ficha de leitura - oeiras · ficha de leitura o meu nome é lucy barton de elizabeth strout...

12
1 Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização: Josefina Melo 14 de janeiro 2019 Sinopse Pode o amor entre uma mãe e uma filha ser um círculo de contornos obscuros, que nem circunstâncias extremas o podem redimir? Lucy Barton recupera numa cama de hospital duma operação ao apêndice com complicações inesperadas. Os seus dias monótonos são inesperadamente invadidos pela mãe, que não vê há 5 anos. Desde que abandonou a casa de uma infância miserável. Rumou então a Nova Iorque, terra de oportunidades, símbolo tão definitivamente americano, onde cruzou o casamento com a literatura. Durante cinco dias que a mãe passa, sem dormir, à cabeceira da filha, a emoção e o sofrimento são como um rosário de um passado que as atormenta, rolado conta a conta entre a tensão das pontes vãs que tentam criar. Como diz uma das personagens “Esta é a história de uma mãe que ama a sua filha. De modo imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita.” Palavras-chave SOLIDÃO, MATERNIDADE, ESCRITA, POBREZA, AMOR Tempo e espaço Amgash, IIinóis, anos 60 e 70, Nova Iorque, 1980-2000 (?) Personagens

Upload: others

Post on 20-Jul-2020

13 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

1

Ficha de Leitura

O meu nome é Lucy Barton

de Elizabeth Strout

Publicação: 2016

Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide

Dinamização: Josefina Melo

14 de janeiro 2019

Sinopse

Pode o amor entre uma mãe e uma filha ser um círculo de contornos obscuros, que

nem circunstâncias extremas o podem redimir? Lucy Barton recupera numa cama de

hospital duma operação ao apêndice com complicações inesperadas. Os seus dias

monótonos são inesperadamente invadidos pela mãe, que não vê há 5 anos. Desde

que abandonou a casa de uma infância miserável. Rumou então a Nova Iorque, terra

de oportunidades, símbolo tão definitivamente americano, onde cruzou o casamento

com a literatura. Durante cinco dias que a mãe passa, sem dormir, à cabeceira da filha,

a emoção e o sofrimento são como um rosário de um passado que as atormenta,

rolado conta a conta entre a tensão das pontes vãs que tentam criar. Como diz uma

das personagens “Esta é a história de uma mãe que ama a sua filha. De modo

imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita.”

Palavras-chave

SOLIDÃO, MATERNIDADE, ESCRITA, POBREZA, AMOR

Tempo e espaço

Amgash, IIinóis, anos 60 e 70, Nova Iorque, 1980-2000 (?)

Personagens

Page 2: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

2

LUCY

Oriunda de uma família de aves raras, que cheirava mal, mesmo na pequena vila de

Amgash, no Ilinóis, onde habitavam outras famílias pobres. Viviam isolados na

companhia dos milheirais e plantações de soja que se estendiam até ao horizonte e

jantavam muitas vezes pão com melaço. Os livros que lia na biblioteca da escola,

aquecida, faziam-na sentir menos sozinha, e decide ser escritora para ajudar os outros

a sentirem-se, também eles, menos sozinhos. Foram também os livros que a ajudaram

a ter boas notas e a conseguir uma bolsa para ir para a universidade, seu bilhete de

fuga da miséria e da solidão, o primeiro sabor que provou na vida.

MÃE

Trata a filha pela alcunha Wizzle e nunca lhe diz que a ama, apenas lhe diz que ela não

pode chorar. Frequentemente e sem aviso, batia nos filhos, impulsiva e

vigorosamente, quando estes eram crianças. É costureira e apesar da grande pobreza

em que vivem tem soutiens, cintas, um cinto de ligas e vários pares de sapatos de salto

alto para emprestar às suas clientes durante as provas de costura.

