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FILOSOFANDO, INTRODUÇÃO À FILOSOFIA MARIA LUCIA DE ARRUDA ARANHA ##CAPÍTULO 2 TRABALHO E ALIENAÇÃO A história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do homem pelo homem. (Max Horkheimer) 1. Visão filosófica do trabalho Vimos no capftuloanteriorque, pelo trabalho, o homem transforma a natureza, e nessa atividade se distingue do animal porque sua ação é dirigida por um projeto (antecipação da ação pelo pensamento), sendo, portanto, deliberada, intencional. O trabalho estabelece a relação dialética entre a teoria e a prática, pela qual uma não pode existir sem a outra: o projeto orienta a ação e esta altera o projeto, que de novo altera a ação, fazendo com que haja mudança dos procedimentos empregados, o que gera o processo histórico. Além disso, para que o distanciamento da ação seja possível, o homem faz uso da linguagem: ao representar o mundo, torna presente no pensamento o que está ausente e comunica-se com o outro. O trabalho se realiza então, e sobretudo, como atividade coletiva. Além de transformar a natureza, humanizando-a, além de proceder à "comununhão" (à união) dos homens, o trabalho transforma o próprio homem. "Todo trabalho trabalha para fazer um homem ao mesmo tempo que uma coisa", disse o filósofo personalista Mounier. Isto significa que, pelo trabalho, o homem se autoproduz: desenvolve

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FILOSOFANDO, INTRODUO FILOSOFIA MARIA LUCIA DE ARRUDA ARANHA

##CAPTULO 2

TRABALHO E ALIENAO

A histria dos esforos humanos para subjugar a natureza tambm a histria dasubjugao do homem pelo homem. (Max Horkheimer)

1. Viso filosfica do trabalho

Vimos no capftuloanteriorque, pelo trabalho, o homem transforma a natureza, e nessa atividade se distingue do animal porque sua ao dirigida por um projeto(antecipao da ao pelo pensamento), sendo, portanto, deliberada, intencional. O trabalho estabelece a relao dialtica entre a teoria e a prtica, pela qual uma no pode existir sem a outra: o projeto orienta a ao e esta alterao projeto, que de novo altera a ao, fazendo com que haja mudana dos procedimentos empregados, o que gera o processo histrico. Alm disso, para que o distanciamento da ao seja possvel, o homem faz uso dalinguagem: ao representar o mundo, torna presente no pensamento o que estausente e comunica-se com o outro. O trabalho se realiza ento, e sobretudo, como atividade coletiva. Alm de transformar a natureza, humanizando-a, alm de proceder "comununho" ( unio) dos homens, o trabalho transforma o prprio homem. "Todo trabalhotrabalha para fazer um homem ao mesmo tempo que uma coisa", disse o filsofo personalista Mounier. Isto significa que, pelo trabalho, o homem se autoproduz: desenvolvehabilidades e imaginao; aprende a conhecer as foras da natureza e a desafi-las; conhece as prprias foras e limitaes; relaciona-se com os companheiros e viveos afetos de toda relao; impe-se uma disciplina. O homem nopermanece o mesmo, pois o trabalho altera a viso que ele tem do mundo e de si mesmo. Se num primeiro momento a natureza se apresenta aos homens como destino, otrabalho ser a condio da superao dos determinismos: a transcendncia propriamentea liberdade. Por isso, a liberdade no alguma coisa que dada ao homem, mas o resultado da sua ao transformadora sobre o mundo, segundo seus projetos. (Consultaro Captulo 30 A liberdade.)

2. Viso histrica do trabalho

A concepo de trabalho sempre esteve predominantemente ligada a uma viso negativa. Na Bblia, Ado e Eva vivem felizes at que o pecado provoca sua expulsodo Paraso e a condenao ao trabalho com o "suor do seu rosto". A Eva coube tambm o "trabalho" do parto. A etimologia da palavra trabalho vem do vocbulo latino tripaliare, do substantivo tripalium, aparelho de tortura formado por trs paus, ao qual eram atadosos condenados, e que tambm servia para manter presos os animais difceis de ferrar. Da a associao do trabalho com tortura, sofrimento, pena, labuta. Na Antiguidade grega, todo trabalho manual desvalorizado por ser feito por escravos, enquanto a atividade terica, considerada a mais digna do homem, representaa essncia fundamental de todo ser racional. Para Plato, por exemplo, a finalidade dos homens livres justamente a "contemplao das idias". Voltaremos a analisareste aspecto no Captulo 10 (Teoria do conhecimento). Tambm na Roma escravagista o trabalho era desvalorizado. significativo o fato de a palavranegocium indicar a negao do cio: ao enfatizar o trabalhocomo "ausncia de lazer", distingue-se o cio como prerrogativa dos homens livres. Na Idade Mdia, Santo Toms de Aquino procura reabilitar o trabalho manual, dizendo que todos os trabalhos se equivalem, mas, na verdade, a prpria construoterica de seu pensamento, calcada na viso grega, tende a valorizar a atividade contemplativa. Muitos textos medievais consideram aars mechanica (arte mecnica)uma ars inferior. Tanto na Antiguidade como na Idade Mdia, essa atitude resulta na impossibilidade de a cincia se desligar da filosofia. Na Idade Moderna, a situao comea a se alterar: o crescente interesse pelas artes mecnicas e pelo trabalho em geraljustifica-se pela ascenso dos burgueses,vindos de segmentos dos antigos servos que compravam sua liberdade e dedicavam-se ao comrcio, e que portanto tinham outra concepo a respeito do trabalho. A burguesia nascente procura novos mercados e h necessidade de estimular as navegaes; no sculo XV os grandes empreendimentos martimos culminam com adescoberta do novo caminho para as ndias e das terras do Novo Mundo. A preocupao de dominar o tempo e o espao faz com que sejam aprimorados os relgios e a bssola.Com o aperfeioamento da tinta e do papel e a descoberta dos tipos mveis, Gutenberg inventa a imprensa.No sculo XVII, Pascal inventa a primeira mquina de calcular; Torricelli constri o barmetro; aparece o tear mecnico. Galileu, ao valorizar a tcnica, inaugurao mtodo das cincias da natureza, fazendo nascer duas novas cincias, a fsica e a astronomia (ver Captulo 14 - A cincia na Idade Moderna). A mquina exerce tal fascnio sobre a mentalidade do homem moderno que Descartes explica o comportamento dos animais como se fossem mquinas, e vale-se domecanismo do relgio para explicar o modelo caracterstico do universo (Deusseria o grande relojoeiro!).

Nascimento das fbricas e urbanizao

Na vida social e econmica ocorrem, paralelamente ao desenvolvimento descrito, srias transformaes que determinam a passagem do feudalismo ao capitalismo.Alm do aperfeioamento das tcnicas, d-se o processo de acumulao de capital e a ampliao dos mercados. O capital acumulado permite a compra de matrias-primas e de mquinas, o que faz com que muitas famlias que desenvolviam o trabalho domstico nas antigascorporaes e manufaturas tenham de dispor de seus antigos instrumentos de trabalho e, para sobreviver, se vejam obrigadas a vender a fora de trabalho em trocade salrio. Com o aumento da produo aparecem os primeiros barraces das futuras fbricas, onde os trabalhadores so submetidos a uma nova ordem, a da diviso do trabalhocom ritmo e horrios preestabelecidos. O fruto do trabalho no mais lhes pertence e a produo vendida pelo empresrio, que fica com os lucros. Est ocorrendo o nascimento de uma nova classe: o proletariado. No sculo XVIII, a mecanizao no setor da indstria txtil sofre impulso extraordinrio na Inglaterra, com o aparecimento da mquina a vapor, aumentandosignificativamente a produo de tecidos. Outros setores se desenvolvem, como o metalrgico; tambm no campo se processa a revoluo agrcola. No sculo XIX, o resplendor do progresso no oculta a questo social, caracterizadapelo recrudescimento da explorao do trabalho e das condies subumanasde vida:extensas jornadas de trabalho, de dezesseis a dezoito horas, sem direito a frias, sem garantia para a velhice, doena e invalidez; arregimentao de crianas emulheres, mo-de-obra mais barata; condies insalubres de trabalho, em locais mal-iluminados e semhigiene; mal pagos, os trabalhadores tambm viviam mal alojadose em promiscuidade. Da constatao deste estado de coisas que surgem no sculo XIX os movimentos socialistas e anarquistas, que pretendem denunciar e alterar a situao.

(Gravura)Crianas trabalhando em uma fbrica de papel na Alemanha, no sculo XIX. Era freqente a arregimentao de mo-de-obra formada por mulheres e crianas, submetidasa extensas jornadas de trabalho.

A sociedade ps-industrial

As alteraes sociais decorrentes da implantao do sistema fabril indicam o deslocamento de importncia central do setor primrio (agricultura) para o setorsecundrio (indstria). A partir de meados do sculo XX surge o que chamamos de sociedade ps-industrial, caracterizada pela ampliao dos servios (setor tercirio). No que osoutros setores tenham perdido importncia, mas as atividades de todos os setores ficam dependentes do desenvolvimento de tcnicas de informao e comunicao. Bastaver como o cotidiano de todos ns se acha marcado pelo consumo deservios de publicidade, comunicao, pesquisa, empresas de comrcio e finanas, sade, educao, lazer etc. A mudana de enfoque descentraliza a ateno antes voltada para a produo (capitalista versus operrio), agora mobilizada pelo consumo e informao, comoveremos adiante.

3. O que alienao?

Hegel, filsofo alemo do sculo XIX, faz uma leitura otimista da funo do trabalho na clebre passagem "do senhor e do escravo", descrita na Fenomenologiado esprito. O filsofo se refere a dois homens que lutam entre si e um deles sai vencedor, podendo matar o vencido; este se submete, no ousando sacrificar a prpriavida. A fim de ser reconhecido como senhor, o vencedor "conserva" o outro como "servo". Depois disso, o servo submetido que tudo faz para o senhor; mas, com otempo, o senhor descobre que no sabe fazer mais nada, pois, entre ele e o mundo, colocou o escravo, que domina a natureza. O ser do senhor se descobre comodependente do ser do escravo e, em compensao, oescravo, aprendendo a vencer a natureza, recupera de certa forma a liberdade. O trabalho surge, ento, como a expresso da liberdade reconquistada. Marx retoma a temtica hegeliana, mas critica a viso otimista do trabalho ao demonstrar como o objeto produzido pelo trabalho surge como um ser estranhoao produtor, no mais lhe pertencendo: trata-se do fenmeno da alienao. Em Hegel tambm surge o conceito de alienao. Em sua pespectiva, ela corresponde ao momento em que o esprito "sai de si" e se manifesta na construoda cultura. Essa cisao provocada pelo esprito que se exterioriza na cultura (por meio do trabalho) superada pelo trabalho da conscincia, que nesseestgio superior consciente de si. Com isso, segundo Marx, ao privilegiar a conscincia,HegeL perde a materialidade do trabalho (o que se compreende dentro da linha idealista do pensamento hegeliano). Isso no significa que Marx no considere o trabalho condio da liberdade. Ao contrrio, esse o ponto central do seu raciocnio. Para ele, o conceitosupremo de toda concepo humanista est em que o homem deve trabalhar para si, no entendendo isso como trabalho sem compromisso com os outros, pois todo trabalho tarefa coletiva, mas no sentido de que deve trabalhar para fazer-se a si mesmo homem. O trabalho alienado o desumaniza. Vejamos portanto em que consiste a alienaono trabalho.

