ficha tÉcnica · 2016-01-26 · sabiam definir ou com miríades de perguntas a fazer. aquelas que...

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FICHA TÉCNICA Título original: e Architect's Apprentice Autora: Elif Shafak Copyright © Elif Shafak, 2014 Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2016 Tradução: Maria João Freire de Andrade Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Imagens da capa © Shuerstock Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 402 311/15 1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2016 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 eluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.jacaranda.pt facebook.com/jacarandaeditora

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F ICHA TÉCNICA

Título original: The Architect's ApprenticeAutora: Elif Shafak

Copyright © Elif Shafak, 2014

Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2016

Tradução: Maria João Freire de Andrade

Capa: Vera Espinha/Editorial Presença

Imagens da capa © Shutterstock

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal n.º 402 311/15

1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2016

Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras

Reservados todos os direitos

para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

Brilho das Letras

Uma empresa Editorial Presença

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

2730 ‑132 Barcarena

[email protected]

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De todas as pessoas que Deus criou e Sheitan desencaminhou, apenas algumas descobriram o Centro do Universo — onde não

existe bem nem mal, nem passado nem futuro, nem «eu» nem «vós», nem guerra nem  nenhum motivo para fazer a guerra, apenas um interminável mar de serenidade. Aquilo que ali encontraram era tão belo que perderam a capacidade de falar.

Os anjos, tendo misericórdia dessas pessoas, deram ‑lhes duas op ções. Se desejassem readquirir as suas vozes, teriam de esquecer tudo o que tinham visto, embora uma sensação de ausência permanecesse profundamente enraizada nos seus corações. Todavia, se preferissem recordar ‑se da beleza, as suas mentes ficariam tão confusas que não con‑seguiriam distinguir a verdade da miragem. Assim, as poucas pessoas que tropeçaram naquele local secreto, não assinalado em nenhum mapa, regressaram com uma sensação de nostalgia por alguma coisa que não sabiam definir ou com miríades de perguntas a fazer. Aquelas  que ansiavam por plenitude seriam chamadas «os amantes», e aquelas que aspiravam ao conhecimento «os aprendizes».

Era isto que o mestre Sinan nos costumava contar, a nós, os seus qua‑tro aprendizes. Olhava ‑nos com atenção, a cabeça inclinada para um lado, como se a tentar ler ‑nos a alma. Eu sabia que estava a ser vaidoso, e a vaidade não me era adequada sendo eu um rapaz pobre, mas sempre que o meu mestre contava aquela história, eu acreditava que ele dirigia aquelas palavras mais a mim do que aos outros. O seu olhar demorava‑‑se durante um instante mais sobre o meu rosto, como se esperasse algo de mim. Eu desviava os olhos, receando desiludi ‑lo, temendo a coisa que não lhe podia dar — embora nunca tenha descoberto que coisa seria

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essa. Pergunto ‑me o que é que ele via nos meus olhos. Teria ele previsto que eu seria o melhor de todos no que se referia à aprendizagem, mas que na minha inépcia iria falhar redondamente no amor?

Desejaria poder olhar para trás e dizer que aprendi a amar tanto quanto amava aprender. Mas, se mentir, amanhã pode haver um cal‑deirão ardente à minha espera no inferno, e quem me pode garantir que o amanhã não se encontra já na soleira da minha porta, agora que sou tão velho como um carvalho e ainda não fui lançado a uma sepultura?

Éramos seis: o mestre, os aprendizes e o elefante branco. Construímos tudo em conjunto. Mesquitas, pontes, madraças*, caravançarais, asilos, aquedutos... Foi há tanto tempo que o meu pensamento atenua até os vestígios mais nítidos, derretendo memórias em dor líquida. Sempre que recordo aqueles tempos, as formas que me pairam na mente bem podiam ter sido desenhadas mais tarde, para mitigar a culpa de lhes ter esquecido os rostos. No entanto, lembro ‑me das promessas que fize‑mos e depois não conseguimos cumprir, lembro ‑me de cada uma delas. É estranho como os rostos, sólidos e visíveis, se evaporam, enquanto as palavras, feitas de ar, permanecem.

Eles desvaneceram ‑se. Um a um. Porque é que eles pereceram e eu sobrevivi até esta idade debilitante só Deus sabe. Todos os dias penso em Istambul. As pessoas devem estar agora a atravessar os pátios das mesquitas, sem saberem, sem verem. Preferem pensar que os edifícios que as rodeiam estão ali desde o tempo de Noé. Não estão. Nós é que os erguemos: muçulmanos e cristãos, artífices e escravos das galés, seres humanos e animais, dia após dia. Mas Istambul é uma cidade de esquecimentos fáceis. Ali, as coisas são escritas na água, exceto as obras do meu mestre, que foram escritas em pedra.

Enterrei um segredo, por baixo de uma rocha. Passou ‑se muito tempo, mas ainda lá deve estar, à espera de ser descoberto. Pergunto‑‑me se alguém alguma vez o encontrará. Se o encontrarem, irão compreender? Isto ninguém o sabe, mas nas entranhas de um edifício, entre as centenas de edifícios que o meu mestre construiu, esconde‑se o centro do universo.

Agra, Índia, 1632

* Instituição escolar árabe, religiosa ou não. (NT )

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Istambul, 22 de dezembro de 1574

Já passava da meia ‑noite quando ouviu um rugido feroz, vindo das profundezas da escuridão. Reconheceu ‑o de imediato: era

o rugido do maior felino do palácio do sultão, um tigre ‑do ‑cáspio, de olhos cor de âmbar e pelo dourado. O coração saltou ‑lhe uma batida, enquanto se perguntava o que é que — ou quem — poderia ter perturbado a fera. Deviam estar todos profundamente adorme‑cidos a uma hora tão tardia — seres humanos, animais e djinn*. Na cidade das sete colinas, para além dos guardas nas ruas que faziam as suas rondas, apenas dois tipos de pessoas estavam agora acordadas: aquelas que rezavam e aquelas que pecavam.

Também Jahan estava acordado — a trabalhar.— Para nós, trabalhar é uma espécie de oração — dizia o mestre,

com frequência. — É assim que comungamos com Deus.— E Ele, como é que nos responde? — perguntara uma vez

Jahan, há muito tempo, quando era mais novo.— Dando ‑nos mais trabalho, é claro.A acreditar naquilo, então ele devia estar a forjar uma relação

muito próxima com o Todo ‑Poderoso, pensou Jahan, já que traba‑lhava a dobrar para executar dois ofícios, em vez de um. Era um mahaut** e um desenhador. Seguia dois ofícios diferentes, mas, no

* Génio, espécie de espírito que rege uma pessoa ou um lugar. (NT )** Palavra hindi, que significa alguém que monta um elefante. Mahaut é uma

profissão de família, legada de pais para filhos. (NT )

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entanto, só tinha um mestre que respeitava, admirava e secreta‑mente desejava ultrapassar. O seu mestre era Sinan, o principal arquiteto real.

Sinan tinha centenas de alunos, milhares de trabalhadores, e ainda mais seguidores e acólitos. Apesar disso, tinha apenas quatro aprendizes. Jahan sentia ‑se orgulhoso por ser um deles, orgulhoso mas, no íntimo, também confuso. O mestre escolhera ‑o — um simples servo, um humilde tratador de elefantes — quando tinha muitos aprendizes dotados, na escola do palácio. Saber aquilo, em vez de lhe aumentar a autoestima, enchia ‑o de apreensão. Apesar de o tentar evitar, preocupava ‑o a ideia de poder desiludir a única pessoa que em toda a sua vida acreditara nele.

A sua última tarefa era projetar um hamam*. As especificações do mestre tinham sido claras: uma bacia de mármore elevada, que seria aquecida por baixo; tubagens no interior das paredes, para permitir a saída do fumo; uma abóbada, assente em arcos; duas portas que se abriam para duas ruas opostas, a fim de evitar que homens e mulheres se vissem. Naquela noite agoirenta era nesse projeto que Jahan estava a trabalhar, sentado a uma mesa grossei‑ramente talhada no seu barracão, na menagerie** do sultão.

De testa franzida, recostou ‑se e estudou o desenho. Achou ‑o grosseiro, desprovido de graciosidade e harmonia. Como era habi‑tual, desenhar a planta do chão fora mais fácil do que desenhar a abóbada. Apesar de já ter passado dos quarenta — a idade com que Maomé se tornara profeta — e fosse hábil no seu ofício, ainda preferia escavar fundações com as mãos nuas do que trabalhar em arcadas e tetos. Desejava que houvesse uma maneira de os evitar completamente — se ao menos os seres humanos pudessem viver expostos aos céus, abertos e destemidos, observando as estrelas e a ser observados por elas, sem nada a esconder.

Frustrado, estava prestes a iniciar um novo esboço — tendo surri‑piado papel aos escribas do palácio —, quando voltou a ouvir o tigre.

* Banho turco. (NT )** Coleção de animais exóticos e comuns, mantidos em cativeiro, e que ante‑

cedeu os atuais jardins zoológicos. (NT )

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As suas costas retesaram‑se e o queixo ergueu ‑se ‑lhe, enquanto se imobilizava, à escuta. Era um rugido de aviso, desafiador e arrepiante, indicando a um inimigo para não se aproximar mais.

