ficha técnica - escamoes.pt · assim, a rapariga recusava-se a ficar fora de casa mais do que o...
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Ficha técnica
Organização Lídia Teixeira
Teresa Saborida
Autoria Ana Catarina Baptista – 11º D; Bhavini Hasmudal Vassaramo – 11º N; Helena Fonseca – 11º B; João Pestana – 11º B; Luís F. Dias – 10º 1ª EsRad; Maria Beatriz Rodrigues – 11º L; Sara Pacheco – 12º A; Susana de Jesus Martins – EFA – B; Vicente Magalhães – 10º A
Edição Escola Secundária de Camões
12ª edição maio 2017
Disponível em http://www.escamoes.pt/ebook/#%21/page_SOLUTIONS
Copyright Escola Secundária de Camões
Capa Lino Neves
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Índice
Ficha técnica ....................................................................................................... i
Índice ................................................................................................................... ii
Índice de Autores ............................................................................................... iii
Nota Introdutória ................................................................................................. 1
1º Prémio ............................................................................................................ 2
2º Prémio ............................................................................................................ 6
3º Prémio .......................................................................................................... 11
Menção Honrosa .............................................................................................. 14
Um acontecimento insólito ............................................................................... 17
Liz ..................................................................................................................... 20
Um grão do tamanho da vida ........................................................................... 21
A caneta mágica ............................................................................................... 25
Estrada perdida ................................................................................................ 28
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Índice de Autores
Sara Pacheco – 12º A ........................................................................................ 2
Maria Beatriz Simões Rodrigues - 11º L ............................................................. 6
Helena Dias Duarte Fonseca - 11º B................................................................ 11
Ana Catarina Baptista - 11º D .......................................................................... 14
Bhavini Hasmudal Vassaramo - 11º N ............................................................. 17
João Silva Pestana 11º B ................................................................................. 20
Luís Filipe Desmet Silva Dias - 10º 1ª EsRad .................................................. 21
Susana de Jesus Martins – EFA-B ................................................................... 25
Vicente Morais Magalhães - 10º A ................................................................... 28
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Nota Introdutória
Ao envolver toda a comunidade escolar pondo à prova a capacidade criativa dos
nossos alunos, esta 12º edição do Concurso Literário Camões atinge de forma
inequívoca os seus objetivos, o que muito nos apraz registar.
Cientes de que o desafio não era fácil – A poesia está na vida – podemos
orgulhar-nos da qualidade dos trabalhos apresentados, cujo resultado final surge
materializado em formato analógico e digital.
A todos os seus autores, por igual, a nossa gratidão. Sentimento que tornamos
extensivo a quantos, formal ou informalmente, colaboraram e tornaram possível
esta iniciativa.
Lídia Teixeira
Teresa Saborida
A comissão organizadora
(maio 2017)
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Nesta coletânea são reproduzidos todos os textos apresentados a concurso e considerados válidos pelos júris – em primeiro lugar, os textos premiados e, em seguida, os restantes, ordenados por ordem alfabética do nome dos seus autores.
De acordo com o regulamento do concurso o júri reserva-se o direito de proceder aos ajustes considerados adequados.
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1º Prémio
A rapariga da janela
Sara Pacheco – 12º A
Em tempos existia uma casa em Alfama, naquela pequena rua que
desemboca num beco grafitado igual a tantos outros becos. Nessa casa vivia
uma bela rapariga que tinha o costume de espreitar à janela e por lá ficar durante
longos períodos de tempo. Não havia mais nenhuma como ela, certamente
porque as outras raparigas nunca conseguiriam fingir uma expressão tão
surpresa, tão maravilhada, exatamente como se estivessem a olhar para aquela
rua pela primeira vez, depois de tantos anos. Tão nova, mas ao mesmo tempo
tão velha - só os velhos é que têm a decência de parar para olhar o mundo em
que vivem. Fossem que horas fossem, passasse quem passasse, a
probabilidade de olhar para cima ao andar por aquela pequena rua e de
encontrar a rapariga, que permanecia sempre com a sua típica expressão, era
quase certa. O seu nome, ninguém o sabia, e a sua história, menos ainda.
No entanto, era dado como certo que esta vivesse sozinha. Só uma
pessoa que vive sozinha é que passa tanto tempo a contemplar o mundo: os que
vivem acompanhados contemplam-se a si mesmos. Muitos rumores juravam
que estava trancada naquela casa, porque nunca ninguém a tinha visto
sair. Muitos outros contavam que aquele olhar focado no horizonte não
era comum de uma pessoa que estivesse sã e que a situação devia ser
denunciada. Outros ainda compreendiam que nada tinham que ver com a vida
da tal rapariga e que, para lidar com problemas, já lhes chegavam os seus.
Ela, a leste de tudo isto, vivia uma vida calma. A sua casa estava repleta
de livros - seria difícil dar um passo sem pousar ambos os pés a míseros
centímetros de uma capa. Nestes livros lia sobre o mundo, as diferentes culturas,
lia as histórias de Orfeu, de Ulisses, do rei David, lia sobre os grandes
chefes turcos, os czares da Rússia, as cruzadas, as revoluções e tentativas dos
homens de ganhar poder, os segredos para pintar a óleo e quais as técnicas
usadas por Shakespeare ao conceber os seus dramas. Lia sobre as
melodias, as cores, os cheiros e sensações que existiam e que só conhecia
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através daquelas páginas. Lia sobre as pessoas, imaginava as suas histórias, o
sítio de onde vinham, o sítio ao qual se destinavam, aprendia os seus dialetos e
os gestos que estes faziam rotineiramente sem se aperceberem. Mesmo sem
saber ler música, olhava para as coletâneas e imaginava todos os sons na sua
cabeça, sentindo que conhecia Beethoven, Bach, Scarlatti e Chopin, como a
palma da sua mão. Tudo o que lia era automaticamente associado a imagens,
numa visão quase cinematográfica desenvolvida pela sua mente, baseada
nas expectativas exacerbadas que tinha. Pensava e repensava, imaginava
muito, alterava as suas imaginações, sonhava com o mundo que estava tão
perto, já do lado de fora da sua janela, mas no entanto tão longe.
Distância esta que resultava do facto da sua avó, a avó que a criara e
única família que tinha, estar muito doente, encontrando-se de cama há largos
anos. Assim, a rapariga recusava-se a ficar fora de casa mais do que o tempo
necessário, saindo apenas para comprar comida ou ir à biblioteca e regressando
a casa ainda antes de a sua avó abrir os olhos. O senhor da mercearia tinha
sempre o saco pronto para ela levar, como mostra de agradecimento por ter o
privilégio de ser uma das únicas pessoas a conhecer a verdade sobre aquela
estranha rapariga e o bibliotecário, após uma breve reflexão sobre se aquilo que
a rapariga tinha lido nessa semana era realidade ou ficção, tinha sempre uma
recomendação a fazer. A rapariga regressava então a casa, cozinhava para a
avó, ajudava-a a comer, lia-lhe histórias passadas em locais longínquos e, de
vez em quando, chegava mesmo a declamar poesia. Quando ganhava forças
para isso, a avó esboçava um sorriso e dizia "que bonito" ou um simples
"obrigada", proferidos com tal esforço que a rapariga os valorizava
tremendamente. A rapariga tinha a certeza que, por muitas pessoas que viesse
a conhecer, a sua avó seria sempre a melhor de todas elas. E, portanto, não se
sentia triste por ficar a acompanhá-la, deixando o resto do mundo em pausa.
