fichamento hedley bull - a sociedade anárquica

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resumo capitulo 1 e 2 hedley bull a sociedade anárquica

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A Sociedade Anrquica Hedley Bull

Cap. I: O conceito de ordem na poltica mundial

A ordem na vida social

A ordem que se procura na vida social no qualquer ordem ou regularidade nas relaes entre indivduos ou grupos, mas uma estrutura de conduta que leve a um resultado particular, um arranjo da vida social que promove determinadas metas ou valores.

Quaisquer que sejam as suas metas em particular, todas as sociedades reconhecem objetivos gerais, e incorporam arranjos destinados a promov-los. Trs desses objetivos devem ser mencionados particularmente. Em primeiro lugar, todas as sociedades procuram garantir que a vida seja protegida de alguma forma contra a violncia que leve os indivduos morte ou produza danos corporais. Em segundo lugar, todas as sociedades procuram a garantia de que as promessas feitas sejam cumpridas, e que os acordos ajustados sejam implementados. Em terceiro lugar, todas as sociedades perseguem a meta de garantir que a posse das coisas seja em certa medida estvel, sem estar sujeita a desafios constantes e ilimitados. Assim, entendo que na vida social a ordem um padro de atividade humana que sustenta os seus objetivos elementares, primrios ou universais, como os citados.

No se sugere que esses trs valores bsicos de toda vida social - algumas vezes chamados de vida, verdade e propriedade representam uma lista completa das metas comuns a todas as sociedades, ou que o termo "ordem" s possa ter um contedo significativo com relao a eles. No entanto, esses valores precisam certamente ser includos em qualquer lista dessas metas e, por outro lado, eles ilustram bem a idia do que um objetivo bsico.

Esses objetivos so tambm elementares no sentido de que quaisquer outras metas que a sociedade adote para si pressupem a realizao, em certo grau, daqueles primeiros objetivos. E esses trs objetivos so tambm uniuersais: todas as sociedades parecem adot-los.

A ordem pode existir na vida social sem a necessidade de regras, e que melhor considerar estas ltimas como um meio bastante difundido, quase ubquo, de criar ordem na sociedade humana, e no como parte da prpria definio dessa ordem.

A relao existente entre a ordem na vida social e as leis sociais de um tipo diferente que no so normas, ou princpios gerais e imperativos de conduta, mas sim leis cientficas, ou seja, proposies gerais que afirmam a existncia de uma conexo causal entre dois tipos de evento social. Comenta-se s vezes que a ordem da vida social tem a ver com a conformidade da conduta com essas leis cientficas, dentro da sociedade. Ou seja, mais especificamente, que a conduta sujeita ordem uma conduta previsvel; em outras palavras, que se ajusta a leis que podem ser aplicadas a outros casos no futuro, assim como no passado e no presente. No entanto, definir a ordem na vida social em termos de lei cientfica e previsibilidade confundir uma possvel conseqncia da ordem social, e a razo para trat-la como algo valioso, com a coisa em si mesma.

A ordem internacional

Por "ordem internacional" quero referir-me a um padro de atividade que sustenta os objetivos elementares ou primrios da sociedade dos estados, ou sociedade internacional.

Conforme implicado na definio de sistema internacional proposta por Raymond Aron, basta que as comunidades polticas independentes em questo "mantenham regularmente relaes entre si", e que "sejam todas capazes de estar implicadas em uma guerra generalizada".

Ao classificar as diferentes variedades de sistema internacional Martin Wight distinguiu o que chama de "sistema internacional de estados" de um "sistema de estados suseranos".:' O primeiro se compe de estados soberanos, no sentido em que o termo foi definido neste livro; o segundo aquele em que um estado afirma e mantm supremacia sobre os demais. O que distingue um "sistema de estados suseranos", como o chins, de um "sistema internacional de estados" (onde h sempre um estado exercendo poder hegemnico) o fato de que no primeiro caso a hegemonia permanente e em termos prticos indisputvel, enquanto no segundo a situao de hegemonia passa de uma potncia para outra, sendo objeto de constante disputa.