Jahan abriu a porta em silêncio e olhou para a escuridão circun‑dante. Ouviu ‑se outro rugido, não tão alto como o primeiro mas igualmente ameaçador. De imediato, todos os animais irromperam num clamor: o papagaio guinchava na penumbra; o rinoceronte berrava; o urso rosnava numa resposta zangada. Ali perto, o leão rugiu, e foi seguido pelo silvo do leopardo. Algures, em fundo, ouvia ‑se o bater constante, frenético, que os coelhos faziam com as patas traseiras sempre que estavam aterrorizados. Apenas cinco em número, os macacos faziam o barulho de um batalhão — gritando, vociferando. Nos seus estábulos, também os cavalos começaram a relinchar e a remexer ‑se. Entre o frenesi, Jahan reco‑nheceu o resfolegar do elefante, rápido e indiferente, relutante em se juntar ao tumulto. Alguma coisa estava a assustar os animais. Atirando um manto por cima dos ombros, Jahan agarrou no lam‑pião a óleo e saiu para o pátio.

O ar estava frio, impregnado com o perfume intenso das flores de inverno e das ervas silvestres. Assim que deu alguns passos, reparou que alguns dos tratadores estavam reunidos junto de uma árvore, a sussurrar. Quando o viram aproximar ‑se, olharam ‑no expectantes. Mas Jahan não tinha nenhuma informação, apenas perguntas.

— O que é que se passa?— As feras estão nervosas — disse Dara, o tratador da girafa,

soando também ele nervoso.— Pode ser um lobo — alvitrou Jahan.Já acontecera. Dois anos antes. Numa amarga noite de inverno,

lobos tinham descido sobre a cidade, rondando tanto os bairros judeus como os muçulmanos e cristãos. Alguns tinham entrado pelos portões, só Deus sabia como, e atacaram os patos, cisnes e pavões do sultão, espalhando o caos. Durante dias a fio, viram‑se obrigados a apanhar as penas ensanguentadas debaixo de arbustos e silvas. No entanto, agora a cidade não estava coberta de neve, nem estava excecionalmente frio. O que quer que fosse que estava a agitar os animais, vinha do interior do palácio.

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— Verifiquem todos os recantos — disse Olev, o domador de leões, um homem corpulento de cabelos flamejantes e um bigode encaracolado da mesma cor.

Não se tomava ali uma única decisão sem o seu conhecimento. Destemido e musculoso, todos os servos o tinham em alta consi‑deração. Um mortal que podia comandar um leão era alguém que até o sultão admirava um pouco.

Espalhando ‑se por aqui e por ali, inspecionaram os celeiros, os estábulos, os chiqueiros, os currais, as capoeiras e as jaulas para se certificarem de que nenhum animal tinha fugido. Todos os residentes da menagerie real pareciam estar no seu devido lugar. Leões, maca‑cos, hienas, veados de armações achatadas, raposas, arminhos, linces, cabras‑monteses, gatos‑bravos, gazelas, tartarugas gigantes, gamos, avestruzes, gansos, porcos ‑espinhos, lagartos, coelhos, cobras, croco‑dilos, civetas, o leopardo, a zebra, a girafa, o tigre e o elefante.

Quando foi ver Chota — um elefante ‑asiático macho, invulgar‑mente branco, de trinta e cinco anos e três metros de altura —, Jahan encontrou ‑o tenso, agitado, de orelhas espetadas como velas ao vento. Sorriu à criatura, cujos hábitos conhecia muito bem.

— O que é que se passa? Sentes o cheiro do perigo? — Dando uma palmadinha no flanco do elefante, Jahan estendeu ‑lhe uma mão cheia de amêndoas doces, que levava sempre na sua sacola.

Nunca recusando uma guloseima, Chota enfiou as amêndoas na boca com um varrer da tromba, enquanto mantinha os olhos fixos no portão. Inclinando ‑se para a frente, o peso maciço sobre as pernas dianteiras, as patas sensíveis coladas ao chão, pareceu gelar, esforçando ‑se por ouvir um som à distância.

— Tem calma, está tudo bem — disse Jahan, embora, tal como o elefante, não acreditasse no que acabara de dizer.

No caminho de regresso, viu Olev a falar com os tratadores, inci‑tando ‑os a dispersarem.

— Procurámos por toda a parte! Não há nada!— Mas as feras... — protestou alguém.Olev interrompeu ‑o, apontando para Jahan.— O indiano tem razão. Deve ter sido um lobo. Ou, diria eu, um

chacal. De qualquer maneira, desapareceu. Voltem a deitar ‑se.

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Daquela vez, ninguém protestou. Assentindo, murmurando, arras taram ‑se até às suas esteiras, que, embora fossem ásperas, estivessem cheias de piolhos e lhes picassem o corpo, eram o único lugar quente e seguro que conheciam. Apenas Jahan se deixou ficar para trás.

— Não vens, mahaut? — chamou ‑o Kato, o tratador dos crocodilos.— Vou já — respondeu Jahan, olhando na direção do pátio inte‑

rior, onde acabara de ouvir um som abafado e estranho.Em vez de virar à esquerda, em direção ao seu barracão de

madeira e pedra, virou à direita, na direção dos muros altos que sepa‑ravam os dois pátios. Avançou cauteloso, como se à espera de uma desculpa para mudar de ideias e voltar ao seu desenho. Ao chegar ao lilaseiro na extremidade mais afastada, reparou numa sombra. Turva e sobrenatural, assemelhava ‑se tanto a uma aparição que ele teria fugido se a sombra não se tivesse virado, revelando o rosto — Taras, o Siberiano. Sobrevivendo a todas as doenças e calamidades, estava ali há mais tempo do que qualquer outra pessoa. Tinha visto sultões a chegar e a partir. Vira os poderosos a tornarem ‑se humildes, e as cabeças que costumavam usar os turbantes mais altos a rolar na lama. Apenas duas coisas são sólidas, troçavam os criados. Taras, o Siberiano, e o suplício do amor. Tudo o resto morre...

— És tu, indiano? — perguntou Taras. — Os animais acordaram‑‑te, hã?

— Sim — disse Jahan. — Ouviste um barulho?O velho soltou um resmungo, que tanto podia ser um sim como

um não.— Veio dali — insistiu Jahan, esticando o pescoço.Olhou para o muro que se estendia à sua frente, uma massa cor

de ónix e sem forma, que se misturava homogeneamente com a escuridão. Naquele momento, teve a sensação de que a neblina da meia ‑noite estava cheia de espíritos, a gemerem e a lamuriarem ‑se. Aquele pensamento fê ‑lo estremecer.

Um estrondo oco reverberou através do pátio, seguido por uma cascata de passos, como se uma multidão de pessoas estivesse a correr de um lado para o outro. Das profundezas do palácio ergueu‑‑se um grito feminino, demasiado selvagem para ser humano, quase

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de imediato abafado até se transformar num soluço. De um canto diferente, outro grito rasgou a noite. Talvez fosse um eco perdido do primeiro. Depois, tão abruptamente como tinha começado, voltou tudo a cair no silêncio. Seguindo um impulso, Jahan aproximou ‑se do muro à sua frente.

— Onde vais? — sussurrou Taras, os olhos a cintilar de medo. — É proibido.

— Quero descobrir o que se passa — disse Jahan.— Não entres ali — disse o velho.Jahan hesitou, embora só por um instante.— Vou dar uma espreitadela e volto já.— Gostaria que não o fizesses, mas não me dás ouvidos — disse

Taras, suspirando. — Certifica ‑te apenas de que não vais muito longe. Fica no jardim, com as costas perto do muro. Ouviste?

— Não te preocupes, vou ser rápido... e cuidadoso.— Vou ficar à tua espera. Só me vou deitar quando voltares.Jahan esboçou um sorriso travesso.— Gostaria que não o fizesses, mas não me dás ouvidos.Jahan trabalhara recentemente com o seu mestre na restauração

das cozinhas imperiais. Juntos também tinham expandido partes do serralho — uma necessidade, já que a sua população aumentara consideravelmente nos últimos anos. Assim, para não usar o portão principal, os trabalhadores tinham construído um atalho, escavando uma abertura nos muros. Quando uma encomenda de azulejos se atrasara, tinham ‑na selado com argila e tijolos por cozer.

Com o lampião numa mão e um pau na outra, Jahan foi batendo nos muros enquanto avançava. Durante um bocado só ouviu o mesmo barulho abafado, repetidas vezes. Depois um som oco. Parou. De joelhos, empurrou os tijolos do fundo com toda a força. A princípio resistiram, mas acabaram por ceder. Deixando o lampião atrás de si, com a intenção de voltar a pegar nele quando regres‑sasse, rastejou pelo buraco e entrou no pátio.

O luar lançava um brilho sinistro sobre o roseiral, agora um cemitério de rosas. Os arbustos, que na primavera se enfeitavam com os tons de vermelho, rosa e amarelo mais vivos, pareciam agora murchos, lustrosos, espalhando ‑se como um mar de água prateada.

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O seu coração batia tão alto e tão depressa que Jahan receou que alguém o ouvisse. Um arrepio atravessou ‑o ao recordar ‑se das his‑tórias de eunucos envenenados, concubinas estranguladas, vizires decapitados e sacas atiradas às águas do Bósforo, o seu conteúdo ainda a contorcer ‑se com vida. Naquela cidade, algumas sepulturas encontravam ‑se nas colinas, outras a mais de cem metros debaixo do mar.