Para ela, quanto mais tempo tivesse a possibilidade de acompanhar a avó,
menos tempo ficaria no breu que seria perder a sua grande guia. Ficava então a
olhar para ela, passando esporadicamente a mão pela sua cara ou desviando-
lhe algum cabelo que estivesse fora de sítio. A morte vem buscar-nos a todos,
mas só alguns têm a sorte de morrer com um aspeto que parece de vivo. E
enquanto a avó dormia, a rapariga dirigia-se à janela e olhava. Olhava,
simplesmente. E todos os dias encontrava um pormenor novo. O brilho do sol
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refletido nas águas do rio. Uma das ameias da Sé um pouco mais torta que as
outras. As pessoas como formigas, andando pelas ruas sinuosas da Mouraria.
O tom azul do céu, que às vezes se tornava amarelo, laranja, rosa, lilás ou
cinzento consoante a altura do dia. Todos os dias
aquelas pequenas nuances falavam consigo de maneira diferente e ela nunca
se conseguia fartar de contemplar algo tão maravilhoso, por mais vezes que o
fizesse.
Um dia, a rapariga acercou-se da avó depois de chegar de uma ida à
biblioteca e perguntou-lhe como esta estava. A avó, particularmente bem-
disposta, fixou o olhar no livro. "É um livro de poesia, avó.""Lê-mo, minha filha."
A avó sorria e, acabadas as leituras, esta agarrou o braço da neta com força,
uma força que não se sabia que ela ainda tinha dentro de si. "Tens sido muito
corajosa." "Eu, avó?"
Esta abriu bem os olhos e perscrutou-os nos olhos da neta. Assim
permaneceram durante largos instantes, até que a avó disse "Sim, minha
querida, tu mesmo. Para nos entregarmos aos outros é preciso muita coragem.
Mas a hora de ires está a chegar, e tenho a certeza que essa coragem será o
que necessitas para cumprir os teus sonhos. Corre o mundo e vê com esses
olhos lindos que tens tudo aquilo sobre o qual leste. Estás livre." Logo largou o
braço da neta e deixou cair a sua mão ao lado do corpo, enquanto a rapariga ia
enxugar a lágrima que discretamente se formara no canto do olho.
No dia seguinte , o esperado acontecera. A rapariga estava à janela, como
já era costume, e ouviu a avó dizer-lhe, com todo a força que lhe restava no
corpo, "Vai". A rapariga virou-se, ainda a tempo de ver a avó a sorrir, com a mão
estendida para si, a qual esta agarrou com toda a vontade que tinha no corpo.
Nunca mais a rapariga veio à janela. Ao contrário do que se possa pensar,
inicialmente não foi algo muito notado. Mas depois de se passarem três, quatro,
cinco dias, houve quem se apercebesse que a sua presença constante deixara
de ser constante. Se esta estivesse mesmo trancada, teria com certeza
acontecido algum tipo de acidente que não lhe permitisse ir à janela apanhar
ar. Sabia-se lá se a rapariga tinha tido um ataque cardíaco, se um armário
lhe tinha caído em cima, enfim, aquilo que se sabe é a facilidade com que os
terceiros começam a inventar. Finalmente, houve quem tivesse a decência de ir
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bater à porta. Logo aí, com a mão no ar ainda antes de embater na madeira,
apercebeu-se da existência de um pequeno bilhete. "Fui".
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2º Prémio
A estante
Maria Beatriz Simões Rodrigues - 11º L
A Álvaro sempre lhe foi dito que a vida é curta, um corrupio, que começa e acaba
rapidamente, como uma aragem fria de Inverno se torna nas folhas afloradas da
Primavera. Mas ele nunca sentiu a vida assim. Para ele, viver é um longo e demorado
aperto nos pulmões, um aborrecimento constante e inevitável, um acordar e saber,
ainda antes de abrir os olhos, que nada de novo vai acontecer.
Com quarenta e sete anos feitos em abril, um apartamento demasiado caro nos
arredores de Lisboa, três gravatas lavadas no armário e o coração vazio, Álvaro
sobrevive. Acorda todos os dias às cinco para as oito (domingos e tudo), põe o vinil da
Aretha Franklin a tocar, usa uma das gravatas e, bebendo o seu café (longo e sem
açúcar), senta-se na minúscula secretária que tem em frente à janela da sala. Teve na
secundária as melhores notas da turma, e a universidade passou como um relâmpago
– acabou a licenciatura com notas significativamente melhores do que qualquer outro
aluno da sua turma e depressa arranjou contrato com uma editora. Havia mais de vinte
anos que fazia o mesmo trabalho, para a mesma empresa, e estava satisfeito. Não
pode dizer que vive completamente feliz, mas afinal o que é isso? Álvaro não conhece
a felicidade.
O seu pequeno T1 tem um quarto onde só cabe a sua cama de solteiro, uma casa
de banho com um espelho permanentemente embaciado, uma pequena cozinha que
nunca foi usada como tal - Álvaro nunca se tinha importado o suficiente para aprender
a cozinhar alguma coisa - e a sala. A sala é a alma da casa. Com nove metros
quadrados, Álvaro mobilou-a com os pedaços de amor e beleza que lhe estão
escondidos no coração: gastou o ordenado completo de um mês numa estante que
cobre metade da sala e preenche uma parede inteira - lá colocou todos os seus livros,
todos os livros que comprou e leu ao longo das suas quase cinco décadas, ordenados
pela ordem em que os leu. O primeiro, na prateleira mais alta, é um livro do Winnie The
Pooh. Orgulha-se de o ter ali, o primeiro livro completo que lera aos 6 anos. Na segunda
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prateleira, quase no meio, estão cinco livros seguidos do Sartre - sempre que olhava
para eles recordava-se dos anos adolescentes que passara a reler e a sublinhar e a
decorar passagens d’ "A Náusea".
Comprar livros e lê-los é o único prazer que Álvaro tem na sua vida. Controla
obsessivamente a organização e a arrumação da sua estante, tão obcecadamente que
por vezes questiona a sua própria sanidade, mas o que de melhor tem ele para fazer?
Aquela estante organizada dá-lhe um prazer inexplicável. Por vezes, acha que aquela
estante é a única razão da sua existência. Não tem amigos, sempre se isolou na escola,
e a sua família há muito que não lhe fala. A pouca interação humana que tem é com o
patrão, e mesmo essa é reduzida: recebe os livros por traduzir pelo correio e envia as
respetivas traduções por mail. Ir ao supermercado é um autêntico tormento para Álvaro,
e ele limita ao máximo as saídas à rua. À parte de sua casa, o único sítio onde se sente
verdadeiramente confortável é na livraria ao fundo da rua. Já conhece o proprietário
desde os seus tempos de estudante e ambos sabem o que esperar um do outro: Álvaro
é deixado a sós enquanto deambula pelo meio dos livros e não trocam nem uma palavra
nem um sorriso quando ele lhe vai entregar o dinheiro – e estão ambos imensamente
gratos por isso.
Toda a sua vida está ali, naquela estante, tudo o que aprendeu, tudo o que o faz
minimamente feliz, ali, numa estante branca gigantesca encostada à parede do seu T1
sobrevalorizado em Lisboa. Com as cinco prateleiras que a estante tem, Álvaro estimou
cada uma como dez anos da sua vida. Está, neste momento, a mais de meio da sua
quinta prateleira. A última. O que fará quando o espaço acabar? Quando a única
felicidade que tem, a manutenção daquela estante, daqueles livros, o prazer da sua
vida, desaparecer?