Conceituao de alienao

H vrios sentidos para o conceito de alienao. Juridicamente, significa a perda do usufruto ou posse de um bem ou direito pela venda, hipoteca etc. Nas esquinas costumamos ver cartazes de marreteiroschamando a ateno dos motoristas: "Compramos seu carro, mesmo alienado". Referimo-nos a algum como alienado mental, dizendo, com isso, que tal pessoa louca. Alis, alienista o mdico de loucos. A alienao religiosa aparece nos fenmenos de idolatria, quando um povo cria idolos e a eles se submete. Para Rousseau, a soberania do povo inalienvel, isto , pertence somente ao povo, que no deve outorg-la a nenhum representante, devendo ele prprio exerc-la. o ideal da democracia direta. Na vida diria, chamamos algum de alienado quando o percebemos desinteressado de assuntos considerados importantes, tais como as questes polticas e sociais. Em todos os sentidos, h algo em comum no uso da palavra alienao: no sentido jurdico, perde-se a posse de um bem; na loucura, o louco perde a dimensode si na relao com o outro; na idolatria, perde-se a autonomia; na concepo de Rousseau, o povo nodeve perder o poder; o homem comum alienado perde a compreenso do mundo em que vive etorna alheio a sua conscincia um segmento importante da realidade em que seacha inserido. Etimologicamente a palavra alienao vem do latim aliena re, alienas, que significa "que pertence a um outro". E outro alius. Sob determinado aspecto,alienar tornar alheio, transferir para outrem o que seu. Para Marx, que analisou esse conceito bsico, a alienao no puramente terica, pois se manifesta na vida real do homem, na maneira pela qual, a partirda diviso do trabalho, o produto do seu trabalho deixa de lhe pertencer. Todo o resto decorrncia disso. Retomando a discusso anterior, vimos que o surgimento do capitalismo determinou a intensificao da procura do lucro e confinou o operrio fbrica, retirandodele a posse do produto. Mas no apenas o produto que deixa de lhe pertencer. Ele prprio abandona o centro de si mesmo. No escolhe o salrio - embora isso lheaparea ficticiamente como resultado de um contrato livre -, no escolhe o horrio nem o ritmo de trabalho e passa a ser comandado de fora, por foras estranhasa ele. Ocorre ento o que Marx chama de fetichismo da mercadoria e reificao do trabalhador. O fetichismo" o processo pelo qual a mercadoria, ser inanimado, considerada como se tivesse vida, fazendo com que os valores de troca setornem superioresaos valores de uso e determinem as relaes entre os homens, e no vice-versa. Ou seja, a relao entre os produtores no aparece como sendo relao entre eles prprios(relao humana), mas entre os produtos do seu trabalho. Por exemplo, as relaes no so entre alfaiate e carpinteiro, mas entre casaco e mesa. A mercadoria adquire valor superior ao homem, pois privilegiam-se as relaes entre coisas, que vo definir relaes materiais entre pessoas. Com isso, amercadoria assume formas abstratas (o dinheiro, o capital) que, em vez de serem intermedirias entreindivduos, convertem-se em realidades soberanas e tiranicas. Em conseqncia, a "humanizao" da mercadoria leva desumanizao do homem, a sua coisificao, reificao (do latim res, "coisa"), sendo o prprio homemtransformado em mercadoria (sua fora de trabalho tem um preo no mercado). As discusses a respeito da alienao preocuparam autores marxistas como Lukcs, Erich Fromm e Althusser, entre outros, e filsofos existencialistas e personalistascomo Sartre, o cristo Mounier e o no-marxista Heidegger, que descreveram os modos inautnticos do existir humano. A seguir, examinaremos a alienao na produo, no consumo e no lazer.

(Gravura) Fetichismo: nas prticas religiosas. Feitio" ou "fetiche" significa objeto a que se atribui poder sobrenatural; em psicologia, fetichismo a perversona qual a satisfao sexual depende da viso ou contato com um objeto determinado (sapatos, meias, roupas ntimas etc.). o paralelo entre esses dois sentidos e odo fetichismo da mercadoria que, nos trs casos, os objetos inertes, sem vida, so "animados","bmnanizados".

Alienao na produo

O taylorismo

Nos sistemas domsticos de manufatura, era comum o trabalhador conhecer todas as etapas da produo, desde o projeto at a execuo. A partir da implantaodo sistema fabril, no entanto, isso no mais possvel. devido crescente complexidade resultante da diviso do trabalho. Chamamos dicotomia a concepo-execuo do trabalho justamente ao processo pelo qual um pequeno grupo de pessoas concebe, cria, inventa o que vai ser produzido.inclusive a maneira como vai ser produzido, e outro grupo obrigado simples execuo do trabalho, sempre parcelado, pois a cada um cabe parte do processo. A diviso do trabalho foi intensificada no incio do sculo XX. quando Henry Ford introduziu o sistema de linha de montagem na industria automobilstica(fordismo). A expresso terica do processo de trabalho parcelado levada a efeito por Frederick Taylor (1856-1915), no livro Princpios de administraocientfica,onde estabelece os parmetros do mtodo cientfico de racionalizao da produo - da em diante conhecido como taylorismo - e que visa o aumento de produtividade com a economia de tempo, a supresso de gestos desnecessrios e comportamentos suprfluos no interior do processo produtivo. O sistema foi implantado com sucesso no incio do sculo nos EUA e logo extrapolouos domnios da fbrica, atingindo outros tipos de empresa, os esportes, a medicina, aescola e at a atividade da dona de casa. Por exemplo, um ferro de passar fabricado de acordo com os critrios de economia de tempo, de gasto de energia (de eletricidade e da dona de casa, por que no?); a localizao dapia e do fogo devem favorecer a mobilidade; os produtos de limpeza devem ser eficazes num piscar de olhos. Taylor parte do princpio de que o trabalhador indolente, gosta de "fazer cera" e usa os movimentos de forma inadequada. Observando seus gestos, determina a simplificao deles, de tal forma que a devida colocaodo corpo, dos ps e das mos possa aumentar a produtividade. Tambm a diviso e o parcelamento do trabalho se mostra importante para a simplificao e maiorrapidez do processo. So criados cargos de gerentes especializados em treinar operrios, usando cronmetros e depois vigiando-os no desempenho de suas funes. Os bons funcionrios so estimulados com recompensas, os indolentes, sujeitos a punies. Taylor tentava convencer os operrios de que tudo isso era para o bem deles, pois, em ltima anlise, o aumento da produo reverteria em benefcios tambm para eles, gerando a sociedade da opulncia. O homem, reduzido a gestos mecnicos, tornado "esquizofrnico" pelo parcelamento das tarefas, foi retratado em Tempos modernos, filme clssico de CharlesChaplin, o popular Carlitos. O sistema de "racionalizao" do trabalho faz com que o setor de planejamento se desenvolva, tendo em vista a necessidade de aprimorar as formas de controle da execuo das tarefas. A necessidade de planejamento desenvolve intensa burocratizao. Os burocratas so especialistas na administrao de coisas e de homens, estabelecendo ejustificando a hierarquia e a impessoalidade das normas. A burocracia e o planejamento se apresentam com a imagem de neutralidade e eficcia da organizao, comose estivessem baseados num saber objetivo, competente, desinteressado. Mas apenas uma imagem de neutralidade que mascara um contedo ideolgico (ver Captulo 5 - Ideologia) eminentemente poltico: na verdade, trata-se de uma tcnica social de dominao. Vejamos por que. No fcil submeter o operrio a um trabalho rotineiro, irreflexivo e repetitivo no qual, enquanto homem, ele se encontra reduzido a gestos estereotipados.Se no compreendemos o sentido da nossa ao e se o produto do trabalho no nosso, bem difcil dedicarmo-nos com empenho a qualquer tarefa. O taylorismo substituias formas de coao visveis, de violncia direta, pessoal, de um "feitor de escravos", por exemplo, por formas mais sutis que tornam o operrio dcil e submisso. um sistema que impessoaliza a ordem, que no aparece mais com a face deum chefe que oprime, diluindo-a nas ordens de servio vindas do "setor de planejamento".Retira toda a iniciativa do operrio, que cumpre ordens, modela seu corpo segundo critrios exteriores, "cientficos", e cria a possibilidade da interiorizao danorma, cuja figura exemplar a do operrio-padro. O recurso de distribuio de prmios, gratificaes e promoes para se obter ndices cada vezmaiores de produo gera a "caa" aos postos mais elevadosna empresa, e estimula a competio em vez da solidariedade. A fragmentao dos grupos e do prprio operrio que ocorre nas fbricas facilita ao capitalista o controleabsoluto do produto final. interessante lembrar que o taylorismo no exclusivo do capitalismo, pois a "racionalizao" da produo tambm foi introduzida na antiga URSS por Lnin,com ajustificativa de que o sistema no era utilizado para a explorao do trabalhador, mas para sua libertao. O produto do trabalho no seria apropriado pelocapitalista, j que a propriedade privada dos meios de produo fora ehminada com a revoluo de 1917. Mas, de fato, o que resultou disso no foi a empresa burocratizada.mas o prprio Estado burocrtico. No faltaram criticas de grupos anarquistas, intelectuais de esquerda em geral, acusando Lnin de ter esquecido o princpio darealizao do socialismo a partir de organizaes de base, ao introduzir relaes hierrquicas de poder dentro do prprio processo de trabalho. A "racionalizao" do processo de trabalho traz em si uma irracionalidade bsica. Desaparece a valorizao do sentimento, da emoo, do desejo. As pessoasque aparecem nas fichas do setor de pessoal so vistas sem amor nem dio, de modo impessoal. O burocrata-diretor apenas um profissional que manipula as pessoascomo se fossem cifras ou coisas. O filsofo alemo Habermas. herdeiro da tradio da Escola de Frankfurt, deteve-se na anlise dos efeitos perversos do sistema de produo, opondo os conceitosde razo Instrumental e razo comunicativa, referentes a dois aspectos distintos da realidade social. A razo instrumental predominantemente tcnica, usada na organizao das foras produtivas que visam atingir nveis altos de produtividade e competitividade.Mas a lgica da razo instrumental no a mesma da razo vital, existente no mundo vivido das experincias pessoais e da comunicao entre as pessoas. Ora, a irracionalidade no mundo moderno (e a sua patologia) decorre da sobreposio da lgica da razo instrumental em setores que deviam ser regidos pelarazo comunicativa. No se trata de negar o valor da primeira, mas de resgatar o que perdido em termos de humanizao quando a razo tcnica se sobrepe razovital.

