filho do fogo 2

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    FILHO DO FOGO

    Volume 2

    Isabela Mastral Eduardo Daniel Mastral

    Contatos: Autores: [email protected] Editora Nas: http://www.editoranaos.com.br [email protected] O princpio da sabedoria o temor do Senhor. (Pv. 1:7) O princpio da sabedoria : adquire a sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire o entendimento. (Pv 4:7) Porm a sabedoria habita com a prudncia, no corao dos prudentes repousa ela. (Pv. 8:12; 14:33) Oua o sbio e cresa em prudncia; e o entendido adquira habilidade! Pois com medidas de prudncia faremos a guerra. (Pv. 1:6; 24:6) Antes de dar incio a esta leitura coloque em prtica este princpio: Seja prudente! Ore a Deus, revista-se completamente com a Sua armadura, pea a cobertura do sangue do Cordeiro. E que o Esprito Santo, o Esprito da Verdade, lhe acrescente sabedoria, discernimento e a compreenso completa do propsito de Deus neste livro. Que o nosso Senhor Jesus Cristo nos abenoe a todos! Esta uma histria baseada em fatos reais. Nomes de pessoas, empresas e escolas foram modificados. Houve omisso do nome de algumas cidades. Apenas o nome das entidades demonacas original. Dedicamos este livro aos muito poucos que permaneceram realmente ao nosso lado.

  • 3

    ndice:

    HPARTE II .................................................................................................................................... H4

    HCAPTULO 8 ................................................................................................................................. H4 HCAPTULO 9 ............................................................................................................................... H19 HCAPTULO 10 ............................................................................................................................. H37 HCAPTULO 11 ............................................................................................................................. H56 HCAPTULO 12 ............................................................................................................................. H71 HCAPTULO 13 ............................................................................................................................. H84 HCAPTULO 14 ............................................................................................................................. H98 HCAPTULO 15 ........................................................................................................................... H110 HCAPTULO 16 ........................................................................................................................... H135

    HPARTE III............................................................................................................................... H148

    HCAPTULO 1 ............................................................................................................................. H148 HCAPTULO 2 ............................................................................................................................. H170 HCAPTULO 3 ............................................................................................................................. H184 HCAPTULO 4 ............................................................................................................................. H203 HCAPTULO 5 ............................................................................................................................. H223 HCAPTULO 6 ............................................................................................................................. H245 HCAPTULO 7 ............................................................................................................................. H271 HCAPTULO 8 ............................................................................................................................. H289 HCAPTULO 9 ............................................................................................................................. H308 HCAPTULO 10 ........................................................................................................................... H322 HCAPTULO 11 ........................................................................................................................... H337 HCAPTULO 12 ........................................................................................................................... H352 HCAPTULO 13 ........................................................................................................................... H385 HCAPTULO 14 ........................................................................................................................... H411 HCAPTULO 15 ........................................................................................................................... H417 HEPLOGO .................................................................................................................................. H435

    HUMA PEQUENA HISTRIA DE UM GRANDE AMOR................................................. H436

    HRESPOSTA............................................................................................................................. H450

    HALERTA.................................................................................................................................... H451

    HPRINCIPAIS REFERNCIAS BBLICAS......................................................................... H453

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    PARTE II

    Captulo 8 As semanas passaram sem maiores novidades. Aquele sbado tinha sido agradvel. Treinei Kung Fu e fui direto para a casa

    de Camila Vamos comer juntos mais cedo?! Convidara ela. Podamos pedir uma

    pizza e pegar filme de vdeo, n? O que acha? Voc ficou to sumido no final de semana passado...

    Ela estava feliz, descontrada e louca para me agradar. Havamos retomado o namoro h pouco, aps mais uma das nossas to freqentes brigas e separaes. Havia sido um Deus-nos-acuda como sempre.

    Camila comeou a no querer mais comer, emagreceu terrivelmente, vivia atrs de mim. Foi presso de todos os lados para que voltssemos. Dona Carminha falava com minha me e depois me mandava recados:

    A Camila continua sem comer. S fala de voc. melhor repensar esta deciso! Voc no vai encontrar outra moa como ela. S fala em morrer, em se matar, em definhar de inanio, coisas assim! E por a adiante.

    De fato Camila emagreceu muito. Quando a vi de novo at assustei. Ficou abatida, acabada, deixando a todos preocupados. E at tentou suicdio. Feliz-mente no foi dos mais inteligentes, tomou apenas algumas cartelas de aspirina. Era o que havia de disponvel.

    Eu no queria mais manter aquele relacionamento, principalmente depois da Iniciao. Mas a velha pena acabou novamente falando mais alto. (Onde que eu estava com a cabea???...)

    Decidi realmente ir comer pizza noite na casa de Camila, afinal eu a havia visto apenas na ltima tera-feira. Ela havia estado a me esperar no porto apro-veitando o sol do final da tarde.

    Acho melhor pedir pelo telefone, para entregar! Pode ser meia frango com catupiry e meia portuguesa, ou voc quer toda portuguesa? Camila sabia que eu no dispensava a portuguesa e to logo cheguei ela j me acenava com o panfleto do cardpio.

    Pode pedir meio a meio, como voc quiser. Ento, t!

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    Entramos em casa conversando. A poodle veio fazer festa. A poodle somente, porque os dobermanns continuavam no quintal. Fui direto para o telefone encomendar a pizza.

    Trs tambm uma coca grande, por favor! Pedi, antecipando um super copo com gelo e limo para acompanhar o refrigerante.

    Depois de cumprimentar Dona Carmem fui atrs da Camila, que estava no quarto.

    Eu peguei aquele filme que voc queria ver. Explicou Camila, sentando sobre a cama.

    Preferimos ficar por l naquele horrio comeo da noite pois o relacionamento da famlia dela comigo no era dos melhores e em breve todos estariam por l. Entenda-se por famlia a irm e o Pastor. No conseguia suportar a Kelly, sempre procurando um motivo para implicar comigo ou com a Camila. Mas o pior de todos era o Pastorzinho!!! Deixa estar... eu ia peg-lo de jeito.

    Uma vez no quarto me acomodei no cho, de costas para a parede. Camila sentou-se de frente para mim, contando as novidades do servio:

    ...e acabou dando a maior confuso; tambm todo mundo avisou que o controle ia ficar mais rigoroso a partir de segunda-feira, mas ele no quis dar o brao a torcer. No sei, no... talvez seja despedido!

    Ouvi quando o Pastorzinho chegou. No da Igreja, claro, afinal sexta-feira era dia de folga. No entanto o carro da Igreja bem que ficava com ele, e com gasolina vontade! Hum...nada como um dia aps o outro.

    Imagine s, que rolo! Camila dava risada. Eu havia perdido o final da histria ao desviar minha ateno para os rudos na sala e o som de vozes.

    Procurei descontrair-me. Acho que s estava um pouco mais irritado do que de costume. Jogamos um pouco de xadrez, mas logo chegou a pizza. Camila, como sempre trouxe pratos, talheres e copos para o quarto. Eu coloquei um peda-o de pizza sobre o outro fazendo um sanduche, e dispensei os talheres. Estava com o sanduche a meio caminho da boca e o copo cheio de borbulhante coca-cola quando...: TUM! Minha mente deu um estalido! Eu no podia comer quela hora! Haveria um Ritual naquela noite para o qual eu deveria manter-me em jejum por seis horas.

    Nem sempre isso era necessrio, mas naquele dia sim. Olhei para Camila, que experimentava o seu pedao sabor frango com

    catupiry.

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    Ah, eu no vou comer, no, t? Falei de pronto, sem delongas. No?!! Ela parecia no compreender. Mas, por qu? Voc no

    queria pizza? Queria, at, mas sei l... perdi a fome. No vou comer agora.

    Respondi com convico. Come voc! Mas eu no vou agentar tudo. O que faremos com este monte de

    pizza?! Perguntou ela meio brava. Ah, no sei! D para sua famlia! Agora pode, n? Bem, se no quer dar para sua famlia d para os cachorros. Voc

    escolhe! No, vou dar para minha famlia, aproveitar que meu irmo chegou

    agora. D este pedao aqui para ele Falei rindo. Num momento de

    descuido eu havia cuspido embaixo do queijo. Ela, estranhamente, concordou. Nem entornou o caldo. Eu achei que

    Camila no devia estar muito bem. No era apenas porque o dinheiro saa do meu bolso. Havia algo mais. Situaes assim comearam a acontecer com freqncia. Numa outra ocasio, logo depois deste dia, Camila no discutiu diante de outra desculpa bastante esfarrapada.

    Agora eu tinha compromissos em dias pouco favorveis. Para Camila, lgico. Porque para mim o dia nunca estava desfavorvel. Os Rituais de Celebra-o eram todas as sextas e sbados partir das onze e meia. Alm das reunies de estudo no Grupo s segundas e quartas.

    Conforme aproximava-se o horrio combinado com Marlon, eu procurava sair da casa dela:

    Olha, este tnis aqui est incomodando muito. Falei para Camila. Eu vou para casa trocar de sapato, t bom? Preciso ir agora!

    Tudo bem. Afirmou Camila. Eu vou junto com voc. No! No precisa ir junto. Retruquei. Eu vou e volto. Voc

    aproveita para tomar um banho enquanto isso, com calma. Novamente ela concordou, sem discusses e sem insistir mais. Nem parecia

    a Camila que eu conhecia. Seria s a boa vontade de reconquistar os bons pero-dos de namoro?

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    Quando cheguei em casa, peguei o telefone e liguei para ela: Olha, eu no vou voltar mais. Estou cansado e vou aproveitar para

    descansar um pouco hoje. Ela no pareceu se incomodar: Descanse bastante, ento, amanh a gente se v. Tudo bem! Eu sabia como era difcil convencer uma mulher quando ela faz questo da

    presena do homem. Ou Camila no estava fazendo questo, ou...? Mas, a bem da verdade, pouco me interessava estar muito ou pouco tempo

    com Camila. O qu me faz continuar esse relacionamento? Fui levando o namoro aos trancos e barrancos. S que logo depois da Inici-

    ao eu passei a ter convico muito clara de uma coisa: Eu no vou casar com esta mulher. No ela a pessoa certa! Se eu me

    unir desta forma Camila estarei prejudicando a mim mesmo, meu desenvolvimento e crescimento na Irmandade. Depois... Meu semblante sempre ficava carregado nessa altura. Depois eu vou ter que aturar esta famlia e isto decididamente no d!!!

    E este era um fator que pesava muito. Camila de fato no me incomodava. Ela levava o Cristianismo no vai-da-valsa. E s queria me agradar. Com medo de perder o namorado, acabou domada. E passou a concordar com praticamente tudo, no reclamava das coisas mais absurdas. E com essa submisso toda ficou muito mais fcil ludibri-la sobre aonde eu estava e o que fazia

    Dona Carminha e a av eram boas... mas estavam eternamente me contando aquelas histrias bblicas interminveis, e tentando arrastar-me para a Igreja, e falando de Jesus. E isso era to insuportvel! Eu at evitava dirigir muito a palavra para as duas. No suportava mais escutar aquela pergunta:

    Voc leu a Bblia hoje? Bblia! Bblia! Bblia! Estava cheio daquela palavra. Eles todos me davam

    nojo com sua eterna Bblia! Minha vontade era de dar uma respostinha altura. No li, no! Eu a uso para outros fins!!! Mas como isso no era possvel (tinha que manter uma certa diplomacia por

    causa de Camila), ficava s na vontade. E que vontade! Mas suportar o Pastorzinho...! Sem dvida que esse era o xis da ques-

    to.