MÉDICO

Judeu de maxilar protuberante, com uma tristeza suave a pesar-lhe sobre os ombros,

cujos avós e tias haviam sido mortos nos campos de concentração, casado com quatro

filhos adultos. Lucy amou-o, e à sua tristeza graciosa, durante muitos anos.

MARIDO

William é filho de um prisioneiro de guerra alemão enviado para os campos de cultivo

da batata, no Maine, motivo pelo qual nunca foi aceite pelo pai de Lucy. Detesta

hospitais por isso raramente visita uma única vez a mulher durante as cinco semanas

que ela fica internada no hospital.

IRMÃO

O mais velho dos três filhos do casal aos 36 anos ainda vive com os pais, lê livros

infantis e passa a noite com qualquer animal que vá ser morto no dia seguinte.

VICKY

Irmã mais velha tem cinco filhos ainda está zangada com a mãe por os colegas terem

feito pouco dela da escola devida às condições miseráveis em que vivia.

PAI

Trabalhava com maquinaria agrícola, embora fosse frequentemente despedido por

discutir com o patrão e voltasse depois a ser contratado por ser competente.

Page 3: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

3

CHRISTINA e BECKA

Filhas de Lucy

Jeremy amigo de Lucy, alto, magro, cabelo escuro e rosto intenso, Jeremy é francês e

aristocrata abdica de tudo para viver na América e decide a meio da vida tornar-se

psicanalista.

Sarah Payne escritora, elegante, cabelo cinza bem cuidado. Cresceu num pomar

degradado numa pequena vila do New Hampshire, e escreve com tendência para a

compaixão sobre pessoas que trabalham duramente no campo, e que sofrem, mas que

também têm momentos felizes.

Molla sueca, dez anos mais velha que Lucy, e sua única amiga além de Jeremy.

Excertos

Por exemplo, como é que se aprende que é indelicado perguntar a um casal por que

motivo não tem filhos? Como se põe a mesa? Como sabemos que estamos a mastigar

com a boca aberta se nunca ninguém nos disse? Já agora, como sabemos que aspecto

temos, se o único espelho em casa é muito pequeno e fica por cima do lava-loiça, ou se

nunca ninguém nos disse que somos bonitas, se, em vez disso, quando os nossos seios

se desenvolvem, a nossa mãe nos diz que começamos a parecer-nos com uma das

vacas do celeiro dos Peterson? (p .16)

Mas os livros trouxeram-me coisas. É aqui que quero chegar. Fizeram-me sentir menos

só. E eu pensei: vou escrever e as pessoas não vão sentir-se tão sós! (p. 26)

A solidão foi o primeiro sabor que provei na vida, e esteve sempre lá, escondida nas

frestas da minha boca para mo recordar. (p. 40)

Sonhava não ter frio, ter lençóis lavados, toalhas lavadas, um lavatório que funcionava

e uma cozinha soalheira. Entrava no paraíso deste modo. E depois, chegava o frio, e o

sol punha-se, e o meu choro recomeçava, primeiro como um soluço e, em seguida com

mais força. E depois o meu pai aparecia, destrancava a porta e, por vezes, levava-me

ao colo. (p. 54)

Page 4: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

4

As pessoas vão criticá-la por combinar a pobreza e os maus-tratos. Que expressão tão

estúpida, «maus-tratos», que expressão estúpida e convencional, mas as pessoas dirão

que há pobreza sem maus-tratos, e você nunca vai responder a nada. Nunca defenda a

sua obra. Esta é uma história sobre amor, você sabe disso. Esta é a história de um

homem que viveu todos os dias da sua vida atormentado por coisas que fez na guerra.

Esta é a história de uma mulher que ficou com ele, porque era o que a maioria das

mulheres fazia naquela geração, e que entra no quarto de hospital da filha e fala

compulsivamente sobre os casamentos malogrados de toda a gente e que não sabe,

não tem a menor ideia, do que está a fazer. Esta é a história de uma mãe que ama a

sua filha. De modo imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita. Mas se

der por si a proteger seja quem for neste trabalho, lembre-se: não está a fazê-lo bem.