A alienao no setor de servios

Marx viveu no perodo em que a explorao capitalista sobre o proletariado era muito explcita, e por isso achava que o antagonismo entre as classes chegariaao ponto crucial em que o crescente empobrecimento do operariado levaria tomada de conscincia da dominao e conseqente superao dela por meio da revoluo. Mas na chamada "sociedade opulenta" dos pases economicamente mais desenvolvidos (no pense em termos de Brasil!) houve a tendncia oposta, com a diminuioda explorao econmica das massas tal como tinha sido conhecida no sculo anterior. Com a ampliao do setor de servios, aumenta a classe mdia, multiplicam-se as profisses de forma inimaginvel e nos aglomerados urbanos os escritriosabrigam milhares de funcionrios executivos e burocratas em geral. Na nova organizao acentuam-se as caractersticas de individualismo que levam atomizao e disperso dos indivduos, o que faz aumentar o interesse pelosassuntos da vida privada (e menos pelas questes pblicas e polticas), alm da procura hedonista de formas de lazer e satisfao imediata (talvez justamente porqueo prazer lhes negado no trabalho alienado!). Assim, a explorao e a alienao, embora ainda continuem existindo, no aparecem como atributos da esfera da produo, mas da esfera do consumo. Ao prosperaremmaterialmente, os trabalhadores passam a compartilhar do "esprito do capitalismo",sucumbindo aos apelos e promessas da sociedade de consumo, como veremos adiante.

O sofrimento da natureza

Quando tratamos da produo humana, nos referimos ao poder que o homem tem de transformar a natureza e us-la em funo de seus interesses. E desde que a cinciapossibilitou a revoluo tecnolgica, esse poder vem sendo ampliado enormemente. E se at aqui demos conta apenas dos prejuzos que a tcnica pode causar ao homem submetido alienao, preciso no esquecer que a prpria natureza temsofrido com o abuso exercido sobre ela. A exaltao indiscriminada do progresso (ver Captulo II - O conhecimento cientfico) quase nunca tem permitido respeitara integridade da natureza, a ponto de as organizaes de defesa do meio ambiente virem denunciando h tempos as ameaas sobrevivncia do planeta.

A sociedade administrada

Chegamos ao impasse que nos deixa perplexos diante da tcnica apresentada de incio como libertadora e que se mostra, afinal, geradora de uma ordem tecnocrticaopressora. Quando se submete passivamente aos critrios de produtividade e desempenhono mundo competitivo do mercado, o homem permite que lhe seja retirado todo prazerem sua atividade produtora, passando a ser regido por" princpios "racionais" que o levam perda de si. Mais ainda, na sociedade da total administrao, segundo a expresso de Horkheimer eAdorno, os conflitos existentes foram dissimulados, no havendo oposioporque o homem perdeu sua dimenso de critica. No queremos assumir a posio ingnua da critica gratuita tcnica, mas preciso preocupar-se com a absolutizao do "espritoda tcnica" (a razo instrumental, a que j nosreferimos). Onde a tcnica se torna o principio motor, o homem se encontra mutilado, porque reduzido ao anonimato, s funes que desempenha, e nunca um fim, mas sempre meio para qualquer coisa que se acha fora dele. Enquanto prevalecerem as funes divididas do homem que pensa e do homem que s executa, ser impossvel evitar a dominao, pois sempre existir a idiade que s alguns sabem e so competentes e portanto decidem; a maioria que nada sabe incompetente e obedece. Por isso, a questo fundamental, hoje, a da necessidade da reflexo moral sobre os fins a que a tcnica atende, observando se ela est a servio do homemou da sua explorao.

Alienao no consumo

O consumo no-alienado

O ato do consumo um ato humano por excelncia, no qual o homem atende a suas necessidades orgncas (de subsistncia), culturais (educao e aperfeioamento)e estticas. Quando nos referimos a necessidades, no se trata apenas daquelas essenciais sobrevivncia, mas tambm das que facilitam o crescimento humano em suas mltiplase imprevisveis direes e do condies para a transcendncia. Nesse sentido, as necessidades de consumo variam conforme a cultura etambm dependem de cada indivduo. No ato de consumo participamos como pessoas inteiras, movidas pela sensibilidade, imaginao, inteligncia e liberdade. Por exemplo, quando adquirimos umaroupa, diversos fatores so considerados: precisamos proteger nosso corpo; ou ocult-lo por pudor; ou "revel-lo" de forma ertica; usamos de imaginao na combinao das peas, mesmo quando seguimos as tendncias da moda; desenvolvemos um estilo prprio de vestir; no compramos apenas uma pea, pois gostamos de variar as cores e os modelos. Enfim, o consumo no-alienado supe, mesmo diante de influnciasexternas, que o indivduo mantenha a possibilidade de escolha autnoma, no s para estabelecersuas preferncias como para optar por consumir ou no. Alm disso, o consumo consciente nunca um fim em si, mas sempre um meio para outra coisa qualquer.

O consumo alienado

Num mundo em que predomina a produo alienada, tambm o consumo tende a ser alienado. A produo em massa tem por corolrio o consumo de massa. O problema da sociedade de consumo que as necessidades soartificialmente estimuladas, sobretudo pelos meios de comunicao de massa, levando os indivduosa consumirem de maneira alienada. A organizao dicotmca do trabalho a que nos referimos - pela qual se separam a concepo e a execuo do produto - reduz as possibilidades de o empregadoencontrar satisfao na maior parte da sua vida, enquanto se obriga a tarefas desinteressantes. Da a importncia que assume para ele a necessidade de se dar prazerpela posse de bens. "Acivilizao tecnicista no uma civilizao do trabalho, mas do consumo e do"bem-estar". O trabalho deixa, para um nmero crescente de indivduos, de incluirfins que lhe so prprios e torna-se um meio de consumir, de satisfazer as "necessidades" cada vez maisamplas."(2)2 O. Friedmann, Sete estudos sobre o homem e a tcnica, p. 147.

Vimos que na sociedade ps-industrial a ampliao do setor de servios desloca a nfase da produo para o consumo de servios. Multiplicam-se as ofertasde possibilidade de consumo. A nica coisa a que no se tem escolha no consumir! Os centros de compras se transformam em "catedrais do consumo", verdadeiros templos cujo apelo ao novo torna tudo descartvel e rapidamente obsoleto. Vendem-secoisas, servios, idias. Basta ver como em tempos de eleio "vendida" a imagem de certos polticos... A estimulao artificial das necessidades provoca aberraes do consumo: montamos uma sala completa de som, sem gostar de msica; compramos biblioteca "ametro" deixando volumes "virgens" nas estantes; adquirimos quadros famosos, sem saber apreci-los (ou para mant-los no cofre). A obsolescncia dos objetos, rapidamentepostos fora de moda", exerce uma tirania invisvel, obrigando as pessoas a comprarem a televiso nova, o refrigerador ou o carro porque odesign se tornou antiquadoou porque uma nova engenhoca se mostrou "indispensvel". E quando bebemos Coca-Cola porque "E emoo pra valer!", bebemos o slogan, o costume norte-americano, imitamos os jovens cheios de vida e alegria. Com onosso paladar que menos bebemos... Como o consumo alienado no um meio, mas um fim em si, torna-se um poo sem fundo, desejo nunca satisfeito, um sempre querer mais. A nsia do consumo perdetoda relao com as necessidades reais do homem, o que faz com que as pessoas gastem sempre mais do que tm. O prprio comrciofacilita tudo isso com as prestaes, cartes de crdito, liquidaes e ofertas deocasio "dia das mes" etc. Mas h um contraponto importante no processo de estimulao artificial do consumo suprfluo - notado no s na propaganda, mas na televiso, nas novelas-, que a existncia de grande parcela da populao com baixo poder aquisitivo, reduzida apenas ao desejo de consumir. O que faz com que essa massa desprotegidano se revolte? H mecanismos na prpria sociedade que impedem a tomada de conscincia: as pessoas tm a iluso de que vivem numa sociedade de mobilidade social e que, peloempenho no trabalho, pelo estudo, h possibilidade de mudana, ou seja, "um dia eu chego la E se nao chegam, " porque no tiveram sorte ou competncia". Por outro lado, uma srie de escapismos na literatura e nas telenovelas fazem com que as pessoas realizem suas fantasias de forma imaginria, isto sem falarna esperana semanal da Loto, Sena e demais loterias. Alm disso, h sempre o recurso ao ersatz, ou seja, a imitao barata da roupa, da jia, do bule da rica senhora. O torvelinho produo-consumo em que est mergulhado o homem contemporneo impede-o de ver com clareza a prpria explorao e a perda da liberdade, de talforma se acha reduzido na alienao ao que Marcuse chama de unidimensionahdade (ou seja, a uma s dimenso). Ao deixar de ser o centro de si mesmo, o homem perdea dimenso de contestao e crtica, sendo destruda a possibilidade de oposio no campo da poltica, da arte, da moral. Por isso, nesse mundo no h lugar para a filosofia, que , por excelncia, o discurso da contestao.Lessive Brillo, de Andy Warhol. Principal representante da PopArt, o artista destaca pela repetio um objeto banal do cotidiano: uma pilha de caixas de prosaicosalvejantes de roupa, que pode nos levar a refletir sobre o impacto visual dos produtos na sociedade de consumo.

Alienao no lazer

Histrico do lazer

O lazer criao da civilizao industrial, e aparece como um fenmeno de massa com caractersticas especiais que nunca existiram antes do sculo XX. Antes o lazer era privilgio dos nobres que, nas caadas, festas, bailes e jogos, intensificavam suas atividades predominantemente ociosas. Mais tarde, osburgueses enriquecidos tambm podiam se dar ao luxo de aproveitar o tempo livre. Os artesos e camponeses que viviam antes da Revoluo Industrial seguiam o ritmo da natureza: trabalhavam desde o clarear do dia e paravam ao cair da noite,j que a deficiente iluminao no permitia outra escolha.Seguiam o ritmo das estaes, pois a semente exige o tempo de plantio, tanto quanto a colheita deve ser feita na poca certa. Havia "dias sem trabalho", queofereciam possibilidade de repouso, embora no muito, pois geralmente os feriadosprevistos eram impostos pela Igreja e havia a exigncia de prticas religiosase rituais obrigatrios. As festas religiosas ou as que marcavam o fim da colheita eram atividades coletivas e adquiriam importante sentido na vida social. O advento da era industrial e o crescimento das cidades alteram o panorama. Com a introduo do relgio, o ritmo do trabalho deixa de ser marcado pela natureza.A mecanizao, diviso e organizao das tarefas exigem que o tempo de trabalho seja cronometrado, e as extensas jornadas de dezesseis a dezoito horas mal deixamtempo para a recuperao fisiolgica. Mas as reivindicaes dos trabalhadores vo lentamente conseguindo alguns xitos. A partir de 1850 estabelecido o descanso semanal; em 1919 votada alei das oito horas; progressivamente a semana de trabalho reduzida para cinco dias. Depois de 1930, outras conquistas, como descanso remunerado, frias e, concomitantemente,a organizao de "colnias de frias", fazem surgir no sculo XX o "homem-de-aps-trabalho". o inicio de uma nova era, que tende a tomar contornos mais definidoscom a intensificao da automao do trabalho. Estamos nos dirigindo a passos largos para a "civilizao do lazer"... No Brasil a legislao trabalhista demorou mais tempo e dependeuda a tardia organizao sindical, uma vez que tambm o processo de industrializao brasileiro foiposterior ao dos pases mais avanados. Apenas na dcada de 30, no governo populista de Getlio Vargas, os trabalhadores conquistaram a regulamentao das oito horasdirias de trabalho e outros benefcios. A diminuio da jornada de trabalho cria o tempo liberado, que no pode ser confundido ainda com o tempo livre, pois aquele gasto de inmeras maneiras:no transporte - na maioria das vezes o operrio mora longe do local de trabalho; com as ocupaes de asseio e alimentao; com o sono; com obrigaes familiarese afazeres domsticos; com obrigaes sociais, polticas ou religiosas; s vezes at com um "bico" para ganhar mais alguns trocados. Isso sem falar notrabalho da mulher, que sempre supe a "dupla jornada de trabalho".