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    Naquela poca ainda dava pra agentar porque eu estava quase o tempo todo ocupado. Estudava; tinha os compromissos com a Irmandade noite. O tempo que me sobrava era, naturalmente, para treinar Kung Fu. Restava muito pouco para Camila e quase nada para a famlia dela.

    Camila acreditava nas mais tolas desculpas que eu pudesse dar. Os estudos e os Rituais comeavam tarde mas eu no tinha carro. Dependia de Marlon que me levava quase sempre ou de Thalya, que tambm tinha carro. Por vezes eu at combinava com eles nas imediaes da casa de Camila porque no era muito distante do palacete de Zrdico. A maior parte dos Rituais realmente acontecia l. E eu, que nem sequer fazia idia quando estava estudando no Grupo!

    Quando comeava a dar o horrio em que deveria sair sempre acabava tendo que apelar: cansao, sono, coisas para estudar, dor-de-cabea, etc. ..etc. ..etc. ...! E quando o argumento estava ficando batido demais eu era obrigado a me utilizar de verdadeiras prolas da invencionice. Era relativamente fcil. Em suma, eu realmente nunca tive o menor problema e Camila nunca desconfiou daquela vida dupla. Nem ela e nem ningum da famlia. Isto deixava de ser coincidncia, extrapolava as leis da probabilidade e do fato dela querer agradar-me.

    Sem dvida o dedo de meu pai estava naquela histria. S que, nessa altura, eu ainda no compreendia este contexto espiritual. No podia supor que Abraxas ou qualquer outro se daria ao trabalho de influenci-la de alguma forma. No sabia que tambm tinham esse Poder. Achava que tudo era apenas fruto da minha capacidade de persuaso. Nem cheguei a questionar muito. Se o tivesse feito acharia estranho que minha namorada concordasse, em pleno fim de semana, com o fato de que eu precisasse, com urgncia (inadivel), arrumar as gavetas do armrio, por exemplo.

    A gente aproveita melhor uma outra hora. Eu chego mais cedo no outro sbado, t?

    Poucas vezes Camila realmente insistiu para que eu me demorasse mais. Certamente que este no era o feitio dela:

    Ah, Edu! Dorme aqui em casa hoje, v, amanh no tem horrio. Fica aqui hoje?

    No d, Camila. No tenho nem pijama aqui na sua casa. Mas eu te arrumo uma camiseta do meu irmo! Nem pensar. Eu s durmo com o meu pijama! O mais curioso que

    Camila era a primeira que deveria saber que eu no usava e nem nunca usei

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    pijama. Acabei at rindo-me disso mais tarde. Nada do que ela sugeria serviu. E

    ento ela concordou. Marlon tambm havia me instrudo um pouco acerca dela logo de cara. D a cartada logo. Falou ele to logo comentei que reatara o namoro.

    Voc quer realmente torn-la malevel a ponto de no ser obstculo de espcie nenhuma? muito simples: chega nela e diz que no est mais gostando. Isso fato, certo?

    Em parte, Marlon. Sabe como que , no se trata daquele amor, nada disso. Mas tenho pena e acho que um pouco eu ainda gosto dela. No vou casar! Mas ela boazinha, uma moa direita... difcil encontrar uma moa direita hoje em dia!

    Em momento algum ele me incentivou a romper de vez o relacionamento. importante que voc continue com ela enquanto for bom para voc.

    Mas quando voc achar que acabou, que no mesmo ela que voc quer... ento pe o ponto final sem esta histria de ficar com pena. No aceite imposies de famlia e nem de ningum. Decida por voc mesmo! Por hora, continue namorando a moa. Mas para que ela no seja um problema para voc, faa como eu disse. Diga que seu amor est acabando, que voc est com muita dvida a respeito do relacionamento, dvidas em relao a ela, por a adiante. Fala que voc vai dar uma ltima chance para ela te reconquistar, e caso isso no ocorra tchau mesmo! Afinal, se ela tentou at se matar por sua causa...! Te garanto que ela ser super compreensiva!

    E assim foi mesmo. Ela era muito compreensiva em todos os aspectos. Como Marlon havia dito. E ele tambm me havia feito entender que era muito bom ter duas mulheres. Ou trs. Ou quantas eu desejasse.

    Salomo teve setecentas. Disse-me Marlon com ar cnico. Vejam s, o Rei de Israel, o escolhido de Deus. Naturalmente que ele teve que deixar de lado um pouco a lei de Deus, e fez o que tinha vontade. Se teve setecentas porque o negcio devia ser bom pra caramba! A verdade que s vezes o homem precisa de mais de uma mulher para se completar. Ele sorria com malcia no olhar. Tem mulher que boazinha como voc mesmo comentou, mas que para outras coisas no to boa assim. Tem outras que so muito carinhosas, meigas... mas tambm rancorosas. Outras so inteligentes, boas para longas conversas. Por outro lado, independentes demais. Por a vai! Ento uma compensa a outra. A deficincia aqui suprida pela eficincia ali. O bom mesmo ter vrias. Voc aproveita o melhor de cada uma!

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    Incentivada a poligamia, eu fiquei pensando. Marlon tinha dourado um pou-co as coisas, mas o fato que todo homem pensava assim mesmo. S que, apesar disso, eu pensava diferente. No estava com vontade de fazer coleo de namora-das. Por ora ficava com Camila.

    E mesmo porque havia Thalya nessa histria toda. Novamente esbarrava nesse pequeno e irrevogvel detalhe. Mas eu podia estar com ela sempre que assim o quisesse.

    Ela era imprevisvel e combinava muito com o meu prprio jeito de ser. Intelectualmente falando eu podia manter com ela os dilogos que seriam impos-sveis de ter com Camila. Thalya era linda. No dava para negar esse fato. E Camila, bem, ela era boazinha, direita, submissa. Bem diferente. De certa forma uma completava mesmo a outra, como dissera Marlon. Pelo sim, pelo no... eu ia deixar como estava.

    Thalya compreendia perfeitamente que tipo de aliana tnhamos um com o outro. Era uma aliana de Poder... no um casamento!

    A unio que ns temos, Disse ela certa vez. no implica em respeito, esse respeito que a Igreja muito ridiculamente impe. Nosso elo est acima destas efemeridades. Eu posso ter tantos homens quantos eu queira, e voc a mesma coisa com as mulheres. Mas ainda assim eu e voc somos e sempre seremos como um s. Vai muito alm de um coito! Lembra-se? O lao de sangue nunca quebra! Isso quer dizer que tem tempo certo para tudo. Por hora se voc acha que deve ficar com essa fulaninha, que fique. Se quiser ficar comigo, que fique tambm.

    Era fato. E ficamos assim combinados. Eu namoraria Camila quanto quises-se e Thalya teria tantos homens quantos desejasse, mas fora do contexto da Irmandade. Ficou acertado que, l dentro, no teramos outras ou outros. Pelo menos por enquanto. E no era uma questo moralista, era apenas uma espcie de pacto que levava mais em considerao a amizade e o carinho que tnhamos um pelo outro do que qualquer outra coisa.

    Fosse como fosse, do lado de fora ela aproveitava do modo dela e eu do meu. Thalya era como o tempo: podia-se prever, mas jamais determinar. E eu no podia estar na dependncia de algum assim.

    A verdade era que no havia necessidade de escolher... ento deixei rolar! Mas acho que se tivesse mesmo que ter escolhido... difcil dizer... qual delas seria? Tal vez... minha alma gmea...?

    ***

  • 11

    Camila tinha uma vizinha que volta e meia estava l na casa dela. Seu nome era Tamara. Tanto ela quanto a famlia eram hippies. O passatempo de Tamara era fazer aqueles artesanatos que se vendem em feirinhas de hippies. Os irmos dela bem mais cabeludos do que eu eram msicos e tocavam na noite, em barzinhos. A me era professora de piano e o pai imagine! um maestro!

    A meu ver, eram um bando de loucos! Da casa da Camila podia-se escutar aquele piano martelando o dia inteiro, um entra e sai de alunos da manh noite, e guitarras e baterias nos intervalos.

    E como se no bastasse tanta esquisitice, como todo bando de malucos, eles eram todos ateus. Eu me divertia com aquela famlia, e especialmente com Tamara que volta e meia aparecia em casa de Camila. Sempre com suas roupas indianas e seus papos filosficos totalmente sem p nem cabea! No sei como aquela moa podia acreditar em tanta besteira!

    O detalhe: naturalmente que o Pastorzinho queria evangeliz-la. E, de que-bra, trazer toda a famlia dela para Cristo.

    Depois que fui Iniciado, minha bronca com o Srgio piorou bastante. Eu no suportava nem ouvir a voz irritante dele e estava louco para confront-lo um pouco. Mais ou menos uns dois meses aps o Rito de Iniciao eu estava num domingo tarde pronto para tomar um ch com Camila. E Tamara estava por l. O Pastorzinho borboleteava aqui e ali, e no levou muito tempo para que ele e Tamara acabassem desembocando numa discusso acerca do Cristianismo.

    Vibrei! Eu no via a hora de ter uma deixa qualquer. Afinal, no meu entender eu tinha argumentos de sobra para fazer o Srgio engolir a sua doutrina v. Meu problema no era a Tamara e as tolices nas quais acreditava. Eu queria era pegar o Pastor de jeito! Queria v-lo engolir toda a sua mediocridade e hipocrisia, aquele aproveitador! Minha antipatia parece que tinha se multiplicado tremendamente. E como eu ansiava pelo gostinho de deix-lo numa situao de constrangimento pblico!

    Mais dia, menos dia eu vou acabar tendo uma bela oportunidade e vou entupir esses Cristozinhos de meia tigela!

    Tratei de esperar. E demorou! Estranhamente, muito estranhamente, naquele ltimo ms a me de Camila no me pegou para contar nenhuma histria bblica: nada de Davi, Abrao ou Rute. A av... nem me perguntou se eu havia lido a Bblia, ou se ia acompanh-los Igreja. Nada acontecia! E eu tinha que me con-tentar apenas em desejar, ironicamente, uma boa jornada de trabalho ao Srgio. Quando ele saa para pregar eu no perdia a oportunidade:

    Bom servio!

  • 12

    Mas isso no servio, j te disse. Lgico que . Voc ganha pra isso! Eu era cnico. Logo depois que comecei a freqentar a Escola Preparatria com Marlon as

    coisas mudaram um pouco de figura, sem que eu percebesse. Ir Igreja, s se fosse para assistir ao show! O show que o Pastor dava, o show da Congregao. E para aprontar pequenas maldades.

    Era tudo muito engraado. Eu morria de dar risada diante da cara vermelha e suada do Pastor titular! E via as pessoas naquele transe coletivo, erguendo as mos, aplaudindo, chorando. Faziam cada cara... eu no conseguia me conter. E ria, ria, ria compulsivamente!

    No fim aquilo acabava contagiando a Camila, e ela entrava na brincadeira: Olha! Olha s a cara daquela mulher gorda ali! Eu a cutucava,

    apontando. Parece que ela est fazendo coc. Eu no tinha o mnimo de respeito por nada e por ningum. Olhares tortos

    nem de longe surtiam o menor efeito. Eu devolvia um ar de no t nem a e continuava com a mesma falta de educao. Afinal, ningum tinha nada que ver com isso, eu estava falando com Camila, no tinha culpa se escapava alguma coisinha aqui e ali.