Álvaro pensa nisso tudo quando, numa quente manhã de maio, se senta na
secretária, com o café nas mãos e dois livros ao lado do computador à sua espera para
serem traduzidos.
“Que farei eu quando chegar ao fim da minha estante? Não terei mais espaço para
arrumar o conhecimento, não poderei mais ler.”
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Álvaro sente, pela primeira vez na sua vida (na vida que lembra ter tido), a amargura
do café passar da garganta para o coração. O que se passa? Estará Álvaro a sofrer?
Como está Álvaro a sofrer se nunca esteve verdadeiramente feliz?
Não mais consegue ficar em casa. Sente as paredes da sala encolherem-se
gradualmente e o chão prestes a transformar-se numa qualquer matéria instável que o
impede de ficar quieto. Já com uma enxaqueca a martelar-lhe a cabeça, sai de casa
apressadamente, com a carteira numa mão e as chaves de casa na outra. Quando os
ataques de pânico chegam, e tão fortes como este, a única solução de Álvaro é correr
para a livraria e levar um livro para casa. E é isso que ele faz, nesta quente manhã de
maio. Fecha a porta de casa com um estrondo e desce as escadas do prédio, duas de
cada vez. Uma criança olha para ele, olhos curiosos seguindo aquele estranho homem
que pouco se mostra ao mundo e que, reparando no olhar vidrado dela, acelera ainda
mais o passo, quase escorregando, e sai abruptamente do alcance da vista da miúda,
para a rua.
Ali, não sabe para onde se virar. Se para Norte ou Sul, se sobe ou desce, se deve
voltar a casa ou partir à descoberta da vida. Escolhe irracionalmente e segue o caminho
que lhe acompanha os pés: vai subindo. O sol vai alto, o vento sopra e desconcerta-lhe
o cabelo, a gravata, e é um desconcerto tão grande que Álvaro já não se reconhece.
Pensa no seu nome, e não se reconhece nele, olha sorrateiramente pelo canto do olho,
para o vidro que reflete a sua face, e não se reconhece ali. Uma face pálida e magra,
triste e fatigada pelo passar do tempo.
“Eu não sou isto,” pensa ele, “não posso ser só isto. Este corpo velho, esta cara
enrugada. Pouco vivi para as rugas que tenho.”
Desvia rapidamente o olhar e segue caminho com os olhos colados ao chão. Sente
que cometeu uma infração, uma ilegalidade ao reconhecer que a cara que o espelho
lhe mostra não é a dele, ao contrariar a verdade universal de que somos o que vemos
no reflexo dos vidros inânimes.
Quando levanta os olhos, depara-se com a entrada da livraria. Não pensa muito (o
que raramente acontece) e entra impremeditadamente. Reconhece o cheiro familiar
dos livros arrumados nos sítios de sempre e lentamente o ritmo do seu coração
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estabelece-se, e a sua respiração equilibra-se. Álvaro acalma-se momentaneamente,
quando uma voz irrompe e danifica a sua estabilidade.
- Boa tarde, o senhor precisa de ajuda?
Álvaro não encara esta voz feminina e musical. O que será feito do seu velho
companheiro mudo?
- Acredito que estranhe a minha presença aqui, é sempre o meu pai que cá está,
mas hoje ele não pôde vir – tem uma consulta agora, depois do almoço. Sabe, é que
ele não anda nada bem da vesícula e estar aqui sentado todos os dias embrenhado
nos livros não lhe faz bem nenhum. – Álvaro ouve esta enxurrada de palavras virado
de costas - Não me interprete mal, eu adoro ler, mas o meu pai já não é um homem
jovem e tem muita dificuldade em pedir ajuda. Aliás, ele até se assemelha ao senhor.
Fisicamente, quero eu dizer, pois não posso dizer se o senhor é tímido como o meu pai
ou não. Nem o conheço! – diz ela, alegremente, ignorando o facto de estar a ser
ignorada pelo homem desconhecido.
Álvaro para de folhear os livros. Depois, hesitante, vira-se de frente para a rapariga.
Deve ter por volta dos vinte e poucos anos, pensa ele, e é muito parecida com o pai.
Ele não consegue avaliar a beleza dela porque, na verdade, nunca avaliou a beleza de
ninguém. Nunca se pôs a pensar nisso. No entanto, fica parado a olhá-la. Pensa nela
como um ser humano estranho, escondida atrás do balcão, com a franja a roçar os
óculos redondos e uma camisola vermelha vestida. Nunca a tinha visto antes, mas
sente que a conhece, que sabe como ela é. Sentimento estranho, e Álvaro não
consegue evitar continuar a fixá-la, tanto que ela, com uma timidez que não tinha
demonstrado antes, sente necessidade de fazê-lo desviar os olhos dela.
- Mas não se acanhe, veja à vontade! Eu estarei aqui, se precisar de ajuda.
Tem medo de ser olhada, pensa ele, mas quer ser ouvida. Deixa corajosamente
soltar um “Obrigado” despido de emoção. Há meses que não ouve a própria voz. Soa
cansada, carregada, velha, e como aconteceu com o vidro na rua, Álvaro experiencia
um desconhecimento total em relação à sua pessoa. Quem é ele que anda por ali a
passear? Sente que um corpo estranho se apoderou das suas cordas vocais e dos seus
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ossos, e só se reconhece nos próprios pensamentos. O que fazer quando chegamos a
este ponto?
Continua a passear por entre os livros e a remexê-los, esperançoso de que a troca
embaraçosa de olhares tenha encerrado o monólogo da jovem rapariga, mas isso não
acontece. Rapidamente retoma o seu discurso e começa a disparatar sobre o preço
dos livros.
- Está tudo muito caro hoje em dia, mas não é por isso que deixo de gostar de ter
os livros que leio em casa. Até comprei uma estante na semana passada para a minha
sala, - diz ela, sorrindo - que vai ocupar a parede toda mas pelo menos cabem lá todos
os meus livros. Tenho é de os ir comprando controladamente, senão lá se vai o meu
salário!
Álvaro sente um aperto desmesurado no coração e sai desesperadamente. Fora da
loja, no aconchego da rua, surge-lhe uma imagem imaginada da casa da rapariga e da
estante semelhante à sua. Uma felicidade apavorante, um contentamento que nunca
tinha sentido antes tonteia-o tanto que quase cai ao chão. Uma tranquilidade
perturbante toma conta de si e, finalmente, num acesso de luz, Álvaro apercebe-se que,
afinal, não há mal nenhum em não conseguir ler todos os livros do mundo, nem tê-los
todos em casa, nem muito menos tê-los organizadamente numa única prateleira em
Lisboa. Todos os livros serão lidos. Se não por ele, sê-lo-ão por outro alguém qualquer.
E, no fundo, não será isso o mesmo?
Começa a descer a rua. Claramente, como nunca antes, Álvaro tem vontade de viver.
De regressar à comodidade do lar, aos seus livros, ao prazer do seu viver.
E talvez, quem sabe, ir à livraria mais frequentemente.
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3º Prémio
Antes que o sol se ponha
Helena Dias Duarte Fonseca - 11º B
As horas circundam-me insultuosamente longas, deixando para trás o
inconfundível sabor da tristeza a que me habituei. Perseguem-me desde que
partiste, Daniel! Maldita a hora em que decidi regressar a casa para convencer
meu pai que tomava a decisão certa. Maldita a hora em que te deixaste partir.