À sua frente, encontrava ‑se uma árvore de folha perene com centenas de lenços, fitas, amuletos e rendas pendurados dos seus ramos — a Árvore dos Desejos. Sempre que uma concubina ou uma odalisca do serralho tinha um segredo que não podia parti‑lhar com ninguém a não ser com Deus, ela convencia um eunuco a ir ali com um pequeno adorno que lhe pertencesse. Aquele seria atado a um ramo, junto do adorno de outra mulher. Como era frequente as aspirações de uma mulher entrarem em conflito com as aspirações de outra, a árvore estava cheia de súplicas contra‑ditórias e preces beligerantes. Apesar disso, naquele momento, mesmo com uma brisa ligeira a sacudir as suas folhas misturando os desejos, parecia tranquila. De facto, tão tranquila que Jahan não conseguiu evitar avançar na sua direção, embora tivesse garantido a Taras que não se aventuraria tão longe.

Não eram mais de trinta passos até ao edifício de pedra, no fundo do pátio. Meio escondido atrás do tronco da Árvore dos Desejos, Jahan espreitou lentamente para o outro lado, para logo se endirei‑tar de imediato. Demorou um instante a atrever ‑se a voltar a olhar.

Cerca de uma dúzia de surdos ‑mudos corriam para a esquerda e para a direita, indo de uma entrada até à outra. Vários carregavam aquilo que pareciam ser sacas. Os archotes nas suas mãos criavam faixas ocres no ar e, de cada vez que dois archotes se cruzavam, as sombras nos muros tornavam ‑se mais altas.

Sem saber o que pensar daquilo que acabara de ver, Jahan correu até às traseiras do edifício, inalando o odor intenso da terra, os seus passos tão impercetíveis como o ar que respirava. Fez um semicírculo, que o levou à porta na extremidade mais afastada. Estranhamente, não estava guardada. Sem pensar, entrou. Se começasse a refletir no que estava a fazer, sabia que iria ficar tolhido pelo medo.

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O interior estava frio e húmido. Tateando na penumbra, avan‑çou, apesar de sentir um formigueiro na nuca e ter os cabelos em  pé. Era demasiado tarde para se arrepender. Não havia nenhuma maneira de voltar atrás; só podia avançar. Entrou fur‑tivo numa divisão tenuemente iluminada, deslizando ao longo das paredes, a respiração a sair ‑lhe em golfadas rápidas. Olhou à sua volta: mesas de madrepérola, com tigelas de vidro em cima; sofás cobertos por almofadas; espelhos com molduras esculpidas e douradas; tapeçarias pendendo dos tetos; e, no chão, aquelas sacas inchadas.

Olhando por cima do ombro para se certificar de que não vinha ninguém, aproximou ‑se lentamente até ver algo que lhe gelou o sangue — uma mão. Pálida e flácida, estava pousada no mármore frio sob um monte de tecido, semelhante a um pássaro caído. Como se impelido por uma força exterior, Jahan soltou os atilhos das sacas de serapilheira, uma atrás da outra, e abriu ‑as até meio. Pestanejou confuso, os olhos recusando ‑se a aceitar aquilo que o coração já tinha compreendido. A mão estava ligada a um braço, o braço a um peito pequeno. Não eram sacas, não eram de modo nenhum sacas. Eram cadáveres. De crianças.

Eram quatro, todos rapazes, deitados lado a lado, do mais alto até ao mais baixo. O mais velho era um adolescente, o mais novo ainda um bebé de mama. Os seus mantos reais tinham sido cui‑dadosamente arranjados para garantir que, na morte, retinham a dignidade de príncipes. O olhar de Jahan caiu no cadáver mais próximo, um rapaz de pele clara e faces rosadas. Olhou para as linhas na palma da sua mão. Linhas curvas, inclinadas, que se esfumavam umas nas outras, como marcas na areia. Que vidente daquela cidade, pensou Jahan, teria previsto mortes tão tristes e repentinas para príncipes de nascimento tão nobre?

Pareciam estar em paz. As suas peles brilhavam, como se ilumi‑nadas por dentro. Jahan não conseguiu evitar pensar que, na reali‑dade, não tinham morrido. Tinham parado de se mover, parado de falar, tinham ‑se transformado em algo para lá da sua compreensão, algo de que apenas eles tinham conhecimento, daí a expressão nos seus rostos que poderia ser um sorriso.

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De pernas e mãos a tremer, Jahan ficou ali parado, incapaz de se mover. Só o ruído de passos a aproximarem ‑se o arrancou da neblina do seu aturdimento. Mal conseguindo reunir forças, mas encontrando tempo para cobrir os mortos, correu para um canto e escondeu ‑se atrás de uma tapeçaria que caía do teto até ao chão. Passado um instante, os surdos ‑mudos entraram na divisão, trazendo outro corpo. Deitaram ‑no, cuidadosamente, ao lado dos outros.

Nesse momento, um dos homens reparou que a saca do cadá‑ver mais afastado tinha escorregado. Aproximou ‑se e olhou em volta. Sem ter a certeza se tinham sido eles a deixá ‑lo assim ou se alguém entrara furtivamente depois de terem saído, fez um sinal aos compa nheiros. Também eles pararam. Juntos começaram a revistar a divisão.

Sozinho no canto, com um tecido fino a separá ‑lo dos assas‑sinos, Jahan estava transido de medo. Então, era o fim, pensou; toda a sua vida transformada em nada. Tantas mentiras e enganos tinham ‑no conduzido até ali. Estranhamente, e não sem tristeza, lembrou ‑se do lampião que deixara junto do muro do jardim, a tremeluzir ao vento. Os olhos encheram ‑se ‑lhe de lágrimas, quando pensou no seu elefante e no seu mestre: naquele momento, deviam estar ambos a dormir inocentemente. Depois, os seus pen‑samentos desviaram ‑se para a mulher que amava. Enquanto ela e outras sonhavam em segurança nas suas camas, ele seria morto por estar onde não devia estar e por ver o que não devia ter visto. E tudo por causa da sua curiosidade — aquela curiosidade desa‑vergonhada, desenfreada, que durante toda a vida só lhe causara sarilhos. Amaldiçoou ‑se, em voz baixa. Deviam escrevê ‑lo na sua pedra tumular, em letras nítidas:

Aqui jaz um homem demasiado intrometido para o seu próprio bem,tratador de animais e aprendiz de arquiteto.Oferecei uma prece à sua alma ignorante.

Uma pena que não houvesse ninguém para cumprir aquele seu último desejo.

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Na mesma noite, numa mansão do outro lado de istambul, a kahya* estava acordada, um rosário a pender ‑lhe das mãos,

percorrendo as contas. De faces enrugadas como passas secas, estrutura magra e corcovada, a mulher cegara com a idade. Apesar disso, desde que se encontrasse nos limites da casa do seu senhor, tinha uma excelente visão. Cada nicho e recanto, cada dobradiça solta, cada degrau rangente... Não havia ninguém debaixo daquele teto que conhecesse tão bem a casa como ela, e ninguém tão dedi‑cado ao seu amo e senhor. Tinha a certeza disso.

À sua volta estava tudo silencioso, excetuando o ressonar que se erguia dos alojamentos dos criados. De vez em quando, captava o som de uma respiração suave, tão ténue que era quase impercetível, por trás da porta fechada da biblioteca. Sinan estava ali a dormir, tendo voltado a trabalhar até tarde. Regra geral, teria passado a noite com a família, retirando ‑se antes do jantar para o haremlik**, onde a sua mulher e filhas viviam e onde nenhum aprendiz alguma vez se aventurava. Mas naquela noite, como em tantas outras, depois de quebrar o jejum, ele regressara aos seus projetos e ador‑mecera entre os seus livros e pergaminhos, na divisão que acolhia o sol antes do resto da enorme e magnífica casa. A kahya preparara‑‑lhe uma cama, estendendo uma esteira em cima do tapete.

Apesar dos seus oitenta e cinco anos, trabalhava demasiado. Com a sua idade, um homem devia descansar, comer bem e tratar

* Chefe dos criados de uma casa.** Aposentos privados de uma casa, reservados à família. (NT )

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das suas devoções, cercado pelos filhos e netos. Qualquer que fosse a força que lhe restasse nos membros, devia usá ‑la para ir em peregrinação a Meca, e se morresse no caminho, tanto melhor para a sua alma. Porque é que o mestre não se estava a preparar para o pós ‑vida? E se se estava a preparar para ele, que raio estava a fazer nos estaleiros, enchendo os seus caftãs elegantes de poeira e lama? Embora a kahya se sentisse zangada com o seu senhor por não tomar melhor conta de si, também se sentia zangada com o sultão e com cada vizir, por o fazerem trabalhar tão arduamente; e sentia ‑se furiosa com os apren dizes de Sinan, por não retirarem aquela carga excessiva dos ombros do seu amo. Rapazes pregui‑çosos! Não que ainda fossem rapazes. Conhecia os quatro, desde que eram caloiros ignorantes. Nicola, o mais talentoso e tímido; Davud, ávido e entusiasta, mas impaciente; Yusuf, mudo e cheio de segredos, como uma floresta densa e impenetrável; e aquele indiano, Jahan, que estava sempre a fazer perguntas — Porque é que isto é assim, Como é que isso funciona —, embora mal ouvisse as respostas.

