ficha tÉcnica · ana domingos (universidade de cabo verde) arlindo vieira (universidade de cabo...

84

Upload: trinhdung

Post on 09-Feb-2019

225 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França
Page 2: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

FICHA TÉCNICA

TítuloII Colóquio Cabo-verdiano de Educação – CEDU 2015Políticas e Práxis da Educação nas Perspetivas e em Contextos Pós-coloniais

OrganizadoraAna Cristina Pires Ferreira

RevisãoAutores

Concepção GráficaGCI - Gabinete de Comunicação e Imagem da Uni-CV

Coordenação EditorialDSDE – Elizabeth Coutinho

Edições Uni-CVPraça Dr. António Lereno, s/n - Caixa Postal 379-CPraia, Santiago, Cabo VerdeTel (+238) 260 3851 - Fax (+238) 261 2660Email:[email protected]

Copyright©Organizadora, autores e Universidade de Cabo Verde

ISBN 978-989-8707-23-9

Praia, abril de 2016

UNIVERSIDADE DE CABO VERDEScientia via est

www.unicv.edu.cv

Page 3: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

II COLÓQUIO CABO-VERDIANO DE EDUCAÇÃO – CEDU 2015“Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais”

Universidade de Cabo Verde - Campus do Palmarejo, Praia, 24 e 25 de Abril de 2015

Comissão Organizadora Ana Cristina Pires Ferreira (Universidade de Cabo Verde)Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde)Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde)Eurídice Amarante (Universidade de Cabo Verde)Lionilda Sá Nogueira (Universidade de Cabo Verde)Magno Rocha (Universidade de Cabo Verde)Mariana Faria (Camões, I.P./ Universidade de Cabo Verde)Sara Spínola (Universidade de Cabo Verde)

Comissão CientíficaAdriana Carvalho (Universidade de Cabo Verde)Almerindo Afonso (Universidade do Minho)Ana Cristina Pires Ferreira (Universidade de Cabo Verde)Arlinda Cabral (CES-Universidade Nova de Lisboa)Bartolomeu Varela (Universidade de Cabo Verde)Bento Duarte Silva (Universidade do Minho)Carlos Bellino Sacadura (Universidade de Cabo Verde)Carlos Spínola (Universidade de Cabo Verde) Corsino Tolentino (Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde)Crisanto Barros (Universidade de Cabo Verde)Elias Moniz (Universidade de Santiago)Fernando Serra (Universidade Técnica de Lisboa)Filomena Fortes (Comité Olímpico Cabo-verdiano)Germano Lima (Universidade de Cabo Verde)José Augusto Pacheco (Universidade Minho)José Carlos Anjos (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)José Manuel Pereira (Universidade de Cabo Verde)Júlio Santos (Universidade Minho)Luísa Inocêncio (Universidade de Cabo Verde)Maria André Trindade (Instituto Universitário da Educação)Mariana Gaio Alves (Universidade Nova de Lisboa)Michel Cahen (Instituto de Estudos Políticos-Universidade de Bordéus)Sílvia Cardoso (Universidade Nova de Lisboa)Teresa Leite (Escola Superior de Educação de Lisboa)Victor Fortes (Universidade de Cabo Verde)

Page 4: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

AGRADECIMENTOS

A realização deste Colóquio foi possível graças aos patrocínios e apoios concedidos pela Reitoria da Universidade de Cabo Verde e seu Departamento de Ciências Sociais e Humanas, Universidade do Minho, Centro de Língua Portuguesa/Camões, I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França em Cabo Verde, BORNEfonden (Cabo Verde) e Ministério de Educação e Desporto de Cabo Verde a quem os organizadores agradecem.

Page 5: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

POLÍTICAS E PRÁXIS DA EDUCAÇÃO NAS PERSPETIVAS

E EM CONTEXTOSPÓS-COLONIAIS

PRELEÇÕES DO II COLÓQUIO CABO-VERDIANO REALIZADO NODEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DA

UNIVERSIDADE DE CABO VERDE

OrganizadoraAna Cristina Pires Ferreira

Page 6: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

ÍNDICE

REFLEXÕES PÓS-COLONIAIS EM TORNO DA AVALIAÇÃO EM EDUCAÇÃOAlmerindo Janela Afonso ..........................................................................................8

CABO VERDE - A EDUCAÇÃO, A LÍNGUA MATERNA E A LEI DE GRESHAMAndré Corsino Tolentino ......................................................................................... 18

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E INOVAÇÃO DIDÁTICAManuela Esteves .................................................................................................... 24

FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM CONTEXTOS DE REGULAÇÃO TRANSNACIONAL E NACIONALJosé A. Pacheco ...................................................................................................... 35

MODELOS DE FORMAÇÃO (INICIAL E CONTÍNUA) PARA OS PROFESSORES EM CONTEXTOS DE REFORMAS CURRICULARES EM CABO VERDE - CONTRIBUTOS PARA UMA REFLEXÃOArlindo Vieira ..........................................................................................................43

PROCESSOS EDUCATIVOS EM DINÂMICAS COLONIAIS E PÓS-COLONIAIS EM CABO VERDE: NOVAS ABORDAGENS, OUTRAS PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS.Elias Alfama Vaz Moniz ..........................................................................................54

EDUCAÇÃO SUPERIOR E A DESCOLONIZAÇÃO DAS AGENDAS DO DESENVOLVIMENTO EM CABO VERDEJosé Carlos Anjos ....................................................................................................66

Page 7: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

7

PALAVRAS PRÉVIAS

O II Colóquio Cabo-Verdiano de Educação - CEDU 2015, foi realizado, na Praia, pela Coordenação das Ciências da Educação, do Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Cabo Verde, a 24 e 25 de abril de 2015. O evento aconteceu num contexto de reflexão sobre a consecução dos objetivos de desenvolvimento do milénio e de lançamento das novas perspetivas de transformação social e económica nos próximos quinze anos, devendo a Educação continuar a desempenhar um papel importante nessa transformação.

Além disso, estando Cabo Verde a comemorar o seu quadragésimo aniversário de país independente, a 5 de Julho de 2015, afigurou-se oportuno que o CEDU 2015 se debruçasse sobre as políticas e práxis da Educação em contextos e nas perspetivas pós-coloniais. Com efeito, o incremento da qualidade da Educação tem sido motivo de preocupação para diferentes atores, sejam estatais, sejam da sociedade civil e tem exigido um conhecimento cada vez mais apurado e autóctone. As perspetivas pós-coloniais demandam uma postura ativa na produção e difusão de conhecimento sobre a Educação, privilegiando uma perspetiva predominantemente local, na senda da interação dialética entre o local e o global.

Fazendo jus a um dos objetivos essenciais do Colóquio, qual seja o de divulgar a reflexão científica nacional e de diferentes contextos internacionais sobre ideias, sistemas e práticas educativas de interesse e atualidade, foram reunidos, neste livro, a maioria das conferências proferidas e parte das intervenções nas mesas redondas havidas.

A sequência dos textos condiz com o que foi o programa desse evento.

Finalmente, gostaríamos de agradecer, mais uma vez, os conferencistas e comunicadores das mesas redondas que cederam os seus textos para esta publicação.

Pel’A Organização

Ana Cristina Duarte Pires Ferreira

Page 8: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

REFLEXÕES PÓS-COLONIAIS EM TORNO DA AVALIAÇÃO EM EDUCAÇÃO1

Almerindo Janela AfonsoUniversidade do [email protected]

1. Conferência de Abertura

Page 9: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

9

Não tenho encontrado muitas formas novas e sociologicamente sugestivas nas abordagens ao campo complexo da avaliação em educação. Sem qualquer pretensão de sequer contribuir para superar essa lacuna, o que aqui pretendo sucintamente ensaiar (e que, pelo menos para mim, surge como algo pouco discutido e como uma possibilidade em aberto) é o questionamento das políticas de avaliação à luz dos contributos das teorias pós-coloniais. Dito de outro modo, gostaria de chamar a atenção para quadros teórico-conceptuais cujos pressupostos políticos, culturais e epistemológicos podem, à primeira vista, caracterizar-se por uma elevada exterioridade a um campo em que as abordagens começam a ser repetitivas e previsíveis, mas penso que é aí que podemos encontrar desafios novos para pensar as políticas de avaliação. Finalmente, o exercício justifica-se por se cruzar no caminho entre os meus interesses de investigação e a temática geral deste evento – Políticas e Práxis da Educação nas Perspetivas e em Contextos Pós-coloniais2.

Se considerarmos as políticas de avaliação adotadas por diferentes países capitalistas ocidentais, inicialmente pelos EUA e Inglaterra, nos anos oitenta, e seguirmos as mudanças posteriores à emergência do que Guy Neave (1988) designou de Estado-avaliador, constatamos que estamos hoje numa fase substancialmente diferente (Afonso, 2013)3. Na minha perspetiva, a fase inicial do Estado-avaliador da última grande vaga reformadora circunscreveu-se sobretudo ao Estado nacional (em países centrais), tendo a avaliação sido, em grande medida, um instrumento de controlo desenvolvido pelos governos e um indutor de mecanismos de mercado e quase-mercado em educação. Posteriormente, várias dezenas de Estados, independentemente das orientações político-ideológicas dos seus governos, criaram ou desenvolveram sistemas nacionais de avaliação, ao mesmo tempo em que participavam de estudos baseados em indicadores adotados por organizações internacionais e supranacionais, aderindo

2.Este texto corresponde, em grande parte e com algumas adaptações, à conferência de abertura que proferi no II Colóquio Cabo-Verdiano de Educação – Políticas e Práxis da Educação nas Perspetivas e em Contextos Pós-coloniais. Praia: Universidade de Cabo Verde, 24 de abril de 2015. Quero aproveitar esta ocasião para agradecer aos colegas da organização, nomeadamente à Profª Cristina Ferreira e ao Prof. Bartolomeu Varela, pelo extraordinário acolhimento e espírito académico que, uma vez mais, pude testemunhar neste breve regresso a Cabo Verde.3. Adoto a expressão Estado-avaliador para situar a problemática da avaliação na sua relação com o Estado e outras instâncias de regulação e, neste sentido, é um uso mais amplo do que aquele que é feito por Guy Neave, que cunhou a expressão essencialmente para análise do ensino superior.

Page 10: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

10

a dispositivos de avaliação comparativa internacional em larga escala, através do uso de testes estandardizados. Os resultados desses estudos comparados têm servido diversos objetivos, entre os quais a legitimação de discursos políticos e de medidas adotadas no contexto interno para a educação e formação. Nesta segunda fase do Estado-avaliador, o exemplo paradigmático é o da crescente centralidade das organizações internacionais e supranacionais, com destaque para a OCDE, nomeadamente através do desenvolvimento e expansão do programa PISA (Programme for International Student Assessment).

Atualmente, o que podemos constatar é que este movimento de internacionalização crescente das políticas de avaliação continua a espalhar-se por todos os países, independentemente da sua posição no sistema-mundial. Neste sentido, a agenda do comparativismo avaliador está hoje presente não apenas nos países capitalistas centrais, mas também nos países semiperiféricos, nomeadamente no contexto europeu (como é o caso de Portugal), ou nos países periféricos de uma parte da África subsariana, da Ásia e da América Latina. E, do meu ponto de vista, a questão fundamental que está subjacente a este movimento tem a ver essencialmente com as lógicas da internacionalização do capitalismo e com os projetos de modernização, a que servem muito bem as políticas de educação e de avaliação. Sobre este último aspeto, certas formas de avaliação comparativa (como o PISA) espalham-se mundialmente porque muitos países periféricos e semiperiféricos continuam a problematizar os supostos objetivos de modernização, seduzidos por ímpetos de progresso (ou de desenvolvimento) conectáveis com agendas educacionais de países capitalistas centrais ou altamente desenvolvidos (ainda que estas agendas pareçam neutras ou benévolas por ser veiculadas por organizações internacionais prestigiadas como a OCDE ou o Banco Mundial). Neste sentido, a participação de países centrais ou altamente desenvolvidos nestas avaliações internacionais não deixa de poder ser uma forma indireta de estabelecer objetivos indispensáveis à comparabilidade de sistemas educativos não comparáveis, porque altamente desiguais em termos de possibilidades e recursos competitivos, reforçando desta forma os efeitos não esperados da ideologia da modernização, como se fosse possível abstrair das desigualdades intrínsecas ao sistema capitalista globalizado e globalizador. Como tive oportunidade de escrever noutros lugares (sobretudo Afonso, 2013), a crença de que não há alternativas para além do

Page 11: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

11

capitalismo democrático liberal é não só congruente com o a-historicismo vigente no Ocidente europeizado e americanizado, como é também congruente com a adoção de orientações políticas, culturais e económicas que parecem pressupor um único padrão de referência – o dos países capitalistas centrais e/ou países mais desenvolvidos e competitivos, e supostamente mais cultos e mais educados. Com efeito, alguns dos postulados que sugerem a evolução linear e progressiva dos países periféricos, ou ditos em vias de desenvolvimento, em direção a países centrais, ou ditos desenvolvidos – postulados em que assenta a (velha) teoria da modernização – são implicitamente convocados (e parecem reatualizar-se como ideologia) através dos discursos de muitos governantes. Dito de outro modo, estes discursos sugerem que os mesmos níveis de educação e conhecimento científico, e as mesmas oportunidades de inserção vantajosa numa economia global altamente competitiva, estão, ou são, acessíveis a todos os países, sendo para isso necessário (entre outras estratégias políticas e educacionais) que as avaliações comparativas nacionais ou os testes estandardizados internacionais indiquem (objetivamente) quais os défices a superar e os caminhos a seguir (Afonso, 2013, 276-277).

Se a lógica do sistema capitalista é a ânsia ilimitada do lucro e da acumulação, é importante perceber por que razão os países centrais (ou as organizações internacionais mais poderosas na construção da agenda global) têm interesse na subida dos níveis educacionais dos países periféricos e semiperiféricos, a não ser, é claro, quando isso ocorre dentro dos limites que são desejados e necessários para a contínua expansão desse mesmo sistema capitalista a nível mundial, nomeadamente como condição para preparar e integrar novos consumidores no mercado mundial.

Sabendo que há vínculos frequentemente convergentes (embora nem sempre claros) entre os interesses do capitalismo e os objetivos de muitas organizações internacionais, a ação destas últimas não pode ser pensada aceitando acriticamente os discursos que elas próprias produzem e as missões que anunciam. Neste sentido, podemos e devemos interrogar-nos em relação ao exacerbado (e aparentemente benévolo) protagonismo de organismos internacionais, como a OCDE e o Banco Mundial, que, de forma crescente, são aceites como inquestionáveis e supostamente imprescindíveis na estruturação de políticas educativas nacionais e na formulação de muitas outras decisões.

Page 12: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

12

No que diz respeito a pensar as políticas de avaliação em educação de uma forma alternativa, as perspetivas críticas pós-coloniais parecem ser aquelas que podem trazer contributos mais originais. Todavia, neste momento apenas farei uma incursão exploratória que não irá além da sinalização da problemática. Pretendo que esta seja retomada posteriormente com outra densidade teórico-conceptual que justifique atravessar as fronteiras usuais do campo da avaliação em educação.

Uma primeira constatação para quem se inicia nestas perspetivas é a de que não há um consenso alargado sobre a designação a adotar no que diz respeito aos estudos pós-coloniais, os quais com distintos argumentos e justificações também são chamados de anti-coloniais e descoloniais. Todavia, estas diferentes designações têm muitos pressupostos convergentes mas ainda insuficientemente conhecidos, pelo menos a julgar pelos escassos trabalhos que são referenciados na área da educação em Portugal, como é o caso, por exemplo, dos trabalhos de Walter Mignolo, Enrique Dussel, Alejandro Moreno; Aníbal Quijano; Stuart Hall; Edward Said, e tantos outros, com a óbvia exceção de Maria Paula Menezes e de outros investigadores e investigadoras do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde se destaca Boaventura Sousa Santos como um autor de referência incontornável neste campo. Muitos destes autores questionam de forma bastante contundente as formas de conhecimento hegemónico, ou chegam mesmo a defender um corte radical com a dependência epistémica moderna, ocidental e eurocêntrica. Como lembra Walter Mignolo, “hoje, a descolonização já não é um projecto de libertação das colónias, com vista à formação de Estados-nação independentes, mas sim o processo de descolonização epistémica e de socialização do conhecimento” (Mignolo, 2003, p. 631).

Do meu ponto de vista, é precisamente esta relação de dominação cognitiva que continua a sustentar muitas das opções de política educativa e muitos dos modelos de avaliação adotados em diferentes sistemas educativos, sobretudo os de países que têm uma posição periférica ou semiperiférica no contexto mundial. No fundo, o que está em causa é saber se é possível (e desejável) pensar a avaliação pondo de lado a referência ao conhecimento científico moderno e às teorias dominantes, ou seja, fora de qualquer dependência epistémica ocidental ou ocidentalizada. Do meu ponto de vista, é desejável e possível, embora a avaliação em educação, sobretudo aquela que é apresentada como científica e tecnicamente avançada,

Page 13: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

13

como a dos testes estandardizados, continue a ser um instrumento da supremacia epistémica avaliativa eurocêntrica e, deste modo, manter-se-á certamente por mais tempo como um dos instrumentos atuais da globalização capitalista ou mesmo de neocolonialismo num contexto pós-colonização, até que possam fortalecer-se agendas alternativas. Para além do currículo, poucas áreas, aliás, serão tão universalizáveis e homogeneizáveis como a avaliação. E é essa possibilidade de universalização e de homogeneização que a tem difundido como um dos vírus do neoliberalismo em educação. Não é por acaso que a OMC (Organização Mundial do Comércio), que passou, já há alguns anos, através dos acordos do GATS, a considerar a educação como um serviço altamente mercadorizável e rentável, tem recebido contribuições de alguns países em que surge a ideia de estender esses acordos à avaliação e ao testes em educação – o que, do meu ponto de vista, será inevitável acontecer dadas as potencialidades evidentes que os testes e provas estandardizadas têm para ampliar os processos de mercadorização e de privatização e, consequentemente, servir o processo de acumulação e dominação.

Mais uma vez, o recuo ao cientificismo neopositivista combina bem com as lógicas capitalistas e as chamadas políticas baseadas em evidências. Não é por acaso que estas políticas induziram e induzem o uso de indicadores quantificáveis e mensuráveis que têm sido uma das estratégias privilegiadas pelas organizações internacionais e supranacionais. Aliás, se recuarmos no tempo, como chama a atenção um dos autores que escreve a partir dos postulados das teorias pós-coloniais, a ideologia das decisões baseadas em evidências tem as suas raízes nos processos (iluministas) de burocratização, estandardização e normalização que ocorreram entrelaçados com o comércio de escravos e o sistema de plantações, os quais constituíram experiências de disciplinação e engenharia social, de produção em série, de sistematização da vida humana e de institucionalização da estandardização de processos (Shahjahan, 2011). E como dizem Erkkila e Piironen, “a objetivação numérica de fenómenos sociais” serve muitas vezes para “despolitizar as questões políticas ao naturalizar certas interpretações da realidade em detrimento de visões alternativas” (ERKKILA & PIIRONEN, 2014, P. 344).