Malditas, malditas, malditas!
Deformas-me a alma…Seria de facto necessária uma tão precipitada atitude?
A vida é feita de escolhas, Daniel, e a maior…A maior tomaste-a tu por mim…
Deixei a minha casa e fiquei com a tua. Tinhas de escolher tão solitário e seco
repouso…Pois bem, segui as tuas pegadas e deixei que o deserto me matasse
como matou a ti.
Aos poucos, toda a minha suculência se esgota. Foi em tempos um verde e
húmido oásis de sapiência e alegria que tu tão repentinamente murchaste.
Porquê?
Verdadeiros habitantes das terras abertas, Abbuh, Mubarak, Farid e Ali levam-
me onde a minha curiosidade deseja. Faz já dois anos que andamos nesta
demanda e se nos primeiros dias procurava consolo, hoje procuro esquecer a
tua curta e insignificante existência neste sítio.
Abbuh conta-me histórias suas e do seu povo para me fazer olvidar a minha.
Seria capaz de reconhecer a sua numerosa família apenas pelos ínfimos
pormenores que deles me dá. Poderia andar pelos corredores compridos e
forrados de azulejos coloridos do seu lar e partilhar as jóias ofuscantes e
missangas transparentes das suas irmãs sem sequer me sentir deslocada.
Mubarak tem-me ensinado tudo o que até agora sei sobre a sua religião,
enquanto Farid nos dá intensivas palestras sobre como brincar com o fogo.
Todas as noites, quando montamos acampamento, acende uma fogueira para
evitar o surpreendente frio que por aqui se sente. Começa por sussurrar e estalar
os dedos e aos poucos eleva a voz como se cantasse, para logo depois fazer
flamejar a madeira. Junta-se com a chama numa vertiginosa dança que por
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vezes lhe beija as mãos e os pés, passando a sua língua flamejante, encarnada
e febril pela tez queimada do Sol. Murmuram palavras sedutoras na língua do
fogo, prosseguindo com aquela valsa silenciosa e sibilante que magnetiza os
olhos dos que, por não serem descendentes da tribo vermelha, não a podem
dominar.
Juntamo-nos depois à sua festa íntima e exclusiva, consumando o ritual com
cânticos e histórias, sentados sob as nossas pernas em esteiras de palha velha
e crepitante que mostram sinais de grande uso. Comemos e bebemos e
brindamos à vida como se as estrelas do céu estivessem alinhadas e com isso
trouxessem paz, sorte e harmonia.
Antes de recolhermos às gélidas e familiares tendas, Ali conta-nos lendas de
ladrões e salteadores que, no fim de todos os infortúnios, encontram grutas
perdidas repletas de ouro, prata e pedras preciosas com cores vivas e dos mais
diversos formatos e tamanhos.
Não fossem estes contos e o paladar das danças do fogo e sonharia contigo.
Acabo por afogar a tua memória nas areias movediças do tempo para de manhã,
com a indesejada alvorada, a receber de volta. Encontro no sono o meu único e
sublime refúgio: imagino-me como a chefe de todos aqueles bandidos sem rosto
que escuramente respondem às minhas preces e realizam os meus pedidos com
a imediata rapidez de quem não se encontra desperto.
Mas a manhã ressurge serena e límpida, devolvendo ao mundo a sua
lacrimosa claridade. Leva consigo o sossego da noite e esconde a luz das
estrelas que, incompreendidas, se deixam desalinhar pelo manto negro da sorte.
Desfaz-se com ela a harmonia e a vida retoma o seu rumo.
E as horas vertem e escorrem e pingam pelos meus dedos, inundando a rude
aridez da planície, tal vinho que vaza do cálice acabado de tombar.
Lá à frente, na fundura, a imagem de pedra lustrosa e esmagada perturbada
pelo calor encontra formas incalculadamente familiares e impossíveis, que fazem
duvidar da razão. Todos sabemos o que à frente se encontra ainda que seja
diferente para cada um: se se vê areia, é areia; se se vê mar, é mar. Lembro-me
que vias pássaros, Daniel. Já eu vejo tempestades e furacões: vejo-te a ti.
Deambulamos e persistimos no soluço atrapalhado do carrossel, dando as
voltas que a vida nos manda dar. Subimos, descemos, mas o carrossel não para,
movido pelas perras engrenagens que o fazem mexer.
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A incansável fortuna preta rodopia ao nosso lado como a Lua gira à volta da
Terra. Mantém-se atenta, mas suficientemente perto para nos causar assombro
quando notamos a sua presença.
Chego ao fim de mais um dia cansada com um sentimento vago de
ambiguidade e imprevisão que traz pendendo a minha vida por um fio. Pouco
dele resta presentemente: desfiado e mutilado, chego à conclusão que falhei. A
linha ténue e fina que me segura impede-me de ser alguém e de viver. Já só
posso morrer.
Vejo o crepúsculo débil e saturado de nuvens, ilusão e devaneio à minha
frente como o velho enfermo vê a luz que o guiará ao céu.
Os camelos continuam a dirigir-nos pastelosamente para o nosso próximo
destino, por enquanto perdido e distante.
Finalmente sou livre, Daniel! O vento que me corre nas veias secou-me o
sangue e a areia que perenemente transporta lima-me as arestas e arredonda-
me os bicos. Morrerei com eles no horizonte quando já nada por polir restar.
Chegou o momento em que giro a ampulheta e, gota a gota, ela recomeça a
contagem do tempo. Já me encontrei mas voltarei a perder-me…
A algum lado acabarei por chegar antes que o Sol se ponha.
Agora o meu coração pertence apenas ao deserto.
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Menção Honrosa
Ana Catarina Baptista - 11º D
Era uma noite de verão, daquelas noites em que as estrelas da cidade
brilham quase tanto como as das pequenas vilas do interior. Quem tivesse um
minuto para desperdiçar, encontraria no mapa estrelar o caminho até norte,
começando por encontrar a ursa pequena correndo ao encontro dos braços de
sua mãe. Mas ele não tinha sequer um segundo para dar. O som dos seus
passos erguia-se tal coluna greco-romana do Partenon no Saara. As ruas
encontravam-se silenciosamente desertas, e os poucos vultos que iam surgindo
aqui e ali, não passariam talvez de meras ilusões da sua mente.
Era altura de parar e refletir, de abrandar o ritmo da passada e respirar.
Devia realmente ir? Afinal de contas tinha sido convidado por isso estava em
todo o seu direito de aparecer. Mas algo no seu subconsciente lhe dizia que ela
só o convidara por educação, por regras de etiqueta, por ser o correto, a decisão
mais adulta, por piedade… não, não, não… era um brinde aos velhos tempos,
um golo das antigas memórias, um reviver doloroso dos pequenos prazeres de
viver.
Retomou o passo acelerado, sentindo o contraste da calma com que as
águas cansadas do rio descansavam no seu leito, beijando suavemente o reflexo
da lua, uma mera impressão do astro luminoso que Galileu séculos antes
chamara de “imperfeito”. Oh não, Galileu nunca conhecera a sua lua! A perfeição
dos seus continentes claros e acidentados, as suas puras imperfeições; os seus
mares planos e escuros, as suas inexistentes desigualdades do seu ser, o
suporte que ela lhe dava, o calor que as suas madeixas do cabelo escuras e
vivas lhe transmitiam. A sua bela lua, a sua amada lua, por quem detinha tão
grande ligação gravitacional, tão linda atração. A sua amada lua, a sua bela lua,
que nunca colidira com o seu pobre ser, que apenas o rondava na sua órbita,
nunca permitindo a realização do amor entre um mero humano como ele e uma
inalcançável deusa como ela.