Meditando e orando, a kahya olhou durante um bocado para o abismo dentro dos seus olhos. O seu polegar, indicador e dedo médio, que tinham estado a empurrar uma a uma as contas do rosário, abrandaram. Bem como o seu murmurar, Alhamdulillah, Alhamdulillah*. A cabeça começou a descair e a boca abriu ‑se ‑lhe, soltando um arquejo.

Um momento ou uma hora depois, não o sabia dizer, acordou com um ruído distante. O bater de cascos e o som de rodas sobre o empedrado. Uma carruagem viajava a toda a velocidade e, pelo som, avançava naquela direção. A casa de Sinan era a única habita‑ção naquela rua sem saída. Se a carruagem contornasse a esquina, só podia estar a dirigir ‑se para ali. Um arrepio atravessou ‑a, como se um frio repentino lhe tivesse descido pela espinha.

Murmurando uma prece contra espíritos profanos, levantou ‑se rapidamente apesar da idade. Com passos curtos e oscilantes, des‑ceu as escadas, atravessou corredores e saiu para o pátio. Dividido

* Louvores a Alá.

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em terraços altos, ornamentado com um lago e cheirando às mais doces fragrâncias, o jardim enchia de alegria o coração de todas as visitas. O mestre construíra ‑o sozinho, levando água até à casa com uma autorização especial do sultão — fazendo assim aumen‑tar a inveja e o ressentimento dos seus inimigos. Agora, a roda de água girava serenamente, o seu gorgolejar firme a reconfortá ‑la com uma previsibilidade que faltava à própria vida.

Sobre ela, a Lua, uma foice de prata, escondia ‑se atrás de uma nuvem; e por um instante fugaz o céu e a terra misturaram ‑se numa tonalidade cinzento ‑ardósia. No carreiro à sua direita havia um pomar de declives íngremes e, mais abaixo, uma bostan* onde cul‑tivavam ervas e vegetais. Enveredou pelo outro carreiro, dirigindo‑‑se para o pátio. De um dos lados encontrava ‑se um poço, a água fria como gelo, tanto no inverno como no verão. Amontoadas no canto oposto, encontravam ‑se as latrinas. Como sempre, evitou ‑as. Era ali que os djinn celebravam os seus casamentos, e quem quer que os perturbasse a meio da noite ficaria entrevado até ao Dia do Juízo Final, uma maldição tão forte que seriam necessárias sete gerações para a eliminar. Como odiava usar um bacio ainda mais do que visitar as latrinas quando escurecia, todos os dias, depois do entardecer, a velha kahya deixava de comer e beber, de modo a não se encontrar à mercê do próprio corpo.

Consternada, estendeu a mão para o portão que se abria para a rua. Havia três coisas na vida de que não esperava nada de bom: um homem que tivesse vendido a alma a Sheitan; uma mulher orgulhosa da sua beleza; e as notícias que não podiam esperar até de manhã para serem entregues.

Pouco depois, a carruagem parou do outro lado da vedação alta. Um cavalo resfolegou; ouviram ‑se passos pesados. A kahya sentiu no ar o cheiro a suor, embora não soubesse dizer se era da besta ou do mensageiro. Quem quer que fosse o intruso, a velha não estava com pressa para o descobrir. Primeiro, tinha de rezar sete vezes o Surah al ‑Falaq**. Procuro refúgio no Senhor da

* Horta. (NT ) ** A Alvorada, a 113.ª sura do Corão. (NT )

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Madrugada, do mal de tudo o que Ele criou, e do mal da escuridão, e do mal das mulheres que sopram nos nós...

Entretanto, o mensageiro estava a bater ao portão. Educado, mas persistente. O tipo de batida que se poderia transformar em pancadas se não fosse respondido dentro de pouco tem po  — e, na verdade, passados instantes, foi isso que aconteceu. As cria‑das, que estavam a acordar, correram para o jardim uma a uma, trazendo lampiões e pondo os véus por cima das túnicas. Incapaz de adiar o momento durante mais tempo, a kahya disse Bismillah al ‑Rahman al ‑Rahim* e puxou o trinco.

Ao mesmo tempo que a Lua deslizava por trás das nuvens, apareceu um desconhecido. Baixo, corpulento e, pelo formato dos olhos, um tártaro. Tinha um odre de couro atravessado ao ombro e uma postura altiva. O homem franziu a testa, sem esconder o seu aborrecimento por encontrar tantas pessoas a observá ‑lo.

— Venho do palácio — anunciou, num tom de voz desnecessa‑riamente alto.

O silêncio que se seguiu era tudo menos acolhedor.— Tenho de falar com o vosso amo — disse o mensageiro.Endireitando os ombros, o homem estava prestes a entrar quando

a kahya levantou a mão, detendo ‑o.— Está a entrar com o pé direito?— O quê?— Se vai atravessar este limiar, deve entrar primeiro com o pé

direito.O mensageiro baixou os olhos para os pés, como se temesse

que eles pudessem fugir; de seguida, deu um passo cauteloso. Uma vez no interior, informou que fora enviado pelo próprio sultão por causa de um assunto urgente, embora não tivesse de o dizer: já todas tinham percebido.

— Fui enviado para vir buscar o principal arquiteto real — acres‑centou.

A kahya estremeceu; as suas faces empalideceram. Pigarreou, as palavras que não podia proferir a amontoarem ‑se ‑lhe dentro da

* Em nome de Alá, o Beneficente, o Misericordioso.

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boca. Preferia informar aquele homem de que não podia perturbar o seu senhor, que já dormira tão pouco. Mas claro que não disse semelhante coisa. Em vez disso, murmurou:

— Espere aqui.Virou a cabeça para um lado, percorrendo com os olhos o espaço

vazio.— Vem comigo, Hasan — disse a um dos pajens que ela sabia

estar ali porque ele cheirava a gordura e a doces de cravo, que o rapaz enfiava dissimuladamente na boca.

Afastaram ‑se, ela à frente, o rapaz a segui ‑la com um lampião. As tábuas do soalho rangeram debaixo dos seus pés. A kahya sor riu para si mesma. O senhor erguera edifícios magnificentes, próximos e distantes, mas esquecera ‑se de reparar o soalho da sua própria casa.

Ao entrarem na biblioteca, foram envolvidos por um odor bal‑sâmico — o cheiro a livros, tinta, couro, cera, rosários de cedro e estantes de nogueira.

— Effendi*, acorde — sussurrou a kahya, a sua voz suave como seda.

Manteve ‑se imóvel, escutando o subir e descer da respiração do amo. Voltou a chamá ‑lo, desta vez mais alto. Ele não se mexeu.

Entretanto, o rapaz, que nunca estivera tão perto do seu senhor, observava ‑o: o nariz comprido e arqueado; a testa larga, com rugas profundas; a barba espessa e grisalha, que ele puxava incessante‑mente quando perdido em pensamentos; a cicatriz na sobrancelha esquerda — uma recordação do dia em que, ao trabalhar na oficina de carpintaria do pai, o jovem Sinan caíra em cima de uma cunha. O olhar do rapaz desceu até às mãos do amo. De dedos fortes e ossudos e palmas calejadas e ásperas, eram as mãos de um homem habituado a trabalhar ao ar livre.

Da terceira vez que a kahya o chamou, Sinan abriu os olhos e sen tou ‑se na esteira. As feições ensombraram‑se ‑lhe, ao ver duas pessoas ao seu lado. Sabia que nunca se teriam atrevido a acordá‑

* Título nobiliárquico de respeito e/ou cortesia utilizado no Império Oto‑mano, que significa senhor ou amo. (NT )

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‑lo àquela hora, a não ser que tivesse acontecido uma calamidade ou a cidade tivesse sido completamente destruída por um incêndio.

— Chegou um mensageiro — explicou a kahya. — Sois esperado no palácio, senhor.

Sinan ergueu ‑se lentamente da cama.— Que sejam boas notícias, insha’Allah*.Segurando uma bacia, deitando água de um jarro e sentindo ‑se

bastante importante, o rapaz ajudou o seu amo a lavar o rosto e a vestir ‑se. Uma camisa clara, um caftã, não um dos novos mas um velho, castanho, grosso e forrado a pelo. Juntos, os três desceram as escadas.

O mensageiro baixou a cabeça ao vê ‑los aproximar. — Peço perdão por vos ter perturbado, effendi, mas tenho

ordens para vos levar ao palácio.— Os deveres são para cumprir — respondeu Sinan.A kahya interveio:— O rapaz não pode acompanhar o amo?O mensageiro ergueu uma sobrancelha, olhando diretamente

para Sinan.— Fui instruído para vos levar apenas a vós, senhor.Uma fúria, semelhante a bílis, ergueu ‑se na boca da kahya.

Estava prestes a retorquir, mas Sinan pousou uma mão tranquili‑zadora no seu ombro e disse:

— Não há problema.O arquiteto e o mensageiro saíram para a noite. Não se via uma

única criatura, nem sequer um cão vadio, dos muitos que havia na cidade. Assim que Sinan se sentou na carruagem, o mensageiro fechou a porta e saltou para o assento ao lado do cocheiro, que não proferira uma única palavra. Os cavalos moveram ‑se abrupta‑mente, e passados instantes corriam através das ruas pardacentas, oscilando para cima e para baixo.

