem, p. 12)

estas características nos auxiliam a compreender a transformação que Werneck Vian-na (2003) já havia observado da importância do Judiciário atualmente. este reforço insti-tucional, associado à própria assunção dos magistrados como profetas, alçou este poder a um verdadeiro referencial teórico, metodológico e, inclusive, cotidiano por parte dos atores sociais e políticos. porém, este fortalecimento não necessariamente esteve asso-ciado a um processo de incorporação da sociedade civil na esfera judicial, mas sim a um processo de delimitação de espaços e competências de atuação que se traduziram em regras para ingressar com ações judiciais. Mais propriamente, os profetas – que se cons-tituíram como tais pela profecia, e não o inverso – definiram sua identidade a partir do estabelecimento de limites de ação aos seus seguidores. seria fundamental estabelecer diferenciações institucionais entre os profetas e os seguidores, ou seja, entre o intragrupo e o extragrupo.

Os extragrupos são formados por todos aqueles indivíduos que não se confundem com os profetas. A sociedade civil, os políticos, os partidos, os organismos internacionais, etc, são todos elementos não–proféticos que são essenciais para a manutenção, existência e funcionamento da profecia, inclusive porque compartilham dela. O intragrupo é o próprio

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Judiciário, com regras de sociabilidade bastante definidas, processos de recrutramento cada vez mais rígidos baseados na meritocracia. O intragrupo ainda possui uma série de competências descritas constitucionalmente que não se reduzem à resolução de litígios, pois também englobam a efetivação de direitos e o controle de constitucionalidade de normas. Logicamente, não há fixidez nesta diferenciação entre o intra e o extragrupo, pois conforme mudam as situações jurídicas, também mudam as linhas de separação43.

Merton, porém, não inseriu na definição destas fronteiras entre o intra e o extragrupo as relações de poder. De fato, “a instituição de um ‘espaço judicial’ implica a imposição de uma fronteira entre os que estão preparados para entrar no jogo e os que, quanto nele se acham lançados, permanecem de fato dele excluídos” (Bourdieu, 2000, p. 225). Bourdieu salienta que a diferença entre a visão comum daquele membro do extragrupo e a visão do intragrupo, para usar a terminologia mertoniana, não é acidental. pelo contrário, tra-ta–se de uma distinção constitutiva de uma relação de poder, “que fundamenta dois sis-temas diferentes de pressupostos, de intenções expressivas, numa palavra, duas visões do mundo” (idem, p. 226). Deste modo, para ingressar na dinâmica judicial do intragrupo, o extragrupo deve conformar–se com as regras de procedimento44 e “aceitar tacitamente a adoção de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia à violência física e às formas elementares da violência simbólica, como a injúria” (idem, p. 229).

Observe–se que as regras para ingresso no mundo do intragrupo não fazem do ex-tragrupo um membro efetivo do intragrupo, mesmo que provisoriamente. A entrada não pressupõe incorporação, mas sim um modo de proceder típico das atividades desen-volvidas no interior do intragrupo judicial. Trata–se, no máximo, de uma incorporação

43 Uma das principais formas de diferenciação entre os grupos está associada às possibilidades do extragrupo recorrer ao intragrupo para resolver um determinado litígio. no Brasil, o controle de constitucionalidade concentrado, que é exercido pelos intragrupos que se situam no topo de hierarquia administrativa do Judiciário, possui uma prevalência sobre o controle de constitucionalidade difuso, que é exercido pelos intragrupos compostos por juízes monocráticos ou desembargadores, que se encontram na base da hierarquia. no controle concentrado, que possui efeito geral para todos os casos, poucos são aqueles membros do extragrupo que possuem legitimidade para propor uma ação; ao passo que no controle difuso, que possui efeito somente para o processo judicial em que for argüido, o rol de legitimados do extragrupo é o das partes do processo. em ambos os casos, observa–se possibilidades normativas restritas do extragrupo ativar o intragrupo para uma determinada demanda. O controle concentrado é amplo nos efeitos, mas restrito nos legitimados; e o controle difuso é restrito nos efeitos, e relativamente amplo nos legitimados. isto revela uma centralização e rigidez na participação dos extragrupos na construção das decisões do intragrupo.

44 pierre Bourdieu, resgatando John Austin, sustenta que as exigências que estão implicitamente inscritas no contrato que define a entrada no campo jurídico são as seguintes: “a primeira, é o fato de se dever chegar a uma decisão, e a uma decisão ‘relativamente branca ou preta, culpado ou não culpado, para o queixoso ou para o acusado’; a segunda, é o fato da acusação e da defesa deverem ordenar–se numa das categorias reconhecidas do procedimento que se impuseram no decurso da história e que, não obstante o seu número, permanecem muito limitadas e muito estereotipadas em relação às acusações e às defesas da vida cotidiana – o que faz com que conflitos e argumentos de toda a espécie permaneçam aquém da lei como exclusivamente morais –; a terceira, é o fato de se dever recorrer a precedentes e de se conformar a eles, o que pode levar a distorções das crenças e das expressões correntes” (Bourdieu, 2000, p. 230)

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provisória e regulada. inclusive, em geral, o extragrupo não pode ingressar no intragrupo sem uma figura intermediária, que permite a ligação entre os dois mundos: o advogado. O membro do extragrupo somente pode ingressar no intragrupo mediante o auxílio do indivíduo híbrido, que se situa na mediação entre ambos os mundos. isto faz com que este ingresso, além de orientado por uma série de regras de procedimento, ainda neces-site do advogado. Observe–se que são bastante restritas as possibilidades do membro do extragrupo ingressar autonomamente no intragrupo no Brasil45, o que torna o espaço judicial fortemente regrado.

na perspectiva de Merton, quando ocorre a interação entre intra e extragrupos, é pos-sível observar uma transformação moral. este processo pode ocorrer de duas formas:

a) quando os extragrupos são condenados por não apresentarem (aparentemente) as

virtudes do intragrupo;

b) quando as virtudes do intragrupo se convertem em vícios do extragrupo, ou seja,

quando os extragrupos também são condenados quando possuírem estas virtudes.

em Bourdieu, esta alquimia poderia ser pensada a partir da idéia de efeito de nome-ação. segundo este autor, o direito é a forma por excelência do poder simbólico de no-meação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos. Deste modo, o direito “confere a essas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a per-manência, a das coisas, que uma instituições histórica é capaz de conferir a instituições históricas” (Idem, p. 237). Em decorrência, “só um nominalismo realista (ou firmado na realidade) permite explicar o efeito mágico da nomeação, ato de força simbólico que só é bem sucedido porque está bem fundado na realidade” (idem, p. 239).

A alquimia moral que traduz as virtudes do intragrupo em vícios do extragrupo constitui um verdadeiro efeito de nomeação, em que os indivíduos do extragrupo são classificados a partir de critérios compartilhados pelo intragrupo. são sucumbentes, vencedores, par-tes, hipossuficientes, recorrentes, agravados, etc, em função das regras de procedimento presentes no interior da dinâmica judicial. e a alquimia pode operar justamente quando os extragrupos são condenados por não apresentarem (aparentemente) as virtudes do intragrupo (ex.: conhecimento técnico, investidura em função judicante, etc).

Mas a alquimia mais interessante, cabe ressaltar, ocorre quando as virtudes do intra-grupo se convertem em vícios do extragrupo, ou seja, quando os extragrupos também são condenados quando possuírem estas virtudes. Vejamos um exemplo: é muito co-mum na prática jurídica o brocardo dormientibus non sucurrit jus, ou seja, o direito não socorre os que dormem. Trata–se de um brocardo dirigido aos membros do extragrupo, cuja exigência é o respeito dos prazos, a observância do tempo de argüição, e a diligên-cia com o tempo. este brocardo é um vício atribuído ao extragrupo, pois, caso não seja

45 são algumas hipóteses de dispensa: litígios em Juizados especiais Cíveis cujo valor da causa seja de até 20 salários mínimos; proposição de Habeas Corpus; etc

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observado o tempo célere, as regras permitem que o intragrupo não julgue ou julgue improcedente. porém, a exigência de celeridade não é a mesma no âmbito do intragrupo, que preza como virtude justamente o amadurecimento do processo. A dilação do tempo, na dinâmica do intragrupo, é apresentada como uma virtude, e não como um vício. pró-pria do estado de Direito, a dilação temporal permite o contraditório, a ampla defesa e o amadurecimento lento do processo judicial. em suma, observa–se o exemplo em que a virtude do intragrupo (amadurecimento temporal) converte–se em vício do extragrupo (celeridade temporal).

Por fim, ainda cabe analisar o papel das instituições no âmbito das profecias que se cumprem por si mesmas. segundo Merton, as instituições possuem papel decisivo na manutenção ou extinção de profecias, de modo que a sua concretização esteja direta-mente relacionada a dois fatores:

a) ausência de mecanismos de controle institucionais;

b) adesão e reforço das profecias por parte das instituições.

No caso específico do Judiciário (especialmente o brasileiro), de profecia assumida pelos atores sociais e políticos, passou a ser uma das principais instituições que reforçam a sua validade profética. isto tem permitido justamente o fortalecimento da instituição enquanto um intragrupo fortemente autônomo, cada vez menos contido nos limites da se-paração dos poderes e cada vez independente das lógicas intrínsecas de funcionamento dos extragrupos. na experiência brasileira, por exemplo, não foi a ausência de controles institucionais que permitiu o desenvolvimento da profecia, mas sim o seu fortalecimen-to. sobretudo a partir da criação do Conselho nacional de Justiça, em 2004, a profecia judicial esteve ainda mais concreta e efetiva. Trata–se de uma profecia que aponta para a densificação da via judicial, cada vez menos porosa às influências dos extragrupos, exceto quando consentidas pelo próprio intragrupo e nos limites das regras do intragrupo.

O principal desafio, neste contexto, diz respeito à incorporação das demais instituições jurídicas e da sociedade, que se traduz numa ampliação efetiva do círculo de intérpre-tes que compõem o intragrupo. A via judicial, para ampliar a participação democrática e potencializar as possibilidades de efetivação de direitos, admite uma relativa abertura à incorporação das lógicas de funcionamento e aos pressupostos das instituições jurídicas – tais como o Ministério público e a Defensoria pública – e da sociedade civil.

4.2. JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO

O ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu diversos atores estatais e não–estatais com possibilidade de atuar na efetivação destes direitos. Dentre os principais atores que atuam nesta concretização, recebem destaque o poder Judiciário e as instituições que compõem as denominadas funções essenciais da justiça.

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no poder Judiciário – que é a instituição estatal responsável pela atividade jurisdicio-nal de resolução de conflitos – reina a máxima latina nemo iudex sine actore, ou seja, não há juiz sem autor. essa máxima evidencia que o Judiciário somente pode agir para a concretização de direitos mediante provocação de quem se sentir lesado pela ação ou omissão de outrem, de modo a adotar uma postura estática enquanto não for chamado à resolução de um litígio. O ordenamento jurídico brasileiro possui princípios que reforçam esta perspectiva e traduzem garantias para a inércia judicial, a exemplo do princípio do juiz natural e o princípio da inércia da jurisdição ou do impulso oficial. Ambos remetem à idéia de um poder estático que só age quando for chamado ao litígio por meio de provo-cação das partes.

Com isso, foram construídas instituições dinâmicas para a garantia de direitos que não se submetem a uma perspectiva estática ou condicionada à provocação, na medida em que podem agir de maneira espontânea e ativarem o Judiciário. Tais instituições com-põem as chamadas funções essenciais da justiça, que consistem naquelas “atividades profissionais públicas ou privadas, sem as quais o Poder Judiciário não pode funcionar ou funcionará muito mal” (silva, 1993, p. 506) em virtude de sua atuação juridicamente estática. estas funções, tais como a Advocacia pública46 e a Defensoria pública47, encon-tram–se descritas nos artigos 127 a 135 da Constituição de 1988, recebendo destaque a presença do Ministério público (Mp). no Brasil, tanto o Judiciário quanto as funções essenciais à justiça são institucionalmente fortes – a seu modo – e contribuem decisiva-mente para a judicialização.

em especial, o Mp é uma instituição dinâmica de garantia e efetivação de direitos, haja vista não precisar ser provocado para atuar em prol de sua concretização. principalmente em relação aos direitos prestacionais, isto é, direitos que exigem a atuação do estado para concretizá–los por meio de políticas públicas, a possibilidade de agir independente-mente de provocação possibilitou ao Mp ocupar um espaço singular no plano da efetiva-ção de direitos. no caso do direito à saúde, a título de exemplo, a falta de medicamentos nos postos, a insuficiência de leitos nos hospitais, os custos dos tratamentos de alta complexidade e as deficiências nas políticas públicas se constituem como desafios e pro-blemas sensíveis. Tais problemas, em virtude de sua forte associação ao direito à vida, primam por soluções céleres, o que amplia a relevância da atuação do Ministério público nessa seara (Asensi, 2010).

46 A Advocacia Geral da União foi destinada para a defesa do estado federal, ao passo que a defesa das Unidades da Federação coube às procuradorias dos estados e a assistência judicial aos necessitados às Defensorias públicas.

47 A Defensoria pública consiste num serviço de assistência judiciária que visa possibilitar o acesso de hipossuficientes (pessoas menos favorecidas financeiramente) aos seus direitos. Presta, assim, serviços de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem insuficiência de recursos. Logo, as demandas da Defensoria pública são de caráter individual, ao passo que as demandas do Ministério público dizem respeito a um grupo determinado ou indeterminado de pessoas, ganhando caracteres coletivos.

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No Brasil, o MP recebeu um perfil distinto não só em relação ao regime constitucional anterior, mas também em relação a qualquer configuração constitucional já existente, in-clusive em Portugal. O novo arranjo criado em 1988 permitiu uma nova configuração das instituições jurídicas e das competências e atribuições que lhes seriam inerentes para a efetivação de direitos. nesse contexto, o Mp passou a exercer papel central na defesa da sociedade, sobretudo no que concerne aos direitos sociais.

Diante dessas mudanças, o papel que foi atribuído ao Mp também passou a se dife-renciar da atuação do Judiciário, na medida em que o Ministério público, conforme sus-tenta Celso Bastos, tem “a sua razão de ser na necessidade de ativar o poder Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte porque o interesse agredido não diz respeito a pessoas determinadas, mas a toda coletividade” (Bastos, 1996, p. 123). entretanto, a di-ferenciação de funções não ensejou uma diferenciação das garantias jurídicas que foram atribuídas a ambos. A despeito de serem instituições com estratégias e possibilidades de ação distintas, os seus membros possuem as mesmas garantias institucionais que pos-sibilitam uma atuação mais independente de ambos na efetivação de direitos. na análise de Cássio Casagrande,

a independência conferida pela Assembléia Nacional Constituinte ao Judiciário e

ao Ministério Público foi o resultado da necessidade de, após anos de arbítrio, se

confiar a estes órgãos a tutela das liberdades públicas e dos direitos fundamentais,

já que no regime autoritário muitas vezes os juízes não puderam garantir os direitos

civis justamente pela falta de independência, tendo o Ministério Público, não raro,

atuado como instituição garantidora da eficácia das normas que sustentavam o

regime militar (Casagrande, 2008, p. 56)

De fato, não são triviais as garantias processuais e materiais que se consolidaram com a Constituição no que concerne ao exercício das funções do membro do Judiciário e do Mp, a exemplo das seguintes:

a) a impossibilidade de serem removidos da comarca ou órgão no qual atuam;

b) a impossibilidade de terem seus subsídios reduzidos administrativamente

ou legalmente;

c) a independência funcional para decidirem de acordo com seu livre convencimento

(no caso dos juízes) ou de acordo com o interesse público do fato social (no caso

dos promotores).

Quando se trata da relevância institucional que o Judiciário e o Mp receberam no ordenamento jurídico brasileiro, é preciso admitir que as estratégias de efetivação de di-reitos ensejam uma perspectiva dialógica. isso implica reconhecer que a construção de direitos passa pelo próprio cotidiano das práticas dos diversos atores sociais. Bobbio, por

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exemplo, sustentou que os direitos nascem de modo gradual, ou seja, “não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (Bobbio, 1992, p. 5). Os direitos, portanto, não nascem por “bondade” dos governantes, na medida em que são conquistas árduas e legítimas da sociedade civil no cotidiano de suas práticas. Já em Marx se observa que os direitos não são uma “dádiva da natureza, um presente da história, mas fruto da luta contra o acaso do nascimento, contra os privilégios que a história, até então, vinha transmitindo here-ditariamente de geração em geração” (Marx, 2003, p. 32). neste sentido, apresenta–se a relação entre, de um lado, o surgimento e o desenvolvimento dos direito sociais e, de outro, a transformação da sociedade e dos sentidos que os direitos adquirem nas mais variadas práticas sociais no Brasil.

Mais precisamente, a afirmação de novos direitos requer a constituição de sujeitos ativos que, em alguma medida, influem e participam do processo de sua efetivação, seja diretamente por meio de espaços públicos, seja indiretamente por meio de mecanismos de representação.

Da mesma forma, o processo de desenvolvimento e efetivação de direitos não parece possível sem compromissos democráticos explícitos em torno da redução da desigualda-de social, o que certamente implica no fortalecimento da sociedade civil e de suas formas de organização e associação.

A problemática do acesso à justiça, em linhas gerais, diz respeito aos limites e possibi-lidades de acesso dos cidadãos aos mecanismos estatais de resolução de conflitos, prin-cipalmente o Judiciário, ensejando uma reflexão crítica sobre este Poder e suas formas de organização e funcionamento. Uma das principais indagações que têm sido realizadas consiste na seguinte: diante da presença de obstáculos econômicos, sociais e culturais e de um Judiciário incapaz de absorver determinados conflitos coletivos referentes a di-reitos sociais, como pensar em estratégias de efetivação de direitos que dêem conta da permanente judicialização dos conflitos? Mais precisamente, diante de uma explosão de litigiosidade, principalmente da década de 90 do século xx em diante, como pensar o pa-pel do Judiciário que, cada vez mais, conforme sustenta Antoine Garapon (1996), tem se configurado como um “muro das lamentações” de cidadãos em busca de seus direitos?

Algumas pesquisas, dentre as quais se destaca a coordenada por Maria Tereza sadek (2004), têm demonstrado que a crítica ao Judiciário no Brasil tem se baseado em pelo menos três aspectos, quais sejam:

a) a percepção de que a justiça teria se transformado em questão crítica e problemática

por amplos setores da população, da classe política e dos operadores do Direito;

b) a considerável diminuição no grau de tolerância da sociedade civil em relação à bai-

xa eficiência do sistema judicial;

c) o aumento da corrosão no prestígio e confiabilidade do Judiciário.

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Com isso, apresentam–se questões relevantes para a identificação de sucessos e falhas na implementação e efetivação de direitos. Contudo, outros espaços têm sido ado-tados como esferas de resolução de conflitos que visam, em maior ou menor grau, se afastar da estrutura de funcionamento similar à do Judiciário. Tais espaços têm estabele-cido estratégias de mediação, pactuação e negociação fundamentalmente céleres, pois visam, em certa medida, atuar na efetivação de direitos existentes e na construção de no-vos direitos. no âmbito dessas novas esferas estatais, o Ministério público desempenha papel fundamental, pois promove uma reflexão que pode situar os direitos como práticas concretas que atendam a critérios substanciais de justiça e cidadania. esta instituição tem buscado ainda conferir algum grau de legitimidade democrática às decisões alocati-vas de recursos públicos, exercendo um protagonismo decisivo nesta seara.

nesse contexto de judicialização da vida, o Mp se constitui como um alicerce e refe-rencial para a garantia de direitos. surgem, então, questões sobre os motivos pelos quais o MP se constitui desta forma. Como visto anteriormente, o MP é uma instituição autôno-ma e, portanto, não se encontra vinculado aos mecanismos clássicos de poder estatais, o que possibilita uma atuação mais independente e efetiva em prol da efetivação dos direi-tos. Além disso, os membros do Mp possuem formação jurídica e ocupam esse cargo em virtude de seleção por concurso público de provas e títulos. portanto, o Mp, assim como o Judiciário, é uma instituição em que os membros não são eleitos, cuja legitimidade advém de um procedimento racional–legal de seleção e recrutamento, com base em critérios, diretrizes e normas que buscam conferir respaldo jurídico à sua atuação.

De fato, o que se observa são dois órgãos independentes e autônomos, cuja legitimi-dade advém da Constituição por procedimento de seleção e recrutamento meritocrático dos concursados. De certo, essa legitimidade formal constitui apenas uma faceta que possibilita a ação do Mp e do Judiciário, o que abre caminho para uma legitimidade material, concreta, que se ampara no seu atributo de instituição dinâmica de garantia e efetivação de direitos, principalmente de cunho social.

Pode–se afirmar que o Judiciário e o MP têm se configurado como eficazes articu-ladores na resolução de conflitos e definição de políticas públicas, buscando conjugar esse direito constitucionalmente garantido às práticas sociais. estas instituições jurídicas têm se mostrado fundamental para superar o hiato existente entre direitos existentes e a realidade desigual ou, mais propriamente, entre o mundo do direito e o mundo dos fatos, valendo–se da estratégia de publicização e efetivação de direitos. Assim, o Mp, por exemplo,

não pode ser absenteísta, que assiste aos fatos sociais sem neles intervir, eis

que o resgate da função social do Direito e da função social–comunitária do

Ministério Público passa pelo seu processo de intervenção nas questões sociais

relevantes. É isto que lhe trará a necessária legitimação da sociedade. Não basta,

pois, a legalidade formal, constante na Constituição, dando poderes à Instituição.

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A legitimidade advém de nossa ação cotidiana. Não é demais repetir o que se

diz na Ciência Política e na Teoria Geral do Estado: a legalidade vem de cima; a

legitimidade vem de baixo (Ritt, 2002, p. 195)

De uma forma específica, o MP tem atuado no sentido de fiscalizar a Administração Pública e de exercer uma função de mediação de conflitos, com vistas à sua resolução imediata, o que permite seu destaque no cenário da garantia de direitos, sendo um dos principais atores de judicialização das demandas. segundo Rogério Arantes,

O argumento é que temos uma sociedade civil fraca, desorganizada e incapaz

de defender seus direitos fundamentais. Uma sociedade “hipossuficiente” no

jargão jurídico. Além disso, freqüentemente é o próprio poder público quem mais

desrespeita esses direitos fundamentais. Dessa equação resulta a proposta, de

natureza instrumental, de que “alguém” deve interferir na relação Estado/sociedade

em defesa dessa última. Instrumental no sentido de que não é para sempre:

pelo menos no plano imediato, no momento, “alguém” tem de tutelar os direitos

fundamentais do cidadão até que ele mesmo, conscientizado pelo exemplo da

ação de seu protetor, desenvolva autonomamente a defesa de seus interesses.

Essa visão do papel do MP e da Justiça é confirmada pela maioria dos integrantes

da instituição [...] que o Ministério Público deve promover a conscientização da

sociedade brasileira. (Arantes, 1999, p. 18)

nessa mesma linha, Casagrande salienta que os membros do Mp mais engajados na defesa dos interesses coletivos e difusos “costumam justificar suas posições no en-tendimento de que a sociedade civil se apresenta ‘frágil e desorganizada’, cabendo–lhes a missão histórica de preencher esse ‘vácuo’” (Casagrande, 2002, p. 32). Ambas as perspectivas anteriores reforçam uma idéia tutelar em certa medida compartilhada pelos membros do Mp e do Judiciário em relação à sociedade civil.

seguramente, essa leitura deriva da própria formação histórica e social da sociedade civil brasileira. no Brasil, uma das principais perspectivas teóricas que se consolidaram sustenta a idéia de que o estado se constituiu como o locus de movimento e a sociedade o locus da passividade. Mais especificamente, o Estado se apresenta aos indivíduos mais como um “pai” do que como uma “ameaça” tal qual a perspectiva liberal–clássica o con-cebeu. Ao longo da história brasileira, diversos estudiosos se debruçaram sobre o tema, e a intenção aqui não reside em realizar uma incursão nas diversas matizes teóricas do pensamento político–social brasileiro, mas sim de evidenciar alguns traços constitutivos de nossa sociedade que, em alguma medida, influem na concepção tutelar compartilha-da pelos membros do Judiciário e do Mp.

As pesquisas desenvolvidas por Arantes e Casagrande evidenciam o diagnóstico dos membros do Mp (e, talvez, do próprio Judiciário) a respeito desta questão, principalmen-te porque os seus participantes enfatizaram o dever institucional de zelar e tutelar essa

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sociedade que, a princípio, se encontraria numa posição desigual em relação ao estado. Daí, se torna fundamental discutir a ampliação do círculo de intérpretes dos direitos, além da própria ampliação do seu círculo de garantidores, que se desenvolveram a partir da inserção do Mp e do Judiciário.

4.3. A JUDICIALIZAÇÃO

As reflexões contemporâneas no campo do direito têm se voltado para a relação que se estabelece entre norma e realidade social. A necessidade de extrapolar a letra da lei se origina, entre outros motivos, da própria inserção no campo do direito de outras ciên-cias (sociologia, antropologia, ciência política, etc), as quais propuseram uma reflexão so-bre o direito de forma interdisciplinar, crítica, problematizante, histórica e não–dogmática. isso permitiu desencadear um processo de estranhamento das instituições jurídicas por meio de uma reflexão científica. Além disso, ainda se destaca, nesta mudança de para-digma, a perspectiva pós–positivista do direito, que busca inserir o debate sobre valores e princípios no campo do direito e incorporar aspectos axiológicos em seu interior.