(p. 93)

Nota biográfica sobre a autora

Elizabeth Strout, nasceu em 1956 em Portland, Maine. Publicou o primeiro livro, Amy

and Isabelle, em 1998. Dez anos depois ganhou o Prémio Pulitzer Ficção com um livro

de contos, Olive Kitteridge. Em 2018 publicou o livro de contos Tudo é possível, onde

Page 5: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

5

retorna a Amgash, Illinois, cidade rural ficcionada no seu livro anterior, O meu nome é

Lucy Barton, e que Barak Obama incluiu na sua lista de melhores livros de 2017. Os

seus contos foram publicados em inúmeras revistas, entre as quais The New Yorker e

O: The Oprah Magazine. Lecciona no Mestrado de Belas-Artes na Universidade de

Queens em Charlotte, Carolina do Norte, e vive na cidade de Nova Iorque.

Outros títulos no catálogo das bibliotecas de Oeiras

Olive Kitteridge (contos) 2010

Entrevistas e recensões

Entrevista de Isabel Lucas no Ípsilon

https://www.publico.pt/2016/09/10/culturaipsilon/noticia/eu-nao-sou-lucy-barton-

1743308

Eu não sou Lucy Barton

Elizabeth Strout quer falar de classes sociais na América. Criou Lucy Barton, escritora

com passado de pobreza e exclusão. É a protagonista de O Meu Nome é Lucy Barton e

em comum com Strout tem os livros, a solidão e o facto de ser branca.

Qualquer coisa podia ter nascido daquela imagem. Foi no dia anterior a esta conversa.

Uma mulher, talvez com 75, 80 anos, o cabelo preso num coque, a andar na rua com

bengala e saltos altos, muito finos. “Acho que vinha da igreja e seguia para um

restaurante. Era hora de almoço. Fiquei embevecida a olhar para ela. Ia sozinha,

caminhava devagar, mas segura”, conta Elizabeth Strout quando se lhe pergunta como

nasce um livro. “No princípio são sempre pelas personagens. Não é uma ideia. Pode

ser uma imagem, uma voz que começa a soar e que depois persigo. E continua assim,

comigo a absorver a rua, a ouvir conversas, gestos, em expressões que vejo. Tudo

serve para ir tornando essas personagens verdadeiras’.”

É o início de uma tarde de Primavera e o sol entra quase directo na sala virada a sul do

andar alto onde vive Elizabeth Strout em Manhattan. Esteve a escrever até há pouco.

O portátil continua aberto na mesa de refeições, e no chão, junto a uma poltrona

branca, há um monte de folhas A4 cheias de anotações.

Escreve por ali, rodeada de livros, quadros e de uma paisagem típica do Upper East

Side de Manhattan: uma nesga do rio East, mesmo ali ao lado, os tons ocre dos prédios

e o verde das árvores, babysitters a passear crianças em carrinhos, alguém a correr na

Page 6: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

6

rua. “Acho que me levou anos até saber como escrever frases; demorei anos a

aprender este ofício e a ouvir nelas alguma coisa que soasse a verdadeiro”, começa

por dizer esta mulher que publicou o primeiro livro em 1998, quase com 43 anos, e

escreve todos os dias desde os 13.

Uma admiradora de Alice Munro e William Trevor que em 2009 ganhou o Pulitzer para

ficção com Olive Kitteridge (Casa das Letras, 2010), colecção de histórias que

funcionam como um todo e com acção em pequenas vilas da costa do Maine. O livro

seria adaptado a uma série da HBO com o mesmo título e protagonizada por Frances

McDermond.

Continua Strout: “Em ficção é preciso fazer sentido emocionalmente e é difícil

consegui-lo. Há muitos escritores a conseguir isso de forma certinha, mas e a emoção?