    Tudo o que eu pudesse fazer para afrontar as pessoas eu fazia. Toda e qual-quer situao de constrangimento que eu pudesse criar... eu criava. S pensava em fazer pequenas maldades todo o tempo que estava na Igreja. Acostumado ao senta-levanta de sempre, aprontava tambm:

    Levanta pra louvar ao Senhor! Agora ajoelha! Agora senta! Agora levanta para orar! Vire para o seu irmo e diga...

    Eu resolvia que ia ao banheiro e, uma vez erguido o povo, colocava tachinhas nos bancos. Longe de onde eu estava sentado, claro! Acho que volta e meia devia acertar algum. Pensar naquilo algum pulando depois de espetar o traseiro me enchia de um estranho e sdico prazer!

    Outras vezes arremessava chicletes mascados nas cabeleiras mais longas. De preferncia enquanto todos estavam de olhinhos fechados para orar ao Senhor. No banheiro escrevia palavres nas portas, xingava os Pastores, achincalhava a Bblia.

    Assim, o Culto terminava por ser o momento mais hilariante da semana. Mas isso... antes! Antes da Iniciao... antes da aliana de sangue... antes do

    meu comprometimento com Abraxas e a Irmandade.

  • 13

    Ir Igreja agora seria inconcebvel, nem me passava pela cabea. Era um programa reles demais.

    Ainda que seja o mais engraado do mundo, para mim... basta!!! Volta e meia Camila tambm deixava de ir a Igreja para ficar comigo, alis a

    famlia toda no era muito assdua! Somente o Pastorzinho ia regularmente porque, afinal de contas, se no fosse tambm no comia. Salrio suado aque-le!!!

    As coisas estavam neste p quando naquela tarde de domingo, de repente, a Tamara me veio com esta:

    Escuta, Srgio. Principiou ela ainda bebendo os ltimos goles de ch mate. Me desculpe, voc Pastor, mas deixa eu te perguntar uma coisa...

    O Pastorzinho limpou as mos no guardanapo, aguardando o que viria: No por nada, mas voc acredita mesmo nesta histria de que Maria

    recebeu um filho do Esprito Santo?! Perguntou Tamara naquele jeito desleixado de hippie. Pra mim, o Jos levou um belo par de chifres e ela quis colocar a culpa no anjo, n? Porque, imagina s, v se isto tem cabimento! E o Jos engoliu essa.

    No, no! Comeou o Srgio. Isto est na Bblia e uma coisa muito sria. No convm brincar com estas coisas.

    Eu j acendi os olhos: Opa! Ele continuou falando que a concepo de Jesus havia sido assim mesmo, e

    bl-bl-bl, porque a Bblia dizia que era assim, ento era assim. Encostado no batente da porta eu simplesmente interrompi a explanao de sopeto:

    E voc acredita em tudo que est escrito na Bblia? Perguntei com certo mau-modo e queima-roupa, os olhos chispando na direo dele.

    Que oportunidade esta menina acaba de me criar!, pensei exultando. Sim, acredito! Respondeu o Pastor com ar srio, balanando a cabea

    repetidas vezes. Hoje reconheo que a pergunta que fiz era bsica. Mas ela no soube res-

    ponder! Pois . Voc deve estar lembrado ento que Deus criou o tal Ado, n? E

    pelo que parece a mulher no estava nem nos propsitos da Criao, pois ela s apareceu depois. Deve ter sido porque o coitado do Ado ficou l no jardim olhando os cavalos... os pssaros... os elefantes... todos se divertindo, tendo seus prazerezinhos, no ? E ficou encafifado, pensando: Bom, o que ser que tem

  • 14

    parecido comigo por aqui?. E Deus colocou a mulher l pra ele. E da nasce o Caim e o Abel. Mas me diga... se s havia esta gente por l, como ou melhor, de onde que saram todas as outras pessoas? S se Caim teve relao com a me, n? Explica a, vai! O que que aconteceu?

    Meu tom de falar, meu semblante, meu olhar, tudo expressava um ar de descaso agressivo e debochado.

    Bom... Comeou ele, enrolando os dedos no guardanapo, pressentindo no ar um clima pouco amistoso. A Bblia no muito clara a este respeito, mas parece que eles tinham uma irm...

    Eu nem esperei ele terminar a frase. Ribombei logo: Irm!!? At para mim aquela era nova! Mas ento houve relao

    entre irmos?! Tudo bem, eu entendo que o negcio devia estar feio mesmo se no havia ningum para o Caim e o Abel darem umas bimbadinhas! Se Deus generosamente no lhes deu ningum... como que ficavam os pobres coitados? Ou ser que Deus criou uma mulher do nada para eles tambm? Que Deus maluco! Fala mais tarde que incesto pecado, mas toda a Humanidade principiou como sendo fruto de um tremendo pecado de incesto??? S podia dar no que deu, n? Sodoma, Gomorra, perdio... s vindo o dilvio para acabar tudo de vez. Eu nem esperava resposta. Emendava logo uma idia na outra. Ento, o pecado s pode ser relativo mesmo! A mesma coisa numa hora pecado, na outra no . No assim? Para formar a Humanidade valia incesto, mas depois no valia mais. Legal isso a! At o coitado do Cana levou na cabea com esta do pai dele dar umas e outras em famlia, n? Gozado que quem pecou foi o pai... mas quem leva a maldio o filho. Tudo a ver!

    Ele parecia um tanto confuso. Eu continuei, pois acho que ele nem pescou o lance de Cana! Nem sabia do que eu estava falando.

    Quer ver mais uma? Uma mais fcil, t? De lambuja! Cana muito dif-cil! Em uma poca pecado ter mais de uma mulher, em outra no ! Salomo tinha setecentas mulheres e trezentas concubinas. Depois, no Novo Testamento, faz-se meno ao homem ser marido de uma s mulher. Mas este que teve mil mulheres foi somente o rei de Israel e o homem mais sbio do mundo?!!!? Este Deus a da Bblia completamente louco.

    Aquilo foi demais para ele e para os presentes. No, senhor!! Exclamou o Srgio um tanto ou quanto exaltado ao ver

    to ostensivamente ofendidos os seus preceitos. Deus o mesmo ontem, hoje e sempre!

  • 15

    Ah, pois mesmo? Respondi com pouco caso. Ento me prova isto, me prova com base nesta Bblia mais confusa que o prprio Deus. Quer ver mais um exemplo das loucuras de Deus, s pra voc se conformar? Os profetas de Deus... aqueles que deveriam pregar ao povo de Israel e ser exemplos vivos do prprio Deus... por exemplo, Eliseu. Pediu a poro dobrada da uno de Elias. Nem bem recebeu, o que ele faz com sua poro dobrada? Causa a morte de quarenta e dois meninos, amaldioando-os em nome de Deus. Foram mortos por duas ursas... consegue imaginar a cena? A Bblia diz que eles foram despedaados!. Sabe como que , n? Vsceras pulando para todos os lados, cabeas rolando...! E tudo isso porque, brincando, chamaram o profeta de carequinha.

    Despejei mais alguns argumentos tirados das minhas aulas e vomitei todo o meu desprezo diante deles. Tamara limitava-se a alternar o olhar entre mim e o Srgio, muda diante da discusso que ameaava pegar fogo. A expresso do rosto do Pastorzinho merecia uma foto!

    Prova! Retruquei novamente. Porque eu no estou vendo lgica ne-nhuma nisso tudo! Ontem Deus pensava de um jeito, hoje de outro, e amanh... v saber o que passa na cabea Dele! Havia desdm e sarcasmo nas minhas palavras. Hoje, a Igreja se esfola para viver debaixo dos preceitos que considera ser revelao da vontade de Deus. Mas v saber o que Ele vai inventar amanh para seus adorveis filhinhos! Quer mais um exemplo? Antes Deus mandava o seu Povo escolhido destruir todos os povos diferentes. Morriam mulheres, crianas, ao fio da espada, uma chacina em nome de Deus... hoje, nada de matar ningum: pecado! No parece mudana demais? E, amanh como que fica? Ser que o que voc cr hoje... no vai virar pecado amanh?

    No sei o que houve, se deu um branco na cabea dele ou se a expresso do meu rosto simplesmente o fez querer deixar por menos. Mas, o fato que ficou evidente que ele estava enrolado e confuso. No precisava mais nada. Aquelas idias acerca da relatividade do pecado e a mutabilidade do Criador, ainda que apenas esboadas, fizeram com que ele se atrapalhasse todo!

    Mrito de meu treinamento. Estava satisfeito! Tinha lavado a alma. Acabado com ele em poucos minutos, na frente de todos. Ele e o seu Cristianismo de fachada.

    Bom... O Pastorzinho ainda tentou esboar uma reao. O guardanapo jazia todo amarfanhado sobre a mesa. Voc at tem razo no que colocou mas certamente h uma explicao para isso, pois Deus de fato o mesmo. Sempre. Ontem, hoje e sempre. Deus fiel e sua Palavra...

    Ele no desistia. Ataquei por outro ponto:

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    Ah, Deus fiel?!! Dei risada. Me mostra a fidelidade Dele! O que aconteceu com os discpulos de Jesus, os que deram sangue, suor e lgrimas pela divulgao do Evangelho? Eu quase gritei ao responder, a raiva transparecendo em meu semblante. Morreram todos de forma horrvel! Pedro foi crucificado de ponta cabea, vrios foram decapitados, Estevo foi apedrejado, centenas... crucificados... queimados... devorados por lees... torturados! Aqueles de quem Deus se orgulhava. Aqueles a quem foi prometida to grande salvao, os escolhidos a quem nada poderia causar dano. Cujas casas estariam livres de pragas. A quem se diz, conforme o salmo 91: Mil cairo ao teu lado, dez mil tua direita, mas tu no sers atingido.... Mas simplesmente foram entregues nas mos do inimigo.

    Houve um momento de silncio. Conclu: Bela fidelidade!... Esta a eu dispenso! Se voc cr na Bblia, cr que ela

    cem por cento Verdade, como explica isto? Ela est negando a Si mesma! Voc vai ver em sua prpria vida no que esta fidelidade vai dar...

    Penso hoje que algum mais compromissado com Deus teria uma boa res-posta para me dar. Eu no era ainda um expert em argumentao. Podia ser convincente com algum menos informado. Mas pelo visto ele estava meio fraquinho em conhecimento de contextos bblicos.

    Bem... eu nunca tinha pensado nisso que voc disse... Resmungou ele meio atordoado.

    Fui implacvel: Nunca tinha pensado? Mas ento voc acredita em algo que nem

    entende? No sabe dar boas razes para justificar a sua f? As pessoas falam e voc simplesmente acredita? Quem te garante que a Bblia no foi manipulada pelos homens e no passa de uma fajutice?

    Foi um vexame total. Ele foi levantando da mesa, resmungando baixo: Bom...

    Pode ser que a Bblia tenha sido adulterada! Continuei. A Igreja Catlica, com todo o seu poderio, mexeu em tanta coisa e mudou tanta coisa. E as pessoas que se dizem donas-da-verdade e que acreditam na Bblia como sendo um Absoluto cometeram atrocidades. E tudo em nome de um Deus de Amor. E cometeram atrocidades devido s diferentes interpretaes do mesmo assunto, do mesmo texto, no?! Porque se Deus um s, e no muda, voc h de concordar que a Verdade deveria ser uma s! Como voc explica toda esta divergncia de interpretaes? E mais ainda a infinidade de seitas derivadas da Bblia? Todas crendo terem a interpretao certa! Jesus veio e disse Eu sou o Caminho,

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    a Verdade e a Vida. Se Ele o nico Caminho, a Verdade tambm deveria ser uma s. Como ento existe este monte de lixo Cristo, um querendo ser mais do que o outro, brigando entre si, discutindo? Cad o Absoluto? Tudo relativo! A bondade de Deus relativa, a Verdade de Deus relativa... o pecado relativo! Tudo vai da interpretao!