O que lazer?

O tempo propriamente livre, de lazer, considerado aquele que sobra aps a realizao de todas as funes que exigem uma obrigatoriedade, quer sejamas de trabalho ou todas as outras que ocupam o chamado tempo liberado. O que lazer, ento? Segundo Dumazedier, "o lazer um conjunto de ocupaes s quais o indivduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informao ou formao desinteressada, sua participao social voluntria ou sua livre capacidade criadora, aps livrar-se ou desembaraar-se das obrigaes profissionais, familiares esociais. Portanto, h trs funes solidrias no lazer: - visa o descanso e, portanto, libera da fadiga; - visa o divertimento, a recreao, o entretenimento e, portanto, uma complementao que d equilbrio psicolgico nossa vida, compensando o esforoque despendemos no trabalho. O lazer oferece, no bom sentido da palavra, a evaso pela mudana de lugar, de ambiente, de ritmo, quer seja em viagens, jogos ou esportes ou ainda em atividades que privilegiam a fico, tais como cinema, teatro, romance, e que exigem o recurso exaltao da nossa vida imaginria; - visa a participao social mais livre, ecom isso promove o nosso desenvolvimento.A procura desinteressada de amigos, de aprendizagem voluntria, estimula a sensibilidadee a razo e favorece o surgimento de condutas inovadoras. De tudo isso, fica claro que o lazer autntico ativo, ou seja, o homem no um ser passivo que deixa "passar o tempo" livre, mas empenha-se em algo queescolhe e lhe d prazer e o modifica como pessoa. bom no reduzir o lazer criativo apenas aos programas com funes claramente didticas. Podemos assistir ativamente a qualquer tipo de programa quando somos bons observadores, assumimos atitude seletiva, somos sensiveis aos estmulos recebidos e procuramos compreender o que vemos e apreciamos.

O lazer alienado

No mundo em que a produo e o consumo so alienados, difcil evitar que o lazer tambm no o seja. A passividade e o embrutecimento naquelas atividadesrepercutem no tempo livre. Sabe-se que pessoas submetidas ao trabalho mecnico e repetitivo na linha de montagem tm o tempo livre ameaado pela fadiga mais psquica do que fsica, tornando-se incapazes de se divertir. Ou ento, exatamente ao contrrio, procuram compensaes violentas que as recuperem do amortecimento dos sentidos. A propaganda da bem-montada "indstria do lazer" orienta as escolhas e os modismos, manipula o gosto, determinando os programas: boliche, patinao, discotecas, danceterias, filmes da moda. At aqui, fizemos referncia a determinado segmento social que tem acesso ao tempo de lazer. Resta lembrar que as cidades no tm infra-estrutura que garanta aos mais pobres a ocupao do seu tempo livre: lugares onde ouvir msica, praas para passeios, vrzeas para o joguinho de futebol, clubes populares, locais de integrao social espontnea. Isso torna muito reduzida a possibilidade do lazer ativo, no-alienado, ainda mais se supusermos que o homem se encontra submetido a todas as formasde massificao pelos meios de comunicao. Vimos que o lazer ativo se caracteriza pela participao integral do homem como ser capaz de escolha e de crtica. Dessa forma, o lazer ativo permite a reformulao da experincia. Tal no ocorre com o lazer passivo, no qual o homem no reorganiza a informao recebida ou a ao executada, de modo que elas nada lhe acrescentamde novo, ao contrrio, reforam os comportamentos mecanizados. bom lembrar que o carter de atividade ou passividade nem sempre decorre do tipo de lazer em si, mas da postura do homem diante dele. Assim, duas pessoasque assistem ao mesmo filme podem ter atitude ativa ou passiva, dependendo da maneira pela qual se posicionam como seres que comparam, apreciam, julgam e decidem ou nao.

3j. Dumazedier, Lazer e cultura popular, p. 34.

*****## CAPTULO 5

IDEOLOGIA

(Gravura)(Glauco, Abobrinhas da Brasilnia, So Paulo, Circo Editorial, 1985.)

#PRIMEIRA PARTE - O que ideologia?

1. Senso comum e bom senso

Chamamos senso comum ao conhecimento adquirido por tradio, herdado dos antepassados e ao qual acrescentamos osresultados da experincia vivida na coletividadea que pertencemos. Trata-se de um conjunto de idias que nos permite interpretar a realidade, bem como de um corpo de valores que nos ajuda a avaliar, julgar e portanto agir. Como examinaremos no Capitulo II (O conhecimento cientfico), o senso comum no refletido e se encontra misturado a crenas e preconceitos. um conhecimento ingnuo (no-crtico), fragmentrio (porque difuso, assistemtico e muitas vezes sujeito a incoerncias) conservador (resiste s mudanas). Com isso nao queremos desmerecer a forma de pensar do homem comum, mas apenas enfatizar que o primeiro estdio de conhecimento precisa ser superado em direo a uma abordagem critica e coerente, caractersticas estas que no precisam ser necessariamente atributos deformas mais requintadas de conhecer, tais como a cincia ou a filosofia. Em outras palavras, o senso comum precisa ser transformado em bom senso, este entendido como a elaborao coerente do saber e como explicitao das intenes conscientes dos indivduos livres. Segundo o filsofo Gramsci, o bom senso "o ncleo sadio do sensocomum". Qualquer pessoa, no sendo vitima de doutrinao e dominao, e se for estimulada na capacidade de compreender e criticar, torna-se capazde juizos sbiosporque vitais, isto , orientados para sua humanizao. Geralmente os obstculos passagem do senso comum ao bom senso resultam da excluso do individuo das decises importantes na comunidade em que vive. Em sociedades no-democrticas as informaes no circulam igualmente em todas as camadas sociais e nem todos tm igual possibilidade de consumir e produzir cultura. No Brasil. por exemplo, um tero das crianas em idade escolar esto excludas da educao, isso sem falar da pirmide educacional segundo a qual os que tem acesso a escola abandonam o estudo no decorrer do processo, sendo mnima aporcentagem dos que atingem os nveis superiores de escolarizao. No s isso. Mesmo aqueles que frequentam escolas submetem-se perversa diviso em que, para alguns, reservada a formao humanstica e cientfica, enquanto outros recebem apenas preparao tcnica, mantendo-se a dicotomia trabalho intelectual/trabalho manual. Com isso garantida a dominao daqueles que so obrigados a,se ocupar apenas com o fazer (ver Capitulo 2 - Trabalho e alienao). A superao de tal estado de coisas decorre no s da democratizao do acesso a escola e da negao da escola dualista (formao acadmicaversus formao tcnica) como tambm depende da conquista de espaos possveis de atuao nos sindicatos e nas organizaes representativas dos mais diversos tipos. No entanto, no so apenas os trabalhadores manuais que no tm conseguido passar do senso comum para o bom senso. Funcionrios de empresas, empresrios, especialistas de qualquer rea, inclusive cientistas, podem estar restritos a formas fragmentrias do senso comum quando se acham presos apreconceitos, a concepesrgidas, quando sucumbem ao massificante dos meios de comunicao de massa. Outras vezes, renunciamos ao exerccio do bom senso quando nos submetemos ao poder dos tecnocratas, seduzidos pelo "saber do especialista". Basta observara timidez de deciso dos pais que, ao educarem os filhos, delegam poderes a psiclogos, pedagogos, pediatras. No pretendemos, ao dizer isso, desvalorizar a contribuioto importante da cincia, muito ao contrrio! Apenas ressaltamos que o homem leigo no precisa permanecer passivo diante do saber do tcnico, demitindo-se das aesque ele prprio poderia exercer. Ele tem o direito de informar-se ativamente a respeito do tratamento a que se acha submetido e dos seus efeitos. Em ltima anlise,convm desmistificar a tendncia de cultuar as pessoas "estudadas" em detrimento do homem "sem letras" ou simplesmente noespecialista. Qualquer homem, se no foi ferido em sua liberdade e dignidade, e se teve ocasio de desenvolver a habilidade crtica, ser capaz de autoconscincia, deelaborar criticamente o prprio pensamento e de analisar adequadamente a situao em que vive. nesse estdio que o bom senso se aproxima da filosofia, da filosofiade vida, como a entendemos no Captulo 8 (O que filosofia?). Podemos perceber que no automtica a passagem do senso comum ao bom senso, e um dos obstculos ao processo se encontra na difuso da ideologia, entendida em sentido restrito, que abordaremos no item 3 deste captulo.

2. Ideologia: sentido amplo

H vrios sentidos para a palavra ideologia. Em sentido amplo, o conjunto de idias, concepes ou opinies sobre algum ponto sujeito a discusso. Quando perguntamos qual a ideologia de determinado pensador, estamos nos referindo doutrina, ao corpo sistemtico de idias e ao seu posicionamento interpretativo diante de certos fatos. E nesse sentido que falamos em ideologia liberal ou ideologia marxista. Ainda podemos nos referir ideologia enquanto teoria, no sentido de organizao sistemtica dos conhecimentos destinados a orientar a ao efetiva. Existe portanto a ideologia de uma escola, que orienta a prtica pedaggica; a ideologia religiosa, que d regras de conduta aos fiis; a ideologia de um partido poltico, que estabelece determinada con cepo de poder e fornece diretrizesde ao a seus filiados. J ouvimos a expresso "atestado ideolgico", que a declarao exigida sobre a filiaopartidria de algum. No Brasil, durante o recrudescimento do poder autoritrio, rgos como o Deops (Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social) exigiam em certas circunstncias que as pessoas apresentassem atestados desse tipo, a fim de controlar a adeso s ideologias marxistas, consideradas perigosas segurana nacional.