Para além das reflexões sobre as normas que são produzidas pelos indivíduos em sociedade, a sociologia ainda tem buscado, em certa medida, realizar o que se comu-mente denomina como sociologia das instituições jurídicas. esta perspectiva busca reali-zar uma reflexão científica sobre os próprios pressupostos, ações e estratégias que são desenvolvidos no interior das instituições que o mundo do direito cria para lidar com os conflitos sociais. Tribunais, promotorias, defensorias, e outros órgãos têm sido freqüente-mente objeto de estudo pelos cientistas sociais e juristas no Brasil, alguns dos quais se dedicam à pesquisa e reflexão do que se denominou de judicialização da política e das relações sociais.

Apesar de se consolidar enquanto perspectiva teórica e analítica principalmente a par-tir da década de 90 no Brasil, os estudos de judicialização da política demonstram que não se trata de um tema tão recente no mundo. principalmente em países de tradição common law (ex.: estados Unidos), em que o Judiciário possui um alto grau de possibi-lidade de influenciar na efetivação de direitos e implementação de políticas públicas, os estudos sistemáticos sobre a judicialização remontam ao início do século xx. no Brasil, tais estudos receberam amplo difusão a partir das pesquisas de Werneck Vianna et al. (1999), que buscaram, por meio de uma análise empírica, pensar as implicações deste processo no cenário de efetivação de direitos e implementação de políticas públicas.

Apesar de se tratar de uma expressão que denota a idéia de interpenetração entre po-lítica e justiça, a perspectiva da judicialização da política não é homogênea. De fato, não há um consenso entre os autores em relação:

a) aos métodos e técnicas de investigação da interpenetração entre política e justiça;

b) aos pressupostos analíticos e categoriais de pesquisa e investigação empírica;

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c) aos referenciais teóricos de coleta e análise dos dados;

d) ao grau e escala de investigação (Asensi, 2010).

na análise de Javier Couso (2004), a judicialização da política

é um fenômeno multifacetado e que reveste distintas significações, dependendo

da modalidade de qual se trata, assim como do contexto em que se desenvolve.

De fato, difere substancialmente dependendo do que se produz a propósito das

cortes constitucionais que se dedicam ao desenho e implementação de políticas

públicas (como nos Estados Unidos), ou ao propósito dos casos de persecução

da corrupção política (como na Itália). Mesmo assim, a dinâmica da judicialização

varia significativamente dependendo de se ocorrer no contexto de democracia

consolidadas ou democracias emergentes (Couso, 2004, p. 30)

Uma breve análise de alguns estudos que tomam como referencial a idéia de judi-cialização da política evidencia a heterogeneidade de perspectivas e correntes teóricas sobre o tema: Francisco segado (1993) realiza uma análise histórica e comparada deste fenômeno sob a perspectiva constitucional; Stone Sweet (1999) busca refletir sobre o mo-vimento de judicialização e a sua relação com a governança; shalini Randeria (2007) bus-ca, por meio de uma análise antropológica, pensar o fenômeno da judicialização numa escala nacional e trans–nacional; Ran Hirschl (2008) busca realizar uma análise interna-cional, partindo pressuposto de que não se trataria de um fenômeno puramente naciona-lizado. são alguns exemplos que não esgotam o debate, tampouco são representativos do mesmo, mas evidenciam a pluralidade de perspectivas e enfoques de análise para a temática da judicialização.

no Brasil, também se observa essa heterogeneidade em relação aos quatro aspectos elencados acima. luiz Werneck Vianna & Marcelo Burgos (2005) se apropriam dessa perspectiva para pensar as ações civis públicas propostas perante o Judiciário pelos diversos atores sociais e políticos; ernani Carvalho (2004) e Vanessa Oliveira & ernani Carvalho (2005) buscam realizar uma discussão teórica sobre os limites e possibilidades de se pensar o fenômeno no Brasil; Marcelo Mello & Delton Meirelles (2006) realizam uma análise empírica da cultura legal do cidadão do município de niterói servindo–se da perspectiva da sociologia jurídica; Casagrande (2008) se serve da abordagem me-todológica de Werneck Vianna & Burgos para pensar o papel do Mp a partir de alguns casos específicos de judicialização da política. Além disso, uma análise minuciosa sobre algumas dessas pesquisas foi realizada em estudo recente de Werneck Vianna, Burgos e salles (2006) sobre os dezessete anos de judicialização da política no Brasil, que deu continuidade ao trabalho inaugurado por Werneck Vianna et al. (1997) e consubstanciou perspectivas teóricas e análises empíricas relevantes para pensar a temática no país.

A despeito das variações de perspectivas e pressupostos metodológicos de investi-gação da idéia de judicialização, é possível delinear alguns atributos que permeiam, em

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alguma medida, os diversos aportes aqui brevemente esboçados. De uma forma ecumê-nica, é possível afirmar que o fenômeno traduz a assertiva de uma “invasão do Direito sobre o social” (Werneck Vianna, Burgos e salles, 2006, p. 3), ou seja, o surgimento do protagonismo do Judiciário na efetivação de direitos, principalmente de cunho social e coletivo. Uma vez que se encontra sem o referencial explícito das instituições políticas tradicionais – tais como os partidos políticos –, o cidadão se voltaria ao Judiciário como estratégia de mobilização de recursos e argumentos para a defesa e conquista de direi-tos. Com isso, “a nova arquitetura institucional adquire seu contorno mais forte com o exercício do controle de constitucionalidade das leis e do processo eleitoral por parte do Judiciário, submetendo o poder soberano às leis que ele mesmo outorgou” (idem, p. 4).

Um sentido bastante simples da idéia de judicialização da política diz respeito ao papel que o Judiciário passou a desempenhar nas sociedades contemporâneas como agente ativo na implementação de políticas públicas e efetivação de direitos, sobretudo no Bra-sil. Historicamente, o Judiciário foi tradicionalmente associado a um poder inerte, que se conteria a apenas reproduzir o conteúdo previsto na lei. emblemática, aqui, é a idéia de Montesquieu de que o Judiciário seria apenas a “boca da lei”, ou seja, sua função seria a de mero tradutor do texto jurídico, afastando qualquer tipo de subjetividade ou papel pró–ativo na realização do direito. nesta perspectiva, a discussão sobre a legitimidade do direito enseja o seu reconhecimento enquanto norma jurídica exterior aos indivíduos, mas que se encontra, em certa medida, obrigatória e construída a priori por eles como leis entre partes. sendo uma lei entre partes previamente constituída, caberia ao Judiciário apenas expressar essa lei, sem qualquer prerrogativa de mudança do seu conteúdo ou ampliação da sua titularidade a outros indivíduos.

essa visão de um Judiciário passivo e mudo foi objeto de críticas teóricas e empíricas, que foram recebendo ampla adesão ao longo do século xx. no cenário contemporâneo, o que se observa é a transformação de “poder ‘mudo’ a Terceiro Gigante”48 (Werneck

48 Na análise de Luiz Werneck Vianna et al., “neste meio século que nos distancia do último conflito mundial, os três poderes da conceituação clássica de Montesquieu se têm sucedido, sintomaticamente, na preferência bibliográfica e da opinião pública: à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução do mundo arrasado pela guerra, e que trouxe centralidade aos estudos sobre a burocracia, as elites políticas e a máquina governamental, seguiu–se a do legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições de democracia política impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, pelo chamado Terceiro poder e a questão substantiva nele contida – Justiça” (Werneck Vianna et al., 1997, p. 24). A respeito do tema, Giselle Cittadino afirma: “a ampliação do controle normativo do Poder Judiciário no âmbito das democracias contemporâneas é tema central de muitas discussões que hoje se processam na ciência política, na sociologia jurídica e na filosofia do direito. O protagonismo recente dos tribunais constitucionais e cortes supremas não apenas transforma em questões problemáticas os princípios da separação dos poderes e da neutralidade política do poder Judiciário, como inaugura um tipo inédito de espaço público, desvinculado das clássicas instituições político–representativas” (Cittadino, 2003, p. 17). Ao refletir sobre o protagonismo do Judiciário, Matthew Taylor sustentou: “é amplamente reconhecido que, embora o Judiciário não possua ‘nem a bolsa nem a espada’ –, ou seja, nem os poderes orçamentários do legislativo nem os poderes coercitivos do executivo –, ele tem um considerável poder político como depositário da fé pública nas regras do jogo. O Judiciário desempenha um papel central na determinação e aplicação de princípios tanto constitucionais

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Vianna et al., 1997, p. 39), sobretudo a partir da mútua influência entre direito e política, que foi possível em razão de uma série de fatores. principalmente pelos mecanismos de controle de constitucionalidade de leis, o Judiciário passou a fazer parte da formulação das mesmas juntamente ao legislativo e, com a ampliação dos instrumentos processu-ais – tais como a ação civil pública, a ação popular e a ação de improbidade –, passou a exercer controle direto nas ações do executivo e exercer papel proeminente na efetivação de direitos. Com isso, a política passou a fazer parte do mundo do direito, o que ensejou transformações consideráveis nos sentidos, ações, competências e atribuições das insti-tuições jurídicas. no contexto brasileiro, a leitura de Werneck Vianna et al., por exemplo, denota que o protagonismo do Judiciário é “menos o resultado desejado por esse poder, e mais um efeito inesperado da transição para democracia, sob a circunstância geral [...] de uma reestruturação das relações entre o estado e a sociedade” (idem, p. 12).

não obstante, a relevância institucional do Judiciário no Brasil não se reduz ao âmbito da política. num contexto welfareano em que há uma pluralidade de normas de eficácia plena e programática que visam, em algum grau, impor um dever de agir ao executivo, o Judiciário tem sido cada vez mais acionado para resolver conflitos, efetivar direitos e implementar políticas públicas. A idéia de neutralidade – associada à timidez institucional que o Judiciário expressava nos contextos anteriores – passou a ser questionada em prol de uma atuação pró–ativa. O resultado desse processo se expressa na ampliação da criatividade do magistrado e dos poderes institucionais que lhes foram atribuídos no momento da interpretação e aplicação da lei.

nesse contexto, em que a sociedade civil desempenha papel cada vez mais funda-mental na mobilização destas instituições tem ocorrido, o que Werneck Vianna et al. de-nominaram de judicialização das relações sociais49. nesta linha, os autores denominam como judicialização o termo que define o movimento de discussão, no campo do direito, dos conflitos político–sociais. Parte–se do princípio de que o Judiciário, “provocado ade-quadamente, pode ser um instrumento de formação de políticas públicas” (Dallari et al, 1996), o que confere a esta instituição centralidade no âmbito da garantia de direitos. Tal perspectiva exprime que não somente os atores privilegiados se utilizam a via judicial para resolver conflitos políticos, tais como partidos políticos, chefes do Executivo, etc. Ju-dicializar relações sociais envolve um processo muito mais amplo, que alça o Judiciário a referencial de resolução de conflitos sociais. Os autores salientam que essa perspectiva consiste num

quanto ideais, tais como o Rechstaat ou état de droit” (Taylor, 2007, p. 248).

49 na perspectiva de Werneck Vianna, “como reação aos efeitos do estreitamento da esfera publica por onde deveria transitar a formação da soberania popular, de um lado, e da primazia do executivo concedida à esfera sistêmica da economia, de outro, tem–se observado um movimento crescente por parte da sociedade civil, das minorias políticas, das organizações sociais, quando não de simples cidadãos, no sentido de recorrerem ao poder Judiciário contra leis, práticas da Administração ou omissões quanto a práticas que dela seria legítimo esperar, originárias tanto do executivo quanto do legislativo” (Werneck Vianna, 2003, p. 10)

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conjunto de práticas e de novos direitos, além de um continente de personagens

e temas até recentemente pouco divisável pelos sistemas jurídicos [...], os novos

objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário, levando a que as sociedades

contemporâneas se vejam, cada vez mais, enredadas na semântica da justiça. É,

enfim, a essa crescente invasão do direito na organização da vida social que se

convencionou chamar de judicialização das relações sociais (Werneck Vianna et

al., 1999, p. 149)

Mas, de fato, ao que alguns estudiosos da judicialização atribuem essa transformação do Judiciário no mundo contemporâneo? Quais são os fatores associados à judicializa-ção da vida atualmente e quais os limites e desafios que se apresentam diante desse processo? neal Tate e Tobjorn Vallinder (1995) dedicam algumas páginas ao tema. O fenômeno da judicialização da política, na visão dos autores, pressuporia a existência de algumas condições, quais sejam:

a) a existência de um ambiente fortemente democrático e, como desdobramento deste;

b) a separação dos poderes estatais;

c) a política de direitos dos cidadãos;

d) o uso das cortes pelos grupos de interesses;

e) o uso das cortes pelas oposições;

f) as instituições majoritárias não–efetivas;

g) a legitimação do Judiciário enquanto uma instituição policy–maker;

h) a delegação (consciente ou não) das instituições majoritárias ao Judiciário.

nesse sentido, a condição sine quad non para a formação e intensificação da judicia-lização da política e das relações sociais seria a presença de um ambiente democrático em que as instituições do estado Democrático de Direito, apesar de separadas e man-tidas em sua autonomia administrativa, funcional e política, criam seus próprios meca-nismos de interpenetração e controle mútuos. em portugal, como será visto, boa parte destas condições não se encontram presentes.

Diante dessas condições, John Ferejohn (2002) busca refletir sobre os elementos só-cio–políticos que explicam, em algum grau, a proeminência do Judiciário nesse contexto. na análise do autor:

a) o Judiciário se tem visto cada vez mais apto a limitar e regular o exercício do legislativo,

principalmente ao impor limites importantes ao poder das instituições parlamentares;

b) cada vez mais o Judiciário tem sido o lugar de onde surgem decisões e políticas sig-

nificativas na efetivação de direitos e implementação de políticas públicas;

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c) os juízes têm se apresentado mais dispostos a regularem a conduta da ativida-

de política.

num cenário em que se observa a limitação ao poder de legislar em virtude de sua fragmentação em diversas instituições, o que se verifica no contexto de judicialização é a discussão da política sob o prisma do direito ou, mais propriamente, a transformação das questões políticas em questões jurídicas, a tensão entre a Constituição material e a Constituição formal.

Matthew Taylor dedicou especial atenção às possibilidades e estratégias de ação do Judiciário no contexto de judicialização da política brasileiro. na perspectiva do autor, os tribunais podem agir de acordo com três dimensões: a hobbesiana, a smithiana e a madisoniana. Tais dimensões encontram–se associadas, respectivamente, ao monopólio da violência pelo estado, às regras de funcionamento da economia e à relação entre os poderes executivo, legislativo e Judiciário. O autor destaca, em seu estudo, principal-mente a terceira dimensão, ao observar os impactos que os tribunais podem produzir na formulação de políticas públicas pelo executivo e legislativo50.

Casagrande (2008), por fim, também produziu uma relevante sistematização da temáti-ca da judicialização. partindo da idéia de que, no Brasil, ocorreu uma transição do que se chama debilidade do judiciarismo – situação na qual o Judiciário, historicamente, perma-neceu em alguma medida submetido política ou administrativamente aos outros poderes –, Casagrande sustenta que o cenário atual é de judicialização dos política. Com isso, o autor salienta que esse fenômeno pode ser lido a partir de dois pontos de vista: da teoria do direito e da ciência política.

Sob o primeiro ponto de vista da teoria do direito, isso reflete a necessidade de cria-ção do direito, que deriva de duas circunstâncias: de um lado, da própria impossibilidade dos ordenamentos jurídicos regularem e normatizarem todas as condutas e, de outro, da própria mutabilidade das ações e condutas da vida social, sob o argumento de que a sociedade muda mais rapidamente e freqüentemente que a lei. sob o ponto de vista da ciência política, observa–se uma mitigação da idéia de que somente o parlamento pode legislar a partir da constituição de mecanismos de desbalanceamento e reequilíbrio entre os poderes.

50 interessante, na análise de Taylor, é a pesquisa comparativa que realizou em relação ao controle de constitucionalidade em alguns países. segundo o autor, “em termos comparados, a atuação do Judiciário brasileiro é significativa. Nos 15 anos entre 1988 e 2002, o STF – somente através do instrumento da Ação Direta de inconstitucionalidade – Adin – concedeu decisões liminares ou de mérito invalidando parcialmente mais de 200 leis federais. em comparação, entre 1994 e 2002, a suprema Corte mexicana julgou a constitucionalidade de um pouco mais de 600 leis naquele país usando dois instrumentos parecidos com a Adin, mas invalidou somente 21 leis federais; em toda sua história, a suprema Corte americana invalidou em torno de 135 leis federais apenas (Taylor, no prelo). Mesmo no governo Fernando Henrique Cardoso – um presidente apoiado (pelo menos inicialmente) por uma ampla coalizão reformista –, o Judiciário federal como um todo foi convocado por atores externos para julgar todas as principais políticas públicas adotadas pelo executivo e seus aliados no Congresso” (Taylor, 2007, p. 236)

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Apologia de Sócrates por Platão

Tradução de Maria Lacerda de Souza. Primeira Parte - Sócrates apresenta sua defesa IO que vós, cidadão atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão persuasivamente falavam. Contudo, não disseram, eu o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras quedivulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar. Mas, então, não se envergonham disto, de que logo seriam desmentidos por mim, com fatos, quando eu me apresentasse diante de vós, denenhum modo hábil orador? Essa me parece a sua maior imprudência, se, todavia, não denominam "hábil no falar" aquele que diz a verdade. Porque, se dizem exatamente isso, poderei confessar que sou orador, não porém à sua maneira. Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nadadisseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em toda a sua plenitude. Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadãoatenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ouadornados como os deles, mas coisas ditas simplesmente com aspalavras que me vieram à boca; pois estou certo de que é justo o que eu digo, e nenhum de vós espera outra coisa. Em verdade, nemconviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós, ó cidadãos, como um jovenzinho que estuda os seus discursos. E todavia, cidadãos atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo com os mesmos discursos com os quais costumo falas nas feiras, perto dos bancos, onde muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares, não vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor. Porquanto, há o seguinte: é a primeira vez que me apresento diante de um tribunal, na idade de mais de setenta anos: por isso, sou quase estranho ao modo de falar aqui. Se eu fosse realmente um forasteiro, seu dúvida,perdoaríeis, se eu falasse na língua e maneira pelas quais tivesse sido

V) ANEXOS

5.1. ANEXO 1 – APOLOGIA DE SÓCRATES

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educado; assim também agora vos peço uma coisa que me parece justa: permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar - e poderá ser pior ou mesmo melhor - depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção a isso: se o que digo é justo ou não: essa, de fato, é a virtude do juiz, do orador - dizer a verdade. IIÉ justo, pois, cidadão atenienses, que em primeiro lugar, eu medefenda das primeiras e falsas acusações que me foram apresentadas, e dos primeiros acusadores; depois, me defenderei das últimas e dosúltimos. Porque muitos dos meus acusadores tem vindo até vós jábastante tempo, talvez anos, e sem jamais dizerem a verdade; e esses eu temo mais do que Anito e seus companheiros, embora também sejam temíveis os últimos. Mais temíveis porém são os primeiros, ócidadãos, os quais tomando a maior parte de vós, desde crianças, vos persuadiam e me acusavam falsamente, dizendo-vos que há um talSócrates, homem douto, especulador das cosias celestes e investigador das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca. Esses,cidadãos atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores que eu temo; pois aqueles que os escutam julgam que os investigadores de tais coisas não acreditam nem mesmo nos deuses. Pois essesacusadores são muito e me acusam já há bastante tempo; e, além disso, vos falavam naquela idade em que mais facilmente podíeis dar crédito, quando éreis crianças e alguns de vós muito jovens, acusando-me com pertinaz tenacidade, sem que ninguém me defendesse. E o que é mais absurdo é que não se pode saber nem dizer os seus nomes, exceto, talvez, algum comediógrafo. Por isso, quantos, por inveja ou calúnia, vos persuadiam, e os que, convencidos, procuravam persuadir os outros, são todos, por assimdizer, inabordáveis; porque não é possível fazê-los comparecer aqui, nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me defender, quase combatendo com sombras e destruir, sem que ninguém responda. Admiti, também vós, como eu digo, que os meus acusadores são de duas espécies, uns, que me acusaram recentemente, outros, há muito dos quais estou falando e convinde que devo me defenderprimeiramente destes, porque também vós os ouviste acusar-me em primeiro lugar e durante muito mais tempo que os últimos.

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Ora bem, cidadãos atenienses, devo defender-me e empreender remover de vossa mente, em tão breve hora, a má opinião acolhida por vós durante muito tempo. Certo eu desejaria consegui-lo, e seria o melhor, para vós e para mim, se, defendendo-me, obtivesse algum proveito; mas vejo a coisa difícil, e bem percebo por quê. De resto, seja como deus quiser: agora épreciso obedecer à lei e em defender. IIIProssigamos, pois, e vejamos, de início, qual é a acusação, de onde nasce a calúnia contra mim, baseado no qual Meleto me moveu este processo.Ora bem, que diziam os caluniadores ao caluniar-me? É necessário ler a ata da acusação jurada por esses tais acusadores: - Sócrates comete crime e perde a sua obra, investigando as coisas terrenas e ascelestes, e tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando isso aos outros. - Tal é , mais ou menos, a acusação: e isso já vistes, vós mesmos, na comédia de Aristófanes, onde aparece, aqui e ali, umSócrates que diz caminhar pelos ares e exibe muitas outras tolices, das quais não entendo nem muito, nem pouco. E não digo isso por desprezar tal ciência, se é que há sapiência nela, mas o fato é, cidadão atenienses, que, de maneira alguma, me ocupo de semelhantes coisas. E apresento testemunhas: vós mesmos, e peço vos informei reciprocamente, mutuamente vos interrogueis, quantos de vós me ouviram discursar algum dia; e muitos dentre vós são desses.Perguntai-vos uns aos outros se qualquer de vós jamais me ouviu orar, muito ou pouco, em torno de tais assuntos, e então reconhecereis que tais são. do mesmo modo, as outras mentiras que dizem de mim. IVNa realidade, nada disso é verdadeiro, e , se tendes ouvido de alguém que instruo e ganho dinheiro com isso, não é verdade. Embora, em realidade, isso me pareça bela coisa: que alguém seja capaz de instruir os homens, como Górgias Leontino, Pródico de Coo, e Hípias deÉlide. Porquanto, cada um desses, ó cidadãos, passando de cidade em cidade, é capaz de persuadir os jovens, os quais poderiam conversar gratuitamente com todos os cidadãos que quisessem; é capaz de

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persuadir a estar com eles, deixando as outras conversações,compensado-os com dinheiro e proporcionando-lhes prazer. Mas aqui há outro erudito de Paros, o qual eu soube que veio para junto de nós, porque encontrei por acaso um que despendeu com os sofistas mais dinheiro que todos os outros juntos, Cálias de Hipônico. tem dois filhos e eu o interroguei: - Cálias, se os teus filhinhos fossem poldrinhos ou bezerros, deveríamos escolher e pagar para eles umguardião, o qual os deveria aperfeiçoar nas suas qualidades inerentes:seria uma pessoa que entendesse de cavalos e de agricultura. Mas,como são homens, qual é o mestre que deves tomar para eles? Qual é o que sabe ensinar tais virtudes, a humana e a civil? Creio bem que tens pensador nisso uma vez que tem dois filhos. Haverá alguém ou não ? -Certamente! - responde. E eu pergunto: - Quem é, de onde e porquanto ensina? Eveno, respondeu, de Paros, por cinco minas. - E eu acreditaria Eveno muito feliz, se verdadeiramente possui essa arte e a ensina com tal garbo. Mas o que é certo é que também eu me sentiria altivo e orgulhoso, se soubesse tais coisas; entretanto, o fato é,cidadãos atenienses, que não sei. VAlgum de vós, aqui, poderia talvez se opor a mim: - Mas Sócrates, que é que fazes? De onde nasceram tais calunias? Se não tivesses teocupado em coisa alguma diversa das coisas que fazem os outros, na verdade não terias ganho tal fama e não teriam nascido acusações.Dizes, pois, o que é isso, a fim de que não julguem a esmo. Quem diz assim, parece-me que fala justamente, e eu procurareidemonstrar-vos que jamais foi essa a causa produtora de tal fama e de tal calúnia. Ouvi-me. Talvez possa parecer a algum de vós que eu esteja gracejando; entretanto, sabei-o bem, eu vos direi toda a verdade. Porque eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi poralguma sabedoria. Que sabedoria é essa? Aquela que é, talvezpropriamente, a sabedoria humana. É, em realidade, arriscado ser sábio nela: mas aqueles de quem falávamos ainda há pouco seriam sábios de uma sabedoria mais que humana, ou não sei que dizer, porque certo não a conheço. Não façais rumor, cidadãos atenienses, não fiqueiscontra mim, ainda que vos pareça que eu diga qualquer coisa absurda: pois que não é meu o discurso que estou por dizer, mas refiro-me a

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outro que é digno de vossa confiança. Apresento-vos, de fato, o deus de Delfos como testemunha de minha sabedoria, se eu a tivesse, equalquer que fosse. Conheceis bem Xenofonte. Era meu amigo desde jovem, também amigo do vosso partido democrático, e participou de vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis também como eraXenofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez, de fato, indo a Delfos, ousou interrogar o oráculo a respeito disso e - não façais rumor, por isso que digo - perguntou-lhe, pois, se havia alguém mais sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio. E a testemunha disso é seu irmão, que aqui está. VIConsiderai bem a razão por que digo isso: estou para demonstra-vos de onde nasceu a calúnia. Em verdade, ouvindo isso, pensei: que queria dizer o deus e qual é o sentido de suas palavras obscuras? Sei bem que não sou sábio, nem muito nem pouco: o que quer dizer, pois,afirmando que sou o mais sábio? Certo não mente, não é possível. E fiquei por muito tempo em dúvida sobre o que pudesse dizer; depois de grande fadiga resolvi buscar a significação do seguinte modo: Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por meio dele, sem dúvida, o oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a minha resposta: Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que eu sou o mais sábio. Examinando esse tal: - não importa o nome, mas era,cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava essa impressão. - e falando com ele, afigurou-se-me que esse homem parecia sábio a muitos outros e principalmente a si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser. Daí me veio o ódio dele e de muitos dos presentes. Então, pus-me aconsiderar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la,enquanto eu, como não si nada, também estou certo de não saber.Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei. Depois desse, fui a outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e mepareceu que todos são a mesma coisa. Daí veio o ódio também deste e de muitos outros.