Existe uma "sociedade de estados" (ou "sociedade internacional") quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituies comuns. Ao mesmo tempo, cooperam para o funcionamento de instituies tais como a forma dos procedimentos do direito internacional, a maquinaria diplomtica e a organizao internacional, assim como os costumes e convenes da guerra.

Nesta acepo, uma sociedade internacional pressupe um sistema internacional, mas pode haver um sistema internacional que no seja uma sociedade. Em outras palavras, dois ou mais estados podem manter contato entre si, interagindo de tal forma que cada um deles represente um fator necessrio nos clculos do outro, sem que os dois tenham conscincia dos interesses e valores comuns, mas percebendo que esto ambos sujeitos a um conjunto comum de regras, ou cooperando para o funcionamento das instituies comuns.

Quando os estados participam de um mesmo sistema internacional, mas no de uma sociedade internacional, como no caso dos contatos entre estados europeus e no-europeus, do sculo XVI at o fim do sculo XIX, pode haver comunicao entre eles, acordos, troca de diplomatas ou de mensageiros, no s a respeito do comrcio mas da paz, da guerra e de alianas. Mas em si mesmas essas formas de interao no demonstram a existncia de uma genuna sociedade internacional. Pode haver comunicao, acordos e troca de representantes sem que haja a percepo de interesses ou valores comuns, que confiram a essas trocas substncia e uma perspectiva de permanncia, sem que se estabeleam regras a respeito do modo como tal interao deva prosseguir, e sem a tentativa de cooperar em instituies nas quais haja de fato um interesse comum.

***

Por "ordem internacional" queremos referir-nos a um padro ou disposio das atividades internacionais que sustentam os objetivos elementares, primrios ou universais de uma sociedade de estados.

Objetivos:

Em primeiro lugar, a preservao do prprio sistema e da sociedade de estados. O que quer que os separe, os estados modernos se unem na crena de que eles so os principais atores da poltica mundial, e os mais importantes sujeitos de direitos e deveres dessa sociedade. A sociedade dos estados tem procurado garantir que ela continuar a ser a forma predominante da organizao poltica mundial, de fato e de direito.

Em segundo lugar est o objetivo de manter a independncia ou a soberania externa dos estados individuais. O preo a ser pago por isso admitir iguais direitos independncia e soberania por parte dos outros estados. A sociedade internacional trata a questo da independncia dos estados, considerados individualmente, como sujeita preservao do sistema, tolerando e estimulando a limitao da soberania ou independncia dos pequenos estados mediante recursos como os acordos que definem esferas de influncia ou criam estados tampes ou neutralizados a independncia dos estados como um objetivo subordinado preservao da prpria sociedade internacional, o que reflete o papel predominante desempenhado pelas grandes potncias na formao dessa sociedade, de que elas se consideram guardies.

Em terceiro lugar, h o objetivo da manuteno da paz. O que se pretende manter a paz no sentido de que a ausncia da guerra entre os estados membros da sociedade internacional seja a situao normal do seu relacionamento, rompida apenas em circunstncias especiais, segundo princpios geralmente aceitos. Neste sentido a paz tem sido vista pela sociedade internacional como uma meta subordinada preservao do sistema de estados, e por isso se tem sustentado amplamente que pode ser apropriado fazer a guerra; meta subordinada tambm preservao da soberania ou independncia de estados individuais, que tm insistido no direito guerra de autodefesa e para a proteo de outros direitos.

O que os estados entendem por segurana no apenas a paz mas a sua independncia, e a persistncia da prpria sociedade de estados que a independncia requer. E para alcanar esses objetivos os estados esto prontos a recorrer guerra ou ameaa da guerra, como observamos.