Por isso, a questão que se levanta uma vez mais é a de saber quem tem o poder de definir os indicadores que contam para a comparação entre países; que países participam da definição desses indicadores; e se não deveríamos ser capazes de

Page 14: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

14

pensar indicadores alternativos aos indicadores atualmente hegemónicos. Entre outras coisas, sabemos que não são todos os países que participam (ou têm o poder de interferir) na definição e construção de indicadores, mas quando as decisões políticas e administrativas são baseadas em quantificações numéricas, as suas premissas não poderiam deixar de ser “visíveis, acessíveis e abertas à deliberação pública” (ERKKILA & PIIRONEN, 2014, P. 346). Tal como no caso dos testes estandardizados, os indicadores podem ser veículos de um “novo imperialismo que reflete os interesses das nações ocidentais e, mais amplamente, do capitalismo global” (NGUYEN; ELLIOTT; TERLOUW; PILOT, 2009, p. 110).

Por outro lado, o uso dos testes estandardizados cresceu exponencialmente nos diferentes países, independentemente do seu lugar no sistema mundial. Previa-se há meia dúzia de anos que mais de um terço dos países estariam a usar testes no final da primeira década deste século (Kamens; Mcneely, 2009). E não se pode esquecer que, muitas vezes, a concessão de empréstimos e ajudas internacionais por parte de países centrais a países periféricos ou semiperiféricos exige que os respetivos sistemas de ensino adotem o uso de testes e outras formas de avaliação das aprendizagens. Em consequência disso, ou não, o facto é muitos países africanos têm vindo a adotar cada vez mais formas de avaliação nacionais e a participar de avaliações comparativas internacionais. Se esta é a expressão de um novo colonialismo ou a expressão de um novo imperialismo, fica como questão em aberto para uma agenda de investigação.

Em qualquer dos casos, em muitos países africanos de língua oficial portuguesa, os percursos da investigação nas ciências sociais e humanas e, de modo particular, na educação, têm sido marcados por muitos e importantes dilemas e desafios. Alguns deles passam pela necessidade urgente de uma aposta consequente na construção do conhecimento científico sobre as novas realidades nacionais, numa perspetiva que, podendo beneficiar de diálogos e parcerias com instituições e investigadores de diferentes países, assuma, todavia, a preocupação fundamental de promover um conhecimento autóctone e pós-colonial, reagindo, assim, criticamente, à importação ou disseminação de certas agendas de investigação, sobretudo quando estas contribuem (apenas) para a reprodução mimética de quadros teórico-concetuais e metodológicos eurocêntricos, de países capitalistas centrais do sistema mundial. Na perspetiva de alguns autores pós-coloniais,

Page 15: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

15

“a enfâse colocada pelo Banco Mundial e UNESCO na educação primária, em detrimento de outros níveis de ensino, retira a capacidade de pesquisa e de inovação que é centralmente importante se os países quiserem ligar a educação ao desenvolvimento sustentável e à conservação da herança cultural e educacional” (NGUYEN; ELLIOTT; TERLOUW; PILOT, 2009, p. 111).

Porque todas estas questões são complexas, podemos mesmo interrogar-nos sobre as condições de possibilidade para construir e implementar a educação superior em países semiperiféricos e periféricos, sobretudo se a educação e a pesquisa forem opções estratégicas para desenvolver a sua capacidade científica (independente ou em parcerias), num ideário pós-colonial ou descolonial mais autónomo. Não por acaso, os processos de transição e de profunda mudança social e política são marcados por importantes dilemas e ambivalências. Como refere, por exemplo, Bartolomeu Varela em relação a discursos e normativos de políticas de ensino superior em Cabo Verde, nota-se um “ecletismo algo paradoxal”, visto que os discursos e normativos tanto refletem a “imposição de standards”, com origem em agências internacionais e supranacionais, como “traduzem os propósitos de promover a cultura, a identidade e as especificidades nacionais” (VARELA, 2013, p. 1).

As universidades e outras instituições de ensino superior confrontam-se, assim, com a ambiguidade de objetivos e de lógicas contraditórias que não deixam de afetar a produção do conhecimento, nomeadamente nas ciências sociais e humanas e, portanto também nas ciências da educação. E essa tensão tende a ser mais evidente quando se trata de países que, após os processos de descolonização, continuam com a tarefa (também política) de desconstruir as práticas e expressões persistentes de colonialidade – o que certamente se torna ainda mais difícil quando, como lembra Castro-Gómez, as próprias ciências sociais e humanas, das quais se esperaria uma crítica mais profunda destas mesmas realidades, são, muitas vezes, paradoxalmente, veículos de reprodução de “heranças coloniais do conhecimento” (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p. 79).

Naturalmente que este meu texto não está isento de algumas dessas contradições. Tenho pensado a evolução das políticas de avaliação tomando como referência quadros eurocêntricos hegemónicos e acabei a defender uma «descolonização epistêmica» para usar o termo de Walter Mignolo. Mas estou consciente de que

Page 16: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

16

é preciso precavermo-nos para que não deixemos que as nossas experiências sejam transpostas para outra realidade como se tivessem validade universal, como lembrava Paulo Freire quando se preparava para colaborar no processo de descolonização na Guiné-Bissau.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Almerindo J. (2013). Mudanças no Estado-avaliador: comparativismo internacional e teoria da modernização revisitada. Revista Brasileira de Educação, vol. 18, nº 53, pp. 267-284.

CASTRO-GÓMEZ, Santiago (2007). Decolonizar la universidad: la hybris del punto cero y el diálogo de saberes. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del hombre; Universidad Central; Pontifícia Universidad Javeriana, pp. 79- 91.

ERKKILA, Tero; PIIRONEN, Ossi. (2014). (De)politicizing good governance: the World Bank Institute, the OECD and the politcs of governance indicators. Innovation: The European Journal of Social Science Research, vol. 27, nº 4, pp. 344-360.

MIGNOLO, Walter D. (2003). Os esplendores e as misérias da «ciência»: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: Boaventura S. Santos (Org.). Conhecimento Prudente para uma Vida Decente: Um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Afrontamento, pp. 631- 671.

KAMENS, David H.; MCNEELY, Connie (2009). Globalization and the growth of International testing and national assessment. Comparative Education Review, vol. 54, nº1, 5-25.

MIGNOLO, Walter D. (2015). Habitar la Frontera. Sentir y pensar la descolonialidad. (Antología, 1999-2014). Barcelona: CIDOB/UACJ.

NGUYEN, Phuong-Mai; ELLIOTT, Julian G.; TERLOUW, Cees; PILOT, Albert (2009). Neocolonialism in education: Cooperative learning in Asian context. Comparative Education, vol. 45, nº 1, pp. 109-130.

Page 17: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

17

NEAVE, Guy (1988). On the cultivation of quality, efficiency and enterprise: an overview of recent trends in higher education in Western Europe, 1986-1988. European Journal of Education, vol. 23, nº 1/2, pp. 7-23.

VIRURU, Radhika (2006). Postcolonial technologies of power: Standardized testing and representing diverse young children. International Journal of Educational Policy, Reserach & Pratcice, vol. 7, nº 1, pp. 49-70.

SHAHJAHAN, Riyad A. (2011). Descolonizing the evidence-based education and policy movement: revealing the colonial vestiges in educational policy, research, and neoliberal reform. Journal of Education Policy, vol. 26, nº 2, march, 181-206.

VARELA, Bartolomeu L. Tendências internacionais e política do ensino superior em Cabo Verde. Comunicação na 3ª Conferência do FORGES. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2013. Disponível em: <REciFEhttp://aforges.org/conferencia3/docs_documentos/PAINEIS%20PRINCIPAIS/Comunicacao%20Completa/Bartolomeu%20Varela_CV_Tendencias%20internacionais.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2015.

Page 18: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CABO VERDE - A EDUCAÇÃO, A LÍNGUA MATERNA E A LEI DE GRESHAM

André Corsino TolentinoAcademia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde

[email protected]

Page 19: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

19

A 19 de Março deste ano realizou-se na cidade do Mindelo um colóquio sobre o valor histórico, económico e social do grogue. O encontro que considerei técnica e civicamente inovador foi organizado pelos estudantes do 4º ano do curso de jornalismo da Universidade de Cabo Verde e uma equipa liderada pelo Mestre João Almeida Medina, coordenador do projecto Uni-Palavra.

Outra inovação foi o djunta-mon, a cooperação estreita, entre a universidade, os produtores de aguardente de cana sacarina, os técnicos da saúde pública, os diversos patrocinadores e os conferencistas. Na ocasião apresentei pela primeira vez a hipótese de a lei de Gresham aplicar-se ao grogue, aos diplomas em crioulo e ao mercado político-partidário.

CEDI2015 é uma oportunidade que eu gostaria de aproveitar para submeter essas hipóteses com o triplo objectivo de verificar a pertinência do assunto para investigação posterior, obter observações úteis à avaliação da questão linguística e dar um contributo ao progresso da ciência no nosso país.

GRESHAM E O GROGUE

Quando em 1558 Thomas Gresham, conselheiro económico da rainha Isabel I de Inglaterra, afirmou que “a moeda má tende a expulsar a moeda boa do mercado” não podia imaginar o tormento por que a ilha de Santo Antão passaria por causa desse dito que haveria de ser lei. Na verdade, a ilha tinha começado a ser povoada apenas 10 anos antes, em 1548. Mas o que a frase podia significar na época em que foi pronunciada e o valor da moeda tinha de corresponder à quantidade de ouro ou prata que nela se continha?

Vamos supor que Sua Majestade, motivada pela crescente actividade comercial, pensou em aumentar a quantidade de moeda a circular. Tinha de seguir por uma de duas vias. Atacava o problema isoladamente ou previa as consequências da decisão e, nesse caso, chamava a equipa de aconselhamento. Naturalmente optou por primeiro chamar o conselheiro económico, que logo informou que o reino não tinha minas de ouro nem de prata suficientes para justificar o fabrico ou cunhagem de moedas com o valor facial igual ao valor real, mas que era tecnicamente possível pôr dois tipos de moedas a circular, uma com maior proporção de metal precioso, mais pesada, outra com menos peso. Ambas teriam o mesmo valor facial, legal

Page 20: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

20

e liberatório, com uma diferença no teor de metal precioso. As moedas eram parecidas, mas desiguais.

E aí, atenção, os agentes económicos vão entesourar, guardar, as moedas mais pesadas, com maior teor, para derreter e, provavelmente, exportar para a venda a preço mais alto no estrangeiro. O resultado será a expulsão da moeda boa do mercado no qual ela será substituída pela moeda má. Sabe-se, porém, que o ouro como padrão universal deixou de existir nos anos da nossa independência nacional. A partir desse período, o sistema fiduciário, no qual cada moeda nacional ou regional tem de merecer a confiança da comunidade internacional, impôs-se. É caso para lembrar que a confiança vale ouro!

Que terá a lei de Gresham a ver com o grogue? Comparando as características, o custo e o preço do grogue de cana sacarina, também referido como grogue genuíno, com o grogue de açúcar, veremos as semelhanças com a relação que o mercado desregulado estabeleceu entre a moeda boa e a moeda má. O bom grogue está a ser expulso do mercado pelo mau grogue, mas por razão inversa do que se passou com as moedas: enquanto a boa moeda deixava-se expulsar para se revalorizar, o bom grogue é expulso, não é vendido nem pode ser eternamente armazenado e desvaloriza-se. Para os mais atentos, o fenómeno é da mesma natureza daquele que dita a queda dramática dos preços do petróleo e do gás. Os produtores não se entenderam sobre a redução da produção, os stocks transbordaram e os preços caíram.

No caso do grogue, a investigação do projecto Uni-Palavra prova que a produção, a comercialização e os efeitos na economia e na saúde pública são contraditórios. Por um lado é inegável o valor do grogue na sobrevivência colectiva e na formação do capital humano e, por outro lado, os seus efeitos negativos na saúde pública estão à vista de quem quer ver. A geografia nacional do grogue mostra mais duas particularidades: o mais alto nível de corrupção no fabrico e comercialização mora nas ilhas de Santiago e Santo Antão, enquanto as ilhas Brava, de São Nicolau e Maio, onde a produção da cana sacarina é menor, preservam, segundo dizem, a qualidade do produto e da marca.

Com o potencial desenvolvimento da economia, do turismo e da “encomenda de terra” num território nacional gerido com equidade, o grogue será um dos principais

Page 21: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

21

produtos made in Cabo Verde para a exportação e o consumo interno. Para isso são necessárias políticas públicas persistentes e participação dos produtores, comerciantes e consumidores. Trata-se de uma aliança do Estado, sector privado e sociedade civil para o desenvolvimento sustentável.

GRESHAM E A EDUCAÇÃO

O que significará o governo propor através de uma resolução mandar introduzir a língua materna em todo o sistema educativo, do básico ao superior, sem dar a conhecer qualquer plano de execução? A propósito do sistema fiduciário e da confiança, o cidadão, que tende a tomar a palavra do governo pelo valor facial, pergunta: a resolução é para valer ou para fingir?

Valer não pode, porque neste momento a introdução da língua materna no sistema educativo é uma impossibilidade. Na verdade falta-lhe tudo o que é essencial: a padronização através do estabelecimento de regras comuns a todos os utilizadores, um alfabeto nacional fundamentado, um programa estratégico com explicitação de significados, métodos, prazos e fundos, os planos de estudo, manuais e professores em formação.

Oficializar as duas línguas? Na verdade, não é possível ao Estado de Cabo Verde escolher entre o crioulo e o português, a língua na qual a Burocracia se relacionará com os cabo-verdianos. Porém, se essa escolha é impossível, a clarificação não deve ser. Porquê não oficializar as duas línguas com uma visão incremental e complementar? Para já, o crioulo predominaria, como predomina, na oralidade da relação entre o Estado e os cidadãos e o português, como língua segunda, que ainda não é, predominaria no ensino e na relação escrita. Essas funções diferenciadas e complementares não seriam estanques nem fixas no tempo, até porque o senso comum reconhece que o aprofundamento de ambas não pode parar.

Pior seria se a resolução sobre a introdução da língua materna na educação fosse para fingir e fintar a Constituição da República, porque não é eticamente aceitável nada acontecer depois de o governo resolver. Dirão alguns que, pelo menos, não teríamos licenciados em crioulo, o que, no tempo presente, significaria diplomados do ensino superior sem nunca terem lido um livro nem um artigo publicado num

Page 22: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

22

jornal. Porém, se imaginarmos que a resolução passa, onde entraria a lei de Gresham?

É fácil de ver. Um diploma do ensino primário, secundário ou superior corresponde a um padrão universal que dá garantias de posse de conhecimentos, habilidades, atitudes e níveis de qualidade diferentes mas comparáveis. Falemos claro, em média o nosso ensino já é fraco. E não tenhamos dúvidas, os diplomas em crioulo serão varridos do mercado pelos certificados mais confiáveis, porque adquiridos em português e noutras línguas mais desenvolvidas e capazes de acrescentar mais valor.

Mas quem descobriu que afinal a língua portuguesa é a culpada de todos os males do sistema educativo cabo-verdiano? Pensemos na qualidade do stock de recursos humanos, nos sacrifícios dos estudantes que lutam pela qualificação, nos professores que conseguem bons resultados, numa proposta tecnicamente fundamentada de oficialização do crioulo e no mercado do mundo para o qual temos a obrigação de preparar as novas gerações. Neste sentido, as experiências das igrejas cristãs, os contributos do ensino público e privado, assim como os bilinguismos praticados no estrangeiro deverão ser apreciados com conhecimento de causa e boa-fé.

GRESHAM NO MERCADO POLÍTICO-PARTIDÁRIO

Desde 2004 tem-se falado muito deste assunto, primeiro com quatro argumentos que merecem análise, depois a propósito do vaivém do projecto de estatuto dos titulares dos cargos políticos. A irreversibilidade do regime democrático dispensaria o empenhamento cívico individual, os custos da participação política e partidária são tão elevados que nunca seriam compensados material ou simbolicamente, o mercado político é cada vez mais obscuro e, por fim, os talentos comprovados têm alternativas nacionais e estrangeiras nos sectores económico, social e cultural. Discordo da validade total desta argumentação, que subestima os motivos éticos e humanos, porém, que o problema existe, existe.

Uns têm falado da bondade, outros da inadequação deste ano pré-eleitoral para o parlamento discutir e, eventualmente, aprovar o estatuto dos titulares de cargos políticos. Sobre a matéria, três elementos parecem importantes: o Movimento

Page 23: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

23

para a Democracia e o Partido Africano da Independência de Cabo Verde terão, enfim, negociado um acordo de regime, que era bom respeitar; é necessário ver à lupa a natureza dos motivos sugeridos por quem quer voltar atrás e perguntar se o tacticismo partidário do tipo se aprovarmos o estatuto agora a decisão voltará contra nós nas eleições de 2016 condiz com os ideais do respectivo partido; com e sem razão, amplos sectores da sociedade têm uma percepção negativa do desempenho dos políticos, mormente dos deputados.

A aprovação do estatuto dos titulares de cargos políticos é legítima se for acompanhada de mais dois acordos inter-partidários: um relativo aos perfis dos candidatos a apresentar aos eleitores para os órgãos do Estado e Poder Local e outro sobre a erradicação dos mecanismos obscuros que são utilizados para esconder o verdadeiro montante da remuneração de certos cargos. Estes entendimentos contribuiriam para o reconhecimento e a dignificação da actividade política, além de libertarem os nossos deputados da suspeita de só se entenderem em benefício próprio. Seja como for, estarão em causa a transparência e a justiça social.

Em conclusão, a lei de Gresham domina em quase tudo, da economia à educação e à actividade política. Por outro lado, falta ousadia para assumir o risco de propor caminhos mais limpos para o futuro. Porém, três sinais de esperança surgiram no horizonte.

O primeiro sintetiza-se num conjunto de acções promovidas por indivíduos ou grupos de cidadãos, quase sempre apontando para a escola e a universidade, que valerão pelo exemplo.

O segundo vem da cidade de Nova Iorque, onde no dia 5 de Março de 2015, o Instituto Nacional de Estatísticas conseguiu da ONU a criação do GPS – Praia para a qualidade das estatísticas da governação, da paz e da segurança. Enfim, o Decreto-Lei n.º 11/2015, de 12 de Fevereiro, será importante se for cumprido através da cooperação entre o Estado, os Produtores e os Consumidores.

Enfim, as perguntas: que atitude, que ação?

Page 24: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E INOVAÇÃO DIDÁTICA

Manuela EstevesInstituto de Educação – Universidade de Lisboa

[email protected]

Page 25: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

25

De entre a pluralidade de definições que podem ser encontradas sobre o que é didática, tomá-la-emos aqui como a arte, ciência e técnica de alguém, um professor ou um formador, levar outros, alunos ou formandos, a aprender um conteúdo – um conhecimento científico, humanístico, artístico, tecnológico, uma forma de expressão, mas também o conhecimento de si próprio, dos outros, dos valores éticos e sociais que nos definem como seres humanos e como comunidades. Esta amplitude do conceito de didática, que propomos, não a confinando apenas às matérias académicas, acompanha a evolução que se verificou nas missões confiadas às escolas, hoje longe de serem apenas um espaço de desenvolvimento cognitivo para deverem ser um espaço de desenvolvimento integral dos seus alunos.