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VIDepois prossegui se mais me deter. embora vendo, amargurado etemeroso, que estava incorrendo em ódio; mas também me pareciadever fazer mais caso da resposta do deus. Para procurar, pois o que queria dizer o oráculo, eu devia ir a todos aqueles que diziam saber qualquer coisa. E então, cidadãos atenienses, já que é preciso dizer a verdade, me aconteceu o seguinte: procurando segundo o dedo do deus, pareceu-me que os mais estimados eram quase privados domelhor, e que, ao contrário, os outros, reputados ineptos, eram homens mais capazes, quando à sabedoria. Ora, é preciso que eu vos descreva os meus passos, como de quem se cansava para que o oráculo se tornasse acessível a mim. Depois dos políticos, fui aos poetas trágicos, e, dos ditirâmbicos fui aos outros, convencido de que, entre esses, eu seria de fato apanhado como mais ignorante do que eles. Tomando, pois, os seus poemas, dentre os que me pareciam os mais bem feitos, eu lhes perguntava o que queriam dizer, para aprender também alguma coisa com eles. Agora, ó cidadãos, eu me envergonho de vos dizer a verdade; mastambém devo manifestá-la. Pois que estou para afirmar que todos os presentes teriam discorrido sobre tais versos quase melhor do queaqueles que os haviam feito. Em poucas palavras direi ainda, em relação aos trágicos, que nãofaziam por sabedoria aquilo que faziam, mas por certa naturalinclinação, e intuição, assim como os adivinhos e os vates; e emverdade, embora digam muitas e belas coisas, não sabem nada daquilo que dizem. O mesmo me parece acontecer com os outros poetas; e também me recordo de que eles, por causa das suas poesias,acreditavam-se homens sapientíssimos ainda em outras coisas, nasquais não eram. Por essa razão, pois, andei pensando que, nisso eu os superava, pela mesma razão que superava os políticos. VIIIPor fim, também fui aos artífices, porque estava persuadido de que por assim dizer nada sabiam, e, ao contrário, tenho que dizer que os achei instruídos em muitas e belas coisas. Em verdade, nisso me enganei: eles, de fato. sabiam aquilo que eu não sabia e eram muito mais sábios do que eu. Mas, cidadãos atenienses, parece-me que também os

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artífices tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitar bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas outras coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber. Assim, eu ia interrogando a mim mesmo, a respeito do que disse o oráculo, se devia mesmo permanecer como sou, nem sábio da suasabedoria, nem ignorante da sua ignorância, ou ter ambas as coisas, como eles o tem. Em verdade, respondo a mim e ao oráculo que me convém ficar como sou.IXOra, dessa investigação, cidadãos atenienses, me vieram muitasinimizades e tão odiosas e graves que delas se derivaram outras tantas calúnias e me foi atribuída a qualidade de sábio; pois que, a cadainstante, os presentes acreditam que eu seja sábio naquilo que refuto os outros. Do contrário, ó cidadãos, o deus é que poderia ser sábio de verdade, ao dizer, no oráculo, que a sabedoria humana é de pouco ounenhum preço; e parece que não tenha querido dizer isso de Sócrates, mas que se tenha servido do meu nome, tomando-me por exemplo, como se dissesse: Aqueles dentre vós, ó homens, são sapientíssimos os que, como Sócrates, tenham reconhecido que em realidade não tem nenhum mérito quanto à sabedoria. Por isso, ainda agora procuro e investigo segundo a vontade do deus, se algum dos cidadãos e dos forasteiros me parece sábio; e quando não, indo em auxílio do deus, demonstro-lhe que não é sábio. E, ocupado em tal investigação, não tenho tido tempo de fazer nada de nada de apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados, masencontro-me em extrema pobreza, por causa do serviço do deus. Além disso, os jovens ociosos, os filhos dos ricos, seguindo-meespontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas vezes me imitam, por sua própria conta, e empreendem examinar os outros; e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa, mas, pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles, e dizem que há um tal Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E quando alguém os pergunta o que é que ele faz e ensina, não tem nada o que dizer, pois ignoram. Para não parecerem embaraçados, dizem

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aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos: que ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a tornar mais forte a razão mais débil. Sim, porque não querem, ao meu ver, dizer a verdade, isto é, que descobriram a presunção de seu saber, quando não sabem nada. Assim, penso, sendo eles ambiciosos eresolutos e em grande número, e falando de mim concordemente epersuasivamente, vos encheram os ouvidos caluniando-me de há muito tempo e com persistência. Entre esses, arremessaram-se contra mim Meleto, Anito e Licon: Meleto pelos poetas, Anito pelos artífices,Licon pelo oradores. De modo que, como eu dizia no princípio, ficaria maravilhado se conseguisse, em tão breve tempo, tirar do vosso ânimo a força dessa calúnia, tornada tão grande. Eis a verdade, cidadãos atenienses, e eu falo sem esconder nemdissimular nada de grande ou de pequeno. Saibam, quantos o queiram, que por isso sou odiado; er que digo a verdade, e que tal é a calúnia contra mim e tais são as causas. E tanto agora como mais tarde ou em qualquer tempo, podereis consideraressas coisas: são como digo. XÉ suficiente, pois. esta minha defesa diante de vós, contra a acusação movida a mim pelos primeiros acusadores. Agora procurarei defender-me de Meleto, homem de bem e amante da pátria, como dizem, e um dos últimos acusadores. Voltemos, portanto, ao ato de acusação, jurado por ele, como poroutros acusadores. É mais ou menos assim: -Sócrates - diz a acusação - comete crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas.- Esta é a acusação. Examinemo-laagora, em todos os seus vários pontos. Diz, primeiro, que cometo crime, corrompendo jovens. Ao contrário, eu digo, cidadãosatenienses, Meleto é quem comete crime, porque brinca com as coisas graves. Conduzindo com facilidade os homens ao tribunal,aparentando ter cuidado e interesse por coisas em que de fato nunca pensou. Procurarei mostrar-vos que é bem assim. XI

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-Agora, dize-me, Meleto: não é verdade que te importa bastante que os jovens se tornem cada vez melhores, tanto quanto possível? -Sim, é certo. -Vamos, pois, dize-lhes quem os torna melhores; é claro que tu o deves saber, sendo coisa que te preocupa, tendo de fato encontrado quem os corrompe, como afirmas, uma vez que me trouxeste aqui e me acusa. Continua, fala e indica-lhes quem os torna melhores. Vê, Meleto, calas e não sabes o que dizer. E, ao contrário não te parece vergonhoso e suficiente prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em nada disso? Mas, dizes, homem, de bem, quem os torna melhores? -As leis. - Mas não pergunto isso, ótimo homem, mas qual o homem que sabe, em primeiro lugar, isso exatamente, as leis. - Aqueles, Sócrates, os juízes. - Como, Meleto, esses são capazes de educar os jovens e os tornar melhores?-Como não? -Todos, ou alguns apenas, outros não? - Todos. - Muito bem respondido, por Hera: Vê quanta abundância de pessoas úteis! Como ? Também estes, que nos escutam, tornam melhores os jovens ou não? - Também estes. -E os senadores? -Também os senadores. - É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os cidadãos daAssembléia, ou também todos esses os tornam melhores? - Também esses. -Assim, pois, todos os homens, como parece, tornam melhores osjovens, exceto eu. Só eu corrompo os jovens. Não é isso? - Isso exatamente afirmo de modo conciso. - Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E responde-me: será assim também para os cavalos? que aqueles que os tonam melhores são todos homens e que só um os corrompe? ou será o contrário, que um só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles queentendem de cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-los,

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os estragam? Não é assim, Meleto, para os cavalos como para todos os animais? Sim, certamente, ainda que tu e Anito o neguem ou afirmem. Pois seria uma grande fortuna para os jovens que um só corrompesse e os outros lhe fossem todos úteis. Mas, na realidade, Meleto, mostraste o suficiente que jamais te preocupaste com os jovens, e claramente revelaste o teu desmazelo, que nenhum pensamento te passou pelamente, disto que me acusas. XII- E , agora, dize-me, por Zeus, Meleto: que é melhor, viver entrevirtuosos cidadãos ou entre malvados? Responde, meu caro, não te pergunto uma coisa difícil. Não fazem os malvados alguma maldade aos que são seus vizinhos, e alguns benefícios os bons? - Certamente. - E haverá quem prefira receber malefícios a ser auxiliado opor aqueles que estão com ele? Responde, porque também a lei manda responder. Há os que gostam de ser prejudicados. -Não,por certo. -Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que corrompe os jovens e os torna piores, voluntariamente ou involuntariamente? - Para mim, voluntariamente. - Como, Meleto? Tu, nesta idade, és mais sábio do que eu, tão velho, sabendo que os maus fazem sempre mal aos mais próximos e os bons fazem bem: eu, pois, cheguei a tal grau de ignorância que não si nem isso, que se tornasse maus alguns daqueles que estavam comigo,correria o risco de receber dano, se é que faço um tão grande mau, como dizes. Não te creio, Meleto, quanto a isso, e ninguém te acredita, penso.Mas. ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é involuntariamente, e em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente,não há leis que mandem trazer aqui alguém, por tais fatosinvoluntários, mas há as que mandam conduzi-lo em particular,instruindo-o, advertindo-o; é claro que se me convencer, cessarei de fazer o que estava fazendo sem querer. Tu. ao contrário, evitasteencontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a lei ordena citar aqueles que tem necessidade de pena e não deinstrução.

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XIIIMas, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram o que eu sempre disse. Jamais Meleto prestou atenção a tais coisas, nem muita, nem pouca. Todavia, explica, Meleto, o que significa a tua expressão, dizendocorrompo os jovens. É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo, que ensino a não respeitar os deuses que a cidade respeita, porém,outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais coisas?-Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso. - Assim, pois, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora está falando, fala ainda mais claro, a mim e aos outros. Não consigoentender se dizes que eu ensino a creditar que existem certos deuses - e em verdade creio que existem deuses, e não sou de todo ateu, nem sou culpado de tal erro - mas não são os da cidade, porém outros, e disso exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou dizes que eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino isso aos outros? - Eu digo isso, que não acreditas inteiramente nos deuses. - Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não creio, pois, do mesmo modo que os outros homens, que o sol e a lua são deuses? -Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que o sol é uma pedra, e a lua, terra. - Tu acreditas acusar Anáxagoras, caro Meleto; e me desprezas tanto e me consideras tão privado de letras a ponto de não saber que os livros de Anáxagoras Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De modo que os jovens aprendem coisas de mim, pelas quais podem talvez,pagando todos no máximo uma dracma, rir-se de Sócrates, quando se lhe atribui arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus, assim te parece, que eu creio que não exista nenhum deus? -Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo. - És de certo, indigno de fé, Meleto, e também a ti mesmo, me parece, tais coisas são inacreditáveis. Porque este homem, cidadãos atenienses, me parece a própria arrogância e imprudência, e certamente escreveu essa acusação por medo, intemperança e leviandade juvenil. De fato ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um enigma e diga, interrogando-se a si mesmo: Perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou

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zombando dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros que me ouvem? E, ao contrário, me parece que, no ato da acusação, se contradiz de propósito, como se dissesse: Sócrates comete crime, não acreditando nos deuses, mas acreditando nos deuses. E isso, na verdade é fazer zombaria.] XIV- Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que modo me parece que ele diz isso. Responde-nos tu, Meleto, e vós, como pedi a princípio, não façais rumor contra mim, se conduzo o raciocínio desse modo.Existem entre os homens, Meleto, os que acreditam que há coisashumanas, que não há homens? Que responda ele, ó juízes, semresmungar ora uma coisa ora outra. Há os que acreditam que não há cavalos, e coisas que tenham relação com os cavalos sim? Ouacreditam que não há flautistas, e coisas relativas à flauta sim? Não há? Ótimo homem, se não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos outros presentes. Mas, ao menos, responde a isto: Há quem acredite que há coisas demoníacas, e demônios não? - Não há. -Oh! como estou contente que tenhas respondido de má vontade,constrangido por outros! Tu dizes. pois, que eu creio e ensino coisas demoníacas, sejam novas, sejam velhas; portanto, segundo o teuraciocínio, eu creio que há coisas demoníacas e o juraste na tuaacusação. Ora, se creio que há coisas demoníacas, certo éabsolutamente necessário que eu creia também na existência dosdemônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que o admites, porque não respondes. E não temo em apreço os demônios como deuses ou filho de deuses? Sim, ou não? - Sim, é certo. - Se, pois, creio na existência dos demônios, como dizes, se osdemônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que nãoacredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses,porque ao menos creio na existência dos demônios. Se, por outra parte, os demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras mulheres, das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia ter a certeza de que são filhos dos deuses se não existem deuses? Seria de fato do mesmo modo absurdo que alguém acreditasse nas mulas,

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filas de cavalos e das jumentas, e acreditassem não existirem cavalos e asnos. Mas, Meleto, tua acusação foi feita para me pôr à prova, ou também por não saber a verdadeira culpa que me pudesses atribuir: por que, pois, te arriscas a persuadir um homem, mesmo de mente restrita, de que pode a mesma pessoa acreditar na existência das coisasdemoníacas e divinas, e, de outro lado, essa pessoa não admitirdemônios, nem deuses, nem heróis? Isso não é possível.XV

Em realidade, cidadãos atenienses, para demonstrar que não sou réu, segundo a acusação de Meleto, não me parece ser necessária longadefesa, mas isso basta. Aquilo, pois, que eu dizia no princípio, que há muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem sabeis que é verdade. E isso é o que me vai perder, se eu me perder ... e não Meleto, ou Anito, mas, a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão seperderam muitos outros homens virtuosos, e outros ainda, creio, serão perdidos; não há perigo que a série se feche comigo. Mas talvezpudesse alguém dizer: Não te envergonhas, Sócrates, de te aplicardes a tais ocupações, pelas quais agora está arriscado a morrer? A isso, porei justo raciocínio, e é o seguinte: não estás falando bem, meu caro, se acreditas que um homem, de qualquer utilidade, por menor que seja, deve fazer caso dos riscos de viver ou morrer, e , ao contrário, só deve considerar uma coisa: quando fizer o que quer que seja, deveconsiderar se faz coisa justa ou injusta, se está agindo como homem virtuoso ou desonesto. Porquanto, segundo a tua opinião, seriamdesprezíveis todos aqueles semi-deuses que morreram em Tróia. E, com eles, o filho de Tétis, o qual, para não sobreviver à vergonha, desprezou de tal modo o perigo que, desejoso de matar Heitor, não deu ouvido à predição de sua mãe, que era uma deusa, e a qual lhe deve ter dito mais ou menos isto: -Filho, se vingares a morte de teu amigo Pátroclo e matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamentedepois de Heitor, o teu destino estará terminado. - Ouviu taispalavras, não fez nenhum caso da morte e dos perigos, e, temendo

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muito mais o viver ignóbil e não vingar os amigos, disse: Morra eu imediatamente depois de ter punido o culpado, para que não permaneça aqui como objeto de riso, junto das minhas naus recurvas inútilfardo da terra. Crês que tenha feito caso dos perigos e da morte? Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses: onde quer quealguém tenha colocado, reputando o melhor posto, ou se for alicolocado pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de ir firme ao encontro dos perigos, sem se importar com a morte ou com coisaalguma, a não ser com as torpezas. XVIGravíssimo erro deveria considerar, cidadãos atenienses, quando oscomandantes, por vós eleitos para me dirigirem, me assinalaram um posto em Potidéia, em Anfípolo, em Délio, não ter ficado eu onde me colocaram como qualquer outro e correndo perigo de morte. Quando, pois, o deus me ordenava, como penso e estou convencido, que eu devia viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros,então eu, se temendo a morte ou qualquer outra coisa, tivesseabandonado o meu posto, isso seria deveram intolerável. Nesse caso, com razão, alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e acusar-me de não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e temendo a morte, e reputando-me sábio sem o ser. Pois que, ó cidadãos, o temer a morte não é outra coisa que parecer ter sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não se sabe.Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como sesoubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maior parte dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça, desobedecer a quem é melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem. isso é que é mal e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por acaso, são boas ou más. Anito disse que, ou não se devia, desde o princípio, trazer-me aqui, ou, uma vez que me trouxeram não épossível deixarem de me condenar à morte, afirmando que, se eu me salvasse, imediatamente os vossos filhos, seguindo os ensinamentos de

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Sócrates, estariam de fato corrompidos. Mas, se me absolvêsseis, não cedendo a Anito, se me dissésseis: Sócrates, agora não damos crédito a Anito, mas te absolveremos, contando que não te ocupes mais dessas tais pesquisas e de filosofar, porque, se fores apanhado ainda a fazer isso, morrerás; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria: - Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos deuses em vez de obedecer a vós, e enquanto eu respirar e estiver na posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de instruir cada um, quem quer que seja que vier à minha presença, dizendo-lhe, como é meu costume: - Ótimo homem, tu que és cidadãode Atenas, da cidade maior e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te envergonhas de fazer caso das riquezas, para guardares quanto mais puderes e da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te importares de sabedoria, da verdade e da alma, para tê-la cada vez melhor?E, se algum de vós protestar e prometer cuidar , não o deixarei já, nem irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei, e, em qualquer momento que pareça que não possui virtude, convencido de que a possuo, o reprovarei, porque faz pouquíssimo caso das coisas de grandíssima importância e grande caso das parvoíces. E isso o farei com quem quer que seja que me apareça, seja jovem ou velho,forasteiro ou cidadão, tanto mais com os cidadãos quanto mais me sejam vizinhos por nascimento. Isso justamente é o que me manda o deus, e vós o sabeis, e creio que nenhum bem maior tendes na cidade, maior que este meu serviço do deus.Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela seja quanto possível melhor, e vou dizendo que a virtude não nasce da riqueza, mas da virtude vem, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como privados. Se, falando assim, eu corrompo os jovens, tais raciocínios sãoprejudiciais; mas se alguém disser que digo outras coisas que não essas, não diz a verdade. Por isso vos direi, cidadãos atenienses, que

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secundado Anito ou não, absolvendo-me ou não, não farei outra coisa, nem que tenha de morrer muitas vezes. VIINão façais rumor, cidadãos atenienses, mas perseverai no que vosestou dizendo, isto é, não vocifereis pelas coisas que vos digo, mas ouvi-me; pois escutando-me, penso que tirareis proveito. Aqui estou para vos dizer algumas outras coisas, e talvez, por isso, levantareis a voz, mas não o deveis fazer. Sabei-o bem: se mecondenais a morrer, a mim que sou tal como eu digo, não causareis maior dano a mim que vós mesmos. E, de fato, nem Meleto, nem Anito me poderiam fazer mal em coisa em alguma: isso jamais seria possível, pois que não pode acontecer que um homem melhor receba dano de um pior. É possível que me mandem matar, ou me exilem, ou metolham os direitos civis; mas provavelmente, eles ou quaisquer outros reputam tais coisas como grandes males, ao passo que eu nãoconsidero assim, e, ao contrário considero muito maior mal fazer o que agora eles estão fazendo, procurando matar injustamente umhomem.Ora, pois, cidadãos atenienses, estou bem longe de me defender por amor a mim mesmo, como alguém poderia supor, mas por amor a vós, para que, condenando-me, não tenhais de cometer o erro de repelir o dom de mim que vos fez o deus. Pois que, se me mandares matar, não encontrareis facilmente outro igual, que (pode parecer ridículo dizê-lo)tenha sido adaptado pelo deus à cidade, do mesmo modo com a um cavalo grande e de pura raça, mas um pouco lerdo pela sua gordura, é aplicada a necessária esporada para sacudi-lo. assim justamente me parece que o deus me aplicou à cidade, de maneira que, despertando cada um de vós e persuadindo-vos e desaprovando-vos, não deixo de vos esporar os flancos, por toda a parte, durante todo o dia. E outro parecido, não tereis tão facilmente, cidadãos. Mas, se meouvísseis me pouparíeis. É possível que vós irritados como aqueles que são despertados quando no melhor do dono, repelindo-me para condescender com Anito, levianamente me condeneis à morte, paradormirdes o resto da vida, se, entretanto, o deus, pensando em vós, não vos mandar algum outro.

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Que eu seja um homem cuja qualidade é a de ser um dom feito pelo deus à cidade podereis deduzir do seguinte: não é, na verdade, do homem, eu ter descuidado das minhas coisas, resignando-me por tantos anos a me descuidar dos negócios domésticos para acudir sempre aos vossos, aproximando-me sempre de cada um de vós em particularcomo um pai ou irmão mais velho, persuadindo-vos a vospreocupardes com a virtude? Se, em verdade, disto eu obtivessequalquer coisa e recebesse compensação de tais advertências, teria uma razão. Mas agora vós mesmos vedes que os acusadores, tendo acusado a mim, com tanta imprudência, de tantas outras coisas, não foramcapazes de apresentar uma testemunha de que eu tenha contratado ou pedido alguma recompensa. Pois bem; apresento um testemunho suficiente do que digo: a minha pobreza.XVIIIMas, poderia talvez parecer estranho que eu, andando daqui para lá, me cansasse dando em particular esses conselhos, e depois, em público, não ousasse, subindo diante do vosso povo aconselhar a cidade. Acausa disso é a que em várias circunstâncias, eu vos disse muitasvezes: a mim me acontece qualquer coisa de divino e demoníaco; isso justamente Meleto escreveu também no ato da acusação, zombando de mim mim. E tal fato começou comigo em criança. Ouço uma voz, e toda vez que isso acontece ela me desvia do que estou a pique de fazer, mas nunca me leva à ação. Ora, é isso que me impede de me ocupar dos negócios do Estado. E até me parece que muito a propósito mo impede, porquanto, sabei-o bem, cidadãos atenienses, se eu, há muito tempo, tivesse empreendido ocupar-me com os negócios do Estado há muito tempo já estaria morto, e não teria sido útil em nada, nem a vós, nem a mim mesmo. E não vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; não há nenhum homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vós ou aqualquer outro povo, e impedir que muitos atos contrários à justiça e às leis se pratique na cidade. E não há outro caminho: quem combate verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum tempo, deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos.