O calor da noite sugou um leve suspiro, como se de um triste assobio se
tratasse. Mera ilusão, fora tudo uma bela ilusão. Fora um tolo em imaginar um
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futuro com ela, fora um idiota em pensar que amor tão imaculado como o deles
ficaria gravado nas constelações. Recordava todos os ínfimos momentos como
se fossem pequenas estrelas cadentes: a troca de olhares num museu de arte
contemporânea, os preguiçosos domingos de feira em feira procurando pelos
clássicos, as caminhadas junto ao rio para filmar o brilho do Sol nas cristas das
lentas ondas, os discos de vinil desarrumados perdidos debaixo do sofá de lona
amarela, todos os bolos queimados que deixavam a cozinha coberta de farinha,
os beijos à pressa para apanhar o metro de manhã, as longas noites de trabalho
à procura das micas com os negativos... tantos ossos no esqueleto humano e
nenhum conseguia suportar a saudade que sentia no seu pesado coração.
Ela convidara-o: não lhe interessava o motivo, porque vivia mais feliz cego
pelo cristalino véu que permitia vê-la mais uma vez.
Olhara o relógio: 22h18. Estava 18 minutos atrasado, mas já via no fundo
da rua pouco iluminada, um grande sinal em cores néon e letras a manuscrito
harmoniosamente entrelaçadas com as iniciais JJ, rodeado por uma limitada
multidão.
Alguns conhecidos, um aperto de mão aqui, um abraço acolá, um “como
tens estado?”, um “há tanto tempo que não te via!”, seguidos de conversa de
ocasião e respostas acanhadas. Depois vieram as longas opiniões sobre filmes
franceses de pouca qualidade com largos copos de vinho tinto na mão e
gargalhadas genuínas entre estranhos recentemente apresentados.
O convívio não lhe tinha permitido uma atenta análise às fotografias
espalhadas cuidadosamente de forma descuidada pelas paredes de tijolo mal
pintadas num tom de branco sujo.
Ela tinha talento. Ele sempre o dissera, embora ela não lhe reconhecesse
tal opinião por ele ser extremamente influenciável, encantado sob o seu feitiço,
magia negra que o fazia ver as fotos dela como as mais bonitas do universo
inteiro.
Mas havia uma fotografia que captara a sua atenção como nenhuma outra
das que estavam por ali expostas. Era a preto e branco, naqueles tons de cinza
dos dias chuvosos de outubro, quando as nuvens carregadas de gotículas de
água libertam as suas tristes lágrimas sobre nós, num pranto de misericórdia.
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Era uma 13x18, fotografia relativamente pequena quando comparada com
as outras em seu redor, mas suficiente grande para lhe abrir ferida que tão
ansiosamente queria sarar com o facto de ter aparecido naquela tão esperada
exposição.
Era um homem de rosto desconhecido, cortado pela moldura, de pernas
cruzadas, meditando atentamente sobre o jornal que jazia no seu colo, sentado
no usado sofá de lona amarela enquanto o brilho que entrava pela janela
iluminava aquela antiga melancolia de recordações.
O sol brilhava com a mesma cor e intensidade que o pranto solene das
nuvens de outubro. Poderia ter sido ele, sentado também tantas vezes naquele
sofá a ler o jornal nos sábados de manhã, o homem sem rosto daquela fotografia,
a ocupar o lugar na vida dela. Oh como era injusto alguns homens poderem ser
astronautas!
- É bonita?
Uma voz tão distante, mas tão familiar, entoava aquelas palavras nas suas
costas. Ele voltou-se, e ali estava ela, com um longo vestido cinzento até aos
pés e o cabelo deliciosamente entrelaçado como se uma coroa na sua cabeça
fosse.
- Não. É linda.
Não a fotografia. A fotografia para ele era horrível, era um choque com a
realidade de um presente que já não lhe pertencia. Ela, ela era linda. A sua bela
lua, a sua amada lua onde outrora encontrara todo o prazer de viver.
Ela sorria-lhe com os seus delicados lábios vermelhos, mas ele não
conseguia sorrir-lhe de volta. Tinha havido uma colisão de universos paralelos,
as constelações estavam instáveis, a ursa maior já não indicava o norte e Galileu
não conseguia avistar o imperfeito astro sem lhe virem as lágrimas aos olhos.
O prazer de viver tinha-se perdido numa noite de verão em que a cidade
das estrelas já não parecia brilhar só para ele, pois a lua já não se encontrava
no seu céu.
17
Um acontecimento insólito
Bhavini Hasmudal Vassaramo - 11º N
Era uma vez um casal. O amor entre eles pairava sobre os céus. Já fazia
10 anos que estavam casados, infelizmente ainda não tinham qualquer criança
e já estavam a entrar quase no seu décimo primeiro ano de casamento. Diogo e
Maria estavam um com o outro e esperavam muito ter um filho antes de
completarem 11 anos de casamento porque eles estavam sob pressão de
amigos e familiares para se divorciarem. Mas estes não pretendiam acabar com
este casamento pois o vínculo de amor entre estes era enorme e incalculável.
Após terem passado alguns meses um dia, enquanto Diogo voltava do trabalho,
este viu a sua mulher a passear pela estrada com um homem.
O homem tinha os seus braços ao redor do pescoço da sua mulher e estes
pareciam muito felizes. Por mais de uma semana, Diogo viu o mesmo homem
com a sua mulher em vários lugares e uma noite, enquanto Diogo voltava do
trabalho, este viu o homem deixá-la em casa depois de lhe dar um beijo na
bochecha. Diogo estava muito irritado e triste, mas decidiu não falar sobre o
assunto com a sua mulher.
Após dois dias, Diogo chegou bastante cansado de um dia de trabalho
agitado. Então, logo que chegou a casa, decidiu beber um copo de água. No
momento em que estava a beber água, o telefone começou a tocar. Diogo
atendeu o telefone e a pessoa do outro lado disse:
-"Olá, querida, eu vou estar na tua casa esta noite para te ver como
prometido." – ao ouvir isto Diogo desligou imediatamente o telefone.
Era uma voz masculina e tinha a certeza de que a pessoa era o homem
com quem sempre tinha visto a sua mulher. De repente, este sentiu-se inseguro
com a ideia de ter perdido a mulher para outro homem. O copo de vidro caiu da
sua mão e quebrou-se em pedaços.
Ao ouvir isto, Maria entrou a correr na sala e perguntou:
- "Está tudo bem?"
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Com raiva, Diogo deu um empurrão a sua mulher e esta acabou por cair.
Maria não se movia, nem se levantava.
O ambiente que de seguida se gerou foi fatal. Lá fora chovia imenso,
pairava tristeza por todo o lado, parecia que o mundo estava prestes a acabar,
ou que uma forte tempestade estava prestes a chegar. Houve um enorme
silêncio e parecia que estava tudo chocado com aquilo que sucedera.