A complexidade é um traço inerente à educação, em geral, e à didática em particular. Não há um professor, há professores, com diferentes estilos de ensino; não há alunos em abstrato, mas indivíduos que aprendem com mais ou menos facilidade e de formas diversas; os conteúdos de ensino resultam de uma seleção e organização que alguém fez para serem aprendidos, o que obriga a uma transposição didática muitas vezes geradora de tensões entre os especialistas de uma dada matéria e os professores que a devem fazer aprender, sem a falsear, mas também sem seguirem as lógicas impostas pela forma como o conhecimento se construiu/constrói no plano investigativo.

Porquê a necessidade de inovação didática? A resposta está em parte contida no que acima dissemos. Os ideais políticos de desenvolvimento da cidadania pela democratização da educação, as exigências sociais de elevação da qualidade do sucesso escolar e de empregabilidade dos diplomados, a relevância da educação para a produção económica, e, culturalmente, o desenvolvimento do conhecimento científico sobre educação, ensino e aprendizagem, tudo isso conflui para uma conceção de escola que constantemente se renova e adapta.

Sendo esta necessidade iniludível, também é certo que a natureza das novas soluções educativas não recebe uma adesão unânime, nem na sociedade, em geral, nem entre os professores. Três tipos de atitudes são, então, possíveis: a aceitação acrítica – tudo o que é novo é bom, os novos recursos educativos vão, por artes mágicas, melhorar tudo; a rejeição – dantes é que a escola tinha qualidade, as novidades não passam de modas, os novos recursos educativos diminuem a

Page 26: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

26

autoridade do professor; a adesão crítica – cada inovação pode ter prós e contras, convém examiná-la e experimentá-la e, uma vez avaliada, optar por a adotar ou não. Argumentaremos neste texto em favor da terceira destas alternativas.

COMUNICAÇÃO PEDAGÓGICA E RECURSOS DIDÁTICOS

Falar em didática é forçosamente falar na comunicação que ocorre em situação formal de ensino e aprendizagem e que envolve o triângulo clássico Professor – Alunos – Conteúdos ou Matérias.

A comunicação em situação escolar começou por ser e foi durante muitos séculos uma comunicação predominante ou exclusivamente oral. Basta pensar no longo período em que no ocidente medieval, nas escolas conventuais e nas primeiras universidades se ensinava sem livros. O conhecimento detido pelo mestre devia ser passado aos estudantes sob a forma da palavra oral: a forma mais complexa e difícil para alguém receber, compreender e reter uma mensagem, transformando-a em conhecimento próprio. A invenção da imprensa, relativamente recente na história da humanidade (pouco mais de cinco séculos), revolucionou o modo como a informação passou a ser distribuída e apropriada (mais massivamente, envolvendo um muito maior número de pessoas em simultâneo) e, consequentemente, facilitou a ampliação do conhecimento.

O livro escolar – o primeiro recurso didático a que nos referimos – continua a ser o principal veículo de informação disponível tanto no espaço de aula como fora dele e tem uma influência que convém examinar sobre o pensamento e a ação dos professores.

Em Portugal, após a Revolução de 25 de Abril de 1974, chegou a ter expressão, entre os professores, um movimento de rejeição total do manual escolar que durante quase 50 anos era livro único, oficialmente escolhido de acordo com os princípios ideológicos e as conceções pedagógicas da ditadura.

Cedo se percebeu, contudo, que a confeção de todos os materiais de estudo dos alunos pelos seus professores era uma tarefa pesadíssima, especialmente para aqueles que trabalhavam com dois ou mais níveis de ensino diferentes, em cada ano, ou que lecionavam diversas disciplinas ao mesmo tempo. Entretanto, as empresas de edição de livros escolares multiplicaram-se e passaram a oferecer

Page 27: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

27

produtos diversificados de entre os quais cada escola podia escolher o manual que considerava melhor se adequar aos seus alunos e às suas próprias conceções pedagógicas.

Desse período ficaram ensinamentos valiosos:§O professor pode/deve construir materiais de ensino que melhor se adequem

aos alunos concretos com quem trabalha, em substituição ou a par dos manuais de estudo adotados;§O manual, o livro de estudo de cada área ou disciplina, tem, para os alunos,

uma importância grande pelo que a sua escolha deve concitar a máxima atenção por parte dos professores e ser ponderada à luz de uma diversidade de critérios.

O manual pode ser um inimigo ou, pelo menos, um obstáculo, ao ensino, à aprendizagem e à inovação pedagógica e didática? Pensamos que sim, pode. Basta pensarmos em todas aquelas situações passadas e, infelizmente, algumas também atuais, em que o professor se demite de ter um pensamento próprio sobre o currículo, sobre o programa da área ou matéria que ensina (e que por vezes até conhece mal…), sobre os alunos específicos com quem trabalha em cada ano e em cada turma, sobre o meio social e cultural onde a escola se inclui e as exigências que este faz à escola, sobre meios alternativos de propor a informação e de proporcionar a construção de conhecimentos de facto significativos pelos alunos. No limite, está-se perante um professor que será apenas um técnico de aplicação de um manual cujos autores interpretaram o currículo de determinado modo, fizeram obrigatoriamente escolhas entre objetivos de aprendizagem (privilegiando uns em detrimento de outros), sugeriram estratégias e métodos adequados a um aluno abstrato, o chamado “aluno médio”, e propuseram exercícios, atividades e tarefas para os alunos realizarem. E, como se o manual não tivesse suficiente poder impositivo, ele vem por vezes acompanhado ainda por um “guia do professor” que ensina como este deve aplicar o manual.

Ao longo do séc. XX, operou-se uma revolução nos meios de informação e comunicação. Surgiram e diversificaram-se novos veículos gerais de informação com impacto sobre toda a sociedade, seguidos de novos veículos de informação específicos para a educação, quer produzidos industrialmente, quer criados pelos professores.

Page 28: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

28

De facto, o material didático – ou seja, o conjunto de meios físicos que intervêm e facilitam o processo de ensino/aprendizagem – não cessou de se ampliar e diversificar.

A par dos recursos educativos tradicionais gerais (livros, cadernos, quadro, lápis, giz) e específicos (cola, plasticina, tela, mapas, instrumentos musicais, materiais de laboratório), a partir dos anos 50, nos países mais desenvolvidos, começaram a ser introduzidos nas escolas os meios tecnológicos audiovisuais (cinema, TV, diapositivos, filmes pedagógicos, documentários científicos, etc.) e, a partir dos anos 80, não em continuidade mas em rutura com os anteriores, começaram a ser introduzidos os meios informáticos.

Uns e outros – meios audiovisuais e meios informáticos – trouxeram consigo a possibilidade de combater ou moderar o verbalismo e o abstracionismo característicos da escola tradicional, na medida em que permitem:§Ajudar à aproximação entre ideias abstratas e dados captados pelos sentidos

(vista, ouvido tato);§Diversificar as estratégias de ensino-aprendizagem;§Ajudar a construir um conceito;§Exemplificar um conceito;§Facilitar a comunicação entre professor e aluno, ao fazer intervir um terceiro

parceiro na comunicação;§Ensinar pelas imagens, mas também ensinar a “ler” as imagens.

Porém, a simples introdução de meios tecnológicos nas escolas não é sinal de inovação pedagógica e didática traduzida em maior motivação e autonomização dos alunos. Numerosos estudos mostraram que os meios audiovisuais mantinham e, em certos casos, até reforçavam o ensino tradicional, a voz e a autoridade do professor como detentor do conhecimento feito. De facto, os meios audiovisuais cumpriram frequentemente (ainda cumprem?) o papel de meros meios auxiliares do ensino, do professor e do manual de estudo. Foram sempre em menor número os casos em que os referidos meios foram integrados completamente e levaram a redefinir radicalmente objetivos de aprendizagem, conteúdos selecionados, estratégias, métodos e processos de avaliação.

Page 29: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

29

Os meios digitais que se têm expandido e diversificado vertiginosamente nas últimas décadas, permitem mais frequente e facilmente a interatividade (no sentido de se criar um novo estilo de articulação entre as pessoas que aprendem e o veículo de transporte da informação, uma comunicação bidirecional em lugar de uma comunicação unidirecional), mas não impõem essa interatividade se não se trabalhar deliberadamente nesse sentido.

Para serem suportes de inovação, os recursos didáticos, incluindo os mais recentes, devem:§Despertar o interesse e a curiosidade§Adequar-se às características físicas, psicológicas, cognitivas e sociais dos

destinatários§Estimular a interação dos alunos com o material§Facilitar o trabalho do professor§Adequar-se aos conteúdos e à metodologia decididos pelo professor§Ter em conta o seu uso na escola§Ser consistentes e simples§Não ter riscos de manipulação.

Estas condições sugerem que, quando se trata de materiais educativos produzidos industrialmente, sejam associados professores à sua construção. Para além disso, tais materiais deveriam ser sujeitos a uma fase de experimentação numa amostra selecionada de escolas, antes da sua aquisição e utilização generalizadas.

IMPORTÂNCIA DAS TEORIAS DA APRENDIZAGEM

Usar recursos didáticos ao serviço da inovação presume que o professor pense, em primeiro lugar, nos seus alunos e não ignore ou esqueça a importância de ter uma perspetiva fundamentada sobre como é que eles aprendem. Recordamos, a este propósito, os contributos científicos de algumas teorizações, quase todas oriundas da psicologia do desenvolvimento, como sejam:§A psicologia genética (Piaget, 1969)§A aprendizagem significativa e a importância dos conhecimentos prévios

(Ausubel, 1968; 1977)§A zona de desenvolvimento próximo (Vygotsky, 1977)

Page 30: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

30

§A funcionalidade ou aplicabilidade das aprendizagens§A memória compreensiva ou não mecânica§A teoria das inteligências múltiplas (Gardner, 1983)§A inteligência emocional (Goleman, 1995)§O conectivismo (Siemens, 2005).

Entre as mais recentes, a teoria das inteligências múltiplas parece-nos especialmente relevante para fundamentar a necessidade de diversificação das estratégias e dos recursos didáticos. Gardner (1983) identificou e caracterizou as inteligências lógico-matemática, musical, linguística, interpessoal, espacial, físico-cinestésica, intrapessoal, naturalística e existencial. Estimular na escola o desenvolvimento de todas elas pressupõe o cultivo de áreas ou disciplinas diversas, da matemática à língua, da educação física à geografia, da música à química, mas também pressupõe a utilização de recursos didáticos que permitam o desenvolvimento de competências dos alunos em função de cada uma dessas formas de inteligência.

O conectivismo, uma teorização proposta por Siemens (1995), pretende explicar a mudança operada aprendizagem devido ao impacto dos recursos digitais e ao desenvolvimento da aprendizagem em rede. Não entraremos aqui na discussão que está em curso sobre se se trata, de facto, de uma nova teoria da aprendizagem capaz de superar o behaviorismo, o cognitivismo e o construtivismo. Retemos apenas a perspetiva pedagógica que nos é sugerida pelo autor e que pode dar lugar a debates frutuosos entre especialistas da educação, incluindo os professores. Diz Siemens:§Muitos aprendentes mover-se-ão através de uma variedade de campos

diferentes e possivelmente não relacionados uns com os outros, ao longo do seu tempo de vida;§O conhecimento informal é um aspeto significativo da nossa experiência de

aprendizagem: a educação formal já não encerra a maioria do que aprendemos; a aprendizagem ocorre por uma diversidade de caminhos (comunidades de prática, redes pessoais, realização de tarefas profissionais);§Aprender é um processo contínuo que dura toda a vida, aprender e trabalhar

já não são etapas separadas;§A tecnologia está a modificar os nossos cérebros, as ferramentas que usamos

definem e moldam o nosso pensamento;

Page 31: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

31

§Tanto a organização como o indivíduo, são ambos mecanismos aprendentes;§Muitos dos processos anteriormente descritos pelas teorias da aprendizagem

podem agora ser realizados ou apoiados pela tecnologia;§Saber-como e saber-o-quê são agora complementados pelo saber-onde (saber

onde encontrar o conhecimento necessário).

Cabe às escolas e aos professores tirarem o melhor partido da utilização da panóplia de recursos digitais que vão sendo disponibilizados: recursos didáticos para disciplinas específicas, mas também a exploração de bancos de informação, de redes de aprendizagem, de redes profissionais e salas virtuais de professores onde se torna possível partilhar práticas, dar e receber feedback, participar em projetos colaborativos com outros que se podem localizar virtualmente em qualquer ponto do planeta.

DESAFIOS À FORMAÇÃO DOS PROFESSORES

Se admitirmos que a inovação é uma “mudança deliberada, original e específica que se supõe contribuir para aumentar a eficácia de um sistema na prossecução dos seus objetivos” (Miles, 1971, cit. Correia, 1989:31), então, não há recursos didáticos “mágicos” que, por si sós, representem inovação. Esta deve representar, em primeiro lugar, uma melhoria do sucesso educativo e escolar dos alunos, sucesso que, como sabemos, está sujeito a controvérsia em função de diversos pontos de vista sobre o que ele deva ser. Se alguém ocupa o lugar de “mágico da educação” esse alguém é o professor ou professora (desejavelmente, o grupo de professores de uma escola) que decidem ou reinterpretam e contextualizam as mudanças e selecionam os meios para as alcançar. Dizer isto não significa ignorar que há um conjunto amplo de variáveis que podem facilitar, dificultar ou mesmo impedir a inovação no que respeita à didática: apetrechamento das escolas, horários e carga de trabalho dos professores, dotações financeiras, lideranças escolares, etc. Não nos ocuparemos, porém, desses aspetos, para nos focarmos exclusivamente numa das variáveis que consideramos fundamental na promoção da inovação: a formação dos professores.

Sabemos de há muito que o conhecimento de que os professores necessitam para exercer a sua profissão é um conhecimento compósito. Shulman, em 1986,

Page 32: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

32

discriminou nesse conhecimento as seguintes componentes: conhecimento do conteúdo; conhecimento curricular; conhecimento pedagógico/didático geral; conhecimento pedagógico do conteúdo; conhecimento dos alunos e das suas características; conhecimento dos contextos; conhecimento dos fins educativos.

Geralmente, as instituições responsáveis pela formação inicial de professores já proporcionam atualmente aprendizagens em todos estes domínios, mas fazem-no por vezes de forma fragmentada, como se não existissem sinergias a construir entre todos eles.

Por outro lado, e não menos importantes, são as limitações frequentes quanto à construção e desenvolvimento de competências docentes, entendidas estas como a efetiva utilização do conhecimento num contexto de trabalho específico, em situações concretas de ensino-aprendizagem e na resolução de problemas também eles concretos que nelas ocorrem. Isto implica que a prática profissional nunca deva estar ausente dos espaços da formação, sob risco de todo ou parte do conhecimento adquirido ficar inerte ou ser considerado inútil pelos professores em formação.

Importa, então que os professores, à semelhança de todos os outros profissionais que desempenham profissões complexas, evidenciem competências como as enunciadas por Le Boterf (1996):§Saber agir com pertinência§Saber mobilizar conhecimentos num dado contexto profissional§Saber combinar ou integrar saberes múltiplos e heterogéneos§Saber transferir§Saber aprender e aprender a aprender§Saber / querer empenhar-se.

Estas competências, sendo gerais, têm uma pertinência muito grande quando pensamos especificamente na sua relação com a inovação didática.

Discute-se muito a organização estrutural da formação de professores (nível académico, duração, componentes a contemplar, instituições responsáveis pela formação, etc.), mas muito pouco os modelos ou orientações concetuais que se concretizam nessa formação.

Page 33: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

33

Sinteticamente, pensamos que é necessário ultrapassar as conceções tradicional/artesanal e behaviourista, incorporar os contributos dos modelos personalistas e optar decididamente por um modelo orientado pela e para a investigação. Seguimos aqui a nomenclatura dos modelos proposta por Zeicchner (1983).

Tão importante quanto essa escolha fundamental do modelo concetual de formação, é também ter respostas para perguntas como as seguintes:§Como fazer participar os futuros professores e os professores já em exercício

na construção dos dispositivos da sua formação?§Como valorizar e fazer valorizar pelos formandos as diversas dimensões do

conhecimento necessário a uma ação de qualidade: conhecimento teórico, técnico, processual, prático e praxeológico?§Como gerir o tempo, sempre escasso, destinado à formação?§Como ir resolvendo os problemas de articulação das diversas didáticas

específicas (língua materna, língua oficial, língua estrangeira, ciências sociais, matemática, ciências experimentais, expressões físicas e artísticas, tecnologias) com o currículo global?§Como concretizar o isomorfismo entre as práticas de formação docente e as

práticas que se deseja que os professores desenvolvam nas escolas?§Como formar os formadores?§Como assegurar uma cultura de colaboração efetiva entre os formadores?§Como melhorar a pedagogia do ensino superior onde a formação inicial e

parte da formação contínua dos professores se inscrevem?

PARA CONCLUIR

Uma educação e um ensino à altura do presente e do futuro próximo tem de incorporar a inovação como uma das suas características permanentes.

Aos velhos meios de ensino, novos meios se vieram juntar, entre os quais avultam hoje os recursos digitais. Nenhum, por si só, garante as aprendizagens, nem a melhoria da qualidade das mesmas.

Os recursos educativos mais importantes nas escolas são os professores – são eles quem pode saber como os seus alunos aprendem melhor; como, quando e para quê usar recursos didáticos; que recursos usar; como inovar.

Page 34: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

34

A formação inicial e contínua de professores assume uma enorme responsabilidade no desenho e desenvolvimento de um conjunto complexo de competências que hoje são necessárias para os professores decidirem, concretizarem e avaliarem a introdução de processos de inovação nas escolas e nas salas de aula.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ausubel, D.P. (1968). Educational Psychology: A Cognitive View. N. York: Holt, Reinhart & Winston

Ausubel, D.P. (1977). The Facilitation of Meaningful Verbal Learning in the Classroom. Educational Psychologist, 12, 162-178

Correia, J.A. (1989). Inovação Pedagógica e Formação de Professores. Rio Tinto: ASA

Gardner, H. (1983). Frames of Mind: the theory of multiple intelligences. N. York: Basic Books

Goleman, D. (2015). Inteligência Emocional. Lisboa: Temas e Debates (edição original – 1995)

Le Boterf, G. (1997). De la compétence à la navigation professionnelle. Paris: Les Éditions d’Organisation

Piaget, J. (1969). Psychologie et Pédagogie. Paris: Denoel

Siemens, G. (2005). Connectivism: a learning theory for the digital age. In: http://www.itdl.org/journal/jan_05/article01.htm

Shulman, L. (1986). Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher, 15(2), 4-14

Vygotsky, L.S. (1977). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In A.R. Luria, L.S. Vygotsky & A.N. Leontiev, Psicologia e Pedagogia I: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. Lisboa: Estampa

Zeichner, K.M. (1983). Alternative paradigms of teacher education. Journal of Teacher Education, 34(3), 3-9

Page 35: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM CONTEXTOS DE REGULAÇÃO TRANSNACIONAL E NACIONAL4

José A. PachecoUniversidade do Minho

4. Comunicação apresentada na mesa redonda Formação inicial e contínua dos docentes em Cabo Verde no contexto da globalização: questionamentos, desafios e perspetivas de futuro

Page 36: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

36

INTRODUÇÃO

No seguimento de outros escritos (Pacheco, 2014; 2013; Pacheco & Pestana, 2014; Pacheco & Marques, 2014; Marques & Pacheco, 2013), a formação (inicial e contínua) de professores é abordada em contextos de regulação transnacional e nacional, com o propósito de analisar de forma crítica processos e práticas de olhar para o ensino e o professor a partir de reformas educativas e curriculares. Se a globalização impõe padrões de reformas, as mudanças nas políticas e práticas de formação de professores refletem diversas perspetivas, não sendo possível compreender a realidade das escolas somente a partir de formas de governamentalidade curricular que incidem em resultados e standards. Ao longo do texto, são evidenciadas diversas perspetivas que poderão contribuir para possíveis respostas em torno da formação de professores.