Em quarto lugar devemos notar que entre os objetivos elementares ou primrios da sociedade dos estados esto aqueles que no princpio deste captulo foram qualificados como objetivos comuns a toda vida social: a limitao da violncia que resulte na morte ou em dano corporal, o cumprimento das promessas e a estabilidade da posse mediante a adoo de regras que regulem a propriedade.

Os estados cooperam entre si para manter seu monoplio da violncia, e negam a outros grupos o direito de exerc-la. Por outro lado, aceitam limitaes ao seu prprio direito de usar a violncia; no mnimo, aceitam como obrigao recproca no matar seus enviados ou mensageiros, o que tornaria a comunicao entre eles impossvel. Alm disso, aceitam que a guerra s seja praticada por uma causa "justa", ou uma causa cuja justia possa ser defendida em termos de regras comuns.

A meta da estabilidade conferida posse est refletida na sociedade internacional no s no reconhecimento recproco da sua propriedade pelos estados como, de modo mais fundamental, no mtuo reconhecimento da soberania, pelo qual os estados aceitam a esfera de jurisdio de cada um deles. Na verdade, a idia da soberania do estado deriva historicamente da noo de que certas populaes e territrios pertenciam ao patrimnio do respectivo governante.

A ordem mundial

Por "ordem mundial" entendemos os padres ou disposies da atividade humana que sustentam os objetivos elementares ou primrios da vida social na humanidade considerada em seu conjunto. A ordem internacional uma ordem entre os estados, mas estes so agrupamentos de indivduos, e os indivduos podem ser agrupados de maneira diferente, sem formar estados.

O primeiro sistema poltico mundial assumiu a forma de um sistema de estados de mbito global. A causa principal da emergncia de um certo grau de interao entre os sistemas polticos de todos os continentes, que nos leva a falar em um sistema poltico mundial, foi a expanso do sistema de estados europeu por todo o globo, e a sua transformao em um sistema de estados de dimenso global.

A ordem mundial implica algo diferente da ordem internacional. A ordem no conjunto da humanidade mais abrangente do que a ordem entre os estados: algo mais fundamental e primordial, e que moralmente a precede. A ordem mundial mais fundamental e primordial do que a ordem internacional porque as unidades primrias da grande sociedade formada pelo conjunto da humanidade no so os estados (como no so as naes, tribos, imprios, classes ou partidos), mas os seres humanos individuais - elemento permanente e indestrutvel, diferentemente dos agrupamentos de qualquer tipo.

Cap. II: H uma ordem na poltica mundial?

A ideia de sociedade internacional

Ao longo de toda a histria do moderno sistema de estados trs tradies doutrinrias tm competido entre si: a hobbesiana, ou realista, que considera a poltica internacional como um estado de guerra; a kantiana, ou universalista, que preconiza a atuao, na poltica internacional, de uma comunidade potencial e a grociana, ou internacionalista, para a qual a poltica internacional ocorre dentro de uma sociedade de estados.

A sociedade internacional crist

Enquanto no se firmava a concepo do "estado" como a forma poltica comum a todas as monarquias, aos ducados, aos principados e s repblicas da Europa moderna, no podia vingar a idia de uma sociedade constituda principal ou exclusivamente de um nico tipo de entidade poltica. A doutrina do direito natural, sobre a qual todos os internacionalistas dessa poca baseavam sua concepo das regras que vinculavam os prncipes e as comunidades por eles governadas, tratava os indivduos, e no o seu agrupamento em estados como os sujeitos finais de direitos e deveres.

Na idia da sociedade internacional prevalecente nessa poca, atribua-se primazia ao direito natural sobre o que hoje chamaramos de direito positivo internacional, como fonte das regras que vinculavam os prncipes e as comunidades do mundo cristo. Esta primazia conferida ao direito natural pelos primeiros internacionalistas refletia a sua concepo de que o corpo de leis positivas existente, proposto pela sociedade universal da Cristandade Ocidental, no tinha contato com as novas realidades polticas. Ao invocar o direito natural eles esperavam libertar a lei das naes dos limites impostos pela prtica da poca e desenvolver regras apropriadas nova situao.