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Disso vos poderei dar grandes provas, não palavras, mas o que prezei: fatos. Ouvi, pois, de minha boca, o que me aconteceu, para que não saibais que não há ninguém a quem eu tenha feito concessões com desprezo da justiça e por medo da morte; e que, ao mesmo tempo, por essa recusa de toda concessão deverei morrer. Dir-vos-ei talvez coisas comuns e pedantescas, mas verdadeiras. De fato, cidadãos atenienses, não tenho mais nenhum cargo público na cidade, mas fui senador, e e, à nossa Antiquóida coube por sorte a Pritânia, quando quisestes que aqueles dez estrategistas, que não haviam recolhidos os mortos e os náufragos da batalha naval, fossem julgados coletivamente, contra a lei, no que todos vós conviestes. Então somente eu, dos pritanos, me opus a vós, não querendo agir em oposição à lei ,e votei contra. E, embora os oradores estivessem prontos a me acusar e me prender, e vós os encorajásseis vociferando, mesmo assim, achei que meconvinha mais correr perigo com a lei e com o que era justo, do que, por medo do cárcere e da morte, estar convosco, vós que deliberáveis o injusto.Isso acontecia quando a cidade era ainda governada pela democracia. Quando veio a oligarquia, os Trinta, novamente tendo-me chamado, em quinto lugar, ao Tolo, orderam-me que fosse à Salamina buscar o Leão Salamínio, para que fosse morte. Muitos fatos desse gênerotinham sido ordenados a muitos outros, com o fim de cobrir deinfâmia quanto pudessem. Também naquele momento, não compalavras mas com fatos, demonstrei de novo que a morte não meimportava, ou me importava menos que um figo, eu diria se não fosse indelicado dizê-lo. Mas não fazer nada de injusto e de ímpio isso sim, me importa acima de tudo. Pois aquele governo, embora tão violento, não me intimidou, para que fizesse alguma injustiça; mas quandosaímos de tolo, os outros quatro foram à Salaminas e trouxeram Leão, e eu, ao contrário, afastei-me deles e fui para casa. Naquela ocasião, eu teria sido morto, se o governo não fosse derrubado pouco depois. E disso tendes testemunhas em grande número XIXOra, julgais que eu teria vivido tantos anos, se me tivesse aplicado aos negócios públicos, e procedendo como homem de bem, tivessedefendido as coisas justas, e, como deve ser, tivesse dado a isso maior

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importância? Muito longe disso, cidadãos atenienses; na verdade,também nenhum outro se teria salvo! Eu, porém, durante toda a minha vida, se fiz alguma coisa, em público ou em particular, vos apareço sempre o mesmo, não tendo jamais concedido coisa alguma contra a justiça nem aos outros nem a algum daqueles que meus caluniadores chamam de meus discípulos. Mas nunca fui mestre de ninguém: de, pois, alguém mostrou desejoso da minha presença quando eu falava, e acudiam à minha procura jovens e velhos, nunca me recusei a ninguém. Nunca, ao menos, falei dedinheiro; mas igualmente me presto a me interrogar os ricos e ospobres, quando alguém, respondendo, quer ouvir o que digo. e sealgum deles se torna melhor, ou não se torna não posso serresponsável, pois que não prometi, nem dei, nesse sentido, nenhumensinamento. E, se alguém afirmar que aprendeu ou ouviu de mim, em particular, qualquer coisa de diverso do que disse a todos os outros, sabei bem que não diz a verdade. XXEntretanto, como pode acontecer que alguns se comprazam em passar muito tempo comigo? Já ouvistes, cidadãos atenienses, eu já vos disse toda a verdade: é porque tomam gosto em ouvir examinar aqueles que acreditam ser sábio e não o são; não é de fato coisa desagradável. E, como disse, foi o deus que me ordenou a fazê-lo, com oráculos, com sonhos, e com outros meios, pelos quais algumas vezes a divina avontade ordena a um homem que faça o que quer que seja. Tudo isso, cidadãos atenienses, é verdade e fácil de provar. Com efeito, suponhamos que, entre os jovens, há alguns que estou corrompendo e outros que já corrompi: seria aparentemente inevitável que algunsdestes, quando tiveram mais idade, compreendessem que eu lhes tinha alguma vez aconselhado uma ação má - e hoje deveriam estar aqui para me acusar e vingar-se de mim. Suponhamos ainda, que eles não teriam querido vir pessoalmente: mesmo assim, alguns de seus parentes, pais, irmãos ou pessoas de família, se algum dia receberam danos de minha parte, agora deveriam recordar e tirar vingança. Mas eis que vejo aqui presentes muitos desses: primeiro Críton, meu coevo e do mesmo demos, pai de Critóbulo; depois Lisânias Sfécio, pai de Epígenes, além destes outros cujos irmãos estiveram comigo na

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intimidade: Nicostrato, filho de Teozóides e irmão de Teodoto (eTeodoto, que já é falecido, não poderia impedir Nicostrato de falar contra mim). E há ainda, Paralo de Demócodo, irmão de Teageto, do qual é irmão Platão, e Aiantádoro, de que é irmão Apolodoro. Emuitos outros eu poderia citar, alguns dos quais especialmentedeveriam ter sido apresentados por meleto como testemunhas, no seu discurso. Mas, se agora se esquivam, aos presentes aqui eu lhespermito dizerem se há qualquer coisa dessa natureza. Mas vós, ójuízes, sois de parecer contrário, achareis que todos estão prontos a me ajudar; mas incorruptíveis homens já de idade avançada, parentesdaqueles, que razão teriam para me ajudar senão aquela, reta e justa, convencidos de que Meleto mente e que eu digo a verdade? XXIAssim seja, ó cidadãos: é mais ou menos isso que eu poderei dizer em minha defesa ou qualquer coisa semelhante. Provavelmente, porém,algum de vós poderá ficar encolerizado, recordando-se de si mesmo. Se sustentou uma contenda embora em menor proporções do que essa minha, pediu e suplicou aos juízes, com muitas lágrimas, trazendo aqui os filhos, e muitos outros parentes e amigos, a fim de mover a piedade ao seu favor. Eu não farei certamente nada disso, embora vá ao encontro, como se pode acreditar, do extremo perigo. É possível que qualquer um, considerando isso, pudesse irritar-se contra mim, e,encolerizado por isso mesmo, desse o voto com ira. Se, de fato, algum de vós está em está em tal estado de alma, a mim me parece quepoderei dizer-lhe o seguinte: Também eu, meu caro, tenho umafamília, e bem posso, como em Homero, dizer que não nasci: "de um carvalho nem de um rochedo", pois eu também tenho parentes efilhinhos, ó cidadãos atenienses: três, um já jovenzinho e duasmeninas; mas contudo, não farei vir aqui nenhum deles para vos rogar a minha absolvição. Porque razão não farei nada disso? Não é por soberbia, ó atenienses, nem por desprezo que eu tenha por vós, mas que eu seja corajoso ao menos defronte a morte, isto é outra coisa. Tratando-se de honra, não me parece belo, nem para mim nem para vós, pata toda cidade, que eu faça tal, na idade em que estou, e com este nome de sábio que me dão, seja ele merecido ou não. O fato é que me foi criada a fama de ser este

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Sócrates em quem há alguma coisa pela qual se tona superior à maioria dos homens. Ora, se aqueles que entre nós, tem a reputação de ser superiores aos demais, pela sabedoria, pela coragem, ou por qualquer outro mérito procedessem de tal modo, seria bem feito. Freqüentemente já notei essa atitude, quando são elas julgadas, empessoas que, malgrado a reputação de homens de valor que tem, se entregam a extraordinárias manifestações, inspiradas pela idéia de que será coisa terrível ter de morrer: como se, no caso em que vós não o mandásseis à morte, devessem eles ser imortais. São esses homens que, a meu ver, cobrem a cidade de vergonha, e que poderiam suscitar entre os estrangeiros a convicção de aqueles que os próprios ateniensesescolheram, de preferência, para serem os seus magistrados e para as demais dignidades, não se diferenciem das mulheres! É um procedimento, atenienses, que não deverá ser o vosso, quando possuirdes reputação em qualquer gênero de valor que seja; e que não deveis permitir seja o meu, caso eu tenha alguma reputação, pois o que deveis fazer é justamente que se compreenda isto: que aquele que se apresenta no tribunal representando estes dramas lamentáveis será mais certamente condenado por vós do que o que permanece tranqüilo. XXIIMas mesmo não fazendo caso da reputação, ó cidadãos, não me parece também justo suplicar aos juízes e evitar a condenação com rogos, mas iluminá-los e persuadi-los. Que o juiz não ceda já por isso, nãodispense sentença a favor, mas a pronuncie retamente e jurecondescender com quem lhe agrada, mas proceder segundo as leis. Por isso, nem nós devemos habituar-vos a proceder contra o vossojuramento, nem vós deveis permitir que nos habituemos a fazê-lo.Não espereis, cidadãos atenienses, que eu seja constrangido a fazer, diante de vós, coisas tais que não considero nem belas, nem justas, nem santas, especialmente agora, por Zeus, que sou acusado de impiedade por Meleto. É evidente que, se com todo vosso juramento, eu vos persuadisse e com palavras vos forçasse, eu vos ensinaria a considerar que nãoexistem deuses, e assim, enquanto me defendo, em realidade meacusaria, só pelo fato de não crer nos deuses.

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Mas a coisa está bem longe de ser assim; porquanto, cidadãosatenienses, creio neles, como nenhum dos meus acusadores, eencarrego a vós e ao deus de julgar a mim, do modo que puder ser o melhor para mim e para vós. Segunda Parte - Sócrates é condenado e sugere sua sentença XXIIIA minha impassibilidade, cidadãos atenienses. diante da minhacondenação, entre muitas razões, deriva também desta: eu contava com isto, e até, antes me espanto do número dos dois partidos. Por mim, não acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas demuitos, pois, se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo (nota: dos 501 juízes, 280 a favor e 220 contra).De Meleto, ao contrário, estou livre, me parece ainda, e isso é evidente a todos: se Anito e Licon não viessem aqui acusar-me Meleto teria sido multado em mil dracmas, não tendo obtido o quinto dos votos. XXIVEles pedem, pois, para mim, a pena de morte. Pois bem, atenienses, que contraproposta vos farei eu? A que mereço, não é assim? Qual, pois? Que pena ou multa mereço eu, que em toda a vida não repousei um momento, mas descuidando daquilo que todos tem em grande conta, a aquisição de riquezas e a administração doméstica, e os comandosmilitares, e as altas magistraturas, e as conspirações, e os partidos que surgem na cidade, conservei-me na realidade de ânimo bastante brando para que pudesse, fugindo de tais intrigas, me livrar delas, não indo aonde a minha presença não fosse de nenhuma vantagem nem para vós nem para mim mesmo? Voltava-me, ao contrário, para os lados aonde eu poderia levar, a cada um em particular, os maiores benefícios,procurando persuadir cada um de vós a não se preocupardemasiadamente com suas próprias coisas, antes que de si mesmo, para se tornar quanto mais honesto fosse possível; a não cuidar dosnegócios da cidade antes que da própria cidade, e preocupar-se, assim, do mesmo modo, com outras coisas. De que sou digno eu, tendo sido assim procedido? De um bem, cidadãos atenienses, se devo fazer uma proposta conforme o mérito; e um bem tal que me possa convir. E, que convém a um pobre benemérito que tem necessidade de estar em paz, para vos exortar ao caminho reto? Não há coisa que melhor convenha,

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cidadãos atenienses, que nutrir um tal homem a expensas do estado, no Pritaneu; merece-o bem mais que um de vós que tenha sido vencedor nos Jogos olímpicos, na corrida de de cavalos, de bigas ou quadrigas! Esse homem, porém, faça com que o sejais; ele, homem rico, não tem necessidade de que se cuide de sua subsistência, mas eu tenhonecessidade. Portanto, se devo fazer uma proposta segundo a justiça, eis o que indico para mim: ser, a expensas do Estado, nutrido no Pritaneu.XXVAo contrário, talvez vos pareça que eu, ainda falando disso, o faça com arrogância, pouco mais ou menos como quando falava da consideração e dos rogos; mas não é assim, cidadãos atenienses, antes é deste modo: estou persuadido de que não ofendo ninguém por minha vontade, mas não vos posso persuadir também disto, porque o tempo em queestamos raciocinando juntos é brevíssimo; e eu creio que, se as vossas leis, como as de outros povos, não decidissem um juízo capital em um dia, mas em muitos, vos persuadiria: ora, não é fácil, em pouco tempo, destruir grandes calúnias. Estando, pois, convencido de não ter feito injustiça a ninguém, estou bem longe de fazê-la, a mim mesmo e dizer em meu dano ,que mereço um mal, e me assinalar um de tal sorte. Que devo temer? É possível que eu não tenha de sofrer a pena que me assinala Meleto e que eu digo ignorar se será um bem ou mal? E, ao contrário disso, deverei escolher uma daquelas que sei bem ser um mal, e propor-me essa pena? O cárcere? E por que devo viver no cárcere, escravo do magistrado que o preside, escravo dos Onze. Ou uma multa, ficando amarrado, quanto não acabe de paga-la? Seria, pois, o exílio que deveria propor como pena para mim? É possível que vós me indiquei essa pena. Ah! eu teria verdadeiramente um amor excessivo à vida se fosse irrefletido aoponto de não ser capaz de refletir nisso: vós que sois meusconcidadãos acabastes por não achar meios de suportar meus sermões; estes se tornaram para vós um fardo bastante pesado e detestável para que procurei hoje livrar-vos, serão os meus sermões mais fáceis de suportar para os outros? Muito longe disso, atenienses! Bela vida, em verdade, seria a minha, nesta idade, viver fora da pátria, passando de uma cidade a outra, expulso em degredo.

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Sei bem que onde quer que eu vá, os jovens ouvirão os meus discursos como aqui: se eu os repelir, eles mesmos me mandarão embora,convencendo os velhos a fazê-lo; e se não os repelir, os seus pais e parentes me mandarão embora igualmente, com qualquer pretexto. XXVIOra, é possível que alguém pergunte: - Sócrates, não poderias tu viver longe da pária, calado e em paz? Eis justamente o que é mais difícil fazer aceitar a alguns dentre vós: se digo que seria desobedecer ao deus e que, por essa razão, eu não poderia ficar tranqüilo, não meacreditaríeis, supondo que tal afirmação é, de minha parte, uma fingida candura. Se, ao contrário, digo que o maior bem para um homem é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outrosargumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, examinando a mim mesmo e aos outros, e, que uma vida sem esse exame não é digna de ser vivida, ainda menos me acreditaríeis, ouvindo-me dizer tais coisas. Entretanto, é assim, como digo, ó cidadãos, mas não é fácil torná-lopersuasivo.E, por outro lado, não estou habituado a acreditar-me digno denenhum mal. De fato, se tivesse dinheiro, me multaria em uma soma que pudesse pagar, porque não teria prejuízo algum; mas o fato é que não tenho. Só se quiserdes multar-me em tanto quanto eu possa pagar. Talvez eu vos pudesse pagar uma mina de prata; multo-me, pois em tanto. Mas Platão, cidadãos atenienses, Críton, Cristóbolo eApolodoro me obrigam a multar-me em trinta minas, e oferecemfiança: multo-me, pois, em tanto, e eles vos serão fiadores dignos de crédito.Terceira Parte - Sócrates se despede do tribunal XXVIIPor não terdes querido esperar um pouco mais de tempo, atenienses, ireis obter, da parte dos que desejam lançar o opróbio sobre a nosso cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os assassinos de umsábio, de Sócrates. Porque, quem vos quiser desaprovar me chamará, sem dúvida, de sábio, embora eu não o seja. Pois bem, tivésseisesperado um pouco de tempo, a coisa seria resolvida por si: vós vedes, de fato, a minha idade. E digo isso não a vós todos, mas àqueles que me condenaram à morte. Digo, além disto, mais o seguinte a esses

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mesmos: É possível que tenhais acreditado, ó cidadãos, que eu tenha sido condenado por pobreza de raciocínio, com os quais eu poderia vos persuadir, se eu tivesse acreditado que era preciso dizer a fazer tudo, para evitar a condenação. Mas não é assim. Cai por falta, não de raciocínios, mas de audácia e imprudência, e não por querer dizer-voscoisas tais que vos teria sido gratíssimas de ouvir, choramingando,lamentando e fazendo e dizendo muitas outras coisas indignas, asquais, certo, estais habituados a ouvir de outros. Mas, nem mesmo agora, na hora do perigo, eu faria nada deinconveniente, nem mesmo agora me arrependo de me ter defendido como o fiz, antes prefiro mesmo morrer, tendo-me defendido desse modo, a viver daquele outro. Nem nos tribunais, nem no campo, nem a mim, nem a ninguémconvém tentar todos os meios para fugir à morte. Até mesmo nasbatalhas, de fato, é bastante evidente que se poderia evitar de morrer, jogando fora as armas e suplicando aos que perseguem: e muitosoutros meios há, nos perigos individuais, para evitar a morte se se ousa dizer e fazer alguma coisa. Mas, ó cidadãos, talvez o difícil não seja isso: fugir da morte. Bem mais difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. E agora eu, preguiçoso como sou e velho, fui apanhado pela mais lenta, enquanto os meus acusadores, válidos e leves, foram apanhados pela mais veloz: a maldade. Assim, eu me vejo condenado à morte por vós, condenados de verdade, criminosos de improbidade e de injustiça. Eu estou dentro da minha pena, vós dentro da vossa. E, talvez, essas coisas devessem acontecer mesmo assim. E creio quecada qual foi tratado adequadamente. XVIIIAgora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vós que mecondenastes, porque já estou no ponto em que os homensespecialmente vaticinam, quando estão para morrer. Digo-vos, de fato, ó cidadãos que me condenaram, que logo depois da minha morte virá uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela qual me tendes sacrificado. Fizestes isto acreditando subtrair-vos ao

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aborrecimento de terdes de dar conta da vossa vida, mas eu vosasseguro que tudo sairá ao contrário. Em maior número serão os vossos censores, que eu até agora contive, e vós reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e disso tereis maiores aborrecimentos. Se acreditais, matando os homens, entreter alguns dos vossos críticos, não pensais justo; esse modo de vos livrardes não é decerto eficaz nem belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros, mas aplicar-se a se tornar, quanto se puder, melhor. Faço, pois, este vaticínio a vós que me condenastes. Chego ao fim. XIXQuanto àqueles cujos votos me absolveram, eu teria prazer deconversar com eles a respeito deste caso que acaba de ocorrer enquanto os magistrados estão ocupados, enquanto não chega o momento de ter de ir ao lugar onde terei de morrer. Ficai, pois, comigo este pouco de tempo, ó cidadãos, porque nada nos impede de conversarmos horas juntos, enquanto de pode. É que a vós, como meus amigos, quero mostrar, que não desejo falar do meu caso presente. A mim, de fato, ó juízes - uma vez que, chamando-vos juízes vos dou o nome que vos convém - aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela minha voz habitual do demônio (daimon, gênio) em todos os tempos passados me era sempre freqüente e se oponha ainda mais nos pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males; pois bem, o sinal do deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a palavra alguma. Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu caso arrisca ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando pensamos que a morte é um mal. E disso tenho uma grande prova: que, por muito menos, o habitual signo, o meu demônio, se me teriaoposto, se não fosse para fazer alguma coisa de bm. Passemos a considerar a questão em si mesma, de como há grande esperança de que isso seja um bem.

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Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se, de fato, não há sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria um maravilhoso presente. Creio que, se alguém escolhesse a noite na qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa noite às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e noites na sua vida havia vivido melhor, e mais docemente do quenaquela noite, creio que não somente qualquer indivíduo, mas até um grande rei acharia fácil escolher a esse respeito, lamentando todos os outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a considero um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume a uma única noite. Se, ao contrário, a morte é como uma passagem deste para outro lugar, e, se é verdade o que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir, ó juízes, maior do que este? Porque, se chegarmos ao Hades, libertando-nos destes que se vangloriam serem juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos diria que fazem justiça acolá: Monos e Radamante, Éaco e Triptolemo, e tantos outros deuses e semideuses que foram justos na vida; seriaentão essa viagem uma viagem de se fazer pouco caso? Que preço não serieis capazes de pagar, para conversar com Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero?Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mimespecialmente. a conversação acolá seria maravilhosa, quando euencontrasse Palamedes e Ajax Telamônio e qualquer um dos antigos mortos por injusto julgamento. E não seria sem deleite, me parece, confrontar o meu com os seus casos, e, o que é melhor, passar o tempo examinando e confrontando os de lá com cá, os últimos dos quis tem a pretensão de conhecer a sabedoria dos outros, e acreditam ser sábios e não são. A que preço, ó juízes, não se consentiria em examinar aquele que guiou o grande exército a Tróia, Ulisses, Sísifo, ou infinitosoutros? Isso constituiriam inefável felicidade.

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Com certeza aqueles de lá mandam a morte por isso, porque além do mais, são mais felizes do que os de cá, mesmo porque são imortais, se é que o que se diz é verdade XXXMas também vós, ó juízes, deveis ter boa esperança em relação àmorte, e considerar esta única verdade: que não é possível haver algum mal para um homem de bem, nem durante sua vida, nem depois da morte, que os deuses não se interessam do que a ele concerne; e que, por isso mesmo, o que hoje aconteceu, no que a mim concerne, não é devido ao acaso, mas é a prova de que para mim era melhor morrer agora e ser libertado das coisas deste mundo. Eis também a razão por que a divina voz não me dissuadiu, e por que, de minha parte, não estou zangado com aqueles cujos votos me condenaram, nem contra meus acusadores. Não foi com esse pensamento, entretanto, que eles votaram contramim, que me acusaram, pois acreditavam causar-me um mal. Por isto é justo que sejam censurados. Mas tudo o que lhes peço é o seguinte: Quando os meus filhinhos ficarem adultos, puni-os, é cidadãos,atormentai-os do mesmo modo que eu os vos atormentei, quando vos parecer que eles cuidam mais das riquezas ou de outras coisas do que da virtude. E ,se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada,reprovai-os, como eu a vós: não vos preocupeis com aquilo que não lhes é devido. E, se fizerdes isso, terei de vós o que é justo, eu e os meus filhos. Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para deus.

Extraído de: http://www.consciencia.org/

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Três Tipos Puros de Poder Legítimo

Max Weber

Tradutor:Artur Morão

5.2. ANEXO 2 – TIPOS DE DOMINAÇÃO

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Três Tipos Puros de Poder Legítimo∗

Max Weber

Índice

Legitimidade do poder; razões de legitimidade 1Poder legal 2Poder tradicional 4Poder carismático 9

Legitimidade do poder; razões de legitimidadeO poder, isto é, a possibilidade de encontrar obediência a uma or-dem determinada, pode assentar em diferentes motivos de acatamento:pode ser condicionado apenas pela situação de interesses, portanto, porconsiderações teleológico-racionais das vantagens e desvantagens porparte de quem obedece. Ou, além disso, mediante o simples “costume”,pela habituação monótona à acção tornada familiar; ou pode ser jus-tificado pela tendência puramente afectiva, simplesmente pessoal dogovernado. Um poder que se baseasse apenas em semelhantes funda-mentos seria relativamente lábil. Nos governantes e nos governados,o poder costuma antes assentar internamente em razões jurídicas, ra-zões da “sua legitimidade”, e o abalo desta fé legitimadora costuma terconsequências de vasto alcance.

∗Tradução de Artur Morão. O ensaio, encontrado no espólio do autor, foi postu-mamente publicado por Marianne Weber nos Preußischen Jahrbücher, Vol. CLXXX-VII, 1922, pp. 1-12, com o subtítulo: Um estudo sociológico.

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Nas “razões de legitimidade” do poder há, numa forma de todopura, apenas três, das quais – no tipo puro – cada uma está ligada auma estrutura sociológica radicalmente diversa do corpo administrativoe dos meios da administração.

Poder legalI. O poder legal em virtude de estatuto. O tipo mais puro é o poderburocrático. A ideia fundamental é que, através de um estatuto arbi-trário formalmente correcto, se podia criar qualquer direito e alterar[opcionalmente o existente]. A associação de poder é ou escolhida ouimposta; ela própria e todas as suas partes são empresas. Uma em-presa (parcial) heterónoma e heterocéfala deve ter o nome de autori-dade(s). O corpo administrativo consiste em funcionários nomeadospelo senhor, os súbditos são membros da associação (“cidadãos”, “ca-maradas”).

Não se obedece à pessoa, em virtude do seu direito próprio, mas daregra estatutária que determina a quem e enquanto se lhe deve obede-cer. Quem ordena obedece também, ao promulgar uma ordem, a umaregra: à lei ou ao “regulamento”, a uma norma formalmente abstracta.O tipo daquele que ordena é o “superior”, cujo direito governativo élegitimado pela regra estatutária, dentro de uma “competência” objec-tiva, cuja limitação se funda na especialização segundo a teleologia ob-jectiva e segundo as pretensões profissionais de desempenho do ofício.O tipo do funcionário é o funcionário especializado instruído, cuja situ-ação de serviço assenta no contrato, com salário fixo, gradual de acordocom a categoria do ofício, não segundo a medida do trabalho, e com odireito a reforma segundo regras fixas da promoção. A sua administra-ção é trabalho profissional em virtude da obrigação oficial objectiva;o seu ideal é ordenar, “sine ira et studio”, sem qualquer influência demotivos pessoais ou interferências emocionais, sem arbítrio e impre-visibilidade, sobretudo “sem acepção da pessoa”, de um modo rigoro-samente formalista, segundo regras racionais e – onde estas falham –

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segundo pontos de vista de praticabilidade “objectivos”. A obrigaçãode obedecer é gradual numa hierarquia de ofícios com a submissão dosinferiores aos superiores e com processos de recurso regulamentados.A base do funcionamento técnico é: a disciplina empresarial.

1. No tipo do poder “legal” inclui-se, naturalmente, não só a es-trutura moderna do Estado e da comunidade, mas também a relaçãode domínio na empresa capitalista privada, numa associação de finsou união de qualquer espécie, que dispõe de um numeroso corpo ad-ministrativo e hierarquicamente articulado. As modernas associaçõespolíticas são apenas os representantes mais proeminentes do tipo. Opoder na empresa capitalista privada é, sem dúvida, parcialmente he-terónomo: o ordenamento é, em parte, estatalmente prescrito - e, emrelação ao corpo coercivo, inteiramente heterocéfalo: o corpo judicialestatal e o corpo policial cumprem (normalmente) estas funções - massão autocéfalos na sua organização administrativa cada vez mais buro-crática. Que a entrada na associação de pioder se siga formalmente deum modo livre em nada altera o carácter do poder, pois a notificação étambém formalmente “livre”, e isto sujeita normalmente os governadosàs normas empresariais, devido às condições do mercado de trabalho;a afinidade sociológica do carácter do poder com o moderno poder es-tatal tornará ainda mais saliente a discussão dos fundamentos econó-micos da dominação. A validade do “contrato” como base inscreve aempresa capitalista num tipo proeminente da relação de poder “legal”.