Para esconder o seu desconforto, Sinan afastou os cortinados firmemente corridos e olhou para o exterior. Enquanto galopavam pelas ruas sinuosas e por baixo de ramos que se dobravam lugu‑

* Se Deus quiser. (NT )

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bremente, pensou nas pessoas que dormiam nas suas casas, os ricos nos seus konaks*, os pobres nas suas barracas. Passaram pelo bairro judeu, pelo bairro arménio e pelos bairros gregos e levantinos. Observou as igrejas, em nenhuma das quais era permitido existirem sinos; as sina gogas de pátios quadrados; as mesquitas de telhados de chumbo; e as casas de madeira e tijolos de lama, que se apoia‑vam umas nas outras como se em busca de consolo. Até as casas da aristocracia tinham sido erguidas com tijolos mal cozidos. Sinan perguntou ‑se, pela milionésima vez, como é que uma cidade de tamanha beleza podia estar tão cheia de casas tão mal construídas.

Chegaram, por fim, ao palácio. A carruagem deteve ‑se ao fundo do primeiro pátio. Os palafreneiros do palácio aproximaram ‑se para ajudar, os seus movimentos hábeis e experientes. Sinan e o mensa‑geiro dirigiram ‑se ao Portão do Meio, que ninguém exceto o sultão podia atravessar a cavalo. Passaram por uma fonte de mármore que brilhava no escuro, como uma criatura de outro mundo. Os pavilhões junto ao mar, que se erguiam à distância, assemelhavam ‑se a gigan‑tes cabisbaixos. Tendo recentemente expandido partes do serralho e renovado as cozinhas imperiais, Sinan estava bastante familiarizado com aquilo que o cercava. De repente, parou, ao ver um par de olhos a observá ‑lo das profundezas da escuridão. Era uma gazela. Grande, reluzente, de olhos líquidos. Havia outros animais à sua volta — pavões, tartarugas, avestruzes, antílopes. Estavam todos, por algum motivo que ele não conseguia compreender, despertos e alarmados.

O ar, frio e revigorante, cheirava a murta, heléboro e rosmaninho. Chovera naquela tarde, e a relva cedia debaixo dos seus pés. Os guardas afastaram ‑se para os deixar passar. Chegaram ao edifício de pedra maciça, da cor das nuvens de tempestade, e atravessaram um vestíbulo iluminado com velas de sebo que tremiam na corrente de ar. Depois de percorrerem duas divisões, pararam na terceira. Assim que ali chegaram, o mensageiro desculpou ‑se e desapareceu. Sinan semi‑cerrou os olhos, para os habituar à vastidão do lugar. Cada jarro, cada almofada, cada ornamento lançava sombras sinistras que se agitavam e contorciam nas paredes, como se ansiosas por lhe contar algo.

* Casa. (NT )

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No canto oposto, a luz era mais suave. Sinan sobressaltou‑se ao reparar nas sacas no chão. Através da abertura, viu o rosto de um cadáver. Os ombros afundaram ‑se ‑lhe e os olhos encheram‑‑se ‑lhe de lágrimas ao ver quão novo era o rapaz. Compreendeu. Houvera rumores de que aquilo iria acontecer, embora ele se tivesse recusado a acreditar. Atordoado, horrorizado, cambaleou contra a parede. Quando conseguiu encontrar as palavras, a sua prece foi lenta, interrompida por um arquejo de cada vez que lutava por respirar.

Ainda não dissera amin*, nem limpara o rosto com as mãos, quando ouviu um rangido atrás de si. Terminando a sua oração, olhou para a tapeçaria pendurada da parede. Tinha a certeza de que o som viera dali. Com a boca seca como giz, avançou arras‑tando os pés e puxou o tecido para o lado — para logo descobrir uma figura familiar, a tremer, pálida de medo.

— Jahan? — Mestre!— O que é que estás aqui a fazer?Jahan saltou do seu esconderijo, agradecendo à sua boa estre‑

la  — a estrela que não tinha enviado um surdo ‑mudo para o estrangular, mas a única pessoa em todo o mundo que podia ir em seu socorro. De joelhos, beijou a mão do velho e levou ‑a à testa.

— Sois um santo, mestre. Sempre o desconfiei. Agora, tenho a certeza. Se sair daqui vivo, contá ‑lo ‑ei a todas as pessoas.

— Chiu, não digas disparates e não grites. Como é que entraste aqui?

Não havia tempo para explicações. Passos ressoaram ao longo do corredor, ecoando pelos tetos altos e paredes ornamentadas. Levantando ‑se, Jahan aproximou ‑se do seu mestre, esperando tornar ‑se invisível. No instante seguinte, Murad III entrou na sala, segui do do seu séquito. Não era alto mas corpulento, tinha um nariz aquilino, uma barba comprida quase loira, e olhos castanhos ousados sob sobrancelhas arqueadas. Deteve ‑se, decidindo que tom utilizar: o suave, o ríspido ou o duro.

* Palavra islâmica que significa ámen. (NT )

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Sinan recompôs ‑se rapidamente, beijando a bainha do caftã do  seu soberano. O aprendiz fez uma vénia profunda e ficou rígido, incapaz de erguer os olhos para a Sombra de Deus na terra. Jahan estava intrigado, não tanto pela presença do sultão, mas por se encontrar na sua presença imperial. Pois Murad era agora o sultão. O seu pai, Selim, o Bebedolas, tropeçara no mármore molhado do hamam, caindo para a sua morte, completamente bêbedo, assim diziam os mexericos, apesar de se ter arrepen‑dido dos seus modos e jurado nunca mais tocar em vinho. Pouco antes do entardecer, entre muitas adulações e louvores, e uma cascata de fogo de artifício, tambores e trompetes, Murad fora cingido com a espada de Osman, o seu antepassado, e proclamado o novo padishah*.

Lá fora, muito ao longe, o mar gemia e suspirava. Sem se atre‑ver a mexer, Jahan esperou, silencioso como um túmulo, a testa a encher ‑se de gotas de suor. Escutou o silêncio que caía pesado sobre os seus ombros e aproximou tanto os lábios do chão que o podia ter beijado como um amante frio.

— Porque estão os mortos aqui? — perguntou o sultão, enquanto olhava para as sacas no chão. — Não têm vergonha?

Um dos criados respondeu de imediato:— Pedimos ‑vos perdão, meu senhor. Pensámos que desejásseis

vê ‑los mais uma vez. Iremos levá ‑los para a casa mortuária e cer‑tificar‑nos ‑emos de que serão devidamente respeitados.

O sultão não respondeu. De seguida, virou ‑se para as figuras ajoelhadas à sua frente.

— Arquiteto, este é um dos teus aprendizes?— É sim, vossa majestade. Um dos quatro — respondeu Sinan.— Pedi que viesses sozinho. O mensageiro desobedeceu às minhas

ordens?— A culpa é minha — disse Sinan. — Perdoai ‑me. Com a minha

idade, preciso de ajuda.O sultão pensou naquilo durante um momento.— Como se chama ele?

* Título comum ao sultão da Turquia e ao xá da Pérsia. (NT )

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— Jahan, meu senhor venturoso. Talvez vos lembreis dele como o mahaut do palácio. É o tratador do elefante branco.

— Um tratador de animais e um arquiteto — troçou o sultão. — Como é que isso aconteceu?

— Ele serviu o vosso glorioso avô, o sultão Solimão, que a paz de Alá esteja com ele. Ao vermos como era talentoso a construir pontes, tomámo ‑lo sob o nosso cuidado e temo ‑lo treinado desde adolescente.

Ignorando ‑o, o sultão murmurou, como se para si mesmo:— O meu avô foi um grande soberano.— Um soberano louvável como o profeta do qual herdou o

nome, meu senhor.Solimão, o Magnífico, Doador de Leis, Comandante dos Fiéis e

Pro tetor das Cidades Santas — o homem que governara durante qua‑renta e seis invernos e passara mais tempo a cavalo do que no seu trono; e que, apesar de profundamente enterrado e da sua mortalha decomposta, só podia ser recordado num tom sussurrado.

— Que a misericórdia de Alá esteja com ele. Esta noite pensei no meu avô. Que teria ele feito na minha situação, perguntei ‑me — disse o sultão Murad, a voz quebrando ‑se ‑lhe pela primeira vez. — Teria feito o mesmo. Não havia outra opção.

O pânico invadiu Jahan, ao aperceber ‑se de que o sultão estava a falar dos mortos.

— Os meus irmãos estão com Aquele Que Sustenta o Universo — disse o sultão.

— Que o céu seja o seu lar — disse Sinan, em voz baixa.Reinou o silêncio, até o sultão voltar a falar.— Arquiteto, o meu venerável pai, o sultão Selim, ordenou ‑te

que lhe construísses um túmulo. Não ordenou?— É verdade, vossa majestade. Ele queria ser enterrado perto de

Hagia Sophia*.— Então, constrói esse túmulo. Começa a obra sem demora.

Tens a minha autorização para fazeres o que for necessário.— Compreendido, meu senhor.

* A Basílica de Santa Sofia, na cidade de Istambul. (NT )

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— É meu desejo sepultar os meus irmãos junto do meu pai. Faz um turbeh* tão magnificente que, até com o passar dos séculos, as pes‑soas venham e rezem pelas suas almas inocen tes. — Interrompeu ‑se e acrescentou, como se tivesse pensado melhor: — Mas... não o faças demasiado grandioso. Deve ter o tamanho certo.