O Hemingway dizia: ‘vá levanta-te e escreve a frase verdadeira que conheces’. Durante

anos pensei nisso. O que é a frase verdadeira que eu sei? Não conseguia entender, mas

ia tentando, escrevia, escrevia, todos os dias até perceber, distinguir: esta é uma frase

verdadeira e esta não. Mas foi só pela imersão no trabalho, todos os dias.”

Para Elizabeth Strout, chegar à frase verdadeira não é muito diferente de conseguir

criar uma personagem verdadeira ou à tal verdade emocional. Fala disto quando se lhe

pergunta como nasceu Lucy, a protagonista de O Meu Nome é Lucy Barton, o seu mais

recente romance que acaba de ser publicado em Portugal e a confirma como uma

eficaz contadora de histórias.

Lucy é uma escritora como Elizabeth, com um grande conhecimento da solidão. “No

resto somos diferentes. Não vale a pena tentar encontrar mais pontos em comum do

que aqueles que qualquer escritor põe de seu no que escreve”, afirma sobre a

tentação do leitor em procurar semelhanças sempre que um escritor cria outro

escritor na ficção. “Eu não sou Lucy Barton”, diz Strout a sorrir, brincando com o

sentido da frase. Ela quer dizer justamente o contrário do que Flaubert disse a

propósito de Madame Bovary (Bovary sou eu). “Eu escrevo ficção. Sei que há sempre

alguma coisa de mim em cada personagem, homem ou mulher, porque eu sou o ponto

de partida do que escrevo, porque só me conheço a mim. Mas eu escrevo ficção e

sempre escrevi ficção. Se as pessoas procurarem quem sou eu, a ficção é o que sou.” E

a ficção é ela porque nela está sempre a sua perspectiva sobre o mundo. “Só

conseguimos ver as coisas a partir do nosso ponto de vista, mesmo quando queremos

ver o nosso contrário. É sempre, sempre, a partir de nós. Mas a ficção é um desses

raros momentos, se ela for bem feita, em que o escritor pode ser outra pessoa, mas

muito brevemente”, diz.

Elizabeth Strout nasceu em Portland, no Maine, filha de um professor universitário e

de uma professora de liceu. Filha única, cresceu numa casa onde “não se acreditava na

televisão”, rodeada de livros e sem vizinhos por perto. “Sim, cresci muito sozinha, mas

era uma solidão diferente da de Lucy”, a rapariga do Midwest que vivia com a família

Page 7: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

7

numa garagem, jantava pão com melaço, cheirava mal e aprendia o básico da vida

íntima ou social imitando o comportamento dos que ia encontrando nos livros. “Por

exemplo, como é que se aprende que é indelicado perguntar a um casal por que

motivo não tem filhos? Como se põe a mesa? Como sabemos que estamos a mastigar

de boca aberta se nunca ninguém nos disse? Já agora, como sabemos que aspecto

temos, se o único espelho em casa é muito pequenino e fica por cima do lava-louça, ou

se nunca ninguém nos disse que somos bonitas, se, em vez disso, quando os nossos

seios se desenvolve, a nossa mãe nos diz que começamos a parecer-nos com uma das

vacas do celeiro dos Pedersons?” Esta é a voz de Lucy.

“É a primeira vez que escrevo usando a primeira pessoa”, refere Elizabeth Strout.

“Quando comecei não sabia que Lucy Barton iria ser escritora. Não escrevo de seguida,

do início até ao fim. Tinha cerca de um terço do material quando me apercebi de que

ela talvez devesse ser uma escritora e eu não queria isso. Quem é que quer ler acerca

de escritores? Não acho que seja muito interessante. Mas ela saia da escola e lia livros

porque a faziam sentir-se menos só. Foi uma pista para mim”, revela. E além de Lucy,

escritora, criou Sarah Payne, outra escritora, referência para a primeira, no que,

confessa, se tornou uma espécie de jogo arriscado com muitos espelhos. É Sarah quem

diz a Lucy e a todos os que a ouvem num curso de escrita: “Vocês só vão ter uma

história.” Funcionou para Lucy como a frase de Hemingway para Elizabeth. E depois,

acrescenta ainda Payne: “Vão escrever uma história de muitas maneiras. Nunca se

preocupem com a história. Só têm uma.”