2. A burocracia é o tipo tecnicamente mais puro de poder legal.Mas nenhum poder é só burocrático, isto é, gerido apenas mediantefuncionários contratualmente recrutados e nomeados. Tal não é possí-vel. As cúpulas mais altas das associações políticas são ou “monarcas”(governantes carismáticos por herança, cf. adiante) ou “presidentes”eleitos pelo povo (portanto, senhores carismáticos plebiscitários, cf.adiante) ou eleitos por uma corporação parlamentar, onde, em seguida,os seus membros ou, melhor, os líderes, mais carismáticos ou mais no-táveis (cf. adiante), dos seus partidos predominantes, são os senhoresefectivos. Também quase em nenhum lado é, de facto, o corpo adminis-

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trativo puramente burocrático, mas nas mais variadas formas, em parteos notáveis, em parte os representantes de interesses costumam par-ticipar na administração (sobretudo, na chamada auto-administração).Decisivo é, porém, que o trabalho contínuo assente de modo preponde-rante e crescente nas forças burocráticas. Toda a história da evoluçãodo Estado moderno se identifica, em especial, com a história do fun-cionalismo moderno e da empresa burocrática (cf. adiante), tal comotoda a evolução do moderno capitalismo avançado se identifica com acrescente burocratização da empresa económica. A participação dasformas burocráticas do governo aumenta em toda a parte.

3. A burocracia não é o único tipo de poder legal. O funciona-lismo por turnos, por sorte e por escolha, a administração parlamentare por comissões e todas as espécies de corpos colegiais de governo eadministração aqui se inscrevem, na suposição de que a sua competên-cia se baseia em regras estatutárias e o exercício do direito governativocorresponde ao tipo da administração legal. Na época da emergênciado Estado moderno, as corporações colegiais contribuíram de modomuito essencial para o desenvolvimento da forma legal de poder, e aelas deve o seu aparecimento sobretudo o conceito de “autoridade”. Poroutro lado, o funcionalismo por eleição desempenha um grande papelna pré-história da moderna administração por funcionários (e tambémhoje nas democracias).

Poder tradicionalII. Poder tradicional, em virtude da fé na santidade dos ordenamentose dos poderes senhoriais desde sempre presentes. O tipo mais puro é adominação patriarcal. A associação de poder é a agremiação, o tipo dequem manda é o “senhor”, o corpo administrativo são “servidores”, osque obedecem são os “súbditos”. Obedece-se à pessoa por força da suadignidade própria, santificada pela tradição: por piedade. O conteúdodas ordens é vinculado pela tradição, cuja violação inconsiderada porparte do senhor poria em perigo a legitimidade do seu próprio poder,

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que assenta apenas na sua santidade. Criar um novo direito em facedas normas tradicionais surge, em princípio, como impossível. Na re-alidade, tem ele lugar mediante o “conhecimento” de uma proposiçãocomo “valendo desde sempre” (através da “profecia”). Pelo contrá-rio, fora das normas de tradição, a vontade do senhor está vinculadaapenas por limites que o sentimento de equidade traça no caso singu-lar, portanto, de modo extremamente elástico: o seu poder divide-se,pois, numa região estritamente cimentada pela tradição e noutra da li-vre graça e arbítrio, em que ele governa segundo o agrado, a afeição,a aversão, e sobretudo também mediante favores pessoais a pontos devista influentes. Mas na medida em que à administração e à arbitragemde conflitos estão subjacentes princípios, são eles os da sensatez éticamaterial, da justiça ou da praticabilidade utilitarista, não os de natu-reza formal, como no poder legal. De igual modo procede o seu corpoadministrativo. Consiste este em dependentes pessoais (elementos oufuncionários domésticos) ou em parentes ou amigos pessoais (favori-tos) ou naqueles que estão obrigados pelo vínculo pessoal de fidelidade(vassalos, príncipes tributários). é inexistente o conceito burocráticoda “competência” enquanto esfera de responsabilidade objectivamentedelimitada. O âmbito do “legítimo” poder de mando dos servidores in-dividuais rege-se segundo o bel-prazer singular do senhor, ao qual elesestão de todo sujeitos relativamente à sua aplicação nos papéis maisimportantes ou de categoria mais elevada. Na realidade, rege-se emgrande parte por aquilo que os domésticos se podem permitir em faceda obediência dos súbditos. Não é a obrigação nem a disciplina ofi-ciais efectivas que regulam as relações do corpo administrativo, mas afidelidade pessoal dos servidores.

Entretanto, há que atender, no tipo da sua posição, a duas formascaracteristicamente diferentes:

1. A estrutura puramente patriarcal da administração: os servido-res estão na total dependência pessoal do senhor, ou são recrutados demodo puramente patrimonial – escravos, servos, eunucos – ou extra-patrimonial a partir de estratos não de todo desprovidos de direitos: fa-

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voritos, plebeus. A sua administração é inteiramente heterónoma e he-terocéfala; no seu ofício, não há nenhum direito próprio dos que admi-nistram, mas também não qualquer selecção especializada e nenhumahonra do funcionário em virtude da sua condição social; os meios ad-ministrativos objectivos são inteiramente controlados para o senhor nasua própria gestão. Na dependência plena do corpo administrativo emrelação ao senhor falta toda a garantia contra o arbítrio senhorial, cujaextensão possível é, aqui, máxima. O tipo mais puro é o poder sul-tânico. Todos os verdadeiros regimes “despóticos” têm este carácter,no qual o domínio é tratado como um vulgar direito de propriedade dosenhor.

2. A estrutura segundo ordens [estamentos]: os servidores não sãoservidores pessoais do senhor, mas pessoas independentes, de valor eproeminência social em virtude da sua própria posição; são agraciados(realmente ou segundo uma ficção de legitimidade) com o seu ofíciopor privilégio ou concessão do senhor, ou têm mediante uma transac-ção legal (compra, penhor, renda) um direito seu, não arbitrariamentedirimível, ao cargo por eles apropriado [adquirido], a sua administra-ção é correlativa, embora limitada, autocéfala e autónoma, os meiosobjectivos de administração encontram-se sob o seu controlo, não dosenhor: domínio de ordens. – A concorrência dos detentores do cargoem torno da esfera do poder dos seus ofícios (e das suas receitas) con-diciona, em seguida, a delimitação recíproca, quanto ao conteúdo, dassuas esferas administrativas e está no lugar da “competência”. A arti-culação hierárquica é, muitíssimas vezes, furada pelo privilégio ([de]non evocando, non apellando). Falta a categoria da “disciplina”. Atradição, o privilégio, as relações feudais ou patrimoniais de fidelidade,a honra ligada à ordem e a “boa vontade” regem as relações globais.O poder dos senhores está, portanto, dividido entre o senhor e o corpoadministrativo por apropriação e privilégio, e esta divisão do poder porordens estereotipa em grau elevado a natureza da administração.

O domínio patriarcal (do pai-de-famílias, do chefe de clã, do “paido povo”) é apenas o tipo mais puro do poder tradicional. Todo o tipo

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de “governo” que reclama com êxito uma autoridade legítima, unica-mente em virtude do costume implantado, pertence à mesma categoriae só não apresenta um cunho tão claro. A piedade instilada pela edu-cação e pelo costume na relação da criança ao chefe de família é omais típico contraste, por um lado, com a situação de um trabalhadorcontratualmente assalariado numa empresa, por outro, com a relaçãoemocional de fé de um membro da comunidade a um profeta. E a asso-ciação doméstica é também, de facto, uma célula nuclear das relaçõestradicionais de poder. Os “funcionários” típicos do Estado patrimo-nial e feudal são funcionários domésticos com tarefas ligadas apenasà manutenção da casa (mordomo-mor, camareiro, marechal, copeiro,senescal, regente).

A coexistência das esferas fortemente ligadas pela tradição e das es-feras livres da acção é comum a todas as formas tradicionais de poder.No seio destas esferas livres, a acção do senhor, ou do seu corpo admi-nistrativo, deve ser comprada ou alcançada através de relações pesso-ais. (O sistema de taxas tem aqui uma das suas origens.) A ausênciadecisivamente importante do direito formal e, em vez dele, o domíniode princípios materiais na administração e na arbitragem dos litígios é,de igual modo, comum a todas as formas tradicionais de poder e tem,em especial, consequências de longo alcance para a relação com a eco-nomia. O patriarca, tal como o soberano patrimonial, governa e decidesegundo os princípios da “justiça do cádi”: por um lado, ligada forte-mente à tradição, mas na medida em que esta vinculação permite umaliberdade, segundo pontos de vista informais e irracionais de equidadee de justiça do caso singular, e decerto também “em consideração dapessoa”. Todas as codificações e leis do soberano patrimonial respi-ram o espírito do chamado “Estado de benefícios”: uma combinaçãode princípios ético-sociais e de princípios utilitarístico-sociais dominae imbui toda robustez formal do direito.

A separação entre a estrutura patriarcal e a estrutura por ordensde poder tradicional é fundamental para toda a sociologia do Estadoda época pré-burocrática. (No seu âmbito total, o contraste só se torna

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compreensível em conexão com a sua ulterior vertente económica, aindaa discutir: separação do corpo administrativo dos meios materiais deadministração ou apropriação dos meios objectivos de administraçãopelo corpo administrativo.) A questão plena de se e que “ordens” houvecomo portadores dos bens culturais ideais está assim, em primeira li-nha, historicamente condicionada. A administração por meio de depen-dentes patrimoniais (escravos, servos), como se encontra no PróximoOriente e no Egipto até ao tempo dos Mamelucos, é o tipo mais ex-tremo e, aparentemente (nem sempre de facto), o mais consequente dodomínio puramente patriarcal, sem quaisquer ordens. A administraçãopor meio de plebeus livres encontra-se relativamente perto do funcio-nalismo racional. A administração por letrados pode, quanto ao seucunho, ter um carácter muito diferente (contraste típico: os brâmanesfrente aos mandarins e, por seu turno, ambos frente aos clérigos budis-tas e cristãos). Mas aproxima-se sempre mais do tipo de ordens [esta-mentos]. Este é representado, com toda a clareza, pela administraçãoaristocrata, na forma mais pura pelo feudalismo, que põe a relação defidelidade inteiramente pessoal e o apelo do cavaleiro agraciado como ofício à honra da sua ordem no lugar da obrigação oficial objectiva-mente racional.

Todos os tipos de domínio das ordens, baseada na apropriação maisou menos fixa do poder administrativo, se encontram numa situaçãomais próxima do patriarcalismo e do domínio legal do que aqueles que,em virtude de garantias, rodeiam os poderes dos privilegiados, têm ocarácter de um “título legal” muito particular (consequência da “divi-são do poder” das ordens), ausente nas formas patriarcais com as suasadministrações inteiramente sujeitas ao arbítrio do senhor. Por outrolado, a apertada disciplina e o inexistente direito próprio do corpo ad-ministrativo no patriarcalismo acercam-se mais, tecnicamente, da dis-ciplina oficial da dominação legal do que a administração das formasdas ordens, repartida e, portanto, estereotipada mediante a apropriação,e a utilização de plebeus (juristas) no serviço dos senhores na Europatornou-se justamente o predecessor do Estado moderno.

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Poder carismáticoIII. Poder carismático, mediante a dedicação afectiva à pessoa do se-nhor e aos seus dons gratuitos (carisma), em especial: capacidades má-gicas, revelações ou heroísmo, poder do espírito e do discurso. O eter-namente novo, o fora do quotidiano, o nunca acontecido e a sujeiçãoemocional são aqui as fontes da rendição pessoal. Os tipos mais purossão a autoridade do profeta, do herói guerreiro, do grande demagogo.A associação de domínio é a agremiação na comunidade ou o séquito.O tipo daquele que ordena é o chefe. O tipo de quem obedece é o “dis-cípulo”. Obedece-se, com toda a exclusão, de modo puramente pessoalao chefe por mor das suas qualidades pessoais, fora do habitual, nãopor causa da posição estatutária ou da dignidade tradicional. Portanto,também só enquanto estas qualidades lhe são atribuídas: o seu carismapreserva-se mediante a sua demonstração. Quando ele é “abandonado”pelo seu deus, ou despojado da sua da força heróica e da fé das massasna sua qualidade de chefia, desvanece-se o seu poder. O corpo admi-nistrativo é escolhido segundo o carisma e a dedicação pessoal: não,por contraste, segundo a qualificação profissional (como o funcioná-rio), nem segundo a ordem (como o corpo administrativo estamental),nem segundo a dependência doméstica ou outra dependência pessoal(como, por contraste, o corpo administrativo patriarcal). Está ausenteo conceito racional da “competência” e também o conceito de “privilé-gio”, peculiar às ordens. Para o âmbito da legitimação do seguidor oudiscípulo indigitado é determinante apenas a missão do senhor e a suaqualificação carismática pessoal. à administração – na medida em queeste nome é adequado – falta toda a orientação por regras, quer estatutá-rias quer tradicionais. Caracteriza-a a revelação imediata ou a criaçãoimediata, a acção e o exemplo, a decisão de caso a caso, portanto –avaliada segundo o critério dos ordenamentos estatutários – irracional.Não está ligada à tradição: para os profetas vale o “está escrito, maseu digo-vos”; para os heróis guerreiros esbatem-se os ordenamentoslegítimos frente à nova criação em virtude do poder da espada; parao demagogo, graças ao “direito natural” revolucionário por ele procla-

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mado e sugerido. A forma genuína da carismática norma jurídica e daarbitragem dos conflitos é a proclamação da sentença pelo senhor oupelos “sábios” e o seu reconhecimento pela comunidade (de armas oude fé), que é obrigatório, no caso de não surgir uma norma concorrentede outro com a pretensão à validade carismática. Neste caso, ocorreuma luta de chefes a decidir, em última análise, só mediante a con-fiança da comunidade; nela o direito só pode existir num lado, e nooutro, a injustiça sujeita à reparação.

a) O tipo do poder carismático foi desenvolvido, de modo brilhante,primeiro, por R. Sohm no seu direito eclesiástico para a comunidadecristã primitiva - ainda sem saber que se tratava de um tipo puro − aexpressão foi, desde então, utilizada de muitos modos, sem o conheci-mento do alcance. - O passado mais antigo, além de enunciados me-nores de poder “estatutário” que, sem dúvida, de nenhum modo estãode todo ausentes, conhece a divisão do conjunto de todas as relaçõesde domínio em tradição e carisma. Ao lado do “chefe económico” (Sa-chem)1 dos índios, uma figura essencialmente tradicional, encontra-seo chefe guerreiro carismático (que corresponde ao alemão “Herzog”)com o seu séquito. As expedições de caça e de guerra, que exigemum chefe munido pessoalmente de qualidades fora do habitual, são oslugares da chefia mundana, a magia é o lugar “espiritual” da chefiacarismática. Desde então, o poder carismático sobre os homens atra-vessa os séculos com os profetas e os chefes guerreiros de todas asépocas. O político carismático –“demagogo”– é o produto da cidade-Estado ocidental. Na cidade-Estado de Jerusalém emergiu ele apenasna indumentária religiosa, como profeta; a constituição de Atenas, pelocontrário, foi, desde as inovações de Péricles e Efialtes, inteiramente ta-lhada para a sua existência, e sem ela a máquina estatal não funcionariaum só instante.

b) O poder carismático assenta na “fé” no profeta, no “reconheci-mento” que o herói guerreiro carismático, o herói da rua ou o demagogo

1 Título de um chefe dos Indios norte-americanos , sobretudo do chefe de unaconfederação das tribos algonquinas da costa atlântica do Norte. [N.T.]

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pessoalmente encontra e que com ele se desvanece. De igual modo,não deriva a sua autoridade, por exemplo, deste reconhecimento pelosgovernados. Mas, ao invés, a fé e o reconhecimento surgem como obri-gação, cujo cumprimento o carismaticamente legitimado para si exige,e cuja infracção ele vinga. O poder carismático é, decerto, um dosgrandes poderes revolucionários da história, mas, na sua forma maispura, é de carácter plenamente autoritário, dominador.

c). é evidente que a expressão “carisma” se usa aqui num sentidode todo axiologicamente neutro. O acesso de raiva do “berserker”2

nórdico, os milagres e as revelações de qualquer profecia evasiva, osdons demagógicos de Cléon são, para a sociologia, um “carisma” tãobom como as qualidades de Napoleão, Jesus, Péricles. Pois, para nós,é apenas decisivo se eles apareceram e agiram como carisma, isto é,se encontraram reconhecimento. Para tal, o pressuposto fundamentalé a “comprovação”: pelo milagre, pelo êxito, pela prosperidade do sé-quito ou dos súbditos deve o senhor carismático comprovar-se como“por graça de Deus”. Só surge como tal enquanto pode. Se o êxitolhe é recusado, vacila o seu domínio. O conceito carismático da “graçade Deus” teve, onde ele existiu, consequências decisivas. O monarcachinês estava ameaçado na sua posição logo que a seca, a inundação,o insucesso no campo de batalha ou outras desgraças deixavam trans-parecer como incerto se ele estava na graça do céu. Auto-acusação epenitência públicas, em desgraças persistentes: ameaçavam-no a depo-sição e, eventualmente, a imolação. A abonação pelo milagre é exigidaa cada profeta (ainda a Lutero pelos habitantes de Zwickau).

Também a existência da maior parte das relações de poder, legaissegundo o seu carácter básico, assenta, tanto quanto na sua estabilidadese expressa a fé legitimadora, em fundamentos mistos. O costume tra-dicional e o “prestígio” (carisma) coadunam-se com a fé - em últimaanálise, também implantada - no significado da legalidade formal: o

2 Termo derivado do norueguês antigo “berserkr”, para indicar um guerreiro es-candinavo que em plena batalha se entregava a acessos de rancor e era consideradoinvulnerável. [N.T.]

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abalo de um deles por exigências inabituais, em face da tradição, feitasaos governados, por um infortúnio extraordinário que aniquila o pres-tígio, ou pela infracção da correcção legal formal habitual, faz vacilarem igual medida a fé legitimadora. Mas em todas as relações de po-der é decisivo, para a consistência incessante da obediência efectivados governados, sobretudo o facto da existência do corpo administra-tivo e da sua acção incessante, dirigida à execução dos regulamentose à coacção (directa ou indirecta) da sujeição à autoridade. A garantiadesta acção, que leva a cabo o domínio, é o que se pretende dizer coma expressão “organização”. Por seu turno, para a lealdade ao senhor,tão importante em toda a parte, do corpo administrativo é decisiva asua solidariedade de interesses com o senhor - tanto do ponto de vistaideal como material. às relações do senhor com o corpo administrativoaplica-se, comummente, esta proposição: que, em geral, em virtude doisolamento dos membros desse corpo e da solidariedade de cada mem-bro com ele, o senhor é o mais forte frente a todo o indivíduo que seopõe, mas é, em seguida, o mais fraco em face de todos no seu con-junto, quando eles - como por vezes fizeram numerosas categorias depessoal do passado e do presente - se associam. Mas necessita-se deuma aliança planeada dos membros do corpo administrativo para, gra-ças à obstrução ou à medida oposta consciente, se paralisar a influênciado senhor sobre o agir associativo e, deste modo, o seu domínio. Eigualmente se necessita da criação de um corpo administrativo próprio.

d) O poder carismático é uma relação especificamente inabitual,uma relação social puramente pessoal. Na existência contínua, masnão mais tarde do que com a remoção do portador pessoal do carisma,a relação de domínio - no último caso, então, se ela se não extingue deimediato, mas de qualquer modo persiste e, portanto, a autoridade dosenhor passa para os sucessores – tem a tendência para se banalizar:

1. Mediante a tradicionalização dos ordenamentos. Em vez da novacriação carismática incessante no direito e nos decretos administrati-vos pelo portador do carisma ou pelo corpo administrativo carismatica-

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mente qualificado surge a autoridade dos preconceitos e das precedên-cias, que eles criaram ou que lhes foram atribuídos;

2. Mediante a transição do corpo administrativo carismático, o dis-cipulado ou o séquito, para um corpo legal ou de ordens, pela aceitaçãode direitos governativos internos ou apropriados por privilégio (feudos,prebendas);

3. Através da remodelação do sentido do próprio carisma. Paratal é decisivo o tipo de solução da questão candente do problema dasucessão a partir de razões ideais e (muitas vezes, sobretudo) materiais.

Esta é possível de modos diferentes: a simples espera passiva daemergência de um novo senhor carismaticamente acreditado ou quali-ficado costuma ser substituída pelo procedimento activo em vista da suaobtenção, sobretudo quando o seu aparecimento se faz esperar e fortesinteresses, seja qual for a sua natureza, estão ligados à persistência daassociação de domínio.a) Pela demanda de características da qualificação carismática. Umtipo razoavelmente puro: a busca do novo Dalai Lama. O carácterfortemente pessoal, inabitual, do carisma converte-se numa qualidadedeterminável segundo regras.

b) Pelo oráculo, pela sorte ou por outras técnicas da designação. Afé na pessoa do carismaticamente qualificado transforma-se assim emfé na técnica em causa.

c) Pela designação do carismaticamente qualificado:1. Pelo próprio portador do carisma: designação dos seguidores,

uma forma muito frequente, tanto nos profetas como nos chefes guer-reiros. A fé na legitimidade própria do carisma muda-se assim em fé naherança legítima do poder, em virtude da designação jurídica e divina.

2. Pelo discipulado ou séquito carismaticamente qualificado soba adição do reconhecimento por parte da comunidade religiosa e/oumilitar. A concepção como direito de “escolha” ou de “eleição preli-minar” para este procedimento é secundária. Este conceito modernodeve de todo evitar-se. Segundo a ideia originária, não se trata de uma“votação” acerca dos candidatos à eleição, entre os quais existe uma

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escolha livre, mas de um estabelecimento e reconhecimento do senhor“genuíno”, do senhor chamado à sucessão enquanto carismaticamentequalificado. Uma “falsa” escolha era, portanto, uma injustiça a expiar.Eis o postulado essencial: deveria ser possível intentar a unanimidade,o contrário seria um erro e uma fraqueza.

Vigorava então, em cada caso, a fé, não já na pessoa só enquantotal, mas na pessoa do senhor “genuína” e “validamente” designada e(eventualmente entronizada) ou, aliás, indigitada para o poder, à ma-neira de um objecto de posse.

3. Pelo “carisma hereditário” na concepção de que a qualificaçãocarismática residia no sangue.

O pensamento, óbvio em si, é sobretudo o de um “direito heredi-tário” ao poder. Esta ideia só se tornou predominante no Ocidente, naIdade Média. Muitíssimas vezes, o carisma é inerente apenas ao clã esomente o novo portador imediato deve ser estabelecido de modo par-ticular: segundo uma das regras e dos métodos mencionados em a)-c).Onde, relativamente à pessoa, existem regras fixas, estas não são uni-formes. Só no Ocidente medieval e no Japão é que se impôs de ummodo inteiramente unívoco o “direito de primogenitura” na coroa, emgrande parte para o aumento da estabilidade do domínio local, pois to-das as outras formas levam a conflitos internos.

A fé já se não põe então só na pessoa enquanto tal, mas no “le-gítimo” herdeiro da dinastia: o carácter só imediato e extraordináriodo carisma é transformado de um modo muito fortemente tradicionali-zante e altera-se também de todo, no seu sentido, o conceito da “graçade Deus” (= senhor por pleno direito próprio, não em virtude do ca-risma pessoal reconhecido pelos governados). A pretensão dos senho-res é, em seguida, totalmente independente das qualidades pessoais.

4. Por meio da banalização ritual do carisma: a fé de que existe umaqualidade mágica transferível ou gerável por uma espécie determinadade hierurgia: unção, imposição das mãos ou outros actos sacramentais.

A fé já se não põe, então, na pessoa do portador do carisma –pelocontrário, a pretensão de domínio (como se levou a cabo de modo es-

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pecialmente claro mediante o princípio católico do carácter indeléveldo sacerdote) é de todo independente das suas qualidades– mas põe-sena eficácia do respectivo acto sacramental.

5. O princípio carismático da legitimidade interpretado autoritari-amente segundo o seu sentido primário pode reinterpretar-se de modoanti-autoritário. A validade efectiva do poder carismático assenta noreconhecimento da pessoa concreta enquanto carismaticamente quali-ficada e comprovada pelos governados. Segundo a concepção genuínado carisma, este reconhecimento é devido ao pretendente legítimo, por-que qualificado. Esta situação pode, entretanto, ser facilmente reinter-pretada de maneira que o livre reconhecimento pelos governados seja,por seu lado, o pressuposto da legitimidade e o seu fundamento (legi-timidade democrática). Em seguida, o reconhecimento torna-se “esco-lha” e o senhor, legitimado em virtude do carisma próprio, torna-se umdetentor do poder pela graça dos governados e por força do mandato.Tanto a nomeação pelo séquito como a aclamação pela comunidade(militar ou religiosa), como o plebiscito, assumiram muitas vezes, his-toricamente, o carácter de uma selecção levada a cabo por votação efizeram assim do senhor, escolhido segundo as suas pretensões caris-máticas, um funcionário escolhido pelos governados somente segundoo seu bel-prazer.

Desenvolve-se igualmente o princípio carismático de que uma normajurídica carismática da comunidade (comunidade de armas ou comuni-dade religiosa) deve ser promulgada e por ela reconhecida; e, portanto,a possibilidade existente de normas diferentes e antagónicas entraremem competição e de, em seguida, se chegar à decisão por meios caris-máticos, em última análise, pelo acolhimento que a comunidade faz danorma correcta, facilmente se converte na concepção - legal - de queos governados decidem livremente, através da manifestação voluntária,sobre o direito que deve vigorar, e que o número dos votos seja para talo meio legítimo (princípio da maioria).