    Ele passou a mo sobre os cabelos e procurou interromper a discusso: Bom, talvez fosse mais interessante voc marcar um horrio com o

    Pastor Sines. Ele poder esclarecer todas as suas dvidas. Ele est acima de mim, conhece bastante.

    Nem sei que fim deu na Tamara depois disso. Eu s tinha olhos para o Pastorzinho baratinado.

    Camila cochichou-me depois, meio que me recriminando: Mas, pxa vida! Voc no consegue mesmo fechar esta matraca? Eu no respondi, mas pensei comigo: Eles no tm como refutar isto! E o

    episdio terminou assim, com todo mundo deixando passar. Nunca havia uma contestao mais direta. Nunca houve. Alis era assim em todos os aspectos, no s no mbito espiritual. O problema maior deles que no havia realmente como me criticar. Ningum tinha moral para me falar nada. Ningum tinha essa autoridade.

    O pai dela s vezes me perguntava sutilmente pelo casamento. E a? Vocs vo ou no vo casar? Casar? Com dezoito anos?! Tudo bem, meio cedo mesmo, mas tambm no vejo vocs fazendo

    planos para o futuro! Mais de dois anos namorando, a Camila j est com vinte... E da? Casar pra qu? Eu caso quando tiver condies, no vou ficar as-

    sim que nem voc! Ele tinha que ficar quieto. Seu Augusto sabia muito bem que vivia de favor,

    estava sempre endividado e no supria as necessidades da famlia. Uma vez a me de Camila teve que mandar arrancar um dente porque no tinha dinheiro para o tratamento. E eu, embora no casado com Camila, era capaz de suprir todas as necessidades dela, em todos os sentidos.

    Vou casar quando puder sustentar a minha casa e minha famlia numa boa, no vou ficar morando de favor por a, dependendo dos outros. Isso bblico, no mesmo? Deixar o homem a seu pai e sua me... e bl, bl, bl, no assim?!! N?

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    E por a afora. Sempre que procuravam me dar uma lio de moral eu acabava revidando

    insolentemente com as armas que eles prprios queriam usar contra mim. No adiantava vir com ar caxias recitando versculos que nem eles cumpriam. Ti-nham mais que calar a boca e deixar-me em paz! Antigamente eu escutava, por educao. Mas agora at a educao nesse sentido eu havia deixado de lado.

    Vai ser muito fcil desviar a Camila. Ela no tem compromisso nenhum, a base bblica dela super frgil. Normalmente eu derrubava suas argumenta-es bblicas com duas ou trs rebatidas, nas coisas mais elementares. Ela no tinha firmeza da sua crena e eu, pelo meu lado, estava absolutamente convicto de estar no caminho certo.

    A doutrina da Irmandade era muito superior do Cristianismo. Gostaria que Camila pudesse encontrar o mesmo que eu encontrei. No

    deixa de ser uma maneira de retribuir o que ela j fez por mim e que, eu sabia, tinha sido de corao. Coitada... o que vai ser dela? E acabava me condoendo. To dependente de mim, to limitada... e ainda por cima... Crist! Acredita nesse besteirol que falam nas Igrejas!

    E tudo que ela me dizia sobre a Igreja eu contestava. Mas voc cabea-dura, Eduardo! Voc no entende!!! Ela brigava

    comigo. Est escrito! E da que est escrito? Prova que assim. Me convena de uma maneira

    um pouco mais inteligente do que dizer est escrito! C comigo eu achava que no seria difcil influenci-la. Camila no tinha

    vida de orao, no lia a Bblia e ia uma vez por semana Igreja se tivesse carona. No queria mais saber de ir de nibus.

    Eu vou convenc-la! E vou traz-la para a Irmandade! Eu s gostaria que ela fosse bem cuidada. Refletia. Na Igreja as pessoas no so cuidadas. Na Irmandade, sim, somos famlia de fato, sem este cheiro de hipocrisia...

    Eu era muito ingnuo para ter idias to loucas a respeito de Camila na Ir-mandade! Ela nunca seria aceita pelo Satanismo. Jamais entraria l. Camila era fraca. Dependente. Sem iniciativa. Sem garra. Nunca saberia pensar daquela ma-neira.

    E a Irmandade era a cpula... o resultado de uma seleo natural... o lugar dos fortes. E ser forte significava muita coisa. Uma delas era poder sobrepujar sem olhar para trs a maior parte dos valores impostos pela Sociedade.

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    Captulo 9 Nesta poca eu continuava treinando Kung Fu, s que agora vinha ganhan-

    do bem na ADINK. Tinha um salrio invejvel. E fazendo o que eu gostava! Tinha o meu grau de Professor em Wing Chun. E logo depois disso passei a

    ser tambm instrutor na W. Wei, ensinando Ton Long como era do meu interesse. Eu me aperfeioava com rapidez no novo estilo. Estava no final do quarto estgio e tinha sido aprovado com notas dez nos estgios anteriores. Por indicao dos meus superiores, e aps minha aprovao como instrutor, passei a ter aulas somente com o principal Mestre da Academia, o Liu. Era tambm ele quem coor-denava os exames. Treinando sob a sua superviso eu iria progredir ainda mais rpido. S os melhores tinham aulas com ele.

    Os chineses so muito criteriosos em suas avaliaes. Para arrancar deles um dez... no fcil! Do Mestre Liu em especial. Ele at dava notas altas se houvesse merecimento: 9.6; 9.7; at mesmo um 9.8 eu vi acontecer. Mas eu fui o nico na Academia a conquistar todas as notas 10.0 nos meus exames, inclusive em tcnicas especficas.

    Isso sem dvida foi a principal porta de acesso ao seleto e reduzidssimo grupo de alunos de Mestre Liu. Os treinos aconteciam no Bairro da Liberdade. Isto me estimulava muito, a maior parte dos alunos era mais adiantada do que eu. Isso significava novos referenciais e metas a serem atingidas. Como sempre eu queria mais, mais, mais! Ser o segundo nunca seria o suficiente. Nem que eu me matasse de treinar, mas enquanto no superasse ou, pelo menos me equiparasse aos melhores, no seria o suficiente. Nisto eu era ambicioso, reconheo. E me enfiei de cabea no novo desafio. Eu adorava o Ton Long!

    *** Comeou aos poucos e, de incio, no o notei. Mas aps a Iniciao paulati-

    namente algumas coisas comearam a ficar diferentes. Reparei que meu vigor tinha aumentado. Em todos os sentidos. No sei se coincidncia ou no, mas eu me contentava com poucas horas de sono e mesmo assim estava sempre bem disposto. No sabia mais o que era ficar doente, nem resfriado eu tinha mais. E quanto ao exerccio fsico, parece que realmente a minha resistncia aumentou muito, eu no me cansava nem diante dos mais extenuantes treinos. Foi uma mudana muito bem vinda.

    Eu j tinha uma habilidade nata para o esporte, mas agora eu vivenciava na prtica que esta capacidade podia de fato ser potencializada. Como haviam me ensinado na Irmandade.

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    Os treinos especficos com o Mestre Liu eram muito diferentes dos dados na Academia para todos os alunos. Durava trs horas e o enfoque era principalmente na parte tcnica, basicamente nas lutas e no manejo de armas.

    Aprendi muito ali, debaixo de uma disciplina muitssimo rigorosa, marcial mesmo. Meu desenvolvimento deu um salto gigantesco nessa poca. Logo comecei o meu quinto estgio. Mas isso aconteceu somente cerca de cinco ou seis meses depois que fui iniciado na Irmandade.

    *** O primeiro fato em relao ao Kung Fu que me marcou muito aps a minha

    Iniciao foi mais ou menos nesse perodo de minha vida. Eu sempre tivera um pouco de dificuldade no domnio das tcnicas de Chikow. Era uma cobrana meio minha, no me sentia plenamente satisfeito com o meu desempenho. Na verdade, eu no tinha me interessado muito pela tcnica logo de cara. Meu pri-meiro Mestre tinha ocidentalizado demais a arte e acabou dando muito pouca nfase ao Chikow. E a primeira impresso a que fica. O contato s comeou a ser realmente profundo depois do terceiro estgio do Ton Long.

    Os estilos internos e externos do Kung Fu, mais de 360, tiveram sua essn-cia produzida numa raiz indiana. O Kung Fu no nasceu na China, surgiu antes na ndia de uma tcnica de autodefesa chamada Vadjaramushi. Um monge indiano, Bodhidarma, refugiou-se no Templo chins Shaolin aps perodos de muita perseguio na ndia. Ali ensinou as tcnicas do Vadjaramushi que, somadas aos exerccios medicinais praticados pelos monges de Shaolin, deram origem s for-mas mais primitivas do Kung Fu e tambm linha Zen-Budista.

    Mas o que vem a ser o Chikow? O doutrina Kung Fu leva em considerao a existncia de trs formas de

    energia. A energia li, que definida como sendo a nossa fora fsica, a fora muscular propriamente dita, e que gera a capacidade de realizar qualquer trabalho. A energia wei aquela que ns, aqui no Ocidente, entendemos como aura. basicamente o resultado dos processos bioqumicos e biofsicos do organismo.

    E a energia chi. Esta ltima a chamada energia adormecida e acredita-se que ela esteja concentrada no plexo solar, quatro dedos abaixo do umbigo. O seu smbolo o de uma serpente enrolada, que tambm muito difundido na Yoga e no Tantra Yoga.

    A serpente uma figura muito respeitada na China, e representa Poder. Ali-s, o Hu Lai Shien, ou estilo do Punho da Serpente Sagrada, um dos mais temidos na China. A serpente adormecida, ou chi, a forma mais poderosa de

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    energia do ser humano. Compreendido isto teoricamente necessrio aprender a liber-la. Caso

    contrrio ela ficar sempre fora de uso. Realmente como uma serpente enrolada, adormecida, inerte. Para isso so as tcnicas de Chikow. Chi quer dizer energia; kow movimento. Literalmente falando, Chikow energia em movimento. Essas tcnicas possibilitam fazer circular e, por fim, canalizar a energia chi.

    Para que o chi circule necessrio que os chakras estejam desimpedidos. O que eu aprendi no Kung Fu acerca deles, mesmo antes de conhecer Marlon, foi muito semelhante ao que mais tarde aprenderia na Escola. Mas at ento eu no tinha visto com muito interesse os resultados imediatos da tcnica, como quebrar tbuas e tijolos.

    Para qu isso?!, eu me indagava, mais interessado nas armas e na arte em si do que naquela demonstrao de fora bruta.

    Mas agora entendia melhor os conceitos relacionados aos chakras, ou me-lhor, aos Portais. E passei a ter uma expectativa totalmente diferente. A Irmandade me abrira a viso. E o que antes era pura demonstrao de brutalidade ganhou um novo colorido.

    Resolvi me dedicar bem mais seriamente ao Chikow. Em primeiro lugar, antes de pensar em fazer circular o chi com intuito de

    canaliz-lo os chakras tm que estar liberados. Para que isso acontea preciso seguir corretamente algumas normas disciplinares. A primeira delas a dieta. Os orientais acreditam que uma dieta composta basicamente de vegetais, ervas, folhas e razes indispensvel. A carne especialmente a vermelha obstrui os chakras e impede a plena circulao de energia. Nos Templos orientais antigos, como o Templo Shaolin, e tambm nos templos zen-budistas, a alimentao con-tinha muito arroz e vegetais, mas quase nunca carne.