A história de Elizabeth Strout é a de uma americana, branca que está interessada em

falar dos problemas de classe no seu país. “Este é o grande tema de que todos

parecem fugir. E com ele vêm muitos outros, incluindo o de raça. Não se pode falar de

discriminação racial sem falar de classe”, afirma.

Em criança, os livros de Elizabeth estavam em casa e os de Lucy na biblioteca da

escola, onde ela ficava depois das aulas para fugir ao frio da garagem. “Sempre

detestei ter frio. Há elementos que determinam os trilhos escolhidos, e

frequentemente conseguimos encontrá-los ou identificá-los com rigor, mas já tenho

pensado em como eu ficava até mais tarde na escola, onde fazia calor, só para estar

quente.”

Da história de Lucy vamos sabendo a partir do momento em que a encontramos na

cama de um hospital de Manhattan, nos anos 1980, a reconstituir o que foi a sua vida

até aí. Lucy é uma escritora que naquele momento tenta que a sua própria história lhe

faça sentido e que reconstitui a partir das suas memórias e das histórias e que lhe traz

a mãe, uma mulher pobre e austera do Illinóis. Não se viram durante anos, sempre

tiveram uma relação baseada na contenção afectiva e no silêncio e ela agora senta-se

ao seu lado, dormitando à noite na mesma cadeira onde passa os dias e confrontando-

a com outras memórias.

Page 8: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

8

Elizabeth Strout explora a primeira pessoa numa narrativa que se constrói a partir do

presente a olhar o passado. As hesitações, as falhas de memória, a sequência cortada

pela dispensa de seguir uma cronologia são essenciais a um livro que se estrutura

justamente nisso, jogando com elipses, e que ganha força sobretudo por isso.

“Quando me apercebi de que podia começar com uma mulher mais velha a olhar para

trás isso ajudou-me. Eu queria estar na cabeça da personagem, mas se isso fosse no

presente poderia ser muito confuso, estar tão dentro que cansasse. Mas se eu tivesse

este ‘isto aconteceu há muitos anos’ criava uma distância confortável e ficava mais

fácil ao leitor conseguir acompanhar a voz dela, que era uma voz única a que eu tinha

de estar muito atenta”, refere.

E o seu papel, diz, foi seguir essa voz em confronto com o passado que, apesar de

muito duro, não lhe conseguiu corromper uma espécie de pureza. “Foi isso que me

seduziu nela”, continua Elizabeth Strout, sobre aquela mulher que passa várias

semanas no hospital, separada do marido e das duas filhas pequenas, tendo por única

companhia um séquito de médicos e enfermeiras, que tentam perceber o que ela tem,

e a mãe que nunca lhe disse que a amava. Só lhe disse que nunca podia chorar.

“Nós éramos aves raras, a nossa família, mesmo naquela pequena vila de Amgash,

Illinóis, onde havia outras habitações em ruína e a precisar de pintura e persianas ou

jardins, sem qualquer beleza que se visse.” É outra vez Lucy Barton que vai ganhando

corpo ao ritmo da corrente das suas memórias de exclusão social, abuso familiar,

privação — material e afectiva — e a tal solidão que lhe conferiu identidade, enquanto

o leitor se interroga sobre a sua doença e a tensão se centra naquela relação com a

mãe, especulando sobre a reconciliação. “Dizer mentiras e desperdiçar comida eram

coisas que davam sempre castigo. Fora isso, volta e meia e sem aviso prévio, os meus

pais — e habitualmente a minha mãe, e na presença do meu pai — batiam-nos de

forma impulsiva e com vigor, como me parece que algumas pessoas devem ter

suspeitado, pela nossa pele manchada e pelas nossas expressões taciturnas.”