Diogo percebeu então que a sua mulher tinha acabado de cair por cima
dos pedaços de vidro do copo que ele tinha acabado de partir. Na verdade, um
grande pedaço de vidro a tinha perfurado. Diogo sentiu a respiração, o pulso e
os batimentos cardíacos da sua mulher, mas esta estava sem vida. Numa
confusão total, Diogo viu um envelope na mão dela. Pegou nele, abriu-o e ficou
chocado com o conteúdo - era uma carta. Esta dizia:
-"Meu querido Diogo, as palavras não podem expressar como me sinto,
portanto decidi anotá-las. Eu tenho ido consultar um médico toda semana e eu
queria ter certeza antes de te dar a notícia.
O médico confirmou que estou grávida de gémeos e os nossos bebés já
têm dois meses. O mesmo médico é o meu irmão há muito perdido e com quem
perdi contacto depois do nosso casamento. Agora que nos encontramos ele
decidiu que irá cuidar de mim e dos nossos bebés e nos irá dar o melhor sem
cobrar um cêntimo.
Ele também prometeu jantar connosco hoje. Obrigada por estares sempre
ao meu lado, espero que estejas bastante contente.
A tua querida mulher, Maria’’.
A carta caiu da mão de Diogo. Houve uma batida na porta e o mesmo
homem que ele tinha visto com a sua mulher entrou e disse:
- Olá Diogo, suponho que estou certo. Eu sou o Mário, o irmão da sua
mulher.
De repente, Mário notou a sua irmã deitada numa poça de sangue. Ele
correu e levou-a para o hospital. Estava em coma e tinha acabado de perder os
seus dois gémeos.
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Após a tragédia, Diogo percebeu que nunca se deve ser precipitado a
tomar ações desnecessárias quer num relacionamento, num casamento ou
mesmo na vida; pelo contrário, devemos questionar o nosso parceiro ou amigo
ou qualquer outra pessoa sobre o que vimos ou ouvimos sobre estes. Todos nós
temos os nossos defeitos e todos nós cometemos erros, mas não devemos ser
precipitados a julgar os outros. Na verdade, nem tudo o que nós vemos ou
ouvimos sobre alguém será verdadeiro. Por isso, devemos aprender a nos
controlarmos em qualquer condição ou situação, independentemente daquilo
que vemos ou ouvimos, porque a vida é bela.
20
Liz
João Silva Pestana 11º B
Novembro vai a meio, o chão das ruas coberto de folhas, a brisa fresca de final
de tarde e o cheiro a castanhas assadas pintam um retrato típico da época.
A caminho de casa, entro num café para beber um sumo junto ao balcão. Na
realidade, queria mesmo era, ao entardecer, apreciar aquela paisagem que de
tão conhecida não era reais prezada pelos que ali passas a. m quotidianamente,
o rio Liz.
Sento-me, Ajeito o casaco. Contemplo-o... Contemplo os últimos raios de Sol,
que rapidamente se são desvanecendo no horizonte, cedendo lugar à noite,
reino obscuro onde a Lua, rainha, toma para si as águas deste rio.
Na outra margem, um casal de namorados acaba de se sentar para o recolher
da vida diária, talvez, a minha mesma intenção.
Diante deles e de mim há um rio em ruínas.
Paralisado, mais areia que água, daqui a uns anos não existirá mais...Com ele
vai embora a tão delicada vida que luta para merecer o seu lugar naquela cidade
que aos poucos se transforma num amontoado de cimento revestido por flores
postiças.
Ao beber o meu sumo confiro novamente a paisagem. Folhas mortas bóiam sem
pressa de chegar ao outro lado da margem. Sinto a sua vida a pingar aos poucos
para a outra parte da ampulheta criada pelo Homem. A nossa estupidez
grosseira mata-o...
Abstraído em recordações, saio do café e subo a rua calçada de pedras selhas
e irregulares, coberta de asfalto, ladeada por casas velhas de paredes
desbotadas. Olho para o rio mais uma vez. Não choro. Contenho as lágrimas.
Recomeço a subida.
Vou devagar.
Já não há nem a pressa, nem a alegria do Passado.
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Um grão do tamanho da vida
Luís Filipe Desmet Silva Dias - 10º 1ª EsRad
A sua vida nos últimos dois anos não tinha passado de uma permanente
luta pela sobrevivência.
De emprego mal pago em emprego mal pago, saltava entre profissões
sempre numa vã tentativa de auferir um ordenado que lhe permitisse ter uma
vida independente, e poder finalmente sair de casa dos seus pais.O curso de
agronomia que fizera revelara-se um mau investimento de dinheiro, tempo e
dedicação, do qual não conseguia obter retorno num país onde a agricultura
deixara de existir.
Por isso, ali se encontrava ele a caminho do sul, ia ter com o seu tio
Alberto, irmão da sua mãe, que vivia há muitos anos na África do Sul onde tinha
um negócio de reparações domésticas que ia de vento em popa, e lhe
comunicara que era bem vindo.
Entrar no continente africano por Marrocos e começar a descer.
Mauritania, Mali, Niger, Nigéria por ali abaixo, até ao destino que a vida lhe
impusera. Pela expetativa de chegar láà África do Sul e saber que iria ser bem
recebido pelo seu tio, mas também, muito, pela épica viagem que o esperava.
Atravessar o continente africano desde o norte até chegar aonde o oceano
Atlântico se encontra com o oceano Índico.Contar com os imponderáveis, saber
de antemão que são muitos mas saber também que chegará lá, à África do Sul
e a um destino que lhe proporcionaria uma vida seguramente melhor do que a
que tivera nos últimos anos.
A aventura começa logo por ultrapassar o imenso deserto do Sahara.
Oceano de areia e silêncio a perder de vista, onde o olhar e os pensamentos
navegam ao sabor do sol e se perdem num horizonte de ondas de calor.Esse
imenso deserto composto por incontáveis grãos de areia que, quando se
levantam, impelidos por fortes ventos, nos oferecem o espectáculo único que é
uma tempestade de areia. Começamos por ver ao longe uma imensa massa
amarela que se vai aproximando devagar, muito devagar, cujas dimensões não
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conseguimos perceber. À medida que nos vamos apercebendo da sua dimensão
e da sua proximidade, damos conta que somos pequenos, muito pequeninos, e
que a dimensão da nuvem de areia vai muito para além do que conseguimos
abarcar com o nosso olhar. Aí, normalmente, é tarde para tentar fugir para onde
quer que seja, pois estamos rodeados de areia por todos os lados. Literalmente
por todos os lados, pois até por baixo dos nossos pés existe areia. Quando tal
nos acontece, resta resguardarmo-nos o melhor possível e esperar
pacientemente que a tempestade passe.
E foi o que lhe aconteceu logo no início da sua travessia vertical do
continente africano.
Passada a tempestade de areia, e o susto que sempre acarreta a quem
vive tal experiência pela primeira vez, pôs-se a caminho de novo, direcção
sul.Andou no entanto poucos quilometros, pois de todos os incontáveis grãos de
areia trazidos pela tempestade, houve um, apenas um grão, que se alojou num
componente electrónico do carro. O seu confiável companheiro de viagem
estava irremediavelmente avariado, ainda por cima numa 6ª feira !
Não teve outro remédio senão fazer com que lhe rebocassem o carro para
Ouarzazate, cidade onde nem planeara passar, mas que era a que mais perto
ficava do local onde o seu carro avariara.Chegado à cidade e conseguido um
quarto num pequeno e simpático hotel, tratou de ir procurar uma oficina onde lhe
reparassem o carro o mais rápido possível, para poder seguir a sua viagem para
sul.