ARGUMENTANDO

Em tempos de uma globalização, que se transforma de um modo direto numa panaceia universal para resolver os problemas dos sistemas educativos, mais do que nunca a utilização de certas palavras-chave tornou-se numa retórica do controlo docente, sobretudo quando a escola e os resultados das aprendizagens escolares são associados a padrões de desempenho. Deste modo, qualidade, eficiência e prestação de contas são termos que alteram por completo as políticas e práticas de formação de professores, apesar de parecerem ser palavras simples, mas como diz Horkheimer (2014, p. 95), “a preferência por palavras e frases simples, que podem ser agregadas de um só golpe, é uma das tendências anti-intelectuais, anti-humanistas, manifestas no desenvolvimento da linguagem moderna, bem como da vida cultural em geral”.

Estando numa encruzilhada, com direção única para o topo da hierarquia, por evidente influência do programa norte-americano Race to Top, o ensino e o professor são condicionados pelo movimento de reforma de educação global, ou seja, direcionado para a estandardização, a prestação de contas externa, os testes à larga escala e a competição centrada na lógica de mercado, como reconhecem Hargreaves e Fullan (2012).

Page 37: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

37

Neste caso, a escola como negócio surge na realidade educacional, tendendo a “ser tutelada de acordo com o modelo da linha de montagem fabril” (Pinar, 2007, p. 53), e a identidade do professor é perspetivada como um gestor empresarial, assim definido por Hargreaves e Fullan (2015, p. XIII): “limita o currículo, volta-se para a tecnologia, prescreve e segmenta a instrução, ensina para os testes, reduz a literacia a pequenos trechos de compreensão em vez de envolvimentos mais significativos através de textos absorventes”. Quer dizer, assim, que o professor será alguém mais preocupado com a implementação das políticas governamentais do que com as respostas que se torna necessário dar às diversas necessidades dos alunos.

Esta situação está presente na descrição de duas governamentalidade curriculares muito presentes hoje em dia nas políticas educativas transnacionais e orientadas para a prestação de contas. Pacheco e Marques (2014, p. 108) sustentam que a abordagem centrada nos testes é essencialmente definida pela abordagem centrada em resultados e pela abordagem centrada em standards, ou seja, “duas governamentalidade curriculares expressas nas práticas quotidianas curriculares, cada vez mais inseridas numa lógica empresarial para a educação, em normas concretas para a privatização das escolas, em dispositivos de avaliação externa e em práticas de mercadorização curricular”.

Tais formas de governação curricular, que destacam, entre outros aspetos, o desempenho ao nível dos resultados, os testes à larga escala, com incidência nos testes transnacionais, de que o PISA é o padrão, o ranking de escolas e a linguagem das competências5, uma outra forma de apresentar objetivos de aprendizagem e metas curriculares, originam não só uma escolarização restrita, que inclui o core curriculum e provoca o mimetismo curricular, como também a coerção avaliativa, em que a avaliação é marcada pela resultados entendidos como scores numa prática de competição. Deste modo, o perfilhamento destas formas de governamentalidade curricular confronta o professor com o que pode ser denominado recontextualização performativa, isto é, uma coerção avaliativa, quer ao nível da produção de discursos, quer no plano das práticas, que sobrepõe as questões técnicas às pedagógicas, nomeadamente, questões sobre a eficiência e eficácia do processo educacional” (Biesta, 2013a, p. 41).

5. Sobre os discursos e linguagens de competência, cf. José Augusto Pacheco, 2011. Numa crítica à linguagem das competências, Ilmi Nillbergh, 2015, sustenta que a competência deve ser abandonada como conceito educacional, repondo-se a noção de bildung.

Page 38: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

38

Como se tratasse de um pêndulo que oscila entre o transnacional e o nacional, a globalização define as políticas educativas através de conceitos-chave e impõe padrões para a sua implementação, não pelos processos, mas pelos resultados. Esta é, de facto, uma mudança substantiva com reflexos no modo de perspetivar a profissionalidade docente, como bem analisou Maria Teresa Estrela em muitos dos seus escritos (Caetano, Rodrigues & Esteves, 2015).

De mão dada com a globalização anda a cultura de prestação de contas, que não para de crescer e que parece não ter fim, situando-se os professores “num movimento de pinça entre os pais e os burocratas” (Hargreaves & Fullan, 2012, p. 35), pois as políticas são cada vez mais “iniciativas administrativas fragmentadas, incoerentes e modistas” (Ibid., p. 36).

Deste modo, e recorrendo-se aos mesmos autores, o currículo é estandardizado e por vezes é prescrito em detalhes excruciantes, as escolas têm menos recursos, há turmas com mais alunos, há falta de tempo para o desenvolvimento profissional docente, exalta-se a importância dos testes, valoriza-se o ranking de escolas e as intervenções da inspeção escolar são mais rápidas e punitivas, para além de cultivar-se uma colaboração formal, burocrática e baseada em procedimentos administrativos.

E de que modo são procuradas alternativas que passam pela formação de professores?

Uma primeira resposta é sugerida por Labaree (2012) ao perguntar: “O que pretendemos realmente a partir das escolas?

Mais do que uma resposta social, a escola é uma ação conjunta, com a participação direta de pais, alunos e professores, para além de tantos e tantos intervenientes, com expetativas diferentes sobre o que esperam da escola. Clarificar os propósitos da educação e reconhecer que as políticas administrativamente controladas tornam as reformas inconsequentes é uma alternativa válida, reconhecendo-se que a centralidade dos resultados em detrimento dos processos de aprendizagem é um instrumento de racionalidade técnica e pragmática das funções da escola, no seguimento da racionalidade funcional weberiana6.

6. É pertinente a análise de Aaron Stoller, 2015, sobre a relação que existe entre taylorismo, ou gestão científica, e resultados de aprendizagem, sendo que estes são o prolongamento de uma tarefa.

Page 39: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

39

Uma segunda resposta tem de ser dada pela interrogação acerca do modo como são formados os professores tanto na sua situação de alunos como no decurso dos seus ciclos de vida profissional. Geralmente, a sua formação é um apêndice de reformas educativas e curriculares7. Lawes (2014) argumenta que novas orientações são precisas na formação de professores, tornando-se fundamental integrar quer académicos, que abordam as práticas escolares, quer professores, que integram nas suas práticas as abordagens teóricas. E sugerem uma ampla discussão internacional com o mapeamento dos problemas que existem em função das políticas transnacionais.

A este respeito trona-se crucial repensar o conhecimento (Marshall, 2014; Young, 2013), bem como os saberes docentes (Horden, 2014), num contexto de regulação transnacional e nacional, pois a educação, e muito menos o ensino, não é uma receita de aplicação universal. Neste caso, “o ensino não tem uma única dimensão. É muito menos simples do que a maioria das pessoas pensa. Além disso, não é só arte, mestria, ciência e vocação, ou mesmo uma combinação de tudo isto. O ensino é também uma profissão e um modo de trabalhar (Hargreaves & Fullan, 2012, p. 29). E como não existe um único modo de ensinar, a formação inicial e contínua de professores tem de reconhecer que o ensino ocorre, geralmente, em condições imperfeitas, face a expectativas e demandas conflituantes” (Ibid., p. 31).

Uma terceira – dentro de tantas respostas possíveis – pode ser dada com a noção de capital profissional, proposta por Hargreaves e Fullan (2012, p. XV), inserida nos contextos de formação inicial e contínua de professores e que definem como o “sistemático desenvolvimento e integração de três formas de capital – humano, social e decisional - na profissão docente”, reconhecendo que o seu poder se

7. Um estudo sobre a reforma curricular no ensino secundário de Cabo Verde foi realizado por Arlindo Vieira, na base de uma metodologia qualitativa-quantitativa, evidenciando os dados que a formação contínua de professores tem sido articulada com as necessidades de formação, com ênfase na abordagem por competências, a inovação mais recorrente introduzida pela revisão curricular implementada pela Administração central. O autor questionou o modo como o conceito de competência tem sido utilizado nos sistemas educativos como um marcado potencial de uma inovação ou mudança conceitual, com incidência em Cabo Verde, e sua associação direta aos saberes constantes dos programas das disciplinas. Os dados empíricos permitiram-lhe argumentar que as necessidades de formação de contínua dos docentes respondem a diversas perspetivas, que as suas práticas são diferenciadas e que a sua fundamentação teórica está prisioneira de uma lógica produtivista, sendo uma resposta a um processo de revisão curricular.

Page 40: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

40

expressa pela “transformação da escola pública efetivada por todos os professores em cada escola” (Ibid., p. XI), pelo que os professores devem ser tratados com dignidade, como pessoas, que vivem e têm uma carreira, e não como “performers” a quem se exige a produção de resultados” (Ibid., p. XI).

Deste modo, e numa síntese do que configura o capital profissional em termos de prática docente, os professores devem ter competência, julgamento, intuição, inspiração e capacidade de improvisação, devem decidir pela assunção de uma responsabilidade coletiva, de abertura ao feedback e demonstrando transparência, devendo, ainda, ser considerados os contextos ou condições de ensino. Porém, o capital profissional pode vir a tornar-se num conceito-chave que facilmente é associado a perspetivas de racionalidade técnica da educação e formação de professores, acentuando essencialmente as competências docentes em detrimento da subjetividade que é a razão de ser do modo como o professor se autoavalia e se motiva na busca de respostas para os problemas que enfrenta quotidianamente.

CONCLUINDO

Não há dúvida de que o professor é um profissional que detém um capital profissional, no sentido que desenvolvem Hargreaves e Fullan (2012), que inclui não só o domínio de capacidades, mas também de crenças e atitudes que estão presentes no momento em que tem de decidir. Analisar, por isso, a formação de professores pelo lado da abordagem deliberativa do currículo (Biesta, 2013b), num constante reconhecimento que o professor decide em contexto, com barreiras que lhe são impostas pelas políticas centralizadas e ancoradas em padrões e em resultados (Pacheco & Marques, 2013), é reconhecer uma problemática de conflito, com discussões presentes em muitos países que se tornam num pêndulo que oscila entre o que é considerado o “conhecimento poderoso”, tal como é definido por Young (2010), e o que significa a comunidade em que o professor trabalha, numa forte ligação ao que pressupõe a consideração da agência e da subjetividade, como é explorado por Pinar (2015). Assim, a formação (inicial e contínua) de professores é um processo de enorme complexidade que não pode ser dissociado dos mecanismos formais e informais de regulação transnacional e nacional, nem tampouco de reformas educativas, cada vez mais circunscritas a conceitos-chave que marcam o ritmo da competição escolar em busca da excelência individual. Por

Page 41: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

41

último, a obsessão em torno dos resultados e consequente valorização dos testes, não apenas se inscreve numa conceção pragmática de olhar para a educação e formação de professores, como igualmente provoca na educação e na formação de professores uma disfuncionalidade curricular, lançando uma neblina sobre as escolas e os professores que torna o presente mais sombrio, falando assim o poeta cabo-verdiano8:

“Entre o que é o passado

e o que ainda não é tempo,

nossos momentos júbilos,

acaso um persistente inferno”

REFERÊNCIAS

Biesta, Gert (2013a). Para além da aprendizagem. Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica.

Biesta, Gert (2013b). Knowledge, judgment and the curriculum: on the past, present of the future of the idea of practical. Journal of Curriculum Studies, 45 (5), 684-696.

Caetano, Ana Paula, Rodrigues, Ângela, & Esteves, Manuela (2015). As ciências da educação na obra de Maria Teresa Estrela. Lisboa: Educa.

Hargreaves, Andy & Fullan, Michael (2012). Professional capital. Transforming teaching every scholl. London: Routledge.

Hordern, Jim (2014). The logic and implications of school-based teacher formation. British Journal of Educational Studies, 62 (3), 231-248.

Horkheimer, Max (2015[1944]). O eclipse da razão. Lisboa: Antígona.

Labaree, David F. (2012). Someone has to fail. The zero-sum game of public schooling. Cambridge: Harvard University Press.

Lowes, Shirley (2014). Editorial: new directions in teacher education. British Journal of Educational Studies, 62 (3), 227-230.

8.  Arménio Vieira, Sequelas do Brumário, 2014, p. 69.

Page 42: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

42

Marques, Micaela, & Pacheco, José Augusto (2013). Produção académica sobre docência. Uma análise centrada num olhar de avaliação externa de escolas. Intermeio, 19 (38), 13-25.

Marshall, Toby (2014). New teachers need acess to powerfull educational knowledge. British Journal of Educational Studies, 62 (3), 265-279.

Morgan, John (2014). Michael Young and the politics of the school curriculum. British Journal of Educational Studies, 63 (1), 1-18.

Nillbergh, Ilmi (2015). The problema of “competence” and alternatives from the Sandinavian perpectives of Bildung. Journal of Curriculum Studies, 47 (3), 334-354.

Pacheco, José Augusto. (2014). Políticas de avaliação e qualidade da educação. Uma análise crítica no contexto da avaliação externa de escolas, em Portugal. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, 19 (92), 363-371 [http://dx.doi.org/10.1590/S1414-40772014000200005].

Pacheco, José Augusto (2013). Políticas de formação de educadores e professores em Portugal. In M. R. Olivera & J. A. Pacheco (Org.), Currículo, didática e formação de professores. (45-68). Campinas: Papirus.

Pacheco, José Augusto (2011). Discursos e lugares das competências em contextos de educação e formação. Porto: Porto Editora.

Pacheco, José Augusto & Marques, Micaela (2014). Governamentalidade curricular: ação dos professores em contextos de avaliação externa. In M. R. Oliveira (Org.), Professor: formação, saberes e problemas (pp. 105-136). Porto: Porto Editora.

Pacheco, José Augusto & Pestana, Tânia (2014). Globalização, aprendizagem e trabalho docente: análise de culturas de performatividade. Educação, 37 (1), 24-32.

Pinar, William F. (2015). Educational experience as lived: knowledge, history, alterity. The selected works of William F. Pinar. New York: Routledge.

Stoller, Aaron (2015). Taylorism and the logic of learning outcomes, 47 (3), 317-333.

Vieira, Arlindo Mendes (2014). Análise das necessidades de formação contínua de professores do ensino secundário de Cabo Verde no contexto da revisão curricular [Tese de doutoramento] Braga: Universidade do Minho.

Young, Micheal (2010). Currículo e conhecimento. Porto: Porto Editora.

Young, Micheal (2013). Overcoming the crisis in curriculum theory. A knowledge-based approach. Journal of Curriculum Studies, 45 (2), 101-118.

Page 43: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

MODELOS DE FORMAÇÃO (INICIAL E CONTÍNUA) PARA OS PROFESSORES EM CONTEXTOS DE

REFORMAS CURRICULARES EM CABO VERDE - CONTRIBUTOS PARA UMA REFLEXÃO9

Arlindo VieiraUniversidade de Cabo Verde

[email protected]

9. Comunicação apresentada na mesa redonda Formação inicial e contínua dos docentes em Cabo Verde no contexto da globalização: questionamentos, desafios e perspetivas de futuro.

Page 44: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

44

INTRODUÇÃO

Em Cabo Verde procurou-se desenvolver, ainda que esporadicamente, algumas atividades de formação profissional contínua dos docentes, sobretudo, em esquemas de ações de supervisão e acompanhamento de alguns projetos de formação que a Direção Geral do Ensino Básico e Secundário (DGEBS), atual Direção Nacional de Educação (DNE), vinha desenvolvendo na modalidade de seminários, sendo o modelo escolar, na terminologia de Démailly (1995), o predominante em larga escala, com recurso, muitas vezes, a entidades externas. No entanto, se excetuarmos as poucas ações desgarradas (e com objetivos dispersos) ficam aquém das expetativas (Barreto, 2003).

Em relação à formação inicial, desenvolvida na Universidade e no Instituto de Educação, trata-se de modelos de formação estruturantes, na terminologia de Nóvoa (1991a), que prevalecem no subsistema de formação de professores cabo-verdianos, cujas práticas (comportamentalista, tradicional, escolar, universitário) são organizadas, previamente, a partir de uma lógica de racionalidade científica e técnica e aplicada aos diversos grupos de professores e de candidatos à profissão sem se conhecer as suas reais necessidades. A tendência é para as práticas academicistas e de valorização, quase que exclusiva, de conteúdos específicos do currículo, ainda que as evidências mostrem outros campos e áreas como de igual importância (Cachapuz, 2003).

DESENVOLVENDO

A tendência na formação de professores, hoje, é para seguir agendas globalizadas, politizadas e performativas, que conduzem mais à estandardização e uniformização (Pacheco, 2013). Porém, a diversidade de modelos tem coexistido, de alguma forma, em vários países da sub-região africana, onde Cabo Verde não é excludente. Esses modelos de formação (inicial, de indução, de carreira e o programa de Desenvolvimento Profissional Contínuo) são muito adotados nesta sub-região. Estes modelos conferem possibilidade de transferir uma parte do conteúdo para as fases mais avançadas (SEIA, 2007), e têm revelado ser mais pertinentes para os professores e terem maior impacto na prática de sala de aula (Lewin, 2000; Zabalza, 2003). Decorre que o Programa de Desenvolvimento Profissional Contínuo (DPC),

Page 45: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

45

articulado com as necessidades de formação, não só auxilia os professores a lidar com as reformas e mudanças curriculares e os métodos em evolução (SEIA, 2007) mas também para estimulá-los e motivá-los para o exercício da profissão (Lemos, 1993; Neves, 2000).

O modelo baseado na compensação de deficiências da formação inicial, designado de “problem-solving paradigma” de Éraut (1985) e de “defect approach” de Jackson (1971), ajustado ao programa de DPC visa o aperfeiçoamento do professor e a melhoria educativa na escola. Este modelo híbrido deve articular, igualmente, ao de desenvolvimento curricular, organizacional ou de projetos, através da investigação para ação (Formosinho e outros, 2009) que integre processos de mudança, inovação, com conteúdos académicos e disciplinares na formação pedagógica (Estrela, 2005, p.447), entendido “como um processo mais vivencial e mais integrador do que a formação contínua”. É um processo em contexto e não puramente individual.

O desenvolvimento profissional dos professores centrados na escola e no aprofundamento dos conhecimentos e na melhoria das suas práticas curriculares costumam apresentar melhores resultados do que aqueles que põem a tónica na cobertura de um grande número de tópicos (Coolahan, 2002). A este respeito, a formação contínua, no sentido de desenvolvimento profissional, poderá articular com as necessidades de formação se for adotado como um modelo de diagnóstico das necessidades e superação das deficiências da formação inicial de professores que permita manter o currículo em sintonia com as necessidades da atualidade a ser considerado na estruturação de novos currículo de formação.

COMO ARTICULAR OS SEUS PROCESSOS COM AS NECESSIDADES DE FORMAÇÃO?