Lucy pensa isto enquanto a mãe está em frente a ela, envelhecida, a contar episódios

mais ou menos burlescos sobre os vizinhos, os familiares, os irmãos de Lucy. Nesses

momentos em que vai à infância de Lucy, à tensão entre mãe e filha, Strout é mais

eficaz do que quando fala de literatura também pelas vozes das suas personagens.

Como se Lucy não precisasse de ser escritora para ser eficaz. Mas apesar disso, o facto

Page 9: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

9

de Lucy ser escritora continua a ser um bom recurso. Naquela cama de hospital ela

está a escrever a sua própria história, a única, e tem de ser o mais verdadeira possível.

https://rizzenhas.com/2016/09/resenha-meu-nome-e-lucy-barton-de-elizabeth-

strout/

Lucy Barton tem complicações durante uma cirurgia e tem que passar alguns dias em

observação, internada num hospital em Nova York. Da janela ela observa o edifício

Chrysler, imagem constante em suas noites insones e solitárias, em que pensa nas

duas filhas pequenas – se sentem sua falta, se seu marido está dando conta de cuidar

das duas – e no trabalho deixado de lado momentaneamente por conta da saúde. Lucy

Barton é escritora. No momento da cirurgia e da internação, está publicando seus

primeiros textos em revistas renomadas. Mas a Lucy Barton que conta esta história já

tem uma obra consolidada, e o que ela pretende aqui é relembrar cinco dias

específicos de sua internação que acabou durando bem mais do que ela previa: os

cinco dias em que recebeu a visita de sua mãe. Este é Meu nome é Lucy Barton, livro

de Elizabeth Strout que esteve entre os indicados do Man Booker Prize deste ano

(tradução de Sara Grünhagen), mas não chegou a ser finalista do prêmio.

Há anos Lucy não via sua mãe. Sua presença no quarto do hospital foi uma feliz

surpresa, mas que também amedrontadora. Ela não fazia ideia do motivo da mãe estar

ali (depois soube que seu marido ligou para a sogra e pediu que fosse visitá-la, pois ele

tinha pavor de hospitais), e nem o que a mãe pensava do lugar onde estava, da vida

que a filha vinha levando tão longe dela. Lucy e sua mãe são bem diferentes, e apesar

dela notar algo familiar, uma sensação aconchegante vinda do passado, ela também

sente que não está conectada com a mãe, assim como nunca se conectou muito à

família após deixar a cidadezinha do interior onde cresceu. E assim a Lucy dos dias

atuais explica essa relação não conflituosa, mas complicada, entre mãe e filha, em que

constrói um relato sobre identidade, seu lugar no mundo e a importância das pessoas.

Com relatos fragmentados, que misturam a narrativa da visita da mãe, a da infância e

adolescência de Lucy e a de sua vida de escritora, Strout vai contando como ela foi

várias pessoas ao mesmo tempo, e como se sentiu deslocada em todos esses

momentos. Lucy nasceu em uma família pobre, que morava afastada da cidade, no

interior de Illinois. O pai trabalhava no campo e a mãe era costureira, e é marcante

para ela o lugar miserável em que vivia: se vestia com trapos, as crianças na escola

diziam que ela tinha um cheiro diferente, mesmo cheiro que sentiam na sua casa

quando suas mães iam até a mãe de Lucy para que consertasse suas roupas. Strout

também insinua no texto alguns momentos traumatizantes da infância de Lucy (algo

envolvendo a criança trancada numa camionete com uma cobra), e outras coisas

referentes ao seu pai que não são explicadas com detalhes, ficando apenas na

suposição do leitor. Mas ela detalha bem os sentimentos de Lucy quanto à sua

identidade e origem.