Pelo canto do olho, Jahan viu o rosto do seu mestre empalidecer. Sentiu um cheiro no ar, ou antes, uma mistura de cheiros, talvez juní‑pero e ramos de bétula, com um odor acre subjacente, possivelmente a olmo queimado. Se aquele cheiro vinha do soberano ou de Sinan, não teve a oportunidade de o descobrir. Em pânico, voltou a fazer outra vénia, a testa a tocar no chão. Ouviu o sultão suspirar, como se à procura de algo mais para dizer. Mas permaneceu em silêncio. Em vez de falar, aproximou ‑se, aproximou ‑se mais, a sua figura a bloquear a luz da vela. Jahan tremeu, sob o olhar do soberano. O coração saltou ‑lhe uma batida. Teria o sultão desconfiado que, naquela noite, ele entrara no pátio interior? Jahan sentiu os olhos reais a passarem rapidamente sobre ele, apenas por um instante, e depois o sultão afastou ‑se, seguido pelos seus vizires e guardas.

E foi assim que, no mês de dezembro do ano de 1574, num dos primeiros dias do Ramadão, foi atribuída a Sinan, na sua qualidade de principal arquiteto real, e ao seu aprendiz Jahan, que não tinha qualquer lugar naquele encontro e no entanto estava presente, a tarefa de construir no interior dos jardins de Hagia Sophia um túmulo, que fosse suficientemente grande e impressionante para caberem cinco príncipes, os irmãos do sultão Murad, mas não tão grande nem tão impressionante que recordasse a alguém como tinham sido estrangu‑lados, segundo as suas ordens, na noite em que ele ascendera ao trono.

O que nenhum dos presentes podia ter previsto foi que, anos depois, quando o sultão Murad morreu, numa noite como aquela, em que o vento gemia e os animais da menagerie gritavam, os seus próprios filhos — dezanove ao todo — seriam estrangulados com um laço acetinado, para que se não derramasse o seu sangue nobre, e, por ironia do destino, enterrados no mesmo lugar que fora construído pelo arquiteto e o aprendiz.

* Túmulo grande e abobadado. (NT )

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O profeta Jacob tinha doze filhos, o profeta Jesus doze apósto‑ los. O profeta José, cuja história é contada na décima segunda

sura do Corão, era o filho favorito do seu pai. Doze pães colo‑cavam os judeus em cima das suas mesas. Doze leões dourados guardavam o trono de Salomão. Havia seis degraus que ascendiam ao trono e, como tudo o que se sobe tem de se descer, isso signifi‑cava seis degraus para baixo, doze no total. Doze crenças cardinais sopravam através da terra do Indostão. Doze imãs sucederam ao profeta Maomé, no credo xiita. Doze estrelas adornavam a coroa de Maria. E um rapaz chamado Jahan mal tinha completado doze anos quando viu Istambul pela primeira vez.

Magricela, queimado do sol e inquieto como um peixe apa‑nhado na corrente de um rio, era bastante baixo para a idade. Como se para compensar a sua altura, um tufo de cabelo preto crescia ‑lhe espetado, empoleirando ‑se no cimo da cabeça como uma criatura com vida própria. Ao olharem para ele, o cabelo era a primeira coisa que as pessoas viam. Seguiam ‑se as orelhas, cada uma com o tamanho do punho de um bandido. Mas a mãe dizia ‑lhe que, um dia, as raparigas ficariam encantadas com o seu sorriso deslumbrante e com a única covinha na sua face esquerda, a dedada de um cozinheiro em massa mole. Fora o que ela dissera; era nisso que ele acreditava.

Lábios vermelhos como um botão de rosa, cabelo lustroso como seda, cintura mais fina do que o ramo de um salgueiro. Ágil como uma gazela, forte como um touro, abençoada com a voz de um rouxi nol — voz que usava para cantar canções de embalar aos seus

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bebés, não para conversas ociosas, e nunca para desafiar o marido. Se fosse viva, essa era a noiva que a sua mãe teria desejado para ele. Mas a mãe morrera — de eflúvios, dissera o médico, embora ele soubesse que fora por causa dos espancamentos que recebia todos os dias do bruto do padrasto, que também era o tio de Jahan. O homem chorara convulsivamente no funeral, como se tivesse sido outra pessoa a causar a sua morte prematura. Desde essa altura que Jahan o odiava com todo o seu ser. Quando embarcara no navio, arrependera ‑se de ter saído de casa sem se ter vingado. No entanto, sabia que se tivesse ficado teria matado o tio, ou o tio tê ‑lo ‑ia matado a ele. Como ainda era muito novo, e não suficientemente forte, talvez tivesse sido o tio a matá ‑lo. Quando o momento certo chegasse, Jahan regressaria para se vingar. E encontraria a sua amada. Casariam numa cerimónia que duraria quarenta dias e quarenta noites, enchendo ‑se de gulodices e gargalhadas. Daria à sua primeira filha o nome da mãe. Era um sonho que nunca contara a ninguém.

À medida que o galeão se aproximava do porto, o rapaz come‑çou a ver pássaros em grande número. E uma enorme varie‑dade deles: gaivotas, borrelhos, maçaricos ‑reais, pardais, gaios e pegas  — uma delas transportando uma bugiganga brilhante no bico. Alguns — os mais corajosos ou mais tolos — pousavam nas velas, demasiado perto dos humanos. O ar tinha um novo odor, desconhecido e fétido.

Após semanas a navegar em mar alto, avistar istam bul teve um efeito estranho na imaginação de Jahan — em especial, num dia enevoado como aquele. Olhou em frente para a faixa cin‑zenta onde a água alcançava a costa, e não conseguiu perceber se estavam a navegar na direção da cidade ou a afastarem ‑se dela. Quanto mais tempo olhava, mais a terra se assemelhava a uma extensão do mar, uma povoação derretida e empoleirada no cimo das ondas, a oscilar, atordoadora, sempre a alterar ‑se. Fora mais ou menos esta a sua primeira impressão de istambul e, embora não o soubesse, essa primeira impressão nunca desapareceria, mesmo passada toda uma vida.

O rapaz atravessou o convés lentamente. Os marinheiros esta‑vam demasiado ocupados para se importarem com ele. Chegou

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à extremidade da proa, onde nunca estivera antes. Ignorando o vento no rosto, perscrutou o coração de Istambul, que não con‑seguia ver nitidamente, ainda não. Depois, a pouco e pouco, a neblina dissolveu ‑se, como se alguém tivesse puxado um corti‑nado. A cidade, agora claramente definida, abriu ‑se diante dele, resplandecente. Luz e sombra, cumes e encostas. Para cima e para baixo, colina após colina, coberta aqui e ali por matagais de cipres‑tes, parecia uma cidade de contrastes. Negando ‑se a cada passo, mudando de disposição a cada quarteirão, simultaneamente terna e indiferente, istambul dava generosamente e, no mesmo fôlego, retirava a sua dádiva. Uma cidade tão vasta que se expandia para a esquerda e para a direita, e para cima em direção ao firmamento, esforçando ‑se por ascender, desejando mais, nunca satisfeita. No entanto, era encantadora. Embora estranho aos seus costumes, o rapaz sentiu que se podia cair sob o seu feitiço.

Jahan apressou ‑se para o porão. O elefante encontrava ‑se den‑tro de uma jaula, túrgido e apático.

— Conseguiste cá chegar. Olha, já aqui estás! Proferiu aquela última palavra com um ligeiro estremecimento,

já que não sabia que tipo de lugar era «aqui». Não interessava. O  que quer que aguardasse o animal naquele novo reino, não podia ser pior do que a viagem pela qual acabara de passar.

Chota estava sentado sobre os quartos traseiros, tão imóvel que por um instante o rapaz receou que o seu coração tivesse parado de bater. Ao aproximar ‑se dele detetou uma respiração baixa e ofe‑gante, e sentiu ‑se ligeiramente aliviado. Contudo, o brilho desapa‑recera dos olhos do animal, o lustre da sua pele. No dia anterior não comera nem dormira. Tinha um inchaço assustador atrás do maxi‑lar, e a tromba estava visivelmente inchada. O rapaz deitou ‑lhe água por cima da cabeça, de novo inseguro por usar água salgada, que deixava resquícios de sal por toda a sua pele e que lhe devia picar.

— Quando chegarmos ao palácio, vou lavar ‑te com água doce — prometeu Jahan.

Com gentileza e cuidado, espalhou curcuma nos inchaços do elefante. O animal tinha perdido peso. As últimas etapas da via‑gem tinham sido particularmente duras.

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— Vais ver. A sultana vai gostar de ti. Serás o preferido das con ‑cubinas — disse Jahan. Depois, quando outra possibilidade lhe atra‑vessou o pensamento, acrescentou: — Se não forem amáveis, podes fugir. Eu fujo contigo.

Teria continuado a dizer coisas semelhantes, mas ouviu passos nas escadas. Um marinheiro entrou a correr, gritando:

— Ei, o capitão quer ver ‑te. Agora!Um instante depois, o rapaz encontrava ‑se em frente à porta

do capitão. Do interior, vinha o som de alguém a tossir e a cuspir. Jahan tinha medo do homem, embora tentasse não o mostrar. O capitão Gareth era conhecido por todos como Gavur* Garret ou Delibash Reis — Capitão Doido. Num momento podia estar a brin‑car e a rir ‑se com um marinheiro, e no momento seguinte a sacar da espada para o cortar em mil pedaços. Jahan já o vira acontecer.