Da análise dos dados dos respondentes do nosso estudo depreende-se manifestação de interesse em participar na formação contínua. Os entrevistados sugerem que se deva implementar uma formação contínua que aprofunde todos os conteúdos trabalhados no âmbito da nova abordagem pedagógica adotada. Nestes pressupostos, defendemos ser urgente a criação de instrumentos jurídicos que regulamentem e clarifiquem as responsabilidades para uma formação contínua

Page 46: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

46

que seja, de facto, efetiva e articulada com os processos de análise e deteção das reais necessidades dos professores em contextos laborais.

Face a essas novas demandas e aos novos papéis que os professores estão a ser chamados a desempenhar, no quadro destas reformas curriculares, torna-se urgente aprovar um Regime Jurídico de Formação Contínua de Professores de Cabo Verde (RJFCPCV) que regulamente as modalidades de formação, podendo estas revestirem-se de diversas formas como: cursos práticos de curta duração, projetos pessoais e profissionais, oficinas culturais, seminários de partilha, círculos de estudos e a outras que venham ser definidas, bem como os seus processos de estruturação.

Em termos da sua implementação, torna-se imperioso contemplar uma rede de Universidades, de Institutos e de Escolas Superiores. Na sua organização, sugere-se a criação de uma Comissão Nacional de Coordenação Científica de Formação Contínua de Professores (CNCC-FCP). A nível das Delegações de Educação, urge a criação de um órgão científico que coordene as Comissões Municipais. A Comissão Nacional de Coordenação Científica desenvolve as suas atividades em parceria com as diversas entidades formadoras. Compete a estas entidades coordenar, avaliar e superintender as Ações de Formação Contínua (AFC). A qualidade da formação ministrada deverá ser assegurada pela acreditação das entidades formadoras, dos formadores e das Ações de Formação Contínua que, também, deverão ser creditadas, ficando a cargo da Comissão Nacional de Coordenação Científica de Formação Contínua de Professores (CNCC-FCP).

A administração das Ações de Formação Contínua deverá ficar sob a orientação das entidades formadoras em estreita colaboração com o ME pelo estabelecimento de prioridades de programas nacionais relacionados com a reforma curricular. A coordenação, a administração e avaliação da formação a cargo das instituições de formação em concertação com as direções das Escolas. Os Centros de Formação Contínua de Professores (CFP) devem ser sediados nos polos educativos, para os do Ensino Básico, e nas respetivas Escolas Secundárias para os de Secundário.

A organização e a conceção da formação deverão ser desenvolvidas com base em parceria (Nóvoa, 1991a) entre as instituições existentes vocacionadas para esse efeito. A colaboração com instituições internacionais, já com vasta experiência no

Page 47: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

âmbito de formação contínua dos professores, pode ser uma opção. Essa conceção exigirá, certamente, uma rotura com o modelo de organização disciplinar dos tempos e dos espaços, exigindo, assim, a emergência de equipas multidisciplinares e abertura das escolas a outros profissionais da educação (Estrela, 2001). Teria de ser, igualmente, realista em termos das funções docentes e passaria, também, por uma redistribuição racionalizante do trabalho escolar. Como corolário, os problemas dos professores passariam a ser reequacionados. Deverá estar intimamente relacionada com princípios que advogam o trabalho em equipa, a coordenação docente e a colegialidade, a interdisciplinaridade, a integração curricular e comunitária, etc.

Na maior parte dos países desenvolvidos existe regulamentação sobre acreditação e/ou avaliação dos organismos de formação contínua. Estes dois procedimentos estão representados de forma mais ou menos equitativa. Em alguns países da União Europeia, por exemplo, a conceção de programas de formação contínua é totalmente descentralizada e é da responsabilidade das escolas. Por conseguinte, as escolas e as autoridades locais responsáveis pelo ensino oferecem programas de formação baseados nas necessidades dos professores e das escolas. Neste sentido, a formação contínua poderá articular-se nos seus processos com as necessidades de formação de professores, centrando, de facto, na escola e nas reais necessidades dos professores no contexto das reformas curriculares, vinculado ao seu projeto de desenvolvimento pessoal e profissional, situando-nos, aqui, no paradigma de desenvolvimento de Zabalza (2003).

Entendemos que essa perspetiva de desenvolvimento profissional docente deverá aparecer como uma condição essencial para a melhoria da qualidade de ensino e “como solução para os problemas mais complexos da escola atual” (Pardal & Martins, 2005, p. 103). Acrescentaríamos que ela deverá constituir-se como instrumento de apoio a uma melhor qualidade de vida profissional dos docentes, desenvolvendo-se nas suas mais diversas vertentes e dimensões (éticas, sociais, pessoais) o que pressupõe um leque variado de perspetivas de aprendizagem.

No entanto, os processos possíveis para determinar as necessidades de formação são múltiplos, quer quanto ao ponto de vista científico adotado, quer quanto aos intérpretes privilegiados na expressão dessas necessidades (Esteves, 1991).

Page 48: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

48

Conforme referem alguns autores (Pacheco e Flores, 1999), os processos de análise das necessidades de formação do professor e da escola devem ser, pois, integrados num sistema orientado para o desenvolvimento, articulando a avaliação do desempenho docente, a reforma do currículo e as estratégias de formação contínua.

Em suma, os processos de formação contínua de professores poderão visar diversos objetivos e responder a diferentes necessidades, desde as prioridades educativas definidas a nível nacional até às preocupações específicas das escolas ou dos professores, a nível individual. Poderão ser organizados de várias formas e ser sempre propostos por organismos de formação acreditados.

COMO ARTICULAR AS SUAS PRÁTICAS COM AS NECESSIDADES DE FORMAÇÃO?

No âmbito da sua planificação, propomos que o processo de análise de necessidade de formação contínua assuma duas dimensões: primeira, a prospetiva, pesquisando necessidades potenciais que permitissem rever e melhorar ou até alterar programas, serviços, estruturas ou mesmo criar outros mais condicentes e, segunda, a retrospetiva, procurando compreender em que medida as necessidades estabelecidas foram satisfeitas (Rodrigues, 2006). Neste sentido, pode dizer-se que a formação contínua se articular-se-ia nas suas práticas, com as necessidades de formação se assentar na resolução de problemas sentidos e vivenciados no cotidiano escolar, quer pelos profissionais de ensino como pelos responsáveis da comunidade educativa.

Esta conceção de formação requer mudanças substanciais, tanto nos processos e modalidades de formação, como nos espaços de intervenção colegial na escola. Como já dissemos, esta formação terá de ser concebida num ambiente educativo, onde trabalhar e formar sejam complementares e nunca atividades distintas (Amiguinho, 1992; Jesus, 2002), e passaria por uma formação centrada na escola (Amiguinho & outros, 1994), entendida como uma estratégia suscetível de assegurar a diversidade, a contextualização (Pacheco & Pereira, 2006) e a pertinência dos processos e ofertas educativas (Canário, 1994). Nesta conceção, os problemas da escola apelam para a formação do profissional enquanto pessoa total. Estas

Page 49: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

49

análises apoiam a asserção dos responsáveis do serviço central entrevistados, segundo os quais “a formação tem de servir o professor na sua integralidade: no aspeto científico, pedagógico, moral, psíquico, capaz de uma cidadania ativa (…), quer dizer todas essas dimensões têm que ser trabalhadas e não podem ser descuradas, no seu todo, porque o professor é um formador”. Está aqui subjacente a ideia de que o professor não atue apenas como técnico ou como intelectual distanciado, muito menos como reprodutor ou mero aplicador do currículo.

Nesta abordagem, os professores cabo-verdianos terão de ser sujeitos ativos nas diversas fases do processo, nomeadamente na conceção, no acompanhamento e na avaliação da formação (Figari, 1996). Esta proposta de modelo de formação deverá apoiar no referencial teórico de formação relacional proposto pelo Jesus (2002) no sentido de proporcionar, de forma integrada e interativa, o desenvolvimento de qualidades e competências pessoais e interpessoais, que contribuam para uma apropriação personalizada e significativa da prática educativa (Formosinho e outros, 2009), desenvolvendo os sentimentos de realização profissional (Formosinho & Ferreira, 2009; Pacheco, 2010; Morgado, 2010; Estrela, 2010).

Defendemos, entretanto, que o desenvolvimento profissional docente em Cabo Verde deverá ser desenvolvido na base das dimensões formativas dos contextos de trabalho que privilegiam a integração e o relacionamento do campo de formação informal com o formal, orientado nos processos formativos, na base de aprendizagem e de experiência de vida. Esta formação deve ser perspetivada numa lógica transversal e dinâmica, pressupondo que a sua prática vá ao encontro das necessidades formativas dos professores e que se centre nos seus problemas reais, permitindo manter o currículo em sintonia com as necessidades de momento (Rodrigues & Esteves, 1993; Vieira, 2006). Esta lógica de formação, de estar abraçada a certas políticas curriculares nacionais, responde ao discurso recente de muitos dos formadores de professores, a nível mundial, que consideram que a profissão do professor deva evoluir numa perspetiva de profissionalização (Morgado, 2005), entendida no sentido de reconhecimento de status social (Estrela, 2001) e também como desenvolvimento, pelo próprio corpo docente, de um repertório de saberes específicos e próprios que contribuam para o sucesso e qualidade educativa.

Page 50: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

50

EM JEITO DE CONCLUSÃO

Defendemos que tanto a formação contínua como a formação inicial devam relacionar-se de forma mais efetiva. Os centros de formação (Universidades, Institutos e Escolas de Educação e outras entidades formativas) devem ser estruturados numa lógica relacional com base em planos estratégicos que consagrem condições concretas para que as interações entre a formação e a ação sejam constantes e cooperativas. Daí, torna-se terminante que, tanto na formação inicial como na contínua, superem a conceção academicista do desenvolvimento profissional, na qual o professor individual se coloca como recetor de formação. É necessário que esse modelo de formação de professor se centre numa conceção relacional cultural e socioconstrutivista em que, numa perspetiva colaborativa, o professor desenhe o seu processo de desenvolvimento profissional permanente, numa lógica de formação baseada na análise, discussão, investigação e resolução dos problemas inerentes à prática pedagógica efetiva, entendida como um processo apropriativo de oportunidades educativas, vividas no cotidiano escolar.

A terminar, enfatizamos aqui uma visão estratégica que preconize uma estreita articulação entre a formação contínua e os seus modelos, processos e práticas com as necessidades de formação dos professores. Estas dimensões têm de ser contempladas e abordadas de forma coerente e intrinsecamente articuladas, na procura da inovação e da qualidade. Assim, a dinâmica que se estabelece entre o desenvolvimento profissional e a socialização profissional, nos seus preceitos e processos, deve ser enquadrada, também, nos modelos de formação profissional contínua de professores que, no caso de Cabo Verde, se torna urgente a sua regulamentação e institucionalização.

REFERÊNCIAS

AMIGUINHO, A. (1992). Viver a formação, construir a mudança. Lisboa: Educa.

AMIGUINHO, A.; BRANDÃO, C. & MIGUÉNS, M. (1994). ESE de Portalegre e Centros de Formação: Uma Experiência de Parceria. In A. Amiguinho & R. Canário, (org.), Escolas e Mudança: O Papel dos Centros de Formação. Lisboa: Educa.

Page 51: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

51

BARRETO, M.ª (2002). Uma Experiência de Formação de Professores Formadores do Instituto Pedagógico de Cabo Verde In Estrela, A. & Ferreira (Org.). A Formação de Professores à Luz da Investigação. Universidade de Lisboa: XII Colóquio. AFIRSE (II).

CACHAPUZ, A. F. (2003). Do que temos, do que podemos ter e temos direito a ter na formação de professores: em defesa de uma formação em contexto. In Barbosa, R. L. R. Formação de Educadores: desafios e perspectivas, 451-466. São Paulo: UNESP.

CANARIO, R. (1994). Centros de Formação de Associações de Escolas: que futuro? In A. Amiguinho & R.Canário, (org.), Escolas e Mudança: O Papel dos Centros de Formação. Lisboa: Educa.

COOLAHAN, J. (2002). Teacher Education and the Teaching Career in an Era of Lifelong Learning. OECD: Directorate for Education. Education Working Paper (2).

DÉMAILLY, L. (1995). Modelos de Formação Contínua e Estratégias de Mudança. In Nóvoa, A. (Coord.). Os Professores e a sua Formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote. IIE.

ESTEVES, M. (1991). Alguns Contributos para a Discussão sobre a Formação Contínua de Professores. Inovação. Lisboa: IIE. (4) 1.

ESTRELA, M.ª T. (2001). Realidades e Perspetivas da formação contínua de professores. Revista de Educação, 14 (1), pp.27-48. Universidade do Minho: CEEP.

ESTRELA, Mª. T (2005). Os saberes docentes vistos por eles próprios. Revista Portuguesa de Pedagogia, (2) 433-450.

ESTRELA, Mª. T. (2010). Profissão Docente – Dimensões Afectivas e Éticas. Lisboa e Porto. areal editores.

FIGARI, G. (1996). Avaliar, que referencial? Porto: Porto Editora.

FORMOSINHO, J. & MACHADO, J. (2009). Professores na escola de massas. Novos papeis, nova profissionalidade in J. FORMOSINHO, (2009). (org), Formação de professores. Aprendizagem profissional e ação docente. Porto: Porto Editora.

FORMOSINHO, J. & FERREIRA, F. (2009). Concepções de professor. Diversificação, avaliação e carreira docente. In J. Formosinho (coord.), Formação de Professores.Aprendizagem profissional e ação docente, 19-36. Porto: Porto Editora.

Page 52: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

52

JESUS, S. (2002). Perspetivas Para O Bem-Estar Docente- Uma Lição de Síntese. Porto: ASA Editores II.

NÓVOA, A. (1991a). Concepções e Práticas de Formação Contínua. Formação Contínua de Professores: Realidades e Perspetivas, 15-38. Aveiro: Universidade de Aveiro.

MORGADO, J. (2005). Currículo e Profissionalidade Docente. Porto: Porto Editora.

MORGADO, J. (2010). O Processo de Bolonha e Políticas de Formação de Professores em Portugal. In L. Santos et al. (orgs), Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente, 244-266. Belo Horizonte: Autêntica. Textos seleccionados do XV ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino realizado na UFMG.

PACHECO, J. (2010). O Processo de Bolonha e a Política de Formação de Educadores e Professores em Portugal. In L. Santos et al., (org), Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente, 228-243. Belo Horizonte: Autêntica. Textos seleccionados do XV ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino realizado na UFMG.

PACHECO, J. (2013). Políticas de Formação de Educadores e Professores em Portugal. In Oliveira, M. e Pacheco, J. (orgs). Currículo, Didática e Formação de Professores. Campinas, SP: Papirus Editora.

PACHECO, J. & PEREIRA, N. (2006). “Globalização e identidades educativas. Rupturas e incertezas. “ Revista Lusófona de Educação, 8, 13 - 28.

PACHECO, J. & FLORES, M. (1999). Formação e avaliação de professores. Porto: Porto Editora.

PARDAL, L. e MARTINS, A. (2005). “Formação contínua de professores: concepções, processos e dinâmica profissional”, in Psicologia da Educação, nº 20 1º, São Paulo, pp. 103-117.

RODRIGUES, A. & ESTEVES, M. (1993). Análise de Necessidades na Formação de Professores. Porto: Porto Editora.

RODRIGUES, A. (2006). Análises de práticas e de necessidades de formação. Ciências da Educação (50). Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular. Ministério da Educação.

Page 53: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

53

VIEIRA, A. (2006). Análise de necessidade de formação na formação contínua dos professores do ensino básico integrado em Cabo Verde – Contributo para o seu estudo. Revista científica. Revista de Estudos Cabo-verdianos, 139-156. Praia: Cni Uni Cv, Universidade de Cabo Verde. Publicação Trimestral, 3/4.

ZABALZA, M. (2003). Planificação e Desenvolvimento Escolar na Escola. 7ª Edição. Lisboa: Edições ASA.

WEBGRAFIAS

SEIA, Relatorio do Ensino Secundário na África(2007). “Na Encruzilhada: Escolhas para o Ensino Secundário e Formação Profissional na África Subsariana.” Departamento de Desenvolvimento. Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/INTAFRREGTOPSEIA/Resources/SEIA_Synthesis_portuguese.pdf. Acesso em Abril de 2008, pelas18h34mn.

Page 54: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

PROCESSOS EDUCATIVOS EM DINÂMICAS COLONIAIS E PÓS-COLONIAIS EM CABO VERDE: NOVAS ABORDAGENS, OUTRAS PERSPECTIVAS

METODOLÓGICAS.

Elias Alfama Vaz MonizUniversidade de Santiago

[email protected]

Page 55: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

55

INTRODUÇÃO

Este artigo insere se numa pesquisa mais alargada sobre a história da educação colonial e pós-colonial em Cabo Verde, enfatizando as perspetivas históricas e dinâmicas contemporâneas de processos educativos em Cabo Verde. Visamos realizar uma análise sócio-histórica sobre uma das problemáticas mais pertinentes para a clarificação de questões educativas em Cabo Verde, no quadro das suas transformações políticas, sociais e culturais no período pós-colonial.

Neste sentido, a metodologia histórica que delineamos não pretende recuperar um passado condensado e de via única, focado na diacronia dos sistemas educativos e na dialética das ideias pedagógicas no contexto pós-colonial, nem aspira engendrar uma história da educação na viragem dos tempos coloniais para os pós-coloniais.

Em análise está a possibilidade de arregimentar, no âmbito das reflexões sobre esta matéria em Cabo Verde, os subsídios das várias leituras de processos educativos, as temáticas e as problemáticas que estes diferentes olhares, com base em tradições historiográficas e epistemologias de conhecimento díspares, engendraram, e neles encontrar os fios de uma história cruzada da cultura escolar no espaço insular cabo-verdiano. A cultura escolar que, no entender de Dominique Julia, não pode ser estudada sem analisar as relações, de conflito ou pacíficas, que ela mantém, em cada período da sua história, com o conjunto das culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular (Julia, 1995: 354).

O foco na cultura escolar possibilita entrecruzamentos de distintas experiências, perfiladas com os rumos diferenciados das arenas coloniais e dos seus sistemas educativos, e com experiências de alfabetização, de escolarização e de ensino particulares. Arquitetar a história da cultura escolar colonial implica, portanto, analisar práticas coordenadas com finalidades – religiosas, sociopolíticas, ou simplesmente de socialização – que podem variar segundo as épocas e as órbitas territoriais.

No tangente à periodização, estamos face a um quadro temporal que se estende por um período que se aproxima de século e meio de transformações relacionadas

Page 56: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

56

com os sistemas de transmissão de saberes, as instituições e as práticas escolares, e cuja dimensão faz antever um trabalho de descrição e análise de processos históricos concretos, agrupados em quatro momentos-chave na história da configuração do sistema educativo cabo-verdiano: 1) A História da Educação durante o período de instalação do sistema colonial (Século XIX – inícios do século XX); 2) O Colonialismo moderno e a construção da escola de massas no império colonial (século XX); 3) A Educação e o ensino no período pós-colonial (meados dos anos 70 aos anos 90) e; 4) Os meandros do ensino superior em Cabo Verde (meados dos anos 90 aos inícios do século XXI).