    Dessa forma a dieta era condio indispensvel caso quisssemos realmente nos aprimorar na tcnica de Chikow. A explicao at que tem muita lgica. Se nos alimentamos com carne o processo digestivo moroso e pode levar at quase doze horas. Pelo menos o que diz a Medicina Tradicional Chinesa. Se no ingerirmos carne o tempo de digesto diminui tremendamente. Cai, por exemplo, para duas ou trs horas. O gasto energtico , portanto, muito menor. Se o indiv-duo se alimenta de forma errada trs vezes por dia ele passa vinte e quatro horas sobrecarregando o organismo e desperdiando energia. Ao longo do tempo o gasto desnecessrio de energia e o acmulo de energia negativa causa um desgaste do organismo como um todo levando fadiga, envelhecimento precoce e doen-as.

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    O segundo item para aprimorar o Chikow tem a ver com a parte sexual. Experincias sexuais individuais no so permitidas. Estas levam perda intil de grande quantidade de energia. A relao s permitida se for homem-mulher porque ento est havendo troca de energia, e no desperdcio. O que se perde recebido atravs do parceiro. Portanto no h gasto intil.

    Igualmente, se o homem quiser acumular energia pode simplesmente evitar a consumao do ato. um conceito fcil de entender: toda a energia produzida para ser utilizada no clmax da relao sexual ficaria retida, acumulada, guar-dada. Funciona mais ou menos como se fosse rodado um dnamo ou carregada uma bateria com alta fora. Quando liberada, esta energia sai como uma exploso. Esta forma de carregar o organismo com energia atravs do estmulo sexual no consumado muito utilizada no Tantra Yoga, principalmente.

    Estas eram as principais recomendaes: o acmulo de energia, a reduo dos gastos, e a dieta capaz de favorecer o trnsito energtico atravs dos chakras.

    Entenda-se que nada disso realmente abre os chakras, apenas propicia as condies mais favorveis possveis. O que realmente abre o chakra a tcnica especfica orientada e realizada por meio do Chikow. Basicamente envolve trs aspectos: a respirao, a concentrao e a meditao.

    A respirao somente abdominal. Aprende-se a control-la desta forma com exerccios. Deitados de costas no solo, com uma vareta de bambu apoiada na regio abdominal, procura-se mover apenas a vareta, e no os pulmes.

    Para sentir o fluxo de energia leva bastante tempo. No nada que se consi-ga na primeira ou na segunda vez, ou em poucas aulas. A tcnica bsica se faz atravs dos exerccios de meditao e concentrao. So vrios os estgios a serem percorridos. Aos poucos aprendemos a imaginar e sentir o fluxo de energia por todo o corpo. As posturas usadas so diversas, mas basicamente a posio do cavalo fechado (kinhomah em chins) e a postura da rvore, muito utilizada tambm no Tai-chi-chuan.

    Imagina-se uma fonte de gua pura, cristalina, jorrando a partir do plexo solar e que ir percorrer todos os pontos chakras do corpo. Esta gua, sempre jorrando, sobe pelo centro do corpo atravessando o corao, chega ao pescoo e comea a entrar pelo brao direito, flui e sai pela palma da mo, que est voltada para cima. jogada e entra pela palma da mo esquerda. Continua o seu cami-nho: sobe pelo brao, pelo pescoo, volta para o outro brao, sai de novo, entra pelo meio das sobrancelhas, sobe pela fronte, desce pela nuca. Sempre fluindo, em movimentos, rodando, circulando.

    A grosso modo assim que funciona. As sensaes experimentadas so as

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    mais diferentes: comea com um formigamento principalmente nas mos, logo nos primeiros estgios. Depois a temperatura do corpo sofre variaes. Ora, sen-te-se frio; outras vezes, muito calor, a ponto de suar e ficar todo enrubescido. Estes sintomas eram uma prova bastante palpvel de que aquilo tudo no era uma mera alucinao. O Mestre no sugeria as sensaes. Elas apenas aconteciam de forma semelhante com todos.

    bvio que o Chikow s comea a ser ensinado a partir de um certo nvel dentro da caminhada no Kung Fu. O conceito oriental da coisa que, em primei-ro lugar, temos que moldar o li, ou seja, a fora fsica, o exterior. Apenas bem mais tarde possvel iniciar a moldagem do chi.

    No deixava de ser um arremedo da mesma doutrina que iria aprender no Satanismo: o desenvolvimento do Chikow e o pleno domnio do chi leva a atingir o pice de nosso potencial. Desenvolve a habilidade at o patamar mximo da capacidade humana. Logicamente o bom desempenho abrange uma srie de desbloqueios sociais, por assim dizer. preciso reformular conceitos tais como medo, isto ou aquilo machuca, no possvel, e assim por diante.

    Da mesma forma que aprenderia na Irmandade a despir-me de velhas doutrinas para introjetar outras, no Kung Fu este ensinamento corria paralelo e apregoava a mesma coisa. Eu conhecia, sim, conhecia muito bem o ditado chins que Zrdico utilizara numa das suas primeiras aulas: Se queres provar meu ch tens antes que esvaziar tua xcara.

    No deixava de ser tambm um ensinamento que colocava o homem em posio introspectiva e centralizado nele mesmo: Eu posso, eu fao. De fato. O homem faz. Pois ele energia e pode dominar a energia que existe nele. Pelo menos, assim eu aprendi. Naturalmente que no Kung Fu ningum falou em Enti-dades de dimenses paralelas para aumentar ainda mais a minha capacidade. Isto eu tinha o privilgio de conhecer porque o Oculto me fora mais descortinado do que a eles, meus Mestres de Artes Marciais.

    Observar que os conceitos orientais ensinados tinham a ver ainda que de forma um pouco mais rudimentar com o que aprendi na Irmandade, s me fizeram confirmar ainda mais aquilo como absoluta verdade. E me entregar de corpo e alma.

    *** Nos finais de semana s vezes eu treinava um pouco de Chikow num ter-

    reno baldio perto de casa. Era perfeito em todos os aspectos, um lugar isolado, amplo, sem olhares curiosos para atrapalhar. E o melhor: havia material excelente

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    e totalmente disponvel. Sempre grande quantidade de madeira boa e forte, ideal para ser usada. Nem sempre era muito fcil conseguir coisas assim para quebrar. Pelo simples fato de que coisas boas so para guardar e no para quebrar.

    Era um domingo de manh. Eu estava ali perto com dois amigos, vizinhos da prpria rua. Conversando sobre nada em especial acabamos por passar de-fronte ao muro que separava o terreno da calada. E eu comentei s por comen-tar:

    s vezes eu treino a dentro. Falei. Srio, ? Mas por onde voc passa para entrar a? Perguntou o Hamil-

    ton. D pra pular o muro ali por trs, na esquina. Legal! Vamos dar uma olhadinha? Falou o Rgis j querendo dar a

    volta pelo outro lado. Vamos! Vamos entrar l! Concordou Hamilton. Pulamos fcil o muro. O terreno tinha cho de terra batida e plana, alguns

    tufos de mato aqui e ali, uma pilha de pedregulhos e duas de areia. Uns sacos de lixo estavam amontoados num canto. Um gatinho amarelo com manchas cinzen-tas que estava estirado no solzinho clido azulou.

    Quanta coisa tem aqui, heim?! Fez o Hamilton olhando para os meus preciosos pedaos de madeira.

    Xeretamos um pouquinho por l, at que o Rgis falou: E voc treina direto aqui?

    Direto, no, que no tenho muito tempo sobrando. Mas s vezes d pra vir pra c, sim! Venho s pra quebrar umas tbuas, sabe? Aqui tem bastante!

    Ah, qual? Deixa disso! No vem com onda de dizer que voc quebra essas tbuas! Caoou numa boa o Hamilton.

    Quebro, lgico que quebro. Atravs do Chikow! O Rgis j foi mais prtico:

    Quebra, ? Pois ento... vamos ver isso! Correu e escolheu uma tbua que estava apoiada contra a parede. Era at

    modesta. O Hamilton se animou tambm: Antes do Edu quebrar de verdade... Olhou irnico pra mim.

    ...deixa eu tentar! O Rgis apoiou melhor a tbua inclinando-a um pouco e com a outra ponta

  • 25

    bem fixada no cho. E o Hamilton afastou-se, tomou impulso, veio correndo e zs! Pulou com fora sobre ela aplicando uma bela patada bem no centro. A pobre coitada no agentou e crack! Rachou!

    Uau, que ninja que eu sou! Tambm consigo quebrar as tbuas do Edu! E nem preciso desse seu Chi-ca-bom a!

    Eu nem esquentei: Uma tabuinha de nada que nem esta, Hamilton! At criana quebra isso

    da. Ento, t! Rgis, vamos achar uma melhor! Os dois separaram outra, de maior espessura, e a acomodaram como a pri-

    meira. L vai... ninja!!! O Hamilton fez toda a cena de novo e com um uivo

    selvagem (daqueles que vemos nos filmes), avanou com mpeto. Ai, ai, ai! Ele chacoalhava o p no ar, rindo ao mesmo tempo. Essa

    doeu! A tbua continuou intacta. O Rgis resolveu tentar tambm. Mas ele no

    levava l muito jeito para a coisa, no tinha agilidade e nem sabia usar a muscu-latura.

    No questo de fora. Expliquei. mais jeito do que fora, voc tem que potencializar o movimento, entende? Joga o quadril assim...e chuta! Mostrei de leve como deveria ser o movimento.

    Larga mo de conversa e quebra voc logo isso a! Incentivou o Hamilton.

    Aceitei o desafio com calma. Levei tudo na brincadeira, nem me concentrei muito com eles rindo e se cutucando, falando graas o tempo inteiro do meu lado. Mas eu no precisava de Chikow para quebrar aquela tbua. Era como eu tinha dito, s questo de jeito, de usar a tcnica certa. Nada que minha energia li no pudesse dar conta.

    Foi fcil. Crash!! A tbua rachou no meio ficando as duas metades presas por algumas farpas.

    Pxa! Que legal! Tremendo! Como que voc faz? Eles vibravam. questo de fazer o movimento certo. Respondi de novo, sem

    maiores explicaes. Mas o Hamilton estava na febre.

  • 26

    Vamos l! De novo! Arrumou nova tbua, parecida com a primeira. Tentou fazer como eu expli-

    cara, mas ficou com o p dolorido outra vez. Ai, isso di, caramba! Ele ainda no estava muito convencido. Seu

    olhar revelava a inteno de testar-me um pouco mais. Ele vasculhou e vasculhou, sem dar-se por achado. Finalmente descobriu

    uma viga de madeira macia. Era robusta, troncuda, de formato quadrado e uns dez centmetros de dimetro. Parecia um p de mesa que algum tinha jogado fora.

    Ah! Olha isso aqui. Ele a arrastou para posicion-la no mesmo lugar das tbuas. Limpou uma

    mo na outra, triunfante, e virou-se para mim. Esta aqui eu duvido que voc quebre! Desafiou. Aquelas ali eram

    muito fraquinhas pra voc. Mas vamos ver essa! Nesse exato momento, no sei nem de onde me saiu a turma da rua.