Essa influncia das premissas universalistas aparece tambm no tratamento dado pelos primeiros internacionalistas s regras que sustentavam a santidade dos acordos. Todos eles adotavam o princpio pacta sunt servanda, mas concebiam os tratados em termos de uma analogia com os contratos do direito privado. Assim, nessa poca ainda se admitia de modo geral que os tratados s obrigavam os prncipes que os tinham assinado, no os seus sucessores; que os tratados, como os contratos privados, no eram vlidos se fossem impostos; e que permaneciam vlidos sem levar em conta qualquer clusula rebus sie stantibus ou proviso de que as condies originais deviam permanecer inalteradas.

Da mesma forma, as premissas universalistas impediam esses pensadores de desenvolver uma concepo clara da soberania como atributo dos estados membros da sociedade internacional, ou do reconhecimento recproco da soberania dos estados como um elemento bsico de tal coexistncia. O que faltava era a concepo de que a independncia de qualquer autoridade externa no controle do seu territrio e da sua populao era um direito inerente de todos os estados.

Deste modo, os primeiros tericos da sociedade internacional contribuam para a criao do que mais tarde ficaria conhecido como "direito internacional", uma das instituies fundamentais da sociedade dos estados; mas, como vimos, eles no procuravam fundamentar a lei das naes primordialmente na prtica dos estados, e a sua preocupao com o direito natural e a lei divina deveria necessariamente inibir o desenvolvimento do direito internacional como tcnica e disciplina distintas, diferentes da teologia e da filosofia moral.

Por outro lado, ao elaborar suas idias sobre a sociedade internacional nenhum desses autores discutiu ou levou em conta o equilbrio de poder entre os estados. A real instituio do equilbrio de poder, no sentido de um esforo consciente para evitar a preponderncia de qualquer estado em particular, comeou a ser desenvolvida na coalizo contra Filipe II, e sua preservao foi um objetivo implcito da Paz de Westflia de 1648, que marcou o fim das pretenses dos Habsburgos a uma monarquia universal. Mas s muito mais tarde, na poca da luta contra Lus XIV, o equilbrio de poder foi admitido pela teoria internacional como uma instituio da sociedade internacional.

Os estudiosos desta teoria, baseada no direito natural, tambm no tinham qualquer concepo do papel das grandes potncias na sociedade internacional. Com efeito, pensavam em termos de uma hierarquia de governantes, mas era uma hierarquia determinada pelo status e os precedentes de uma sociedade universal em recesso, e no pela considerao do poder relativo dos estados.

A sociedade internacional europeia

Nos sculos XVIII e XIX, os vestgios da Cristandade Ocidental quase desapareceram da teoria e prtica da poltica internacional; o estado completou a sua plena articulao, a princpio na fase dinstica ou absolutista, depois na fase nacional ou popular; acumulou-se e foi estudado todo um corpo de prticas modernas na interao dos estados. medida que o direito natural cedia lugar ao direito positivo internacional, as idias dos tericos polticos e legais convergiam com as dos historiadores, que procuravam registrar as prticas do sistema de estados e dos estadistas que o operavam.

Na sua cultura e nos seus valores a sociedade internacional concebida pelos tericos deste perodo se identificava como europia mais do que como crist. Diminuram e desaparecem as referncias Cristandade e lei divina como base da sociedade dos estados, assim como os juramentos no momento da assinatura dos tratados. medida que se acentuava o carter especificamente europeu da sociedade dos estados, o mesmo acontecia com o sentido de diferenciao cultural com respeito ao resto do mundo: a percepo do relacionamento recproco entre as potncias europias estava sujeito a um cdigo de conduta que no se aplicava a elas, ao tratar com outras sociedades menos importantes.