CONTEXTUALIZAÇÃO

O debate em torno de questões e procedimentos metodológicos de trabalho histórico concernente à abordagem a questões educativas em situações de colonização tem merecido especial atenção de estudiosos de vários domínios do conhecimento que se têm reunido em fóruns de diversa natureza, nomeadamente, seminários, colóquios, congressos, etc., na sequência dos quais publicações de enorme relevância para o entendimento destas temáticas têm surgido.

No mundo lusófono, Portugal tem sido um dos promotores de destaque, estimulando a realização de eventos, como os atrás elencados, ou incentivando a criação de centros virados para tais estudos. Os resultados destes incentivos têm aparecido em publicações que estão a contribuir para o desenvolvimento do campo da História da Educação Colonial portuguesa. Em 1995 foi publicado o “The Colonial Experience in Education: Historical Issues and Perspectives” que reuniu textos de pesquisadores de várias áreas, fazendo um ponto de situação sobre a literatura neste domínio e uma pauta de trabalho contingente, assim como estudos de caso no campo da educação colonial em África. Um ano depois, foi publicado o volume, em português e castelhano, que buscava fazer uma conformação aos desdobramentos de pesquisas no domínio da história da educação no mundo ibero-americano, de modo a reforçar laços de cooperação académica e científica entre as comunidades de investigadores participantes no Congresso da ISCHE. Assim, os anos 90 indiciavam caminhar no sentido de uma reformulação teórica da temática educacional, demarcando-se daquela ótica educacional virada para as questões economicistas ou nas narrativas das estruturas antropológicas, a cujas dinâmicas a cultura escolar se encadearia.

Page 57: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

57

Sucederam-se um conjunto de eventos que clarificaram esta tendência, entre os quais a realização de congressos, colóquios e conferências em que as Ciências da Educação ganhavam grande centralidade nos debates da história, da cultura e da própria contemporaneidade educativa no universo da lusofonia.

É de realçar, verbi gratia, a realização dos colóquios “Construção e Ensino da História de África” (1994), “O Espaço Lusófono Áfricano: Perspectivas Históricas e Realidades Actuais” (1995), “África de língua portuguesa: presente e futuro” (1996) e a “III Reunião Internacional de História de África” (1999). No entanto, no tangente à produção científica, a questão educativa não saiu do campo dos estudos de caso vinculados a estados nacionais, quer no tocante a critérios historiográficos, quer temáticos, ligados, quase sempre, às questões da globalização económica ou às estratégias de desenvolvimentos e de cooperação internacional em matéria de educação.

Constituem excepções, neste âmbito, alguns, poucos, estudos realizados por Monteiro (1987), Paulo (1992), que alargaram um pouco mais o espetro da produção científica no campo da educação. No mais, a perspectiva histórica manteve-se no limbo das narrativas sobre a história do colonialismo português. De realçar, na contramão destas tendências, a publicação da História da Expansão Portuguesa10, que integrou no campo da história dos descobrimentos portugueses a temática da educação colonial (Paulo, 1999, p.p, 304-333), pondo em evidência, para os investigadores que laboravam em outros campos, a relevância das Ciências da Educação para o estudo do colonialismo, numa demonstração clara que a compreensão da cultura colonial demandava um encadeamento interdisciplinar mais denso.

O final dos anos noventa reforçou a tendência da viragem na investigação histórica e comparada com a África, acentuando uma mudança de rumo, com a perspectiva comparada a despertar cada vez maior interesse no domínio da História da Educação (Nóvoa e Popkewitz, 1992; Nóvoa e Schriewer, 2000; Schriewer e Nóvoa, 2001), e em torno desta nova perspectiva, há um cada vez maior número de investigadores com projectos em comuns, em Portugal e no Brasil (Castelo, 1998; Marroni, 2008).

10.  Bethencourt e Chaudhuri, 1998.

Page 58: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

58

Em relação à África lusófona e Cabo Verde em particular, a urdidura de redes de trabalho histórico-comparado não tem sido prática bem-sucedida, não obstante os relevantes aportes advenientes de trabalhos realizados por investigadores africanos e portugueses no domínio da história da educação colonial evidenciados em teses de mestrado e doutoramento em instituições de ensino superior portuguesas e brasileiras (Lopes 1995; Rodrigues, 2007).

A Educação Comparada, na atualidade, no âmbito de processos globalizatórios no domínio educativo e pela amplitude das suas repercussões em sociedades com modelos pedagógicos e culturas de escola muito diferenciadas, está a ganhar cada vez maior ressonância nas abordagens históricas. Os discursos que emergem destes diálogos indiciam o surgimento de novas arenas de relação, a criação de novas bases identitárias, recuperam significações e reatualizam-nas em conformidade com os novos aparatos de regulação supranacional.

Os prenúncios destas transformações estão explícitos no programa Ciência Global, envolvendo os países da CPLP no âmbito da formatação do Centro UNESCO para a Formação Avançada de Cientistas de Países de Língua Portuguesa, orientado “para o desenvolvimento dos países e não apenas dos investigadores individuais, numa perspectiva estruturante com o envolvimento institucional dos vários países” e do ponto de vista de “participação em redes e projectos internacionais inovadores à escala internacional” (CPLP, 2009, 1).

Em Cabo Verde, desde a implementação da lei de bases nº 103/III/90, que institui sobre as directrizes do sistema educativo cabo-verdiano, o debate sobre o ensino superior tem sido inócuo, sem adentrar no âmago da questão. Não há registos de estudos desenvolvidos por investigadores debruçando sobre o ensino superior. Há, efetivamente, uma profusão de estudos realizados sobre os segmentos inferiores, que já resultaram em monografias, dissertações, teses académicas e livros.

Relativamente ao ensino superior em Cabo Verde encontramos, fundamentalmente, diretivas governamentais, relatórios oficiais e outros documentos publicados por instâncias oficiais, que não se aprofundam em análises críticas ao sistema. Não obstante a prevalência de análises superficiais sobre a questão, acreditamos ser possível mudar a tendência dos debates sobre o ensino superior em Cabo Verde e enriquecê-los, descentralizando as arenas de debates

Page 59: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

59

sobre esta temática, deslocando-os da esfera política para a académica. É este desafio que se coloca àqueles que laboram no meio académico e que queremos abraçar, colaborando para a mudança do centro de análises do ensino superior em Cabo Verde da esfera política para a académica, amparados em outras perspectivas metodológicas, como a dos estudos pós-coloniais, produzindo novas abordagens.

BREVE ANÁLISE DA DOCUMENTAÇÃO

Trazer os debates sobre o ensino superior em Cabo Verde para a arena académica obrigaria, desde logo, a mudanças no campo epistemológico, cujas ações concorrem para a concepção de um conhecimento histórico crítico que abarque a utilização de metodologias comparadas (Nóvoa, 1995b) e abordagens relacionais - História cruzada, estudos de transferência e abordagens baseadas na shared ou connected history (Steiner-Khamsi, 2000; Werner & Zimmermann, 2003); implicaria uma maior atenção às metodologias baseadas na análise do discurso; o recurso a quadros metodológicos escudados nas teorias da recepção e nos mecanismos de tradução associados à incorporação de culturas, ideologias e concepções de ensino-aprendizagem (Rose, 1999); articulação de metodologias quantitativa e qualitativa, incluindo a análise e interpretação de estatísticas nacionais e internacionais.

No referente à articulação de metodologias, quantitativa e qualitativa, impõe-se fazer referência à questão das fontes, clarificando o conceito que nos parece mais adequado para um debate mais enriquecedor: no entendimento de Rousso (1996), as fontes abarcam:

«todos os vestígios do passado que os homens e o tempo conservaram sejam eles originais ou reconstituídos, minerais, escritos, sonoros, fotográficos, audiovisuais, ou até mesmo virtuais (desde que tenham sido gravados numa memória) e que o historiador, de maneira consciente, deliberada e justificável, decide em erigir em elementos comprobatórios da informação a fim de reconstituir uma sequência particular do passado, de analisá-la ou de restituí-la aos seus contemporâneos sob a forma de uma narrativa, em suma, de uma escrita dotada de uma coerência interna e refutável, portanto de uma inteligibilidade científica» (1996, 86).

Nesta perspectiva, os documentos, vestígios ou indícios depositados nos arquivos e acervos públicos ou privados só ganham algum sentido face aos problemas de

Page 60: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

60

investigação formulados pelo pesquisador. O manancial de recursos passíveis de serem utilizados pela história da educação colonial e pós-colonial nem sempre é de fácil acesso, pelo que se justifica identificar corpus documentais já constituídos (registos de instituições escolares, públicas e privadas; publicações periódicas; cadernos e manuais escolares; relatórios da administração e da inspecção escolar, actas de reuniões pedagógicas, acervos e colecções particulares; registos oficiais; bases de dados internacionais).

Paralelamente a este universo documental, a literatura de viagens, a correspondência epistolar, as memórias e o ensaio literário têm-se revelado auxiliares preciosos na reconstrução das representações sociais. Por outro lado, para além da documentação escrita obtida nos fundos de arquivos públicos ou privados, é importante considerar os testemunhos orais como fonte, bem como as imagens e a materialidade dos objectos usados no quotidiano escolar, não esquecendo a própria arquitectura escolar, os edifícios e o espaço físico envolvente. Estas fontes, em digressões passado/presente, nos trazem dimensões da cultura escolar no espaço insular cabo-verdiano.

METODOLOGIA DE PESQUISA

A nossa proposta de trabalho vincula-se ao campo da história da educação colonial, num diálogo com os desafios que a pós-colonialidade coloca a países que se libertaram de armadilhas colonizantes e estabelece com a linha historiográfica da história do tempo presente uma tenaz afinidade, no tangente aos seus atuais desdobramentos, particularmente no que toca ao reconhecimento de uma história das representações, do imaginário social e das relações entre a história e a memória (Le Goff, 2000; Chartier, 2011; Foucault, 1998; Certeau, 2010; Koselleck, 2006).

A base teórica que agrega estes desdobramentos epistemológicos incorpora os subsídios da Nova História, as ferramentas teórico-conceptuais da História Cultural (Chartier, 2002; Burke, 2006) e os incrementos que as Teorias Pós-coloniais permitiram introduzir na análise do colonialismo e das transformações decorrentes das independências africanas (Bhabha, 2003; Mignolo, 2003; Pratt, 1992, Said, 1995, 2007; Gilroy, 2001).

Page 61: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

61

No domínio da nova história, os avanços atuais foram precipitados pela incorporação do conceito de “discurso” às ferramentas de análise de intelectuais como Chartier, Paul Veyne, Ginzburg, Michel de Certeau ou Bourdieu. O conceito de “discurso” ocasionou uma pequena revolução na compreensão de documento, deslocando o centro de análise dos contextos para os textos. Estes convertem-se, assim, em aglomerados de artefactos explicativos e apetrechos que respaldam o aparato convencional da enunciação.

Nesta perspectiva, uma fonte documental – seja de que natureza for -, arregimentada para qualquer protótipo de história, em tempo algum logrará estabelecer uma relação directa e vaporosa com as práticas que anuncia. A encenação das práticas engloba lógicas, sinais, intentos e interlocutores específicos. E discerni-los possibilita compreensões relativas a situações ou práticas que são objecto de representação (Chartier, 2011, 16). O «arquivo» emerge então como uma espécie de grande prática dos discursos, uma prática que implica descrever as suas regras, as suas condições, o seu funcionamento e os seus efeitos. A noção de “arqueologia” define, por consequência, um compromisso metodológico com os documentos: ela aspira à descrição dos discursos como práticas especificadas no elemento «arquivo» (Foucault, 1969, 173). O método arqueológico desencadeou importantes conformações no domínio da história da educação na esfera das temáticas, dos objectos e das fontes de investigação.

Na arena dos estudos coloniais, as temáticas relativas ao poder, o estudo das representações, e a análise do discurso, congregam-se aos desenvolvimentos que afloram da crítica literária (linguistic turn) e dos estudos culturais (cultural studies). Estes posicionamentos críticos inspirados no pós-estruturalismo nutriram, por sua vez, um corpo de perspectivas denominado estudos pós-coloniais (post-colonial studies). É neste contexto teórico que Said publica a obra Orientalismo, texto reputado como alicerce do campo de estudos para análises do discurso colonial, um projecto continuado na obra Culture and Imperialism (1993).

Este trabalho serviu de âncora para inúmeros autores que se destacaram em decorrência do trabalho desenvolvido no seio do Subaltern Studies Group: Bhabha, Gayatri Spivack, Chandra Mohanty são alguns exemplos. Refutando as antinomias maniqueístas, as teorias pós-coloniais defendem que o contexto colonial deve ser

Page 62: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

62

olhado como um espaço de “translação” (Bhabha, 2003), um lugar híbrido que não é, nem de um nem do outro, um “terceiro espaço” de identidade, descontínuo e ambivalente, que cria um novo sujeito político: o sujeito colonizado. Os impulsos que as interpelações de inspiração foucaultiana tiveram na história da educação colonial foram sendo apropriados por autores situados num quadro epistémico muito amplo.

Estudiosos como Isin (1992), Miller e Rose (1992) buscaram nas teorias da tradução, escudadas na sociologia da ciência, argumentações inovadoras para a compreensão das conexões metropolitanas-coloniais (Callon & Latour, 1981; Callon, 1986). Para estes estudiosos, esta conexão é exercitada através de engrenagens de tradução que, ao estabelecerem ligações entre entidades muito diferentes (instituições, autoridades sanitárias e educativas, normas, valores e ambições, indivíduos e grupos) permitem a prática de um governo dos cidadãos “à distância” por intermédio de mediadores-especialistas - médicos, professores, inspectores, governadores locais (Rose, 1999).

Esta acomodação do conceito de tradução afigura-se fundamental para perceber as contradições, muito usadas pela historiografia colonial pós-moderna, entre os discursos produzidos nas metrópoles e as práticas discursivas no contexto colonial. O trabalho de Robert Young White Mythologies: Writing History and the West, cujo enfoque incide no questionamento crítico sobre os pressupostos em que se baseiam as categorias do conhecimento e da historiografia ocidental (Young, 1990), é outra referência das novas orientações historiográficas. Young entende que a análise do colonialismo permite arredar do debate a relação teoria-história, deslocando-o para um questionamento sobre a implicação da história e das teorias na própria historicidade do colonialismo europeu.

A dimensão mais relevante destes contributos foi o de pôr em evidência questões normalmente negligenciadas pela historiografia tradicional, de ordem cultural e social, nomeadamente ligadas ao género, à construção das identidades e à complexidade dos fenómenos de subjectivação. Questões relativas à cultura escolar têm sido enfocadas por autores que vêm laborando com temáticas referentes ao encontro colonial em perspectiva histórica (Colonna, 1975; Thomas, 1994; Williams & Chrisman, 1994; Gruzinski, 2003). Estes exercícios evidenciam

Page 63: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

63

a conformação do discurso científico à volta das questões da cultura colonial, cada vez mais interessado em reescrever a história do encontro colonizador-colonizado, focada numa análise mais densa dos contextos e das experiências de colonização, interessada em fixar as singularidades desse encontro a partir das vozes emudecidas pela historiografia tradicional.

A abrangência desta base teórica abarca um universo de questões de ordem gnosiológica. Faz antever, por um lado, que o trabalho do historiador, encarnando a sua subjectividade, o leve a assumir a dupla posição de pesquisador e actor da situação pesquisada. Por outro lado, uma história do tempo presente corporifica o trabalho com a memória como fonte viva, mas não mistura história e memória, representação do passado e reconhecimento do passado, pelo que a primeira submete a segunda a procedimentos críticos próprios do discurso do saber. Em última instância, a escrita da narrativa histórica como uma operação de construção controlada pelo próprio sujeito, isto é, a história entendida como uma reescrita (Koselleck, 2006), obriga a um desvelo especial aos procedimentos e estratégias que podem viabilizar entendimentos críticos adensados.

NOTA FINAL

A delimitação teórica desenhada faculta a realização de pesquisas sócio-históricas fraccionadas, que possibilitam romper com uma história de tipo global, que procura concentrar todos os fenómenos num único centro (princípio, significação, espírito, visão de mundo, forma de conjunto de uma determinada civilização) ou nos fundamentos, materiais ou espirituais, de uma sociedade; possibilita, ainda, tornar inteligível o processo de produção-apropriação de conhecimento educacional, no âmbito das relações Norte/Sul, no período pós-colonial; possibilita, outrossim, a produção de saberes com base na análise das ferramentas de disseminação de arquétipos padronizados de estruturas educacionais em dimensão planetária, que alavancam a internacionalização e o ajustamento supranacional das estruturas educativas (Meyer & Ramírez, 2003).

Page 64: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

64

BIBLIOGRAFIA

BHABHA, Homi (2003). O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

BURKE, Peter (1992). A escrita da história. São Paulo: UNESP.

CASTELO, Cláudia (1998). “O Modo Português de Estar no Mundo”. O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento.

CERTEAU, Michel de (2010). A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária [5ª ed.].

CHARTIER, Roger (2011). Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras, Revista de História, V.13, nº 24, jul. / dez., pp. 15-29.

FOUCAULT, Michel (2001). Dits et Écrits, 1954-1975. Paris: Quarto, Gallimard.

GILROY, Paul (2001). O atlântico negro. São Paulo / Rio de Janeiro: Editora 34 e Centro de Estudos Afro-asiáticos da Fundação Cândido Mendes.

JULIA, Dominique (1995). La culture scolaire comme object historique. In António Nóvoa, Marc Depaepe Erwin V. Johanningmeier (eds.). The Colonial Experience in Education: Historical Issues and Perspectives, Gent, Paedagogica Historica, pp. 353-382.

KOSELLECK, Reinhart (2006). Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-RJ.

LE GOFF, Jacques (2000). História e Memória. Vol I e II. Lisboa: Edições 70.

LOPES, José de Sousa Miguel (1995). Formação de professores primários e identidade nacional em Moçambique. Dissertação de Mestrado em Educação, Curso de Faculdade de Educação, Departamento de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

MARRONI, Maria Luísa de Castro (2008). Os outros e a construção da escola colonial portuguesa no Boletim Geral das Colónias, 1925-1951. Tese de Mestrado em História e Educação. Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

MIGNOLO, W. (2003). Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: editora da UFMG.

Page 65: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

65

MONTEIRO, João José Silva (1987). Age et Disparites Sociales dans l’Education : Etude des efefets de la réglementation de l’âge d’accès à l’enseignement secondaire long en Guiné-Bissau. U.F.R. des Sciences Humaines. Mémoire de Maîtrise en Sciences de l’ Éducation

NÓVOA, António & SCHRIEWER, Jürgen (eds.) (2000). A Difusão Mundial da Escola. Lisboa: Educa.

PAULO, João Carlos Paulo (1992). “A Honra da Bandeira”. A educação colonial no sistema de ensino português (1926-1946). Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

____________. (1999). «Da “Educação Colonial Portuguesa” Ao ensino No Ultramar». In História da Expansão Portuguesa, Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dir.), vol. V, Lisboa: Círculo de Leitores, 1999, pp. 304 -333.

POPKEWITZ, T. (1992), Educational Knowledge: Changing relationships between the state, civil society, and the educational community. New York: SUNY Press, pp. 305-343.

PRATT, M. L. (1992). Imperial eyes: Travel writing and transculturation. London: Routledge.