A diferença entre um chefe eleito e um funcionário eleito fica a ser,então, simplesmente a do sentido que o próprio eleito dá e – segundo as

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suas qualidades pessoais – pode dar, frente ao pessoal e aos governados,à sua conduta; o funcionário comporta-se inteiramente como mandatá-rio do seu senhor, aqui, portanto, dos eleitores, o chefe comporta-secomo exclusivamente atido à responsabilidade própria; este, portanto,enquanto reivindica com êxito a sua confiança, agirá inteiramente se-gundo a discrição própria (democracia de líderes) e não, como o funci-onário, de harmonia com a vontade expressa ou presumida (num “man-dato imperativo”) dos eleitores.

Nota doTradutor

Este texto aparece no volume Max WEBER, Três tipos de poder eoutros escritos, Tribuna da História, Lisboa, 2005. O leitor poderá aquiencontrar ainda: “O sentido da neutralidade axiológica das ciênciassociológicas e económicas” (1917), “O Socialismo” (1918), “A políticacomo vocação” (1919). – As obras de Max Weber em alemão estão, emparte, disponíveis no seguinte electro-sítio:

• Max Weber. Ausgewählte Schriften

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O Poder Judiciário possui um impacto significativo na elaboraçãodas políticas públicas: os tribunais influenciam o que

Schattschneider (1960) chamava de “definição das alternativas” pelosistema político. No entanto, essa afirmação simples é mais complica-da do que parece, especialmente no contexto latino-americano, em queespecialistas levaram muitos anos após as transições dos regimes mili-tares para direcionar sua atenção para o papel dos tribunais nas políti-cas públicas e na governabilidade. Cada vez mais, a visão clássica dostribunais como instâncias estritamente legais tem sido contestada pe-las crescentes evidências de seu papel político e de seu impacto diárionas políticas públicas. Mas a despeito desses desenvolvimentos, o pa-pel do Judiciário na arena das políticas públicas permanece nebulosotanto no Brasil quanto no resto da América Latina1.

O propósito deste artigo é pensar sistematicamente o papel do Judiciá-rio no sistema político brasileiro e, em particular, na formulação de po-líticas públicas. Com isso, não quero sugerir que os trabalhos que o an-

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*Gostaria de agradecer os comentários e críticas oferecidas por dois pareceristas anôni-mos da Dados; por Luciana Gross Cunha, Vitor Ferraz e Andrei Koerner; e pelos partici-pantes do grupo que este último organizou para discutir assuntos relacionados à justiçano 3o Congresso Latinoamericano de Ciência Política, realizado na Universidade Esta-dual de Campinas – Unicamp, em setembro de 2006. O artigo também se beneficiou deuma valiosa assessoria editorial de Simone Costa, Josué Nóbrega, Elisabeth Lissovsky eMônica Farias. Os erros remanescentes são de total responsabilidade do autor.

DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 50, no 2, 2007, pp. 229 a 257.

O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil*

Matthew M. Taylor

5.3. ANEXO 3 – JUDICIALIZAÇÃO

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tecedem não sejam de grande valia nesse sentido. Uma crescente ondade importantes estudos trata do Judiciário e da judicialização da políti-ca no Brasil, analisando como e sob que condições os tribunais influen-ciam as decisões tomadas no âmbito dos poderes Executivo e Legislati-vo. Apesar desses estudos sobre o papel político do Judiciário, a ciên-cia política tem demorado a incorporar o Judiciário à análise da toma-da de decisões governamentais pelo sistema político como um todo.Fora um núcleo restrito de cientistas políticos, poucos integrantes domainstream da ciência política brasileira incorporam o Judiciário àssuas análises com a mesma profundidade com que consideram o siste-ma partidário, o Legislativo e o Executivo ou, até mesmo, os movimen-tos sociais, as burocracias públicas ou as instituições econômicas.

Os tribunais agem em três dimensões de relevância para a ciência polí-tica, que podem ser descritas como as dimensões hobbesiana, smithia-na e madisoniana. Estas dimensões têm impactos importantes, respec-tivamente, no monopólio da violência pelo Estado, nas regras de fun-cionamento da economia e na relação entre os poderes Executivo, Le-gislativo e Judiciário2. Enfocarei aqui principalmente a dimensão ma-disoniana da relação entre os três poderes e, em particular, os impactosque os tribunais podem ter na formulação de políticas públicas peloExecutivo e pelo Legislativo, na deliberação e na implementação des-sas políticas no plano federal. Não se trata de uma pesquisa empírica,mas, sim, de uma tentativa de descrever o estado da literatura existen-te e propor novas direções para pesquisas futuras, tendo como base asjá existentes.

O texto está dividido em duas partes. Na primeira, procuro sumarizarrapidamente a importância para a ciência política de integrar melhor aintervenção judicial às nossas análises do processo de formação e ado-ção de políticas públicas. Na segunda, procuro avaliar os principais fa-tores que influenciam o impacto do Judiciário na formulação das polí-ticas públicas.

O JUDICIÁRIO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

No Brasil, não existe o “persistent neglect of courts” (desprezo persisten-te dos tribunais), que é motivo de fortes críticas em outras regiões domundo (Epstein, Knight e Shvetsova, 2001). Diversos livros, artigos eteses publicados recentemente sobre o papel político do Judiciário en-fatizam a influência desse Poder no processo político e seu impacto na

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realidade política resultante3. No entanto, apesar do vasto conjunto detrabalhos que tratam especificamente dos tribunais, a maior parte dosestudos sobre o sistema político brasileiro ignora o papel político delesna hora de descrever o processo decisório no sistema político como umtodo. Como conseqüência, no sofisticado debate sobre instituições po-líticas brasileiras – e, em especial, sobre o presidencialismo de coalizão–, os tribunais mal aparecem e raras vezes são usados para explicar osresultados da política. As conseqüências da não consideração do Po-der Judiciário para o entendimento do processo de formação de políti-cas públicas podem ser graves, como mostro a seguir.

É lugar-comum o argumento de que um Judiciário que funciona bemserve de contrapeso aos outros poderes governamentais, provendo ga-rantias para a separação entre os poderes e para a proteção das minori-as (Madison, Hamilton e Jay, 1961; Montesquieu, 1990). No entanto, oJudiciário é inerentemente passivo e precisa ser acionado por atoresexternos para que tenha qualquer efeito. Por isso, o grau com que o Ju-diciário é invocado para servir como árbitro nos conflitos entre as for-ças ou instituições políticas depende não apenas da força dos tribu-nais, mas também, de forma mais abrangente, dos padrões da disputapolítica.

A análise da política brasileira tende a variar entre dois extremos4. Deum lado, há uma tendência que vê o sistema político como excessiva-mente consensual, repleto de jogadores de veto, o que tornaria o pro-cesso decisório intrinsecamente problemático. Em tal cenário, somentepropostas que têm o apoio de uma ampla maioria podem ser aprova-das. Nesse sistema político atomizado, muitos fatores restringem oprocesso decisório: 1) um Congresso fraco, em que a representaçãodesproporcional fortalece os Estados pequenos, enquanto os frágeismecanismos de accountability eleitoral – resultado do sistema de repre-sentação proporcional com lista aberta – favorecem grupos de interes-se organizados e facilitam a constante troca partidária; 2) um sistemapartidário fraco, que permite a existência de um grande número departidos fragmentados, instáveis e regionalizados; 3) a fraqueza do ga-binete presidencial cujos ministérios são utilizados em parte como uminstrumento para assegurar a manutenção das coalizões legislativas;4) a natureza do Estado e, especialmente, dos servidores públicos, quetendem a lutar veementemente pela preservação de seus privilégiosdentro da burocracia estatal; 5) um Senado com poderes sem paralelopara interferir em muitas questões políticas; e 6) o federalismo e, em

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particular, os poderosos governadores, especialmente o impacto delesnas discussões sobre assuntos fiscais da federação5. Sob essa ótica, po-tenciais entraves institucionais existem em abundância: como notaKinzo (2001:11), a representação política no Brasil “reproduz à enési-ma potência o sistema de contrapesos do modelo madisoniano”.

Do outro lado do debate, outra corrente de cientistas políticos sugereque o sistema político pode ser mais majoritário do que se pensa (nosentido da palavra majoritarismo pretendido por Lijphart, 1999) e queo processo decisório e a mudança das políticas públicas não é tão difícile custosa quanto os primeiros apontam. Dentre os fatores citados poresse grupo estão: 1) o forte controle do presidente sobre a agenda polí-tica, facilitado pela concentração dos poderes orçamentários no Execu-tivo, e os fortes poderes legislativos exercidos pelo presidente; 2) me-canismos robustos de controle partidário na arena legislativa (mas nãona eleitoral); e 3) o poder do colégio de líderes na Câmara dos Deputa-dos, que permite um forte controle sobre a agenda legislativa, geral-mente por parte de aliados com estreita relação com o Poder Executi-vo6. Como notam Figueiredo e Limongi (1999:24), apenas 0,026% daspropostas do Executivo votadas pelo Congresso foram rejeitadas noperíodo posterior à Constituição de 1988. Enfim, existe uma abundân-cia de regras internas que facilitam o controle do Congresso por alia-dos do governo e aumentam os incentivos para a cooperação dos con-gressistas com o Poder Executivo.

Como em todo debate acadêmico bipolar, essas duas visões são menosdicotômicas e mutuamente excludentes do que a perspectiva rígida eunidimensional oferecida pelos mais ferrenhos defensores de cadalado. De fato, há um meio-termo considerável, se não por outra razão,pelo fato de que a experiência política pós-autoritária tem sido marca-da por uma evolução constante tanto das regras institucionais quantodos atores envolvidos, o que sugere que ambos os lados podem ter tidorazão em distintos momentos. Pereira e Mueller (2003:737-738) argu-mentam, por exemplo, que, de um lado, o processo decisório é descen-tralizado pelas regras eleitorais (particularmente a representação pro-porcional com lista aberta), pelo sistema multipartidário e pelo federa-lismo, mas, por outro lado, eles notam que o processo decisório é cen-tralizado pelas regras internas do processo decisório dentro do Con-gresso e pelos fortes poderes legislativos e orçamentários do Executi-vo. O resultado é um delicado equilíbrio entre a centralização e a des-centralização do processo decisório. O sucesso deste depende da capa-

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cidade do presidente e do colégio de líderes de prover os benefícioseleitorais e orçamentários para aglutinar aliados em potencial. Sobuma liderança habilidosa, é possível criar o que Amorim Neto, Cox eMcCubbins (2003) denominam de “parliamentary agenda cartel” (cartelde controle de agenda parlamentar), em que a agenda legislativa e aspropostas de lei podem ser negociadas entre o Poder Executivo e os lí-deres dos partidos políticos aliados antes que qualquer proposta sejalevada para votação. Tal arranjo permite que potenciais jogadores deveto sejam barrados da deliberação política, evitando-se a perda docontrole da agenda. O cartel limita a participação a um pequeno grupode líderes partidários interessados em atingir seus objetivos dentro damaioria e sem custosas negociações com a oposição7.

Dada a coexistência, no período pós-constituinte, de fases de significa-tiva reforma e fases caracterizadas pelo rent-seeking caótico e indisci-plinado, torna-se clara a presença de um delicado equilíbrio entre pro-cessos decisórios centralizados e descentralizados no sistema políticobrasileiro. Esse equilíbrio depende do assunto em pauta, da populari-dade do Executivo, da proximidade das eleições e de inúmeros outrosfatores conjunturais.

Mas onde se encaixa o Judiciário diante dessas visões do sistema políti-co brasileiro?

Com exceção de Stepan (2000), que incorpora o Judiciário como um fa-tor “demos-constraining” (antimajoritário), poucos cientistas políticosconsideram a atuação do Judiciário ao estudarem a tomada de decisõespelo sistema político brasileiro. Alguns comentam en passant a possívelimportância dos tribunais. Ames, por exemplo, observa em nota de ro-dapé que, “embora a discussão sobre jogadores de veto esteja centradaem presidente e partidos, a questão claramente possui implicaçõespara outros atores institucionais. Em sistemas com muitos jogadoresde veto, judiciários e burocracias tipicamente possuem amplos papéislegislativos” (2001:17, tradução do autor).

Mesmo quando o Judiciário é incluído em estudos abrangentes sobre osistema político brasileiro, a análise geralmente restringe-se a enfati-zar sua implicação no campo hobbesiano da segurança pública (ver Pe-reira, 2000) ou no campo smithiano, dando respaldo aos contratos es-senciais à economia de mercado moderna (ver Castelar Pinheiro,2000). Pouca atenção se volta para sua dimensão madisoniana de em-bate entre os três poderes, especialmente no tocante à elaboração das

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políticas públicas. Em parte, diga-se de passagem, essa falha se deve àdificuldade de traduzir o impacto do Judiciário em termos claros e ob-jetivos. Regras eleitorais, manobras parlamentares e a estrutura doExecutivo são temas de interesse comum entre os cientistas políticos. OJudiciário fica – juntamente com a autoridade monetária e as agênciasreguladoras – como um tema marginal e tido como acessível somente aespecialistas. Um tema cujo possível impacto é reconhecido somentequando ocorre uma atuação inesperada.

Essa postura, no entanto, é um erro que afeta significativamente a rela-ção entre as análises dos cientistas políticos e o real funcionamento dosistema político. Considerando apenas as políticas implementadaspelo governo federal, pode-se observar que a localização do Brasil nadimensão majoritária-consensual da democracia varia de acordo como estágio do processo político, ou seja: o sistema é altamente majoritá-rio quando se trata do processo de deliberação de políticas públicas,mas tende para a forma consensual durante o processo de implementa-ção das políticas. O Judiciário – juntamente com os governadores, pre-feitos e burocracias estatais, que também podem ter um impacto signi-ficativo na implementação das políticas públicas – desempenha umpapel extremamente relevante para explicar essa dualidade. Os tribu-nais ampliam o leque de atores que podem influenciar a implementa-ção de políticas públicas, mesmo depois de elas serem aprovadas poramplas maiorias legislativas.

Além dessa ampliação do leque de possíveis atores, existe um outromotivo que torna essencial incorporar o Judiciário de forma mais obje-tiva: o crescente reconhecimento pelos cientistas políticos de que osgrupos de interesse procuram o local institucional mais favorável paracontestar as políticas públicas (“venue-seeking”), seja esse local o Judi-ciário, as agências reguladoras ou as burocracias específicas. O concei-to de “venue-seeking” sugere que os atores políticos procuram as instân-cias institucionais que mais lhes convêm. Por uma série de razões rela-cionadas à capacidade do Judiciário de impor suas decisões (discuti-das na próxima seção), não é de estranhar que ele venha sendo usadocrescentemente como um “venue” importante para a contestação daspolíticas públicas.

Uma parte do debate sobre a atuação do Poder Judiciário, principal-mente a análise da prerrogativa de revisão de constitucionalidade, en-foca o impacto dele sobre as políticas públicas. Por um lado, Arantes

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(2005:232) argumenta que o Judiciário tem tido um papel significativona tomada de decisões, “acentuando ainda mais o modelo consensualda democracia brasileira”. Do outro, Koerner afirma que o SupremoTribunal Federal – STF tem agido cautelosamente. Segundo o autor, noperíodo pós-Constituinte, o STF “não funcionou como instituição con-tra-majoritária, que permitia o veto às reformas políticas, nem foi cau-sador de incerteza e ingovernabilidade” (2005:24).

Adiante, argumentarei que o Judiciário federal – como um todo, nãome restringindo tão-somente ao STF8 – tem tido, e provavelmente con-tinuará tendo, um impacto nas políticas públicas adotadas pelo gover-no federal, permitindo que algumas vozes minoritárias sejam incorpo-radas, ainda que minimamente ou de forma marginal, na elaboraçãodessas políticas. Mesmo que não tivesse tido nenhum impacto nas pri-meiras duas décadas da Nova República, a análise apresentada aquinão seria em vão, da mesma forma que analisar um Congresso subser-viente ao Executivo não é um exercício meramente acadêmico, já que oestudo dessa relação nos ajuda a entender suas conseqüências práticase as possíveis repercussões de eventuais mudanças institucionais.

Em relação ao impacto do Judiciário nas políticas públicas federais, asevidências disponíveis sugerem que o Judiciário tem sido acionadoconstantemente, tanto com base na Constituição quanto na legislaçãoinfraconstitucional, para deliberar sobre políticas públicas contencio-sas. Estou de acordo com Koerner (2005) quando ele argumenta que oSTF, em particular, tem agido de forma muito cautelosa e até conserva-dora para evitar alargar potenciais conflitos com o Executivo. Esse ar-gumento é comum na literatura mundial sobre os tribunais, já que elesnão podem atuar sem correr o risco de perder o seu poder para um Exe-cutivo cioso das próprias prerrogativas9.

Vanberg (2001), utilizando um modelo baseado na teoria dos jogospara modelar as relações entre Legislativo e Judiciário, demonstra que– sob condições de transparência – quanto maior o apoio público dadoà atuação do tribunal, menor será a deferência dele ao Legislativo.Caso a legislação questionada seja de suma importância para o Legisla-tivo, no entanto, os tribunais serão menos hostis a ela. As duas grandesdúvidas que surgem desse modelo são: por que o Judiciário brasileironão reage da mesma forma que os tribunais hipotéticos de Vanberg àfalta de apoio majoritário?; por que o Judiciário não aparenta se preo-cupar em vetar projetos de grande importância para o Legislativo?

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Não tentarei responder definitivamente essas duas perguntas neste es-paço, mas elas sugerem que a troca de informações entre os estudiososdo Judiciário e o mainstream da ciência política brasileira é um caminhode duas mãos, e que nós, estudiosos do Judiciário, temos muito aaprender com os estudiosos da relação entre Legislativo e Executivo.

Na análise do caso brasileiro, o modelo Vanberg parece estar fadado aofracasso. A combinação da fraqueza do Legislativo – em termos de suacapacidade de ação coletiva (independente do Executivo) – e a dificul-dade que a população tem de cobrar ação de seus representantes – fru-to do sistema eleitoral – fazem com que o Judiciário tenha uma alta pro-babilidade de evitar punições do Legislativo quando toma decisõesque contrariam a maioria legislativa. Não é tão fácil evitar puniçõesoriundas do Executivo, e talvez seja por isso que o Judiciário aja con-servadoramente quando possível. Mas, como veremos a seguir, o Judi-ciário nem sempre é submisso, mesmo quando tem a oportunidade deagir mais timidamente. Como o jogo é interativo, e os atores podemaprender com os turnos anteriores, em algum momento se espera que oExecutivo reaja a essas provocações ou que o Judiciário capitule. Tal-vez estejamos mais próximos da segunda situação. No entanto, o con-servadorismo do STF não se reflete em uma timidez exagerada, o quedeixa em aberto o questionamento sobre estes dois fenômenos empíri-cos: a assertividade da Justiça e a aceitação (mesmo acompanhada dealtas reclamações) disso pelo Executivo e seus aliados no Congresso.

Em termos comparados, a atuação do Judiciário brasileiro é significati-va. Nos 15 anos entre 1988 e 2002, o STF – somente através do instru-mento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – Adin – concedeu de-cisões liminares ou de mérito invalidando parcialmente mais de 200leis federais. Em comparação, entre 1994 e 2002, a Suprema Corte mexi-cana julgou a constitucionalidade de um pouco mais de 600 leis naque-le país usando dois instrumentos parecidos com a Adin, mas invalidousomente 21 leis federais; em toda sua história, a Suprema Corte ameri-cana invalidou em torno de 135 leis federais apenas (Taylor, no prelo).Mesmo no governo de Fernando Henrique Cardoso – um presidenteapoiado (pelo menos inicialmente) por uma ampla coalizão reformista–, o Judiciário federal como um todo foi convocado por atores externospara julgar todas as principais políticas públicas adotadas pelo Execu-tivo e seus aliados no Congresso. O governo Fernando Henrique bar-ganhou duramente para produzir maiorias legislativas que o permitis-sem superar as rígidas regras para a aprovação de emendas constitu-

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cionais ou leis complementares no Senado e na Câmara. Mas ao finaldesse imenso esforço político, a contestação judicial da reforma foi umacontecimento crônico, usado recorrentemente por grupos deixadosde fora das negociações entre membros do parliamentary agenda cartel.As mais significativas e reais ameaças às reformas surgiram no Judiciá-rio e não no Legislativo: das 10 principais iniciativas políticas aprova-das durante o governo Fernando Henrique, todas foram contestadasde alguma forma pelo Judiciário, e sete das 10 foram alteradas ou atra-sadas de alguma maneira no STF10. Em outras palavras, nem toda pro-posta do governo foi contestada judicialmente, mas as mais importan-tes e contenciosas certamente o foram, e com algum sucesso.

No decorrer da última década, o Judiciário Federal revelou-se um im-portante ator político: tribunais federais repetidamente interrompe-ram imensos leilões de privatização; a realização de uma delicada re-forma no sistema de previdência social foi subvertida; e o Judiciárioanulou ou mudou a legislação referente à reforma agrária, às reformastributárias e a outras políticas públicas significativas. O Judiciário con-tinua exercendo uma influência importante hoje. Durante o governode Luiz Inácio Lula da Silva, tribunais também participaram da formu-lação de políticas governamentais de várias maneiras. Entre as mais re-centes ilustrações: em 2005, o Judiciário federal aprovou uma grandeaquisição empresarial pela Nestlé, revertendo decisão do ConselhoAdministrativo de Defesa Econômica – Cade, que havia rejeitado aoperação; o STF interrompeu as investigações de corrupção dentro doCongresso durante 2006; juízes federais têm forçado governos estadu-ais a honrarem precatórios cujos valores são estimados em até US$ 20bilhões por ano; o STF negou, retroativamente, um aumento do Pro-grama de Integração Social – PIS/Contribuição para o Financiamentoda Seguridade Social – Cofins em uma decisão cujo custo, em tese, po-deria chegar a quase 11% do total de tributos federais arrecadados; eassim por diante.

À luz desse papel manifesto e tão recorrente, torna-se claro que o Judi-ciário precisa ser melhor incorporado às nossas análises do sistema po-lítico. De outra maneira, o processo de decisão política será incorreta-mente compreendido e a importância de atores relevantes para o deba-te das políticas públicas poderá ser mal-entendido ou até mesmo igno-rado. Em particular, os perdedores na negociação entre Executivo e Le-gislativo – precisamente os grupos mais propensos a utilizar o Judiciá-

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rio – serão negligenciados ou ignorados em nosso entendimento da ne-gociação e da possibilidade de mudança nas políticas públicas.

Para ilustrar as conseqüências de deixar o Judiciário fora da análise datomada de decisões pelo sistema político brasileiro, ofereço uma visãoheurística e simplificada da reforma agrária de 1999-2000. Nesse caso,o governo Fernando Henrique tentou, com algum sucesso, achar umespaço de comum acordo entre os donos de terra e o Movimento dosSem-Terra – MST. A legislação proposta pelo governo federal estabele-cia limites para compensações excessivas em expropriações de terra,mas também criou importantes restrições às invasões empreendidaspelos sem-terra. Para descrevê-lo em um gráfico de duas dimensõeseuclidianas, reduzirei a uma única distribuição de preferências: 1) osdonos de terra preferiam um maior grau de restrição às invasões e ummenor grau de restrição às compensações; 2) os sem-terra preferiam oexato oposto; e 3) o governo preferia um maior grau de restrições tantoàs invasões quanto às compensações que seriam pagas pelo erário (Fi-gura 1). Em outras palavras, era possível mudar a política pública exis-tente para qualquer lugar dentro da região escura entre o status quo 1(SQ1) e o status quo 2 (SQ2), e, em particular, era possível mudar do SQ1

para uma posição mais próxima do SQ2. Na sua essência, essa foi a pro-posta do governo, que tentava mudar do SQ1 para o SQ2 por meio demedida provisória.

Faltou, no entanto, incorporar à proposta os interesses de um jogadorde veto em potencial, a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Embo-ra não tivesse representação direta no Congresso – e se tivesse, mal po-deria usá-la por se tratar de uma medida provisória –, a OAB teve aces-so ao ponto de veto oferecido por ser um ator com legitimação ativapara apresentar Adins. Isso permitiu que a OAB se inserisse no debatesobre a reforma através do STF. Quando a medida provisória foi decre-tada, a OAB imediatamente contestou vários elementos da nova políti-ca por meio de Adin. AOAB teve sucesso em um ponto de especial inte-resse a seus membros: o STF deferiu em parte o pedido de liminar con-tra os limites decretados pelo governo para os honorários advocatíciosem casos de expropriação11.

Como resultado, a OAB conseguiu mudar a política pública do SQ2

para o status quo 3 (SQ3) (Figura 2), transferindo o resultado de um pon-to próximo às preferências centrais do governo para um ponto maispróximo das preferências dela, eliminando as novas limitações pro-

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postas pelo governo no tocante às restrições aos honorários advocatí-cios. Sem o acesso ao STF e ao mecanismo da Adin ou sem um Judiciá-rio capaz de tomar decisões e tê-las respeitadas e cumpridas pelo Exe-cutivo, esse resultado não teria sido possível. Do ponto de vista analíti-co, o ponto de veto oferecido pelo Judiciário a um grupo profissionaloposto à redução dos próprios rendimentos teve um impacto muitogrande na capacidade do governo de ver suas primeiras preferênciasimplementadas. Não seria – e de fato não foi – diferente em outras oca-siões, nas quais as propostas do governo foram implementadas nãoatravés de medida provisória, mas após longo debate entre Executivo eLegislativo.