No sculo XIX a doutrina ortodoxa dos internacionalistas positivistas sustentava que a sociedade internacional era uma associao europia, a que os estados de outras regies s podiam ser admitidos se e quando atingissem o padro de civilizao ditado pelos europeus.

Do reconhecimento de que os membros da sociedade internacional so um tipo particular de entidade poltica, chamados estados, e de que as entidades que no satisfazem esse critrio no podem ser membros, deriva uma srie de outras caractersticas bsicas da idia de sociedade internacional prevalecente no perodo, que sem ele no seriam concebveis: a idia de que todos os membros tm os mesmos direitos fundamentais, que as obrigaes que eles assumem so recprocas, que as regras e instituies da sociedade internacional derivam do seu consentimento, que entidades polticas tais como as monarquias orientais, os emirados rabes ou os reinos africanos deviam ser excludos.

Nos sculos XVIII e XIX, para identificar as fontes das normas que vinculam os estados, os estudiosos da sociedade internacional afastavam-se do direito natural, preferindo recorrer ao direito positivo. De modo geral, adotavam como diretriz no teorias abstratas sobre o modo como os estados deveriam agir, mas os costumes e o direito emanado dos tratados, que ganhavam corpo.

Deste modo, as regras formuladas nesse perodo para restringir a violncia deixavam claro na poltica internacional que o recurso violncia legtima era um monoplio do estado, em contraste com o que pregavam os primeiros jusnaturalistas. Do reconhecimento do fato de que, na guerra, dois beligerantes que se digladiam podem ambos ter causa justa, no foi difcil chegar doutrina de a guerra era simplesmente um conflito poltico, e a questo da justia da causa envolvida devia ser banida do direito internacional, porque a sociedade internacional no tinha condies de resolv-la. Assim, as regras que limitavam a conduta dos beligerantes, formuladas por esses autores, asseguravam plena proteo a todos os beligerantes.

Ao abordar a norma que impunha o cumprimento dos tratados, o pensamento terico desse perodo dispensava inteiramente a analogia com os contratos particulares, reconhecendo que os contratos concludos por um governo obrigavam os seus sucessores, e que eram vlidos mesmo se impostos a um dos contratantes. Da mesma forma, os autores desse perodo puderam reconhecer que a soberania era um atributo de todos os estados, e a troca do reconhecimento da soberania, uma regra fundamental para a coexistncia dentro do sistema de estados. Puderam tambm definir corolrios como a regra da no interveno, a regra da igualdade dos estados com respeito aos seus direitos fundamentais e o direito dos estados jurisdio interna.

Da mesma forma, o conceito de "grande potncia" e dos seus direitos e deveres especiais, explorado por Ranke no seu famoso ensaio, veio expressar uma nova doutrina da hierarquia dos estados, que substituiu a velha hierarquia precedente e do statns herdado, com base no poder relativo e no consentimento da sociedade internacional, sendo expressa formalmente no Concerto Europeu nascido do acordo de Viena, mediante o sistema de congresso.

A sociedade internacional mundial

De um lado, a interpretao realista ou hobbesiana da poltica internacional foi alimentada pelas duas guerras mundiais, assim como pela expanso da sociedade internacional para alm dos seus limites originalmente europeus. De outro lado, as interpretaes universalistas ou kantianas foram alimentadas pelo esforo orientado para transcender o sistema de estados, pretendendo escapar da desordem e dos conflitos que o tm acompanhado nesse sculo e das revolues na Rssia e na China que deram novo alento s doutrinas da solidariedade transnacional, tanto as comunistas como as no-comunistas.

No sculo XX, a sociedade internacional deixou de ser considerada especificamente europia, e passou a ser vista como global. Hoje, quando os estados no-europeus representam a grande maioria na sociedade internacional, e a participao nas Naes Unidas quase universal, rejeita-se geralmente a doutrina de que a base dessa sociedade uma civilizao ou cultura especfica. No entanto, importante levar em conta que se a sociedade internacional contempornea tem uma base cultural, no a de uma cultura genuinamente global mas sim a cultura da chamada "modernidade".