Nascido em Inglaterra, numa povoação costeira, aquele lobo do mar, que mais do que tudo gostava de uma perna de porco lentamente assada e de uma caneca de cerveja, tinha, por algum motivo que ninguém compreendia, traído os seus conterrâneos e juntara ‑se à força naval otomana, trazendo consigo segredos valio‑sos. A sua intrepidez tornara ‑o querido ao palácio e valera‑lhe uma frota só sua. O sultão Solimão sentia ‑se extremamente divertido por ver  que ele atacava e saqueava os navios cristãos com uma feroci dade que nenhum marinheiro otomano alguma vez demons‑trara. O sultão protegia ‑o, mas não confiava nele. Ele sabia que um homem que apunhalava os seus próprios companheiros pelas cos‑tas nunca seria um verdadeiro amigo. A criatura que chegara à sua porta, tendo mordido a mão que sempre a alimentara, não hesitaria em enfiar ‑lhe os dentes na carne, assim que entrasse na sua casa.

Quando o rapaz entrou no camarote, encontrou o capitão sen‑tado à sua secretária, parecendo menos imundo do que o habitual. A barba — lavada, penteada e ungida — não tinha a tonalidade castanho ‑escura que ostentara durante semanas, mas era de um castanho mais claro, quase ruivo. Uma cicatriz corria ‑lhe da orelha esquerda até ao canto dos lábios, fazendo com que a boca parecesse

* Infiel.

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a continuação do ferimento. Tendo despido a sua habitual camisa ocre, vestia agora uma camisa solta e clara, e  um shalwar* cor de camelo; à volta do pescoço, tinha pendurado um fio de contas azuis contra o mau ‑olhado. Na mesa ao seu lado, encontrava ‑se uma vela que ardera até ao coto, e um livro ‑razão onde anotava o saque conquistado ao longo do caminho. O rapaz reparou que ele tapava as páginas, embora não houvesse necessidade disso. Jahan não sabia ler. As letras não eram suas amigas, mas as formas e as imagens eram ‑no. Lama, barro, pele de cabra, pele de bezerro, con‑seguia desenhar em qualquer superfície. Durante a viagem, fizera inúmeros esboços dos marinheiros e do navio.

— Como vês, sou um homem de palavra. Trouxe ‑te até aqui inteiro — disse o capitão Gareth, e cuspiu violentamente.

— O elefante está doente — disse o rapaz, olhando para a tigela onde a expetoração aterrara. — O senhor não me deixou tirá ‑lo da jaula.

— Assim que pisar terra sólida, vai ficar bom num instante. —  O  tom do capitão tornou ‑se condescendente. — De qualquer ma neira, o que é que tens a ver com isso? A besta não te pertence.

— Não, pertence ao sultão.— Exato, rapaz. Se fizeres o que eu disser, ganhamos todos com

isso.Jahan baixou os olhos. O homem já falara anteriormente daquele

assunto, mas Jahan esperara que ele o tivesse esquecido. Pelos vis‑tos, não tinha.

— O palácio está cheio de ouro e joias. O paraíso de um la ‑drão — disse o capitão Gareth. — Quando lá chegares, vais roubar para mim. Não tentes assaltar o lugar... Os turcos cortam ‑te as mãos. Vais fazê ‑lo lentamente, a pouco e pouco.

— Mas há guardas por todo o lado, eu não posso...Rápido como um pensamento, o capitão atirou ‑se ao rapaz.— Estás a dizer que não o vais fazer? Esqueceste o que é que

aconteceu àquele miserável mahaut, hã?

* Tipo de calças largas no cimo e apertadas nos tornozelos, tradicionais na Ásia Central e Meridional. (NT )

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— Não me esqueci — respondeu Jahan, o rosto cor de cinza.— Lembra ‑te que podias ter tido o mesmo fim! Se não fosse eu,

um rapaz como tu nunca teria sobrevivido.— Estou em dívida para consigo — disse o rapaz, em voz baixa.— Mostra a tua gratidão com joias, não com palavras. — O capi‑

tão tossiu, e ficou saliva a pingar ‑lhe do lábio. Puxou o rapaz para mais perto. — Os marinheiros teriam cortado o elefante às postas e atirado aos tubarões. E tu... ter ‑te ‑iam montado, todos eles. Quando se fartassem do teu rabinho bonito, vender ‑te ‑iam a um bordel. Estás mesmo em dívida para comigo, sua pequena peste. Vais imediatamente para o palácio. Vais fingir que és o tratador do animal.

— E se perceberem que não sei nada acerca de elefantes? — per‑guntou Jahan.

— Então, isso significa que falhaste! — disse o capitão, o seu hálito era azedo. — Mas não vais falhar. Um rapaz esperto como tu. Vou esperar até te ambientares. Depois vou à tua procura. Se te virares contra mim, juro por Deus que te arranco as entranhas! Direi a todos que és um impostor. Sabes como é que castigam um homem que mente ao sultão? Içam ‑no até um patíbulo... mais alto e mais alto... e depois... deixam ‑no cair... sobre um gancho de ferro. Demora ‑se três dias a morrer. Imagina, três malditos dias! Vais suplicar que alguém te mate.

Jahan contorceu ‑se para escapar às mãos do homem. Fugiu do camarote, atravessou o convés como uma seta e desceu até ao porão a correr; de seguida, rastejou para junto do elefante, que, embora silencioso e doente, se tornara o seu único amigo. Ali, chorou como a criança que era.

Assim que o navio atracou, esperou que a carga fosse des‑car regada. O rapaz ouviu o burburinho acima de si e, embora ansiasse por ar fresco e estivesse faminto, não se atreveu a mexer. Perguntou ‑se para onde teriam ido os ratos. Será que os roedo‑res, tal como passageiros bem ‑educados, desembarcavam em fila quando um barco atracava no cais? Mentalmente, viu dezenas de caudas pretas e avermelhadas a espalharem ‑se em todas as dire‑ções, desaparecendo no labirinto de becos e ruas que era Istambul.

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Incapaz de esperar mais tempo, subiu ao convés que, para seu grande alívio, estava vazio. Enquanto os seus olhos percorriam a doca à sua frente, viu o capitão a falar com um homem de túnica elegante e turbante alto. Sem dúvida, um funcionário superior. Quando repararam nele, o capitão fez ‑lhe um gesto para se apro‑ximar. Jahan atravessou a prancha de madeira frágil, saltou para o chão e dirigiu ‑se a eles.

— O capitão disse ‑me que és o mahaut — disse o funcionário. Jahan hesitou durante um brevíssimo instante — a dúvida pas‑

sageira que se sente antes de se proferir uma mentira. — Sim, effendi. Vim do Indostão com o elefante.— Vieste? — A sombra de uma suspeita atravessou o rosto do

homem. — Como é que falas a nossa língua?Jahan estava à espera daquela pergunta.— Ensinaram ‑ma no palácio do grão ‑mogol. Aprendi mais a

bordo. O capitão ajudou ‑me.— Muito bem. Tiramos o elefante amanhã à tarde — disse o

homem. — Primeiro, temos de descarregar o navio.Jahan atirou ‑se ao chão, horrorizado.— Por favor, effendi, peço ‑lhe que seja bondoso. O animal está

doente. Vai morrer se ficar outra noite naquele porão.Seguiu ‑se um silêncio surpreendido, até o funcionário dizer:— Preocupas ‑te com o animal.— Ele é bom rapaz — disse o capitão, os olhos frios apesar do

sorriso.

Foi atribuída a cinco marinheiros a tarefa de tirarem o ele‑fante do porão. Praguejando intensamente e olhando o animal com uma expressão desdenhosa, ataram ‑lhe cordas e puxaram‑‑no com toda a força. Chota não se moveu. O rapaz observava o trabalho árduo dos homens, a sua ansiedade a aumentar a cada instante que passava. Após muita deliberação, decidiu‑se que não deviam forçar o elefante a sair, mas que se devia erguer a jaula com ele no interior. Um grupo de estivadores destrancou as por‑tas do porão, deixando ‑o escancarado, e ataram cabos aos qua tro lados da jaula, cabos que enrolaram à volta de carvalhos velhos.

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Depois de tudo preparado, os homens puxaram em simultâneo, os braços a moverem ‑se ao mesmo tempo, as faces inchadas pelo esforço. Uma tábua enorme caiu da jaula, precipitando ‑se com estrondo, e, como se por milagre, não atingiu ninguém. A pouco e pouco, a jaula ergueu ‑se e depois imobilizou‑se. Lá em baixo, as pessoas olhavam boquiabertas e espantadas para o elefante, que conseguiam ver por entre os intervalos da jaula; estava sus‑penso no ar como uma criatura meio alada, meio taurina, dabbat al ‑ard, a besta da Terra que os imãs diziam que surgiria no Dia do Juízo Final. Outros homens correram para ajudar, a multidão de espectadores aumentou, e instantes depois todas as pessoas no porto estavam a ver o que se passava ou a puxar a jaula. Jahan corria de um lado para o outro, tentando ajudar mas sem saber bem como.