3. Ideologia: sentido restrito

O conceito de ideologia tem outros sentidos mais especficos, elaborados por autorescomo Destutt de Tracy, Comte, Durkheim, Weber, Manheim.

A. Gramsci, Concepo dialtica da histria, p. 16.

Mas sobretudo com Marx que a explicitao do conceito enriqueceu o debate em tomo do assunto e de sua aplicao. Para ele, diante da tentativa humana deexplicar a realidade e dar regras de ao, preciso considerar tambm as formas de conhecimento ilusrio que Levam aomasscaramento dos conflitos sociais. Segundo a concepo marxista, a ideologia adquire um sentido negativo, como instrumento de dominao. Isso significa que a ideologia tem influncia marcante nos jogos do poder e na manuteno dos privilgios queplasmam a manelira de pensar e de agir dos indivduos na sociedade. A ideologia seria de tal forma insidiosa que at aqueles em nome de quem ela exercida no lhe perceberiam o carter ilusrio.

A concepo de Gramsci

Vale considerar um reparo feito pelo marxista italiano Gramsci (1891-1937), para quem preciso distinguir entre ideologias historicamente orgnicas e ideologiasarbitrrias. As primeiras so historicamente necessrias porque "organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem conscinciade sua posio, lutam etc.". Segundo Gramsci, pode-se dar ao conceito de ideologia "o significado mais alto de uma concepo de mundo que se manifesta implicitamentena arte, no direito, na atividade econmica, em todas as manifestaes de vida individuais e coletivas"" e que tem por funo conservar a unidade de todo o blocosocial. Portanto, Gramsci considera que em um primeiro momento, enquanto concepo demundo, a ideologia tem a funo positiva de atuar como cimento da estruturasocial. Quando incorporada ao que chamamos senso cotnum, ela ajudar a estabelecer o consenso, o que em ltima anlise confere hegemonia a uma determinada classe,que passar a ser dominante. Evitando a concepo mecanicista, Gramsci no considera que os dominados permaneam submissos indefinidamente, pois no senso comum podero ser trabalhadoselementos de bom senso e de instinto de classe que aos poucos formaropor sua vez a ideologia dos dominados. Da a necessidade da formao de intelectuais surgidosda prpria classe subalterna e capazes de organizar coerentemente a concepo de mundo dos dominados.

Conceituao de ideologia

Vejamos a definio dada pela professora Marilena Chaui: "a ideologia um conjunto lgico, sistemtico e coerente de representaes (idias e valores) ede normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela , portanto, um corpo explicativo (representaes) e prtico (normas, regras, preceitos) de carter prescritivo, normativo, regulador, cuja funo dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicao racional para as diferenas sociais, polticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenas diviso da sociedade em classes, a partir das divises na esfera da produo. Pelo contrrio, a funo da ideologia a de apagar as diferenas, como as de classes, e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade. a Nao, ou o Estado".2 Observamos ento que a ideologia apresentada como tendo fundamentalmente as seguintes caractersticas:

- constitui um corpo sistemtico de representaes que nos "ensinam" a pensar e denormas que nos "ensinam" a agir; - tem como funo assegurar determinada relao dos homens entre si e com suas condies de existncia, adaptando os indivduos s tarefas prefixadaspela sociedade; - para tanto, as diferenas de classe e os conflitos sociais socamuflados, ora com a descrio da "sociedade una e harmnica", ora com a justificao das diferenas existentes; - com isso assegurada a coeso dos homens e a aceitao sem crticas das tarefasmais penosas e pouco recompensadoras, em nome da "vontade de Deus" ou do "dever moral" ou simplesmente como decorrente da "ordem natural das coisas"; em ltima instncia, tem a funo de manter a dominao de uma classe sobre outra. interessante observar que a ideologia no concebida como uma mentira que os indivduos da classe dominante inventam para subjugar a classe dominada. Tambm os que se beneficiam dos privilgios sofrem a influncia da ideologia, o que lhes permite exercer como natural sua dominao, aceitando como universais os valores especficos de sua classe. Portanto, a ideologia se caracteriza pela naturalizao, na medida em que so consideradas naturais as situaes que na verdade so produtos da ao humana e que portanto so histricos e no naturais: por exemplo, dizer que a diviso da sociedade em ricos e pobres faz parte da natureza; ou que natural que uns mandem e outros obedeam. Outra caracterstica da ideologia a universaliza o, pela qual os valores da classe dominante so estendidos classe dominada. Ao receber um prmio do patro, o "operrio-padro" avaliza os valores que o mantm subordinado e que certamente seriam descartados por aqueles que j adquiriram conscincia de classe. assim que a empregada domstica "boazinha" no discute salrio e no implica se trabalha alm do horrio. Tambm os missionrios que acompanhavam os colonizadoress terras conquistadas certamente no percebiam o carter ideolgico da sua ao ao querer implantar uma religio e uma moral estranhas s do povo dominado. A universalidade das idias e dos valores resultado de uma abstrao, ou seja, as representaes ideolgicas no se referem ao concreto, mas ao aparecer social. Por exemplo, quando nos referimos "sociedade una e harmnica", lidamos com uma abstrao, porque, ao analisarmos concretamente os homens nas suasrelaessociais, descobrimos a diviso de classe e os interesses divergentes. Portanto, a universalizao e a abstrao supem uma lacuna ou o ocultamento dealguma coisa que no pode ser explicitada sob pena de desmascaramento da ideologia. Porisso a ideologia ilusria, no no sentido de "falsa" ou "errada", masenquanto uma aparncia que oculta a maneira pela qual a realidade social foi produzida. Isto , sob o cer da ideologia existe a realidadeconcreta que precisaser descoberta pela anlise da gnese do processo. Vejamos outros exemplos:

2 M. Chaui, O que ideologia. p. 113.

Quando dizemos que "o trabalho "dignifica o homem", estamos diante de umaafirmao difcil de ser contestada: como vimos no capitulo 1 (A cultura), o homem sedistingue do animal pelo trabalho, com o qual humaniza a natureza e a si mesmo. No entantotorna-se um conceito ideolgico quando se trata de uma abstrao, ou seja, toda vez queconsiderarmosapenas a idia de trabalho, inpendentemente da anlise da situaoconcreta e particular da realidade histrico-social em que os operriosrealizam seu trabalho. Nesse caso, o que descobrimos exatamentecontrrio: o embrutecimento e a reificao ("coisficao") do homem, e no avalorizao da sua dignidade. Ao afirmarmos que "o salrio paga o trabalho do operrio", estamos diante de uma lacuna,pois, analisando a gnese do trabalho assalariado, descobrimos amais-valia e, portanto, o artifcio do qual deriva a explorao do trabalhador, que produz a sua alienao e oculta a diferena de condio de vida das pessoas na comunidade. A afirmao "a educao um direito de todos" verdadeira e at um dever, j que h obrigatoriedade legal de se completar o curso primrio. Mas essa afirmao se torna abstrata e lacunar, ao apresentar como universal um valor que beneficia apenas uma classe. Isso confirmado pelas estatsticas que mostram a evaso e o baixo ndice de freqncia escolar por parte das classes desfavorecidas.Mesmo que sejam dadas "explicaes", em funo das dificuldades de adaptao, do mercado de trabalho e at do desinteresse ou preguia dos alunos, o que seoculta que na sociedade de classes h uma contradio entre os que produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e os que usufruem essas riquezas, excluindodelas os produtores. Assim, a educao um dos bens a serem usufruidos pelos componentes da classe dominante. Portanto, a educao aparece como um direito de todos,mas, analisando a gnese da produo e usufruto dos bens, descobre-se que de fato a educao est restrita a uma classe.

(Cia, O Pato, Rio de Janeiro, Codecrt 1978, CoI. Humor, V. 1.)

Alm disso, a ideologia mostra uma realidade invertida, ouseja, o que seria a origem da realidade posto como produto e viceversa; o que efeito passaa ser considerado causa, o que determinado tido como determinante. Por exemplo, a ideologia burguesa afirma que existe desigualdade social porque existem diferenas individuais (a desigualdade natural seria a causa da desigualdade social). Ora, a sociedade na verdade resultado da prxis. e as desigualdades sociais estabelecidas pela diviso social do trabalho e pelas relaes de produo que so causas das desigualdades individuais. Com isso no desconsideramos as diferenas que de fato existem entre os indivduos, como diversosnveis de interesse, aptido, inteligncia. Mas, grosso modo, naideologia a atividade a que cada um se submete aparece como decorrente da competncia e no como resultado da diviso de classes. Assim, se o filho de um operrio no melhora o padro de vida, isto explicado como resultado da sua incompetncia, falta de fora de vontade ou disciplinade trabalho. quando na realidade ele joga um "jogo de cartas marcadas", e suas chances de melhorar no dependem dele, mas da classe que detm os meios de produo. Outra inverso prpria da ideologia a maneira pela qual so estabelecidas as relaes entre teoria e prtica, colocando a teoria como superior prtica, porque a antecede e "ilumina". As idias tornam-se autnomas e so consideradas causa da ao humana (e no ocontrrio). A diviso hierrquica entre o pensar e o agir se encontra tambm na dicotomia da sociedade, em que um segmento se dedica ao trabalho intelectual e outro,ao trabalho manual. Sob esse esquema, uma classe "sabe pensar", enquanto a outra "no sabe pensar" es executa. Portanto, uma decide, porque sabe, e a outra apenasobedece.

4. O discurso no-ideolgico

A ao e o pensamento humanos nunca se acham totalmente determinados pela deologia. Sempre haver espaos de crtica e fendas que possibilitem a elaboraodo discurso contra-ideolgico. No simples, no entanto, o trabalho de desvelamento do real, pois a ideologia penetra em setores insuspeitveis: na educao familiar e escolar, nos meiosde comunicao de massa, nos hospitais psiquitricos, nas prises, nas indstrias, impedindo de todas as formas a flexibilidade entre o pensar e o agir, determinando a repetio de frmulas prontas e acabadas. Por outro lado, exatamente nesses mesmos espaos em que veiculada a ideologia que se inicia o processo de conscientizao. O que distingue o discurso ideolgico do no-ideolgico, que podemos chamar simplesmente deteoria? Se o discurso ideolgico abstrato e lacunar, faz uma anlise invertida da realidade e separa o pensar e o agir, o discursono-ideolgico aquele que visao preenchimento das lacunas pela procura da gnese do processo. Isto no significa que se deva contrapor ao discurso lacunar um discurso "pleno", mas sim a elaboraoda crtica, do contradiscurso que revele a contradio interna do discurso ideolgico e que o faa explodir. esse justamente o papel da teoria, que est encarregada de desvendar os processos reais e histricos dos quais se origina a dominao de uma classe sobre outra, enquanto a ideologia visa exatamente o contrrio, ou seja, a dissimulao dessa diferena ou a justificao dela. Alm disso, a teoria estabelece uma relao dialtica com a prtica, ou seja, uma relao de reciprocidade e simultaneidade, e no hierrquica, como no discurso ideolgico. Explicando melhor: a prxis justamente a relao indissolvel teoria-prtica, de modo que no h agir humano que no tenha sido antecedido por um projeto, da mesma forma que a teoria no algo que se produza independentemente da prtica, pois seu fundamento a prpria prtica. Ns conhecemos as coisas na medida em que as produzimos, da toda teoria se tornar lacunar (e portanto ideolgica), sem o "vaivm" entre o fato e o pensado. Ora, o saber que resulta do trabalho um saber instituinte e, nesse sentido, "vivo", mvel, com toda a fora decorrente do processo de se fazer. Ao contrrio,o saber ideolgico o saber institudo, esclerosado, morto. Por isso, importante o papel da filosofia como crtica da ideologia, para romper as estruturas petrificadas que justificam as formas de dominao. Ainda neste captulo, examinaremos a ideologia subjacente aos textos didticos de1 grau, s histrias em quadrinhos e propaganda. Por questo de espao, no trataremos das importantes reflexes de Michel Foucault, filsofo francs contemporneo, cujos estudos desvendam o carter ideolgico do sistema carcerrio e dos hospcios. Na Histria da loucura, Foucault critica a moderna concepo de loucura, analisando como ela foi construda"apartirdosculoXVll. So tambm importantes os trabalhos tericos e prticos de psiquiatras como o italiano Basaglia e os ingleses Laing e Cooper, com as propostas daanti-psiquiatria.3 Tais discusses controvertidas tm sido sujeitas a um debate fermentado que, supomos, dever pr em questo concepes tradicionais a respeito desses assuntos.