    Algum espichou a cabea por cima do muro e gritou: Olha l o Catatau, o Hamilton e o Rgis! E foram entrando. O Raimundo, o Marcelo, o Lus Gustavo e mais um ou

    dois: E a, galera? Que que est pegando? Indagavam eles. Chega mais! Convidou o Rgis. O Edu est quebrando umas

    tbuas aqui pra gente. Quebrar tbua?! Quem est quebrando tbua?! O Edu! Tudo bem, depois a gente aproveita a madeira quebrada, fazemos um

    fogo e rumamos uma carreira. V! Bebemos um vinho tambm! A turma ria e falava alto. Todos me

    conheciam. E respeitavam. Resqucios da velha 29. Ficaram para ver a quebra das tbuas. Ningum nem tentou quebrar antes de mim, tal era a certeza de que nada poderiam com aquela pequena viga.

    Desta vez tive que fazer a tcnica nos conformes. Seno eu sabia no conseguiria tambm. Ento me esqueci deles. Assumi a postura correta, controlei a respirao, senti o fluir do chi pelos chakras, dobrei as pernas para retesar aquela energia crescente como uma mangueira dobrada represa o fluxo montan-te. Levei um certo tempo naquilo.

  • 27

    Fazia parte do processo visualizar a coisa concretizada. Abri os olhos, olhei para a viga inclinada e formei aquela imagem mental rapidamente, imaginei-a partida. Vislumbrei o alvo como sendo algo atrs dela para que o chute tivesse mais penetrao ainda. Estava pronto. Tomei impulso e chutei baixo, como quem quer quebrar uma patela. Liberei o ar dos pulmes ruidosamente, como estava acostumado:

    Hei!!! E CRASH! Sinceramente nem eu acreditei que tinha conseguido. Quebrada. Houve um murmurar de assombro que percorreu a turma. Que legal, meu irmo!!! Mas o Hamilton estava chato mesmo, no queria dar o brao a torcer: No possvel! Essa madeira devia estar podre! S estando podre pra

    acontecer isso! E procurando, encontrou mais duas vigas iguais. Deviam ser da mesma

    mesa. S que a eu tambm impus a condio: Vocs que tentem primeiro! Vocs no esto dizendo que a madeira est

    podre?! Pois ento... quebrem! Nos minutos seguintes a rapaziada se alternou, em fila indiana, esforando-

    se na tarefa proposta. Mandaram ver o p na viga que, heroicamente, resistiu a todos sem sequer lascar. Voava de um lado para o outro e nada. A turma que saa pulando num p s.

    Acho que a madeira no est podre, no! Comentavam entre si, com risos.

    Vai ver que s a outra que estava ruim! Disse o Hamilton, zombeteiro. E para mim: Dessa vez... duvido mesmo, Edu!

    Olhei para ele e cometi um erro. Por uma frao de segundo a dvida veio, num flash, enquanto me posicionava.

    Ser que vou conseguir... de novo?! Aquela ponta de dvida iria me prejudicar, eu sabia. Como diz o ditado chi-

    ns: Quem teme perder j est vencido. Ento, quase instintivamente, fiz o gesto. Depois de erguer os braos acima e atrs da cabea e desliz-los vagarosamente para frente e para baixo, deveria juntar as mos em posio zen (como quem reza). S que ao invs disso eu as ajuntei numa outra posio, semelhante, mas que queria dizer coisas totalmente diferentes.

  • 28

    Movimentei-as lentamente de uma forma muito especfica. Murmurei quase inaudivelmente as palavras de encantamento necessrias para sinalizar a Abraxas que eu precisava da ajuda dele. Foi a primeira vez que experimentei o que somen-te tinha conhecido na teoria.

    Eu havia aprendido a manipular minha fora. Tanto que quebrei de fato a primeira viga. Mas agora, eu estava prestes a ver se realmente era possvel o que me disseram: que o meu potencial poderia ser aumentado alm do limite mxi-mo...! Pois bem: que fosse acrescentado Poder minha fora.

    Por meio daquela sinalizao eu dava a Abraxas a permisso de utilizar-se do Portal aberto no Ritual de Iniciao e semi-canalizasse sua fora atravs de mim. Pensei no que me haviam dito, e falei de mim para mim: Eu tudo posso... naquele que vai me fortalecer!

    E baixinho: No deixe que o teu protegido seja envergonhado. Fechei os olhos. De repente, em segundos, comecei a sentir uma fora dife-

    rente tomando conta de mim. Minha perna esquerda aquela que eu usava para chutar parecia que estava se tornando como uma barra de ao. Quase que eu podia perceber a musculatura saltar e crescer, tornar-se rgida. Tinha a impresso de que se eu chutasse o muro podia abrir nele um buraco.

    A respirao involuntariamente ficou forte, carregada, pesada. As batidas cardacas estavam mais intensas e surdas, quase audveis. E ao redor dos olhos vieram ondas sucessivas de calor como se estivesse afluindo muito sangue para aquela regio.

    Pela primeira vez o silncio era total. Ningum dava um pio. Olhei para a viga. Parecia irracional. Por uns instantes, senti raiva... dio!

    dio daquela tbua. Minha mente j no via um pedao de madeira apenas, parecia... parecia que era uma cruz! E eu queria quebrar, destroar aquilo!!! Nem sei porque pensei daquele jeito. Tudo foi to rpido...

    Voei na direo da viga completamente esquecido de tudo o mais e apliquei tal coice que meu p a atravessou e bateu na parede! E nem senti nada. Estava alucinado.

    O pessoal deu um urro de assombro, todos juntos. No possvel...! Gritou o Hamilton de novo, primeiro do que todos.

    Quero ver voc quebrar a. outra! Num pice ele colocou a outra. Eu praticamente o atropelei, nem o deixei

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    sair da frente, escoiceei novamente, com um grito seco. O dio ainda me domina-va, aquela idia insana de 'quebrar a cruz martelando dentro da cabea.

    HEI!!! Quebrei de novo. A turma me cercou, desta vez realmente convencidos. Todos queriam falar

    comigo, me davam tapinhas nas costas. Caramba, Edu! Mas eu estava com raiva deles tambm, com dio. Minha vontade era chutar

    todo mundo. No sei por qu. Mas eu queria mesmo era dar um bico em cada um! Procurei me controlar, procurei pensar, era uma raiva totalmente desprovida de lgica. Eles eram meus amigos, tudo aquilo no passava de brincadeira. Normalmente eu tinha tanto senso de humor.......

    Por que que eu vou chutar eles?!?, raciocinei ainda com incoerncia pro-curando me manter afastado. Vai que de repente eu socava algum!

    Espera a! Fiz um gesto para afast-los. Gente, ele machucou o p! Falou um deles. No tinha machucado nada mas aproveitei a deixa para poder me abaixar,

    desviar um pouco o rosto. Fui sentindo aquela estranha sensao abandonar-me devagar, a respirao voltando ao normal, o corao cedendo ao ritmo de antes, a musculatura relaxando.

    Eu no sabia bem como agir, o que fazer para dizer a Abraxas que fosse embora. Eu sabia que tinha sido ele! Tinha usado o meu corpo, sei l! Canalizado, semi-canalizado, influenciado...!? Nunca tinha experimentado nada parecido antes. Meu corpo ainda estava esquisito, com uma tremedeira por dentro. E a perna esquerda meio bamba, mole, cansada. Alis, todo o meu hemi-corpo esquerdo ficou meio adormecido e formigando.

    Foi passando aos poucos. Quando me acalmei e pude pensar direito....... tremendo! Tremendo! Simplesmente tremendo!!!.

    Comecei a perceber que....pxa vida, era verdade! Ainda no sabia lidar bem, mas.......funcionava!

    *** Apesar de episdios como este ainda assim eu poderia dizer que o que mais

    mudou em mim foi a disposio interna. Parecia que minha ndole tinha ficado diferente! Naturalmente esta constatao s me ocorreu claramente anos mais

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    tarde. Na poca, sinceramente falando, no foi nada que realmente me chamasse a ateno. Mas o fato que mudei sensivelmente.

    Eu j vinha de um contexto cheio de violncia por causa da passagem pela Gangue. Mas agora era diferente! Atos de violncia no dependiam mais de que alguma coisa especfica acontecesse. Uma palavra, uma ofensa, uma provocao. No se podia mais dizer que eu ficava agressivo, uma mudana puramente causai, temporal. A realidade agora que eu era agressivo. Um sentimento constante de ira me dominava e j no dependia de fatores externos.

    Antes eu ainda conseguia encontrar uma causa: Meus pais no me do ateno, por exemplo; ou: Sou a ovelha negra. Mas agora j no havia causa aparente. Era um estado de esprito. Muito sutil, muito leve, quase indetectvel. Mas estava l.

    Comecei a perceber a mudana principalmente nos treinos de Kung Fu por-que praticamente no existiam mais brigas de rua.

    Nos treinos, embora houvesse combate e s vezes ns lutssemos como que parecendo defender a prpria vida, era puramente esportivo. Quero dizer, meu oponente nunca foi um inimigo real, no era necessrio machucar ningum. Sem-pre fui cuidadoso, ponderava os golpes, respeitava os que eram mais fracos do que eu. Especialmente os meus alunos! Tanto que muitas vezes, tanto na ADINK como na W. Wei lutvamos mesmo sem os protetores. As regras eram estabelecidas... e pronto! A maioria sabia respeitar.

    Mas alguma coisa mudou. De repente as lutas passaram a ter um outro sabor para mim. E machucar parece que criava por dentro uma sensao muito estranha de prazer e regozijo. Era como se tivesse sido despertado um lado negro dentro de mim.

    Certa ocasio eu estava dando aula na W. Wei. E, como era o meu costume, no final do treino eu organizava os alunos para fazerem pequenos simulados de lutas comigo. Nesse dia em especial havia um aluno novo, meio fortinho at, e que era segurana do metr. Eu o chamei de cara e nem bem o rapaz aproximou-se de mim, pensei no ntimo:

    Esse cara bem que merecia uma coca! Comecei a lutar com ele, devagar, na manha, explicando aos outros volta

    e meia o que se encaixava melhor. O rapaz avanava para mim com muito respei-to, afinal eu era o instrutor dele.

    Mas ele me irritava. Mais do que isso, eu sentia raiva. Queria poder acabar com a raa dele! De graa enfiei um chute bem dado na boca do estmago, de

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    pura maldade. No causou muito estrago, verdade, mas foi com fora e ele ficou ali cado no cho, se contorcendo na frente de todos, gemendo. Demorou para se recuperar.

    E eu fiquei sem saber porque fiz aquilo. Dei a resposta que passaria a usar como desculpa vezes seguidas: Voc estava com a guarda aberta. No tem outro jeito. Assim como nin-

    gum aprende a nadar sem engolir gua... ningum aprende a lutar sem tomar porrada!

    Fiz parecer que aquilo era to somente uma lio filosfica. E o deixei levantando sozinho. Os outros alunos ficaram muito quietos, olhando para mim com ar ressabiado. Todos sabiam que eu no era daquele jeito. Afinal eu era alegre e bem humorado, muito amigo da maioria deles. Aquela demonstrao gratuita no fazia parte do meu estilo. Devem ter achado que eu estava de lua virada e s.

    Mal sabiam eles que cenas assim iriam repetir-se muitas vezes. Um outro destempero acabou sendo na ADINK. Alguns Professores

    tinham uma certa rixazinha comigo porque eu havia entrado depois de todos eles e era o que tinha mais alunos. Mas que culpa eu tinha? Meu estilo de aula era diferente, os alunos gostavam muito de mim e do meu jeito criativo de diversificar. E o meu curso de armas continuava de vento em popa.