RODRIGUES, Casimiro Jorge Simões (2007). As Vicissitudes do Sistema Escolar em Moçambique na 2ª Metade do Século XIX, Hesitações, Equilíbrios e Precariedades. Tese de Doutoramento em História apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

ROSE, Nikolas (1999). Powers of Freedom: Reframing political thought. Cambridge: Cambridge University Press.

ROUSSO, Henry (1996). O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, nº 17, pp. 85-91.

SAID, Edward (2007). Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras.

WERNER, M & ZIMMERMANN, B. (2003). Penser l’histoire croisée : entre empirie et réflexivité, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 1, 58e année, pp. 7-36.

VEYNE, Paul. In Le Goff, J. et al. A nova história. Lisboa: Edições 70.

Page 66: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

EDUCAÇÃO SUPERIOR E A DESCOLONIZAÇÃO DAS AGENDAS DO DESENVOLVIMENTO EM

CABO VERDE11

José Carlos AnjosUniversidade Federal do Rio Grande do Sul / Universidade de Cabo Verde

[email protected]

11. Conferência de Encerramento

Page 67: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

67

A CORPOREIDADE DE RAÇA

O objetivo da comunicação é explorar uma análise de tipo etnológico à ‘cultura’ que se instaura no seio das facções da classe dirigente cabo-verdiana pós-colonial. A dependência em relação à economia dos países industrializados tem contribuído para a formação de uma distinção muito nítida entre o ethos dos quadros superiores da administração pública e empresas e o das demais classes e grupos sociais. Apoio-me na historiografia local e análise dos discursos institucionais cabo-verdianos para reconstruir uma modalidade de racismo baseado em diferenciais de escolarização que se associam a traços de fenótipo.

Os esforços de se desconstruir identidades concebidas como totalizantes, homogêneas e fechadas expôs importantes dimensões instrumentais (Barth, Kuper 1981) dos processos de disputas identitários, porém deixou na sombra o quanto esses processos se encarnam nos corpos deixando marcas físicas e não apenas esquemas de percepção (Wade, 2002). A pressuposição de que o simbólico é o plano mais importante de eclosão do fenômeno da identidade tem bloqueado modalidades de se construir narrativas mais corporalizadas dos processos históricos de encenação de identidades, particularmente das identidades raciais. Ao alertarem para os perigos de se substancializar as diferenças e se erigir esquemas essencialistas, muitos dos conceitos e das categorias centrais às teorias construcionistas das identidades negligenciaram a análise de importantes dimensões do processo de incorporação de raça na esteira do processo de colonização desencadeado pelos europeus no século XV. Este artigo é caudatário da perspectiva de que um deslocamento de enfoques mais epistemológicos para abordagens mais corporificadas (CSORDAS,1994; INGOLD, 2002) , pode se aproveitar da virada ontológica (CASTRO, 2012) que vem ocorrendo nas ciências sociais para produzir diferenciais metodológicos no criticismo pós-colonial. A peculiaridade da colonialidade cabo-verdiana oferece material particularmente propício a essa experimentação.

Page 68: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

68

O CORPO DA IDENTIDADE RACIAL EM SANTIAGO DE CABO VERDE

Cabo Verde apresenta uma experiência histórica particularmente interessante para se discutir a corporalidade das identidades racializadas. O fato das ilhas terem sido habitadas esmagadoramente por descendentes de escravos no bojo do processo de implantação do tráfico transatlântico, fez da constituição racial da maioria da população do arquipélago um acontecimento colonial em aberto. Cahen (2013) resume bem a peculiaridade colonial cabo-verdiana ao ressaltar:

Uma grande diferença com os casos latino-americanos, já que, por causa da partida dos brancos portugueses durante o longo declínio (do século XVIII e XIX), a classe mais baixa na população produzida pela colonialidade passou a ser a grande maioria da população: os escravos (incluindo escravos de raça mista), bem como alguns senhores mestiços e as pessoas livres de cor. Na verdade, é um caso estranho da sociedade colonial, quase inteiramente composta de descendentes da classe mais baixa dentro do mundo colonial, os escravos! Poderia ser comparado com ao Haiti, se a miscigenação não tivesse sido um fator importante em Cabo Verde, que não experimentou o complexo sistema escravo da plantation como em São-Domingos. (CAHEN, 2013, p. 34)

De fato, Cabo Verde teve um processo de desagregação acelerado do sistema escravista. Já em 1730 a proporção de escravos na ilha era menos de vinte por cento do conjunto da população sendo que o interior da ilha de Santiago já era praticamente todo povoado apenas de negros. O desvio das rotas do tráfico de escravos fez do arquipélago um conjunto de ilhas fora dos jogos estratégicos da colonização do novo mundo. Os poucos brancos não tardaram a abandonar suas propriedades as mãos de seus bastardos mestiços que continuaram um jogo de distinções raciais que cada vez menos podiam se encarnar apenas no fenótipo. Revoltas, estiagens, combinadas a ataques de corsários favoreceram, ao longo dos séculos XVI ao XVIII, o desmoronamento de uma hegemonia racial no interior da ilha de Santiago em que pese a permanência do vínculo e do espectro governamental colonial.

A permanência de um espectro de raças apesar da dissolução das condições de permanência dos brancos no interior da ilha cria uma colonialidade muito peculiar. O interior da ilha de Santiago é dos séculos XVIII ao XIX uma sociedade negra relativamente autônoma. Sob a ambiguidade de uma elite crioula que se

Page 69: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

69

pensa como branca, a população do interior da ilha de Santiago está sendo toda ela estigmatizada pela administração colonialista sob o termo vadio (badio). Os esforços de Portugal para manter os negros de Santiago disciplinados estão fadados ao fracasso. Os badios estão sendo descritos pelos governadores como gentios, desordeiros, difíceis de punir pela geografia da ilha feita de montanhas onde os fujões podiam encontram abrigos adequados a contra-ataques. A prática largamente implantada e permanente até ao século XX de concubinagem com mulheres raptadas completa o quadro de dissolução das estratégias de manutenção de barreiras raciais entre brancos e descendentes de escravos (SOARES, 2005). As montanhas conformam o ambiente para a desordem dos foros do interior da ilha de Santiago de tal modo que em lugar de se buscar um espírito rebelde interior aos indivíduos dessas gerações de libertoss da escravidão, talvez fosse o caso de se tomar a paisagem agreste do interior da ilha como tendo se constituído o habitus do badio.

A reorganização pombalista do poder régio atinge os grandes senhores da ilha, traídos pelos seus ténues vínculos com a metrópole e a desenganada identidade de brancos. Mas o banditismo rural anónimo permanece desorganizando a ordem colonial até os primeiros anos do século XX.

Ě a historiadora Iva Cabral, é quem analisou de forma mais detalhada até agora como o processo de transplante de uma fração da nobreza portuguesa no século XV inscreveu de forma persistente uma concepção racial de mundo que perdura mesmo com o desaparecimento do segmento nativo fenotipicamente branco. A demonstração realmente instigante é a de como uma elite “endógena, filha da anterior [nobreza portuguesa], cujos membros se chamavam a si mesmos “brancos da terra” irão dominar as ilhas de Santiago e Fogo. (Cabral, Iva. 2014: 24).

O afastamento, gradativo (séc. XVII), dos europeus – que, desde o povoamento, compunham a elite dos “homens honrados brancos” - das posições que antes ocupavam na ilha, irá reestruturar a sociedade santiaguense, transformando -a numa sociedade onde a posição económico-social de topo equivalerá ao branqueamento da pele. E é por isso mesmo que a elite da segunda metade do séc. XVII e séc. XVIII - cujos precursores foram, entre outros, os nossos conhecidos Diogo Homem da Costa e André Alvares de Almada - se apelidará de “branca da terra”. Essa designação será posta em causa e satirizada pelos reinóis representantes do rei na ilha. (Cabral, Iva. 2014: 180).

Page 70: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

70

Negros e mulatos deixados no arquipélago no lugar de antigos senhores brancos aprenderam, sobretudo em Santiago, que ascender socialmente é se embranquecer. Esse embranquecimento só pode ser experimentado numa trama biopolítica que descarta a pureza racial embora implique releituras de traços de fenótipos a medida da mobilidade ascendente e dos posicionamentos na geo-política colonial. Em Cabo Verde, pretos que ascendem socialmente se transformam em pretos ou mestiços de traços de fenótipo e de caráter realçados como “finos”, portanto percebidos como quase brancos. Nesse sentido pode se falar de um racismo sem raças.

A conjuntura do fim do século XIX e início do século XX é particularmente relevante no que concerne às flutuações no modo como são racializados os corpos e os ambientes. Para explorar essa nota vou tomar mais de perto um relatório do governo colonial do século XIX. Do relatório da província de 1875, pretendo deter-me particularmente na ideia de insalubridade da ilha de Santiago, uma peça constitutiva da ecologia racial do século XIX cabo-verdiano. Efetivamente, para se entender as relações entre raça e escolarização em Cabo Verde é fundamental trilhar os caminhos da higiene pública no arquipélago no modo como pretendeu criar um ambiente “natural” para corpos brancos nos trópicos. E nesse cruzamento é incontornável se explorar o fato de que até esse século recente XIX, a ilha de Santiago, e particularmente nela, a capital do arquipélago, é tida como ambiente insalubre para metropolitanos. Um conjunto de esforços governamentais para disciplinar a cidade da Praia não a tornaram adequada à implantação de uma escola secundária até quase a metade do século XX. Em contrapartida nas ilhas menores em recursos, tamanho e população, da Brava, São Nicolau e São Vicente, menos ameaçadoras para os metropolitanos, se esboçou uma escolarização secundária relativamente precoce.

Na medida em que os esforços de saneamento pouco se efetivaram muito além de um dos pequenos planaltos, Praia foi ao longo do século XIX e uma metade do século XX uma capital racialmente sitiada em seu pequeno plateau. O referido relatório cita como uma das principais causas “das terríveis doenças que dizimavam a população” as águas de um poço aberto sobre um pântano no sopé (localidade sempre estigmatizada do que se veio a chamar de bairro Taiti) do pequeno planalto de concentração comercial e administrativo. Não pretendo fazer aqui uma análise de discurso que suspenda o sentido da coisa dita pelo governador: levo a sério

Page 71: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

71

o fato de que pântanos, porcos, febres e campesinos revoltosos ameaçavam efetivamente a colonização desse pedaço dos trópicos por corpos brancos.

Definir onde e como a população se abastece de água, forçar o calçamento das ruas e plantação de arvoredo; ter o “gado suíno e animais imundos banidos” para longe; um sistema de limpeza para as imundices e despejos comumente lançados sobre as rochas, são algumas das medidas de que se gaba em 1875, o governador da província ao ministro e secretário de estado dos negócios da marinha e do ultramar. Apesar das medidas, os funcionários metropolitanos dificilmente permaneciam na ilha. Alegando doenças, sobretudo no período mais quente e chuvoso, rumavam à metrópole para longos períodos de recuperação de uma saúde debilitada pelas febres e humores da ilha mais negra do arquipélago.

Em que pesem as medidas de saneamento, a principal escola do arquipélago devia ser construída em outra ilha mais “saudável” que não a insalubre ilha de Santiago. Foi, aliás, contestável que nela se localizasse a capital administrativa. Dizia o governador em 1875:

Eu falo com franqueza a Vossa Excelência, que ainda não pude perceber qual a razão política, administrativa ou econômica, que aconselha que a sede do governo desta província esteja estabelecida na localidade a mais doentia e mortífera de todo o arquipélago.

Estava a se edificar ao longo do século XIX uma refinada sensibilidade metropolitana que exigia para os homens brancos os ecossistemas mais frios e distantes, portanto montanhosos e geograficamente apartados da maioria negra dos descendentes de escravos e suas doenças. Inscrevia-se nas paisagens das ilhas a associação entre brancos radicados e climas mais amenos das montanhas de Rui Vaz na ilha de Santiago, Chã das Caldeiras na ilha do Fogo. O esforço para tornar a cidade de Mindelo um ambiente salubre para moradores brancos marcou a urbanidade de uma baía tão sitiada de um entorno negro quanto o Plateau da cidade da Praia. Porém o contingente negro que podia aportar do interior da ilha de Santiago, fazia desta um território muito mais ameaçado.

A “insalubridade” da ilha de Santiago, não é, portanto dissociável das ameaças físicas das revoltas camponesas que assombraram a colonização no século XIX. É por todo o humor da ilha cujas febres “zombam de todas as medidas de higiene

Page 72: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

72

adaptadas” que se faz um conjunto de esforço para deslocar o liceu do arquipélago para outra ilha menos negra e doentia. Na ilha de Santiago no início do século XX a branquidade já não se inscrevia simplesmente na cor da pele, podendo os “brancos da terra” serem tão escuros quantos seus dependentes negros.

Em compensação, o arquipélago configura, até pelo menos boa parte do século vinte numa polarização geográfica largamente racializada entre a ilha de Santiago, tida como a mais negra, e as restantes ilhas, em que supostamente a mestiçagem teria sido mais intensa, portanto ilhas menos negras.

Desde o século XVII a colonização portuguesa buscou sistematicamente, até pelo menos metade do século XX, asfixiar os “brancos da terra” da ilha de Santiago, de suas pretensões raciais. Demasiado escuros, insolentes e economicamente decadentes, no início do século XX já só podiam se reproduzir em posições dominantes por via da escolarização. O golpe mortal para as pretensões dessa elite terratenente foi não instalar o estabelecimento de ensino secundário na ilha mais povoada e onde se localizava a capital. Deslocou-se um liceu para várias outras ilhas do arquipélago antes de se ter um na capital. A escolarização secundária tornou-se para os badios que pretendiam sustentar uma tênue branquidade por via da escolarização um alvo sempre distante e oneroso. Apenas em 1955 foi criada a primeira Secção Liceal, com o 1º e 2º ciclos, na ilha de Santiago.

A RACIALIZAÇÃO DOS ESCOLARIZADOS

Para escapar à carreira negativa ou estagnada, numa província sem recursos de enriquecimento rápido, a escolarização tornou-se um dispositivo decisivo de mobilidade social, consequentemente racial. A asfixia da elite de Santiago refez o sistema de distinções raciais sob as estratégias de distinção pela escolarização. Na primeira metade do século XX, a população cabo-verdiana se dividia entre uma pequena elite de escolarizados e uma grande massa sem acesso a escola. Dentre os escolarizados, a divisão entre o primário e o secundário podia ser estabelecida como oposição entre dois estados do ser colonizado. Embora em Cabo Verde não se tivesse estabelecido a distinção entre assimilados e indígenas, os princípios de divisão impostos pela escolarização determinavam de forma decisiva as expectativas de mobilidade ascendentes no universo do império português por

Page 73: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

73

onde os cabo-verdianos passaram a circular de forma cada vez mais intensa em múltiplas funções de intermediação colonial, sobretudo a partir dos anos 1960.

Os poucos estudantes que puderam sair da ilha de Santiago para estudar no liceu ao norte do arquipélago, em Mindelo, encontraram naquela ilha um dispositivos mais consolidados de “civilização” do colonizado visando a sua completa ocidentalização.

Para os oriundos da ilha de Santiago, as dificuldades económicas para se manterem em Mindelo se acrescia o peso do estigma associado à ilha mais negra do arquipélago. É nesse ambiente de problemática escolarização de santiangueenses que Cabral se escolariza graças a incomensuráveis esforços da mãe que teve de se deslocar com outros dois filhos para trabalhar numa fábrica de costuras em Mindelo (Sousa, 2013: 92).

A par do saneamento lento da capital nas décadas de 50 e 60 do século XX se instalam novas possibilidades de cooptação para o embranquecimento através da escolarização. Com o desmoronamento de uma formação social agrária assente na grande propriedade, o capital escolar passou a ocupar o lugar do fundiário como suporte da racialização. O branqueamento elitista de nativos como acontecimento espacial eclodiu especialmente como Plateau na cidade da Praia e como Morada em Mindelo. Nesses dois núcleos urbanos, brancos metropolitanos floresceram em meio a uma elite escolarizada nativa tornada quase branca. Ao longo dos anos 50 e 60 do século XX, os dois liceus ofereceram o suporte para a reprodução de uma aguerrida mocidade “portuguesa” no ethos e no hexis corporal mesmo quando não na cor da pele.

Os anos 50 e 60 estão marcados pela chegada às universidades metropolitanas de uma pequena leva de colonizados beneficiados pela expansão do sistema educacional superior que chega timidamente aos nativos das colônias portuguesas em África. Se seguirmos Bourdieu (2007, p.95-161) no modo com descreveu a desclassificação pela inflação de diplomas e que alimentou uma crítica feroz ao sistema educacional e contribuiu para a eclosão do amplo movimento de contestação estudantil de 1968 entendemos, em parte, a incorporação de discursos de contestação pelos estudantes do império português. Com a desvalorização relativa dos títulos escolares que acompanhou a massificação do

Page 74: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

74

ensino, os intelectuais da África lusófona se viram no ambiente de decepção da “geração enganada” que explode nas universidades europeias da segunda metade da década de 1960. A primeira elite intelectual africana que pode se pensar em Lisboa como grupo, partilha na metrópole de um ambiente de frustração dos jovens metropolitanos das camadas médias diante das falsas promessas do sistema de ensino superior.

Da ilha de Santiago saíram, para Mindelo ao longo da década de 1950 um punhado de secundaristas que vivenciaram, naquela cidade em efervescência intelectual, uma modalidade peculiar da dupla consciência, essa que se instala na reivindicação de uma cabo-verdianidade inclusiva e a percepção de um gradiente geopolítico de raça, uma espécie de racismo sem uma clara fronteira de fenótipos e que precisa de outros marcadores como a origem geográfica e a variante linguística. Aqueles em melhor situação económica e/ou desempenho escolar seguiram para uma formação superior na metrópole e serão esses badios, os intelectuais cabo-verdianos que irão enfatizar de forma mais duradoura a africanidade do arquipélago, quais sejam, Amílcar Cabral, Manuel Duarte, Felisberto Vieira (Kaoberdiano Dambará), Leitão da Graça.

Outra dimensão importante para os estudantes cabo-verdianos é a desclassificação racial com a chegada a metrópole e os seus efeitos de deslocamentos de identidades. São os filhos de famílias cabo-verdianas com recursos para reconverterem capitais fundiários e sociais em percursos de ascensão escolar e que passam a aportar timidamente nas universidades portuguesas nas décadas de 1950 e 1960, atônitos diante de um “racismo com raças” na metrópole. Aquilo que sob a nomenclatura sociológica de Bourdieu poder-se-ia chamar de experiência de histeresis e que eclode como perplexidade e depois como revolta intelectual diante do inesperado fato de uma inesperada eclosão de “raça” e do racismo.

Não há, para essa elite superiormente escolarizada, nos inícios da década de 1960 um desinvestimento tão brutal quanto no anterior sistema que dividia indígenas e metropolitanos como universos infranqueáveis. Contudo, desprovidos de capitais físicos, sobretudo o racial, para fazerem render em pleno o reconhecimento de seus diplomas, nas décadas de 50 e 60 do século XX, os intelectuais oriundos das

Page 75: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

75

províncias africanas são levados a investirem suas insatisfações profissionais em sentidos de emancipação descolonizadora. É nesse ambiente que os intelectuais africanos lusófonos são iniciados primeiro no marxismo e depois no nacionalismo e no pan-africanismo (Sousa, 2013: 97). .