** Mais informaes podero ser encontradas na pequena introduo feita por J. Frayse Pereira. O que loucura, So Paulo, Brasiliense (Col. Primeiros Passos).

Exerccios

1. Releia a definio de ideologia segundo Marilena Chaui e responda, em poucas linhas: O que ? Para que serve? Por que surge? 2. Em que sentido a teoria se distingue da ideologia? Como a teoria se relaciona com a prtica? 3. Explique por que o contedo das frases a seguir ideolgico. Aplique os conceitos adequados (lacuna, inverso, aparecer social, universalizao,abstrao). Justifique sua resposta. a) O Estado uma instituio que est a servio de todos. b) Isto legal, portanto justo e legtimo. c) A sociedade burguesa formada por trs tipos diferentes de proprietrios: o capitalista (proprietrio do capital); o dono da terra (proprietrioda renda da terra); e o trabalhador (proprietrio do salrio). Se todos so proprietrios, embora de coisas diferentes, ento todos os homens dessa sociedade soiguais e possuem direitos iguais. 4. Analise o aspecto ideolgico da seguinte afirmao: "As diferenas sociais existem devido a diferenas de natureza, talento e esforo. Portanto,pode-se observar que geralmente as pessoas so pobres por serem incompetentes, preguiosas ou pouco esforadas". 5. Os provrbios tm um valor positivo enquanto expressam da sabedoria popular. Mas, dependendo da situao em que so aplicados, adquirem contornos ideolgicos.Justifique isso comentando os seguintes: "Em boca fechada no entra mosca. "Feliz quem s quer o que pode e s faz o que quer. "A quem nada deseja nada falta." "De gro em gro a galinha enche o papo." "Cada um por si, Deus por todos." "Cada macaco no seu galho." 6. Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta marxista, faz no poema a seguir uma denncia da alienao e da ideologia. Justifique: "Ns vos pedimos com insistncia: Nunca digam - Isso natural! Diante dos acontecimentos de cada dia, Numa poca em que reina a confuso, Em que corre o sangue, Em que o arbitrrio tem fora de lei, Em que a humanidade se desumaniza... No digam nunca: Isso natural! A fim de que nada passe por ser imutvel."

#SEGUNDA PARTE - A ideologia na escola

1. As teorias reprodutivistas

Desde o final do sculo passado e na primeira metade do sculo XX, os pedagogos influenciados pelas teorias da chamada escola nova defenderam a idia otimista de que a educao teria uma funo democratizadora, ou seja, a escola seria um fator de mobilidade social. Ao contrrio das expectativas, porm, foram constatadas altas taxas de repetncia e evaso escolar, sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade. Embora os ndices fossem mais perversos nos pases em desenvolvimento, como o caso do Brasil, essa distoro acontecia tambm em outras regies do mundo. Tendo em vista tais constataes, na dcada de 70 desenvolveu-se a tendncia crtico-reprodutivista, representada por diversos tericos franceses que, emborafizessem interpretaes diferentes, chegavam a concluses semelhantes entre si, ao admitirem que a escola no equalizadora, mas reprodutora das diferenas sociais. Segundo Althusser, o Estado tem um aparelho repressivo (exrcito, polcia, tribunais, prises etc.) que assegura a dominao pela violncia, mas tambmse utiliza de outras instituies pertencentes sociedade civil (comoa famlia, a escola, a igreja, os meios de comunicao, os sindicatos, os partidos etc.) a fimde estabelecer o consenso pela ideologia, e que por isso so chamados aparelhos ideolgicos de Estado. Bourdieu e Passeron desenvolvem o conceito de violncia simblica, considerando que a escola no exerce necessariamente violncia fsica, mas sim a violnciamediante foras simblicas, ou seja, pela doutrinaoque fora as pessoas a pensarem e a agirem de determinada forma, sem perceberem que legitimam com isso a ordem vigente. Baudelot e Establet denunciam a impossibilidade de existir uma "escola nica" na sociedade dividida em classes. Por isso existem de fato duas redes de escola - uma secundria superior, outra primria profissional- que se destinam respectivamente aos filhos da elite e aos dos proletrios. A separao feita de tal forma que desde o comeo os filhos dos proletrios estodestinados a no atingir os nveis superiores de escolarizao. Alm disso, o prprio funcionamento da escola repete a estrutura hierarquizada, reproduzindo muitas vezes as relaes autoritrias existentes fora dela.E, mais ainda, acentuando a dicotomia entre teoria e prxis, a escola no s desvaloriza o trabalho manual, privilegiando o trabalho intelectual, como tambm tornaa prpria teoria estril, j que distanciada da prtica, verbalizada, freqentemente simples erudio intil. Portanto, para esses tericos a escola no democratiza, mas, ao contrrio, reproduz a diviso social e mantm os privilgios de classe. Veremos adiante que mais tarde outros se contrapuseram a essa viso pessimista demais.

2. Os textos didticos

Os problemas descritos so complexos e mereceriam anlise mais pormenorizada, mas no nos propomos desenvolver aqui essas questes. O que nos interessa, no momento, analisar como o texto didtico veicula certos valores que visam adequar o indivduo sociedade, integrando-o na ordem estabelecida. Embora o carterideolgico tambm exista na literatura infanto-juvenil e em livros de2 grau, sobretudo nos de moral e cvica, histria e geografia, vamos nos deter na anlisede textos didticos de 1 grau. Analisando os fragmentos transcritos nos textos complementares podemos notar que a realidade mostrada criana estereotipada, idealizada e, portanto, deformadora. A concepo de trabalho iguala em plano imaginrio todos os tipos de profisso e oculta o fato de as pessoas serem submetidas a trabalhos rduos, alienados. Esses textos mostram a sociedade como una e harmnica, cada pessoa cumprindo o seu papel como se fosse umdestinoa que no se pode fugir e ao qual se deve conformar (alegremente, de preferncia...). A impresso que se tem que a riqueza e a pobreza fazem parte da naturezadas coisas, e no so resultado da ao dos homens. Resta aos pobres a pacincia e aos ricos a generosidade. Tambm a famlia apresentada sem conflitos, com papis bem marcados: o pai tem a funo de provedor; a me a "rainha do lar"; a criana atenciosa e obediente e, caso no seja, isso mostrado como um desvio que precisa ser corrigido; a empregada, geralmente negra, feliz por ser "quase" algum dafamlia. Simula um mundo sem preconceito em que as raas se irmanam... A ptria merece pginas de ufanismo, retratando um pas ilusrio, de beleza natural exuberante, riquezas escondidas, possibilidades incrveis. A misria,a fome, as doenas, o analfabetismo, o racismo, nada disso transparece, sendo de fato ocultado. Outros tpicos ficam por sua conta investigar: o que dito sobre a escola, sobre o trabalho no campo, sobre o ndio, sobre a moral... O que podemos pensar a respeito dessa escamoteao da realidade feita pelo livro didtico? Estabelece-se uma contradio entre o discurso que ele profere e a realidade: camufla a desigualdade at quando a reconhece (o pedreiro pobre, mas importante para a grandeza da nao); mascara a diviso e no desvela a injustia social; d uma viso esttica e imobilista da famlia, da escola e do mundo, acentua esteretipos. Em outras palavras, impede a tomada de conscincia dos conflitos e contradies da sociedade, criando, ao contrrio, predisposio ao conformismo e passividade. Esses textos didticos tm, portanto, uma funo ideolgica. Talvez alguns argumentem que no vale a pena mostrar erros e misrias para as crianas, para no ofender sua infncia ingnua. Tal observao perigosae sob certos aspectos hipcrita, pois sabemos que as crianas tm intuio para perceber as contradies de seus pais e professores, e escond-las seria instituir na educao o jogo perverso da dissimulao. Alm disso, os bons autores, ao lado da transmisso dos valores humanos considerados importantes para a sua formao, sabero mostrar-lhes, com sutileza, os riscos e perigos dos desvios para onde se envereda muitas vezes a humanidade.

3. Onde est a sada?

Pela anlise de textos didticos concluiramos que a escola tem funo reprodutora, enquanto pea da engrenagem do sistema polftico vigente e, portanto, passvel da ao da ideologia. No entanto, tal colocao redutora demais e no dialtica. preciso partir do fato bem observado pelos tericos critico-reprodutivistas, de que a prxis educativa no neutra, mas se acha vinculada a uma sociedade, s relaes de produo, ao sistema poltico. No entanto, ao mesmo tempo, no se justifica permanecer inativo enquanto no houver a esperada transformao da sociedade. Para o filsofo e educador francs Georges Snyders, que faz a crtica aos reprodutivistas, se o operrio no consegue de imediato ter a conscincia lcida da realidade social, tambm no deve ser consideradojoguete passivo de mistificao. Sempre haver na estola a possibilidade de professores e alunos inventarem prticas que se tornem crticas da inculcao ideolgica. A escola um espao possvel de luta, de denncia da domesticaoe seletividade e de procura de solues, ainda que precrias eparciais.

#TERCEIRA PARTE - A ideologia nas histrias em quadrinhos

(Gravuras)(Disney Especial, n. 6, Os aventureiros, edio especial de Pato Donald,n. 1556, ago. 1981, So Paulo Abril, p. 173.)

(Pato Donald de Ouro, n. 1, edio especial de Mickey, n. 328, fev. 1980, So Paulo, Abril, p. 7.)

(Disney Especial, n. 59, Os vizinhos encrenqueiros, edio especial de Pato Donald, n. 1558, set. 1981, SoPaulo, Abril, p. 190.)