    O nico Professor que tinha tantos alunos quanto eu era o Tlio. De quebra, era o melhor da Academia e um dos poucos que no me via com maus olhos. Pelo contrrio, ramos bem amigos.

    O Tlio era um Professor nato, algum com dom para a coisa. E ele nem era chins! Antes um mulato bonito, forte, cobiado pelas mooilas, de traos meio mestios, com olhos amendoados e cabelo comprido todo tranado. Mas tinha absorvido muito da cultura oriental at mesmo no seu jeito de conversar e de se portar, muito calmo, comedido. E se virava falando um chins at que bem legal!

    Eu apreciava tremendamente o seu Kung Fu e a sua maneira de ensinar. Tnhamos sempre oportunidade de estarmos juntos no treino dos Professores, todos os sbados. Alis, o treino do sbado era uma espcie de tira-teima. Uma exibio em grupo, na verdade. No havia nenhum Mestre que pudesse dispor de tempo e coordenar o treino uma vez que este fora iniciativa dos prprios Profes-sores, e no uma exigncia da ADINK. Ento fazamos como bem queramos. Ou seja: sempre um tentando provar que era melhor que o outro.

    Mas no deixava de ser bom porque lutvamos muito e isso, no fim, acaba-

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    va resultando em crescimento. E tambm sempre se aprende muito observando quem bom. Claro que eu queria aprender com o Tlio. Tinha outros caras bons, sem dvida, mas ele era exmio na tcnica e tambm praticava outros estilos alm do Wing Chun.

    E o melhor: ele era humilde, acessvel, no estava sempre se vangloriando para cima dos demais.

    S que se de um lado o Tlio era o melhor, o mais galinho de briga era o Fred. E esse no era pedante e filhinho-de-papai s no nome. Era o natural dele mesmo. Tudo bem que no Kung Fu era muito bom, gil, com boa viso de com-bate. Mas ningum gostava de enfrent-lo porque no sabia lutar limpo. S queria dar pancada. No era de meias medidas. Ento dificilmente ele encontrava parceiros, mesmo no treino dos Professores.

    Uma vez eu o vi levar um corretivo bem dado. No fazia ainda muito tempo que eu era Professor na ADINK e gostava de assistir s aulas do Tlio sempre que fosse possvel. Uma tarde eu treinei muito e depois, para descansar, acomo-dei-me para observar a aula dele sentado a um canto no cho.

    De repente o Fred entrou na sala para participar da aula. O Tlio nesse horrio no dava Wing Chun, ensinava Hu Lai Shien, um estilo que ele praticava em uma conceituadssima Academia. Esse tipo de coisa era permitido s vezes, como conhecimento extra para os alunos, e se o Mestre do estilo aprovasse. Era mais ou menos o mesmo tipo de coisa que eu fazia com as armas e os artifcios que aprendera no Ton Long.

    O Fred ficou quieto e submisso no comeo. Mas depois ele foi fazer um exerccio de sombra com um aluno. Isso consiste em simular o combate mas sem tocar o oponente com os golpes, que devem ser muito leves. E comeou a provocao. No deu um minuto e o Fred encheu a lata do rapaz, enfiou o p na perna dele que at envergou. O pobre do aluno deixou escapar umas lgrimas dos olhos, quieto.

    O Tlio foi muito rpido em tomar atitude. No falou palavra mas apontou para o Fred com o dedo em riste, e, em seguida, apontou para si prprio como quem diz: Voc luta comigo, agora. Por aquela to repentina o Fred no esperava. No deu nem tempo de entrar em guarda. O Tlio arrumou um chute to forte e de tanto impacto no peito dele que o pobre Fred voou para trs alguns metros, caiu para fora do tatame e rolou de costas contra a parede do vestirio num enorme estrondo.

    A parede no passava de uma divisria leve de madeira coberta por uma cortina. Do outro lado, j dentro do vestirio, havia um pesado armrio de ferro

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    para os alunos. O Fred desapareceu no meio da cortina, derrubou a divisria e quase que o armrio foi junto. Um vexame incalculvel!!! Os alunos ficaram olhando, estupefatos mas intimamente regozijando-se: Ele mereceu isto!.

    Um bom tempo depois disso, depois da minha Iniciao, certo dia eu treina-va esperando a hora de dar minha aula.

    Estava tenso, carregado, queria bater, bater, bater, bater. O saco de pancada no era mais meramente um saco, um objeto inanimado. Agora eu enxergava ali uma pessoa, um inimigo. No esmurrava como algum normal, mas dominado por um dio cego, e imaginava como seria destroar aquela pessoa, bater violentamente nos pontos vulnerveis, nos pontos letais, acabar com ela, destru-la completamente.

    S que nada disso adiantava. O saco de pancada j no dava barato, no aliviava a minha eletricidade. Podia bater, esmurrar, chutar por horas se fosse o caso, mas eu no relaxava.

    E naquela tarde eu estava mesmo meio quente, carregado de plvora. Queria uma fasca qualquer! Qualquer coisa que me servisse de desculpa para explodir e descarregar o que eu trazia no ntimo. Eu queria machucar algum! Por qu, no me pergunte, eu no sabia. S sabia que queria bater em algum.

    at difcil de explicar. Por fora eu parecia o mesmo de sempre, alegre e extrovertido. Mas eu me sentia com se estivesse com alguma coisa entalada na garganta, como que remoendo uma raiva contida.

    Por vezes eu me perguntava porque me sentia assim, afinal eu levava a vida que pedi a Deus... ou melhor... ao diabo! Tudo ia bem, tudo ia realmente muito bem!

    Mas enfim... durante a aula aliviei a minha sede de estrago ao confrontar um aluno. Talvez influenciado pela faanha do Tlio eu o machuquei aps fazer uma finta na direo do rosto. Quando ele ergueu as mos para se proteger dei um chute de impacto na base dos arcos costais. No tombo, ele derrubou o armrio do vestirio. E terminou com uma trinca na ltima costela. Pronto! Eu fizera a pro-eza maior ainda!

    E a desculpa padro... sempre a mesma, com pequenas variaes: Esta a nica maneira de voc perceber aonde est errando. No vai es-

    quecer nunca mais. Evidentemente que esta no era a didtica. Certa feita o Fred desafiou-me para uma luta. Foi logo depois desse epis-

    dio. Mas ele no sabia lutar na manha! E o nico capaz de derrub-lo era o

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    Tlio. Caramba., pensei. Este cara est a fim de me encher a lata! E recusei. No, obrigado. No quero lutar. Sem essa, cara! Vamos l! E me dava chutinhos folgados, me

    descabelava, fazia trejeitos idiotas. Aquilo comeou a me irritar de verdade. Os outros Professores, que obser-

    vavam, acabaram entrando na brincadeira. Yeaaahhh! E gozao pra c, e piadinhas pra l. Se o Tlio estivesse presente ele teria colocado ordem na coisa, mas nesse

    dia ele no estava. Lembrei-me do episdio da viga quebrada h poucos dias, diante dos meus amigos.

    Pois eu vou quebrar esse cara no meio! Estava irado pra valer. E respondi: OK! Voc quer lutar? Ento vamos. Ele era fisicamente mais forte do que eu e, tecnicamente falando, superior.

    Reconheo. Mas retruquei: S me d um tempinho! E tratei de me concentrar. S que usei do mesmo artifcio e, ao invs de

    cruzar as mos em posio zen...usei o gesto ritualstico ao mesmo tempo em que murmurava o encantamento. Entrei em mab (posio do cavalo aberto), fiquei de olhos fechados, s esperando. As mesmas reaes que senti na outra ocasio deveriam acontecer, s que... nada! No senti nada!

    Abri os olhos. O Fred olhava para a minha cara, com as mos na cintura. Como ?! J acabou com essa palhaada a?! Gritou ele. No! Respondi com maus modos, fuzilando-o e sentindo-me mais

    irritado ainda. Espera mais um pouco! E c comigo: P!.Ser que o Abraxas vai me deixar na mo?!!

    A turma ao redor at parou o treino, encostaram-se nas paredes, acomoda-ram-se para ver. De repente ramos s ns dois para dar o show, eu e o Fred.

    Num flash recordei das palavras de incentivo de Marlon, os conceitos da Irmandade e das prprias palavras de Abraxas: No temas, eu estou com voc.

    No tema... De olhos fechados ainda eu raciocinava. Caramba, ele est

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    comigo! Por que ento eu no sinto nada?! E repeti os gestos e as palavras. Mas parecia tudo muito vazio minha volta.

    Continuei sinceramente sentindo-me como que jogado para as traas. E essa agora! S que com ou sem Abraxas eu ia lutar, o Fred era muito folgado, no

    importava que fosse melhor do que eu. Eu ia quebrar a cara dele assim mesmo. O mximo que podia acontecer era levar umas porradas.

    Mas a o pessoal separa, eu s fico com um hematoma e tudo bem! T na chuva pra me molhar mesmo!

    Me posicionei e fiquei esperando. Ele me atacaria primeiro e eu tentaria peg-lo no primeiro contra-ataque. E ficou aquela cena vai-no-vai, vem-no-vem, uns chutinhos tanto dele quanto meus.

    Mas a, de repente, num abrir e fechar de olhos ele veio que nem uma vaca louca pra cima de mim! Eu fui me defendendo, me defendendo, recuando, recuando...parede! O Fred aproveitou a chance e veio com um soco seco na altura do estmago, que defendi. Mas acho que abaixei demais o corpo, nem sei, mas parece que ele acertou a minha nuca. O golpe foi forte e localizado. Senti as pernas bambearem e o corpo amolecer instantaneamente.

    Tenho certeza que dali eu ia para o cho. Mas no foi assim que aconteceu. Foi num instante. Senti que ia cair... mas no ca! Abri os olhos... estava de

    p....... e aquela sensao to diferente no corpo! No havia tempo para pensar. O Fred me atacou de novo e eu revidei com muita fria e muita destreza! Consegui dar um golpe nele que at hoje no saberia dizer como aconteceu! Um contra ataque como aquele, veloz, requereria bastante treino. Mas saiu mesmo como um relmpago, instintivo e animal.

    O Fred terminou cado no cho completamente travado, com o brao virado nas costas, em posio totalmente submissa. Ainda lembro que o pensamento me ocorreu:

    Eu posso parar agora.... ou quebrar o brao dele! Mas a no tive mais conscincia de nenhum outro pensamento, raciocnio

    ou lgica. Foi uma coisa estranha. No senti. Quando vi, j tinha feito. Chutei a regio do cotovelo dele e escutei o som: closh! A tenso oferecida pelo brao desapareceu, ele envergou que nem um galho seco e o osso do antebrao veio para fora num jorro de sangue. Parecia que eu tinha quebrado uma madeira. Foi uma sensao muito diferente.

  • 36

    O sangue manchava a camisa e escorria em profuso, o brao estava cado ao longo do corpo com aquela coisa branca espetando para fora: o mero dele! Foi uma comoo geral.

    Meu Deus, o osso dele est pra fora!!! O Fred berrava na realidade, urrava de dor e desespero. A confuso e

    a correria comearam: Hospital! Hospital! Hospital! Ajeitaram-no como foi possvel. Quando saram com ele da sala de treino

    foi mais gritaria de quem estava fora. Um dos alunos estava de carro. Levado para o Hospital, foi operado na

    urgncia. Ele ficou muito tempo afastado... e, at onde eu sei, o brao dele nunca mais foi o mesmo.