Conseguiu na realidade encontrar uma oficina, onde foi recebido pela filha
do proprietário, que se encontrava fora a reparar uma avaria num camião. Foi
inevitável reparar que ela era uma lindíssima jovem, com os olhos mais escuros
que o mais escuro azeviche, onde conseguiu ver um reflexo inexplicável e se
perdeu por trás dele.A informação que ela lhe deu não foi a que ele mais quereria
ouvir. Só poderiam começar a ver qual a avaria que o seu carro tinha na 2ª feira,
pois ia haver uma festa familiar nesse fim de semana e estava fora de questão
trabalhar no sábado.
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Não teve outro remédio senão encarar o facto de que teria de passar o
fim de semana em Ouarzazate, e esperar que na 2ª feira o problema do seu
carro fosse resolvido, para poder seguir a sua viagem para sul.
Durante o fim de semana passeou pela cidade, conheceu gente, comeu e
bebeu lindamente e foi-se apercebendo da simpatia das pessoas com quem se
ia cruzando e falando no hotel, nos cafés e nos restaurantes.
Chegou 2ª feira e dirigiu-se à oficina, onde já tinham desmontado o seu
carro e localizado a avaria. O dono da oficina, uma pessoa muito simpática e
extrovertida com quem simpatizou de imediato, informou-o que estava já a tratar
de encomendar uma peça nova e que assim que a tivesse, a reparação seria
rápida.Saiu da oficina sem se preocupar muito com o facto de ter de ficar na
cidade mais umas horas, ou talvez até ao dia seguinte, pois estava a sentir-se
muito bem ali e, na realidade, também porque vira de novo os olhos de azeviche
que o puseram bem disposto.
Dirigiu-se a um café para beber algo que lhe matasse a sede, pois o calor
marroquino começava já a fazer-se sentir, sentou-se numa esplanada onde
encetou uma conversa com um homem que o cumprimentou e puxou conversa
com ele. Conversa puxa conversa e os temas foram-se sucedendo até que se
entrou na questão profissional. O seu interlocutor informou-o de que era
responsável de um departamento do poder local da cidade, relacionado com o
desenvolvimento agrícola e que tinha entre mãos um projeto que necessitava da
orientação de um engenheiro agrónomo, e que estava com muita dificuldade em
conseguir encontrar alguém que preenchesse os requisitos para ocupar esse
cargo. Ele informou-o que a sua formação era exatamente em agronomia mas,
talvez por pudor, não lhe disse que não conseguia emprego nessa área.
Finda a conversa e o chá de menta, despediram-se e o seu interlocutor
deu-lhe um cartão de visita, dizendo-lhe que se precisasse de algo durante a sua
estadia em Ouarzazate, fosse ter com ele.
Saiu do café e andou com passos perdidos pela cidade, a fazer tempo
para voltar à oficina, vindo-lhe ao pensamento volta e meia os olhos de azeviche
e a conversa que tivera na esplanada.
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Quando voltou à oficina ao fim da manhã, o dono deu-lhe uma notícia que
ele encarou de forma serena, contrariamente ao que seria de esperar para
alguém que quereria seguir viagem. A peça que o carro precisava tinha de vir do
Japão, e demoraria pelo menos três dias para ser entregue. O dono da oficina,
logo após lhe dar a notícia que esperava o fosse pôr com os cabelos em pé,
convidou-o para ir jantar a sua casa nessa noite, no intuíto de amenizar o que
presumira vir a ser um drama para ele.Mas tal não aconteceu, sorriu para o
mecânico, pôs as mãos nos bolsos das calças e, encolhendo os ombros, disse-
lhe:
- Se é o que há, é o melhor que há !
Dirigiu-se para a porta da oficina mas, quando estava quase a sair, voltou-
se para trás e perguntou:
- A que horas é o jantar ?
Voltou a deambular pelas ruas e lindos jardins de Ouarzazate, sentia-se
bem disposto e dois pensamentos continuavam a bailar-lhe na cabeça. Os olhos
de azeviche e a conversa da manhã no café.
Repentinamente, chamou um táxi e pediu para o levar à morada que
constava no cartão de visita que tinha no bolso.
Agora, passados dez anos, olha para os seus dois filhos a brincar num
jardim de Ouarzazate e vê em ambos olhos de azeviche iguais aos da sua
mulher, mãe deles.
A cidade, por ficar à beira do deserto é por vezes palco para o espetáculo
que são as tempestades de areia, origem da sua permanência ali.
Ele gosta de ficar na rua a olhar para aquela imensa parede de triliões de
grãos de areia trazidos pelo vento, e pensar quantos deles poderão ser grãos de
felicidade para alguém.
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A caneta mágica
Susana de Jesus Martins – EFA-B
Era uma vez...
Uma rapariga, com cabelos cor de areia e uns olhos dourados brilhantes,
chamada Mória, que vivia numa agradável Vila, com o nome de Vila Verde, que
se encontrava localizada num solarengo e verdejante vale. Aí vivia desde o dia
em que nascera, há 15 anos atrás, e este encantador lugar era todo o seu
mundo, tudo o que ela alguma vez conhecera. Ela era muito feliz ali, estava
sempre incrivelmente alegre e sorridente, e a sua alegria era contagiante...Se
alguém se podia considerar abençoado com o prazer de viver, esse alguém seria
Mória!...
Muito longe dali, numa Cidade um pouco cinzenta e triste, vivia um jovem
rapaz, de seu nome, Rayur. Tinha 20 anos, uns olhos verde-cinza, repletos de
tristeza e cabelos tão negros, quanto as asas de um corvo. Nunca sorria e tinha
sempre uma aura de melancolia à sua volta. Desde os 5 anos, que estava
sempre triste e os seus pais, por mais que tentassem, não conseguiam ajudá-lo.
Ninguém sabia o porquê da sua angústia constante, nem como solucionar este
problema. Por fim, os seus pais resolveram que o ideal seria uma mudança de
ambiente e procuraram um lugar mais agradável para se viver. Depois de muito
procurar, encontraram finalmente o lugar ideal, que mais não era do que a Vila
de Mória. Ficaram então a viver numa aconchegante e bonita casa próxima à
Vila.
Uns meses depois, houve uma festa, estilo feira popular, na qual Rayur e
Mória se conheceram, após chocarem acidentalmente um com o outro.
Conversaram muito e andaram juntos nas diversões durante todo o tempo que
estiveram na festa. Mória estava muito feliz e riu muito, com verdadeira
satisfação durante toda a noite. Os dois ficaram muito amigos e a partir daí, iam
juntos para todo o lado e conversavam por horas a fio, mas ele continuava a não
conseguir esboçar sequer um sorriso. Tempos depois, ela fez 16 anos e
convidou-o para a sua festa de aniversário. Foi uma festa muito agradável e
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prazeirosa, ela estava muito satisfeita, e ficou especialmente feliz, porque Rayur
apareceu e levou-lhe um belo ramo de flores silvestres. Por sua vez, ele quase
conseguiu sorrir, pela primeira vez em muito tempo. Um ano depois, na festa dos
17 anos, a avó materna, uma senhora muito simpática e carinhosa, por quem
Mória nutria grande apreço, ofereceu-lhe uma prenda muito especial. Uma
caneta, herança de família, passada de geração em geração, ora de mãe para
filha, ora de avó para neta. Era uma caneta simples, mas bonita, prateada e com
uma lista dourada. Mória gostou bastante, mas não sabia que o que a tornava
realmente interessante era o facto de ser mágica. A avó preferiu não lho dizer. A
seu tempo e quando a necessidade surgisse, ela estava certa de que a sua
querida neta, o acabaria por descobrir...