(Pato Donald de Ouro, n. 1, edio especial de Mickey, n. 328, fev. 1980, So Paulo, Abril, p. 75.J

(Super-Homem, n. 72, 1985, A destruio de Metrpolis, So Paulo, Abril, p. 37.)

1. Introduo

Os quadrinhos so um fenmeno caracterstico da cultura de massa e tm sua principal expresso no sculo XX, quando comearam a aparecer nas publicaesdirias dos jornais. Escolhemos desenvolver a anlise da histria em quadrinhos a partir da natureza da sua relao com a realidade social. Ressalvamos que se trata de apenas uma das abordagens possveis, pois os quadrinhos so uma expresso complexa da produo contempornea. Alm da funo de entretenimento e lazer, tm tambm a funo mtica e tabuladora caracterstica das obras de fico e ainda preenchem funes estticas, pois se trata de uma nova linguagem artstica. A abordagem que vamos fazer a que parte da reflexo acerca da ambigidade de toda produo cultural: ao mesmo tempo que pode servir conscincia, serve alienao, tanto pode levar ao conhecimento como escamoteao da realidadep tanto criativa como tambm paralisadora. Portanto, sem querer tomar partido na discusso (classicamente proposta por Umberto Eco entre "apocalpticos" e "integrados"), no estamos interessadosem discutir se a cultura de massa aliena ou no. Vamos partir do pressuposto de que os quadrinhos so capazes tanto de alienar como de conscientizar. Comecemos pelopior.

**(nota)

2. A decodificao ideolgica dos quadrinhos

No incio da dcada de 70 (na mesma dcada em que os tericos da educao desenvolvem a tese da escola reprodutora do sistema), dois chilenos, Anel Dorfmane Armand Mattelart, defenderam a tese de que a leitura das histrias em quadrinhos no era to inocente assim como se pensava. Fizeram impiedosa critica aos quadrinhos,da qual no escaparamdesde os super-heris at os aparentemente inofensivos personagens de Disney. Esses autores denunciam a ideologia subjacente aos quadrinhos, na medida em que confirmam os valores da classe dominante, escamoteiam os conflitos, transmitemuma viso deformada do trabalho e levam passividade poltica. Vejamos algumas dessas criticas. Em grande parte da produo de histrias em quadrinhos, a atividade das personagens se desenrola parte do mundo do trabalho, ou seja, h predominnciados casos de aventura, de atividades desenvolvidas durante o cio, e em situaes que so a negao do cotidiano, do dia-a-dia de cada pessoa. Alis, parece quealgumas personagens no trabalham nunca, e no sabemos muito claramente de onde vem o seu sustento: s vezes sao muito ricas (e essa riqueza se acha desvinculadada ao que a produziu) ou, s vezes, vivem de expedientes, como Donald, que consegue inexplicavelmente manter um padro mdio de vida que lhe permite usufruir osbenefcios da sociedade de consumo. Geralmente, a classe proletria no representada por nenhuma personagem, da mesma forma que a vida no campo enfatizada sobretudo no seu aspecto de lazer,e no no da produo. Segundo Dorfman e Mattelart, "no mundo de Disney, dos plos do processo capitalista produo - consumo s est presente o segundo. (...) Um exemplo: as profisses.A gente pertence sempre a estratos do setor tercirio, isto , dos que vendem seus servios. Cabeleireiros, agncias imobilirias e de turismo, secretrias, vendedorase vendedores de todo o tipo, (...) empregados de armazm, padeiro, guarda-noturno, garons, ou do setor de entretenimento, distribuidores povoam o mundo de objetose objetos, jamais produzidos, sempre comprados. O ato que para tanto as personagens esto repetindo a todo o momento o da compra".

(A. Dotfman e A. Mattelart. Para ler o Paro Donald, p. 79.)

A sociedade representada como una, esttica e harmnica, sem antagonismo de classes, e a "ordem natural" do mundo quebrada apenas Pelos Viles, que, encarnando o mal, atentamgeralmente contra o patrimnio (bancos, jias e caixas-fortes). A defesa da Legalidade dada e no-questionada feita pelos "bons", com a morte dos "maus" ou com a integrao desses norma estabelecida. Resulta da ummaniquesmo6 simplista, que reduz todo conflito lutaentre o bem e o mal, sem consideras quaisquer nuanas de uma sociedade em que as pessoas e os grupos possam ter opinies e interesses divergentes. Alm disso, ao lidar com categorias abstratas de bem e mal, o conflito reduzido ao nvel individual, psicolgico, como se tudo fosse resultante de problemasmorais, e no polticos e sociais. Em outras palavras, a nfase no aspecto moral da ao neutraliza o conflito social, ocultando que o homem vive numa sociedadede classes: quando "restabelecida a ordem", ningum questiona esta"ordem", que na verdade nada tem de natural, j que construda pelo homem, nem este"bem", que representa os interesses de determinada classe. Quanto figura do super-heri dos quadrinhos, possvel ver outras decorrncias das observaes anteriores: o super-heri est a servio da ordem estabelecida,instaura uma relao paternalista de dependncia e de predominncia dos valores individuais sobre os coletivos, pois os problemas que afligem a comunidade s soresolvidos pelo socorro urgente do heri, frente impotncia dos homens comuns. Isso refora o mito da ao individual, "dos grandes homens", e oculta que o sujeito da histria o conjunto de todos. E, ainda mais, facilita a aceitaoda sociedade hierarquizada e autoritria, justificando posies verticais de domnio, onde no h lugar para relaes interpessoais igualitrias, horizontais e democrticas. interessante notar que a fragmentao do coletivo em "tomos" independentes se encontra representada na prpria figura do super-heri, cuja personalidade"esquizofrnica" dividida entre o eu herico e o eu cotidiano: Super-Homem e Clark Kent, Zorro e Don Diego, Thor e Don Blake, Batman e

Bruce Wayne. A duplicidade favorece a identificao do leitor com o heri: o homem comum o tmido e apagado jornalista Clark Kent, que ama secretamente sua colegaMinam Lane e nem sequer ousa declarar-se. Segundo Mircea Eliade, o mito do Super-Homem satisfaz s nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decado elimitado, sonha revelar-se um dia uma "personagem excepcional", um "heri". Mesmo no plano herico, nem todas as solues so dadas pela inteligncia, mas h ocorrncia freqente do acaso, da sorte, que favorece sempre os que estodo lado do bem. O destino, na medida em que tece a trama, limita as possibilidades de deciso do ser humano, o que mais uma vez "naturaliza" a sua ao, retirandodela aquilo que a caracteriza como essencialmente humana, ou seja, a capacidade do homem de transformar o mundo intencionalmente, num projeto que antecipa a ao. Na luta contra o mal, praticamente nenhum papel de importncia dado ao negro, relegado funo de auxiliar, simples servo tratado de forma paternalista,como, por exemplo, o submisso Lotar e Mandrake. Na maior parte, porm, o racismo se manifesta mesmo pela ausncia de heri negro. Quanto mulher, sempre cortejada, mas frgil, dependente, medrosa. Trata-se de uma viso de feminilidade que fixa o esteretipo do comportamento dcilda mulher, excluindo-a do processo histrico. At quando dotada de poderes especiais, como aBat-Girl, por exemplo, acaba sucumbindo ao poder do inimigo e precisaser salva na hora h pelo heri masculino. A superioridade de uns sobre outros se estende at najustificao do poder imperialista das sociedades desenvolvidas sobre os povos considerados "inferiores"dos pases subdesenvolvidos. Alis, esses povos so vistos como pobres, feios, escuros e tolos, com todas as qualidades quejustificam a tutela dos ricos, belos,brancos e inteligentes... O que foi observado para as histrias em quadrinhos pode ser estendido para a produo literria dos chamados romances B (de puro entretenimento) e paraos programas de tev.

**nota 6 No sentido original, maniquesmo se refere a uma antiga religio persa que admitia a existncia de dois princpios absolutos, o Bem e o Mal. Em sentidogenrico, maniquesmo consiste na interpretao simplista da realidade como sendoconstituda por tendncias antagnicas e bem-definidas, uma representando o bem, outra o mal. Vale ressaltar que o impacto produzido por essa critica gerou efeitos os mais diversos. Nas novas histrias, alguns super-heris passaram a manifestar crises de angstia e indeciso, as personagens assexuadas foram erotizadas (at o Fantasma se casou!) e buscou-se em alguns casos atenuar o maniquesmo. Tudo isso, afinal,torna mais complexo e difcil detectar os elementos ideolgicos quando eles ainda existem.

3. Os quadrinhos alternativos

Para no sermos injustos com a imensa variedade de produo de quadrinhos, preciso considerar aqueles que no so ideolgicos, na medida em que, mesmosem perder a dimenso de divertimento e prazer, conduzem viso critica da sociedade e de ns mesmos. Nos pases em "vias de desenvolvimento", h uma dificuldade muito grande deimplantao dos quadrinhos nacionais, devido a fora de difuso das multinacionais dos quadrinhos. Impossibilitados de competir com as empresas, distribuidoras cuja infra estrutura barateia o produto, nossos quadrinheiros no tm chance de publicar ostrabalhos com a periodicidade necessria ao seu desenvolvimento e para chamar a ateno do pblico. Apesar das dificuldades, surgem artistas cujas preocupaes predominantes so a recuperao da nossa realidade vivida, com aproveitamento de temas e situaesa partir do imaginrio nacional. Alm disso, esse trabalho se efetiva no apenas como reproduo do "pensar brasileiro", mas tambm como questionamento dele. Vejaexemplos da produo de alguns desses artistas: Henfil, Glauco e Cia (neste captulo), Fernando Gonzales e Angeli (no Capitulo 29- A adolescncia), e tambm o quenos diz o brasileiro Moacy Cirne no texto complementar.

(Henfil n O Pasquim, Rio de Janeiro, abr 1972, n. 145, p. 3.)

#QUARTA PARTE - Propaganda e ideologia

Eu, etiqueta

Em minha cala est grudado um nome que no meu de batismo ou de cartrio, um nome.. - estranho.Meu bluso traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que no fumo, at hoje no fumei. Minhas meias falam de produtoque nunca experimentei mas so comunicados a meus ps. Meu tnis proclama colorido de alguma coisa no provada por este provador de longa idade. Meu leno, meu relgio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xcara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabea ao bico dos sapatos, so mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidncia, costume, hbito, premncia, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anncio itinerante, escravo da matria anunciada. Estou, estou na moda. doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, troc-la pormil, aambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocncia demito-me de ser eu que antes era e me sabia to diverso de outros,to mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidriocom outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencvel condio. Agora sou anncio, ora vulgar ora bizarro, em lngua nacional ou em qualquer lngua (qualquer,principalmente). E nisto me comprazo, tiro glria de minha anulao. No sou - v l - anncio contratado. Eu que mimosamente pago para anunciar, para vender embares festas praias prgulas piscinas, e bem vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandlia de umaessncia to viva, independente,que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias to pessoais, to minhas que no rostose espelhavam, e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma esttica? Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado deforma universal, saio da estamparia, no de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estticos, tarifados. Por me ostentar assim,to orgulhoso de ser no eu, mas artigo industrial, peo que meu nomeretifiquem. J no me convm o titulo de homem, meu nome novo coisa. Eu sou a coisa, coisamente.Carlos Drummond de Andrade, O corpo. Rio de Janeiro, Record, 1984, p.85-87.)