    Na Academia a situao ficou delicadssima. Um clima estranho, todos me olhavam meio esquisito. Fui obrigado a me justificar. Mas os Mestres entenderam aquilo como acidente, no era a primeira vez que coisas assim graves aconteciam nos treinos. Uma vez eu mesmo vi. Numa demonstrao um dos Mestres fraturou a escapula de um aluno ao mostrar um golpe.

    E apesar de algumas pessoas ainda questionarem se tinha sido mesmo ne-cessrio chutar... no fim ficou por isso mesmo. Fazia parte de um esporte como aquele. Levou um tempo at que o choque geral na Academia passasse. Mas depois as pessoas comearam a me olhar com outros olhos. Eu havia acabado com o mito.

    Pxa...o Eduardo bateu no Fred! E me admiravam. Mas da minha parte, fiquei meio sem entender o que tinha acontecido na-

    quele dia. No estava esperando aquela reao, imaginava que seria algo mais ou menos como da primeira vez, algo mais ou menos controlvel. Quando vi o rapaz naquele estado, num piscar de olhos... eu sabia que no tinha condies naturais de fazer aquilo. Pelo menos, no ainda!

    E embora eu fosse tomado por aquela indescritvel e estranha sensao de prazer, meu lado humano ficou meio chocado. De verdade.

    ***

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    Captulo 10 As reunies em Grupo dos Fire's sons haviam comeado na semana se-

    guinte logo aps o meu primeiro Rito individual com Abraxas. Para meu assom-bro tambm elas aconteciam na residncia de Zrdico. Alis, eu e Thalya fazamos parte do grupo de Zrdico! Na poca da Escola eu no tinha a menor idia de como era grande aquele lugar e quanto tempo eu passaria l.

    Eu tinha ficado pensando a respeito de como seriam as reunies. No meu entender seria inconcebvel estar separado de Marlon. Lucifr no faria isso, isso coisa de Deus. Ele, sim, separa as pessoas. Mas meu pai sabia o que era melhor. E realmente no fiquei longe de meu amigo.

    Os Rituais de Celebrao semanais aqueles que reuniam toda a Irmandade em So Paulo , nas sextas e sbados, tambm aconteciam ali em casa de Zrdico. Foi uma grande surpresa para mim porque eu e Thalya nunca tnhamos visto movimento anormal de carros nos dias das aulas na Escola.

    Mas que a casa, na verdade, no era uma s. As casas de todo o quarteiro tinham sido compradas e unidas por passagens subterrneas. E estavam englo-badas dentro de muros altssimos que conferiam ao conjunto a dimenso de uma fortaleza. As entradas eram muitas, por ruas diferentes, de forma que nunca cru-zamos com o imenso nmero de membros da Irmandade que vinha para os Rituais.

    Mas agora aquele lugar passava a ser muito mais descortinado aos meus

    olhos. No havia mais necessidade de ficarmos limitados a uma saleta escondida. Podamos caminhar por ali vontade, sem receios. O lugar era muito bonito!

    Nosso Grupo de Fire's Sons tinha mais ou menos quinze pessoas. Foi uma surpresa agradvel olhar para eles. A maioria j era conhecida, pelo menos de vista. Alguns tinham estado presentes no Jantar de Formatura. Outros conhe-cemos no Ritual de Iniciao. Estavam ali o Ariel e o Grion, dentre outros rostos familiares. E a Rbia.

    Ela me abraou apertado, sorridente. Que bom que voc est aqui! Ainda que Thalya tivesse pegado em minha mo incontinenti e me olhado

    meio contrariada, nem liguei. Aquela peruana era mesmo um estouro! Rbia cum-primentou Thalya com o mesmo carinho e ela prpria terminou de nos apresentar a quem no conhecamos.

  • 38

    J no nos reunamos no Poro. Mas nossa sala de reunies, no primeiro an-dar, no era bem o que se podia chamar de sala de reunies. Era super informal, ampla, aconchegante, cheia de poltronas com almofadas, lareira. Amplos janeles com cortinas de tecido suave davam vista para o jardim cheio de rvores.

    Uma farta mesa exibia tudo o que havia de delicioso. Podamos ficar bem vontade, pegar o que quisssemos hora que quisssemos. Eu no perdia tempo, para variar.

    Percebi que havia tambm sofisticados aparatos para projeo de filmes e slides.

    Zrdico continuava presidindo as reunies e nos ensinando a todos. s ve-zes era Marlon quem nos dirigia nos estudos, mas mais raramente. Tanto Marlon quanto Zrdico ocupavam posio de Mestres. Mas Zrdico estava num pata-mar um pouco acima.

    Os propsitos do grupo eram o aprimoramento. Era absolutamente necessrio o conhecimento amplo, completo e profundo da Magia e das suas tcnicas bsicas. E tudo tem um comeo, comeamos com o que era genrico e bsico. O conhecimento especfico viria a seu tempo. O evoluir conseqncia.

    Novamente veio a teoria. E principiamos a aprender sobre a diversidade dos muitos processos ritualsticos. Primeiro os mais simples, a nvel individual, que so usados para crescimento e consagrao pessoais. (Aprendi que tambm h Ritos para serem feitos em pequenos conjuntos, normalmente com cinco a nove participantes, e que visam resultados especficos comuns).

    Aprendemos de tudo um pouco nesse sentido. Esmiuamos cada detalhe. Desde os componentes usados em cada tipo de Ritual, o por qu de sua utilizao, a simbologia por trs de cada item, a forma de realizar os Ritos e preparar os ingredientes, as palavras de encantamento, e muito mais.

    Terminado isso, passamos a estudar a Cerimnia Ritual em si, isto , o Ritu-al de Celebrao (aquele que rene toda a Irmandade). Comeamos pelo Cerimo-nial normal, aqueles que so feitos semanalmente. H outros Ritos que so especficos para determinados perodos do ano, e tambm as Festas. Estes foram abordados mais tarde.

    Com relao Cerimnia Ritual aprendemos o significado de cada pea, cada etapa, cada postura, cada gesto, cada palavra, cada encantamento, de forma muito incisiva. Estudamos tambm muito a fundo a respeito do uso das ervas e a confeco das poes.

    Era bom compreender tudo aquilo. Sabamos agora porque se fazia cada

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    coisa. Era uma diferena crucial, mais ou menos como o mdico e a enfermeira: esta ltima executa ordens muitas vezes sem saber porque o faz. Mas o mdico o detentor do conhecimento, dos detalhes, da profundidade. E todos ns, como Mdicos da Magia tratvamos de aprender, absorver todo aquele conhecimento recheado de significados e simbolismos to profundos!

    Passvamos de duas a trs horas estudando todas aquelas coisas durante duas noites por semana. E era muito diferente do jeito da Escola. Agora no haveria mais limites. O Oculto vinha sendo mais e mais descortinado. E a Magia tinha que ser entendida a fundo. Era necessrio conhecer o mago, a essncia dela, os mnimos detalhes.

    bvio que o processo era progressivo. No se d feijoada a recm-nasci-dos. E os mais adiantados estavam ali com o propsito de auxiliar os mais jovens, pelo menos naquela etapa inicial.

    Foi-nos dada tambm uma introduo do aramaico e do latim, o necessrio para aquele perodo. A fluncia em aramaico s necessria a nvel do sacerdcio.

    Eu devorava tudo aquilo como algum que tivesse que tirar o pai da forca! Queria aprender o mximo e o mais depressa possvel.

    Estudamos tambm Histria da Magia pois faz-se necessrio conhecer a origem dos Rituais para compreender como eles se desenvolveram e porque so como so. Mas no ficamos apenas na Histria. Em se tratando de Magia s vezes usvamos como material didtico alguns livros internos. Ou seja, nada que se encontre em livrarias. Alis, nenhum deles podia sequer sair de l. O Livro dos Mortos do Antigo Egito (mas no aquele que se encontra por a), manuscritos antigos dos Druidas, dos Essnios, dos Babilnicos. Antigos Ritos africanos.

    Os primrdios da Magia estavam contidos neles. Passamos tambm por coisas bem mais contemporneas associadas aos

    alquimistas e Bruxaria da Idade Mdia. Depois aprendemos, em pinceladas meio por alto, como foram os

    primrdios da revelao de Lucifr e como isto desenvolveu-se. Os povos politestas adoravam deuses sem necessariamente compreender a profundidade daquela dimenso espiritual. Mas a Igreja Satnica organizada e estruturada, por assim dizer, passou a existir no sculo XVI. No entanto, j na poca dos Druidas no sculo V, foram lanados alguns princpios rudimentares.

    Antes disso a presena de Lucifr no era explcita. Revelaes progressivas tiveram que acontecer aos poucos ao longo da Histria da Humanidade. Evidentemente que as informaes no so repassadas de uma vez s, mas ao

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    longo de milnios. Os ensinamentos recebidos das Trevas foram seguindo de gerao em gerao. Alguns Ritos foram preservados intactos desde os primrdios. Outros foram sofrendo alteraes conforme o revelar das orientaes do pai.

    E hoje ah! Tempo de glria! hoje Lucifr explicitou a sua estratgia de forma cabal aos seus filhos. A Irmandade detentora desta verdade, e trabalha assiduamente em prol dela. Sem dvida... o Hoje um tempo de muitos privilgi-os e regalias que os antigos almejaram, mas no alcanaram!

    *** Naquele perodo eu me dediquei realmente de corpo e alma ao estudo. n A

    Irmandade tinha uma Biblioteca imensa e cheia de livros a que eu gradativamente ia tendo acesso. Cada vez mais eu podia ler volumes de Magia que no encontraria em livraria nenhuma do mundo. Tudo o que eu tinha passado tanto tempo procurando estava ali, finalmente, cada vez mais ao meu dispor.

    Comecei a estudar, sozinho, sobre algumas hierarquias demonacas, formas e tipos de Ritos, os grandes Bruxos da Histria e tudo o mais que me interessasse. O Ocultismo que eu encontrava ali era muito diferente daquele divulgado na Sociedade. Era totalmente diferente, cheio de embasamentos. Verdadeiro. Aquela Biblioteca foi de inestimvel valor no meu crescimento.

    Mas o conhecimento maior certamente que vinha das reunies do Conselho. Nessas ocasies eu vivia um pouco da prtica de tudo o que aprendia nos livros. Mais tarde vim a saber que a escolha dos membros de cada Grupo Fire's sons no era aleatria, mas cuidadosamente selecionada.

    Eu convivia muito bem com os participantes do meu Conselho. Apesar de que todos eram pessoas singulares, naturalmente estreita-se relacionamento com alguns. Comecei aos poucos a conhec-los melhor, saber de suas vidas, suas profisses, alguns dos seus encargos dentro e fora da Irmandade, etc.

    E logo mais pessoas se me tornaram prximas alm de Rbia, Ariel, Grion e o prprio Zrdico.

    Um deles era um homem de seus 40 anos, claramente rabe, falava um por-tugus com certo sotaque e se vestia super esquisito. Seu nome era Aziz; e ele era professor de Histria numa Faculdade de muito renome. Claro que l tinha muito campo de trabalho para ele. Foi inclusive autor de vrios livros.

    Um outro era egpcio. Alis, seu pseudnimo era esse mesmo: Egpcio. Fora dos limites da Irmandade ele se utilizava da fachada de parapsiclogo. Dava palestras sobre esse assunto por todo o Brasil, e tambm sobre poderes da mente,

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    radiestesia, hipnose, seres extraterrestres. Tudo nessa linha. Era sempre muito requi