Com esse potencial impacto do Judiciário em mente, volto na próximaseção para uma tentativa de sistematizar um pouco mais o papel do Ju-diciário nas políticas públicas a fim de facilitar a inserção do Judiciáriono mainstream da ciência política brasileira e, talvez mais importante,ajudar futuros pesquisadores a explicar os resultados práticos dessainserção em termos das políticas públicas que são efetivamente imple-mentadas.

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Restrições sobre invasões

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Figura 1

Reforma Proposta

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PENSANDO A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NA FORMAÇÃO DAS POLÍTICASPÚBLICAS

Naturalmente é impossível criar um modelo preditivo incorporandotodos os fatores que possam influenciar a atuação do Judiciário nas po-líticas públicas, da mesma forma que não existe um modelo preditivopara a atuação do Legislativo. No entanto, podemos apontar quatro di-mensões centrais que ajudam a analisar o efeito do Judiciário sobre aspolíticas públicas e a incorporá-lo ao estudo mais amplo sobre policy-making:

1. Em que momento e de que maneira o Judiciário pode influenciar aspolíticas públicas?

2. Quais as motivações do Judiciário na hora de tentar resolver dispu-tas sobre políticas públicas?

3. Como os atores externos ao Judiciário usam-no para atingir seus ob-jetivos políticos?

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Reforma Resultante

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4. Quais as conseqüências da intervenção do Judiciário nas políticaspúblicas?

Discuto essas quatro dimensões a seguir.

1. Em relação à primeira dimensão – o timing da intervenção do Judiciá-rio no processo de formação de políticas públicas –, é comum suporque o Judiciário somente atuará nas políticas públicas depois de elasserem aprovadas pelo Legislativo (ver, por exemplo, Epstein, Knight eShvetsova, 2001:123-124). Mas tanto os juízes de tribunais inferioresquanto os ministros do STF podem ter um impacto significativo e mui-to anterior na elaboração de políticas públicas. Embora não tenham le-gitimidade para iniciar contestações judiciais sobre ações do Legislati-vo e do Executivo, os integrantes do Judiciário brasileiro têm capacida-de de influenciar a discussão das políticas públicas antes de elas seremaprovadas, sinalizando suas preferências e as fronteiras que as mudan-ças provocadas por essas políticas podem atingir.

Os juízes sinalizam suas preferências publicamente muito antes daaprovação final dos projetos, seja por meio de pronunciamentos públi-cos (caso do ministro Carlos Velloso na segunda tentativa de reformada Previdência durante o governo Fernando Henrique) ou através dereuniões a portas fechadas entre Executivo e Judiciário (caso das medi-das contra o apagão, que foram discutidas de antemão entre um repre-sentante do Executivo, Pedro Parente, e integrantes do STF). Esse tipode sinalização calculada tem efeitos que antecipam o resultado final,inserindo os juízes no jogo e alterando a política pública resultante,muitas vezes sem o Judiciário precisar utilizar seus poderes formais.Como Lax e McCubbins (2006) observam sobre o caso norte-ameri-cano, o reconhecimento do papel dos tribunais nesse momento de deli-beração anterior à aprovação das políticas públicas ajuda a derrubar oargumento de Rosenberg (1991) de que os tribunais são inefetivos naconstrução de políticas públicas. Isto é, mesmo sem usar seus poderesformais, como os de revisão constitucional, o Judiciário pode ter umimpacto no momento da deliberação, eliminando algumas alternati-vas e constrangendo a liberdade de ação de outros atores políticos.

A isso somaríamos os instrumentos formais que o Judiciário pode utili-zar para influenciar as políticas públicas ainda em formação. O STFnão tem os mesmos poderes de revisão constitucional anteriores à im-plementação de lei que a Suprema Corte chilena ou os tribunais superi-ores alemães ou italianos têm, que lhes permite suspender uma lei an-

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tes de a mesma entrar em vigor. No entanto, o STF tem mostrado umacrescente (e controvertida) tendência à interferência nos trabalhos le-gislativos por meio de instrumentos legais. Um caso é o da liminar pro-ferida pelo ministro Marco Aurélio de Mello, que paralisou a votaçãoda primeira reforma da Previdência durante o governo Fernando Hen-rique. A votação só foi retomada quando a liminar foi derrubada pelocolegiado do STF (em uma votação de 10 a 1).

A possibilidade de o Judiciário agir na hora da implementação paramudar as regras ou os resultados das políticas públicas é amplamentemais reconhecida. Vários fatores podem ser considerados quanto à in-terferência das decisões dos juízes na implementação das políticas pú-blicas. O primeiro diz respeito ao impacto das regras institucionais napossibilidade de grupos opostos à política em questão recorrerem aostribunais: o tipo de revisão constitucional (abstrato, concreto ou, comono caso brasileiro, híbrido); quem tem legitimidade ativa (standing) eem quais situações; o grau de independência dos juízes tanto em rela-ção ao Poder Executivo quanto em relação aos próprios colegas; a cele-ridade do sistema legal; e assim por diante (Ríos-Figueroa e Taylor,2006). No entanto, como esses fatores são razoavelmente fixos no tem-po e bem estabelecidos no caso brasileiro, é melhor enfocar duas carac-terísticas que dão alguma margem de manobra aos juízes: os instru-mentos de decisão e o timing do uso deles.

No que diz respeito aos instrumentos, sabemos que alguns são mais ro-bustos, por assim dizer, que outros, do ponto de vista de seu impactonas políticas públicas. Uma Adin ou uma Argüição de Descumprimen-to de Preceito Fundamental – ADPF, por exemplo, têm muito mais im-pacto e sobrevida do que uma decisão recorrível de juiz federal de pri-meira instância. No entanto, mesmo no caso da Adin, existe uma gran-de margem para mudar o timing do impacto judicial na implementa-ção, seja acelerando uma decisão através de liminar, seja protelando oprocesso por meio de pedidos de vista. Também existem inúmeras pos-sibilidades para arquivar ações por motivos processuais, evitando as-sim uma decisão do mérito (Koerner, 2005; Pacheco, 2006). Há, portan-to, uma capacidade considerável dos ministros do STF de controlar otiming e as conseqüências de seu impacto, seja sustentando políticaspúblicas que apóiam ou atrasando a derrota daqueles que eles acredi-tam ser de constitucionalidade duvidosa, porém preferíveis. O contro-le por juízes de instâncias inferiores é menos decisivo, já que seus pare-ceres são passíveis de recurso. No entanto, a elaboração de teses con-

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vincentes e o consenso entre juízes de instâncias inferiores podem teruma influência importante, bloqueando ex post a implementação depolíticas públicas ou tirando certas alternativas do leque de opçõesconsideradas como plausíveis ex ante pelos formadores de políticaspúblicas.

Em suma, o Judiciário pode influenciar os resultados das políticas pú-blicas tanto no momento da deliberação quanto na hora da implemen-tação com uma variedade de possíveis estratégias: sinalizando as fron-teiras permitidas para a alteração da política pública, sustentando-a elegitimando-a diante da possível oposição, atrasando uma decisão so-bre uma determinada política e, assim, controlando a agenda de deli-beração da política pública ou, até mesmo, alterando ou rejeitando aproposta após sua implementação.

2. A segunda dimensão diz respeito às motivações do Judiciário. Existejá uma boa literatura sobre a cultura legal dos juízes, tanto no Brasil(Bonelli, 2002; Castelar Pinheiro, 2003; Nalini, 2000; Rosenn, 1984;Werneck Vianna et alii, 1997) quanto no mundo afora (ver Pérez-Per-domo e Friedman, 2003). À cultura interna atribui-se o fato de os juízesbrasileiros, sob os preceitos dos códigos civil e criminal, agirem de ma-neira formalista, focando mais em princípios do que em conseqüên-cias, muitas vezes com bastante ênfase na proteção de direitos indivi-duais, sejam quais forem as suas implicações mais amplas. Na literatu-ra legal e até nos jornais diários, é muito comum ver uma defesa da neu-tralidade dos juízes, o que se reflete em um senso comum entre juristas:o juiz correto não se desvincula da lei, quaisquer que sejam suas prefe-rências pessoais12 – uma visão bonita e certamente imbuída de certadose de verdade, já que o juiz dificilmente pode tomar decisões que fu-jam muito da lei vigente. Mas nem por isso é uma visão cem por centoprecisa no que concerne às políticas públicas, especialmente tendo emvista o grau de flexibilidade mencionado anteriormente que permiteao juiz intervir de diversas formas e em diversos momentos nas políti-cas públicas.

Nesse sentido, concordo com a conclusão de Gibson (1983) de que asdecisões dos juízes são uma função do que eles preferem fazer, mode-radas pelo que acham que devem fazer, mas constrangidas pelo quepercebem que é viável fazer. Como já foi dito, às vezes nem é precisouma decisão formal para que o juiz tenha um impacto no caminho dadeliberação e, portanto, a adesão à lei nem sempre é o principal fator

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determinante da atuação do juiz. Afinal, os juízes – como outros atorespolíticos – podem agir estrategicamente, blefando ou criando empeci-lhos legais que correspondam às suas preferências pessoais (vide aquantidade de processos recentes contra as regras antinepotismo im-postas pelo Conselho Nacional de Justiça).

Diante dessa visão mais cética sobre as motivações dos juízes, a litera-tura da ciência política internacional sobre os juízes e os constrangi-mentos à sua atuação inclui três correntes principais: a institucional(ver Clayton e Gillman, 1999; Smith, 1988); a estratégica (ver Baum,1997; Vanberg, 2001); e a atitudinal (ver Segal e Spaeth, 1993). No Bra-sil, somente a primeira parece ter vingado. A corrente atitudinal é dedifícil aplicação devido à complexidade de se estudar as atitudes dosjuízes ou ministros em um sistema multipartidário em que as dimen-sões da disputa política dificilmente podem ser analisadas em um es-pectro binário. Acorrente estratégica refere-se à tentativa dos tribunaisde conquistar e de manter seu poder diante da força dos poderes elei-tos. Essa corrente já foi amplamente aplicada aos casos mexicano (verFinkel, 2007) e argentino (ver Helmke, 2002), por exemplo, suscitandoa dúvida de por que não teve a mesma popularidade entre os estudio-sos do Judiciário brasileiro. Em parte, a resposta se dá pela inversão docaminho comum no caso brasileiro: em vez de ter tido que conquistarseu poder, os tribunais receberam uma abundância de poderes naConstituição e somente depois tiveram que decidir como melhor osutilizar sem provocar reações dos poderes eleitos. Com isso não pre-tendo afirmar que as motivações estratégicas ou atitudinais inexistamno caso brasileiro ou que essas abordagens não deveriam ser aplicadasa ele, mas simplesmente enfatizar que a abordagem institucionalistaparece ter sido a mais útil e produtiva nesse primeiro momento dos es-tudos do Judiciário pós-1988 por uma série de motivos tanto metodo-lógicos quanto conjunturais.

A essas análises da atuação dos juízes, adicionaria mais dois fatores re-lacionados às características das políticas públicas. O primeiro diz res-peito mais às políticas públicas sendo contestadas do que ao próprioJudiciário: a importância delas (ou “salience”). A idéia de que a impor-tância de um determinado processo para os juízes motiva a atuação (oua não-atuação) do Judiciário e, portanto, também afeta os cálculos dosjogadores que acionam o Judiciário, é facilmente comprovada empiri-camente e faz parte do consenso geral na literatura (ver Epstein,Knight e Shvetsova, 2001). A esse argumento adiciono um segundo: as

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características das políticas públicas em si ajudam a determinar sua ju-dicialização, com ou sem a iniciativa dos juízes. Baseando-me na obrade Lowi (1964; 1972) e Wilson (1995) – sumarizada como “policy deter-mines politics” –, é possível afirmar que, da mesma forma que a distri-buição de custos e benefícios das políticas públicas (policy) determinaos percursos de seu andamento político (politics) no Executivo e no Le-gislativo, essas características das políticas públicas também influen-ciam a provável intensidade de utilização do Judiciário. Abusando dafamosa frase de Clausewitz sobre a guerra, a judicialização pode servista como uma extensão da política por outros meios, tornando-semais provável quando os custos de uma determinada política são mui-to concentrados entre um pequeno grupo de perdedores.

3. Assim sendo, o juiz dificilmente é o único ator relevante na delibera-ção das políticas públicas no Judiciário. Especialmente depois de im-plementada, a política pública pode ser contestada judicialmente poruma série de atores tanto do mundo político quanto da sociedade civil.O fato de o Judiciário ter, necessariamente, que lidar com essas contes-tações força-o – mesmo contra sua vontade ou protelando ao máximo –a ouvir e a tratar de opiniões muitas vezes minoritárias e contrárias aosinteresses predominantes no eixo Executivo-Legislativo. Na primeiraseção, mencionei o conceito de “venue seeking” e o fato de o Judiciárioser um dos “venues” mais poderosos para a ação opositora às políticaspúblicas já implementadas. As regras institucionais, como constata-mos anteriormente, podem dar poder a grupos minoritários que nãoagem no momento da deliberação entre Executivo e Legislativo, inse-rindo-os no debate pós-hoc e permitindo que usem os tribunais comoum ponto de veto no jogo político.

Quadro 1

Os Tribunais como Instrumentos Estratégicos

Potencial Pontode Veto para Mi-norias Afetadas

Mecanismo deProtelação

STF/STJ Alto Baixo

Tribunais federais de 1a instância/TRFs Baixo Alto

Tribunais estaduais Baixo Alto

Elaboração do autor.

Em termos gerais, a literatura já revelou mais ou menos quais são osgrandes atores que usam cada instrumento legal com maior sucesso:

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nas Ações Populares, os dois principais grupos são parlamentares eadvogados; nas Ações Civis Públicas, é o Ministério Público na grandemaioria das vezes (Werneck Viana e Burgos, 2002); no caso das Adins,é o Ministério Público e a OAB (Arantes, 1997; Taylor, 2006b); e assimpor diante. No entanto, o impacto dessa atuação no sistema político de-pende tanto das regras que governam a legitimidade ativa dos atoresdiante dos tribunais quanto da força dos argumentos legais à sua dis-posição e também das regras vigentes de abrangência das decisões ju-rídicas. Em termos simplistas, quanto mais abrangente e vinculante oinstrumento jurídico usado, maior o potencial de se criar um ponto deveto dentro do Judiciário, como é o caso da Adin no STF. No entanto, afalta de resultados abrangentes e vinculantes – e o que Arantes (1997:33)descreve como a “atomização da apreciação judicial difusa” – tende aprovidenciar outro mecanismo tático para os atores políticos: a incer-teza gerada pela protelação de uma decisão definitiva através do recor-rente uso de diversas instâncias ou recursos no Judiciário (Quadro 1).

Essa segunda tática não requer que os argumentos legais necessaria-mente estejam a favor do grupo de oposição: na luta contra as privati-zações nos anos 1990, por exemplo, muitas vezes a oposição buscou en-contrar um juiz que simpatizasse o suficiente com a questão para emi-tir uma liminar contra os leilões, mesmo sabendo que ela seria derru-bada em seguida, diante das leis em vigor. Em outras palavras, não temsido raro a oposição política usar os tribunais mesmo sabendo que nãotem condições legais de vencer a briga: o Judiciário também serve paraas oposições mostrarem serviço, protelando a implementação de polí-ticas públicas contrárias aos interesses de seus seguidores e chamandoa atenção pública para sua oposição. Nessa linha, Werneck Vianna etalii explicam a tendência dos partidos políticos de entrar com recursono Judiciário “visando apenas marcar uma posição de contraste com amaioria e demonstrar aos seus aderentes e ao público em geral a suadisposição de esgotar, no terreno institucional, todas as possibilidadesabertas à sua intervenção” (1999:127).

4. Finalmente, é importante pensar quais as conseqüências do crescen-te papel do Judiciário nas políticas públicas. Mesmo se argumentar-mos que os tribunais têm tido pouco efeito concreto nas políticas públi-cas, agindo tímida e conservadoramente, de forma meramente reativa,é importante reconhecer que, mesmo assim, o Judiciário pode ter umimpacto significativo (embora meramente reativo) na legitimação depropostas majoritárias. Esse tipo de atuação não é ausente na história

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recente e pode ter tido um impacto forte, por exemplo, na legitimaçãode alguns procedimentos questionáveis como o uso exagerado da me-dida provisória ou de certas políticas públicas como o Plano Collor(Koerner, 2005; Vilhena Vieira, 2002).

Se partirmos – ao contrário – da suposição de que o Judiciário teve, sim,um impacto proativo nas políticas públicas, a pergunta que se levantaé por quê? Por que um Executivo poderoso, aliado a um parliamentaryagenda cartel majoritário, cumpriria as decisões de um Judiciário que ocontraria proativamente? A questão de por que o Executivo segue asdeterminações de juízes cujo poder individual é extremamente restritoé pouco estudada (mas vale a pena ver Epstein, Knight e Shvetsova,2001:126 e Staton, 2002; 2004) e, no caso brasileiro, é um pouco misteri-osa. Será que, apesar da sua força, existe no Poder Executivo brasileirocerta preferência por atitudes que fortaleçam a democracia, como se-guir fielmente as decisões do Judiciário? Dado o ceticismo profissionaldos cientistas políticos, essa explicação – por melhor e mais acuradaque seja – provavelmente não terá sobrevida longa. Portanto, como ex-plicar a resolução do Executivo de cumprir decisões judiciais contra-majoritárias, mesmo quando elas são extremamente caras em termosde recursos gastos, negociações desperdiçadas e preferências detona-das?

Uma explicação é a alternância no poder, que leva o Executivo de hoje aobedecer ao Judiciário para resguardar o controle judicial para quandoestiver fora do poder (ver Ginsburg, 2003; Ramseyer, 1994). Uma outraexplicação, sugerida por Whittington (2005), é que mesmo os incum-bentes se beneficiam de um Judiciário independente: 1) o Judiciáriopode alterar a legislação aprovada por governos anteriores e, assim,mesmo agindo independentemente, melhorar as condições para a im-plementação das preferências do atual governo. Talvez mais impor-tante, de acordo com Whittington; 2) um Judiciário que contraria o go-verno em alguns pontos serve para legitimar as decisões desse gover-no em todas as outras ocasiões nas quais não se manifesta negativa-mente. De acordo com a análise de Weingast (1997), esse tipo de consi-deração por parte do Executivo pode contribuir para um sistema“self-enforcing”, ou auto-regulador, isto é, sob condições favoráveis,existem incentivos para que o Executivo (e por extensão o Legislativo)obedeça ao Judiciário, mesmo não precisando. Será que essa lógicapode ajudar a explicar a relação entre Executivo e Judiciário no Brasil?Falta uma análise mais profunda da causa desse fenômeno, da negoci-

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ação estratégica entre os três poderes e dos resultados concretos emtermos da negociação e da implementação de políticas públicas.

CONCLUSÃO

É amplamente reconhecido que, embora o Judiciário não possua “nema bolsa nem a espada”13 –, ou seja, nem os poderes orçamentários doLegislativo nem os poderes coercitivos do Executivo –, ele tem um con-siderável poder político como depositário da fé pública nas regras dojogo. O Judiciário desempenha um papel central na determinação eaplicação de princípios tanto constitucionais quanto ideais, tais comoo Rechstaat ou état de droit. Ele decide quais regras são legítimas e estãoem concordância com as leis locais ou a Constituição, assim comoquais ações (ou omissões) representam aberrações ou infrações. Comoresultado, os tribunais influenciam o curso das políticas públicas: tri-bunais e juízes influenciam o tipo de políticas que são implementadase julgam a legalidade dessas políticas dentro da sua visão das regras le-gais existentes e das normas e tradições vigentes.

A ciência política reconhece, há pelo menos meio século, que o Judiciá-rio preenche um papel político como uma instituição “para a tomadadas decisões sobre questões controversas da política nacional” (Dahl,1957:279). É sabido que muitas vezes os requerentes usam o Judiciáriocomo mais uma oportunidade ou instância política – um “venue” – enão como fonte de verdades constitucionais e legais. E se reconheceque os juízes freqüentemente operam com base em critérios outros queos unicamente legais quando julgam processos importantes. Mesmoquando eles se mantêm constrangidos por critérios totalmente legais,pela própria natureza da revisão judicial, eles acabam tomando deci-sões que influenciam ou até criam políticas públicas (ver Ferejohn,2002).

No entanto, freqüentemente existe uma percepção pública de que háalgo errado nessa atuação política dos tribunais no processo de formu-lação de políticas públicas. Pode até ser que o Judiciário prefira ocultarsua atuação atrás de um muro legalista, para tentar preservar sua legi-timidade como o único poder não escolhido através de procedimentosabertamente democráticos. Certamente, a crescente judicialização e oconseqüente crescimento do impacto judicial em quase todo o mundotrouxeram consigo uma mudança no discurso sobre a influência judici-al na política e, em especial, uma crítica muito forte, por parte dos po-

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deres eleitos, aos “legisladores não-eleitos”. Mas é preciso reconhecera importância dessa função política judicial e mais, sua inevitabilida-de. Embora o conceito da separação dos poderes conduza a três institu-ições claramente distintas, as funções judiciais, legislativas e executi-vas dessas instituições não são caprichosamente separadas em nítidascaixas institucionais como às vezes supomos. Existe uma sobreposiçãodas funções das três instituições, como o Quadro 2 ilustra, diante daqual não é de surpreender que o Judiciário tenha algum efeito no pro-cesso de formação de políticas públicas. Afinal, como disse Ehrmann:“A autoridade do Judiciário para declarar leis e atos oficiais inconstitu-cionais é [...] um ato judicial que dá aos juízes uma participação óbviano processo político, [deixando pouco espaço] para a proposição deque os juízes apenas apliquem a lei” (1976:138).

Analiticamente, então, é simples concluir que o Judiciário pode ser me-lhor incorporado às nossas análises do sistema político brasileiro. Nor-mativamente, as coisas estão menos resolvidas e há uma certa ambi-güidade que sempre cercará a atuação do Judiciário na política, tantoem termos da teoria democrática quanto na questão da formulação efe-tiva e eficaz das políticas públicas. É muito comum em todo o mundoreclamar da interferência de juízes na política. Mas é importante reco-nhecer, como o fazem Werneck Vianna e Burgos (2005:781-782), o papeldemocratizante do Judiciário, agindo tanto como um “muro de lamen-tações” quanto como “uma efetiva arena para o exercício da democra-cia”, em uma democracia na qual a relação entre Executivo e Legislati-vo foge do ideal. Da mesma forma, quando pensamos o Judiciário doponto de vista da formulação de políticas públicas, existe certa tensãonormativa. Há um reconhecimento de que um Judiciário que pode con-trariar o governo pode ser melhor tanto em termos econômicos (verCastelar Pinheiro, 2003:185) quanto em relação à durabilidade dos re-sultados das políticas públicas. O Judiciário é fundamental para atin-gir o equilíbrio entre duas características: decisiveness, a eficiência natomada de decisões pelo sistema político, e resoluteness, a capacidadedo país de seguir um percurso estável e pouco errático em termos daadoção e implementação das políticas públicas14. Em um país onde oJudiciário não cria empecilhos à atuação do Executivo, o sistema políti-co pode ser muito eficiente na tomada de decisões, mas pode sofrer for-tes oscilações de políticas públicas entre governos (vide Argentina naúltima década).

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Quadro 2

A Distribuição das Funções

Instituição

Função Congresso Executivo Judiciário

Legislativa Faz leis. Recomenda leis;veta leis; cria re-gulamentos e me-didas provisóriascom força de lei.

Revisa as leis paradeterminar ou jul-gar a intenção le-gislativa.

Executiva Derruba vetospresidenciais;veta medidas pro-visórias.

Aplica e imple-menta as leis.

Revisa os atosexecutivos; res-tringe ações exe-cutivas por via deliminar.

Judicial Propõe e julgaprocessos de im-peachment; instau-ra Comissões Par-lamentares deInquérito.

Nomeia ministros(com subseqüenteaprovação legisla-tiva).

Interpreta e julgaa constitucionali-dade das leis.

Fonte: Adotado para o caso brasileiro pelo autor, a partir de Birkland (2001:47).Nota: A função principal de cada poder está indicada na célula destacada.

Este artigo enumerou alguns dos fatores que podem influenciar o im-pacto do Judiciário no processo de formação de políticas públicas noBrasil e as formas pelas quais o Judiciário pode ser incorporado a ummodelo que não é preditivo, mas que pelo menos tem pretensões cau-sais. Talvez tenha conseguido mostrar melhor o erro da exclusão analí-tica do Judiciário do que os caminhos para sua inclusão futura na lite-ratura mais abrangente sobre a tomada de decisões. Esse desequilíbriodeve-se não à falta de interesse sobre o assunto na literatura, em queexiste uma riqueza de estudos sobre o papel do Judiciário. No entanto,ainda é muito pouco desenvolvido o diálogo entre o estudo da relaçãoExecutivo-Legislativo, o estudo do Judiciário e a análise das políticaspúblicas. Espero ter dado um passo para a maior integração dessescampos de pesquisa.

(Recebido para publicação em novembro de 2006)(Versão definitiva em maio de 2007)

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NOTAS

1. Este artigo faz parte da corrente de análise positiva sobre a função política dos tribu-nais, distinguindo-se assim da literatura normativa produzida por juristas e profes-sores de Direito. Na visão normativa, procura-se definir como os juízes devem deci-dir processos ou se relacionar com as outras instituições no sistema político diantedas regras legais vigentes. Na teoria positiva, procura-se entender não como os juí-zes devem agir, mas por que eles agem da forma que de fato agem, o que motiva os ju-ízes a decidir da forma que decidem e que forças podem influenciar essa atuação.Uma das melhores discussões dessa distinção e de sua importância tanto para a ciên-cia política quanto para estudiosos de Direito é de Friedman (2005).