Quando a jaula pousou no cais, ouviu ‑se uma pancada alta e alarmante. A cabeça do elefante bateu nas tábuas que o cobriam. Os estivadores não o queriam tirar do interior, com medo de que a besta os atacasse. O rapaz precisou de muitas súplicas para lhes garantir que Chota não o faria.

Assim que saiu, as patas de Chota cederam ‑lhe debaixo do corpo. Deixou ‑se cair como uma marioneta sem fios. Coxo de tanta exaustão, recusou ‑se a mover, fechando os olhos como se quisesse que aquele lugar e aquelas pessoas desaparecessem. Puxaram ‑no, empurraram ‑no, içaram ‑no e açoitaram ‑no, acabando por o con‑seguir enfiar dentro de uma carroça gigantesca puxada por uma dúzia de cavalos. No momento em que Jahan estava prestes a saltar para a carroça, uma mão agarrou ‑lhe o cotovelo.

Era o capitão Gareth. — Adeus, filho — disse ele, suficientemente alto para todos o

ouvirem. Depois, baixando a voz até um sussurro, acrescentou: — Agora vai, meu pequeno ladrão. Traz ‑me rubis e diamantes. Lembra ‑te que, se me enganares, corto ‑te os tomates.

— Confie em mim — murmurou Jahan, as suas palavras levadas pelo vento assim que lhe saíram dos lábios, e subiu para a carroça.

Em todas as ruas pelas quais passavam, as pessoas afastavam‑‑se, assustadas e encantadas. As mulheres puxavam os seus bebés

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para mais perto; os pedintes escondiam as suas tigelas; os velhos apertavam as suas bengalas, como num gesto de defesa. Os cris‑tãos benziam ‑se; os muçulmanos recitavam suras, para afugen‑tarem Sheitan; os judeus oravam; os europeus pareciam meio espantados, meio maravilhados. Um cazaque grande e musculoso empalideceu, como se tivesse acabado de ver um espectro. Havia algo de tão infantil no medo do homem que Jahan não conseguiu evitar rir. Apenas as crianças olhavam para cima, de olhos brilhan‑tes, apontando para a besta branca.

O rapaz vislumbrou rostos femininos, parcialmente escondidos atrás de janelas rendilhadas; nos muros, casas de pássaros orna‑mentadas; abóbadas que captavam os últimos raios de sol; e mui‑tas árvores — castanheiros, tílias, marmeleiros. Para onde quer que se virasse via gaivotas e gatos, os dois animais que tinham rédea livre na cidade. Animadas e atrevidas, as gaivotas pairavam em cír‑culos, mergulhando para bicarem o isco do balde de um pescador, o fígado frito do tabuleiro de um vendedor de rua ou uma tarte que arrefecia no peitoril de uma janela. Ninguém se parecia importar. Mesmo ao enxotarem os pássaros, faziam ‑no relutantemente e só para não ficarem malvistas.

Jahan ficou a saber que a cidade tinha vinte e quatro portões e era composta por três povoações: Istambul, Gálata e Scutari. Viu que as pessoas estavam vestidas com roupas de cores diferentes, embora segundo que regra era algo que não conseguia imaginar. havia vendedores de água com elegantes chávenas de porcelana, e bufarinheiros vendendo de tudo, desde almíscar a cavala seca. Aqui e ali, vislumbrou minúsculas barracas de madeira, onde se vendiam bebidas em canecas de cerâmica.

— Sherbet* — disse o funcionário, estalando os lábios, mas Jahan não fazia a mínima ideia a que é que aquilo sabia.

Enquanto prosseguiam, o funcionário ia ‑lhe apontando pes‑soas: Aquele indivíduo é georgiano, aquele arménio. Aquela figura magricela é um dervixe, o que se encontra ao seu lado um drago‑

* Bebida popular do Médio Oriente, que se serve fresca e é confecionada com frutos ou pétalas de flores. (NT )

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mano*. Aquele homem, vestido de verde, é um imã, pois só eles podem vestir a cor favorita do profeta. Repara no padeiro que está naquela esquina, é grego. Esses infiéis são os que fazem o melhor pão, mas não te atrevas a comê ‑lo, porque benzem cada um dos pães. Uma dentada e transformas ‑te num deles. Aquele lojista é judeu. Vende galinhas, mas não pode ser ele a matá ‑las, por isso paga a um rabino para o fazer. Aquele indivíduo com uma pele de ovelha em cima dos ombros e argolas nas orelhas furadas é um torlak — uma alma santa, dizem alguns; um preguiçoso, na minha opinião. Olha para aqueles janízaros! Não lhes é permitido deixarem crescer a barba, apenas o bigode.

Os muçulmanos usavam turbantes; os judeus, chapéus verme‑lhos; e os cristãos, chapéus pretos. Árabes, curdos, nestorianos, cir ‑cassianos, cazaques, tártaros, albaneses, búlgaros, gregos, abe cásios, pomaks**... caminhavam por carreiros separados, enquanto as suas sombras se encontravam e misturavam formando nós.

— há setenta e duas tribos e meia — disse o funcionário —, cada uma ocupa o seu lugar. Enquanto todos souberem quais os seus limites, vivemos em paz.

— Qual é a meia tribo? — perguntou Jahan.— Oh, os ciganos. Ninguém confia neles. É ‑lhes proibido montarem

cavalos, só podem montar burros. Não lhes é permitido reproduzirem‑‑se, mas mesmo assim multiplicam ‑se; não têm ver gonha. Mantém ‑te afastado desse maldito bando de pagãos fedo rentos!

Assentindo, Jahan decidiu manter ‑se afastado de qualquer pes soa que se parecesse com um cigano. Gradualmente, as casas tornaram‑‑se mais raras, as árvores mais altas e o barulho diminuiu.

— Tenho de preparar o elefante, antes de o oferecermos ao sul‑tão — disse Jahan, ansioso. — Um presente do grão ‑mogol indiano deve parecer atraente.

O homem ergueu uma sobrancelha.— Não sabes, rapaz? O teu padishah já era.— O que é que quer dizer com isso, effendi?

* Intérprete dos consulados e portos do Oriente. (NT ) ** Muçulmanos eslavos ou originalmente oriundos da Bulgária. (NT )

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— Al ‑Sultan al ‑Azam Humayun... Enquanto estavas no navio, perdeu o trono. Ouvimos dizer que tudo o que lhe resta é a mulher e dois criados. Já não é o soberano.

Jahan franziu os lábios. O que é que aconteceria ao elefante, agora que o rei que o enviara já não era rei? Não tinha quaisquer dúvidas de que, se o sultão Solimão enviasse o animal para trás, ele morreria a bordo. Perturbado, disse:

— Chota não vai sobreviver a outra viagem.— Não te preocupes. Não o vão devolver — disse o funcionário.

— Temos toda a espécie de animais no palácio, mas nunca tivemos um elefante branco.

— Acha que vão gostar dele?— O sultão não vai querer saber. Tem tarefas importantes. Mas

a sultana...O funcionário calou ‑se. Uma expressão assustada apoderou‑

‑se‑lhe do rosto, enquanto olhava dura e longamente para algo à dis tância. Quando Jahan seguiu o seu olhar, viu, erguendo ‑se no cimo de um promontório, a silhueta de um edifício enorme, com os archotes a cintilarem na escuridão e os portões fechados como lábios a guardar segredos.

— É o palácio? — sussurrou Jahan.— É — disse o homem, orgulhoso, como se o palácio pertencesse

ao seu pai. — Encontras ‑te agora na residência do Senhor do Leste e do Oeste.

O rosto de Jahan iluminou ‑se, expectante. Todas as divisões sob aquele telhado deviam estar cheias de sedas e brocados, pen‑sou. Todos os corredores deviam ecoar com gargalhadas alegres. Possivelmente, os diamantes da sultana eram tão grandes que cada um deles devia ter um nome mais bonito do que o de uma con cubina.

Chegaram ao Portão imperial, sob o olhar severo dos guardas, que não mostraram qualquer interesse por Chota, como se estives‑sem habituados a ver um elefante branco todos os dias. Quando o grupo chegou ao Portão do Meio, flanqueado por torres cónicas encimadas por archotes flamejantes, desceram da carroça. Naquele instante, o vento mudou, trazendo com ele um cheiro pútrido. Foi

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naquele momento que Jahan, seguindo um impulso, ergueu o olhar na direção das sombras em pano de fundo. Gelou ao ver os patí‑bulos. Eram três. Um baixo e dois altos. Espetada no cimo de cada um encontrava ‑se uma cabeça decapitada, que apodrecia silencio‑samente; inchada, arroxeada, a boca cheia de palha. O rapaz captou um movimento quase impercetível: a avidez insaciável das larvas, que rastejavam dentro da carne humana.

— Traidores... — disse o funcionário, em voz baixa, e cuspiu com toda a força.

— Mas porque é que foram condenados? — perguntou Jahan, a voz fraca.

— Muito possivelmente por traição. Eu diria que foi isso ou então roubo. Decerto que o mereciam. É isto que acontece àqueles que são falsos.

Atordoado, de rosto macilento, diminuído pelas colunas à sua frente e de repente desprovido de palavras, Jahan atravessou o portão maciço. Embora assaltado por um desejo urgente de fugir, não conseguia abandonar o elefante. Como um condenado a cami‑nhar penosamente até às galés, rendendo ‑se a um destino que não podia evitar nem aceitar, seguiu o funcionário e entrou no palácio do sultão Solimão.

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