O império colonial português em África tornou-se para a minoria de escolarizados cabo-verdianos na década de 1950 e 60 um espaço em que as indefinições e deslocamentos de identidades raciais permitem um constante reajuste entre diplomas e cargos em conformidade com as disposições herdadas e as aspirações permitidas pelo racismo. Mais próximos dos brancos sempre que possível, muito negros quando inseridos nas lutas clandestinas de libertação das colônias, os intelectuais cabo-verdianos só podiam jogar na literatura a carência de sentido de suas carreiras jogadas no futuro indeterminado.

A promessa traída do sistema de ensino que provoca a aproximação apesar das diferenças, entre brancos filhos de burgueses e os filhos das províncias ultramarinas que chegam à formação superior, cria o rescaldo cultural em que marxismo e pan-africanismo conferem o sentido das disputas e das diferenças a toda uma geração que empurra o império português à dissolução de abril de 1974.

TÍTULOS ESCOLARES E A COLONIALIDADE RACIALIZANTE PÓS-INDEPENDÊNCIA

Com a descolonização, após uma breve interrupção africanizante, a elite branca pela escolarização, pelo ethos e pelo meio-cidade de que se faz circundar faz eclodir o Arquipélago como nação em processo de branqueamento. Nesse sentido a passagem da primeira República à segunda apenas intensificou tendências eurocêntricas de uma mesma elite escolarizada. Assim se consolida um processo que as classes populares da capital acusam sobre o termo copo lete. São, há já algumas décadas, designados como copo lete os filhos de famílias que carregam marcadores de distinção de classe como distinções raciais e que não se misturam com as crianças dos segmentos populares.

Nas primeiras décadas do século XXI em Cabo Verde, as desigualdades sociais são persistentes, as oportunidades de acesso à educação superior estão desigualmente distribuídas e o sistema educacional como um todo favorece a

Page 76: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

76

reprodução consistente do staus quo. Os quadros com origens sociais nas classes administrativas e comerciais dos tempos coloniais, tendo tido o tempo e recursos para a aquisição dos traços “naturalizados” da distinção cultural, reforçam seu capital de títulos com a disposição à construção de redes de inter-reconhecimento favoráveis à reprodução em posições dominantes. Das rusgas do século XIX à limpeza do comércio ambulante, que o atual presidente da câmara processa com esmero, em pleno início do século XXI, uma mesma perspectiva de ordenamento do espaço permanece configurando um espaço branco sitiado por uma insurgência negra. A essa perspectiva incorporada pela pequena burguesia local podemos chamar de colonialidade do espaço.

Esgotou-se o período em que um grande número de filhos das classes médias baixas retornavam de uma formação superior no exterior e se inseriam facilmente na estrutura burocrática do Estado em formação. Os filhos da elite consolidada na esteira do processo de descolonização distinguem-se em relação à massa de licenciados oriundos das classes mais baixas que retornam do exterior e, destacam-se, sobretudo, do número cada vez maior dos que se formam internamente em cursos de prestígio e recursos debilitados. Com a relativa democratização do acesso ao ensino superior, são as redes de capital social e cultural que facultam a efetiva mobilidade ascendente e não apenas o título superior.

Assim, se tomarmos como referência o espaço total de disputa pela escolarização entre as diferentes classes, em Cabo Verde, veremos que as estratégias escolares elitistas para a conservação das distâncias em relação aos segmentos populares continuam bem-sucedidas apesar das imensas mudanças do período pós-colonial (BARROS, 2012). É certo que a democratização do acesso aos diferentes níveis de ensino mobilizou o conjunto dos diferentes segmentos em direção a uma maior escolarização. Ocorre que as ações populares em direção à escolarização têm sido compensadas por uma reação das elites político-econômicas no sentido do acesso a títulos raros, custosos em capital econômico ou acessados graças às redes de relações de clientelismo de Estado que facultam o acesso às prestigiadas universidades dos Estados Unidos e Europa. A “raridade” – que produz o efeito de “pessoas distintas” – é aqui, o efeito combinado de títulos obtidos em universidades Ocidentais e capitais culturais e sociais herdados “de berço”.

Page 77: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

77

Cada vez mais, para o acesso a posições-chave na estrutura do Estado (e em empresas resultantes da privatização de sectores estratégicos) o capital social é a modalidade estratégica de recurso que funciona, sobretudo quando associada a credenciais de universidades de prestígio do Ocidente.

A reconversão de recursos derivados de engajamentos político-partidários em poder económico ainda faculta expectativas de mobilidades ascendentes para os “excepcionais” de origem mais baixa. Mas, trajetórias políticas fora de momentos de profundas transformações sociais dependem estritamente do capital social e das credenciais em títulos acadêmicos prestigiados, recursos cada vez mais rarefeitos, portanto concentrados nos estratos superiores (SEMEDO, 2012).

A lógica da distinção cultural entre classes sociais tende, numa sociedade permeada pela colonialidade do poder, à racialização, uma modalidade de enobrecimento pelo embranquecimento dos segmentos superiores. A adoção de um sentido eurocêntrico de mundo em conjunção com disposições corporais e grades de apreciações estéticas de si e do mundo, moldadas numa suposta e implícita noção de superioridade racial é o que defino aqui por branquidade.

Seguindo uma importante virada pós-discursiva nas discussões sobre raça (WADE, 2002) tendo a não ver o branqueamento apenas como disposições subjetivas, mas também como materializações nos corpos de técnicas de incorporação de traços de raça, portanto mais do que a imposição de uma grade classificatória arbitrária.

Para se ter uma ideia de como a escolarização privilegiada do norte do arquipélago impregnou suas elites de um imaginário racial, se poderia explorar os mais recentes textos do mais reconhecido intelectual vivo de Mindelo. Por exemplo, a propósito das cerimônias fúnebres dedicadas à cantora Cesária Évora a chave de leitura da atuação do governo é significativamente racializada por Onésimo.

Tal discriminação resulta do facto de nunca ter sido convidada a cantar no festival da música levado a cabo anualmente na capital do país porque fazia questão de se identificar como crioula e porque cantava a morna que os fundamentalistas colocaram na sua “lista negra” como expressão de alienação. Essa atitude, tingida de um racismo étnico que não consegue mais disfarçar o seu nome, é ainda hoje aplicada à maioria dos artistas cabo-verdianos cultores da Morna e da Coladeira nascidas nas Ilhas de Barlavento, de população crioula. A estes artistas preferem trazer os santiaguenses da diáspora, seja qual for o seu merecimento.

Page 78: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

78

Do ponto de vista desse político escritor que reduziu sensivelmente o escopo nacionalista de suas pautas de atuação no período pós-independência, é fundamentalista toda a “atuação bairrista” do governo centralizado no extremo sul do arquipélago, a cidade da Praia. Mas o que aqui interessa, é o quanto sob essa contestação, os textos de Onésimo Silveira subentendem uma distinção racial entre os da ilha de Santiago e a criolitude cultural de Mindelo. No subtexto, Mindelo persistiria sendo uma cidade crioula e Santiago uma ilha negra-africana. O modo como Silveira conduziu a questão da regionalização dos poderes governamentais para o registro de disputas raciais traz ao de cima uma gramática elitista que não conforma apenas o habitus das elites do Norte, mas do também do exíguo Plateau da capital do país.

ENSINO SUPERIOR PÓS-COLONIAL

Uma tendência, portanto da estrutura de distribuição de recursos é que as elites enviem seus filhos para universidades reconhecidas no exterior e que às classes médias baixas lhes sejam vendidos diplomas locais sem cotação nos mercados de trabalho futuro, tanto mais porquanto diplomas dependem em seu valor, cada vez mais do capital cultural e das redes de relações de reciprocidades que se lhe podem associar. Por depender estritamente do capital social e do capital cultural adquirido “de berço”, os diplomas locais tenderão tanto mais a desvalorização por quanto os diplomas adquiridos externamente associam o prestígio internacional as estratégias de definição das posições válidas como vias do desenvolvimento do país. Na media em que as principais definições políticas da nação são cozinhadas entre laços de parentesco que transcendem as clivagens partidárias, consensos ontológicos subjazem às clivagens partidárias largamente teatralizadas.

Para se visualizar como se cristalizam os consensos de fundo, dever-se-ia analisar minuciosamente como se dá a lógica da importação de modelos de políticas públicas (ANJOS, 2002). Aqui só cabe enfatizar que a quase totalidade dos membros das elites políticas e econômicas do país passaram por períodos de formação superior no exterior e estão, portanto predispostos à importação de modelos de políticas públicas nomeadamente no que tange às políticas educacionais.

Um círculo vicioso se estabelece na medida em pesquisas em educação formatadas segundo cânones ocidentais confirmam as injunções para as quais

Page 79: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

79

uma pequena elite está propensa porque tem as predisposições conferidas por trajetórias escolares, as credenciais e o domínio das competências para a tradução de programas internacionalizados. Um histórico sentido existencial vanguardista se interliga aos oportunismos estritamente afeitos a um ethos de desenvoltura nos corredores das mediações internacionais. Esse sentido de missão dos mais “esclarecidos” tem sido chamado de “sagacidade crioula”. Caberia acrescentar a sua voracidade insaciável por consumos materiais de distinção social.

Ocorre nas políticas de educação superior cabo-verdiana que a filosofia importada, subjacente aos pacotes, é aquela da formação para o empreendedorismo. Se existe uma filosofia subjacente aos modelos internacionalizados de formação superior ela está voltada para a fabricação de sujeitos competitivos formatados para um mercado global (WOODS; WOODS, 2009: 227-249). Dirigido segundo os ditames de uma hegemónica cultura de empresa que idealiza criar dinamismo e capacidade de inovar continuamente, a filosofia subjacente aos pacotes de políticas importadas para a educação é inadequada à realidade social, cultural e ecológica do país. Por ter sido importado e estar sendo institucionalizado sem debates mais alargados, o pacote carrega imensos riscos para um pequeno país sem recursos e em que os mais pobres sempre dependeram de uma solidariedade que perpassa os processos de mobilidade ascendente de um eventual membro da família extensa.

A filosofia subjacente ao sistema de ensino que se internacionaliza de forma hegemónica é cega em relação a propósitos mais profundos da educação. A cultura do empreendedorismo é uma ordem organizacional caracterizada pelo predomínio da razão instrumental, desigualmente assimilável e extremamente adequada à produção de subjetividades propensas a reprodução do status quo. Não havendo lugar para todos sob o sol do empreendedorismo, a maior parte dos atuais alunos do ensino superior em Cabo Verde estão condenados a verem seus títulos renderem muito menos no mercado de trabalho do que as suas expectativas reclamam. Para essa geração enganada (BOURDIEU, 2007:135), cujos diplomas, prevê-se que pouco irão valer, as condições de um exercício revolucionário que seja o de um aprofundamento da democracia dependem de muita educação para a cidadania e menos educação para o empreendedorismo.

Page 80: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

80

QUE ALTERNATIVA?

Poder-se-ia em contraposição à educação para o empreendedorismo e o ressentimento auto-culpabilizante, pensar em uma educação voltada para o incremento da democracia? Essa outra filosofia deveria nutrir os estudantes física, espiritual, emocionalmente para outra ética, a do engajamento ativo na simetrização das esferas públicas subalternas e invisíveis às políticas definidoras do sentido da nação e do desenvolvimento. Portanto, dever-se-ia exigir aos estudantes universitários um mergulho nas esferas públicas subalternas. Os universitários deveriam estar propensos a participar do processo de construção de contra-públicos, algo similar ao retorno à terra a que a pequena burguesia da Casa do Império se impôs no momento revolucionário da das décadas de 50 e 60 do século XX.

Criar competências para a elevação de esferas públicas subalternas à condição de contra-públicos passa por uma formação que refreie a propensão pequeno-burguesa da luta pelo controlo de posições na máquina do Estado a fim de ser utilizado para o beneficio próprio. O desafio é o de se criar um ethos, modelar currículos, propor pedagogias alternativas às atuais. Colocar os universitários que estudam no país na interface entre diferentes segmentos populares cumprindo um papel de disseminação de princípios e valores de cidadania significa concretamente construir uma extensão universitária em que os estudantes circulem na periferia dos sistemas instituídos incrementando negociações em meio a um processo de aprendizado sobre modos alternativos, estilos de via e linguagens. Construir habilidades para a negociação entre diferenças internas, competências para a formatação de exigências de reconhecimento, uma ética para o estabelecimento de pactos em direção à justiça social: essa é uma dimensão dos currículos que a universidade deve proporcionar a todos os profissionais que forma.

Essa aposta numa formação superior alternativa significa que os espaços de sala de aula devem ser também espaços de profunda discussão sobre o estilo de vida consumista das elites do país. Impõe-se educar para o facto de que esse estilo de vida consumista não é democratizável e que, portanto se impõe criar expectativas diversas de realização humana que não passem necessariamente pela mobilidade ascendente aos padrões intensivos de consumo. Significa educar para que os indivíduos sejam agentes morais independentes que podem escolher entre

Page 81: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

81

diferentes estilos de vida e que podem não apenas reconhecer, mas apreender e ensinar sobre modos de existência que não aqueles induzidos pela subjetivação capitalística. Esta seria uma educação voltada para o avanço da justiça social e que assumiria que cabe ela o dever de distribuir valores e sensos de cidadania.

O incremento da reflexão crítica é fundamental à sociedade democrática. É vocação e destino inevitável do país o aprofundamento radical da democracia. A radicalização da democracia exige o custo político e econômico que é o do investimento em educação para a emancipação de coletivos subalternos. O retorno desse investimento é a estabilidade dialógica, a canalização das contradições para esferas credíveis de negociações. Contra a educação para o empreendedorismo, trata-se aqui de outra economia política em que o lucro para a nação é o incremento da solidariedade humana.

Uma perspectiva integradora para a educação universitária cria capacidades para que as pessoas façam escolhas não hegemônicas enquanto sujeitos morais e possam desenvolver potencialidades múltiplas. A ênfase deve ser deslocada, do sucesso econômico, para a auto realização enquanto autonomização de estilos de vida, a afirmação holística da pessoa no seio de culturas. Uma educação para emancipação exige, portanto a capacitação como vistas a integração de contextos de aprendizagens múltiplos. Nos diferentes contextos educativos, nem sempre formalizáveis, o universitário atuaria como aprendiz e como formador.

A redistribuição de bens materiais e o reconhecimento identitário são dimensões fundamentais de inovações políticas e estéticas que precisam ser edificadas. Um país que se projeta para que a sua principal indústria seja o turismo, é um país que se oferece ao mundo como lugar de experiências estéticas, paisagísticas e humano-relacionais. Essas dimensões de relacionamento com visitantes que passam por nós enquanto turistas precisam ser criadas, os riscos precisam ser controlados, a oferta, decididamente não pode ser negociada a qualquer preço.

CONCLUSÃO

Em que pese autonomização precoce do segmento negro da sociedade escravista, Cabo Verde nunca deixou de estar sob o espectro de raça. A forma como raça enquanto acontecimento moderno se encarnou nos cabo-verdianos

Page 82: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

82

tem sido persistente de múltiplas formas muito além da descolonização formal. Isso é sintomático de que a combinação de lógicas de distinções de classe com formas racializadas de significação das diferenças têm a tendência a vidas longas nos processos pós-coloniais.

No caso cabo-verdiano, com o desaparecimento completo do segmento branco um conjunto de extratos de não brancos alinharam de forma complexa diferenças sutis fenotípicas as demais materialidades das distinções de classe e configuraram um racismo sem raças, algo próximo ao que Bourdieu designou de racismo da inteligência.

Para que as universidades pudessem desorganizar o sistema de reprodução das desigualdades montadas pela colonialidade do saber e do poder deveriam assumir a missão de conduzir a emergência de profissionais de múltiplas áreas, com competências em democracias profundas, inseridos nas múltiplas configurações comunitárias do país. Isto significa que as escolas superiores deveriam se inserir no processo de criação de uma razão terapêutica que só emerge da participação popular em esferas de decisão pública a partir de suas culturas, estruturas e organizações. Uma razão terapêutica que não visualiza coletivos problemáticos, porém encara os problemas como concernentes a todos. Essa é a principal missão de um ensino superior de um país voltado para serviços; definitivamente uma educação para a cidadania que impõe ao visitante um reconhecimento do humano em nós para que negociações cosmopolitas sejam iniciadas.

Page 83: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

83

REFERÊNCIASANJOS, José Carlos dos. Intelectuais, Literatura e Poder em Cabo Verde: Lutas de

Definição da Identidade Nacional. Porto Alegre: UFRGS/IFCH e Praia: INIPC, 2002.

BARROS, Crisanto Avelino Sanches de. Génese e Formação da elite político-administrativa cabo-verdiana: 1975-2008. Tese de Doutorado. Universidade de Cabo Verde - Departamento de Ciências Sociais e Humanas; Université Catholique de Louvain-la-Neuve – Faculté des Sciences Économiques, Sociales et Politiques Département Sciences Politiques et Sociales, 2012.

BARTH, Fredrik, and Adam Kuper. Process and Form in Social Life: Selected Essays of Fredrik Barth. London, 1981.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria. vol.1 Unidade e Luta, Seara Nova, Lisboa, 1976.

CABRAL, Iva Maria. Os “homens honrados brancos” da ilha de Santiago (Finais do séc. XV – início do séc. XVII). Tese de Doutorado. Universidade de Cabo Verde - Departamento de Ciências Sociais e Humanas, 2013

CAHEN Michel. Is “Portuguese-speaking” Africa Comparable to “Latin” America? Voyaging in the Midst of Colonialities of Power. History in Africa, Available, doi:10.1017/hia.2013.1.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”. Mana [online]. 2012, vol.18, n.1 [cited 2015-09-21], pp. 151-171 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

CSORDAS, T. Embodiment and experience. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

INGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2002.

SEMEDO, José António Vaz. As elites políticas locais cabo-vedianas: recrutamento, reprodução e identidade – estudo de caso dos municípios da Praia, de Santa Catarina e de Santo Antão: 1991-2008. Tese de Doutorado. Universidade de Cabo Verde - Departamento de Ciências Sociais e Humanas; Université Catholique de Louvain-la-Neuve – Faculté des Sciences Économiques, Sociales et Politiques Département Sciences Politiques et Sociales, 2012.

Page 84: FICHA TÉCNICA · Ana Domingos (Universidade de Cabo Verde) Arlindo Vieira (Universidade de Cabo Verde) ... I.P., Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Embaixada de França

CEDU 2015 - Políticas e práxis da Educação nas perspetivas e em contextos pós-coloniais

84

SOARES, Maria João. “«Crioulos Indómitos» e Vadios: Identidade e Crioulização em Cabo Verde- Sécs. XVII-XVIII” in Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa: UNL / IICT, 2005.

WADE, Peter. Race, Nature and Culture: An Anthropological Perspective. London: Pluto, 2002.

WISEMAN Alexander W. ; BAKER David P. The Worldwide Explosion of Internationalized Education Policy, in Global Trends in Education Policy, Eds. David P. Baker and Alexander W. Wiseman. Oxford: Elsevier Ltd., 2005.

WOODS , Philip. ; WOODS, Glenys. Pathways to Learning: Deepening Reflective Practice to Explore Democracy, Connectedness, and Spirituality. In: Woods, Philip A. and Woods, Glenys J. (Org.) . Alternative Education for the 21st Century: Philosophies, Approaches, Visions. New York, Palgrave Macmillan, 2009.