Hoje acredita-se que alm do estado, titular de direitos e deveres legais e morais, participam da sociedade internacional as organizaes internacionais, grupos no-estatais de vrios tipos e tambm indivduos. No h um acordo a respeito da importncia relativa desses diferentes tipos de agentes legais e morais, ou sobre qualquer esquema geral de regras que os vinculassem reciprocamente, mas a concepo de Vattel, de uma sociedade s de estados, tem sido criticada de muitos ngulos diferentes.

No sculo XX, a teoria da sociedade internacional afastou-se tambm da nfase do positivismo histrico, dos sculos XVIII e XIX, na prtica existente como fonte de normas para a conduta internacional, em favor do retorno aos princpios do direito natural ou a algum equivalente contemporneo desse direito. Ao mesmo tempo, tem havido um ressurgimento das premissas universalistas ou solidaristas no modo como so formuladas as regras de coexistncia.

A nfase do sculo XX na idia de uma sociedade internacional reformada ou aperfeioada, distinta dos elementos da prtica efetiva dos estados, levou ao tratamento da Liga das Naes, das Naes Unidas e de outras organizaes internacionais como sendo as principais instituies da sociedade internacional, deixando de lado outras instituies cujo papel na manuteno da ordem internacional central.

Minha tese que os elementos de uma sociedade sempre estiveram presentes, e continuam presentes no sistema internacional moderno embora, por vezes, esteja presente s um desses elementos e de sobrevivncia precria. Com efeito, o sistema internacional moderno reflete todos os trs elementos singularizados respectivamente pela tradio hobbesiana, kantiana e grociana: a guerra e a disputa pelo poder entre os estados, o conflito e a solidariedade transnacionais, superando as fronteiras dos estados, e a cooperao e o intercmbio regulado entre os estados. Em diferentes fases histricas do sistema de estados, em distintos teatros geogrficos do seu funcionamento, e nas polticas adotadas por diferentes estados e estadistas um desses trs elementos pode predominar sobre os outros.

Na Europa do sculo XIX, no intervalo entre as lutas de revolucionrios contra legitimistas, que persistiram depois das guerras napolenicas, e no ressurgimento, mais tarde no mesmo sculo, dos conflitos entre as grandes potncias que provocaram a Primeira Guerra Mundial, pode-se dizer que predominou o elemento da sociedade internacional. Este ltimo elemento sempre esteve presente no sistema internacional moderno, porque em nenhuma das fases do seu desenvolvimento deixou de haver uma certa influncia da concepo dos interesses comuns dos estados e das normas e instituies comuns aceitas e utilizadas por eles. Na maior parte do tempo a maioria dos estados respeitava, de algum modo, as regras bsicas da coexistncia na sociedade internacional, do respeito mtuo pela soberania, do cumprimento dos tratados e da limitao do uso da violncia. Da mesma forma, na maior parte do tempo a maioria dos estados participava de instituies comuns. A maioria dos estados participava das formas e procedimentos do direito internacional, do sistema de representao diplomtica, da aceitao da posio especial das grandes potncias, da existncia de organizaes internacionais funcionais, tais como as criadas no sculo XIX, da Liga das Naes e das Naes Unidas.

A idia de "sociedade internacional" tem uma base na realidade que , s vezes, precria, mas que nunca desapareceu inteiramente. Mesmo no auge de uma grande guerra ou conflito ideolgico, a idia da sociedade internacional no desaparece, embora possa ser negada pelos pronunciamentos dos estados conflitantes, cada lado tratando o outro como forasteiro do quadro de uma sociedade comum; essa idia simplesmente perde visibilidade, mas continua a influenciar a prtica dos estados.