Page 10: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

10

Lucy, claro, se refugiava nos livros que conseguia pegar na escola. A leitura é, até certo

ponto, uma das coisas que tem em comum com a mãe, que costumava pegar livros na

biblioteca quando ainda havia uma para frequentar. Lucy tentava ao máximo ficar na

escola – tanto para ler mais quanto para adiar o momento de voltar para a casa gelada.

Esse hábito lhe rendeu boas notas que a fizeram se destacar para uma professora, que

a incentivou a se inscrever para a universidade. Carta de aceitação recebida e bolsa

concedida, finalmente Lucy sai de casa e parte para o mundo, para o lugar onde

julgava pertencer.

Só que a origem de Lucy é bem diferente da dos seus colegas. Strout não se alonga nos

tempos de faculdade – Meu nome é Lucy Barton é, aliás, um livro bem curto –, mas

deixa claro o quanto ela não se encaixava entre aquelas pessoas: não entendia suas

referências, não se vestia como suas colegas, considerava fútil aquilo que as pessoas

davam tanto valor – como as roupas caras de um de seus professores, com quem

manteve um relacionamento. Lucy sente o choque cultural de ter crescido com poucos

recursos e ir parar num lugar onde as pessoas sempre tiveram privilégios que ela

nunca teve, e se achavam superiores por isso. A própria Lucy, às vezes, procurava

motivos para se sentir superior a eles, para não ser rebaixada por causa da infância

pobre. Lucy fingia bem pertencer a tudo aquilo, mas no fundo sabia que aquele

também não era seu lugar, que não era plenamente aceita.

Por isso, ao se reencontrar com a mãe anos depois, Lucy vivencia uma espécie de

constrangimento. Ela chega, em alguns momentos, a subestimar a inteligência da mãe,

que aproveita as visitas para contar as suas histórias: o que aconteceu com as pessoas

da cidadezinha, as fofocas do lugar, comentar alguma coisa que estivesse passando na

TV do hospital ou que tivesse lido numa revista, e que não compreende direito porque

aquilo faz parte da realidade da cidade grande e dos endinheirados. Lucy, enquanto

ouve, observa a mãe e tenta decifrar o que ela está sentindo ao estar ali, tenta

identificar aquilo que une as duas para entender como ela, vindo daquela mulher e

tendo a mesma criação que seus irmãos tiveram, enveredou por um caminho tão

diferente. Criou para si uma vida tão distinta da de sua família.

E foi nisso que o livro me pegou. Eu não venho de uma família tão pobre quanto a de

Lucy, mas eu cresci num ambiente diferente desse em que vivo agora, um lugar onde

ninguém mais da minha família habita. O fato de eu estar nesse lugar tão distante

deles não significa que eu sou melhor do que eles, e o fato das pessoas com quem

convivo hoje terem crescido num lugar com muito mais recursos e oportunidades não

fazem delas melhores do que eu. É basicamente essa a questão de Meu nome é Lucy

Barton: você segue um caminho diferente daquele que todos os que você conhece

tomaram, você passa a vida inteira tentando se encaixar num grupo e sente que não

consegue porque não veio do mesmo lugar que eles e é menos aceita por isso. Mas

você não é inferior a eles, e sua família, por mais diferente que seja a vida que

escolheram seguir (ou “aceitar”) também não são.

Page 11: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

11

Tudo isso Lucy Barton pensa, e tenta entender, nestes dias que passa com a mãe. Suas

conversas saem com dificuldade, mas há vários momentos em que o ambiente fica

leve enquanto a mãe fala e ela apenas ouve, agradecida pela sua presença, sentindo

que, apesar da distância e da falta de comunicação, há amor entre as duas. Lucy é

escritora, é mãe, é esposa, mas também é a filha e a irmã que compartilhou o início de

sua vida com aquelas pessoas que definiram o seu caráter. Meu nome é Lucy Barton

consegue, com uma história breve e simples, explorar muito bem os sentimentos e a

ligação profunda entre mãe e filha, que não se quebra apesar das realidades

diferentes.