A propaganda, seja ela comercial ou ideolgica, est sempre ligada aos objetivos econmicos e aos interesses da classe dominante. Essa ligao, no entanto, ocultada por uma inverso: a propaganda sempre mostra que quem sai ganhando com o consumo de tal ou qual produto ou idia no o dono da empresa, nem os representantesdo sistema, mas, sim, o consumidor. Assim, a propaganda mais um veculo da ideologia dominante.

1. Propaganda comercial

Propaganda comercial a que tem por objetivo vender um produto, um servio ou uma marca ao consumidor. A partir de estudos sobre a sociedade norte-americana nos anos 50,descobriu-se que os consumidores raramente eram levados" a comprar alguma coisa movidos porapelos estritamente racionais. Esses estudos levaram pesquisa das motivaes inconscientes e irracionais que mobilizam o consumidor. Entre os fatores irracionais, vamos encontrar- necessidades e aspiraes que dependem da imagem que cada um tem de si e da imagem que quer manter peranteos outros. A publicidade vai agir no sentido de apresentar os produtos como meios eficazes para a satisfao dessas necessidades e aspiraes. Basta comprar ocigarrode marca tal, o relgio x, o jeans y, e as meias w para conseguir sucesso profissional, segurana, charme, inteligncia e o que mais se desejar. Assim, a publicidademascara a realidade e no nos deixa tomar contato com os meios concretos e possveis desuprirnossas necessidades: Ela transforma o objeto no fetiche que satisfaz. O que a publicidade vende, portanto, muito mais do que o produto: a promessa de satisfao de uma necessidade ou aspirao que extrapola, em muito, as possibilidades do produto. Recorrendo ao exemplo de um anncio de mquina de lavar loua, veremos bem o que ocorre. O anncio, veiculado em revistas femininas "classe A", apresenta duas mulheres loiras de costas, com acentuado decote. Uma tem a pele bem branca e a outra, a pele bronzeada e marcas de mai. A chamada, em letras grandes, diz:"Voc j sabe qual das duas tem uma lava-louas x". Ora, o mximo que o produto anunciado pode nos prometer loua bem-lavada. A promessa, implcita na imagem, de tempo de lazer, local para tomar sol, aparncia (segundo a moda) bronzeada e saudvel de "frias", ultrapassa em muito o que o produto concretamente oferece. Os apelos, portanto, so sempre emocionais. Mesmo quando se revestem de razes lgicas, o fundamento da propaganda despertar emoes de prazer, alegria, felicidade ou de frustrao, privao e sofrimento, emoes que dependem da posse de determinados produtos para serem usufrudas ou afastadas. Assim, a propaganda acaba exercendo funo modelizante: modela o comportamento por meio da veiculao de valores que esto centrados no ter cada vez maiscoisas.

N. J. Garcia, O que propaganda ideolgica, p. 10- 11 .

2. Propaganda ideolgica A propaganda ideolgica, isto , a que vende idias e no produtos, feita de modomuito mais sutil e, por isso, muito mais perigosa. Raramente identificada como propaganda. "As mensagens apresentam uma verso da realidade a partir da qualse prope a necessidade de manter a sociedade nas condies em que se encontra ou transform-la emsua estrutura econmica, regime poltico ou sistema cultural."7 As informaes aparecemcomo se a realidade fosse assim mesmo e houvesse absoluta neutralidade na sua apresentao. Isso se d tanto em obras de fico como em noticirios, entrevistase documentrios. O que na maioria das vezes no percebemos que h sempre uma seleo prvia de aspectos da realidade que vo ser apresentados e uma interpretaodessa realidade a partir de um ponto de vista que serve a determinados interesses. As informaes, assim, so fragmentadas, retiradas do seu contexto histrico esocial. Vejamos, por exemplo, como foi apresentada a greve dos professores de 1979. Mostraram-se escolas fechadas, passeatas de professores, crianas soltas na rua,sem aula, mes sem saber com quem deixar os filhos para irem trabalhar. Foram apresentados todos os aspectos negativos, para a populao, da greve dos professores.Omitiram-se do noticirio, entretanto, dados fundamentais que os levaram greve: o clculo do salrio sobre 240 horas-aula mensais, sem considerar o trabalho, no-remunerado,de preparao de aula e correo de exerccios e provas; o desgaste humano e afetivo de se lidar com quarenta ou cinqenta crianas e jovens durante oito horas pordia; a poltica de desvalorizao da educao, que recebe verbas cada vez menores; as condies de vida de um professor que, mesmo dando oito horas-aula por dia,recebe um salrio ainda indigno: a questo das frias de trs meses que, ocupadas, em parte, com provas finais, conselhos de classe, preenchimento de dirios, reuniesde planejamento e trabalhos burocrticos, acabam reduzidas a trinta dias. Tudo isso foi omitido, mostrandose somente o prejuzo imediato das crianas sem aula edivulgando-se a figura do professor como "mercenrio da educao", que se nega a cumprir a "misso" de educar as crianas para um Brasil melhor. A propaganda ideolgica elabora as idias de forma a adapt-las s condies deentendimento de seus receptores, criando a impresso de que atendem a seus interesses. As tcnicas usadas so a universaliza o dos interesses de um pequeno grupo;a transferncia dos benefcios diretamente para os receptores; a ocultao dos efeitos da explorao; a poltica de Poliana (lembrar os mais desgraados e dar graasa Deus pelo pouco que tem); e achar o bode expiatrio em fatores externos, incontrolveis, como crises internacionais, FMI, corrupo de grupos estrangeiros, fatose pessoas do passado etc. Assim, esse tipo de propaganda difunde apenas o essencial do contedo de uma ideologia, selecionando algumas idias fundamentais e transformando-as em poucasfrmulas resumidas e simples, isto , em palavras de ordem e slogan. A palavra de ordem resume o objetivo a ser atingido. Exemplo: "O povo, unido, jamais ser vencido".O slogan contm um apelo aos sentimentos de amor, dio, indignao ou entusiasmo. Exemplo: "Fora Rede Globo, o povo no bobo", ouvido no comcio do Anhangaba,em abril de 1984, na campanha pelas diretas, e em 1992, pelo impeachment do presidente Fernando Collor deMelo. Para que o controle ideolgico sobre a populao seja mantido, necessrio criar alguns mecanismos que impeam o indivduo de observar com olhos crticoso meio em que vive (o que o levaria conscincia de suas reais condies de vida) e de ter informaes diferentes das veiculadas pela ideologia dominante. Essa a funo da censura oficial, das patrulhas ideolgicas, da violncia, da presso psicolgica, da cooptao e da lavagem cerebral!

**nota Patrulha ideolgica: expresso usada no Brasil, a partir de 1978, para designar a ao de grupos quecriticam artistas, intelectuais e outras pessoas popularespor no defenderem as idias desses mesmos grupos. Cooptao: processo pelo qual um indivduo ou pequeno grupo recebe concesses e privilgios para deixar de defender os interesses da classe social a quepertence e passar a defender aquele que lhe fez as concesses. Lavagem cerebral: processo pelo qual indivduos ou pequenos grupos, depois de levados a lugares afastados, de ondeno podem sair durante certo tempo, so bombardeados com novas idias. O indivduo, fora do seu ambiente normal e com osenso crtico diminudo pela presso psicolgica, acaba aderindo s idias que lhe so propostas.

**fim da nota

Nos meios de comunicao de massa, no necessria muita presso externa, uma vez que pertencem a grupos da classe dominante que prope a ideologia. A titulode exemplo, podemos citar os captulos finais de qualquer novela de televiso, quando as personagens principais acabam se casando. A realizao profissional e arealizao pessoal na relao com outras pessoas no importam. O principal achar o prncipe encantado e casar-se para que tudo esteja resolvido. Assim, preciso que estejamos sempre atentos. evidente que no vamos negar todas as informaes que nos chegam, seja sobre produtos e servios, seja sobreo mundo em geral. O importante mantermos uma postura crtica, questionadora, comparando sempre as informaes entre si, observando o que ocorre nossa volta,para podermos ter uma viso mais global dos fatos e, principalmente, o conhecimento da origem das idias veiculadas pelos meios de comunicao de massa para descobrirmosa quem realmente elas servem.

3. Conseqncias sociais da propaganda

Na medida em que a propaganda comercial veiculada pelos meios de comunicao de massa, atingindo indistintamente vrios segmentos da populao, ricos epobres, quais as conseqncias desse constante apelo para comprar? Tomando como exemplo o Brasil, onde s se pode considerar sociedade de consumo pequenas partes do centro-sul do pas, dada a m distribuio de rendas, comofica o resto da populao que recebe o estimulo da propaganda e no pode satisfazer nem suas necessidades, menos ainda suas aspiraes? Em primeiro lugar, h um dado da Febem (Fundao Estadual para o Bem-Estar do Menor) de que, nas vsperas do dia das mes, dos namorados, dos pais e do Natal,poca em que a propaganda mais intensa, acontece o maior nmero de furtos praticados por menores. Na impossibilidade de comprar, eles respondem aos estmulos dapropaganda do nico jeito possvel. E so presos. Em segundo lugar, a populao menos carente se atira ao trabalho (que dignifica!) na esperana de economizar o suficiente para pagar a prestao do que apresentado comoindispensvel vida. E a ordem social mantida, com todos trabalhando para, um dia, chegarem l. Alm da atitude de consumo, a propaganda comercial tambm veicula, como a propaganda ideolgica, modelos de apresentao pessoal, de relacionamentos e decomportamentos, alm de modelos de roupa, maquiagem, decorao. Inconscientemente, e pela repetio, vamos assimilando o que deve sercomido no caf da manh, como lavar a roupa, o que beber, em que tipo de bar e em qualcompanhia, a que programas assistir, sem indagar se so adequados aos nossos gostos e preferncias, ao tipo de vida que levamos, ao tipo de salrio querecebemos, enfim s condies concretas da nossa vida. E sem essa reflexo sobre as nossas condies reais de vida, viveremos alienados e sem nenhuma condio detransformao do real.

#SEGUNDA PARTE - Lgica dialtica

O que , exatamente por ser tal como , ano vai ficar tal como est.(Brecht)

1. Introduo

Etimologicamente, dialtica vem do grego dia, que expressa a idia de"dualidade", "troca", e lektikcis, "apto palavra", "capaz de falar". a mesma raizde logos (palavra, razo) e, portanto, se assemelha ao conceito de dilogo. No dilogo h mais deuma opinio. h dualidade de razes. A palavra dialtica tomou vrios sentidos ao longo da