Portanto, mesmo em pocas em que a poltica internacional pode ser melhor descrita em termos do estado de guerra hobbesiano ou na condio kantiana de solidariedade transnacional, a idia de sociedade internacional sobreviveu como um elemento importante da realidade, e essa sobrevivncia, em momentos de tenso, propicia a base para a reconstruo da sociedade internacional quando a guerra cede lugar paz ou o conflito ideolgico, distenso.

A sociedade anrquica

Sustenta-se em geral que a existncia da sociedade internacional desmentida em razo da anarquia, ou seja, da ausncia de governo ou de regras. bvio que, ao contrrio dos indivduos que vivem no seu interior, os estados soberanos no esto sujeitos a um governo comum, e que neste sentido existe uma "anarquia internacional".

Para comparar as relaes internacionais com um hipottico estado da natureza pr-contratual entre os indivduos, podemos escolher no a descrio de Hobbes mas a de Locke. Ele concebe o estado de natureza como uma sociedade sem governo, oferecendo-nos assim uma analogia estreita com a sociedade dos estados. Na sociedade internacional moderna, como no estado de natureza de Locke, no h uma autoridade central capaz de interpretar e aplicar a lei, e assim os indivduos que dela participam precisam eles prprios julgar e aplic-la. Como em tal sociedade cada participante um juiz em causa prpria, e como a opinio dos que pretendem aplicar a lei nem sempre prevalece, a justia nessa sociedade rstica e incerta. No entanto, h uma grande diferena entre essa forma rudimentar de vida social e a total ausncia de ordem.

No estado de natureza um ser humano no pode garantir-se contra um ataque violento, que implica a perspectiva de morte sbita. No entanto, organizados sob a forma de estados, grupos de seres humanos podem adquirir meios de defesa que existem independentemente das debilidades de qualquer um desses indivduos. E o ataque armado de um estado contra outro no implica uma perspectiva comparvel ao homicdio de um indivduo cometido por outro, pois a morte de um homem pode ser o resultado de uma nica ao que, uma vez realizada, no pode ser desfeita, enquanto a guerra, s ocasionalmente, tem provocado a extino fsica do povo derrotado.

O fato de que os estados tm sido menos vulnerveis aos ataques violentos do que os indivduos reforado por outra diferena: apesar da vulnerabilidade a ataques fsicos, essa vulnerabilidade no a mesma para todos. Hobbes entende o estado de natureza com base na premissa de que "a Natureza fez os homens de tal forma iguais nas faculdades do corpo e da mente que o mais fraco tem fora suficiente para matar o mais forte.":" Para Hobbes, essa mesma vulnerabilidade recproca de todos os homens que torna a anarquia intolervel. Mas na sociedade internacional moderna tem havido uma diferena persistente entre as grandes e as pequenas potncias. As grandes potncias no tm sido vulnerveis a um ataque violento pelas pequenas potncias na mesma medida em que estas tm sido vulnerveis ao ataque das grandes potncias.

Assim, o argumento de que porque os indivduos no podem formar uma sociedade sem governo, os prncipes soberanos ou estados tambm no podem, no se sustenta no apenas porque mesmo na ausncia de governo pode haver uma certa ordem entre os indivduos mas porque os estados so diferentes destes, e mais capazes de formar uma sociedade anrquica.

O elemento da sociedade internacional real, mas os elementos do estado de guerra e das lealdades e divises transnacionais so tambm reais, e uma iluso reificar o primeiro elemento, ou v-lo como se anulasse o segundo e o terceiro. Alm disso, o fato de que a sociedade internacional fornece um certo elemento de ordem poltica internacional no deve justificar uma atitude de complacncia a seu respeito, ou sugerir que falta fundamento aos argumentos daqueles que esto insatisfeitos com a ordem da sociedade internacional. Na verdade, a ordem existente dentro da sociedade internacional moderna precria e imperfeita. Demonstrar que a sociedade internacional moderna proporciona um certo grau de ordem no o mesmo que demonstrar que estruturas de um tipo bem diferente no poderiam proporcionar uma ordem de forma mais eficaz.