2. Para uma discussão mais ampla da dimensão hobbesiana e madisoniana, ver Maga-loni (2003). Adiciono aqui o que chamo da dimensão smithiana por achar que o im-pacto do Judiciário na economia é uma terceira dimensão de suma importância ao sepensar o impacto do Judiciário na governabilidade.

3. Entre muitos trabalhos nesse sentido, alguns servem de exemplo: livros como os deArantes (1997); Favetti (2003); Sadek (1995; 1999; 2000); Werneck Vianna et alii (1999);e Werneck Vianna (2002); artigos e capítulos como os de Cunha (2001); Faro de Castro(1997a; 1997b); Koerner (2005; 2006); Oliveira (2005); Werneck Vianna e Burgos(2005); e recentes teses de doutorado como Carvalho Neto (2005); Oliveira (2006); ePacheco (2006).

4. A natureza dicotômica do debate sobre as instituições políticas brasileiras é explici-tada em Palermo (2000) e Pereira e Mueller (2003).

5. Por exemplo: Abrucio (1998); Ames (2001); Kinzo (1997; 1999); Mainwaring (1995);Stepan (2000).

6. Por exemplo: Figueiredo (2001); Figueiredo e Limongi (1999; 2002).

7. No entanto, a troca de votos por cargos ou receitas (pork) continua, só que melhor ad-ministrado por um grupo menor, com menos “free agents”, parlamentares agindo in-dividualmente, fora do âmbito das negociações partidárias.

8. De acordo com a Constituição (art. 106), o STF e o Superior Tribunal de Justiça – STJnão fazem parte da Justiça Federal, que é composta apenas pelos Tribunais RegionaisFederais – TRFs e pelos juízes federais de instâncias inferiores. No entanto, como oSTF e o STJ têm jurisdição nacional, como instâncias recursais (art. 92, §2), eles têmcontrole sobre toda a legislação, inclusive a federal. Quando uso aqui Judiciário ouJudiciário federal, portanto, estou me referindo ao STF, ao STJ, aos TRFs e aos juízesfederais de primeira instância.

9. Sobre as experiências de outros países neste sentido, ver, por exemplo, Chavez (2001;2004); Scribner (2003); Shapiro (2004); e Uprimny (2004).

10. As 10 políticas mencionadas são o Fundo Social de Emergência, o Plano Real, as re-formas da ordem econômica, o Plano Nacional de Desestatização, o Fundo de Estabi-lização Fiscal, a Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão deValores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – CPMF, a reforma adminis-trativa, a reforma previdenciária, a tributação da aposentadoria de servidores públi-cos e o racionamento de energia elétrica (Taylor, 2006a).

11. Como em muitos outros casos, nessa Adin, a liminar foi deferida, mas até hoje o STFnão se pronunciou sobre o mérito da Adin, já que a liminar criou um fato novo.

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12. Uma reflexão não muito incomum de um ministro do STF nesse sentido foi auferidapelo ministro Moreira Alves na Adin no 896: “Como é sabido, não só a Corte está res-trita a examinar os dispositivos ou expressões dele cuja inconstitucionalidade for ar-güida, mas também não pode ela declarar inconstitucionalidade parcial que mude osentido e o alcance da norma impugnada (quando isso ocorre, a declaração de in-constitucionalidade tem de alcançar todo o dispositivo), porquanto, se assim nãofosse, a Corte se transformaria em ‘legislador positivo’, uma vez que, com a supres-são da expressão atacada, estaria modificando o sentido e o alcance da norma impug-nada. E o controle de constitucionalidade dos atos normativos pelo Poder Judiciáriosó lhe permitem agir como ‘legislador negativo’.”

13. “O Judiciário [...] não tem influência sobre a espada nem sobre a bolsa; não pode diri-gir nem a força nem a riqueza da sociedade; e não pode tomar nenhuma iniciativa ati-va [...]” (Hamilton, 1961, tradução do autor).

14. Os conceitos de decisiveness e resoluteness em relação à formulação de políticas públi-cas originam-se no trabalho de Haggard e McCubbins (2001). No entanto, os autoresnão discutem o papel do Judiciário no processo.

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ABSTRACTThe Judiciary and Public Policies in Brazil

This article discusses the role of the Judiciary in public policymaking. The firstpart of the text summarizes the importance of integrating the courts better intoour analyses of public policymaking and policy implementation in theBrazilian political system. The second part discusses the main factorsinfluencing the degree and depth of the Judiciary’s impact on public policies.

Key words: Judiciary; public policies

RÉSUMÉLe Pouvoir Judiciaire et les Politiques Publiques au Brésil

Dans cet article, on discute le rôle du pouvoir judiciaire dans la formulation depolitiques publiques. Dans sa première partie, on montre l'importance demettre en place une meilleure intégration des tribunaux à nos analyses duprocessus de formulation et d'implantation de politiques publiques dans lesystème politique brésilien. Dans la seconde, on juge les principaux facteursqui influent sur le degré et la profondeur de l'impact du pouvoir judiciairedans les politiques publiques.

Mots-clé: pouvoir judiciaire; politiques publiques

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NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURÍDICO-SOCIAL DE PASÁRGADA

Boaventura de Sousa Santos

Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison;

Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Diretor do Centro de Documentação “25 de Abril” da mesma Universidade.

Introdução

Este texto faz parte de um estudo sociológico sobre as estruturas internas de uma favela do Rio de Janeiro, a que dou nome fictício de Pasárgada. Este estudo tem por objetivo analisar em profundidade uma situação de pluralismo jurídico com vista à elaboração de uma teoria sobre as relações ente Estado e Direito nas sociedades capitalistas. Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformações revolucionárias; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social - neste caso, a habitação.

A favela é um espaço territorial, cuja relativa autonomia decorre, entre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasileiro. Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquanto tal com o aparelho jurídico-político do Estado brasileiro. No caso específico de Pasárgada, pode detectar-se a vigência não oficial e precária de um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela associação de moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrente da luta pela habitação. Este direito não-oficial - o direito de Pasárgada, como poderei chamar - vigora em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem jurídica de Pasárgada. Entre os dois direitos estabelece-se uma relação de pluralismo jurídico extremamente complexa, que só uma análise muito minuciosa pode revelar. Muito em geral pode dizer-se que não se trata de uma relação igualitária, já que o direito de Pasárgada é sempre e de múltiplas formas um direito dependente em relação ao direito oficial brasileiro. Recorrendo a uma categoria da economia política, pode dizer-se que se trata de uma troca desigual de juridicidade entre as classes cujos interesses se espalham num e noutro direito.

A análise da ordem jurídica de Pasárgada circunscreve-se, no que interessa para este estudo, aos recursos internos que são mobilizados para prevenir e resolver conflitos decorrentes da propriedade ou posse da terra e dos direitos sobre construções (casas e barracos) que nesta se implantam. É através da análise dos tipos de conflito e dos seus

5.4. ANEXO 4 – PASÁRGADA

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modos de resolução que melhor se surpreende o direito de Pasárgada em ação, isto é, enquanto prática social. Esta análise, feita num certo momento do desenvolvimento de Pasárgada, requer, para ser completa, a inclusão de uma dimensão histórica. Mais concretamente, trata-se de saber como se constituíram e se desenvolveram, a partir da formação da favela, as normas e as formas jurídicas e os órgãos de decisão jurídica, que hoje se centram à volta da associação de moradores e de outros pólos de organização comunitária autônoma, que continuam a subsistir, ainda que de modo cada vez mais precário, anos depois do apogeu do desenvolvimento comunitário do início da década de 60.

O texto que se segue, circunscreve-se à análise da primeira parte desta evolução e, mesmo assim, de modo muito lacunoso. As dificuldades da investigação histórica no domínio sócio-jurídico são inúmeras, sobretudo quando o objetivo é capturar a gênese das formas e estruturas jurídicas. As dificuldades são ainda maiores quando, como no caso presente, é quase total a carência de documentação escrita. Para as obviar, recorri a entrevistas com os moradores mais antigos de Pasárgada e sobretudo com aqueles que ali viveram desde o início da comunidade. É sabido que este método sociológico tem muitas limitações e que o rigor do conhecimento através dele obtido é sempre muito problemático. E isto é tanto mais assim quando se trata de pesquisar "questões jurídicas" porque, consoante a perspectiva analítica usada pelo entrevistador, tais questões, ou se referem a fatos que não ultrapassam os umbrais de um quotidiano, por vezes longínquo, ou envolvem mitos e tabus à volta dos quais o conhecimento e o desconhecimento social se organizam estratégica e "caprichosamente". Em qualquer dos casos, as respostas dos entrevistados tendem a padecer de vícios, tais como lacunas e distorções de percepção e memória, prejuízos éticos ou outros (sobrevalorização do presente em relação ao passado e vice-versa), indução das respostas, ou seja, adequação destas ao estereótipo do entrevistador e das suas preferências. Em condições como estas, a tentação é grande para compensar as deficiências e informação com sobre-interpretação.

Os Maus e Velhos Tempos

Quando os primeiros habitantes se fixaram em Pasárgada em meados da década de 30, existia muita terra disponível. Cada morador demarcava o seu pedaço de terra e construía seu barraco, deixando em geral espaços abertos para o cultivo de verduras, plantio de árvores ou para criação de animais domésticos. Segundo os mais antigos moradores de Pasárgada, naquela época quase não existiam conflitos entre os habitantes envolvendo direitos sobre a terra e as habitações. "Não havia necessidade de brigas", dizem eles. Os barracos eram de construção muito primitiva, pouco valor tendo. Podiam ser construídos ou demolidos em questão de horas. Por outro lado, uma vez que existia muita terra desocupada, qualquer conflito relacionado com a pose da terra (limites, preferências e servidões) poderia ser evitado facilmente com a simples mudança de uma das partes do conflito para outro lugar no morro.

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Mas o povoado cresceu muito rapidamente e a qualidade das construções melhorou consideravelmente, de tal modo que na segunda metade da década de 40, eram já freqüentes os conflitos envolvendo a propriedade e a posse da terra. Quando se pergunta aos moradores mais antigos a maneira como naquela época tais conflitos eram resolvidos, eles respondem invariavelmente: "violência, a lei do mais forte". Quando, a fim de evitar, em alguma medida, distorções de percepção e de memória, se procura obter informações com base num paralelo entre o modo como os conflitos eram tratados naquele tempo e como são tratados agora, é freqüente obter-se uma resposta deste teor: "Oh! Agora é diferente. Agora as questões são tratadas em paz e tenta-se decidir de acordo com a justiça. Naquela época, eram resolvidas com facas e revólveres". Este tipo de resposta envolve ainda uma certa distorção, porque não é verdade que hoje em dia todos os conflitos sejam pacificamente resolvidos, muito embora não seja menos verdade em Pasárgada do que o é na sociedade brasileira em geral. À luz de informações obtidas e tendo em conta a possibilidade de distorção, é talvez seguro concluir que a probabilidade de relações sociais pacíficas envolvendo a propriedade e a posse da terra e o tratamento também pacífico dos conflitos decorrentes de tais relações é hoje muito mais elevada do que há 20 ou 30 anos.

O aumento da violência, numa primeira fase da história de Pasárgada, resulta, obviamente, de uma pluralidade de fatores. Entre eles apenas se referem dois que tem mais pertinência para os objetivos do presente estudo: por um lado, a indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos de ordenação e controle social próprios do sistema jurídico brasileiro, por outro lado a inexistência de mecanismos alternativos, de origem comunitária, capazes de exercer, ainda que de modo diferente e apenas nos limites da comunidade, funções semelhantes às dos mecanismos oficiais. No que respeita ao primeiro fator, a indisponibilidade diz-se estrutural, sempre que as suas razões transcendem ao domínio motivacional e, portanto, o nível de eventos da interação social, independentemente do grau de universalização desta. Ente os mecanismos oficiais de ordenação e controle social, serão referidos dois: a Polícia e os Tribunais.

A Polícia não tinha delegacias em Pasárgada e, mesmo se as tivesse, é improvável que fossem solicitadas pela população para intervir em casos de conflito, e as delegacias policiais nas áreas urbanizadas próximas também não eram chamadas a agir. Quando se pergunta aos moradores mais antigos as razões porque eles não usavam os serviços da Polícia, eles primeiro riem pela surpresa que lhes causa tal pergunta - tão óbvia é a resposta - depois fazem um esforço para expressar o óbvio. Desde os primórdios da ocupação do morro, a comunidade "entendeu" que estava numa contínua luta com a Polícia. Antes de os terrenos de Pasárgada passarem para o domínio público, várias foram as tentativas empreendidas pela Polícia para expulsar em massa os moradores. E mesmo depois disso, a sobrevivência da comunidade nunca esteve garantida, uma vez que se conheciam casos de remoção de favelas construídas em terrenos do Estado. Chamar a Polícia aumentaria a visibilidade de Pasárgada como comunidade ilegal e poderia eventualmente criar pretextos para remoção.

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Outros fatores contribuíram ainda para que a Polícia fosse vista como um inimigo pelos moradores de Pasárgada. Criminosos, suspeitos, vagabundos e em geral "maus elementos" eram considerados pela Polícia como formando uma considerável proporção da população de Pasárgada. Por conseguinte, pelo que contam desse tempo (que não é, neste aspecto, muito diferente do tempo presente), a Polícia fazia incursões repressivas, isto é, dava batidas na comunidade com muita frequência. Estas batidas eram tão ineficientes do ponto de vista de objetivos policiais quanto eram repugnantes para os moradores que delas eram vítimas. Aqueles que de fato eram "maus elementos" quase nunca eram apanhados e as pessoas inocentes eram levadas com frequência para prisões de onde não eram libertadas a não ser através de suborno. Neste contexto, e mesmo colocando de lado perigos envolvidos, não existia qualquer propósito útil em chamar a Polícia em caso de conflito. Se a vítima, ou, em geral, a pessoa prejudicada chamasse a Polícia, sabia que esta provavelmente não se disporia a vir (a menos que por outros motivos tivesse nisso interesse) e, se viesse, o culpado e todas as relevantes testemunhas já teriam então desaparecido ou, se não, quando interrogadas, fugiam o possível para não fornecer quaisquer informações úteis. Por outro lado, o morador que chamasse a Polícia seria considerado traidor ou informante (cagüete) pelos outros moradores e isso poderia fazer perigar a sua permanência na comunidade.

Não existe razão para duvidar da exatidão deste relato, tanto mais que ele se refere a comportamentos e atitudes que continuam ainda hoje a constituir, em grande parte, o quotidiano das relações entre os moradores de Pasárgada e a Polícia. Apesar de ter agora delegacia em Pasárgada, a Polícia continua a desempenhar um papel mínimo na prevenção e na resolução de conflitos. Não obstante os seus esforços no sentido de uma aceitação mais positiva por parte da comunidade, continua a ser vista por esta como uma força hostil investida de funções estritamente repressivas.

Para além da Polícia (ou em complemento à ação desta), os tribunais constituem outro mecanismo oficial de ordenação e controle social e que os habitantes de Pasárgada poderiam, em teoria, recorrer para prevenir ou resolver conflitos internos de natureza jurídica. Tal recurso estava, no entanto, igualmente vedado e várias são as razões apontadas pelos moradores mais velhos para tal fato. Em primeiro lugar, juízes e advogados eram vistos como demasiado distanciados das classes baixas para poder entender as necessidades e as aspirações dos pobres. Em segundo lugar, os serviços profissionais dos advogados eram muito caros. Segundo a descrição de um dos moradores, "nós estávamos brigando por barracos e pedaços de terra que, do ponto de vista dos advogados, não valiam nada. Além disso, quando você contrata um advogado, você é de uma classe mais baixa do que a dele e ele fica muito a fim de fazer acordos com outros advogados e com o juiz, que podem prejudicar os seus interesses. Então ele vem a você com aquele jeito de falar de advogado e tenta convencer que foi o melhor que ele podia fazer por você, e que, afinal de contas, o acordo não é tão mau assim. E você não pode fazer nada". Esta observação, embora referida a atitudes para com os advogados na época inicial de Pasárgada, baseia-se provavelmente em experiência e percepções adquiridas muito tempo depois. Em qualquer

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caso, pressupõe um conhecimento bastante íntimo da ação dos advogados que duvido fosse comum em Pasárgada há 20 ou 30 anos atrás. Comum era (e continua a ser) a idéia de que os serviços dos advogados são muito caros e, por isso, longe do alcance das posses das classes mais baixas. Uma terceira razão invocada pelos moradores de Pasárgada para não recorrerem aos tribunais reside no fato de saberem desde o início que a comunidade era ilegal à luz do direito oficial, quer quanto à ocupação da terra, quer quanto aos barracos que nela iam construindo. Na expressão perspicaz de um deles, "nós éramos e somos ilegais". Recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitações não só era inútil como perigoso. Era inútil porque "os tribunais têm que seguir o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito". Era perigoso porque trazer a situação ilegal da comunidade à atenção dos serviços do Estado poderia levá-los a "nos jogar na cadeia".

Esta série de observações requer uma análise detalhada, porque esclarece alguns aspectos básicos da gênese e estrutura da ordem jurídica interna de Pasárgada. A expressão "nós éramos e somos ilegais", que, no seu conteúdo semântico, liga o status de ilegalidade com a própria condição humana dos habitantes de Pasárgada, pode ser interpretada como indicação de que nas atitudes destes para com o sistema jurídico nacional tudo se passa como se a legalidade da posse da terra se repercutisse sobre todas as outras relações sociais, mesmo sobre aquelas que nada têm com a terra ou com a habitação. Tal seria o caso se, por exemplo, um conflito jurídico de índole estritamente pessoal não fosse levado à atenção dos operadores do sistema jurídico nacional, pela suspeita das partes de que a ilegalidade do seu status residencial afetasse desfavoravelmente o modo como o conflito seria processado pelos tribunais. Não tenho provas cabais do funcionamento deste mecanismo de feedback e julgo que seria muito difícil, senão impossível, obtê-las. Na verdade, apesar de a inacessibilidade dos tribunais em relação aos conflitos envolvendo terras ocupadas por favelas assumir aspectos peculiares à luz da inexistência ou nulidade legal dos respectivos títulos de propriedade e de posse, é necessário reconhecer que tal inacessibilidade é geral em relação aos problemas jurídicos das classes baixas, residindo ou não em favelas e constitui, por isso, uma das manifestações mais evidentes da natureza classista do aparelho jurídico do Estado numa sociedade capitalista.

No entanto, em muitas entrevistas com os moradores de Pasárgada obtive declarações nas quais a idéia do mecanismo de feedback é subentendida. Eis uma declaração típica: "parece que, somente porque a terra não é nossa, o Estado não tem obrigação de nos fornecer água e luz elétrica e a Polícia pode invadir nossas casas quando bem entende. Existem mesmo patrões que recusam candidatos a emprego quando estes dão endereço numa favela". O significado implícito deste extrato de entrevista é que, de acordo com os princípios de justiça, a ilegalidade da posse da terra nas favelas não se deveria repercutir sobre a provisão de serviços públicos pelo Estado ou sobre o comportamento da Polícia e dos patrões. No contexto em que esta declaração foi feita, significa também que o mecanismo de feedback, embora existindo de fato, não é sequer legal em face do sistema jurídico oficial. Na realidade, o feedback é legal no que respeita à provisão de serviços públicos

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referidos. De acordo com as leis gerais e com as disposições do código urbano, o fornecimento por parte do Estado de serviços públicos, tais como água, esgotos, luz elétrica, pavimentação, é limitada a áreas cuja utilização tenha sido aprovada nos termos da legislação em vigor. No que respeita ao comportamento da Polícia, foi possível, depois de algumas entrevistas com policiais trabalhando noutras favelas, confirmar a disparidade entre o direito nos livros e o direito na prática. Indiferente ao disposto na lei, a Polícia tende a agir segundo o princípio de que, uma vez que os favelados estão ilegalmente domiciliados, não tem razões para reclamar quando a Polícia invade suas casas "no cumprimento do dever?"

A análise da expressão "nós éramos e somos ilegais" parece indicar que a idéia de uma capitis diminutio geral (de uma ilegalidade quase existencial) e a prática social em que ela se espelhou e reforçou agiram como fatores bloqueantes do acesso aos tribunais. O estatuto (e, portanto, os limites) desta declaração de ilegalidade encontra-se precisado na expressão, também já mencionada, de que "os tribunais têm que observar o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito". Juntamente com a anterior, esta citação mostra a ambigüidade profunda da consciência popular do direito nas sociedades caracterizadas por grandes diferenças de classes. Por um lado, a apreciação realista de que o direito do Estado é o que está nos códigos e de que nem estes nem os juízes, que tem por obrigação aplicá-lo, se preocupam com as exigências de justiça social. Por outro lado, o reconhecimento implícito da existência de um outro direito, para além dos códigos e muito mais justo que estes, à luz do qual são devidamente avaliadas as condições duríssimas em que as classes baixas são obrigadas a lutar pelo direito à habitação.

Da discussão precedente conclui-se que, para além das razões diretamente econômicas, o estatuto de ilegalidade da comunidade favelada e o bloqueamento ideológico que lhe foi concomitante criaram uma situação de indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos oficias de ordenação e controle social. Esta situação poderia ter sido de algum modo neutralizada, se entretanto se tivessem desenvolvido na comunidade mecanismos internos, informais e não-oficiais, capazes de articular e exercer uma legalidade e uma jurisdição alternativas para vigorar dentro da comunidade. Sucede, no entanto, que na fase da história de Pasárgada que estamos a analisar tais mecanismos não surgiram e nem surpreende que assim tenha sido. A existência de tais mecanismos pressupõe um índice bastante elevado de organização comunitária, que obviamente não existia ao tempo. Mesmo hoje, numa altura em que Pasárgada é já uma velha e estável comunidade, a sua organização é ainda baseada numa pluralidade de redes de ação social frouxamente estruturadas. É de suspeitar que, quando a comunidade era muito mais jovem e ainda em processo de formação, a sua organização social fosse ainda mais precária e totalmente desprovida de qualquer pólo centralizador.

A indisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais da ordenação e controle social e a ausência de mecanismos não-oficiais comunitários criaram uma situação que designarei por privatização possessiva do direito. É uma situação susceptível de ocorrer,

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por exemplo, em sociedades muito jovens constituídas à margem dos estatutos organizativos definidos, como é o caso da sociedade de fronteira, ou em sociedades em fase de ruptura (devido a revolução, guerra, etc.) e de desestruturação e reestruturação profundas. Esta situação caracteriza-se pela apropriação individual da criação e aplicação das normas que regem potencialmente a conduta social.

Cada unidade social constitui-se em centro de produção de juridicidade com uma vocação universalizante circunscrita à esfera dos interesses econômicos ou outros dessa mesma unidade. Na medida em que a realização social de tais interesses se processa harmoniosamente, isto é, sem ocorrência de conflitos entre os vários centros individuais de juridicidade, a relação entre estes é de extrema autonomia e tolerância recíprocas. No momento, porém, em que os conflitos surgem, o choque não é meramente entre reivindicações fáticas ou normas jurídicas isoladas, é antes entre duas ordens jurídicas, duas pretensões globais de juridicidade ou ainda entre duas vocações contraditórias (mutuamente exclusivas) de universalização jurídica. Nestas condições, o conflito atinge rapidamente uma intensidade extrema, pois que tende a generalizar-se a todas as relações sociais entre as partes conflitantes, inclusivamente àquelas não envolvidas inicialmente no conflito. O conflito é entre dois poderes soberanos entre os quais nenhum poder mediador pode interceder. É um conflito global e insolúvel. Cria-se, assim, uma situação de suspensão jurídica, ou melhor, de ajuridicidade cuja superação tende a ser determinada pela violência. A privatização possessiva do direito constitui-se por uma dialética entre a tolerância extrema e a violência próxima. É esta a dialética que se detecta em Pasárgada na fase da sua história que estivemos a analisar.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/boaventura1d.html. Acesso em : 29 set. 2009.

Página do autor, na Universidade de Coimbra: http://www.ces.uc.pt/bss/pt/index.htm.

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FELIPE DUTRA ASENSIpós-Doutorado em Direito pela Universidade do estado do Rio de Janeiro (FD/UeRJ) em curso. Doutor em sociologia pelo instituto de estudos sociais e políticos (iesp/UeRJ). Mestre em sociologia pelo instituto Universitário de pesqui-sas do Rio de Janeiro (iUpeRJ). Advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cientista social formado pela Universidade do estado do Rio de Janeiro (UeRJ). Aperfeiçoamento em Derechos Fundamentales y Globalización pela Universidad Complutense de Madrid (UCM). pesquisador Associado do laboratório de estudos sobre a Democracia (leD/iesp/UeRJ), do laboratório de pesquisas sobre práticas de integralidade em saúde (lA-ppis/UeRJ) e do núcleo de estudos em Democratização e sociabilidades na saúde (neDss/FiOCRUZ). Membro efetivo da Comissão de Direito Constitucional do instituto dos Advogados Brasileiros (iAB). Membro do Comitê na-cional da Biblioteca Virtual de saúde (BVs-integralidade). professor e Coordenador de publicações da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV DiReiTO RiO). palestrante e escritor.

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Ficha técnica

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PóS–GRaDUaçãODa EScOLa DE DiREitO DO RiO DE JanEiRO

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