O tempo passou e, embora a amizade entre os dois jovens fosse
crescendo, Mória estava cada vez mais triste, pois tinha pensado que o poderia
ajudar a sentir-se feliz, na sua companhia. Houve momentos em que,
efetivamente, até conseguiu que surgisse um ligeiro sorriso no rosto de Rayur,
mas foram raros, e a velha melancolia nunca o abandonou. Em vez disso, ela
própria se sentia cada vez mais a cair numa tristeza profunda, e o seu riso antes
constante, tornava-se agora mais raro. Até que um dia resolveu usar a caneta,
que lhe tinha sido oferecida pela avó Isaura, para escrever uma espécie de diário
e sentiu-se instantaneamente mais aliviada. Não só passou a escrever sobre o
que a preocupava, como também sobre os seus desejos mais profundos. Teve,
então, a ideia de escrever acerca de Rayur, como se fosse uma estória, na qual
ele se tornava em alguém muito feliz, com um sorriso doce e uma gargalhada
alegre... Não aconteceu logo, mas aos poucos, as palavras escritas com aquela
caneta mágica, e vindas do fundo do coração, foram tomando forma na
realidade... Quanto mais tempo passavam juntos, mais desaparecia a “nuvem
cinza” que o envolvia. Eles tornaram-se os melhores amigos e Rayur sorria cada
vez mais. Os pais dele estavam muito satisfeitos e gratos pelo bem que aquela
amizade fazia ao filho. Finalmente, as suas preces tinham sido atendidas…
Quando Mória fez os seus 18 anos, ele foi capaz de partilhar da felicidade
dela. Nesse momento, mais do que com sorrisos, brindou-a finalmente com a
sua primeira gargalhada, e foi a mais agradável e cristalina gargalhada que ela
ouviu em toda a sua vida, tanto que lágrimas de felicidade correram pelo seu
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rosto. Ela teve assim, a melhor prenda que lhe podiam dar, nesse aniversário.
Com o tempo, a grande amizade que os unia foi-se transformando em algo
mais... Assim, dois anos depois, Rayur casou-se, numa simples, mas bela
cerimónia, com aquela que o conseguiu fazer descobrir a beleza e a alegria de
viver!..Claro que, não terá sido por certo, apenas fruto da caneta mágica, aquilo
que permitiu esta vitória, mas terá sido também o resultado de uma amizade
verdadeira, da paciência, compreensão, tolerância, empatia, apoio incondicional
e amor puro e desinteressado que unia estes dois jovens. Provavelmente, foram
felizes para sempre, pois eles construíram as bases da sua relação com os
alicerces adequados...
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Estrada perdida
Vicente Morais Magalhães - 10º A
Um homem caminha eternamente pelo deserto. Eternamente a cumprir a
sua grande travessia, em linha reta, sem desvios ou bifurcações: não há outro
caminho. Ele segue avante, sem sequer olhar para trás, sem pensar no que
atravessou, no que foi antes de agora. Fora da vista, inalcançáveis montanhas,
lá longe, longe... No campo de visão, um quadro dividido em dois: uma imensa
planície branca, maciça, expande-se até ao firmamento, azul forte, paredão que
emana luz e calor: ao meio, o horizonte (os olhos sempre com a linha do
horizonte...), linha matriz, guia absoluta, a Mãe, sempre ao fundo, sempre
longe...
O seu corpo escanzelado, arqueado para a frente – mas a cabeça na
dianteira – pesa sobre os seus pés que se arrastam pelo chão, contra o atrito,
vermelhos do sangue. Mas não oscila, qual chama metafísica, que fica hirta e
constante contra o vento que, embora selvagem, é impotente quanto à força de
um lume eterno. A mais forte luz penetra a pele negra e os músculos das pernas
que se contorcem e se retesam, mas que não paralisam o seu movimento
ininterrupto. A pele transpira. O casaco, sujo e velho, desliza dos seus ombros,
ficando quase despregado. As calças acompanham, lentamente, a cada passo,
o movimento das pernas. O suor escorre pela sua face carnuda. Mas ele,
absorto, nem se apercebe que desliza água das suas têmporas, nem a feição
muda. Nem os beiços, descaídos e gretados, falam. Na mão direita traz uma
trouxa pelo chão, que, roçando o solo, levanta uma nuvem dançante de poeira
branca, que se desvanece no ar e no tempo. Este trabalho, severo, rigoroso; ele
não sente a dor, não é sensível, como se olvidasse a sua existência terrena, se
desprendesse do tato e do sentimento, se libertasse do seu corpo: como se fosse
espírito e estivesse no infinito. Caminha gradualmente, sem um ritmo, como se
levitasse. Caminha em direção ao horizonte, uma miragem. Flutua sobre a terra
e flutua sobre o pensamento.
Observando de perto, os seus olhos são como a projeção de um filme:
vendo para dentro, abre-se toda a paisagem, infinda e profunda, viva e
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contrastante – os olhos como portas dum mundo escondido na mente. Um
mundo todo, completo e efervescente, explode. Mas desse mundo escapa
apenas uma singela chama, que arde nos seus olhos – fogo esse que retumba
na consciência do espetador.
Mas ele nem sabe o que verá quando chegar. Ele caminha sem se
desgostar e sem se deleitar. Ele vive laborando, sem destino, sem desejo, sem
engano, sem perda. Caminha eternamente.
Contudo, se, durante a travessia, avistasse um banco, ele sentar-se-ia.
Se estivesse pousado um copo de limonada numa mesa, ele o agarraria, o
beberia de um trago e pediria que o enchessem novamente. Se passasse um
ginasta, ele assistiria de bom grado às suas acrobacias. Se um rio corresse, ele
tomaria longos banhos e beberia a sua água com grande deleite. Se um músico
estivesse tocando sozinho, ele chegaria junto dele para o ouvir. Se houvesse
uma árvore de copa larga, ele repousaria na sua sombra, encostado ao tronco.
Se estivesse no chão uma bicicleta, ele pegaria nela e andaria nela com grande
destreza e agilidade. Se houvesse meninos a correr na relva, ele juntar-se-ia a
eles e brincaria com lhano contentamento. Se houvesse um prado, ele deitar-se-
ia no chão e cheiraria as flores a plenos pulmões. Se uma menina, sentada no
chão, estivesse aprendendo a ler a história de um livro, ele acercar-se-ia dela e
atentaria em todas as palavras proferidas. Se corresse um búfalo, ele caçá-lo-ia
com as próprias mãos e não pararia até a besta se cansar. Se se aproximasse
uma tempestade de areia, ele com as unhas das mãos e dos pés cavaria uma
toca. Se uma mulher acorresse a ele, ele se apaixonaria por ela e lhe diria: “Te
adoro...” Se, à noite, estivessem deitados e ela se levantasse, ele observaria o
seu perfil projetado pela vela na parede e diria: “Te adoro...” Se acordassem de
manhã, iriam ouvir, junto às árvores vigorosas, o canto dos pássaros durante o
seu ritual e ele lhe diria “Te adoro...” E se ele a beijasse ternamente, ela não se
importaria que fosse eterno. E se dormissem eternamente, ele diria, pelo
contrário, “etereamente”. E se, durante o dia, fossem comer com os amigos, eles
os dois não parariam de se mirar. E os amigos, griots, buscariam a kora e os
outros instrumentos e tocariam e cantariam uma música, contando a história do
seu grande amor. E eles se beijariam eternamente.