Blog deusmelivro

http://deusmelivro.com/mil-folhas/o-meu-nome-e-lucy-barton-elizabeth-strout-21-11-

2016/

“Nós éramos aves raras, a nossa família.”

Diz-se na gíria popular que “mãe é mãe”, mas a verdade é que, muitas vezes, a relação

entre mãe e filha pode ser algo semelhante às relações entre Estados Unidos da

América e União Soviética durante o período da guerra fria. Em “O meu nome é Lucy

Barton” (Alfaguara, 2016), Elizabeth Strout observa à lupa uma não-relação entre mãe

e filha, mostrando o imenso fosso que se abre perante pessoas que deveriam estar, de

alguma forma, próximas.

Lucy Barton está numa cama de hospital, a recuperar de uma cirurgia ao apêndice que

correu mal. Os dias correm vazios, as visitas do marido e das filhas são parcas – a

relação amorosa está por arames -, mas tudo se transforma quando a mãe, que Lucy

não vê há muitos anos, surge para se sentar à cabeceira da cama. Cinco anos em que

não existiu sequer uma visita, fosse para Lucy visitar a casa onde cresceu ou a mãe vir

a Nova Iorque conhecer as netas.

Durante os cinco dias em que a mãe passa à sua cabeceira, começam por falar de

coisas tão banais quanto os vizinhos da infância e os destinos de cada um, mas aos

poucos a tinta das paredes familiares vai-se descascando, revelando-nos a vida de Lucy

enquanto criança e adolescente: uma infância de pobreza e provação, o ser olhada na

escola como vinda de uma família que cheirava mal, os jantares de pão e melaço, as

tareias da mãe, uma casa sem televisão, jornais, livros ou revistas. Uma vida que

terminou quando, depois de fazer da biblioteca local a sua casa, ingressou na

Universidade com uma bolsa integral, descobrindo na literatura uma tábua de auto-

salvação:

“Mas os livros trouxeram-me coisas. É aqui que quero chegar. Fizeram-me sentir

menos só. E eu pensei: vou escrever e as pessoas não vão sentir-se tão sós.”

Page 12: Ficha de Leitura - Oeiras · Ficha de Leitura O meu nome é Lucy Barton de Elizabeth Strout Publicação: 2016 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização:

12

A escrita navega magicamente entre um diário de uma adolescente e as profundezas

do mais íntimo da alma humana, num livro essencial que nos mostra o lado mais cruel

do amor. E que é, essencialmente, um retrato da literatura enquanto salvação e ferida,

um acto de se ser implacável, uma forma de superação individual. Um livro que Sarah

Payne, a personagem escritora que dará um curso frequentado por Lucy, irá descrever

de forma arguta a meio do livro, apontando com isso a essência da escrita:

“As pessoas vão criticá-la por combinar a pobreza e os maus-tratos. Que expressão tão

estúpida, «maus-tratos», que expressão estúpida e convencional, mas as pessoas dirão

que há pobreza sem maus-tratos, e você nunca vai responder a nada. Nunca defenda a

sua obra. Esta é uma história sobre amor, você sabe disso. Esta é a história de um

homem que viveu todos os dias da sua vida atormentado por coisas que fez na guerra.

Esta é a história de uma mulher que ficou com ele, porque era o que a maioria das

mulheres fazia naquela geração, e que entra no quarto de hospital da filha e fala

compulsivamente sobre os casamentos malogrados de toda a gente e que não sabe,

não tem a menor ideia, do que está a fazer. Esta é a história de uma mãe que ama a

sua filha. De modo imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita. Mas se

der por si a proteger seja quem for neste trabalho, lembre-se: não está a fazê-lo bem.“